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E A GESTALT EMERGE

Vida e Obra de Frederick Perls

Ana Maria Mezzarana Kyian

Editora Altana – São Paulo 2001

Este livro foi digitalizado sem fins comerciais para uso exclusivo de
pessoas com deficiência que necessitem de leitores de tela para aceder
ao seu conteúdo, não devendo ser distribuído com outra finalidade, mesmo
de forma gratuita.

AGRADECIMENTOS
Viver é processo; o que faz desse processo um privilégio é a possibilidade de encontros
genuínos, nos quais cada um de nós toca e é tocado pelo outro, naquilo que é mais
sagrado... o coração.
Pela vida de abundância nos privilégios destes encontros, agradeço, agora e sempre...
Aos meus pais, Gaetano e Nair, e a vocês Vagner e Cláudia, que na entrega verdadeira
configuraram minha existência com muito amor.
À Dra. Mitsuko Makino Antunes, mestra querida, referência de sabedoria, dignidade e
respeito.
Ao Dr. Liomar Quinto de Andrade, pelo apoio incondicional, por acreditar em mim, por
todas as oportunidades de crescimento, sempre no afeto.
Ao Xico Santos, editor e amigo querido, por tornar o sonho deste livro realidade.
A todos os clientes, pessoas queridas que num processo mútuo de escolha me tocaram
e foram por mim tocados.
A todas as pessoas que de alguma forma habitam meu coração.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 13
A PESQUISA
Método 17
Análise das articulações entre
a vida e a obra de Frederick Peris 21
A VIDA DE PERLS 23
Cronologia 32
A HISTÓRIA
OS PRESSUPOSTOS 101

1
Pressupostos filosóficos 103
Teorias de base 117
Experiências pessoais 134
A GESTALT-TERAPIA 149
O que é a Gestalt-terapia
Conceitos centrais
O funcionamento organísmico
O self em Gestalt-terapia 167
A neurose 174
Técnicas e “regras” em Gestalt-terapia 183
A CONFIGURAÇÃO 203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 211
APRESENTAÇÃO
É óbvio que o potencial de uma águia será realizado no vagar pelo céu, no mergulho
para caçar pequenos animais, na construção dos ninhos.
É óbvio que o potencial de um elefante será realizado através do tamanho, força e
desajeitamento.
Nenhuma águia quer ser elefante, nenhum elefante quer ser águia.
Eles “aceitam” a si mesmos, aceitam o seu ‘
Não, nem mesmo aceitam a si mesmos, pois isso poderia significar uma possível
rejeição.
Eles se assumem por princípio. Não, nem mesmo se assumem por princípio, pois isso
implicaria a possibilidade de serem d
Eles apenas são, eles são o que são, o que são...
Que isto fique para o homem: tentar ser algo que não o é — ter ideais que não são
atingíveis, ter a praga do pe para estar livre de críticas, e abrir a fenda infinita da tortura
mental.
Frederick Peris
APRESENTAÇÃO
Este livro constitui-se em relevante e preciosa contribuição à psicologia. Seu conteúdo
está agora disponível a um público bem mais amplo que aquele que freqüenta a
universidade e tem acesso ás pesquisas, dissertações e teses nela produzidas. Tantos
trabalhos, de excepcional qualidade, são às vezes condenados às prateleiras das
bibliotecas, quando deveriam correr o mundo e ser objeto de reflexão e discussão. Eis
aqui o que deve ser comemorado com a publicação deste livro.
Será um privilégio para todos aqueles que se interessam pela psicologia ter acesso a
este trabalho primoroso de Ana Kiyan. Todos indubitavelmente farão uma viagem
inesquecível pelo mundo de Fritz, sendo ou não psicólogos ou estudantes de
psicologia, profissionais que se dedicam ao estudo e à prática da psicologia
2
fundamentada na Gestalt-terapia ou historiadores da psicologia.
Essa viagem, complexa e ousada, foi construída paciente e tenazmente pela autora
que, agora, como guia, proporciona que nós mll os caminhos — nada convencionais e
nem um pouco retos — da existência turbulenta e profunda de FerIs, articulada ponto-
a-ponto com sua prática psicológica e sua obra escrita. Corno se isso só não bastasse,
o leitor fará sua “trilha”; pisará com seus próprios pés o caminho e seus olhos terão à
disposição 1 A PESQUISA toda a paisagem do mundo no qual Perls viveu.
Além disso, esta obra é necessária para que sejam compreendidos a envergadura e os
fundamentos teóricos e, sobretudo, vivenciais da obra psicológica e humana de Perls,
forjada na dor, na ousadia e na coragem de enfrentar o mundo e todas as suas
convenções.
É importante ressaltar também que a pesquisa que forneceu os conteúdos para este
livro foi calcada numa cuidadosa coerência com os pressupostos teóricos da Gestalt-
terapia, constituindo-se numa belíssima exposição “ao vivo” do modo como essa
abordagem concebe e trabalha o fenômeno psicológico. Mais que isso, ou por isso
mesmo, os leitores poderão vivenciar a paixão da autora pelo personagem, pela obra e
pelas idéias do também apaixonado Fritz.
Enfim, espero que muitos leiam este livro. Que muitos “vivam” este livro. Tenho a
certeza de que aqueles que o lerem, por minha sugestão, virão me agradecer, assim
como agradeço publicamente à competente pesquisadora e psicóloga e,
principalmente, ao ser humano Ana Kiyan, o privilégio de ter ouvido a narrativa de sua
viagem quase em tempo real. Há vivências que se perdem nas profundezas da
memória, mas há outras tantas que certamente nos tornam seres mais humanos. Essa
viagem promete (e cumpre) que não sairemos os mesmos.
Dra. Mitsuko Makino Antunes
MÉTODO
Esta pesquisa se justifica pela concepção de historiografia da psicologia proposta por
Brozck, o qual nos fala da importância da sistematização do processo de estudo em
história:
ao empreender a reconstrução do passado, o historiador identifica os vestígios para
poder coletá-los, organizá-los, analisá-los e interpretá-los. Como não se pode registrar
todos os acontecimentos, é indispensável a escolha das fontes relevantes para o
estudo aprofundado. A arte do historiador manifesta-se precisamente nesse processo
de identificação das fontes apropriadas para a reconstrução e a interpretação
históricas, essência da historiografia. Por outro lado, apenas a crônica dos
acontecimentos não é suficiente para fazer história. E preciso saber distinguir os
indícios significativos , interpretando-os a partir de sua importância como registro da
emergência de concepções teóricas duradouras. Assim, parte-se de uma hipótese que
poderá vir a ser comprovada ou rejeitada à luz da evidência disponível é preciso
levantar uma questão ao passado e buscar respondê-la, mesmo que seja pela
negativa.” (Brozek, apud Brozek e Massimi, 1998, p.l
O referencial teórico adotado para a leitura da vida e da obra de Perls são os próprios
conceitos da Gestalt-terapia; nesse sentido, é interessante notar que nessa abordagem
existe a prevalência do presente sobre o passado, uma vez que tudo que há para ser
trabalhado e conhecido em termos do funcionamento psicológico está disponível no
agora. Esse aspecto não se relaciona a uma abordagem presentista em historiografia

3
(Campos, apud Brozek e Massimi, 1998). Essa “presentificação” geralmente é apoiada
no pedido do terapeuta para que o cliente fale de suas experiências passadas ou de
sonhos no presente. Polster afirma:
As dimensões do passado e futuro dão reconhecimento àquilo que um dia foi e que
algum dia será, formando assim limites psicológicos para a experiência presente, e um
contexto psicológico que proporciona ao presente simbólico um fundo sobre o qual ele
possa existir. O paradoxo é que ao mesmo tempo que uma preocupação com o
passado e com o futuro é obviamente central para o funcionamento psicológico,
comportar-se como se se estivesse realmente no passado ou no futuro, como o fazem
muitas pessoas, poluem as possibilidades vivas da existência. (1979, p. 27)
É por esse motivo que Peris muitas vezes utiliza-se da narrativa no presente, pois o
torna consoante com o pressuposto acima (o que a priori faz do relato um “relato
gestáltico”), o que pode auxiliar na busca de um resgate histórico que contribua de
alguma maneira para configurar nitidamente aquilo que ainda é Gestalt inacabada.
Assim, pode haver a presentificação do passado, e por conseqüência a conscientização
do ocorrido, e não meramente a obtenção de dados que por si só não expressam todas
as nuanças do contexto.
Acredito ser possível estabelecer uma relação dialética entre Peris, sua história e sua
abordagem. Sua vida nos mostrará o movimento de construção de sua própria
identidade e a retirada de subsídios, dela mesma, para a formação daquele que é o
objeto primeiro dessa pesquisa: a Gestalt-terapia e seu criador.
Sobre a importância da relação do autor com sua obra, é Dunlap quem nos esclarece:
Que os conceitos psicológicos possam ser estudados em abstração das vidas daqueles
que defendem os conceitos, e no entanto, os resultados do estudo terem algum
significado sério, é uma idéia da qual devemos nos desiludir de uma vez por todas.
Quando falo em “vidas” aqui, não me refiro aos dados biológicos abstratos, que muitas
vezes passam como história de vida; falo das vidas no sentido da expressão grega
Bios, que significa vida social. As Vitae abstratas dos indivíduos não têm significado em
si mesmas, mas adquirem significado apenas no cenário social, econômico, religioso e
de todas as outras características da cultura em que os indivíduos têm participado.
(apud Brozek e Massimi, 1998, pp. 57- 8)
Para que este estudo seja possível, será utilizada a abordagem social, pois é nela que
há “o pressuposto de que a compreensão histórica dessa área de conhecimento
[ psicologia], implica em captá-la no bojo das relações que estabelece com o todo do
qual faz parte, na dinâmica do movimento realizado no fluxo do tempo”. (Antunes, apud
Brozek e Massirni, 1998, p. 363)
De fato essa abordagem pode se integrar à gestáltica, pois para ela há o pressuposto
de que o todo é diferente da soma de suas partes, fazendo parte desse todo o campo
onde o fenômeno está inserido.
Antunes segue explicando que a psicologia (e sua história) também é uma área de
conhecimento produzida historicamente, “que expressa uma leitura da realidade,
concretizada nas e pelas relações que estabelece com os fatores de natureza social,
política econômica, cultural e científica, em geral”. (p. 363)
Como veremos, a vida de Perls transcorreu em um tempo histórico bastante
conturbado. Devido à localização geográfica, viveu momentos sociais, culturais e
políticos que certamente contribuíram amplamente para que sua vida se configurasse

4
do modo como apresentamos durante o livro.
A relação dialética estabelecida com o mundo provocou mudanças marcantes em sua
história pessoal, e assim ele também e.’
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pôde provocar no campo onde estava inserido mudanças que repercutem até hoje, ao
menos para aqueles que escolhem essa abordagem como caminho profissional ou
como psicoterapia. Antunes faz ainda um comentário acerca do homem Perls como,
produtor de conhecimento (especialmente na psicologia) e sua relação com o meio:
“Não se encontram as psicologias, seus produtores e reprodutores isolados temporal e
espacialmente, e longe estão de qualquer neutralidade, ou acima das idéias e práticas
que permeiam a sociedade da qual fazem parte”. (apud Brozek e Massimi, 1998, p.
366)
Muitas vezes foi possível que Perls ressignificasse o todo no qual se inseria, ao negar
valores ou transgredir normas, mas ainda assim, sempre em relação ao que era dado
pelo contexto histórico.
Parece haver uma dinâmica estabelecida que, antes de ser determinista, é determinada
pela atuação existencial de cada ser, ou seja, uma gama de muitas possibilidades de
atuação dentro do que é dado pelo contexto, seja ele de caráter mais amplo ou mais
restrito.
Analisar assim a questão, parece trazer uma amplitude que por si só situa a análise em
uma teia de fatos que não podem ser divididos e analisados separadamente, sem que
haja prejuízo da compreensão do todo formado por essas mesmas partes. Um evento
isolado torna-se, pois, uma possibilidade de restrita compreensão, à medida que carece
de informações, ou melhor, de fundo contra o qual a figura a ser estudada possa
delinear-se claramente.
Em Gestalt-terapia (novamente herança da psicologia da Gestalt!), a dinâmica
estabelecida entre figura e fundo é que possibilita nitidez fenomenológica do olhar,
permitindo um destaque daquilo que é mais importante no momento. Mas, ao
recortarmos um fato, isolando-o, não corremos o risco de obter então uma figura
“solta”, sem um fundo contra o qual se destaque ou delincie?
Essa é uma premissa utilizada no processo psicoterapêutico de abordagem gestáltica,
mas por analogia, podemos aplicar esse mesmo processo para a compreensão de
outros fatos, pois cada um de nós não deixa de ser história viva e em processo, que só
pode ser apreendida integralmente em seu final, a partir das configurações que ela
assumiu durante todo o período:
[ concebendo a história como produção humana coletiva, que se processa objetiva e
dinamicamente no fluxo do tempo, cabe ao estudo histórico a compreensão e a
explicitação do movimento e das relações travadas no interior da realidade que se
busca conhecer [ (Antunes, apud Brozek e Massimi, 1998, p. 371)
As demandas sociais de determinada época são fatores relevantes para o surgimento
de novas propostas e possibilidades. Esse aspecto torna-se bastante claro quando
olhamos, por exemplo, para o momento histórico no qual a Gestalt-terapia foi
finalmente reconhecida a despeito de décadas de tentativas mal-sucedidas para que
ela fosse reconhecida tanto no meio da psicologia como no contexto mais amplo, Perls
só pôde realizar seu sonho quando o contexto histórico e social o favoreceu, conforme
veremos no desenrolar de sua história e da história da Gestalt-terapia como abordagem
5
cm psicologia.
ANÁLISE DAS ARTICULAÇÕES ENTRE A VIDA E A OBRA DE FREDERICK PERLS
A fim de estabelecer uma inter-relação entre os fatos biográficos, suas conseqüências
para a construção da Gestalt-terapia e, enfim, a trama tecida por Perls e seus
desdobramentos, no contexto histórico em que foi inserido, utilizarei sempre que
possível, três enfoques distintos:
• Vivência do fato por Fritz Perls, seus sentimentos e reflexões, relatados
predominantemente em seu livro autobiográfico.
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• Referências bibliográficas, sobretudo Ginger e Shepard (dentre outros autores) que,
além do fato em si, tecem comentários.
• Minha análise gestáltica do ocorrido, buscando compreender as articulações
estabelecidas por Perls para a formação da Gestalt-terapia.
Para que o trabalho possa configurar-se da maneira mais clara possível ao leitor, será
utilizado o seguinte recurso: corpo redondo para os fatos relatados à luz de Ginger,
Shepard ou outro autor, e também para minha análise dos fatos e suas implicações;
itálico para a narração de Perls.
Nosso ponto de partida para os fatos e sua análise estará calcado sobre a cronologia
de Ginger. Não é uma escolha aleatória; deve-se a alguns fatos que considero
importante registrar aqui.
Inicialmente, temos como material de estudo a vida conturbada e pouco registrada de
um homem que viveu por muito tempo à margem da sociedade e à frente de seu
tempo. Mesmo o material autobiográfico deixa ao leitor uma sensação de “vazio” entre
um fato e outro ou sobre os motivos que o teriam levado a tomar determinada decisão.
Ginger e Shepard, num trabalho consistente, buscam completar as lacunas existentes
nos relatos de Perls e, por meio de uma pesquisa aprofundada, procuram esclarecer ao
leitor fatos que, juntos, configuraram sua vida.
Por isso, existem controvérsias em relação a algumas datas e acontecimentos, tendo
Ginger optado pelos “recortes mais verossímeis [ do itinerário atormentado desse
personagem fora do comum”. (1987, p. 46).
Como ponto de partida utilizarei o quadro cronológico de Ginger (1987, p. 47), que para
efeitos didáticos subdivide a vida de Perls em sete períodos definidos conforme as
localizações geográficas predominantes durante sua vida.

A VIDA DE PERLS
Não há ponte entre homem e homem... Pois estranhos somos e estranhos ficamos
Exceto algumas identidades Em que eu e você nos juntamos.
Ou melhor ainda, onde você me toca
E eu toco você
Quando a estranhe se faz familiar.

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Frederick Perls
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A narrativa abaixo baseia-se no livro Gestalt: Uma terapia de contato, de Ginger (1985).
Nasceu em Berlim, em 1893, num gueto judeu, Friedrich Salomon Perls, terceiro e
último filho (único homem) de um casal judeu, “emocionalmente desajustado”.
Durante toda sua infância, o pai esteve muito ausente devido às constantes viagens a
trabalho; tinha ele como características notórias “sedução, infidelidade, agressividade e
soberba”. Sua mãe era judia praticante e nutria forte paixão pelo teatro e ópera; paixão
essa que passou a ser de Fritz também.
A irmã mais velha, Else, era quase cega, e por isso bastante protegida pela mãe, o que
gerou em Perls um ressentimento que iria perdurar por toda a vida. Anos mais tarde, a
mãe e essa irmã morreram em um campo de concentração, e Fritz, segundo seu
próprio relato, não derramou uma lágrima sequer. A segunda irmã, Grete, era um
perfeito “menino” e manteve com o irmão uma relação mais próxima, chegando a morar
com ele durante dez anos, após seu casamento.
Em 1906 (aos treze anos), foi expulso da escola por “conduta inqualificável” e passou
então a vagar pelas ruas com um colega que o iniciou nas experiências sexuais com
prostitutas; depois de um ano, voltou a estudar por vontade própria e na nova escola
aumentou seu gosto pelo teatro, paixão que manteria por toda a vida e que influenciaria
mais tarde a Gestalt-terapia.
Em 1916, outra experiência que marcou todo o seu modo de pensar: foi enviado ao
front na Bélgica, e por nove meses participou da guerra nas trincheiras, testemunhando
uma ocasião em que seus camaradas mataram um a um, a golpes de martelo,
soldados inimigos intoxicados. Por ser judeu, acabou sendo perseguido e enviado aos
postos de guerra mais avançados; sofreu intoxicações e acabou ferido seriamente na
testa pela explosão de um obus.
Concluiu o curso de medicina em 1920, com titulação em neuropsiquiatria, mas na
verdade, seu interesse maior continuava a ser o teatro.
Perls sempre demonstrou afeição pelos marginalizados e esteve envolvido com grupos
de esquerda, contracultura, movi mento hippie e beatnik.
Em 1923 Perls partiu para os Estados Unidos a fim de tentar obter a equivalência
americana para seu diploma de doutor em medicina na Alemanha, mas não conseguiu
a convalidação por dificuldade com a língua inglesa; esse episódio levou Perls a criticar
ferrenhamente a cultura americana até o fim de sua vida. Retomou à Alemanha
bastante frustrado.
Já com 32 anos, em 1925, Fritz ainda morava com a mãe; aparentava mais idade e
estava deprimido; foi quando encontrou Lucy, uma jovem casada que se tornaria sua
amante. Essa experiência reanimou Perls.
Aos 33 anos, confuso com o excitamento e a culpa que experimentava com suas
experiências (especialmente as de caráter sexual), decidiu fazer psicanálise com Karen
Horney; imediata mente interessou-se por psicanálise e, seguindo a sugestão de
Horney, deixou Berlim e Lucy, mudando-se para Frankfurt.
Em Frankfurt, no ano de 1927, trabalhou como assistente de Kurt Goldstein, que
trabalhava com psicologia da Gestalt e distúrbios perceptivos.

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Encontrou Lore Posner, psicóloga da equipe de Goldstein, e com quem manteve um
relacionamento de três anos.
Retomou seu processo psicanalítico com Clara Happel, que após um ano “declarou-o”
psicanalista e sugeriu que fosse exercer essa função. Mudou-se para Viena, onde
conseguiu seus primeiros clientes.
No ano de 1929, apesar da oposição da família de Lore, casaram-se. Ele com 36, e ela
com 24 anos.
Entre os anos 1930 e 1933, Karen Horney aconselhou-o a fazer análise com Wilhelm
Reich. Esse trabalho surtiu mais efeito que todos os outros, e Perls passou a tecer por
Reich uma profunda admiração, que acabaria por influenciar toda a sua obra.
Foi nesse clima que, em 1931, nasceu sua primeira filha, Renate, e após quatro anos
(já na Africa do Sul), o segundo filho, Steve.
Financeiramente estava cada vez melhor, pois sua clientela aumentava a cada dia, mas
a tomada de poder pelos nazistas mudou a situação.
Perls foi obrigado a fugir para a Holanda; Emest Jones (amigo e biógrafo de Freud)
ofereceu-lhe trabalho na África do Sul.
Em 1934, Perls instalou-se em Johannesburgo, onde fundou o Instituto Sul-Africano de
Psicanálise. Iniciou-se um período de muito trabalho e prosperidade.
No ano de 1936, aconteceu aquilo que viria a ser decisivo para sua ruptura com a
psicanálise e para a posterior e ferrenha crítica a seu criador e seus métodos: o
encontro tão esperado com Freud, em um congresso de psicanálise em Praga.
A essa decepção vieram juntar-se outras duas: a fria acolhida dos amigos psicanalistas,
e mais particularmente de Reich, que teve que se esforçar para lembrar-se dele.
Em 1940 terminou seu primeiro livro Ego, Hunger and Agression
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(publicado em 1942 em Durban, África do Sul), que já deixava entrever as primeiras
noções da Gestalt-terapia que viria a surgir efetivamente nove anos depois.
Em 1942, Perls alistou-se no Exército, servindo na África do Sul durante quatro anos
como psiquiatra; em 1946, quando regressou, decidiu novamente abandonar tudo,
seguindo para Nova York, onde acabou por estabelecer-se com a família. Com a ajuda
de alguns poucos amigos, prosseguiu até o final de sua carreira psicanalítica (que
durou 23 anos). Nessa época conheceu Paul Goodman, poeta e escritor que teria
grande importância na vida de Perls e no surgimento da Gestalt-terapia.
Em 1950, surgiu o Grupo dos Sete, composto por Peris, Lore, Goodman, Isadore From,
Paul Weiz (a quem Perls deve sua iniciação no zen budismo), Elliot Shapiro e Sylvester
Eastman. Esse grupo estudava a fenomenologia, o existen cialismo e o zen budismo,
além de articular os pensamentos da Gestalt-terapia.
Em 1951 foi lançado o livro Gestalt Therapy, de Perls, cm co-autoria com Goodman e
Hefferline.
Em 1952, Perls e Lore fundaram o primeiro Instituto de Gestalt-terapia, em Nova York.
Perls deixou o instituto a cargo de seus companheiros (especialmente Lore e
Goodman) e começou a peregrinar pelos Estados Unidos a fim de divulgar suas
técnicas e teoria; conseguiu muito pouco, embora tivesse passado vários anos nessa
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tentativa.
Perls estava cansado; corria o ano de 1956. Cardíaco e aos 63 anos, sentia que
acabaria na obscuridade; isolou-se então em um pequeno apartamento às margens do
golfo do México.
Em 1957, surgiu inesperadamente uma mulher que mudaria totalmente sua vida
sombria: Marty Fromm, uma mulher de 32 anos e casada, que havia procurado Perls
para fazer terapia. Manteve com ela um tórrido relacionamento, e redescobriu seus
desejos de viver “sem amarras”, entregando-se ao uso de drogas e a momentos de
“viagens” psicóticas profundas; concomitantemente, passou por duas cirurgias: de
hemorróidas e próstata; Marty finalmente deixou-o.
Até 1960 viveu errante, e nessa época Jim Simkin (um de seus primeiros clientes)
conseguiu ajudá-lo, convencendo-o a largar as drogas.
Em 1962 já com quase setenta anos, iniciou um período de viagens que se estenderia
por dezoito meses, vivendo alguns meses em Israel numa aldeia de beatniks e depois
no Japão, num mosteiro zen, a fim de entender melhor a doutrina.
Ao retomar dessa viagem, Perls instalou-se em uma propriedade na Califórnia, a
célebre Esalen, que viria a tornar-se o centro de desenvolvimento e treinamento em
Gestalt-terapia. Durante bom tempo, porém, os seminários oferecidos tinham baixa
freqüência e eram pouco conhecidos.
Em 1965, após dois anos, os seminários da Esalen continuavam com pouca freqüência
e Perls estava bastante debilitado fisicamente e bastante desanimado com seu projeto;
foi então que encontrou Ida Rolf, que lhe aplicou uma série de cinqüenta massagens
que lhe restituiu as forças e o ânimo.
Em 1967 iniciou o livro autobiográfico In and O lhe Garbage Pai! [ Fritz Dentro e J da
lata de lzxol (publicado em 1969).
No ano de 1968, com a crise do Vietnã e o surgimento do movimento hippie, afloraram
na sociedade discussões relacionadas à liberdade, queda de tabus e direito à
sexualidade; foi nesse contexto que Perls e sua Gestalt-terapia finalmente ganharam
reconhecimento mais amplo.
Após tanto tempo de obscuridade, Perls apareceu em revistas de peso — como na
capa da L — e acabou sendo eleito “rei dos hippies”.
Em 1969 lançou o livro Gestalt-therapy Verbatim, no qual constam vários fragmentos de
seus seminários, que foram gravados; Perls, não contente, acalentava o sonho de ter
um Gestalt-kibutz, onde se pudesse viver gestalticamente.

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Foi por isso que, em junho de 1969, comprou um pequeno hotel à beira do lago
Cowichan no Canadá e se mudou para lá com cerca de trinta discípulos fiéis — ou,
segundo Stevens (1970), vinte discípulos —, todos trabalhando e vivendo em
comunidade.
Em 1970, após retornar de uma viagem de lazer, parou em Chicago para dirigir alguns
laboratórios, e no dia 14 de março faleceu ali, de infarto. Na autópsia foi também
constatado um câncer no pâncreas. Perls tinha então 77 anos.

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Todos esses dados biográficos servem certamente para apresentar ao leitor os fatos
que marcaram a vida desse homem, influenciando, de certa forma, a criação da
Gestalt-terapia, resultado da comunhão entre história pessoal e profissional.
Esses dados, porém, deixam a desejar no que concerne a uma amplitude maior de
suas vivências concretas e psíquicas, sendo estas últimas relevantes para a
configuração de sua teoria.
Tentemos então um maior aprofundamento desses dados, através do próprio relato do
autor em seu já célebre e confuso livro In and Out the Garbage Pau
Antes, apenas uma breve explicação sobre aquilo que chamo de “célebre e confuso
livro”. Célebre, porque tem sido por meio dele que a maioria das pessoas toma contato
com a Gestalt-terapia, o que pode ter contribuído para formar a opinião, corrente entre
muitos, de que não se trata de uma teoria e sim de um emaranhado de considerações
gerais sobre a vida e o comportamento humano, uma vez que não é possível encontrar
em sua estrutura uma continuidade formal, uma seqüência lógica. Além do mais, a
teoria é entrecortada por relatos pessoais, experiências vividas e reflexões sobre as
mesmas; isso certamente é suficiente para classificar o livro, a grosso modo, de
confuso, pois, embora seu caráter seja autobiográfico, a abordagem e sua construção é
encontrada por todo o livro.
Ainda assim, com uma leitura mais apurada e reflexiva, é perfeitamente possível
apreender a teoria, muito embora seja necessária uma sistemática complementação de
leitura e estudo para que seja possível uma visão mais ampla e coerente dos seus
pressupostos e técnicas.
O livro data de 1969, um ano antes da morte de Perls; talvez pressentindo o fim, ele
“batizara” essa última obra com o subtítulo Dentro e fora da lata de lixo, fazendo clara
alusão metafórica a sua própria vida como lata de lixo, na qual caos e sujeira
conviveram por muito tempo, muitas vezes sem fazer sentido.
Não é por acaso que o relato nos traz a sensação constante de uma tentativa muitas
vezes até dolorosa de fechamento de Gestolten, de apreensão da própria existência,
com a necessidade de atribuir-lhe um sentido, talvez apaziguador.
Não foi em absoluto uma existência consoante com os valores vigentes, e a
transgressão de normas sociais e até mesmo morais foram constantes. Lembremos o
trecho do poema que dá nome a seu livro: “...Já basta de caos e de sujeira! Em vez de
confusão sentida, que se forme uma Gestalt inteira na conclusão da minha vida...”.
É interessante notar como em muitos trechos da obra, ao explanar sobre um aspecto
teórico mais específico, Perls o entremeia com considerações pessoais, “viajando” em
sua própria trajetória e distanciando-se do tema abordado, ainda que o leitor possa
vislumbrar uma inter-relação no eixo central do discurso.
Vejamos um trecho no qual fica clara a necessidade da exposição pessoal do autor:
• .Preciso escrever sobre mim mesmo.
Eu sou o meu laboratório
A privacidade de sua existência
Não é minha conhecida
Exceto por revelações...

10
E mais:
30
• . .Ainda sou um autor brincando Com o ritmo das palavras, Tentando voltar ao tema
relevante ,Que des discutir: (p2
Em outro trecho, podemos observar claramente seu espírito inquieto e até mesmo
torturante:
Fritz descanse.
Você sofre demais.
Achou seu Zen, achou seu Tao
Descobriu sua verdade
E também para os outros você deixou claro
O crescimento sem fim, na honestidade.
O que mais você quer?
Ainda não basta? (p. 26)
Contudo, este “fervilhar” de emoções não pode ser atribuído a um momento específico
de sua vida; lembremos que Fritz já veio ao mundo em uma família “conturbada”, na
qual desencontros e agressividade faziam parte de sua rotina.
E é por esse motivo que analisar sua vida sob um enfoque gestáltico pode contribuir
para a apreensão da abordagem como um todo, configurando-se a partir daí uma visão
condizente com um dos pressupostos da própria abordagem, no qual as inter-relações
estabelecidas entre as partes configuram um todo de sentido diferente da soma de
todas elas.
A história de vida contém em si partes da teoria por essa vida composta e retumbam na
existência de quem a escreve, estabelecendo-se então um ciclo continuo entre as
partes.
CRONOLOGIA
A cronologia seguinte consta do livro de Ginger Gestalt, terapia de contato(1987).
PRIMEIRO PERÍODO
Vai do nascimento de Perls até os quarenta anos, compreendendo os anos de 1893 a
1933, vividos na Alemanha, Austria, nas cidades de Berlim, Frankfurt, Viena etc.
(duração de quarenta anos).
Principais acontecimentos
Infância e adolescência tumultuadas, estudo de medicina (psiquiatria); Primeira Guerra
Mundial.
Passa por quatro processos de psicanálise sucessivos, casa com Lore Posner e se
estabelece como psicanalista.
Em 1933, aos quarenta anos, foge da Alemanha nazista para Amsterdã.
SEGUNDO PERÍODO
Compreende os anos de 1934 a 1946, de seus 41 aos 53 anos, quando vive na África
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do Sul, com um breve período inicial vivido na Holanda (duração de doze anos).
Principais acontecimentos
Instala-se como psiquiatra e leva uma vida bem “burguesa” e “mundana” em
Johannesburgo.
É realizado o congresso psicanalítico em Praga e ocorre seu encontro com Freud
(1936).
Publica Ego, Hunger and Agression, em 1942.
TERCEIRO PERÍODO
Vai de 1946 a 1956, e compreende a década de vida entre os 53 e 63 anos de Perls
(duração de dez anos).
Principais acontecimentos
Trabalha como psicanalista de 1946 a 1950.
Formação do Grupo dos Sete; publica Gestalt-Therapy, em 1951 (aos 58 anos).
Criação do primeiro Instituto de Gestalt (Nova York, em 1952). Inúmeras viagens para
apresentar a Gestalt-terapia.
33
QUARTO PERÍODO
Vai de 1956 a 1959, abrangendo dos 63 aos 67 anos devida de j Perls. Passa-se na
Flórida, Maiami e Califórnia (duração de quatro anos).
Principais acontecimentos
Deprimido e doente, se “aposenta”. Encontra Martv Fromm e retoma o gosto pela vida.
Promove alguns seminários na Califórnia.
QUINTO PERÍODO
De 1959 a 1963, compreende dos 67 aos 70 anos, nos Estados Unidos e ao redor do
mundo (duração de quatro anos).
Principais acontecimentos
Vagueia pela Califórnia, Nova York, Israel, Japão...
Permanece numa comunidade de beatniks, cm Israel, e num mosteiro zen no Japão.
SEXTO PERÍODO
Compreende o período dc 1964 a 1969, dos 71 aos 76 anos de vida de Perls (duração
de cinco anos).
Principais acontecimentos
Reside em Esalen, onde promove seminários de demonstração e de formação.
Torna-se célebre por volta de 1968, aos 75 anos.
Publica Gestalt-/herapy Verbatim (1969) e Ia and Out lhe Garbage Pai! (1969).
SÉTIMO PERÍODO
Vai de junho de 1969 a março de 1970, quando Perls tinha 76/77 anos (duração de um

12
ano).
Principais acontecimentos
Funda uma comunidade Gestalt Kibutz, num lago em Cowichan (ilha de Vancouver).
Morre em Chicago, em 14 de março de 1970, aos 77 anos.

A HISTÓRIA
Dentro e/ara da lata de lixo Ponho a minha criação
Cijeia de vida, ou podre com bichos, Tristeza ou exaltarão.
O que tive de alegria e desventura. Será reexaminado;
Sentir-se sadio e viver na loucura, Aceito ou rejeitado.
Já basta de caos e de si Em ve de como são sentidas,
Que seja uma Gestalt inteira Na conclusão da minha vida.
Frederick Perls
34
torno pesquisa histórica, esta obra está subordinada a urna abordagern teórico
metodológica social em história da psicologia, o que — conforme vimos em método —
implica que a contextualização histórica é fundamental para a compreender as partes
que, juntas, participam da construção do todo.
Por partes, quero dizer o contexto histórico-social mundial no qual Perls viveu e no qual
floresceu sua Gestalt-terapia; além disso, as “partes” certamente também estão
subordinadas à história da psicologia, tanto a geral, como a do período específico de
sua vida, de 1839 a 1970.
Em relação aos dados históricos da vida de Perls, Shepard (1977) adverte que existem
insuficiências históricas devido à sua personalidade e em grande medida também aos
transtornos causados pela Segunda Guerra Mundial. Além do mais, geograficamente,
como veremos, Perls, por sua característica irriquieta, foi um “andarilho”, o que
certamente dificultou a configuração total dos fatos.
Em sua vida pessoal, raras vezes parece ter compartilhado com outras pessoas
acontecimentos do passado. Só conversando com gente que
o conheceu durante períodos determinados, me foi possível reunir Impressões acerca
deste homem, sempre em mudança... (Shepard, 1977, p.).
É esse “todo” que pretendo expor da maneira mais próxima possível da realidade. Por
“todo” entendo, nesse contexto, a própria vida do autor, incluindo sua caminhada
pessoal e teórica, que culminou por configurar toda sua existência e abordagem.
Este estudo não tem como objetivo um aprofundamento teórico do estudo da história
mundial, sendo relevante apenas os dados históricos como indicadores do contexto
geral.
PRIMEIRO PERÍODO

13
O mundo
A fim de que possamos localizar historicamente o contexto histórico a que Perls esteve
subordinado, retomaremos os fatos significativos que ocorreram pouco antes de seu
nascimento, mais especificamente na Europa.
Com base em Pazzinato e Senise (1997), que discorrem sobre a história da época,
determinamos como ponto de partida para a contextualização a Grande Depressão
(1873-96), a primeira grande crise do capitalismo na Europa.
É cm meio a esse momento de transição e grande conturbação social que Perls vem ao
mundo. A crise que assolava a Europa encontrou uma Alemanha (local de seu
nascimento) fortemente organizada, o que levaria este país a assumir posição de
destaque em relação a toda Europa e ao mundo.
A Grande Depressão foi causada basicamente pela retração do mercado consumidor
europeu e pela superprodução. Bismarck, aliado aos empresários alemães (que
monopolizavam as empresas em trustes e concentravam seu capital), conseguiu obter
apoio para seus planos colonialistas, até porque havia também um interesse por parte
da burguesia de expandir mercados fora do continente e controlar as fontes de matéria-
prima estratégicas, o que lançaria o Reich na corrida imperialista. No entanto, esse
movimento não encontrou respaldo popular e Bismarck acabou sendo destituído do
poder com a ascensão ao trono do imperador Guilherme II, em 1890, cuja política de
expansão pela força se apoiava basicamente no desenvolvimento bélico acelerado.
Esse é o período do poder do II Reich, comandado por Guilherme II.
A Europa atravessava um período (1870-1914) que ficou conhecido como Paz Armada,
pois os países conviviam pacificamente, mas cada um, a seu modo, procurava invés
em subsídios bélicos e fortalecer suas tropas armadas, criando então um equilíbrio
precário de forças entre as nações do continente.
Por essa época, a conquista do Oeste nos Estados Unidos estava sendo muito bem-
sucedida, e após sucessivas ocupações de terras indígenas o povo americano,
representado pelos colonizadores do Oeste, começou a investir pesadamente na
agricultura. O país inflou-se de poder e orgulho perante as novas conquistas. Os
Estados Unidos também encontraram uma possibilidade de fortalecer a economia e
prosperar mediante forte investimento na indústria bélica, a fim de fornecer arma mento
para a Europa, que silenciosamente armava-se esperando e preparando-se para o que
depois foi pouco a pouco sendo escrito: a Primeira Guerra Mundial.
A Europa assemelhava-se então a uma grande panela de pressão.Foi adotada a
adoção do serviço militar obrigatório, o aumento da influência do Exército na sociedade
e na política de Seus países, a exaltação patriótica e cívica, bem como vários pontos de
tensão entre países. Estava configurada uma situação extremamente perigosa, na qual
o equilíbrio obtido não poderia perdurar — e não perdurou.
A Alemanha, sob o controle de Guilherme II, prosperou rapidamente em diversos
setores industriais, passando a ameaçar
39
a Inglaterra — que até então possuía a confortável situação de detentora do poderio
econômico —, estabelecendo-se uma disputa pelos mercados externos de consumo e
de matéria-prima.
Essa foi apenas uma das situações de conflito que contribuíram de forma marcante

14
para o início da Primeira Guerra Mundial.
Estabelecem-se, então, alianças entre países e a guerra propriamente dita, que pode
ser dividida em duas fases distintas: a guerra de movimento (1914), caracterizada por
ataques frontais, basicamente dos alemães contra franceses, russos e belgas, forçando
a Inglaterra a entrar no conflito, apoiando os países atacados. A partir disso as forças
se equilibraram, forçando cada um dos países envolvidos a adotar outra tática de
guerra, com planos de ataque e construção de trincheiras; delineava-se então o início
de uma grande guerra que se estenderia por quatro anos.
Segundo Pazzinato e Senize (1997), o ano de 1917 encontrou um Exército extenuado.
[ disso, o conflito dizimava grande parcela da população civil e esgotava importantes
recursos dos países beligerantes, o que provocou a revolta dos operários das nações
industrializadas. Ocorreram greves gerais nas indústrias de armamentos e revoltas
contra o serviço militar obrigatório. Os partidos socialistas europeus, que desde o
começo haviam se colocado contra a guerra, passaram a articular propostas de uma
paz sem vencedores.., tais propostas foram sistematicamente recusadas pelas
potências, que as consideravam uma demonstração de fraqueza.... os Estados Unidos
uniram-se à Entente e declararam guerra à Alemanha em abril de 1917 (devido à
guerra submarina alemã, que ameaçava paralisar suas exportações, e a intenção
germânica de atrair o México, prometendo-lhe ajuda na reconquista dos territórios
anteriormente perdido para os americanos.) (p222)
Completamente isolada, a Alemanha não agüentou a ofensiva dos exércitos aliados
comandados pelo general Foch, e Guilherme II abdicou, fugindo para a Holanda; além
disso, o triunfo da Revolução Socialista (1917) levou a Rússia a afastar-se da guerra.
Terminou a guerra e o Segundo Reich foi substituído pela República de Weimar, que
em 11 de novembro de 1918 assinou a rendição incondicional.
Surgiram então os tratados de paz, que deixaram a Alemanha com um pesado fardo
em relação às imposições do mundo. Pazzinato e Senise (1997) explicam:
As duras imposições dos acordos de paz impostos aos povos vencidos intensificaram
as diferenças entre as nações, não resolvendo a questão básica da disputa imperialista
sobre colônias e mercados. A participação de nações não européias no conflito
assinalou a perda da hegemonia da Europa sobre o mundo, acentuando o crescente
poderio dos Estados Unidos e do Japão [ Assim, a Primeira Guerra Mundial, que
enfraqueceu a Europa em população e influência econômica, acabou por ressaltar as
contradições do capitalismo. Essas divergências foram se acentuando e acabaram por
originar uma crise que culminou na Segunda Guerra Mundial em 1939. (p. 224)
Perls
Foi nesse contexto que, em 8 de julho de 1893, nasceu Friedrich Salomon Perls (que
posteriormente americanizou seu nome para Frederick Perls) — num gueto judeu
naquela Alemanha detentora de poder, odiada, temida ou respeitada pelo resto do
mundo.
Ao relatar essa fase inicial da vida de Perls considerando o contexto sócio-político
mundial, Shepard (1977) lembra que, ao nascer, Perls encontra um mundo desafiante e
de excepcional interesse.
Era o tempo do Kaiser, dc uma Alemanha construída sobre o respeito e a cultura, a
educação, a autoridade e a disciplina. Era uma terra de cidadãos e aristocratas, onde
imperava tradições de urbanidade, serviço ao Estado, austeridade pública e dignidade
15
pessoal. A Revolução Industrial não havia despojado o país de seus valores e beleza.
As raízes do “espírito de busca” e a amplitude de critérios de Fritz coincidiram com as
mesmas circunstâncias de seu nascimento, pois tanto ele como sua família
exemplificavam o “moderno” judeu alemão. (p. 26)
41
Por “moderno” judeu alemão, entendo uma busca étnica de aceitação e muitas vezes
negação explícita dos valores e dogmas morais e religiosos, a fim de propiciar uma
inclusão cm outra cultura. Tanto é verdade que muitos judeus “negaram” suas raízes na
tentativa de uma inclusão na sociedade alemã. Outros resistiram bravamente,
cultuando seus costumes e religião.
A família de Perls pode então ser considerada “moderna”, já que aderia aos novos
valores, incorporando aquilo que não era originário de suas raízes. Porém, segundo
Shepard (1977), esse modo “moderno” de viver escondia um paradoxo, posto que sua
mãe era judia praticante e “discreta”, e seu pai, Nathan, embora ativo na franco-
maçonaria, também participava secretamente de cerimônias judaicas. Acerca da
questão racial, Perls esclarece:
A família de Perls pode então ser considerada “moderna”, já que aderia aos novos
valores, incorporando aquilo que não era originário de suas raízes. Porém, segundo
Shepard (1977), esse modo “moderno” de viver escondia um paradoxo, posto que sua
mãe era judia praticante e “discreta”, e seu pai, Nathan, embora ativo na franco-
maçonaria, também participava secretamente de cerimônias judaicas. Acerca da
questão racial, Perls esclarece:
Quando criança, presenciei uma (/esui da religião judaica. Os pais de minha mãe
seguiam os cosi//mês ortodoxos. Uma família com fatos estranhos, juntas ve quentes e
bonitos. Meus pais, e o meu pai, eram judeus, assimilados, isto é, um meio-termo entre
ter ver do passado e apegar-se a costumes como ir ao templo nas grandes festas, caso
houvesse um Deus por perto. Eu não conseguia estar de acordo com essa ín e bem
cedo me declarei ateu. Nem ciência, nem natureza nem filosofia, nem ma, cons
preencher o vazio de um lar espiritual Hoje sei que esperava que a psicanálise fizesse
isso por mim. (19 77)
Essa rebelação pôde ocorrer por meio do contato inicial (na infância) de Perls com a
religião judaica. Neste trecho isso fica claro:
A rel e o que se passava no templo não produziu em mim qualquer temor re. Eu achava
estranho e peculiar o que as pessoas faziam , tirando o rolo de orações pelo seu
santuário, e lendo numa língua estrangeira, com movimentos e voc Tivemos que
aprender hebraico. Tudo era impessoal, com algumas poucas exceções (1969, p. 286)
Sua família consistia nos pais e duas irmãs mais velhas. Else, a mais velha, nascera
com uma deficiência visual e, em grande parte por esse problema, tinha atenção
especial da mãe, fazendo Perls nutrir um ressentimento que perdurou por toda vida.
Por Grete Perls, ao contrário, sempre nutrira um afeto manifesto.
Ao completar três anos, a família de Perls mudou-se para o centro de Berlim,
assumindo então a “modernidade”: havia luz elétrica e o apartamento era elegante,
como convinha a uma moderna família alemã. Possibilidades do mundo capitalista
passaram a fazer parte do cotidiano familiar.
Você diria que teve uma infância /ili ‘Decididamente, até a l, boca elo imaginário; eu da

16
escola e ele da patinação no “ 1969, p. 211)
A mãe de Perls, Ameia, com essa nova maneira de viver, assumiu seu gosto por ópera
e teatro, frequentando o mundo artístico de Berlim junto com seus filhos. Segundo
relatos do próprio Perls (1969), foram “anos bons”, caracterizados por alegria e
tranqüilidade.
Veremos adiante que o teatro passou a ser também apreciado por Perls, o que
provavelmente o fez incorporar à sua Gestalt terapia técnicas como o monodrama,
variação utilizada por Moreno no psicodrama.
Seu pai, Nathan, era um homem de “boa aparência” e, segundo Ginger (1985), tinha
como características a soberba a sedução. Como negociante de vinhos, passava boa
parte do tempo fora de casa, em viagens de negócios — ocasião que aproveitava para
manter vários relacionamentos extraconjugais. Era militante ativo da franco-maçonaria
e comportava-se dc modo diverso fora e dentro de casa. Devido ao temperamento de
seu pai e das constante infidelidade conjugal, havia na casa de Perls um clima tenso,
chegando muitas vezes a ocorrer agressões físicas entre o casal; mesmo assim, os
primeiros anos de vida de Perls parecem, segundo seus próprios relatos, terem se
passado com alegria e tranqüilidade (o quanto isso possa ter sido possível!).
42
Até os nove anos de idade, sempre recebi muito apreço. Meus avós costumavam dizer
‘Ele é feito de tal matéria, que recebe amor de Deus e do Homem’ Devo ter sido
realmente lima criança adorável. Afetiva, ansiosa por agradar e aprender. Longos
cabe/os ondulados, que foram sacrificados para a Escola, sob protestos e lágrimas...
(Perls, 1969 p. 284)
Mas, e isso é realmente interessante, à medida que a situação de seu país se
conturbava, ele parecia adquirir esse mesmo movi mento em sua vida privada. Aos
treze anos já não havia vestígio daquela criança meiga, que acatava as ordens dos pais
e tirava excelentes notas na escola; tanto é que por essa época foi expulso da escola e
iniciou uma vida de pequenas transgressões e rebeldia. A situação familiar também foi
se agravando, o que provavelmente contribuiu para a rebeldia que se seguiria.
No trecho seguinte, vemos uma alusão à invasão do quarto que seu pai mantinha
trancado, onde guardava material e livros relativos à maçonaria:
Gosto de pensar que meus dias de ruindade começaram quando eu invadi o quarto, e é
mais provável que teu/iam começado com a transição da acolhedora escola primária
para a estranha e rígida atmosfera do ginásio. (Perls, 1969 p. 284)
Ao recordar-se de sua família — embora expresse ressenti mento também em maior
intensidade de conflitos. Para Perls, o pai era uma figura ambígua, e em seus relatos
pode-se perceber claramente as polaridades entre seus sentimentos:
E/e adorava ser chamado de “orador”, e com lima larga faixa ar cruzando o peito, lima
impressionante barba, uma figura poderosa, a aparência dele era realmente magnífica.
(1969, p287)
Vale dizer que nos últimos anos de sua existência, Perls usou uma “magnífica” barba; e
que os cabelos longos e brancos, Juntamente com as roupas exóticas usadas pelos
hippies, lhe conferiam aparência quase mística.
Em outro trecho, podemos observar o ressentimento e a admiração mesclados em uma

17
só recordação:
Basicamente eu o odiava, com seu pomposo ‘ estou certo ‘ mas ele também sabia ser
quente e afetivo. Não sei di quanto da minha atitude era influenciada pelo ódio que a
minha mãe nutria contra ele, o quanto ela envenenou a nós, os filhos. (l969,p. 288)
Talvez essa ponderação evidencie o fechamento de uma Gestalt inacabada em relação
ao seu pai, e que o acompanhou sob forma de ressentimento por muito tempo.
Quando retornou à escola, Peris escolheu, junto com seu amigo Ferdinand Knopf, uma
instituição onde a disciplina era mais amena e havia espaço para o teatro, com peças
encenadas pelos próprios alunos, o que lhe agradava muito.
Ferdinand Knopf teve grande importância durante sua adolescência, pois parece ter
exercido certo poder sobre Perls; as decisões que tomava geralmente eram orientadas
pelo amigo. Foi Ferdinand quem o introduziu no sexo, com práticas masturbatórias em
grupo e visitas às prostitutas; desde então, e por quase toda a vida, Perls demonstrou
grande interesse por sexo, e teve inúmeras experiências sexuais, inclusive as de
caráter grupal e pelo menos uma homossexual.
Assim passou sua adolescência, errante entre as ruas de Berlim e a família, que,
conforme seu relato, já o tinha como ovelha negra.
A Primeira Guerra Mundial veio encontrar-lhe na faculdade, cursando medicina, ainda
que seu interesse primeiro fosse o teatro.
De novo, encontramos nas palavras de Shepard um motivo também “histórico” para sua
graduação em medicina:
Embora seu primeiro amor fosse o teatro, essa atividade não resultava ocupação
adequada para um jovem judeu de classe média que procurava abrir caminho para o
mundo. (1977, p. 34)
Em 1815, foi enviado para Mons, na fronteira com a Bélgica, e ficou profundamente
impressionado com a proibição de tratar de feridos ingleses, podendo apenas dispensar
cuidados aos alemães.
Em 1916, Perls e seu grande amigo Ferdinand Knopf resolveram se alistar antes de
serem convocados, posto que esse fato era eminente. No front, testemunhou os
horrores da guerra, que segundo seus relatos (1969) o marcariam para sempre.
Em suas memórias, assinala os momentos difíceis pelos quais passou durante nove
meses, questionando-se algumas vezes se os inimigos eram os ingleses ou seus
próprios compatriotas, que não poupavam os judeus, reservando-lhes a linha de
batalha. Parece ter questionado pela primeira vez sua identidade, uma vez que não se
considerava judeu por convicção, mas porque era assim considerado por seus
compatriotas alemães.
Fisicamente também sofreu abalos: certa vez (1916) sofreu intoxicação por gases e
acabou seriamente ferido por um estilhaço de granada na testa. Havia muitos soldados
sendo mortos a marteladas, após serem intoxicados por gases.
Bem lentamente estou voltando c? i’ida, exposto, mas ainda não muito, a desistir da
morte, a morte tão preferível aos horrores, que eu já tivera êxito em endurecer e
dessensibilizar, mas havia dois tipos de morte que eu não podia encarar. Uma era a
dos comandos pós-ataque. Eles saíam das trincheiras /o que a /11/vem de gás
atravessava as linhas inimigas. Tinham como arma uma espécie ele martelo elástico,

18
com o qual e matavam qualquer pessoa que mostrasse sinal de vida... a outra ocorreu
apenas uma vez [ finalmente as condições do vento parecem estar propícias. Abrir as
válvulas. A nuvem amarela avança. De repente, um n O vento mudou de direção
[ Talvez o gás entre nas (nossas) trincheiras! Vivi o que aconteceu ali muitas máscaras
falharam. E muitos, muitos soldados recebem uma. dose de veneno quase fatal, e eu
sou o único médico, e tenho apenas quatro pequenos balões ele oxigênio e todo mundo
está desesperado por oxigênio e agarra o balão, e eu tenho que arrancá-lo das mãos
destes para dar conforto a outro soldado. Em mais de uma vez tive a tentação de
arrancar a máscara do meu rosto suado. (1 969, p. 1 80—1)
Por essa época, Perls (1969) recorda-se de uma das duas crises de choro compulsivo
que teve em toda a vida: de licença, Perls retornou a Berlim, onde foi assistir à ópera
Fígaro, no Real Teatro. O contraste entre a beleza daquele momento e os momentos
horríveis passados em meio à morte e destruição levaram-no a sair do teatro antes do
final da ópera, chorando compulsivamente.
Perls foi considerado áspero e pouco acolhedor por muitos, mas podemos perceber
muitas vezes em seu relato a manifestação cálida de um homem sensível e emotivo:
Não chorei para valer muitas vezes; talvez só uma ou duas dúzias de vezes na minha
vida inteira. Essas ocasiões ficaram sempre e de au de profunda comoção de pesar, e
pelo menos uma vez dor insuportável [ . .J Adoro o pranto suave que acompanha o
derretime,ita Com muita, muita vi que /ltia o derretimento de uma couraça r/ja e o
emeggimell/o de sentimentos autênticos no meu me levam a uma amorosa rendição.
As vezes há uma reação em cadeia de todo o quando o pranto se torna tão contagioso
quanto o riso. (1969, p. 267)
De fato, a vivência das duas guerras parece ter causado em Perls profundas marcas.
No relato a seguir, Shepard esclarece as conseqüencias da guerra na vida de Perls:
Um dos resultados de sua vida de soldado foi um certo entumecimento mental; passou
por períodos de grande desapego, de despersonalização e durante anos perdeu a
capacidade de ter imagens e fantasias interiores. Empreendia suas tarefas como em
transe, sem preocupar-se com sua sobrevivência [ Quando em 1918 a Alemanha
rendeu-se (Perls, que por essa ocasião já havia obtido um posto de oficial-subtenente
médico e gozava de melhores condições de vida), seu batalhão teve que retornar
imediatamente à base. Obrigado a marchar vinte horas por dia, e com comida escassa,
a penúria voltou à sua vida.
[ A guerra havia custado à Perls seu melhor e mais íntimo amigo — Ferdinand Knopf;
seus próprios sofrimentos, e o que presenciou, destruíram toda estabilidade pessoal,
que havia alcançado antes de participar da guerra. A barbárie, o autoritarismo, as
injustiças raciais e a dor que experimentou haveriam de ter um profundo efeito como
47
fatores que incidiram na formação de sua existência, e que explicam, em considerável
medida, por um lado seu tremendo humanitarismo, e por outro, sua profunda descrença
na natureza humana. (1977, p3).
A partir de seu reingresso na sociedade, após a guerra, Perls parece desenvolver uma
aversão pelo estabelecido socialmente, buscando em bares freqüentados pela
esquerda, modos alternativos de pensar a sociedade.
Em relação aos anos do pós-guerra, Perls relata em seu livro autobiográfico:

19
A inflação do marco alemão já estava aumentando rapidamente, embora ainda não
houvesse disparado. Alimentos, especialmente a carne, eram escassos. Naquela e a
mui/ia habilidade de enxergar com perspectivas era um trunfo; assim como mais tarde
adivinhei os perigos do campo de concentração e o turbilhão da Segunda Guerra
Mundial, adivinhei a inflação. Não sei direito se a inflação alemã foi produzida
artificialmente para eliminar nossas dívidas de guerra, mas suspeito disso. O fato é que
o dólar subiu rapidamente de quatro para vinte marcos, e então cem, e então mil, e
finalmente para muitos milhares, e depois disparou para milhões de marcos e acabou
com o preço de vários bilhões. O valor do marco chegou próximo a “nada “ Tenho uma
coleção histórica de selos alemães, desde os remos fragmentados até o império,
passando pelo Terceiro Reich até a separação Alemanha Ocidental/Berlim/Alemanha
Oriental Os selos da inflação ocupam vá rias páginas.
O papel moeda precisava ser carregado em sacolas. As pessoas se apressavam em
comprar algo com o dinheiro ganho no dia, ainda na mesma noite, porque na manhã
seguinte o valor já estava pela metade. As hipotecas não valiam sequer o valor do
papel onde estavam escritas. (1969, p. 92)
Em outubro de 1923, Perls resolveu partir para os Estados Unidos, em busca de
melhores oportunidades profissionais, já que a situação na Alemanha era
extremamente difícil. Chegando a Nova York, trabalhou no Departamento de Neurologia
do Hospital de Enfermidades Articulares; paralelamente, continuou seus estudos na
tentativa de validar seu diploma de médico (que não era reconhecido nos Estados
Unidos).
Não conseguindo disciplinar-se o suficiente, e também sentindo-se solitário (pois, além
de seu comportamento pouco aceito pelos colegas, ainda não dominava a língua
inglesa suficientemente bem), retornou a Berlim em 1924. Lá permaneceu por cerca de
um ano, e depois, devido a um conturbado caso amoroso que manteve com uma
enfermeira de nome Lucy, partiu para Frankfurt.
Era um local de interesse para Perls, pois ele sabia que Kurt Goldstein trabalhava na
cidade com lesões cerebrais sob a ótica da psicologia da Gestalt (Peris já havia lido
sobre a psicologia da Gestalt, e o assunto o atraía, especialmente o conceito de figura
e fruído).
Em Frankfurt, Perls conseguiu um cargo de assistente de Goldstein, no Instituto para
Soldados com Lesões Cerebrais.
Nesse período, num dos seminários coordenados por Goldstein, Peris conheceu Lore
Posner, jovem de 21 anos que estudava psicologia da Gestalt; a família de Lore era
muito unida e de posses financeiras.
Talvez devido à discrepância entre idade, aparência e modo de viver, ela sentiu-se
imediatamente atraída por Perls, e embora ele não tivesse intenção de manter nada
mais sério, aos poucos Lore foi aproximando-se. Essa aproximação resultaria em
casamento, algum tempo depois.
Naquela época Lore me pressionava para nos casarmos. Eu sabia que não era do tipo
para casamento. Não estava loucamente apaixonado por ela, mas tínhamos muitos
interesses em comum, e freqüentemente passávamos bons momentos juntos...
(1969,p. 65)
Em 23 de agosto de 1929, a despeito das restrições da família de Lore (que
posteriormente passou a chamar-se Laura, pois “americanizou” seu nome quando se

20
mudou para os Estados Unidos), os dois se casaram; ele com 36 e ela com 24 anos.
Nesse primeiro período vimos que Perls teve uma infância e adolescência conturbadas,
formou-se em psiquiatria e lutou na Primeira Guerra Mundial; casou-se com Lore
Posner e se estabeleceu como psicanalista.

SEGUNDO PERÍODO
O mundo
A crise do capitalismo assolou, sobretudo a Itália e a Alemanha, onde começou então
um movimento por meio da fundação de partidos nacionalistas, cujo resultado
Durante os duros anos do pós-guerra, instalou-se por toda a Europa uma violenta crise
econômica. Toda a estrutura do sistema capitalista foi colocada em xeque, levando o
continente a uma crise social de imensas proporções, que culminaria com a Segunda
Guerra Mundial. O mundo exigia da Alemanha uma “reparação da guerra”, ônus que o
país não tinha condição de pagar.
Não recebendo a indenização combinada, Inglaterra e França não encontraram meios
para honrar dívidas adquiridas com os Estados Unidos, seu principal credor.
Nesse contexto, os Estados Unidos encontravam-se cm situação invejável, uma vez
que haviam adquirido poder financeiro e prestígio ao fornecer armas e alimentos
durante a guerra. Resolveram investir na reconstrução da Alemanha, a fim de que ela
se reabilitasse e pudesse pagar suas dívidas.
Devemos lembrar que, nesse momento, a Rússia estava vivendo o momento pós-
revolução e pela primeira vez as pro postas do socialismo estavam sendo colocadas
em prática. Toda a burguesia européia e norte-americana temia um avanço do
socialismo, e por esse motivo acabaram ocorrendo algumas transformações sociais,
como o reconhecimento da igualdade de direitos políticos por meio do sufrágio
universal.
Ao contrário do que acontecia com a Europa, os Estados Unidos começavam a viver
sua época de ouro, consolidado no padrão do “modo de vida americano”, no qual o
consumo era desenfreado e a vida material muito boa.
Esse estado de coisas, porém, não perdurou, pois a Europa adotou tarifas
protecionistas, fazendo com que a superprodução de grãos dos Estados Unidos não
encontrasse mais mercado, o que culminou na quebra da Bolsa de Nova York, em
1929.
Foi um conjunto de idéias superficiais, tendenciosas, mal-alinhavadas, e incoerentes.
Essa incoerência era disfarçada pela propaganda, por grandes desfiles militares e
manifestações populares que apelavam aos sentimentos patrióticos da massa, em
favor da recuperação interna e da expansão colonialista. (Pazzinato e Senise, 1997, p.
247)
A ideologia desses partidos era o fascismo, na Itália, com Mussolini, e o nazismo, na
Alemanha, liderado por Hitler. Pouco a pouco, o parlamentarismo foi sendo eliminado e
esses dois partidos foram conquistando o apoio de muitos setores da população,
inclusive o da burguesia; assim, a crise do capitalismo foi sendo resolvida a partir da
instalação de ditaduras de direita, o que acabou por reforçar o desenvolvimento
armamentista, preparando as condições para o surgimento da Segunda Guerra

21
Mundial, em 1939.
Em 1 de setembro de 1939, as tropas nazistas invadiram a Polônia, e França e
Inglaterra agiram em socorro de seu aliado, desencadeando a Segunda Guerra
Mundial. No princípio a Itália declarou-se neutra. Essa guerra durou seis anos, trazendo
devastação pela Europa e Japão, com a ofensiva dos Estados Unidos em 6 de agosto
de 1945, com as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Na Alemanha, a perseguição aos judeus tornou-se cada vez mais acirrada, gerando um
massacre de milhares de pessoas, a maioria judeus, aprisionados em campo de
concentração.
Pe
Em 1931, casado com Lora e já com sua primeira filha Renate, Perls estava bem
estabelecido em Berlim, trabalhando como analista. Porém a pressão contra os judeus
começou a aumentar, e em abril de 1933, bem antes do início da guerra, Perls fugiu da
Alemanha para a Holanda, deixando para trás tudo que possuía, exceto uma nota de
cem marcos, que conseguiu esconder em um isqueiro. Lora e Renate permaneceram
na Alemanha, aguardando o chamado de Perls.
Embora menos perigosa, em Amsterdam a situação estava igualmente difícil, e os
judeus percebiam que também não havia segurança para eles na Holanda. Perls
instalou-se inicialmente em um abrigo para refugiados judeus. Viveu de “caridade” por
algum tempo, e conseguiu terminar sua capacitação em psicanálise com Karl Landauer,
um analista refugiado que havia dirigido com Frieda Fromm-Reichmann o Instituto de
Psicanálise de Frankfurt.
Após seis meses, já clinicando, conseguiu alugar um aparta mento sem calefação e
chamou a família. Segundo seu relato, foi um tempo duro em que o frio e a fome eram
constantes.
A vida na Holanda foi difícil especialmente depois que a minha família chegou e
moramos naquele apartamento gelado, mima temperatura abaixo de zero. Não
tínhamos permissão de trabalho. A valiosa mobília que finalmente conseguimos trazer
chegou num carro aberto, seriamente danificada pela chuva. O dinheiro que recebemos
pela mobília e pela minha biblioteca não demorou muito Lore teve um aborto, e a
subseqüente depressão... (1969, p. 56)
Sobre esse momento, Shepard (1977) esclarece:
A situação piorou cada vez mais; não era permitido nem a ele nem a Laura trabalhar.
Fritz levantava-se às cinco ou seis da manhã e Laura esfregava o chão, coisa que
nunca tinha feito até então, especial mente em temperaturas muito baixas.
Raras vezes podiam comprar a Renate uma banana, que era para ela um “máximo
luxo” [ Fritz sabia que deviam partir, afastar-se o mais rápido possível do eminente
holocausto. Ernest Jones, que trabalhava duro para ajudar os analistas refugiados,
ofereceu a Fritz a possibilidade de ir para a África do Sul. (p. 46)
Perls relembra esse momento, demonstrando nunca ter superado os momentos difíceis
por que passou:
Vivi os terrores de Flandres, vivi injúrias de sobra, vivi aquela época na Holanda {. . . e
ainda não consigo ser racional a respeito disso. Ainda é o arrogante auto-conceito:
“Você não pode fazer isso comigo!”(1969, p. 104)

22
Perls aceitou a proposta prontamente e mudou-se para a África com a família.
Prosperou, assumindo o papel de psicanalista ortodoxo, juntamente com sua mulher,
Lore, em Johannesburgo. Permaneceu na África doze anos. Perls escreve sobre o
momento da decisão de partir para a África:
Ernest Jones, amigo e biógrafo de Freud, fez um magnífico trabalho pelos psicanalistas
judeus perseguidos. Ele tinha um pedido para analista em treinamento, em
Johannesburg, Africa do Sul, consegui o lugar. Não pedi nenhuma garantia. Não só
queria me safar da desesperadora situação em Amsterdam, como também previa o
futuro. Disse aos meus amigos: está chegando a maior guerra de todos os tempos.
Nenhuma distância é suficiente entre a gente e a Europa ‘ Naquela época eles me
julgaram louco, porém mais tarde, me cumprimentaram pela previsão... (1969, p. 57)
Ao partir para a África, Perls levava na bagagem o sonho de uma vida na qual o perigo
e a perseguição não fizessem parte de seu dia-a-dia; estaria salvo daquilo que havia
previsto e que de fato aconteceu: a Segunda Guerra Mundial.
Na África, iniciou imediatamente sua atuação como psicanalista e, junto com Lore, os
preparativos para a instalação do Instituto Sul-africano de Psicanálise, cujo objetivo
seria basicamente constituir-se como centro de capacitação de futuros psicanalistas. A
inauguração ocorreu em 1935.
No prazo de um ano Perls e Lore haviam construído uma mansão no estilo Bauhaus
num bairro elegante de Johannesburgo.
A invasão e o domínio do solo africano pelos europeus teve seu início muito antes da
estada de Perls . Na verdade, após a segunda Revolução Industrial (1830) surgira o
capitalismo monopolista, que acabou por gerar a extinção do trabalho escravo; mas
Portugal, França e Inglaterra mantiveram poder sobre a Africa, na tentativa dc obter
outras fontes de riqueza que substituíssem o tráfico de escravos. Assim, cada país
tentou obter o domínio de um território africano.
Na Conferência de Berlim, realizada em 1885-87, o chanceler alemão Bismarck tentou
estabelecer com outras nações regras de partilha da África. A partilha, porém, não
contentou a todos, produzindo então um verdadeiro campo de batalha no solo africano.
Embora subjugadas, houve reação por parte das tribos, ocasionando muitas mortes.
Com a divisão, a África do Sul (então formada por quatro colônias britânicas: Cabo,
Natal, Transvaal e Estado Livre de Orange), ficou sob domínio britânico, perdendo sua
independência em 1902. Havia na região colonos irlandeses denominados bôeres, que
também sofreram forte pressão por parte dos britânicos e acabaram subjugados.
O processo de descolonização da Africa só teria início a partir de 1945, e até os dias de
hoje não está totalmente concluído, gerando os conflitos atuais, como por exemplo a
luta pela independência do Saara Ocidental.
O mundo estava cm guerra, uma guerra como jamais se havia visto antes; o domínio
alemão e o genocídio praticado contra os judeus assumiam proporções aterradoras.
A Alemanha, aliada à Itália e ao Japão, e sob o domínio de Hitler, buscava a
supremacia do mundo.
Durante doze anos, Perls fixou residência cm Johannesburgo, onde pôde desfrutar de
uma vida de luxo. Durante esse tempo Perls manteve estreita amizade com Jan
Christiaan Smuts, que conhecera anos antes. Ele era primeiro ministro da África do Sul
e autor da teoria holística que posteriormente viria a influenciar o pensamento de Perls.

23
(Ginger, 1985)
Quando a guerra de Hitler eclodiu, eu estava bem estabelecido em Johannesburgo, isto
e; nós estávamos, porque Lire também tinha uma clínica.
(.. .J O Àfrika Corps de EJi1/er perambulava livremente pela África [ Uma divisão sul-
africana foi capturada em Tobruck. Eu não sabia o que fazer. Meu dz de médico não
era válido [ depois foi passada uma lei que reconhecia os dez estrangeiros durante a
guerra [ então,fui aceito como oficial médico (1969, p. 110)
Esse período na Africa teve especial importância na construção embrionária da Gestalt-
terapia.
Perls atendia seus pacientes no modelo psicanalítico ortodoxo. Financeiramente, tanto
ele como Lore prosperavam cada vez mais.
Em 1936, partiu para Praga com um trabalho dc caráter psicanalítico na bagagem; tinha
a intenção de contribuir com Freud, com um estudo acerca das resistências orais. Esse
encontro com Freud redundou numa grande decepção e, aliado às outras decepções
que essa viagem lhe causou — como a fria acolhida de Reich, a quem Pcrls atribuiu até
o final da vida o mérito de ter sido seu melhor analista —, parece tê-lo impulsionado
(junto com estudos que já vinha realizando paralelamente, sobretudo nas áreas do
holismo, existencialismo e psicologia da Gestalt), a escrever e publicar em 1942 o livro
intitulado Ego, Hunger and Àgression.N essa obra de inicia-se a abordagem da Gestalt-
terapia, pois embora o livro tenha caráter psicanalítico é possível perceber nitidamente
as primeiras discordâncias de caráter teórico e técnico.
Perls relata o encontro com Freud de maneira emocional, deixando entrever seu
ressentimento:
O mestre estava lá, em algum lugar, no fundo. Encontrá-lo teria sido algo muito
presunçoso. Eu ainda não havia conquistado tamanho privilegio.
Em 1936, eu julgava já tê-lo conquistado. Não era eu a mola-mestra na fação de um de
se/is institutos, e não tinha viajado 6.000 km, para participar um de seus congressos?
(Sinto coceira ao escrever seus congressos)
Marquei uma hora, fui recebido por lima senhora idosa (creio que era irmã dele) e
esperei. Então uma porta abriu-se cerca de 70 centímetros, e ali estava ‘e diante dos
meus olhos. Pareceu-me estranho que não passasse do batente da porta, tas na e eu
não sabia nada sobre as fobias dele. “Vim da A do Sulpara iruma palestra e para vê-lo
“.
“Bem, e quando você volta?’ disse ele. Não me recordo do resto da inversa [ Eu
esperava uma rápida reação de mágoa, mas fiquei mera é’ente entorpecido. Então,
devagarinho, devagarinho, vieram as frases guardadas: “Você vai ver— você não pode
fazer isso comigo. É isto que ganho em oca da minha lealdade nas discussões com
Kurt Goldstein “. (1969, p. 74-5)
Vale ressaltar a importância da decepção de Perls com Freud ara o surgimento da
Gestalt-terapia. Durante inúmeras passagens [ seu livro autobiográfico Perls explicita
seus sentimentos em eelação ao ocorrido em Praga e também deixa claro as
polaridades [ sentimentos em relação a Freud.
Muito embora tenha demonstrado a partir desse episódio oposição antagônica ao
pensamento psicanalítico, a ruptura foi gradual e não houve em momento algum a

24
invalidação da importância da psicanálise para Perls.
Assumiria inicialmente uma crítica em relação à prática psicanalítica, que considerava
obsoleta e demorada; além disso, assou a questionar cada vez mais a validade da
compreensão os sintomas, pois achava que a compreensão da causa de determinado
comportamento neurótico, à medida que explicava o motivo, poderia “autorizar” a
pessoa a permanecer dentro do quadro neurótico apresentado.
Daí a importância para a Gestalt-terapia da compreensão o processo (a prevalência do
como sobre o porquê).
A maior influência pessoal encontrada no trabalho de Perls, e certamente também
movida por grande ressentimento, Di a psicanálise, ou melhor, foi Freud, cuja figura
inicialmente e suscitava profunda admiração e respeito. Após a célebre decepção, em
que o tão esperado encontro com o mestre foi profundamente frustrante, Freud acabou
por tornar-se seu ferrenho opositor.
E interessante notar que o ressentimento tem grande importância na Gestalt-terapia;
Perls afirma que esse tipo de emoção reflete uma dificuldade de comunicar-se, o que
por sua vez gera uma grande e difícil situação inacabada.
Segundo Perls (1969), o ressentimento é a expressão mais marcante do impasse, e
para que ele possa ser resolvido é importante poder expressá-lo. Ora, é exatamente
isso que percebemos em relação aos ressentimentos de Perls, quer pelos pais, pela
sociedade ou por Freud. Talvez a resolução criativa desses impasses tenham
contribuído na construção de sua teoria.
Com Freud, tal observação parece estar bastante implícita, uma vez que tanto o
ressentimento como sua resolução tiveram para Perls desdobramentos dramáticos.
Foi a partir desse desencontro que Perls questionou frontalmente a psicanálise, muito
mais em seus métodos do que em sua teoria, muito embora em relação à teoria
também haja explícita discordância. Tomemos um trecho de seu livro no qual esse
ressentimento é claro:
Estou realmente começando
A me divertir agora
Especialmente escrevendo
Este revide venenoso
Contra a psicanálise
Pois, afinal, Freud, eu lhe dei
Sete dos meus melhores anos. (1969, p. 36)
Na verdade, a referência que Perls faz à perda de “sete de seus melhores anos” está
ligada ao período em que Perls se devotou totalmente a psicanálise, pois na ocasião do
encontro com Freud seu objetivo era mostrar ao mestre um trabalho relativo a
resistências orais, contrapondo o pressuposto psicanalítico ligado à base das
resistências humanas nas resistências anais. Vejamos as observações pessoais de
Perls ligadas a esse episódio:
Eu quis contribuir com a teoria psicanalítica, mas não percebi, na época, quão
revolucionária era a palestra, e quanto ela balançaria e até mesmo invalidaria alguns

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fundamentos básicos da teoria do Mestre.
Muitos dos meus amigos me criticaram pela minha relação polêmica com Freud “Você
tem tanta coisa a dizer a sua posição seguramente está fundamentada na realidade.
Porque essa contínua agressividade contra! ? Deixe-o em paz e trate de suas coisas.”
Não posso fazer isso. Freud, si/as teorias, si/a influência, são importantes demais para
mim. À minha admiração, perplexidade e vingatividade são muito fortes. Fico
profundamente comovido pelo sofrimento e pela coragem dele. Respeito
profundamente o quanto e/e, praticamente só conseguiu dispondo das ferramentas
inadequadas da psicologia-de-associação e da filosofia mecanicista. Sou
profundamente grato pelo tanto que evoluí levantando-me contra ele. (1969, p. 61)
Podemos observar nitidamente uma tentativa de resolver esse forte ressentimento, ou
seja, o fechamento dessa situação inacabada; porém a resolução jamais chegou a ser
concluída, embora acredite que Perls possa ter ao longo de sua vida colocado essa
questão central cm um lugar “psiquicamente mais confortável”.
Esse conflito certamente foi fundamental para gerar toda a proposta da Gestalt-terapia.
Foi no ataque, no ressen timento e na reação que a Gestalt-terapia encontrou seu
berço de origem. Perls afirma:
Freud foi um cientista sincero, um escritor brilhante e descobridor de muitos segredos
da “mente” [ mas a psicanálise é um projeto de pesquisa. (l96 167)
É evidente que todo um conjunto de fatores de ordem histórica e social, bem como o
próprio respaldo teórico e filosófico de Perls, contribuíram muito para que essa teoria
fosse concebida tal como a conhecemos hoje.
Além do ressentimento pessoal , Shepard (1977) relata a importância do contexto
histórico e geográfico na construção desse material:
[ decidiu desenrolar suas idéias terapêuticas. Liberado pela distância geográfica, e pelo
isolamento cultural dos outros psicanalistas, seu estilo psicoterapêutico se flexibilizou,
tornando-se mais experimental e aberto. Fritz ampliou o trabalho que apresentara no
congresso (de Praga, em 1936, quando encontrou Freud), incorporou os elementos
úteis de seu trabalho com Reich e incluiu algo que sabia sobre pensamento existencial,
e assim completou seu primeiro livro Ego, Hunger and Agression. (p. 51)
De janeiro de 1942 até fevereiro de 1945, Perls esteve na guerra como voluntário. Vivia
algo que já conhecia, porém com uma diferença radical: agora estava engajado no
Exército inglês, que lutava contra seu país, aquele mesmo que havia defendido na
guerra anterior.
Em maio de 1945 retornou a Johannesburgo como oficial médico. Já não havia motivo
para permanecer na África; devido às dificuldades causadas pela guerra, os pacientes
de Perls e Lore já não podiam locomover-se até a mansão dos Perls. Mesmo mudando
de casa, e deixando para trás a suntuosa mansão de outrora, os motivos fundamentais
para a permanência de Perls naquele lugar foram pouco a pouco se esgotando: Jan
Smuts, seu grande amigo, estava morto; o fascismo sul-africano avançava e havia um
distanciamento afetivo de Lore que pouco a pouco os filhos perceberam.
Neste trecho, Perls deixa clara a sua posição em relação a Lore e aos filhos:
Não me sinto bem escrevendo sobre Lore. Sempre sinto uma mistura de defensividade
e agressividade. Quando nasceu Renate, a nossa filha mais velha, Lore e eu nos
achegamos milito, e até comecei a me reconciliar um pouco com o falo de ser um
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homem casado. Mas quando depois passei a ser culpado por tudo de ruim que
acontecia, comecei a me afastar mais e mais de meu papel de pater familias. Elas duas
viviam, e talvez ainda vivam, numa simbiose intensa, muito peculiar.
Steve, o nosso filho, nasceu na Africa do Sul e sempre foi tratado como imbecil pela
irmã. Evoluiu na direção contrária. Enquanto Renate é falsa, ele é real, lento, digno de
confiança, bastante fóbico e resistente em pedir ou aceitar qualquer apoio. Fiquei
comovido, quando no último natal, recebi dele a primeira carta quente, pessoal... (1969,
p. 302-3)
O ressentimento, termo tantas vezes utilizado por Perls para explicar figuras
inacabadas e, por conseqüência, um funcionamento neurótico, pode aqui ser
claramente percebido em sua vivência familiar.
Perls, que não pôde obter suporte emocional suficiente de sua família durante sua
formação, parece também não ter conseguido suportar a dinâmica familiar estabelecida
na constituição de sua família, quando de filho passou a pai e marido.
De novo, a presentificação de suas mémorias parece trazer-lhe subsídios para o
fechamento de figuras que durante muito tempo permaneceram abertas, cristalizadas e
sem resolução.
Encerravam-se naquele momento doze anos de história de Perls; aos 53 anos, uma
relação familiar abalada, uma grande decepção em relação à psicanálise e as idéias
principais da Gestalt-terapia já alinhavadas. Foi nesse contexto que Perls resolveu
partir para os Estados Unidos, sozinho, mas com a intenção de chamar sua família
após a instalação no novo país.
A crise se deveu à paralisação das atividades produtivas, sobretudo agrícolas, e ao
desmantelamento da rede ferroviária européia, o que dificultava a saída da pequena
produção remanescente [ Ao mesmo tempo, a drástica redução da população
economicamente ati va, pelo grande número de baixas civis e militares, colocou
obstáculos ao programa de recuperação do continente.
Esse panorama sombrio era agravado pela incerteza política que se instalara nas
relações entre Washington e Moscou, desde a conferência de Potsdam, realizada de 17
de julho a 2 de agosto de 1945. Eram evidentes o antagonismo político ideológico e a
mútua desconfiança entre americanos e soviéticos, bem como as divergências sobre a
partilha territorial e as áreas de influência [ Caberia aos Estados Unidos e à União
Soviética, que haviam saído do conflito como superpotências, decidir os destinos da
Europa. (Pazzinato e Senise, 1997, p. 281)
Os ânimos continuaram acirrados até que, através do célebre discurso de Harry
Truman no Congresso Norte-Americano em março de 1947, ficou declarada a
animosidade entre os dois países, iniciando-se formalmente aquilo que foi denominado
de Guerra Fria. A fim de barrar a eminente expansão russa, os Estados Unidos
passaram então a oferecer ajuda à Europa, especial mente à Alemanha Ocidental,
considerada porta de entrada para a ascensão da Rússia. Nenhum país do bloco
socialista aceitou ajuda dos americanos, estabelecendo-se uma clara cisão entre a
Europa Ocidental apoiada pelos Estados Unidos e a Oriental, em que o poder da
Rússia predominava. O mundo passou então a “funcionar” dividido em dois blocos
distintos: um capitalista e outro, socialista.
Mas como se configurava a vida nos Estados Unidos desde o momento em que Perls
chegou até quase o fim de sua vida? Lembremos que durante dez anos (1946-56),

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Perls permaneceu em Nova York, partindo depois para Miami e Califórnia e que entre a
fixação de uma residência e outra “perambulou” por outras cidades dos Estados Unidos
e pelo exterior também, como o Japão.
Devido à posição de provedor da guerra, especialmente.

TERCEIRO PERÍODO
O mundo
A época do pós-guerra foi conturbada, trazendo grandes modificações no contexto
econômico e político mundial.
Após 1945, a Europa, que fora palco das operações militares durante a guerra, viveu
um período de estagnação econômica. Essa
de armas e alimentos, o pós-guerra acabou sendo uma época de extremo progresso e
poderio por parte dos Estados Unidos, que eram ameaçados apenas pela Rússia, mas
ainda assim detinham o título de país mais rico e poderoso do mundo.
Milhões de soldados retornaram ao país depois da guerra, e através do acordo
denominado Fair Deal e do plano Marshall, houve implemento das indústrias e
surgimento de milhares dc empregos, o que fortaleceu na nação o estilo americano de
bem viver, o patriotismo e sentimento hostil cm relação ao comunismo. Prosperava o
capitalismo, e fortes represálias a qualquer tipo de ameaça ao regime foram tomadas,
ainda que de forma arbitrária, em prol da manutenção do status quo.
Nesse clima, proliferava a postura antiesquerdista radical, ocorrendo sob o comando do
general McCarthy a criação de Comitê de Atividades Antiamericanas, uma espécie de
“caça às bruxas”, com o intuito de defender a “soberania” do país a qualquer custo e de
qualquer maneira.
Havia no país uma outra questão que, embora sempre existente, começa
gradativamente a vir à tona com mais e mais força:
a segregação racial, que apartava negros de brancos e que mais tarde acabaria por
gerar grandes conflitos internos, dos quais Martin Luther King participou ativamente,
como representante da facção segregada.
Perls
Ao sair da África, Perls precisou permanecer alguns dias em Montreal, no Canadá, a
fim de regularizar sua entrada nos Estados Unidos.
Assim que obteve a autorização, rumou para New Haven, onde permaneceu
hospedado por algum tempo na casa de seu cunhado, Robert Posner.
Profissionalmente, Perls reiniciou sua prática de analista ainda no modelo psicanalítico,
por meio da ajuda de Erich Fromm e Clara Thompson. Analisava seus pacientes em
sessões de cinquenta minutos e com uso do divã; porém, aos poucos, iniciou com seus
pacientes um trabalho mais relacional, sem o divã, com um contato baseado no olhar e
no encontro mais afetivo, embora esse “afetivo” pudesse ser de caráter mais acolhedor
ou agressivo. A despeito da decepção com Freud e da publicação de Ego, Hunger
aizdÂgn no qual contestava alguns conceitos e a prática psicanalítica, não havia uma
configuração nítida daquilo que, para Perls, substituiria a psicanálise.
Após quinze meses, e já devidamente instalado em Nova York, mais uma vez Perls
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chamou a família a seu encontro.
Aparentemente, Perls oscilava entre adaptação à nova cultura e negação da
mesma, incluindo aí seu lado profissional. Tentou um ingresso no Instituto
Psicanalítico William White mas não foi aceito devido à sua irreverência. No
decorrer dc sua vida, seu estilo pessoal e irreverente, a oposição à psicanálise
(num certo aspecto) e gradativamente à prática ortodoxa, aliados aos subsídios
teóricos que vinha adquirindo, mais a decepção com Freud e o novo grupo de
amigos, acabariam por dar força à delineação da terapia gestáltica.
Paralelamente à prática de analista, desde o início Perls pôde entrar em contato com
pessoas que lhe interessavam particularmente, uma vez que pertenciam a um grupo
intelectual de esquerda e, ao mesmo tempo, tinham intima relação com o teatro, uma
das paixões de Perls.
Esse grupo tinha como líder aquele que viria a ser um de seus amigos mais íntimos e
considerado por muitos @o lado de Laura Perls) “mentor intelectual” da Gestalt-terapia:
Paul Goodman, escritor e crítico tido em Nova York como intelectual controvertido mas
bastante respeitado. Era bissexual assumido e fazia de sua opção ponto de referência
à crítica dos costumes, como o preconceito. Lore e Perls entrosaram imediatamente,
até porque, nos anos passados na África, ressentiram-se da privação do convívio
intelectual.
O grupo era composto por pessoas como John Cage, James Agee, Dwight McDonald,
Julian Beck e Judith Malina. Essas relações tornaram-se preciosas para Perls, uma vez
que todos estavam de alguma forma negando o contexto social por considerá-lo
repressor, preconceituoso e injusto; pensavam basicamente em possibilidades de outra
forma de viver, mediante a honestidade e a experimentação. (Shepard, 1977)
Foram longos anos em que os pressupostos existenciais de Perls começaram a tomar
forma, permeando tanto sua produção teórica como sua vida pessoal; proliferavam os
casos extraconjugais, e Shepard (1977) relata episódios grupais de experimentação
sexual em que a busca basicamente remetia à não-hipocrisia e à responsabilidade pela
própria vida. Esses eventos muitas vezes assumiam proporções ameaçadoras para
alguns componentes do grupo, que a despeito do forte vínculo estabelecido (inclusive
com a produção de peças teatrais, como Paradise Now) começou a sofrer alguns
conflitos que o enfraqueceram.
Paul Goodman (que começara a fazer terapia e iniciara sua formação leiga como
terapeuta com Lore Peris) apresentou Peris a Elliot Shapiro (respeitado educador e
diretor de escolas de nível médio em Nova York), Paul Weiz (médico que lhe
apresentou o pensamento oriental, sobretudo o zen budismo), sadore From
(homossexual confesso, que acabou por tornar- e um de seus amigos mais íntimos e
grande colaborador da construção da Gestalt-terapia), Ralph Hefferline (tinha respaldo
acadêmico, pois era professor universitário; foi co-autor com oodman e Perls de um dos
livros considerados mais impor rntes da abordagem: Gestalt-terapia — Excitement and
Gro in he Human Personalitjy, de 1952) ejim Simkin (primeiro terapeuta estáltico com
título de doutor).
Esse grupo, junto com Laura e Perls, configurou o conhecido Grupo dos Sete.
Articulado por Lote Perls em 1950, dedicou-se, por meio de encontros semanais, a
estudos mais sistematizados dos pressupostos que Perls vinha colecionando ao longo
de sua vida, já que Perls não possuía m compromisso didático com a produção de seu
material. Muitas vezes deixava de registrar sua produção, e não raramente anotava-as

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em papéis avulsos que acabava por perder. Parece que viver “aqui e agora” era por ele
levado às últimas conseqüências, o que necessariamente levou o grupo à necessidade
de sistematizar o conhecimento construído.
Perls passou por um período de produção teórica junto com seu grupo, que duraria
pouco mais do que alguns meses, pois novamente começava a manifestar-se seu
espírito inquieto. Aproveitou a companhia de Isadore From para ir a Los Angeles, onde
deu vazão mais livremente a seus experimentos sexuais e também divulgou a nova
abordagem (Shepard, 1977). Pelas características de sua personalidade
“transgressora”, foi aceito imediatamente num grupo de intelectuais homossexuais,
porém, devido à postura direta e rude, não conseguiu fazer ultrapassar esses limites e
sua abordagem permaneceu circunscrita a esse grupo específico. Cerca de cinco
meses depois retornou a Nova York.
Foi nesse retorno que o livro Gestalt-terapia — Excitement and Growib in The Human
PersonaIi tomou forma, e a parceria para escrevê-lo obedeceu a um critério pouco
usual: Perls expunha suas idéias de maneira uni tanto desordenada, para Goodman,
que escreveu a segunda metade do livro, e Hefferline, que ficou por conta da primeira.
Perls não esteve presente durante toda a produção do livro, pois novamente se pôs em
marcha por diversas cidades dos Estados Unidos, com o intuito de propagar a nova
abordagem.
Antes, porém, houve uma discussão no grupo, que acabou por decidir o novo nome da
abordagem. Essa escolha não foi fácil, e muitos dos membros (incluindo Lote)
discordavam do nome “Gestalt-terapia”. Achavam que poderia haver confusão com a
psicologia da Gestalt e que Gestalt era um nome obscuro, que não esclarecia a
proposta da nova abordagem.
Hefferline insistia em que a nova abordagem deveria chamar-se “Terapia Integradora”,
uma vez que se tratava basicamente de um processo de conscientização e integração
de polaridades e partes alienadas de si mesmo. Outro nome cogitado foi “Psicanálise
Existencial”. Perls, a despeito de toda a divergência, não abriu mão do nome que
escolhera, “Gestalt-terapia” (embora tenha pensado também em “Terapia Integradora”).
A publicação do livro em 1952 assumiu então o caráter do marco do nascimento da
nova abordagem, a Gestalt-terapia.
Larr, como me/los de nossos amigos, se opôs a que eu chamasse a minha abordagem
de Gestalt-lera. Pensei em terapia de concentração, ou algo parecido, mas rejeitei Isso
teria significado que minha filosofia-terapia seria eventualmente categorizada como
uma, entre centenas de outras, o que realmente aconteceu, até certo ponto.
Eu optei pela posição tudo-ou-nada. Não queria saber de meio-termo.
Ou a psiquiatria americana viria a aceitar a Gestalt-terapia como a única forma de
compreensão realista e afetiva, ou ela pereceria entre os escombros da guerra civil e
das bombas atômicas. Não era em vão que Lure me chamava de mistura de profeta e
vagabunda. Perls, 1969, p. 303; grifo meu)
No trecho anterior fica clara a postura de Perls em relação à Gestalt-terapia; na
verdade, essa posição pode ser percebida cm toda sua existência. A intensidade com
que viveu geralmente criou posições radicais nos mais variados aspectos de sua vida.
Nessa época, Perls e Lore fundaram o Instituto Gestáltico de Nova York, e por algum
tempo Perls sentiu-se orgulhoso e realizado. O livro, porém, teve repercussão
praticamente nula no meio da psicologia, o que levou Perls novamente a peregrinar por
30
cidades da América do Norte para levar o mais longe possível sua nova abordagem.
Deixou então o Instituto Gestáltico a cargo de Lore e Goodman e partiu para Cleveland
e, depois, Detroit, Toronto e Miami. Nessas cidades, procurou apresentar sua
abordagem a pequenos grupos de terapeutas e leigos. Essas viagens parecem ter tido
mais importância na captação de novas informações do que propriamente na
divulgação da Gestalt-terapia.
Perls pôde ter contato direto com Moreno (criador do psicodrama), Charlotte Selver
(consciência corporal) e pôde estudar dialética com Arthur Ceppos.
Shepard (1977) fala sobre esse momento da vida de Perls:
No domínio do psicológico, o pensamento de Perls foi vigorosamente influenciado por
estes distintos enfoques. Se poderia com parar Fritz com um aspirador que busca e
chupa novo material, novos pensamentos e novas idéias.
Continuamente absorvia conceitos e técnicas úteis, e as agregava a seu próprio núcleo
central... (p. 63)
Em 1956, o ânimo de Perls abateu-se sensivelmente; seu sonho de tornar a Gestalt-
terapia conhecida e respeitada não se realizara. Além disso, já com 63 anos, sentia-se
cansado e doente.
Resolveu então ir para Miami, onde instalou-se em um pequeno e escuro apartamento,
atendendo uns poucos pacientes e dirigindo alguns grupos de formação. Segundo
Ginger (1985), nesse momento Peris abriu mão de suas atividades sexuais, temendo
morrer de infarto, pois tinha problemas cardíacos.
Em Gestalt-terapia, contato e fuga são maneiras de atender a chamados organísmicos
para satisfazer determinada necessidade.
O funcionamento saudável depende cm muitos aspectos da permeabilidade da fronteira
de contato, pois conforme a demanda o indivíduo pode ou não estabelecer contato.
Perls parece ter “exorbitado” nos estabelecimentos de contato e talvez possa ter
encontrado dificuldade em hierarquizar suas necessidades; após sucessivos e intensos
contatos em que as figuras permaneciam abertas — especialmente aquelas ligadas às
satisfações de suas necessidades afetivas e reconhecimento profissional — Perls
parece optar “deiberadamente” pela fuga, de maneira tão intensa quanto viveu seus
contatos.
Mas qual era o contexto histórico nessa época?
É exercício fundamental para compreender um aconteci mento, a circunscrição dele cm
seu contexto histórico social; isso não é diferente no caso dos fatores históricos que
contribuíram para a construção e o reconhecimento da Gestalt-terapia.
Perls sempre manteve com os Estados Unidos um sentimento ambíguo, baseado na
polaridade amor/ ódio, admiração/ repulsa.
Quando fala em neurose, ele localiza como um dos fatores causadores a sociedade na
qual o indivíduo está inserido, pois ele tem que satisfazer demandas externas que
muitas vezes não são as suas próprias. A partir disso, Perls inicia uma longa reflexão
sobre a sociedade capitalista, mais notadamente a norte-americana, exemplo
insuperável desse modo de viver.
Neste trecho, podemos perceber o valor que Perls (1969) atribuiu ao contexto social

31
como elemento distorsivo da realização humana:
Sem um centro há desespero
De nunca chegar a ser real
O homem vazio de nosso tempo
Robô de plástico, cadáver vivo
Inventará um milhar de modos de ser
autodestrutivo...
Ele não tem centro, tem a morte
Um catatônico estupor
Precisa de excitamentos
Artefatos de todos os tz
Classe alta ou classe baixa,
Não importa em que camada
Vive gastando a existência
O banqueiro precisa do álcool
O hipe precisa da maconha
Para ficarem ligados e esquecerem
Que com um centro sadio
O excitamento é bastante forte
Para estar vivo e criativo e real e ligado
Estar totalmente aí
E totalmente consciente (p. 46-7)
Tornou-se, então, um contestador ferrenho dos valores vigentes, apoiado pelos grupos
de esquerda e artistas do Living
Teather, bem como pelos homossexuais. Goodman, por meio de uma declaração,
(apud Gínger, 1985) deixa claro esse modo de pensar:
Eu era bissexual desde os doze anos, e achava absurdo que a sociedade se metesse a
legislar em matéria da sexualidade privada. (ç 55)
Vimos nesse período grandes mudanças em relação ao aspecto profissional da vida de
Peris, com o surgimento da sistematização da Gestalt-terapia.
QUARTO PERÍODO
O mundo
Em 1956, a questão racial nos Estados Unidos agravou-se consideravelmente. Era
tempo da Guerra Fria e o equilíbrio precóno entre Estados Unidos e União Soviética
precisava ser constantemente vigiado, pois a paz dependia da igualdade de forças
entre as duas potências.

32
O “espírito de superioridade” dos americanos pairava, conduzido pelo forte sentimento
de nacionalismo. O poderio econômico sofria uma ameaça circunscrita apenas à União
Soviética, e o consumismo desenfreado pelas novidades em carros e eletro-domésticos
fazia da vida do americano um paraíso consumista.
Ao mesmo tempo, travava-se uma batalha interna entre negros e brancos, estes
tentando manter sua supremacia e aqueles buscando igualdade, fosse por meio de
formas pacíficas (com o grupo de Martin Luther King), fosse por meio de ações
violentas (como o grupo radical dos Panteras Negras). A economia dos Estados
Unidos, porém, aos poucos começava a dar sinais de retração. É Heloani (1996) quem
explica:
Os anos 50 assistiram a uma grande investida política por parte do capital, com a
introdução de novas tecnologias, com a ofensiva sobre a organização sindical (lei
landrum-griffin nos Estados Unidos), e ainda com a Guerra Fria (defesa da própria
sociedade de consumo, que passa a ser apresentada como “sociedade livre”) [ O
capital se aproveita dessa situação para lançar uma vasta operação de denúncias
contra a corrupção sindical [ Essa ofensiva se utiliza da manipulação da mídia com
programas de debate pela televisão e o filme Waterfroni, do qual Marlon Brando é o
protagonista [ A ofensiva sobre os sindicatos visava manipular politicamente a
percepção dos trabalhadores, impedindo-os de globalizar sintomas que já
potencializavam a crise do fordismo, como, por exemplo, o aumento do desemprego e
a introdução de novas tecnologias, poupadoras de mão de obra [ juntamente com a
pressão sobre os salários, teremos um aumento do déficit comercial nos Estados
Unidos, que teve origem, cm parte, no excessivo crescimento das despesas militares
no estrangeiro, que se constituíram como importação de bens e serviços na balança de
pagamento desse país. Outro fator que determinou o déficit comercial do gigante do
Norte foram as importações. Para tanto, capital americano promove uma recessão para
organizar o seu parque fabril em 1958. Foi a primeira retração econômica significativa
após a Segunda Guerra, nos Estados Unidos. (pp. 68, 69, 71)
Socialmente iniciava-se uma nova realidade nas questões relacionadas ao poder
aquisitivo, político e social.
Em relação ao aspecto social, além dos conflitos internos de caráter étnico, outro
aspecto começava a tomar m1to: a posição da mulher frente à sua própria sexualidade
vinha sendo discutida cada vez mais abertamente e, nesse aspecto, Margareth Singer,
era militante incansável desde a década de 1920, tendo até sua liberdade cerceada,
quando se fundou a primeira clínica de planejamento familiar cm Nova York, por volta
de 1928.
Nesse cenário, Singer encontrou apoio da feminista Erica J ong, que buscava aos
poucos advertir as mulheres a respeito de seus direitos cm relação ao próprio corpo e à
sexualidade, advertindo-as de que podiam escolher se queriam ter filhos ou não.
Estava armado o cenário político e social que pouco tempo depois viria a contribuir para
o surgimento da pílula anticoncepcional (gerando a chamada Revolução Sexual), a
Guerra do Vietnã e o movimento hippie. Esses fatos teriam influência fundamental para
que a Gestalt-terapia finalmente fosse reconhecida no final da década de 1960.
Feris
Durante três anos (1956-59), Perls viveu em Miami, quase na obscuridade. Relatos de
Shepard (1977) e Ginger (1985) dão conta do profundo estado de depressão em que
ele se encon trava; Perls sentia que havia chegado ao fim de qualquer possibilidade,
33
tanto pessoal como profissional, uma vez que as inúmeras tentativas de fazer da
Gestalt-terapia uma abordagem reconhecida haviam falhado. Na época de sua
mudança, Perls estava com 63 anos e sua saúde era bastante precária, especialmente
no aspecto cardíaco.
Passava dias enclausurado em seu pequeno e obscuro apartamento e contava com
uns poucos clientes. A distância física só fez aumentar ainda mais a distância afetiva já
estabelecida entre Lore e ele.
Shepard (1977) nos fala desse momento da vida de Perls:
Esperava sinceramente concluir seus dias em Miami: não se tratava de algo
melodramático, apenas que, em vista de sua saúde deficiente e sua avançada idade,
projetava viver em uma sorte de retiro, até que seu coração se rendesse [ A cada seis
ou sete semanas, quando sua solidão e seu tédio se tornavam superiores às suas
forças, partia para um breve giro pelas cidades onde se haviam constituído grupos
gestálticos: Nova York, Toronto, Cleveland e Detroit, e voltava à Miami... (pp. 72-3)
Em dezembro de 1957 aconteceu um encontro entre Perls e Marty Fromm, mulher
bonita e casada, de 32 anos, que acabou por tornar-se cliente de Perls. Suas queixas
eram frigidez e relacionamento difícil com as filhas.
O que se seguiu foi um tórrido caso de amor, que devolveu a Perls todas as forças e a
vontade de viver. Na terapia e vivência afetiva e sexual com Perls, Marty resolveu todas
as questões relativas a sua sexualidade; Perls, por sua vez, foi brindado com o amor, e
também teve de volta sua sexualidade e retornando o profundo gosto pela vida.
Marty era disponível para toda a sorte de experiências sexuais, o que muito agradava a
Perls. Marty relembra:
O que fizemos um pelo outro, na ordem sexual, foi pura e absoluta magia. Fritz havia
ido para Miami para morrer. Seu coração andava mal... Eu estava morta e
absolutamente frígida e não me dispunha e excitar-me, se tudo que eu recebia depois
eram os contatos de 29 segundos com o meu marido. Também Fritz tinha medo de
excitar-se, não sabia se queria voltar a viver; havia encontrado sua paz e estava em
Miami para morrer... (Fromm, apud Shepard, 1977, p. 58-9)
Perls, então com 65 anos, passou a viver um amor intenso e correspondido, sem
contudo deixar de ser terapeuta de Marty, em três ou quatro sessões semanais.
A intensidade desse amor, aliado ao extremo ciúme que Perls passou a sentir de Marty,
acabaram por levá-lo ao uso de drogas, mais notadamente o LSD. Mesmo com a
transgressão sempre rondando sua existência, as drogas eram artefatos que até então
não haviam feito parte de sua vida.
Perls considerou o ano de 1956 um marco em sua vida, e em seu livro autobiográfico,
dentre outras datas que o marcaram, assinala: “1956 — Miami, Flórida. Envolvimento
com Marty, a mulher mais importante de minha vida’. (1969, p. 80)
À medida que a história entre os dois se desenrolava, além do ciúme exagerado,
fatores relativos à saúde de Perls também contribuíram para que as coisas se
precipitassem. Embora a carta a Marty registrada no livro autobiográfico de Perls (1969)
seja extensa, considero importante transcrevê-la aqui, uma vez que retrata “o todo”
vivido nessa época:
Big Sur, Califórnia

34
Querida Marty,
Quando a conheci, você era linda, impossível de ser descrita. Um nariz, gre e reto, que
mais tarde você destruiu para ficar com uma ‘ bonita ‘ Quando você fez isso, quando
você batizou o seu nariz, você se tornou uma estranha. Você tinha tudo em excesso —
inteligência e vaidade, frigidez e paixão, crueldade e eficiência, temeridade e
depressão, promiscuidade e lealdade, luta e entusiasmo.
Quando digo que você era, não estou sendo correto. Você ainda é, e está muito viva,
embora mais consolidada. Eu ainda amo você e você ainda me ama, não mais
compaixão, mas com confiança e apreço.
Quando olho para os anos que passamos juntos, a primeira coisa que me vem, não é a
impetuosidade do nosso amor na cama, nem tampouco as nossas brigas, ainda mais
impetuosas, e sim a sua gratidão: “Você me devolveu os meus filhos ‘
Encontrei você desesperançada, quase à beira do suicídio, desapontada com seu
casamento, acorrentada por dois filhos, com os quais você tinha perdido contato.
Tive orgulho em levantar você e moldá-la às minhas e suas necessidades. Você me
amava e admirava como terapeuta, e ao mesmo tempo, tornou-se a minha terapeuta,
destroçando com sua cruel honestidade a minha falsidão, falatórios e manz. Nunca
houve tanta lgualdade de dar e receber quanto entre nós dois naquela e
Então veio a vez em que levei você para a Europa. Paris, alguns doentios acessos de
ciúmes de minha parte, algumas orgias selvagens, mas não estávamos realmente
felizes. A felicidade veio na Itália. Eu estava tão orgulhoso de lhe mostrar a verdadeira
beleza como se eu fosse o dono de tudo aquilo, e ajudar você a superar o seu gosto
medíocre em arte. E claro que nos embriagamos em Veneza e...
73
Àquela encenação de Aída em Verona! Um anfiteatro romano com vinte- trinta mil
pessoas. O palco? Não havia palco. Uma das pontas do teatro, construída com
gigantescos modelos tridimensionais, tamanho natural, um pedaço do Egito
transportado de outro continente. E noite. Está quase escuro. Partes da audiência
iluminadas com centenas de velas. E então apeiT/ J/o flutuando com intensidade sobre
nós e através de nós. O final, tochas ardendo no espaço infinito e você morrendo e
tocando a eternidade.
Não foi fácil despertar para o mundo da multidão que saía.
Comparada com isso, a opera ao ar livre de Roma é artificial, você nunca se esquece
que está assistindo a lima representa
As nossas noites. Sem pressa para voltar para casa, sem medo de não dormir o
suficiente. À ti/lima gota de nossa experiência mútua: ‘ noite foi melhor” tornou-se uma
frase de sempre, mas era verdade, uma intensidade sempre crescente de estar ali,
limpara O outro. Não há poesia capaz de descrever aquelas semanas, só um balbuciar
amadorístico.
Nesta vida não se ganha nada sem ter que dar algo em troca. Tive que pagar caro pela
minha felicidade. De volta à Miami, tinha me tornando mais e mais possessivo. Meu
ciúme assumiu proporções realmente psicóticas. Sempre que está vamos separados —
e isso acontecia durante a maior parte do dia — eu ficava inquieto, verificava o que era
feito de você, passava de carro várias vezes por dia, não conseguia me concentrar em

35
nada, exceto: ‘Marty onde você está agora, com quem você está agora? ‘
Até que Peter entrou na nossa vida e você se apaixonou por ele. Ele não se importava
muito com você: Para você ele era um descanso de mim e das minhas torturas. Ele era
fácil de se relacionar, lima boa companhia. Era impossível se aborrecer na presença
dele. Ele era jovem e bonito, e eu era velho e viciado. Para complicar ainda mais a
coisa, eu também, era, e ainda sou, muito ligado a ele.
Para mim os céus desabaram. Fiquei me rebaixando por fora, e nutrindo selvagens
fantasias de vingança por dentro.
Todas as tentativas de romper com você fracassaram. Então fiz algo que, olhando para
trás, parece uma tentativa de suicídio, sem o estigma de tamanha covardice.
Sobrevivi às operações. Sobrevivi à nossa separação. Sobrevivi às nossas brigas finais
e à reconciliação. Eu estou aqui e você está aí. É bom e sólido sempre que nos
encontramos de novo.
Obrigado por ser a pessoa mais importante da minha vida. (pp. 22 6-8)
Com o crescente ciúme de Perls e as “viagens” cada vez mais constantes com LSD,
Marty (que também a essa altura tinha se tornado Gestalt-terapeuta) rompeu o
relacionamento, levando-o novamente a um tempo obscuro de sua vida, muito
embora — devido à proximidade da morte através de duas cirurgias recentes de
hemorróidas e próstata — tivesse adquirido novamente uma certa garra pela vida.
Recuperado fisicamente, retomou suas viagens na busca da divulgação da Gestalt-
terapia e na busca de si mesmo, dirigindo-se inicialmente à Califórnia.
Perls foi para Califórnia a convite de Wilson Van Dusen, um fenomenólogo que ele
conhecera cm 1958, numa reunião anual americana de psicologia em São Francisco;
embora nesse momento a participação de Perl fosse modesta, Van Dusen ficara
impressionado com seus pontos de vista, especialmente a frase corrente que permeava
todo seu discurso: “A vida a vivemos agora”.
Assim, Perls instalou-se na casa de Van Dusen, vivendo com ele e sua mulher durante
quase seis meses e trabalhando como médico psiquiatra no Hospital de Mendocino-
Ukiah, no qual Van Dusen era o diretor. Tinha então 67 anos, e não abrira mão do uso
de ácido; demonstrava sintomas paranóides e buscava um isolamento paradoxal, pois
ainda assim, demonstrava seu modo extrovertido e irreverente de tratar as pessoas.
Van Dusen (apud Shepard, 1977) aponta uma discrepância entre o que Perls pregava e
o que vivia, pois naquele momento ele não aceitava o declínio de sua sexualidade, mas
pregava que cada um deveria aceitar-se como era.
A convivência na casa dos Van Dusen, embora tivesse sido agradável no princípio,
pouco a pouco se deteriorou, culminando na saída da casa onde fora tão bem acolhido.
Perls demonstrava desleixo excessivo com suas coisas e aparência, o que acabara por
desagradar muito Marjorie Van Dusen.
No fim dos anos 1960, encaminhou-se a Los Angeles, a convite de Jim Símkin, amigo e
antigo discípulo de Perls que conseguira estabelecer-se solidamente na cidade como
psicoterapeuta.
Jim foi por algum tempo uma espécie de “restaurador” de forças, cuidando de Perls
quase paternalmente, ensinando-lhe a ter maior asseio, emprestando-lhe dinheiro e
ajudando-o a largar o ácido aos poucos.

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Jim também o acolheu cm sua casa e ao conviver em família parece que Perls
reencontrou o sentimento de continência afetiva, que embora sempre tenha rechaçado
parecia lhe fazer muita falta. Paralelamente, Jim procurou reintroduzir Perls na vida
profissional, abrindo-lhe possibilidades de trabalho. Grupos de capacitação em Gestalt-
terapia foram montados e, embora a projeção fosse restrita, não faltaram pessoas
interessadas na nova abordagem.
Por um tempo as coisas andaram bem e Perls parecia ter encontrado certa
tranqüilidade; não durou. Algumas vezes fazia pequenas viagens e ficava mais do que
o combinado, “transitava” entre um hospital e outro, ou um grupo e outro, na tentativa
de divulgar sua abordagem. Finalmente, cm 1962, decidiu partir, largando tudo para
trás e causando nas pessoas que o rodeavam, mais uma vez, o sentimento de
abandono e pouca confiabilidade.
Deu a volta ao mundo em um navio, passando pelo extremo e médio Oriente, Europa e
Nova Yorke, antes de voltar à Cal Os pontos culminantes da viagem foram Kioto no
Japão, e Elath, em Israel, misteriosa coincidência no caso de um homem que mais
tarde se descreveria, .1/a brincadeira, como um “ ‘ (Shepard, l 101)
Nesse período, a exemplo dos outros momentos de sua vida, a inconstância e a
inquietação estiveram presentes.
QUINTO PERÍODO
O mundo
Se durante a década de 1950 alguns sinais de crise sócio-econômica eram visíveis, a
década de 1960 configurou-se como o próprio momento da crise, dando mostras de
que a base sócio-conômica já não sustentava o sistema como antes.
Um dos fatores básicos do fordismo, o crescimento da produtividade, emitia sinais de
que sua manutenção seria cada vez mais difícil, tanto na Europa quanto nos Estados
Unidos. Logo no início de 1961, cm virtude do crescimento do déficit comercial, os
Estados Unidos recorreram a uma pequena desaceleração da economia. A retomada
do ritmo da economia no segundo semestre desse ano terá como conseqüência o
déficit de 3 bilhões dc dólares na balança de pagamento dos Estados Unidos
[ assistiremos [ ao aumento do desemprego que atinge 4.200 mil trabalhadores, em
1963 nos Estados Unidos. (1 1996, p72)
Segundo Heloani, o desemprego crescente começava a favorecer a criação de um
movimento contra a automação; surgiam greves no sentido de pressionar a indústria a
favor da estabilidade do emprego, descanso remunerado etc. O fordismo, sistema de
produção em que o operário tem função específica e limitada, começava a ser sentido
pelo trabalhador como uma exigência cada vez maior na produção, tirando-lhe o
sentido mais amplo de trabalho.
Outra ocorrência que contribuiu de forma marcante para o desenlace do que viria
depois foi a Guerra do Vietnã (1961-75).
A cisão interna que se delineava entre Vietnã do Norte e Vietnã do Sul propiciaram à
União Soviética e aos Estados Unidos, cada qual apoiando uma facção, para fazer
desse conflito o palco da Guerra Fria, num dos capítulos mais sangrentos da história.
O povo americano, que até então apoiava incondicionalmente seu país no que dizia
respeito à política externa, começava pouco a pouco a se decepcionar, especialmente
após o recrutamento obrigatório, que ceifou a vida de milhares de jovens americanos.

37
Paralelamente a esses acontecimentos, a década de 1960 promoveu no mundo
grandes mudanças sociais. A revolução sexual, junto com a comercialização da pílula
anticoncepcional,
77
gerou uma situação que contribuiu para dar à mulher liberdade em relação a sua
sexualidade e liberdade. Afastado o grande risco de gravidez que até então contribuía
para a repressão sexual, a mulher passou a reivindicar seus direitos sobre seu corpo.
A moral vigente sofreu então um abalo, uma vez que foi posto às claras o paradoxo da
cisão entre os direitos de moças e rapazes: rapazes deviam manter relações sexuais,
mas moças não; moças deviam manter seus desejos absolutamente alijados de si
mesmas e resistir bravamente às investidas masculinas.
O sexo assumiu também função de instrumento político, e foram distribuídos milhares
de botons com os dizeres: “Rapazes dizem não, moças dizem sim”, clara alusão à
negação por parte dos jovens de participarem da guerra e à liberdade sexual das
mulheres.
Cresceram então os movimentos pacifistas, que por um lado estimulavam a deserção e
por outro exigiam uma sociedade mais justa. (Senize e Pazinoto, 1997)
A respeito da situação racial nos Estados Unidos, Sandberg esclarece:
Em junho de 1963, Kennedy apresentou ao Congresso o projeto da lei dos direitos civis,
decisiva para apressar a integração social da população negra. Determinava que as
exigências necessárias para votar seriam idênticas para brancos e negros; que todos
teriam igualdade de oportunidade para obter emprego; que não haveria discriminação
de cor quanto a salários e promoções, nem nos lugares públicos, transportes coletivos
e restaurantes. Isso fez crescer a oposição dos setores racistas ao presidente.
O projeto foi aprovado pelo Congresso, e sancionado pelo presi dente Lyndon Johnson,
no primeiro ano de seu governo, a 19 de junho de 1964. (1987, p. 73)
Aquilo que foi marcante em toda sua vida permaneceu neste período: busca
desenfreada por si mesmo e pelo reconhecimento de seu trabalho; a solidão e a
ultrapassagem de barreiras, quer sociais, quer pessoais.
Voltemos à história: com 67 anos, Perls iniciou uma série de viagens. Inicialmente foi
para Israel, onde, em contato maior com a natureza e tendo como fundo o mar Morto,
sentiu despertar seu desejo de pintar; dividiu então seus dias entre pintar e entregar-se
a um torpor que, longe de ser tristeza, mais parecia um estar vivo no aqui e agora.
Encontrou então os “vagabundos de praia”, conforme ele mesmo os chamava.
Em vez de seguir minha resolução, fiquei mais de quatro semanas. Não houve nenhum
caso amoroso, nenhuma atração cultural,- a praia era cheia de pedras, em vez da praia
linda e cheia de areia, como em Ha ma.ç...
Achei os vagabundos de praia, em sua maioria americanos, fascinantes. Hoje, os
chamamos de hippies, e eles são encontrados aos milhares... Encontrar os vagabundos
de praia aqui, foi um verdadeiro acontecimento. Encontrar gente que era feliz
simplesmente em ser, sem metas ou realh
Encontrá-los, de todos os países, em Israel, onde cada um e todos se esforçavam para
construir um lar duradouro.
Encontrar gente que nem sequer tinha preocupações de férias — sabe, essas
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preocupações de se bronzear, passar óleo na pele, usar óculos escuros, ir a coquetéis,
fofocar de pessoas na praia, falar sobre dietas e preços, e tentativas de largar de
fumar... Aqui havia cor viva, aqui, onde o Neguev encontra o Mar Vermelho, cercado
pelas montanhas da Jordânia e do Egito; aqui onde o sol lança cor sobre cor do alto
das montanhas e penetra na vida submarina de corais e pe&es multicoloridos; aqui os
olhos podiam sorver cores e formas que variavam a cada hora do dia... (1969, pp.
156-7)
Ao enfastiar-se de Israel, Perls foi ao Japão, com o intuito de entrar em contato direto
com a filosofia oriental, mais especificamente o zen budismo. Esse interesse emergira
anos antes, quando conheceu Paul Weiz, estudioso dessa religião.
Perls
Peris dedicou grande parte de seu relato sobre essa viagem às impressões pessoais
sobre a cultura e o modo de viver. Envolveu-se em experiências em mosteiros, recebeu
treinamento de mestres budistas e sorveu esse outro modo de conceber a existência.
Em todos os pressupostos da Gestalt-terapia podemos encontrar fundamentos do
pensamento oriental, como o satori e o vazio fértil, e embora cm seus relatos Perls
tivesse negado a importância do zen budismo, este persistiu, sendo aludido por ele
mesmo. Vejamos sua crítica:
A minha visita ao Japão foi um fracasso no que se refere ao Zen. Reforço a minha
convicção de que, como na psicanálise, algo deve estar errado se são precisos muitos
anos e décadas para não se chegar a nenhum lugar. O melhor que se pode dizer é que
a psicanálise cria psicanalistas, e o estudo do Zen, cria monges Zen.
O valor de ambos, o aumento da tomada de consciência e a liberação do potencial
humano devem ser afirmados, a eficiência de ambos os métodos deve ser negada.
Eles não podem ser eficientes porque não são centrados nas polaridades de contato e
retraimento, o ritmo da vida. (1969, p. 137)
Embora a afirmação do último parágrafo tenha se tornado freqüente, Perls jamais
abdicou das influências do pensamento oriental em sua abordagem, e é por isso que a
crítica reporta-se apenas à prática e não aos seus pressupostos, nele contidos.
Perls retornou a Los Angeles. Aos setenta anos, acreditava sinceramente que não veria
a Gestalt-terapia tomar lugar de destaque e parecia cansado e conformado.
A despeito do cansaço, esse foi um período no qual Perls teve muitas experiências
pessoais e profissionais, proporcionadas pelas viagens que fez.
SEXTO PERÍODO
O mundo
Em 1964, quando Perls mudou-se para Esalen, o mundo fervilhava com mudanças
radicais nos costumes, na sociedade e na política.
Carvalho e Miranda (1996) explicam o que estava ocorrendo na década de 1960:
Muitas novidades abalavam certezas, transformando o cenário mundial. A Guerra Fria
se acirrava, por meio da obsessiva corrida armamentista e espacial. Tal fenômeno
político foi decisivamente marcado pela construção do muro de Berlim, em 1961, que
dividiu não só de fato, mas no plano simbólico, o mundo em duas esferas de poder: os
“azuis” e os “vermelhos” — os EUA e a URSS. Neste contexto, ganhava o centro das
atenções a revolução socialista em Cuba, que trazia a “ameaça vermelha” à América e
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fortalecia os soviéticos. A ofensiva do Tio Sam disseminou o vírus das ditaduras
militares no continente.
Outra manifestação da lógica do “jogo de punhos” da Guerra Fria foi a Guerra do
Vietnã, em que morreram milhares de jovens americanos, e de crianças, jovens e
velhos vietnamitas [ Somem-se também os assassinatos de John e Bob Kennedy, do
líder negro pacifista Martin Luther King, o crescimento da sociedade industrial de
consumo, e o ascendente fenômeno da juventude como nova força, inclusive política.
Muitos “powers” surgiram nessa época, canalizando anseios dos mais variados grupos,
como o “Black Power”, o “Gay Power”, “\Vornen’s Lib” e o “Yippie” (partido internacional
da juventude).” (p. 2)
Esses movimentos demonstravam que dois ideais revolucionários corriam
paralelamente gerando um único: o de mudança de paradigma social, no qual estavam
incluídos aspectos sociais e políticos.
O ideal revolucionário era a organização dos jovens no sentido de promover uma
transformação social através da via política de atuação.
Havia outro grupo que demonstrava interesse em atuar com protestos ao status quo
vigente, promovendo uma mobilização nos encontros comunitários, happenings e
concertos de rock.
E interessante notar, como num movimento dialético, que a história passou a ser
construída em duas vias, uma dependendo e promovendo a outra.
O que para uns era ponto de partida, para outros era de chegada. Fazer a revolução
coletiva, social, para se atingir a revolução individual, ou começar pela revolução
individual, para se chegar à coletiva. Os que saíam do todo para a parte acreditavam
que apenas em uma sociedade livre da exploração capitalista do homem pelo homem é
que o indivíduo poderia gozar de liberdade, de autonomia. Os que faziam o caminho
inverso, da parte para o todo, afirmavam que apenas o homem consciente de sua
individualidade poderia libertar a sociedade de toda a milenar carga opressiva.
(Carvalho e Miranda, 1996, p. 3)
Dois ícones surgiram, cada um para satisfazer uma facção revolucionária: por um lado,
Che Guevara, líder da Revolução Cubana, morto em 1967 nas selvas bolivianas,
representando o grupo social mais politizado, que acreditava na força radical de
guerrilhas ou movimentos ligados ao poder da força, até fisica, se necessário. De outro
lado encontramos como representante aquele que até hoje é considerado o maior
guitarrista do mundo:
Jimi Hendrix, que morreu cm Londres por uma intoxicação por barbitúricos, em 1970.
Jimi representava para os jovens a negação dos valores vigentes, a liberdade, a
contestação.
Para o time de Guevara, estar nos anos 60 significava estar em cana Lsic], no exílio, ou
morto. Para o time de Jimi, em alguma comunidade “alternativa”, espalhada pelo
“mundo sem fronteiras”. Uns viviam em apartamentos clandestinos — os “aparelhos” —
ou em ações guerrilheiras nas selvas. Outros habitavam barracas ou colchonetes ao ar
livre. Para os primeiros, a década foi, cm síntese, um período de tensão e participação.
Para os segundos, um momento de alegria e descompromisso. Uns participavam das
inúmeras assembléias e passeatas, tomando bordoadas da polícia e suportando gases
lacrimogêneos. Outros, assistiam aos festivais de rock, curtindo o corpo nu, o poder
das flores — o “Flower Power” e a “distância dos males” da civilização. (Carvalho e

40
Miranda, 1996, p. 3)
Esse estado de coisas foi também propulsionado pelas condições adversas de trabalho,
gerando crescente organização dos trabalhadores em sindicatos e greves, conforme
esclarece Heloani.
A pressão do capital cresce para que os sindicatos abram mão dos aumentos salariais
reais [ A guerra do Vietnã, por sua vez, compromete ainda mais esse quadro, à medida
que as despesas de guerra aumentam a inflação e tornam os novos investimentos
menos atrativos para o capital. (1996, p77)
Internacionalmente, a Guerra do Vietnã simbolizava uma luta entre a maior potência
capitalista do globo e um país pobre de terceiro mundo. Durante cerca de dez anos os
jornais registraram batalhas sangrentas entre dois Exércitos desigualmente armados
[ Nas esquerdas, havia urna adesão natural pelo mais fraco. A luta marcou
profundamente o imaginário da época, entrelaçada com as reformas que agitaram o
mundo, a partir de 1968. A repulsa à disciplina e à hierarquia, a valorização da natureza
[ tudo isso se cristalizava no Vietnã, como se a batalha decisiva contra o
conservadorismo ocorresse lá. De fato, o que derrotou o Exército americano foi a
guerrilha, a cobertura na televisão, a militância pacifista e a sensação de que se tratava
de uma guerra longínqua e inútil. (Carvalho e Miranda, 1996, p. 7).
Esses fatos entrelaçaram-se, provocando mudanças rápidas e radicais, como em
outros poucos momentos da história da civilização. A Guerra do Vietnã passou a
representar de certa maneira o conflito entre polaridades que até então permanecia
circunscrito e controlado. Ao perceber que haveria uma possibilidade de vitória do líder
comunista no Vietnã do Norte, Ho Chi Minh — uma vez que os acordos para
reunificação do Vietnã do Norte e do Sul haviam fracassado, como o tratado de paz de
Genebra em 1956 —, o presidente americano Dwight Eisenhower resolveu apoiar o
Vietnã do Sul. Começou então o conflito mais acirrado da história dos Estados Unidos,
que se transformaria numa guerra sangrenta e longa (1964 que ceifou a vida de mais
de 50 mil jovens soldados americanos e de 1 a 3 milhões de vietnamitas.
Ao mesmo tempo, ocorriam em todo o mundo outros conflitos marcantes, mais
notadamente na China, França e checoslováquia, como explicam Carvalho e Miranda
(1996):
Na China, incentivados pelo líder Mao Tsé-Tung, os jovens estudantes iniciaram a partir
de 1966 uma série de protestos e omícios contra o regime opressor praticado nas salas
de aula; Delineava-se o início de uma revolução cultural, cujo objetivo era render
autoritarismo vigente e conquistar maior integração entre o trabalho braçal e a
produção cultural. Nesse aspecto, Mao Tsé-Tung Drnou-se o grande timoneiro e seu
Livro Vermelho, contendo as idéias evolucionárias, passou a ser a bíblia dos jovens
daquele país.
Já na França, a data de maio de 1968 tornou-se célebre: os vens estudantes franceses
rebelaram-se contra a estrutura de ensino vigente, protestando nas ruas e armando as
barricadas que ficaram conhecidas como “as barricadas do desejo”. Esse movimento
estudantil acabou por arregimentar outras facções da sociedade, especialmente os
trabalhadores, que agitaram uma imensa greve operária envolvendo 9 milhões de
operários, o que provocou a paralisação da economia do país.
Com iss os sindicatos puderam obter diversas vantagens ara os trabalhadores, como,
por exemplo, a quarta semana de [ anual remunerada obrigatória.

41
Para os estudantes, além das questões políticas, que carregavam forte influência de
pensadores como Karl Marx e Mao Tsé-Tung, havia também a questão da libertação do
corpo, a partir das idéias do filósofo Alemão Herbert Marcuse (guru do movimento), que
em seus livros 1 Ideologia da Sociedade Industrial e Eros e Cii’tli defende em nome da
liberdade a chance de se poder optar por um comportamento sexual sem culpa. Entre
os slogans grafitados pelos muros de Paris, podia-se ler:
Quando penso em revolução, quero fazer amor”, “E proibido proibir”, A felicidade é o
poder estudantil”... (Carvalho e Miranda, 1996, p. 7)
Também em maio de 1968, na Tchecoslováquia, mais precisamente em Praga, um
grupo composto por setenta intelectuais publicou um manifesto intitulado Duas mil
palavras. O manifesto era um documento de reivindicação de liberdade econômica e
política que buscava o pluralismo partidário e o completo desliga mento da União
Soviética.
Esse manifesto deu início ao movimento que ficou conhecido como Primavera de
Praga, cujo líder foi Alexander Dubcek, secretário-geral do Partido Comunista. Seu
objetivo era a implantação de um “socialismo democrático-humanista”.
Também em Praga, o movimento teve nos estudantes sua maior força; porém esse
sonho não durou: em agosto do mesmo ano, tropas do Pacto de Varsóvia (cuja a
liderança era soviética) invadiram o país, impedindo as reformas liberalizantes.
Além de todos esses fatos e também, em grande parte, por esses fatos, a música
sofreu mudanças radicais: os Beatles surgiram cm 1962, assim como Bob Dylan, que
passou a representar, ao lado de Joan Baez, a geração de jovens politizados da nova
esquerda (intitulados de Poder Jovem).
Os Beatles (que surgem cm Liverpool), representavam a porção mais
descompromissada dos jovens, cantando o amor e levando ao delírio milhões de
jovens. Porém posteriormente, em 1967, eles também assumiram uma postura mais
compro metida com a realidade social, encontrando como forma de protesto uma
vinculação com o pensamento oriental através de manifestações ligadas ao tema. É
dessa época o álbum Sgt. Pepper’s Lone/j Hearts Club Band, que marcou uma
mudança fundamental dos Beafles “bons moços”, com a banda assumindo uma postura
hippie e fazendo uso do LSD. É nesse disco que se encontram algumas músicas
consideradas por muitos como lisérgicas.
Nessa época, o LSD surgiu como uma possibilidade de libertação, e mais, como um
ampliador do nível de consciência, e como tal começou a ser usado pelos jovens com
freqüência. A sintetização desse ácido lisérgico em laboratório não foi proibida, o que
facilitou o consumo por milhares de jovens.
Nesses anos de rebeldia e contracultura, Reich foi muito lembrado, especialmente nos
aspectos ligados à liberdade da sexualidade individual.
Mas foi Thimothy Leary, renomado professor de psicologia da Universidade de Harvard,
que, após ter experimentado LSD, iniciou uma apologia à droga, alegando que as
infinitas potencialidades do cérebro humano podiam ser potencializadas pelo uso do
LSD, que levava o usuário para além das limitadas possibilidades existentes sem o uso
da droga. Leary acreditava que tal prática levaria a uma grande expansão de
consciência. Acabou expulso da universidade.
Foi nesse momento da história que surgiu o termo “psicodélico” (vocábulo sempre
ligado ao LSD), como “manifestador da mente”. E fácil entender como essa droga
42
assumiu posição de destaque naquele contexto.
Essa foi a década que assistiu também (sobretudo no final) ao reconhecimento da
Gestalt-terapia, tão esperado por Perls. A história teceu, portanto, todas as condições
propícias para que a Gestalt-terapia se configurasse como uma abordagem que por um
lado amparava as premências da época e por outro usava-as para fazer ecoar seus
pressupostos fundamentais.
Assim como os jovens no mundo todo, a Gestalt-terapia pensava em vias de liberdade,
responsabilidade, conscientização e potencialização de forças e integração.
No Brasil as mudanças também ocorriam de maneira acelerada; o golpe militar de
1964 — gerado basicamente pela dificuldade encontrada pelo presidente da República
João Goulart de conciliar as tensões entre a radicalização nacionalista e a pressão do
capital estrangeiro ligado aos militares — propiciou grandes mudanças no país.
Pazzinato e Senize (1997) explicam:
[ Jango foi derrubado por um golpe militar. O novo governo militar, tendo à frente o
marechal Castelo Branco, adotou de imediato medidas de exceção que abriram
caminho para perseguições e prisões em massa [ o regime endureceu com a edição do
Ato Institucional n°. 5 pelo Presidente Costa e Silva, em 1968.
Todos esses episódios geraram mudanças e reações.. Os artistas brasileiros tiveram
participação ativa com sua produção cultural, o movimento da bossa-nova evoluiu na
direção das canções de protesto, refletindo a insatisfação popular, assim como a
repressão vigente.
Feris
Perls voltou a trabalhar com seu amigo Jim Simkin e certa noite em que substituía Jim,
que estava de férias, entrou em contato com o grupo terapêutico que ocorria às
quartas-feiras à noite (Shepard, 1977). Retomou então certo gosto para ensinar os pres
supostos da Gestalt-terapia. Um dos membros desse grupo teria vital importância para
o desenrolar dos acontecimentos: Michael Murphy. Ginger relata bem essa passagem:
[ .J Michael Murphy, que acabava de herdar uma magnífica propriedade em Big Sur (na
costa californiana — 300 km ao sul de São Francisco), caracterizada pela presença de
fontes de águas quentes e sulfurosas. Ele havia batizado o lugar de Esalen, nome de
uma tribo indígena, que freqüentava o lugar para suas cerimônias rituais.
Michael Murphy, e seu colega de universidade, Richard Price, sonhavam criar ali, um
“centro de desenvolvimento do potencial humano”, mas, dois anos após a abertura do
local para conferencistas famosos, ele mais parecia um albergue local do que um
Centro Internacional de Seminários. Ali, conversavam, bebiam, fumavam, mas nada
acontecia de extraordinário. De fato, é preciso reconhecer que, em grande parte, foi
Perls quem despertou Esalen para a celebridade — e Esalen retribui-lhe,
transformando “o velho crocodilo que esperava a morte” num brilhante e badalado
terapeuta!” (1885, p. 59)
Apesar dos contatos precários iniciais em que Perls demonstrou certa reserva em
aceitar o convite (talvez por não querer mais se decepcionar), ele acabou aceitando o
convite de Murphy para instalar-se em Esalen, propondo inicialmente laboratórios de
demonstração e, logo após, um programa de formação profissional em Gestalt-terapia.
lembrado, especialmente nos aspectos ligados à liberdade da sexualidade individual.
Mas foi Thimothy Leary, renomado professor de psicologia da Universidade de Harvard,
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que, após ter experimentado LSD, iniciou uma apologia à droga, alegando que as
infinitas potencialidades do cérebro humano podiam ser potencializadas pelo uso do
LSD, que levava o usuário para além das limitadas possibilidades existentes sem o uso
da droga. Leary acreditava que tal prática levaria a uma grande expansão de
consciência. Acabou expulso da universidade.
Foi nesse momento da história que surgiu o termo “psicodélico” (vocábulo sempre
ligado ao LSD), como “manifestador da mente”. E fácil entender como essa droga
assumiu posição de destaque naquele contexto.
Essa foi a década que assistiu também (sobretudo no final) ao reconhecimento da
Gestalt-terapia, tão esperado por Perls. A história teceu, portanto, todas as condições
propícias para que a Gestalt-terapia se configurasse como uma abordagem que por um
lado amparava as premências da época e por outro usava-as para fazer ecoar seus
pressupostos fundamentais.
Assim como os jovens no mundo todo, a Gestalt-terapia pensava em vias de liberdade,
responsabilidade, conscientização e potencialização de forças e integração.
No Brasil as mudanças também ocorriam de maneira acelerada; o golpe militar de
1964 — gerado basicamente pela dificuldade encontrada pelo presidente da República
João Goulart de conciliar as tensões entre a radicalização nacionalista e a pressão do
capital estrangeiro ligado aos militares — propiciou grandes mudanças no país.
Pazzinato e Senize (1997) explicam:
[ Jango foi derrubado por um golpe militar. O novo governo militar, tendo à frente o
marechal Castelo Branco, adotou de imediato medidas de exceção que abriram
caminho para perseguições e prisões em massa [ o regime endureceu com a edição do
Ato Institucional no. 5 pelo Presidente Costa e Silva, em 1968.
Todos esses episódios geraram mudanças e reações.. Os artistas brasileiros tiveram
participação ativa com sua produção cultural, o movimento da bossa-nova evoluiu na
direção das canções de protesto, refletindo a insatisfação popular, assim como a
repressão vigente.
Feris
Perls voltou a trabalhar com seu amigo Jim Simkin e certa noite em que substituía Jim,
que estava de férias, entrou em contato com o grupo terapêutico que ocorria às
quartas-feiras à noite (Shepard, 1977). Retomou então certo gosto para ensinar os pres
supostos da Gestalt-terapia. Um dos membros desse grupo teria vital importância para
o desenrolar dos acontecimentos: Michael Murphy. Ginger relata bem essa passagem:
{. ..J Michael Murphy, que acabava de herdar uma magnífica propriedade em Big Sur
(na costa californiana — 300 km ao sul de São Francisco), caracterizada pela presença
de fontes de águas quentes e sulfurosas. Ele havia batizado o lugar de Esalen, nome
de uma tribo indígena, que freqüentava o lugar para suas cerimônias rituais.
Michael Murphy, e seu colega de universidade, Richard Price, sonhavam criar ali, um
“centro de desenvolvimento do potencial humano”, mas, dois anos após a abertura do
local para conferencistas famosos, ele mais parecia um albergue local do que um
Centro Internacional de Seminários Ali, conversavam, bebiam, fumavam, mas nada
acontecia de extraordinário. De fato, é preciso reconhecer que, em grande parte, foi
Perls quem despertou Esalen para a celebridade — e Esalen retribui-lhe,
transformando “o velho crocodilo que esperava a morte” num brilhante e badalado

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terapeuta!” (1885, pL 59)
Apesar dos contatos precários iniciais em que Perls demonstrou certa reserva em
aceitar o convite (talvez por não querer mais se decepcionar), ele acabou aceitando o
convite de Murphy para instalar-se em Esalen, propondo inicialmente laboratórios de
demonstração e, logo após, um programa de formação profissional em Gestalt-terapia.
Mudou-se para Esalen em abril de 1964. Seus grupos permaneciam pequenos (cerca
de 4 a 5 participantes por vez), e a história de obscuridade permanecia para ele e sua
abordagem.
Também em Esalen, a maneira direta de Perls, sem polidez, incumbiu-se de fazer-lhe
tão querido quanto odiado:
nos workshops que dirigia, muitas vezes foi duro ao extremo com seus participantes,
negando-lhes apoio para suas dores. Perls acreditava que o apoio devia ser
conseguido interna mente, pois somente assim a pessoa adquiriria o auto-suporte
necessário para dar conta de sua própria existência.
No ano de 1966 a célebre casa do penhasco foi construída para ele; tratava-se de uma
magnífica casa à beira de um penhasco, no ponto mais alto de Esalen, com o mar
estendendo-se a perder de vista.
A casa, em forma de semicírculo, tinha sua estrutura em madeira e vidro, de forma que
se podia avistar o mar apenas ao erguer os olhos. Abaixo ficavam as piscinas termais,
com água de cheiro forte, devido ao enxofre; ficavam também as instalações onde se
realizavam os encontros e treinamentos.
Esalen, propriedade paradisíaca onde o verde e o mar encontravam-se em profusão e
harmonia, representava para Perls um resgate da beleza em sua vida. Ele demonstrava
orgulho por sua casa e por seus grupos, embora estes continuassem com poucos
participantes.
O alvo Esalen foi atingido bem na mosca pela seta Fritz Perls. Uma paisagem
comparável à Eilat [ Uma oportunidade de ensinar. O cigano encontrou um lar, e em
pouco tempo uma casa. Encontrou também outra coisa: descanso para um coração
doente. (Shepard, 1972, p. 171)
Embora a saúde de Perls houvesse melhorado, em grande parte pela mudança de
ambiente e melhora dos hábitos de alimentação e repouso, a dor no peito e nas costas
o incomodavam cada vez mais. Em 1965 estava pior, e não tinha forças sequer para
descer à sede do trabalho (caminhada de cinco ou seis minutos a pé), precisando ir de
carro.
Nesse momento, chegou à propriedade Ida Rolf, cujo trabalho versava sobre integração
estrutural. Perls identificou-se com seu trabalho, pois, assim como ele, Ida também
considerava a relação entre corpo, movimento e postura e praticava um tipo de
massagem que visava a uma integração postural, física e psíquica.
Peris submeteu-se a uma série de cinqüenta sessões e, ainda antes do término, sentiu-
se revigorado e livre das dores que o acometiam.
Shepard (1972) explica que após o primeiro ano e meio (quando, a exemplo de sua
própria postura diante da vida, Perls demonstrava rudeza) ele gradativamente parecia
ter adquirido certa capacidade de reconciliação consigo mesmo e com os que o
cercavam.

45
Essa mudança deveu-se certamente à melhoria de seu estado físico, à convivência em
comunidade e ao certo prestígio de que passou a gozar, visto que seu trabalho ganhara
algum reconheci mento. Perls (1969) nos fala de Esalen:
Raramente desço a pé para a hospedaria. Vou no meu pequeno Fiat, cinqüenta
centímetros mais curto que o 1/TV Eu o chamo de carrinho de bebê motorir A minha
casa fica a cem metros acima dos banhos, bem sobre o rochedo. Ela é em grande
parte escavada na montanha, então tem uma vista de milhares de quilômetros
quadrados de oceano, e também dos rochedos selvagens, interrompendo o ruído e o
balanço incansável do mar, cedendo apenas algumas rochas para as ondas exigentes.
A gente não sai pela porta, agente emerge, não como antes, entrando na natureza
intocada, mas numa mistura de visão magn degraus de pedras naturais que são uma
extensão da parede de pedra circular, cabanas e automóveis, mais embaixo. (pp.
178-9)
Durante esse período não deixou de realizar viagens periódicas a São Francisco e Los
Angeles para divulgar a Gestalt-terapia. Alguma coisa começava a mudar: mais
pessoas interessavam-se pela Gestalt terapia; ele passara a ser conhecido como “Frita
Perls de Esalen” (referência que parece ter contribuído para sua notoriedade).
89
Em 1967, devidamente instalado em Esalen, começou a escrever seu livro
autobiográfico Iii and O,i the Garbage Pai!.
Em 1968, com 75 anos, Perls via finalmente sua abordagem assumir lugar de
destaque; o contexto social certamente assumiu importância fundamental no
reconhecimento da abordagem gestáltica. Suas oficinas de trabalho (ocasião em que
demonstrava a prática que havia desenvolvido) passaram a ser muito concorridas, e
não raramente o número de participantes ultrapassava trezentas pessoas, muito
diferente dos quatro ou cinco por oficina, como era comum até então.
Nos encontros, Perls explanava sobre os pressupostos de sua abordagem e fazia
demonstrações da “cadeira vazia” — técnica em que a pessoa desdobra-se em outra
para viver no aqui e agora algum conflito, isto é, uma figura inacabada, por meio de
uma cadeira vazia colocada a sua frente, a pessoa ora “vive” a si mesma ora vive o
outro, com quem precisa resolver alguma situação inacabada.
Essas demonstrações, segundo Ginger (1985), eram mais espetáculos habilidosamente
conduzidos por Perls, com sua aguçada percepção, do que um processo terapêutico.
Em grande parte, essas oficinas contribuíram para a divulgação da Gestalt-terapia, mas
também acabaram por gerar uma errônea impressão de que a abordagem resumia-se
a técnicas “mirabolantes” de conscientização e resolução de conflitos psíquicos.
Em 1969, publicou o livro Gestat-therapy Verbatim, com a transcrição de algumas
dessas oficinas. A despeito de todas as consultas, não foi possível encontrar
explicitamente o momento específico da “explosão” da Gestalt-terapia, o que faz supor
que o processo prevaleceu sobre qualquer episódio específico.
Finalmente, a Gestalt-terapia passou de um mundo circunscrito para a notoriedade,
colocando Perls na posição que sempre desejou. Ele chegou a ser capa da importante
revista Lije e foi convidado para entrevistas em televisão, jornais e revistas.
São desse momento também as produções gravadas em película e que acabaram por
ser tão importantes quanto a literatura, pois nesses filmes ele demonstrava suas
46
técnicas (mais do que sua abordagem propriamente dita).
Ginger (1985) lembra que nesse período de reconhecimento da Gestalt-terapia muitos
psicólogos eminentes foram a Esalen para tomar contato mais estreito com o trabalho:
Gregory Bateson, Alexander Lowen, Eric Berne, John Lilly, Alan Watts, Stanislas Grof,
Richard Bandler, entre outros.
Perls, então com 75 anos, viu seus sonhos tomarem forma e chegou a ser eleito o “rei
dos hippies”, uma vez que seus pressupostos eram consoantes com a vida livre e
autônoma em que os hippies acreditavam e que tentavam viver.
Neste poema, Perls deixa clara a aversão pela sociedade vigente e a crítica,
especialmente no que diz respeito à falta de conscientização do homem inserido nessa
sociedade:
Sem um centro nos perdemos, vacilamos sem firmeza
Sim: sem a graça do equilíbrio
Sim: tremedeira e rigidez.
E chavões e decepções caracterizam o homem moderno
Em mi/novecentos e sessenta. (1969, p. 46)
Por ser um momento de profundas transformações sociais e culturais, muitos outros
expoentes despontavam com novas abordagens, em grande parte também pelo avanço
da chamada “terceira força em psicologia”, conforme veremos mais adiante.
Conseguiam destaque Virgínia Satir, Bernie Gunther e Will Schutz, que até vendeu
milhares de exemplares de seu livro Alegria, cujo tema versava sobre grupos de
encontro não-verbal e essa nova forma de comunicação.
Ginger (1985) relata que Perls sentia-se bastante incomodado com o sucesso paralelo
dessas pessoas, o que provavelmente (junto com a difícil situação financeira em que
Esalen estava) o levou a retomar o antigo sonho de instalar um Gestalt-kibutz, centro
de vivência em Gestalt-terapia onde as pessoas poderiam viver gestalticamente,
configurando uma comunidade absolutamente consoante com o que esperava de uma
vida integrada e plena.
Essa era uma idéia que Perls sempre acalentara e que seu contato com Goodman
reforçara. Este último era, como se sabe, militante anarquista [ e fantasiava um mundo
pacífico, composto de comunidades auto-geridas, baseadas na ajuda mútua,
coletivistas e espontâneas. (Ginger, 1985, p. 60)
SÉTIMO PERÍODO
Perls
Perls acreditava cada vez mais que a Gestalt-terapia, antes de ser um processo
psicoterapêutico, era um modo de vida, e começou então a pensar em “Gestalt na
vida”, o que o levou finalmente a tentar materializar seu sonho de gerir uma sociedade
na forma do Gestalt-kibutz.
Além disso, a política americana começava a passar por um processo que não lhe
agradava, constituindo um dos motivos relevantes para sua partida.
Aspirava a um lugar onde pudesse expressar-se mais plenamente; a isso se somou um
temor de repressão eminente; a eleição de Nixon como presidente e a de Reagan como
governador da Califórnia o comoveram, pois as considerou signos de um fascismo
47
norte-americano em ascensão. E, finalmente, há que se levar em conta sua eterna
inquietude cigana. (Shepard, 1972, pp.l.54-S)
Perls escreve sobre seu projeto do Gestalt-kibutz:
Agora me proponho a conduzir o seguinte experimento: no kibut a divisão entre partici)
antes e a equipe deve ser abolida. Todo trabalho tem que ser feito pelas pessoas que
vem para o kibut [ A maior ênfase recai sobre o desenvolvimento da maturação e
espírito comunitário [ haverá cultivo de vegetais e criações de animais e uma oficina
para a construção de mobília simples [ Se este experimento funcionar, haverá lugar
para famílias, solteiros não profissionais, adolescentes, pretos e brancos, fascistas e
hippies. ,Quem sabe? Talvez a coisa se expanda para dentro dos guetos e outros locais
onde uma vida construtiva seria bem-vinda (1969, pp. 329-30).
Assim, em junho de 1969, Perls comprou um velho hotel de pescadores, à beira do lago
Cowichan, na ilha Vancouver, costa Oeste do Canadá. Aos 76 anos, fundou neste local
o Instituto Gestáltico do Canadá, e para lá foram com ele cerca de vinte a trinta
discípulos, que se organizaram numa forma de vida comunitária, dividindo o tempo
entre trabalhos coletivos, alegres reuniões e oficinas de caráter terapêutico e de
formação.
A propriedade mantinha em sua aparência um misto de rusticidade e bucolismo, pois o
lugar era de grande beleza. Perls iria viver nesse local, do qual era dono e senhor, por
não mais que seis meses, pois em dezembro daquele mesmo ano partiu em uma de
suas habituais viagens para a Europa e Estados Unidos, de onde não voltaria.
Embora Shepard (1977) assinale o funcionamento do kibutz como um paradoxo, pois
Perls (que durante toda sua vida havia pregado a responsabilidade por si mesmo e a
autonomia muitas vezes levada ao extremo) concebera uma sociedade alternativa na
qual a relação de dependência era por si só condição primeira de sobrevivência do
projeto. Isso era incompatível com os pressupostos da Gestalt-terapia concebidos por
Perls, porque a relação de dependência — se é que se poderia chamar assim tal
organização — seria mais baseada na relação dialógica, tal como a proposta de Buber,
consoante com a Gestalt-terapia.
Pode-se presumir essa posição a respeito desse “individualismo” a partir da “Oração da
Gestalt”, escrita por Perls; vejamos primeiro a “oração” e depois o que nos diz Shepard:
Eu sou eu, você é você
Eu faço as minhas coisas, você faz as suas.
Eu vivo de acordo com as minhas expectativas
Você vive de acordo com as suas.
Se nos encontrarmos será lindo, senão, nada a fazer.
(Perls, 1958)
Muita gente, inclusive William Schutz, psicólogo de Esalen e Laura Perls, criticaram
com severidade a oração [ Laura declarou que a prece a deixava bastante contrariada,
especialmente a última frase, pois nela se excluía toda a possibilidade de esforçar-se
por algo. Tais acusações não carecem de validade; as pessoas escutam o que desejam
escutar, e justificam suas ações invocando fontes autorizadas. Se quero ser intratável,
e não cooperar, sempre posso afirmar que faço assim, porque simplesmente “eu faço
as minhas coisas”, e citar a oração da Gestalt como outros citam a Bíblia. Fritz

48
acreditava definitivamente que a única coisa que tinha sentido era seguir a própria
intuição, e atender os próprios interesses, por mais arbitrários ou mal delineados que a
sociedade pudesse julgá-los. Somente seguindo esse caminho poderia alguém saber
qual era o seu “eu” autêntico. (1977, pp. 17-8)
E se o “eu” autêntico quisesse se vincular autenticamente com um outro “eu”? Não
seria esse o melhor motivo para fazer as minhas coisas, com outra pessoa?
Se tivermos duas ou mais pessoas juntas, então, seus mundos pessoais coincidiram
em grande parte [ um mundo em comum, um ambiente compartilhado [ mas, muitas
coisas e fatos possuem significados muito diferentes para cada um de nós,
dependendo dos nossos interesses específicos e necessidades de completar a situação
inacabada do desequilíbrio de cada indivíduo. (1969, p. 172-3)
A afirmação acima parece traduzir o fato de que um encontro genuíno não pode ocorrer
sem que dois indivíduos encontrem em suas necessidades certa complementaridade,
de qualquer caráter. Assim, “se nos encontrarmos será lindo, senão, nada a fazer”.
Feita essa observação, voltemos ao momento do nascimento do Gestalt-kibutz.
Stevens (1978) dedica grande parte de seu relato ao período vivido no Gestalt-kibutz do
Canadá:
No dia 1 de junho, Fritz mudou-se para cá com vinte de nós. Ele não nos conhecia a
todos. Muitos de nós conheciam apenas um dos outros. Nós não tínhamos vivido juntos
anteriormente. Mudamo-nos, arrumamos, modificamos o lugar, e o primeiro workshop
começou às 8 da manhã do dia seguinte. Às 10 horas, começamos a elaborar coisas,
tais como a alimentação da comunidade. Era maravilhoso observar e tomar parte no
que estava acontecendo.
Fritz nos disse que haveria seminários das 8 às 10 da manhã, seguidos de duas horas
de trabalho na comunidade. Das 2 às 4 da tarde, haveria tempo livre para quem
quisesse ensinar massagem, dança, arte, ou qualquer outra coisa. Das 4 às 6, um
período de trabalho. Das 8 às 10 da noite, novamente seminários e depois, reunião da
comunidade. Algumas coisas se inverter e foram tentadas de outra maneira e às vezes
voltavam à maneira inicial, acontecendo à medida que íamos adiante. (pp. 20-1)
Durante o período em que permaneceu no Canadá, Perls, a exemplo de toda a sua
vida, não se fixou totalmente ao local de escolha:
continuava fazendo viagens no fins de semana ou, eventualmente, durante a semana,
para continuar a difusão da Gestalt-terapia.
Tanto Shepard como Ginger ressaltam o fato de que nesse último período de vida Perls
esteve, como nunca, mais doce no trato com as pessoas, menos isolado e bastante
sociável.
Chegou a admitir a Barry Stevens que estava em paz e não precisava mais brigar com
o mundo. Stevens (1978) recorda:
Fritz é agora quase que invariavelmente um velho senhor muito afetuoso e amável.
Passa muito mais tempo conversando com as pessoas do que antes. Tem muito mais
paciência. (p. 42)
No inverno de 1969, Perls resolveu partir em viagem à Europa; tinha a intenção de
voltar a freqüentar as óperas, museus de Paris, Viena, Salzburgo e Berlim, que tanto o
fascinavam. Na volta, deveria ainda parar nos Estados Unidos, a fim de dirigir algumas

49
oficinas de trabalho e workshops.
95
Sua saúde era precária. Como sempre, Peris demonstrava resistência em procurar
médicos, mas antes de embarcar para os Estados Unidos, seu estado geral piorou em
Londres e começou a ter febres constantes, O diagnóstico foi “gripe de Hong Kong”,
tendo sido orientado a repousar e tomar muito líquido.
Em fim de fevereiro de 1970, Perls dirigiu vários trabalhos que planejava continuar
durante a viagem, quando voltasse para o Canadá.
Entretanto sua saúde piorou, até que foi obrigado a cancelar um workshop em Nova
York. A essa altura apresentava vômitos e diarréias constantes e freqüentemente era
obrigado a permanecer na cama.
Rumou para Chicago, pois embora estivesse muito doente não queria deixar de proferir
uma conferência na Escola de Medicina da Universidade de Illinois, o que para ele era
uma grande demonstração do prestígio que alcançara.
No dia 6 de março, Jane Lcvenberg e Bob Shapiro, amigos e seguidores de sua
abordagem, esperavam-no em Chicago. Perls, muito debilitado, apresentava forte
coloração amarelada e pediu para ver um médico imediatamente (comportamento raro).
Ao falar com o médico, Perls deixou claro sua suspeita de um tumor maligno no
pâncreas, porém o médico pediu sua internação para que fossem feitos exames. Ele
consentiu com a internação, porém antes quis avisar Laura que estava doente, ao que
ela respondeu que iria encontrá-lo assim que possível.
Nesse mesmo dia foi internado no Weiss Memorial Hospital, enquanto seu amigo Bob
Shapiro encarregava-se de ir à universidade avisar às setecentas pessoas que
esperavam a conferência que Perls não compareceria.
Perls passou então por uma série de exames, mas o diagnóstico permanecia
inconcluso; a febre não cedia e estava desidratado. Em junta médica feita alguns dias
depois com sua presença e a de Laura, decidiu-se por um procedimento cirúrgico para
tentar encontrar o motivo de seu estado precário. Embora uma cirurgia naquelas
circunstâncias fosse bastante arriscada, parecia ser a única saída. Perls consentiu,
sabendo de todos os riscos que corria, e fez uma única exigência, com a qual todos
concordaram: queria saber seu estado real durante todo o processo.
A cirurgia foi marcada para dali a dois dias; nesse período, Perls oscilou entre um
estado semicomatoso e aguda consciência. A intervenção foi bastante demorada e
difícil, ficando constatado que Perls tinha um câncer no pâncreas em estado adiantado
e pedras na vesícula. Nada podia ser feito.
Na noite de 14 de março (Shepard, 1972), Perls saiu do estado de torpor e tentou
levantar-se, no entanto foi impedido pela enfermeira, que lhe pediu para permanecer
deitado. Fez outra tentativa, e dessa vez conseguiu sofregamente sentar-se na cama,
mas a enfermeira novamente lhe avisou que deveria permanecer deitado. Perls olhou-a
intensamente e respondeu:
“Não me diga o que eu devo fazer”. Deitou-se, e morreu imediatamente.
Assim viveu e morreu esse homem que, mais do que tudo, viveu “gestalticamente”,
extremamente amado e odiado, exemplo vivo de sua abordagem, com suas figuras
inacabadas, impasses, tédios, tentativas de busca de equilíbrio, ressenti mentos e

50
conscientização.
Já basta de caos e de s/fjeira sentida. Que se forme uma Gestalt inteira no final de
minha vida. (Perls, 1969)
Desde o dia em que Perls foi internado até 14 de março, data de sua morte — embora
seus amigos tivessem buscado discrição —, a praça em frente ao hospital foi tomada
por milhares de hippies que, em vigília, empunhavam flores e velas acesas, cantando
canções e esperando pela recuperação de seu “rei”, o que não aconteceu.
Shepard (1977) conta-nos que apenas outra pessoa havia provocado tamanha
aglomeração de pessoas na porta do Weiss
97
Memorial Hospital, provocando a necessidade da presença da guarda policial para
preservar a ordem: Sammy Davis Jr.
Que um velho psiquiatra inspirasse no público um sentimento de adesão similar ao
suscitado por uma figura famosa do canto e da dança, foi certamente surpreendente.
Sobretudo tratando-se de um homem que, segundo suas próprias palavras, havia
passado de “Um obscuro rapaz judeu da baixa classe média, a um psicanalista
medíocre, e dali, a ser o possível criador de um novo método de tratamento e o
expositor de uma filosofia viva capaz de fazer algo pela humanidade. (Shepard, 1977,
p. 15)
No final de seu livro autobiográfico, Pcrls faz breve refe rência à morte:
Nesse meio tempo, [ entre olival do livro e a instalação do Gesta/t kibutl estou cheio de
planos e fantasias, cheio de possibilidades e falta de certezas. Tudo pode acontecer,
inclusive a morte.
Na minha vida, muitas vezes escapei da morte, e muitas vezes ansiei por ela.
Atualmente, acho a minha vida tão cheia de promessas e riscos, que me sinto muito
ligado a ela. (1969, p328)
E ao leitor, que Gestalt se fecha ao final do relato dessa vida?
Provavelmente inespecífico, relativo, subjetivo, pois qualquer tentativa de explicitar mais
dc) que aqui sc procurou fazer redundaria naquilo que para a Gestalt-terapia é a
anulação da oportunidade de descobrir que algo novo é possível — sendo essa a
definição de aprendizagem para Perls.
Certamente a vida de Perls foi abundante de experiências, transgressões e superações
de limites, mas pode ter sido também uma vida feliz, e isso não é também relativo, que
carece, a priori, de referências relativas?
Para Perls, não é possível falar em felicidade sem que se pense na tomada de
consciência:
“Você acha que a felicidade como estado permanente pode ser um dia conseguida por
alguém?” Não. Pode-se ficar cator anos sentado na mesma posição de ioga, 0/1 calor
anos no mesmo divã, 011 cator anos /a boas ações. Pela própria natureza da tomada
de consciência é impossível ser continuamente feliz [ A tomada de consciência existe
pela própria natureza da mudança. Se aqui tudo fica sempre igual, não há nada a ser e
Em linguagem comportamentalista, não há estímulo para a felicidade {...] a felicidade
pela felicidade, na melhor das hipóteses, conduz a uma diversão pré-fabricada [ .J
masoquismo, é dor pela dor, procurar a dor e faz dela uma virtude é uma coisa,
51
entender a dor, e faz uso desse sinal da natureza é outra... (1969, p. 275)
Muitos dos ressentimentos de Perls, que em seus relatos aparecem como Gestalten
fixas, parecem ter sido justamente ali, no momento de escrever suas memórias
resgatadas e fechadas, levando-o provavelmente à tomada de consciência, que no
trecho acima ele associou a momentos felizes. Nesta passagem, ele explicita de forma
clara seus ressentimentos, especialmente em relação à formação de sua sexualidade:
Fui lançado num mundo onde o processo é mantido como segredo, e assim se torna
um mistério.
Fui lançado num mundo, onde mente e corpo eram coisas divididas, e a mente se
tornou um mistério. Uma alma imortal adicional criou uma complicação ai, da maior.
Fui lançado numa família onde os filhos não eram a resposta profundamente desejada
de duas pessoas que se amam.
Fiquei confuso com o conhecimento que adquiri na vida.
Fiquei confuso com a teoria sexual pseudo-científica de Freud.
Fiquei confuso com a minha / de quando o sexo era bom e quando era mau. E quando
eu era bom e quando eu era mau.
Fiquei, sobretudo confuso, durante a minha puberdade. Devo culpar meus pais por falta
de compreensão, Ferdinand por sedução, a mim mesmo por ser “mau”? Levei muitos
anos para chegar a entender o problema da moral, e mais uma vez a concepção
organímica que me propiciou o esclarecimento.
(1969, p. 284)
Aqui, ele parece ter adquirido o auto-suporte necessário para integrar as experiências
vividas, de maneira a responsabilizar-se por sua existência, num modelo existencialista,
em
99
que o significado é dado por aquele que sofreu a ação, ou seja, “o que é feito daquilo
que fizeram com cada um de nós”, especialmente nos momentos de vida nos quais a
auto-referência ainda é precária por condição, como no caso da infância e da
adolescência.
Amigo, não seja perfeito
O perfeito é uma praga, uma prisão, quanto mais você treme, mais erra o alvo.
Você é perfeito, se se permitir ser.
Amigo, não tenha medo de erros.
Erros não são pecados.
Erros são formas de fazer algo de maneira diferente, talvez criativamente nova.
Amigo, não fique aborrecido por seus erros.
Alegre-se por eles.
Você teve a coragem de dar algo de si.
Frederick Perls

52
OS PRESSUPOSTOS

PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS
Nesta parte serão apresentados os temas: Gestalt-terapia e fenornenologia, Gestalt-
terapia e existencialismo e Gestalt-terapia e filosofia dialógica, com o objetivo de
explicitar, ainda que brevemente, os fundamentos filosóficos da Gestalt-terapia.
O humanismo constará apenas como contextualização dessas escolas filosóficas.
Filosoficamente a Gestalt-terapia apóia-se na fenomenologia e no existencialismo. Há
porem outra inf1u que embora não explícita aparece como referência eventual e que na
prática configura-se como uma concepção integrada à própria Gestalt terapia: a
filosofia dialógica de Buber, e por esse motivo incluo-a nesta breve explanação.
Gestait -terapia e humanismo
Como a Gestalt-terapia obteve seu reconhecimento como abordagem dentro do
movimento da psicologia denominado humanismo, faz-se necessário abordá-lo, ainda
que brevemente. Esse aspecto será apresentado com mais detalhes em “Teorias de
base”, que explicita de forma introdutória o momento da psicologia quando surgiu a
Gestalt-terapia.
O humanismo filosófico é uma concepção que tem o homem como centro, pois só o
homem “existe”, as coisas “são”.
A idéia do homem como centro faz-se presente na teoria e na prática da Gestalt-
terapia, que o pressupõe capaz de autogerir-se e regular-se, criando-se a cada
instante, transformando-se num incessante ser e vir a ser.
É uma visão “otimista” de homem, sem contudo deixar de levar em conta a morte e o
tempo. A Gestalt-terapia parece ter herdado do humanismo a fé no humano como
potência e transformação, procurando otimizar condições de existência a partir do que
é dado.
O humanismo é uma concepção ampla que abarca a fenomenologia, o existencialismo
e a filosofia dialógica de Buber, correntes filosóficas cuja abordagem gestáltica utiliza.
Gestalf-ferapia e fenomenologia
O ponto de partida para essa reflexão de base fenomenológica não poderia deixar de
ser o binômio consciência objeto, pois a consciência só pode ser concebida a partir do
fato de que só pode ser consciência de um objeto, e objeto porque só é objeto para
uma consciência.
As inter-relações estabelecidas entre consciência e objeto configuram, portanto o
fenômeno.
Embora o movimento fenomenológico-existencial tenha se iniciado muito antes, com
pensadores como Kierkegaard e Nietzsche, é Edmund Husserl quem configura seu
método.
Nascido na Tchecoslováquia, em 1859, Husserl teve como formação inicial a
matemática, o que provavelmente contribuiu para a aquisição de um raciocínio

53
sistematizado.
Ao terminar seus estudos em matemática, vê-se atraído pelas aulas de filosofia
ministradas por Frariz Brentano, especialista na tradição aristotélica. As aulas a que
assistia, no princípio desconfiado, passam a fazer cada vez mais sentido para Husseri.
Esse contato inicial com a filosofia através de Brentano teria influência marcante em
todo o pensamento de Husserl. Brentano empenhava-se na tentativa da objetividade
pura, pois seu método consistia cm exposição dinâmica, por meio de “aporias”, que
segundo Japiassu e Marcondes é:
a dificuldade resultante da igualdade de raciocínios contrários, colocando o espírito na
incerteza e no impasse, quanto à ação a empreender [ Dificuldade irredutível, seja
numa questão filosófica, seja em determinada rotina; em outras palavras, dificuldade
lógica insuperável num raciocínio, uma objeção, ou um problema insolúvel: tudo que faz
com que o pensamento não possa avançar. (1990, p. 23)
Assim, Husserl passa a interessar-se cada vez mais por esse tipo de raciocínio
filosófico e pela doutrina de Brentano.
Em decorrência de sua formação inicial em ciências exatas e do contato inicial com a
filosofia através de Brentano, Husserl passa a dedicar-se até o fim de sua vida à
filosofia, tendo como convicção a necessidade de dar consistência científica à filosofia.
Devido à subordinação ao rigor científico, podemos perceber na obra de Husserl uma
constante reformulação de seus pressupostos a fim de chegar cada vez mais próximo
daquilo que ele considerava a formulação ideal possível. Esse ideal estava intimamente
ligado à aproximação da racionalidade universal; haveria, portanto, no Universo um
raciocínio humano e do humano que era imutável, independentemente da diversidade
social ou cultural.
Acabamos por encontrar na obra de Husserl um sistema inacabado e aberto, pois “a
fenomenologia pretende ser, por essência, a Filosofia fundamentada no dinamismo
intencional de uma consciência sempre aberta”. (Giles, 1989, p. 56).
Vejamos então no que consiste a fenomenologia.
Segundo Giles (1989), considerando fenomenologia j como o sistema aberto descrito,
todo o pensamento baseado nela deve permanecer de certa forma inacabado, à espera
sempre de uma nova análise da consciência e de compreensão de novas leituras
fenomenológicas a partir do fenômeno que se revela inicialmente.
A fenomenologia busca captar o fenômeno que se desvela, descrevendo-o da maneira
mais fidedigna possível. Para isso, há exigências fundamentais no pensamento
fenomenológico.
Giles (1990) descreve estas “exigências”:
— partir daquilo que se encontra antes de todos os pontos de vista;
— partir do conjunto dc realidade que se desvela ao observador, livre o tanto quanto
possível de preconceitos e julgamentos;
orientar-se para as próprias coisas, interrogando-as e obtendo respostas na medida em
que o fenômeno se revela.
Nesse aspecto, conclusões não podem ser aceitas, exceto quando sejam
comprovadamente válidas para todos os homens, independentemente da época e

54
contexto:
A fenomenologia será uma ciência em contato direto com o ser absoluto das coisas.
Todavia, já que o absoluto só pode ser o essencial da coisa tal como se apresenta na
sua realidade, toda a orientação da fenomenologia consistirá em dirigir o conhecimento
para esse essencial. (Giles, 1990, p. 57)
Ao mesmo tempo que busca dar à filosofia o status de ciência dando-lhe
fundamentação objetiva e absoluta, a fenomenologia preocupa-se também com a
intenção do estudioso, isto é, com a intencionalidade da consciência. Por
intencionalidade podemos entender:
uma característica definidora da consciência enquanto necessariamente voltada para
um objeto (toda consciência é consciência de algo). A consciência só é consciência a
partir da sua relação com o objeto, isto é, com um mundo já constituído que a precede.
Por outro lado, este mundo só adquire sentido enquanto objeto da consciência, visado
por ela ...] (Japiassu e Marcondes, 1989, p. 135)
Assim, o que leva à investigação fenomenológica é:
O impulso da investigação fenomenológica deve partir não dos filósofos, mas sim das
próprias coisas. Não sou eu, nem as minhas convicções, e sim as próprias coisas,
como estas se revelam na sua natureza irrefutável, que têm de se impor para dar
testemunho de realidade. Portanto a fenomenologia prescindirá do caráter existencial
das coisas, para dirigir as atenções em direção à essência. (Giles, 1990, p. 59)
Esses aspectos fazem da fenomenologia um método de evidenciação que busca
apreender o fenômeno na sua pureza absoluta enquanto e como é revelado à
consciência.
Porém a subjetividade do observador não é desprezada, pois segundo o pensamento
husserliano a “redução fenomenológica” pode propiciar a apreensão do fenômeno da
maneira mais livre possível da subjetividade do observador. Por redução
fenomenológica, Husseri entende o processo dc libertar todas e quaisquer referências
anteriores ou opiniões no processo do conhecimento.
A fenomenologia estuda a manifestação do fenômeno, o que não é incorreto, mas
incompleto. Não há como separar o fenômeno do ser que busca conhecê-lo nem como
concebê-los.
A fenomenologia apresenta-se, pois, como sustentáculo da Gestalt-terapia. A prática
clínica diferencia-se fundamentalmente de qualquer outra que não esteja subordinada a
essa visão filosófica, pois procura ater-se ao que é trazido pelo cliente.
Ponciano nos fala desta visão na prática Gestalt-terapêutica:
Em termos de psicoterapia, tais reflexões nos levam a uma postura de paciência diante
do fenômeno — cliente. Se presta atenção ao cliente como um todo, ele se auto-revela,
ou melhor, ele em si, é uma auto revelação permanente.
Eu tenho que me postar diante dele e a partir dele descrevê-lo compreensivamente
para mim e para ele próprio. O fenômeno enquanto essência que se revela é o ponto
de encontro da relação com. É aí que o psicoterapeuta e cliente se fazem inteligíveis
um para o outro, é aí que se encontram como totalidade. (1985, p. 48)
Em Gestalt-terapia muitas vezes o terapeuta procura, por meio de uma redução
fenomenológica, ficar com o que é, com o manifesto e possível a cada momento; o

55
fenômeno em si, tal como ele se descortina a cada momento, encerra uma mensagem
do que é.
Para Perls, tudo o que há para saber está presente, aqui e agora, manifesto pelo
fenômeno que se descortina. A visão de homem, portanto, parece ser aquilo que mais
distanciou teoricamente Perls da psicanálise.
Resumindo, Ginger (1985) assinala o seguinte legado da fenomenologia à Gestalt-
terapia:
— prevalência do como sobre o porquê;
— importância da vivência imediata, sentida corporalmente, tal como é aqui e agora;
— percepção de mundo dominada por fatores subjetivos irracionais, originando modos
de ver e sentir os fatos diferentes para cada sujeito. A visão fenomenológica propiciaria
maior objetividade.
Em Gestalt-terapia a percepção (de acordo com os pres supostos da psicologia da
Gestalt) tem importância central; porém, aqui também, dentro de um enfoque
fenomenológico, podemos pensar na percepção dos fenômenos que ocorrem como
algo que depende necessariamente das possibilidades do observador.
Gestalt-terapia e existencialismo
Sartre pode ser considerado um dos maiores representantes dessa escola filosófica. Ao
tomar contato com o pensamento de Husserl, o filósofo francês passa a estudá-lo
profundamente, dedicando-lhe até algumas de suas obras.
Após 1940 começa a questionar o pensamento husserliano e acaba por configurar uma
nova escola do pensamento filosófico: o existencialismo francês. Seu pressuposto
básico é a célebre afirmação: “a existência precede a essência”. Para ele, o homem é
livre, e é a partir dessa liberdade que ele se torna responsável pela sua existência.
Seu pensamento ateísta leva-o a considerar que a existência humana está permeada
pela angústia que a consciência da morte causa; angústia que deve levar a uma
justificativa para o existir, dando então um sentido à existência humana. (Japiassu e
Marcondes, 1989)
Nesse aspecto, a consciência é o eixo central dessa busca de sentido, além de
captação das noticias do mundo em que o sujeito está inserido. Na obra O ser e o nada
(1943), Sartre discorre longamente sobre a questão da consciência humana.
O homem constitui-se, portanto, a partir do que vive, e atua na relação que estabelece
com o mundo de forma a exercer seu arbítrio. É responsável por sua vida e por suas
escolhas. Essa responsabilidade acaba por estender-se a todos os outros seres
humanos viventes, pois uma vez que um indivíduo faz deter minada escolha, ele, como
representante de toda a humanidade, está também de certa forma decidindo algo por
ela; assim, com esta responsabilidade extensiva ao mundo onde vive, fica claro o uso
freqüente de termos como angústia, abandono e desespero. Giles esclarece esse
aspecto:
O existencialista não tem receio de declarar que o homem é angústia. Significa que o
homem está ligado por um compromisso, e se
109
dá conta de que não é apenas aquele que escolhe ser; é também um legislador pronto

56
a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a humanidade inteira, e que não poderia
escapar ao sentimento da sua total e profunda responsabilidade. (1989, p. 278)
Sendo assim, o homem concebido pelo existencialismo de Sartre, além de ter
responsabilidade sobre si mesmo e sobre e o outro, tem ainda o ônus de viver num
mundo sem a promessa de outro mundo melhor trazido pela existência de Deus. E
mais, com a existência precedendo a essência, pode constituir-se no ser humano que
quiser, adotando os valores éticos e morais que escolher, pois não há uma natureza
humana dada e imutável.
O homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e,
no entanto, é livre porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto
fizer [ . O existencialismo não pensará também que o homem encontrará auxílio num
sinal dado sobre a Terra e que há de orientá-lo porque pensa que o homem decifra, ele
mesmo esse sinal, como lhe aprouver. Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer
auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem. (Giles, 1989, pp. 279-80)
Para o existencialismo, assim como para a fenomenologia, a consciência é sempre
consciência de alguma coisa, porém é uma instância ativa que atribui sentido ao que
percebe; ela sempre visa a algo e possui características mutáveis à medida que é
acrescida dela mesma a cada momento.
Pensando nas influências que o existencialismo exerceu sobre a construção da Gestalt-
terapia, a primeira e inegável evidência aparece na “Oração da Gestalt”, que rendeu
inúmeras críticas à Perls:
Tenho as minhas coisas, você tem as suas.
Vivo de acordo com as minhas e,
Você vive de acordo com as suas
Você é você e eu sou eu.
se por acaso nos encontrarmos, será iludo
Se não, iiada a (Perls)
Em Gestalt-terapia a questão da responsabilidade também é central, pois a cada ato
devemos conscientizarmo-nos de nossa escolha, entendendo que as possibilidades de
lidar com determinado fato são escolhidas a cada instante por quem os vive.
1-lá, porém, certo conforto existencial em relação ao que já foi vivido; aquilo que foi
ocorreu como pôde, pois se existisse qualquer outra possibilidade assim teria sido.
E portanto, nesse “agora existencial” e a cada novo momento que se descortina que o
indivíduo tem a possibilidade de exercer sua capacidade de conscientizar-se.
O termo “conscientizar-se” refere-se à possibilidade de um processo de integração no
qual desejos e capacidades podem ser potencializados através de um processo de
apreensão do que cada um é e do que deseja.
Sobre a importância da consciência, Perls (1969) escreve o seguinte poema:
Sem consciência não há nada
Nem mesmo conhecimento do nada.
Não há encontro casual de nada com nada.

57
Os sentimentos não tem lugar no conteúdo.
O sujeito e o objetivo não podem se juntar num todo.
Consciência é o subjetivo e o ‘ que” é o objeto...
O meio de todos os meios, nada mais é do que consciência
Que dos olhos e dos vícios, toque e cinestesia...
Vincula a realidade à consciência: “Realidade nada mais é que a soma das
consciências e aqui e a (1969, p. 44)
Fica claro, portanto, a marcante influência que o existencialismo exerceu no
pensamento de Perls.
Ginger (1985) relaciona claramente os pressupostos existenciais encontrados na
Gestalt-terapia: — primazia das vivências concretas sobre os princípios abstratos;
singularidade do ser humano na sua própria existência,
111
vivendo a originalidade irredutível da experiência de cada um, seja objetiva ou subjetiva;
— responsabilidade e liberdade como características inerentes ao ser humano.
Na abordagem Gestalt-terapêutica, se há um projeto, ele é de caráter existencial, sem
nenhuma especificidade, a não ser a auto-realização de cada um, no qual o sujeito é
considerado dono de sua própria existência e pode a cada instante reconfigurar o
caminho que escolhe trilhar.
Gestaif -terapia e filosofia dial68ica
Não há na abordagem gestáltica qualquer referência mais consistente à filosofia
dialógica, porém um de seus enfoques centra-se nas possibilidades de contato que
cada indivíduo estabelece com o mundo e com o outro indivíduo, posto que o próprio
indivíduo é relaciona!.
Buber trata desse aspecto de maneira clara.
Martin Buber, filósofo judeu nascido em 1878 na Austria, desde o início de seus estudos
foi fortemente marcado pelo pensamento existencial, que originaram dois objetos de
estudo distintos. O primeiro era relativo à fé e suas manifestações; esse interesse muito
provavelmente surgiu devido à forte influência religiosa (judaísmo) na infância. Buber
desenvolveu uma série de trabalhos que buscam a compreensão da fé e suas formas:
a confiança em outro semelhante e a fé como reconhecimento da verdade de algo.
Aqui é importante salientar que, no estudo da fé, Buber não influenciou a abordagem
gestáltica; ao contrário, esse aspecto foi alvo de críticas sucintas por parte de Perls,
pois ele acreditava que a religião era um apoio externo que seria substituído pela
conscientização e responsabilidade, tal como propõe o existencialismo.
Essa crítica estendeu-se também a Sartre, Kierkegaard e Biswanger, cuja importância
para a construção da Gestalt terapia não justifica menção. Vejamos um dos trechos
onde isso fica claro:
Ela [ Gestalt-terapial é “existencial” num sentido amplo. Todas as Escolas do
Existencialismo enfatizar a experiência direta, mas a maioria delas tem uma moldura
conceitual. Kierkgaard com sua teologia protestante, Bnber com seu judaísmo [ e
Biswanger com a psicanálise. A Gestalt-terapia é integralmente ontol4gica, pois
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reconhece tanto a atividade conceitual quanto a biológica de Gestalten. E portanto
auto-sustentada, e realmente experiencial. (1975, p. 19)
Penso que por “moldura conceitual” Perls entendia que todos os estudiosos
mencionados precisaram de suporte externo teórico ou de um sistema de crenças para
embasarem seus pensamentos. Talvez exista aí um paradoxo, pois embora afirme o
tempo todo que o homem deva se auto-apoiar desenvolvendo através da
responsabilidade seu auto-suporte, ele também não usou várias abordagens e
vertentes como subsídio?
O segundo foco de interesse de Buber é o estudo da relação que as pessoas
estabelecem entre si e com o mundo. Assim, estabelece duas possibilidades de
interação: a relação “eu-tu”, na qual o contato é de pessoa a pessoa, sujeito a sujeito; a
relação “eu-isso”, que se dá entre sujeito e objeto.
Esse enfoque coloca Buber a par de pensadores eminentemente existencialistas,
fazendo dele mesmo um semelhante, já que há de sua parte interesse na situação do
homem no mundo e nas escolhas que esse homem pode fazer a partir dessa inserção.
Para ele, o outro é fundamental na constituição do eu, pois a partir das relações
estabelecidas pode haver acréscimo para cada uma das partes. A natureza desse
acréscimo, quando existe, é relativa, conforme veremos a seguir.
Na relação “eu-tu”, a exigência da disponibilidade mútua é pressuposto básico, porque
somente através dela se estabelece o
113
diálogo, propiciando uma verdadeira possibilidade de confrontação inicial entre o
homem e seu mundo, o homem e outro homem, o homem e a natureza.
Para que esse confronto resulte num encontro existencial é necessária a atitude. Por
atitude, Buber entende “a posição mental, a maneira mais básica de colocar-se J2ice
ao mundo e a qualquer dos existentes que se encontrem neste mundo”. (Giles, 1989, p.
180)
Conforme a relação que estabelece a cada momento, com coisas ou pessoas,
manifestam-se dois pólos da humanidade de cada um; qualquer um deles pode ser
positivo cm termos de acréscimo existencial, dependendo do uso que se fizer dessa
relação.
Giles (1989) esclarece que, para Buber, pode-se manter uma relação “eu-isso” com
outra pessoa e não somente com objetos; nesse aspecto a qualidade da relação entre
duas pessoas, elevando-a a “eu-tu”, é responsabilidade de ambas.
Assim, os sentimentos na relação “eu-tu” não ocorrem em um e outro, mas entre um e
outro, e é nessa relação que cada um pode se realizar como homem.
Essa postura deixa clara a visão existencialista contida nessa filosofia, conforme
descreve Giles (1989):
— trata-se de uma análise da existência humana, que é muito mais ampla que o
pensamento;
— a existência passa da potencialidade à atualidade pelo próprio sujeito que se
constrói. A existência do eu e o ato de falar “eu” coincidem, pois não é uma questão
acústica ou lingüística, e sim de atitude e direção do ser. Ser eu e falar “eu” é a mesma

59
coisa.
— Na relação com a natureza e os homens, com as formas inteligíveis que se
concretizam na arte, na religião, na comunidade, recebemos a palavra e somos
constituídos por aquilo que se opõe a nós, de maneira que a realidade vive em nós.
Em relação ao pressuposto de Buber de que “ser eu e falar
‘eu” são a mesma coisa, uma como decorrência e expressão da outra, Perls deixa clara
sua postura:
O fato de falar é a mensc isso é verdadeiro, pelo menos no que se refere à você. À
você é a mensagem. Persona, persona, através do som, relações sonoras, relações
sadias (ou vão [ (1969, p. 253)
E fala-nos ainda da relação e da solidão, da comunicação verbal como possibilidade de
encontro:
Com quem falar?
Sem escolha agora,
Com quem andar?
Uma voz que chora
Na solidão
Sem ninguém encontrar
Todos se vão,
Sem ruído,
Sem som...
(1969, p. 241)
O homem que estabelece uma relação com o outro deve ter uma atitude dialógica, ou
seja, uma postura cm que a troca, o ouvir e o falar, o perguntar e o responder, o
emocionar-se, seja compartilhado durante toda a relação. Isso não significa que um
deva concordar com o outro, mas que cada um inserido nessa relação possa trocar
com o outro, acrescentando e sendo acrescentado ao mesmo tempo.
É como se a relação se constituísse enquanto fosse vivida, um terceiro organismo com
vida e características próprias, cuja responsabilidade é dos dois “eus” que a compõem.
Essas influências estão presentes na Gestak-terapia, embora nem sempre explicitas.
Perls chega a usar o termo buberiano “eu-tu” quando fala da importância de assumir as
próprias coisas, separando-se do outro ainda que na dor:

Para perfurar as dores unq iveir, e as emoções desa necessitamos


de um equlíbrio preciso, entre frustração e apoio. Uma vez que o paciente sente a
e.rsê,iem e/o ‘ vi “, e (lo “(‘li-/li ‘ e/e (0 a compreender seu comportamento
fíbico. (1975. p. 22)
Fcr!s refere-se acima à importância do sujeito perceber a si mesmo e ao Outro, pois

60
apenas dessa maneira é possível estabelecer uma relação de íato.
Outro trecho no qual aparece claramente a importância que atribui às rc1açê muito cm
conformidade com o pensamento bub o firma:
Assim, elas [ estão a procura de um interesse comum, ou de li/li uniíiido em comui,,,,
o,,de, com o iulere.cse a comunicação e a união, passamos repentinamente a um elo
eu e você para o nós. 1)esI s/: um novo fenômeno, o nó.; que ee/i/cn’ cl, eu e i’oe O nós
não e.vis/eporsisó niasse constitui a partir do cli ‘ i’o ó/í1// /1/))’!) LI uI//u/ïir O/!(/,’
elf/(lcpeio(/s Se e/1(O///fl’//l/. i quando nos encobrimos / co/ão c mi/LI) e i Y,,,mI a//?I/’
(/o/ ei’ uni encontro mó/no [ (1975, p. 21)
1 nihora a noçí de responsabilidade e solidão permaneça, Feris concel,c um momento
em que pela troca e pelo compartilhar da solidão se í uni encontro cxi
Não /apon/c (‘1/1/e /)0/Ik’11/ e homem...
Pole ( somos e es/vi/.’/
l1.V (,/ /(/
1 :,,, que eu e você nos juf///
Ou melhor ciuiuii, 0/nle m’o,’ó une toca e eu toco você
Ououicio a es//?/n/)e1 sefi (1 969, p. 26)
i\qui Feris relata a possibilidade de um encontro verdadeiro, no qual compartilhar é
possível; entretanto, deixa claro que nem todo encontro é possível, a respeito de um
contato aparente; a solidão permanece (iesía7eI apenas no encontro e na troca
genuína outro ‘‘eu— t 1’’.
Para Perls, um dos mecanismos neuróticos mais utilizados é o de manipular o outro
para obter o apoio que esse indivíduo poderia conseguir se empregasse a energia que
gasta para manipular o outro. Por isso, nem toda relação pressupõe troca e cresci
mento. É na relação que se configura a qualidade do que é vivido com o outro:
Não é preciso ouvir o conteúdo
O meio é a mensagem
Suas palavras mentem ou convencem
Mas o som é verdadeiro — veneno ou alimento
E eu danço com a sua música, ou fqjo.
Eu me encolho, ou sou atraído
E tenho um consolo dessa investigação... (1969)
TEORIAS DE BASE
Foram muitas as influências na construção da Gestalt-terapia. Algumas teorias serviram
como base de seu lastro teórico; as mais marcantes foram: psicologia da Gestalt, teoria
de campo de Lewin, teoria organísmica de Goldstein e teoria holística de Smuts.
Um aspecto fundamental para a compreensão da Gestalt terapia é o panorama no qual
ela se desenvolveu, no âmbito da própria psicologia. A própria história da psicologia
também vivia uma relação dialética com o contexto geral, sendo escrita a partir dos
acontecimentos daquele mundo e ao mesmo tempo influenciando-o, configurando-o de

61
modo peculiar.
A Gestalt-terapia sofreu extensa gama de influências, mas a vertente na qual essa
abordagem se inclui é a da psicologia humanista, que surge na década de 1950 com
Maslow (1 908-70), Rollo May e GarI Rogers (1 902-87), dentre outros. Essa corrente
foi bastante marcada pelo pensamento existencialista europeu, cujos maiores
representantes foram Heidegger, Buber, Sartre, Merleau-Ponty e Gabriel Marcel.
117
Ginger (1985) lembra que para os humanistas o objetivo primeiro era promover um
espaço onde o homem fosse recolocado no centro da psicologia, pois na psicanálise
ortodoxa e no behaviorismo o homem era produto das interações bioquímicas e do
meio social e familiar em que estava inserido.
A proposta dessa “terceira força” surgiu como uma alternativa na qual o homem é
sujeito, responsável por sua existência.
Era preciso muita coragem, nessa época, nos EUA, para ousar desafiar o
“stablishment” psicanalítico, que conquistara todos os postos- chave do setor da saúde
mental, e para ir contra o comportamentalismo, que invadira as universidades,
arrogando-se o papel de única abordagem científica, estritamente “objetiva”, com
resultados estatisticamente controlados. (Ginger, 1987, pp. 93-4)
Maslow assumiu grande importância para a promoção do movimento humanista em
psicologia, pois propiciou a veiculação dessa linha de pensamento através de palestras
sobre o desenvolvimento do potencial criativo dos indivíduos nas indústrias.
Até hoje, o termo “psicologia humanista” carece de uma explicitação clara de seus
domínios, permanecendo de certa forma como uma “tendência” abrangente e aberta
para novos pensa mentos que sejam coerentes com seus pressupostos.
Embora Perls nunca tenha participado ativamente do movimento de formação da
psicologia humanista (assim como de nenhum outro) ele está subordinado
filosoficamente a essa corrente, que inclui a fenomenologia e o existencialismo.
É necessário um esclarecimento em relação à expressão “psicologia humanista”. O
termo “humanismo” refere-se ao movimento intelectual que apareceu no Renascimento
com Erasmo (1467-1536) e Tomas Morus (1478-1535), dentre outros. Surgiu para se
opor à escolástica e pregava a crença na dignidade do espírito humano e a confiança
na razão e no espírito crítico. Japiassu e Marcondes (1990) explicam:
Por uma espécie de deslocamento, o termo “humanismo” tomou dois sentidos
particulares:
a. Na filosofia, designa toda doutrina que situa o homem no centro de sua reflexão e se
propõe por objetivo procurar os meios de sua realização.
b. Na linguagem universitária designa a idéia segundo a qual toda a formação sólida
repousa na cultura clássica chaniada de humanidades.
[ O humanismo é a atitude filosófica que faz do homem o valor supremo, e que v nele a
medida de todas as coisas [ define o homem como o ser que é o criador de seu próprio
ser, pois o humano, através de sua história, gera a sua própria natureza. (pp. 123-4)
Assim, a psicologia humanista foi assim denominada por possuir a mesma concepção
do homem e do mundo que no Renascimento acabou por gerar um período de

62
otimismo e crença no ser humano.
Em relação à Gestalt-terapia, Wilson \Tan Dusen — amigo pessoal de Perls e
fenomenólogo que em 1959 o levara à Califórnia —, explica o contexto da psicologia:
localiza a questão do reconhecimento de Perls por ocasião de uma entre vista
concedida a Shepard (1977):
Se você vai escrever um livro sobre Perls, deve considerar o estado cm que se
encontravam as coisas quando ele apareceu em cena. Todos nós estávamos imbuídos
de psicanálise. Pensávamos que devíamos obter uma história detalhada do paciente.
Éramos todos básica e intensamente retrospectivos [ Não podíamos conceber que se
compreendesse a um paciente de quem não tivéssemos uma história detalhada. O fato
dc que a um homem bastava entrar em uma sala para descobrir com tal exatidão o
comportamento das pessoas foi toda uma revelação [ (1977, p. 21)
Quando Perls apareceu no cenário da psicologia, inicialmente aderia a esses
pressupostos e agia de acordo com a prática
119
psicanalítica, tomando-se ele mesmo um psicanalista. Aos poucos, fundamentalmente
devido à decepção com Freud e também a seu modo especifico de olhar para a vida,
Perls passou a uma atuação na qual não cabiam mais a prática psicanalítica e seus
pressupostos.
Segundo Van Dusen, essa mudança de postura surpreendeu até o próprio Van Dusen,
que havia aderido à análise existencial:
Naquele tempo eu pendia para a direção do “aqui/agora”; contávamos com fragmentos
amorfos de psicologia existencial recebidos de Binswanger, Minkowski e Heidegger, e
aqui estava o homem [ que poderia levar à prática uma visão até então distorcida. Em
conseqüência, como seria natural, estudei com ele e aprendi tudo o que pude. (apud
Shepard, 1977, p. 21)
Perls recorda-se do momento exato em que rompeu com a psicanálise:
O rompimento veio quando conheci Maria Bonaparte,princesa da Grécia, na Cidade do
Gabo. Ela era amiga e discípula de Freud. Eu havia completado e mimeografado o
manuscrito de Ego, Hunger and Aggression e dei a ela para que lesse. Quando me
devolveu o manuscrito, ela me deu o tratamento de choque que eu precisava. Disse:
“Se você não acredita mais na teoria da libido, é melhor apresentara sua renúncia’
(1969, p. 108)
Além do rompimento de Perls com a psicanálise, outros rompimentos importantes
estavam acontecendo: primeiro Jung, e logo depois Reich, que com sua análise do
caráter dava novos rumos à teoria e técnica psicoterápica, até porque mudava o
paradigma filosófico de homem.
Nesse aspecto, Reich, segundo as palavras dc Perls, contribuiu de forma inestimável
para ampliar a compreensão do funcionamento psíquico humano.
[ Mas com ele [ a importância dos fatos começa a definhar. O interesse nas atitudes
passou mais para o primeiro plano. Seu livro A análise do caráterfoi uma contribuição
fundamental (Perls, 1969, p. 66)
A psicologia da Gestalt firmava-se como escola e ocupava-se basicamente da
percepção. Também sobre essa influência, Perls esclarece:

63
A minha relação com os psicólogos da Gestalt era muito peculiar. Eu admirava muita
coisa no trabalho deles, especialmente o trabalho inicial de Kurt Lewin [ Para mim, mais
importante era a idéia da situação inacabada, a Gestalt incompleta. Os gestaltistas
acadêmicos obviamente nunca me aceitaram.
Eu não era certamente um gestaltista puro. (1969, p. 81)
A despeito das críticas à psicanálise, Perls certamente optou por uma abordagem de
caráter humanista, antes de mais nada por ser o modelo filosófico que mais se
integrava ao seu modo de ver e estar no mundo, ou seja, fica evidente que a ruptura foi
também de caráter filosófico, uma vez que é a partir desse pressuposto que é possível
delinear determinada abordagem ou teoria.
Psicologia Gestalt
Perls travou contato mais estreito com a psicologia da Gestalt no ano de 1926, em
Frankfurt, quando era médico-assistente de Kurt Goldstein, que fazia experiências
baseados nessa abordagem com soldados lesionados de guerra, procurando observar
como eles percebiam o mundo. Além de Goldstein, Perls conheceu Lore, que procurava
especializar-se nessa abordagem e que posteriormente se tornou sua mulher.
É importante ressaltar, dada a similaridade do nome que Perls escolheu para sua
abordagem, que os gestaltistas contemporâneos não tinham nenhum propósito de
utilizar seus pressupostos como base para psicoterapia. O interesse da psicologia da
Gestalt estava basicamente voltado aos fenômenos perceptivos e sua organização.
De fato, o nome escolhido por Perls foi e ainda é motivo de muita controvérsia e
confusão. Há quem inadvertidamente
121
psicanalítica, tornando-se ele mesmo um psicanalista. Aos poucos, fundamentalmente
devido à decepção com Freud e também a seu modo especifico de olhar para a vida,
Perls passou a uma atuação na qual não cabiam mais a prática psicanalítica e seus
pressupostos.
Segundo Van Dusen, essa mudança de postura surpreendeu até o próprio Van Dusen,
que havia aderido à análise existencial:
Naquele tempo eu pendia para a direção do “aqui/agora”; contávamos com fragmentos
amorfos de psicologia existencial recebidos de Binswanger, Minkowski e Heidegger, e
aqui estava o homem [ que poderia levar à prática uma visão até então distorcida. Em
consequência, corno seria natural, estudei com ele e aprendi tudo o que pude. (apud
Shepard, 1977, p. 21)
Perls recorda-se do momento exato em que rompeu com a psicanálise:
O rompimento veio quando conheci Maria Bonaparte, princesa da Grécia, na Cidade do
Cabo. Ela era amiga e discípula de Freud. Eu havia completado e mimeografado o
manuscrito de Ego, Hunger and Aggression e dei a e/apara que lesse. Quando me
devolveu o manuscrito, e/a me deu o tratamento de choque que eu precisava. Disse.
“Se você não acredita mais na teoria da libido, é melhor apresentara sua renúncia’
(1969, p. 108)
Além do rompimento de Perls com a psicanálise, outros rompimentos importantes
estavam acontecendo: primeiro Jung, e logo depois Reich, que com sua análise do
caráter dava novos rumos à teoria e técnica psicoterápica, até porque mudava o

64
paradigma filosófico de homem.
Nesse aspecto, Reich, segundo as palavras de Perls, contribuiu de forma inestimável
para ampliar a compreensão do funcionamento psíquico humano.
[ Mas com e/e [ a importância dos fatos começa a definhar. O interesse nas atitudes
passou mais para o primeiro plano. Seu livro A análise do caráter foi uma contribuição
fundamental. (Peris, 1969, p. 66)
A psicologia da Gestalt firmava-se como escola e ocupava-se basicamente da
percepção. Também sobre essa influência, Peris esclarece:
A minha relação com os psicólogos da Gestalt era muito peculiar. Euadmirava muita
coisa no trabalho deles, especialmente o trabalho inicial de KurtLewin [ Para mim, mais
importante era a idéia da situação inacabada, aGestalt incompleta. Os gestaltistas
acadêmicos obviamente nunca me aceitaram.Eu não era certamente um gestaltista
puro. (1969, p. 81)
A despeito das críticas à psicanálise, Perls certamente optou por uma abordagem de
caráter humanista, antes de mais nada por ser o modelo filosófico que mais se
integrava ao seu modo de ver e estar no mundo, ou seja, fica evidente que a ruptura foi
também de caráter filosófico, uma vez que é a partir desse pressuposto que é possível
delinear determinada abordagem ou teoria.
Psicologia da Gestalt
Peris travou contato mais estreito com a psicologia da Gestalt no ano de 1926, em
Frankfurt, quando era médico-assistente de Kurt Goldstein, que fazia experiências
baseados nessa abordagem com soldados lesionados de guerra, procurando observar
como eles percebiam o mundo. Além de Goldstein, Perls conheceu Lote, que procurava
especializar-se nessa abordagem e que posteriormente se tornou sua mulher.
É importante ressaltar, dada a similaridade do nome que Peris escolheu para sua
abordagem, que os gestaltistas contemporâneos não tinham nenhum propósito de
utilizar seus pressupostos como base para psicoterapia. O interesse da psicologia da
Gestalt estava basicamente voltado aos fenô menos perceptivos e sua organização.
De fato, o nome escolhido por Perls foi e ainda é motivo de muita controvérsia e
confusão. Há quem inadvertidamente
l
120
1
confunda psicologia da Gestalt com Gestalt-terapia perdendo de vista que a psicologia
da Gestalt “emprestou” alguns pres supostos, para que juntamente com outras
vertentes e sua elaboração pessoal Perls configurasse a Gestalt
Ginger escreve sobre esse aspecto:
Em 1951, por ocasião do batismo oficial dessa nova terapia LI ela deveria chamar-se
Psicanálise Existencial (proposta de Laura Perls), mas esse nome infelizmente não foi
aceito, por raízes de oportunidade comercial, pois a filosofia de Sartre era então
considerada pessimista demais, até “niilista” nos Estados Unidos. Ilefferlinc propunha o
título de Terapia Integrativa O nome Terapia Experiencial também foi cogitado pelo
“grupo dos sete”. Perls inicialmente batizara seu método de Terapia de Concentração

65
opondo-se assim ao método da livre associação, da psicanálise ortodoxa [ foi então que
Perls sugeriu Gestalt-terapia, o que suscitou debates particularmente agitados com
seus colegas ...J Finalmente Goodman passou a participar e mergulhou em uma viva
polêmica com os psicólogos gestaltistas emigrados para os EUA (Kohler, Koffka,
Goldstein, Lewin):
teve até a arrogância de predizer então que “a psicologia da Gestalt tradicional se
beneficiará mais com a utilização desse termo em nosso livro, do que nós mesmos”, O
futuro lhe daria razão. (1985, pp. 37-8)
Posta essa questão ligada ao nome da abordagem, vejamos sucintamente o que é a
psicologia da Gestalt e qual o seu legado para a Gestalt-terapia.
A psicologia da Gestalt apareceu como nova escola em psicologia a partir de 1912,
através da publicação alemã de um estudo oficial escrito por Max Werthcimcr (1980-43)
em parceria com Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfang Kohler (1887-1967); é importante
lembrar que esta é uma corrente contemporânea à corrente fenomenológica alemã.
Esses psicólogos procuraram dar continuidade aos estudos de Christjan von Ehrenfelds
(1 859-1932), considerado um dos precursores da psicologia da Gestalt de maior
projeção. Seus estudos versavam sobre o todo e suas partes, afirmando que “o todo é
uma realidade diferente da soma de suas partes”.
Os primeiros estudos tinham enfoque fisiológico e psicológico e procuravam estudar a
percepção e as relações do organismo com o meio. As pesquisas seguintes sofreram
alguns desdobramentos, estendendo-se à memória, inteligência, expressão, acabando
por conduzir Ehrenfelds ao estudo da personalidade como um todo. A partir dessas
pesquisas alguns conceitos foram definidos, perfilando a teoria tal como a conhecemos
hoje.
Assim o termo “Gestalt” passou a ser utilizado na designação que seria próxima a
“configuração”; também os termos “figura” e “fundo” passaram a integrar a teoria para
explicar o campo perceptivo e a relação do indivíduo com o objeto.
Pelos pressupostos expostos é possível conjeturar que a base filosófica da psicologia
da Gestalt é a fenomenologia, posto que um de seus fundamentos é observar o
fenômeno tal como ele se manifesta. Ginger esclarece:
[ salientam os paralelismos entre o domínio físico e o domínio psíquico, que em geral
obedecem leis análogas, e se erguem contra o dualismo entre matéria e espírito, entre
o objeto e seu princípio: o objeto não tem uma forma, é uma forma , uma Gestalt, um
todo específico, delimitado, estruturado, significante.
Todo campo perceptivo se diferencia em um fundo e em uma forma ou figura. A forma
é fechada, estruturada. É a ela que o contorno parece pertencer. Não podemos
distinguir a figura sem um fundo: a Gestalt se interessa por ambos, mas, sobretudo, por
sua inter-relação. (1985, p. 38)
No sentido de fundamentar essas afirmações realizaram-se alguns experimentos, dos
quais foram extraídas as leis da psicologia da Gestalt, que basicamente comprovam a
relação dialética entre o sujeito e o objeto, abalando assim a objetividade científica e o
enfoque positivista corrente na época.
Os estudos refletem os clássicos princípios de organização pro postos por Wertheimer
num artigo publicado em 1923, e foram concebidos, é bom lembrar, para as questões
perceptuais da visão, mas que facilmente puderam ser transpostos para a percepção

66
como um todo.
122
Para Wertheimer, percebemos os objetos da mesma forma como percebemos o
movimento aparente, ou seja, como totalidades unificadas e não como sensações
individuais aglomeradas. Esses princípios de organização da percepção são leis ou
regras a partir das quais organizamos o nosso mundo perceptivo.
Os princípios (Schultz e Schultz, 1989) são os seguintes:
— Proximidade: os elementos próximos no tempo e no espaço tendem a ser percebidos
juntos, parecendo formar uma nova unidade.
— Similaridade: sendo as outras condições iguais, condições semelhantes tendem a
ser vistas como pertencentes à mesma estrutura.
— Continuidade: há uma tendência na nossa percepção de seguir uma direção, de
vincular os elementos de maneira que os faça parecer contínuos ou fluindo numa
direção particular.
— Semelhança: partes semelhantes tendem a ser vistas juntas, como se formassem
um grupo.
— Complementação: há uma tendência na nossa percepção de completar figuras
incompletas, preencher as lacunas.
— Simplicidade: sob as condições do estímulo, tendemos a ver uma figura tão boa
quanto possível; os psicólogos da Gestalt denominavam isso de “pragnana”, ou “boa
forma”. Uma boa Gestalt é simétrica, simples e estável, não podendo ser mais simples
ou ordenada.
— Figura/Fundo: tendemos a organizar percepções no objeto observado (figura), e o
segundo plano no qual ela se destaca (fundo). A figura parece ser mais substancial,
destacando-se do fundo.
Schultz e Schultz (1989), explicam:
Esses princípios de organização estão presentes no próprio estímulo Werthejmer os
denominou fatores periféricos, mas também reconheceu que fatores centrais no interior
do organismo influenciam a percepção; por exemplo, os processos mentais superiores
de familiaridade e atitude podem afetar a percepção. De maneira geral, no entanto,
os psicólogos da Gestalt tendiam a se concentrar mais nos fatores periféricos da
organização do que nos efeitos da aprendizagem ou da experiência. (p. 311)
Essas leis podem ser identificadas na Gestalt-terapia e em sua atuação terapêutica;
toda vez que o psicoterapeuta percebe o cliente através do crivo de sua
intersubjetividade e de sua própria percepção, cabe a ele discriminar esses aspectos
que, quando não percebidos, podem tornar-se fator deturpante da realidade tanto do
terapeuta como do cliente.
Embora seja mais adequada a explanação da teoria como um todo, não é meu objetivo
discorrer sobre a psicologia da Gestalt e por esse motivo assinalo apenas alguns
conceitos que foram fundamentais para a construção da Gestalt-terapia e cujos
significados poderão ser apreendidos na definição de conceitos como figura e fundo e
todo e parte, explicitados na concepção de homem em relação com seu campo.

67
A prevalência do todo sobre a parte configura o fenômeno de modo particular:
Começar com elementos, é começar pelo lado errado; porque os elementos são
produtos da reflexão e da abstração remotamente derivados da experiência imediata
que são chamados a explicar. A psicologia da Gestalt tenta voltar à percepção ingênua,
à experiência imediata [ e insiste que não encontra aí montagem de elementos, mas
todos unificados; não massas de sensações, mas árvores, nuvens e céu. E ela convida
todos a verificar essa asserção com o simples ato de abrir os olhos e olhar para o
mundo ao redor, em seu modo cotidiano comum. (Schultz e Schultz, 1933, p. 331)
Assim, a apreensão do todo não carece de nada mais senão a observação do sujeito,
livre o tanto quanto possível de subjetividade.
A psicologia da Gestalt é definida de maneira sucinta por Schultz e Schultz:
123
A fórmula fundamental da teoria da Gestalt poderia ser expressa da seguinte maneira:
existem totalidades cujo comportamento não é determinado pelos aspectos dos seus
elementos individuais, mas nos quais os processos parciais são eles mesmos
determinados pela natureza intrínseca do todo. A teoria da Gestalt alimenta a
esperança dc determinar a natureza dessas totalidades. (1989, p. 306)
A Gestalt-terapia interessa-se pelo processo de formação dc figura e fundo, mas
especialmente pela inter-relação estabelecida entre elas.
Para que o indivíduo possa perceber claramente a formação de figuras contra o fundo
que a delimita ele depende necessariamente de fatores objetivos e subjetivos; assim, a
figura que emerge do fundo para cada um em dado momento é variável e depende de
sua necessidade naquele momento.
Para estabelecer a formação de figuras a partir de uma necessidade específica, Ginger
(1985) lembra que o símbolo da psicologia da Gestalt — que de certa forma estendeu-
se também para a Gestalt-terapia é o vaso de Rubin no qual um desenho em preto-e-
branco permite ver dois perfis ou um vaso, dependendo do que surgir como figura e
fundo a cada percepção, em cada momento.
[ qualquer fenômeno observado nunca é uma realidade objetiva em si, mas uma inter-
relação global entre o Pro’pnojinómeno e seu meio momentâneo, portanto, o
observador. Tudo está l [ (p. 42)
Para a Gestalt-terapia, o funcionamento organístico saudável depende, em grande
parte, do bom funcionamento da dinâmica estabelecida entre figura e fundo.
No caso da neurose, por exemplo, o que ocorre é um acúmulo de figuras que não
puderam obter seu fechamento devido às mais variadas razões; dessa maneira,
existem interrupções na dinâmica que deveria fluir livremente, e o indivíduo acaba aos
poucos perdendo a capacidade de estabelecer novas figuras nítidas, pois estas tornam-
se “borrosas”, uma vez que a necessidade que a gerou não é facilmente identificada.
Em última análise, a psicoterapia na linha gestáltica contribuiria para restabelecer a
fluidez desse processo, levando a pessoa a conscientizar-se de seu funcionamento e
de suas necessidades.
Pode-se dizer, portanto, que a similaridade entre os pres supostos das duas vertentes e
a utilização de alguns conceitos básicos da psicologia da Gestalt na Gestalt-terapia
confere à primeira papel fundamental de suporte teórico a Perls.

68
Teoria de campo de Lewin
Para a Gestak-terapia, o meio onde o indivíduo está inserido é fundamental para sua
compreensão; não é possível saber de que pessoa falamos sem olhar para o todo que
compõe sua existência, do qual faz parte também o mundo que o cerca.
Esse foi um dos motivos que levou Peris a buscar na teoria de campo de Kurt Lewin
apoio para a construção da Gestalt-terapia.
Kurt Lewin (1890-1947) baseou-se na psicologia da Gestalt, ampliando os pressupostos
dessa abordagem, especialmente em relação às influências sociais sobre o
comportamento.
Schultz e Schultz (1989) explicam o cerne do pensamento de Lewin e seu ponto de
partida:
Na ciência do final do século XIX a tendência era pensar em termos de relações de
campo e afastar-se de um quadro de referência atomista e clementarista [ a psicologia
da Gestalt refletia essa tendência. A teoria de campo surgiu na psicologia como
analogia de conceito de campos de força na física. Na psicologia, o termo “teoria de
campo” refere-se agora quase que exclusivamente à obra dc Kurt Lewin. Esta obra é
bastante gestaltista, no tocante à orientação, mas as idéias de Lewin foram além da
Gestalt ortodoxa. Os psicólogos da Gestalt enfatizavam a percepção e a aprendizagem
e propunham construções fisiológicas para explicar o comportamento; o trabalho de
Lewin centrava-se nas necessidades e na personalidade e se ocupa das influências
sociais sobre o comportamento. (p. 317)
127
A formação básica de Lewin foi bastante eclética, pois estudou física, matemática e
psicologia; daí os conceitos de sua teoria serem no geral baseados em raciocínios
lógicos e matemáticos. A teoria dc campo da física acaba levando Lewin a pensar num
correlato que explicasse o indivíduo cm relação com seu campo, imprimindo-lhe o
aspecto psicológico.
Lewin (1973) afirma que o campo no qual o indivíduo está inserido possui estímulos
que formam um intrincado mosaico de possibilidades, cabendo ao indivíduo decodificá-
las através de sua percepção. A inclusão dessa realidade externa possibilita urna
ampliação da compreensão do funcionamento global do indivíduo, pois se considera
tanto o meio externo corno a realidade interna de cada um.
Nesse aspecto, a pessoa pode ser representada até matematicamente, uma vez que
ela é vista na sua representação espacial, dentro de um outro espaço que a
circunscreve: o mundo.
Esse é um aspecto que diferencia o trabalho de Lewin, para quem qualquer evento
psicológico ou comportamental pode ser representado por sistemas matemáticos. Ele
escolhe urna forma de geometria específica, a topologia, para ilustrar os processos
psicológicos no geral e a inserção do indivíduo cm seu meio.
Embora tivesse formação em matemática, Lewin não se interessa por estudos
estatísticos, pois acredita que o estudo aprofundado de um homem em relação com
seu meio mostra mais do que um estudo de todos os homens.
Lewin postula um estado de equilíbrio entre a pessoa e seu ambiente. Para ilustrar esse
estado possível, utiliza urna forma de representação segundo a qual a pessoa é
designada como um círculo fechado (P) e o que é “não pessoa”, ou seja, o mundo que
69
o cerca, é representado por (não P). É estabelecida uma relação entre esses dois
círculos, na qual necessariamente existem trocas necessárias para a manutenção da
vida, num movimento dialético e incessante.
Para que essa troca seja possível, existe algo que Lewin denomina de meio psicológico
ÇM que seria uma zona de contato entre (P) e (não P).
O espaço vital, outro termo utilizado por Lewin, corresponde à somatória de (P) mais
EM), e é nele que o comportamento se manifesta, revelando a relação estabelecida
com o mundo. Esse espaço corresponde ao universo psicológico de cada um. Lewin
compara o espaço vital, em termos de representatividade, com um mapa que encerra
cm si todas as condições de compreensão de funcionamento e localização de um
determinado lugar.
Conhecer uma região, porém, não corresponde a conhecer todo o lugar, e é por isso
que esse “mapa” (o espaço vital) possui regiões mais conhecidas do que outras;
conhecer alguns aspectos de uma pessoa não equivale a conhecer toda a pessoa.
Assim a relação estabelecida entre o todo e as partes fica clara, pois conhecer urna
região não é conhecer todo o território que compõe o mapa mas certamente é conhecer
uma parte que compõe esse território, porque uma parte nos dá certas noticias do todo
mas não é o todo.
A comunicação que se estabelece entre (P) e (não P) é regulada pela propriedade de
permeabilidade — o que lembra o conceito de fronteira de contato em Gestalt-
terapia —, porém a comunicação entre (P) e (não P) só ocorre através de (M). As
regiões contidas em (M) comunicam-se em menor ou maior grau conforme sua
proximidade e podem ser reorganizadas de modo a produzir uma reestruturação do
espaço vital.
Para a Gestalt-terapia, esse aspecto é de particular relevância:
Esta comunicação e locomoção das regiões, causadas pelo trabalho dos fatos, podem
produzir os mais diferentes efeitos, como alteração das regiões, diferenciações de
limites entre zonas, maior fluidez ou enrijecimento de uma região [ reestruturação do
espaço vital significa um novo campo, uma nova Gestalt, seja com relação a um fato,
seja com relação a um acontecimento, um novo modo de lidar consigo próprio ou com
coisas suas, um desejo, uma fantasia, etc. (Ponciano, 1985, p. 103)
Além da estrutura da teoria exposta sucintamente, alguns conceitos dinâmicos da teoria
de campo servem à Gestalt-terapia como referência:
Energia: conceito relativo à energia psíquica, que é uma força presente no ser humano,
capaz de mobilizá-lo para a ação produzindo uma mudança perceptiva ou motora.
— Tensão: estado alterado dc determinada região na relação com outra.
— Necessidade: ocorre quando uma tensão em determinada região leva à necessidade
de satisfação desta, e tão logo isso ocorra restaura-se o equilíbrio do indivíduo (em
relação àquela necessidade)
— Valência: valor atribuído a cada necessidade; pode ser positiva quando reduz a
tensão de uma região, ou negativa quando essa tensão é aumentada. A valência,
porém, não é suficiente para mobilizar energia para a mudança, que necessita de uma
força denominada vetor.
Vetor: através de três propriedades, o vetor opera sua força: direção, energia e ponto

70
de aplicação. O reconhecimento dessas propriedades possibilita que a pessoa perceba
o que quiser, em que direção seguir para obter o desejado e, finalmente, que forças
juntar para empreender esse caminho.
Essas propriedades podem ser identificadas na formação e destruição de Gestalten
dentro da abordagem gestáltica, conforme veremos na definição de conceitos em
Gestalt-terapia.
Teoria or6anísmica de Goldstein
A partir de estudos em neurologia, Kurt Goldstein percebeu que um sintoma não podia
ser compreendido em sua totalidade se o indivíduo não fosse também visto em sua
totalidade.
Desse modo, passou a afirmar que o organismo era uma só unidade e que o que
ocorria em uma parte afetava o todo. Fica clar, portanto a premissa de indivisibilidade
do homem, assim como da relação estabelecida entre o todo e as partes.
Segundo a teoria organísmica, há no homem um impulso dominante de auto-regulação
pelo qual é permanentemente motivado; esse impulso é regulado por uma “sabedoria
organísmica” que, ao ser ouvida e atendida pelo próprio indivíduo, pode realizar aquilo
que ele é na sua plenitude.
Goldstein afirma ainda que o único motivo do organismo é a auto-realização e que por
isso qualquer manifestação organísmica de desejo ou necessidade é pura expressão
dessa possibilidade de realizá-la.
Vemos a influência direta deste pensamento na Gestalt terapia, segundo a qual a auto-
realização é o ponto-chave do desenvolvimento humano em todo o seu potencial.
Outras influências da teoria organísmica sobre a Gestalt terapia são claras,
especialmente em relação aos postulados básicos que a compõem, segundo Ponciano
(1985):
— A pessoa é una, integrada e consistente; a organização é natural ao organismo, a
desorganização é patológica.
— O organismo é um sistema organizado, com o todo diferenciado em suas partes.
— O homem possui um impulso dominante de auto-regulação pelo qual é
permanentemente motivado.
— O homem tem dentro de si as potencialidades que regulam seu próprio crescimento,
embora receba influências positivas de crescimento do meio exterior, as quais ele
seleciona e utiliza.
— A teoria organísmica ernmprega princípios da psicologia da Gestalt como funções
isoladas, como percepção e aprendizagem que ajudam na compreensão do organismo
total.
A teoria organísmica acredita que se pode apreender mais em um estudo
compreensivo da pessoa do que em uma investigação exclusiva de uma função
psicológica isolada e abstrata de muitos indivíduos.
131
Teoria holística de Smuts
Ao longo do tempo muitos conceitos das mais variadas áreas de produção do

71
conhecimento humano acabam por sofrer distorções em seu significado e emprego, ou,
ainda, ficam de certa forma comprometidas, pouco consistente e/ou deturpadas devido
a deturpações e/ou banalizações em relação ao seu sentido específico.
A grosso modo, parece ser esse o processo que ocorreu com o termo “holismo”, pois é
possível verificar empírica e rotineiramente que ele acabou por designar uma série de
coisas obscuras. Mais recentemente esse verbete parece ter sido incorporado a um
“pensamento esotérico” ou “naturalista”, que aqui chamarei de inespecífico.
Considero fundamental a tentativa de caracterizar esse pensamento em sua origem,
resgatando os pressupostos que contribuíram para configurar a Gestalt-terapia.
Etimologicamente, a palavra “holismo” provém do grego “holos”, que significa total,
completo. Japiassu e Marcondes expõem uma definição:
Uma doutrina que considera que a parte só pode ser compreendida a partir do todo,
que privilegia a consideração da totalidade na explicação da realidade, sustentando que
o todo não é apenas a soma de suas partes mas possui uma unidade orgânica. (1989,
p. 122)
Percebe-se o legado fundamental do holismo à psicologia da Gestalt, à teoria
organísmica e à própria Gestalt-terapia.
Jan Christiaan Smuts (1 870-1950), responsável pela idealização do pensamento
holista, era estadista sul-africano, tendo ocupado o cargo de primeiro-ministro por
vários anos. Como vimos na história de vida de Perls, devido à amizade com Smuts, a
Gestalt-terapia foi diretamente influenciada pelo pensamento holístico.
Smuts formulou sua teoria e publicou-a em 1926; seu postulado básico era de que o
Universo, e especialmente a natureza viva, se constitui de unidades que formam todos
(como organismos vivos) que são mais do que a simples soma de suas partículas
elementares.
Existem possibilidades de atuação e interação que podem vir de diferentes níveis
organísmicos, como o físico, o emocional ou o mental; mas segundo essa doutrina não
é possível separar nenhuma dessas partes para observá-la sem que se perca o senmio
global do que está acontecendo e a compreensão do todo.
Essa doutrina, portanto, não concebe a possibilidade de dividir as partes, mas sim de
integrá-las para que se possa configurar um todo coerente, que estabeleça relações
com outro todo.
Em seu livro À aborda gestáltica e testemunha ocular da terapia (1973), Perls dedica
um capítulo inteiro à doutrina holística e sua relação com a Gestalt-terapia.
Na verdade, assim como pode-se considerar a Gestalt-terapia um processo no qual o
existencialismo é instrumentalizado, também pode ser considerada erninentemente
holistica por não conceber a divisibilidade do indivíduo, procurando sempre o “todo” que
se manifesta a cada momento.
Decorre daí, portanto, a idéia de que qualquer manifestação psíquica tem seu correlato
físico aparente, e se o terapeuta estiver atento ao que se manifesta certamente estará
com a manifestação do todo, já que esse homem é indivisível. Segundo Feris:
Esta concepção nos permite ver os lados mentais do comportamento humano, não
como entidades independentes que poderiam ter existências separadas dos seres
humanos, ou uma da outra. Permite-nos ver o ser humano como ele como um todo, e

72
examinar seu comportamento como se manifesta, ao nível explícito da atividade/Laca, e
ao nível oculto ria atividar/e mental. (1973, p. 30)
Tal raciocínio leva Perls a formular um processo psicoterápico cuja visão de homem é
global, não havendo prevalência, em termos de importância, nem do psíquico nem do
físico.
a)
Esse aspecto é fundamental para a apreensão do processo gestáltico: à medida que
não há prevalência e que o homem é global, um ser único cujas partes formam um todo
específico, a ênfase começa a recair não mais sobre o que ele é, mas sim sobre o que
ele faz. O processo prevalece, portanto sobre a estrutura, uma vez que as inter-
relações estabelecidas entre as partes são dinâmicas, indivisíveis e constantemente
mutáveis.
EXPERIÊNCIAS PESSOAIS
Dentre as influências sofridas por Perls para configurar a Gestalt-terapia, algumas
foram experimentadas pessoalmente e tiveram papel de grande relevância na
construção de sua obra. Podemos destacar: Freud e a psicanálise, Reich e a análise do
caráter, Moreno e o psicodrama e o pensamento oriental.
PerIs e a psicanálise
Perls e a Gestalt-ferapia
As influências da psicanálise na obra de Perls são inúmeras. Devemos lembrar que
Perls foi psicanalista durante 23 anos (1928-51), passando por seis anos de análise.
Em princípio, Perls comungava com as idéias de Freud e, mais, alentou durante muito
tempo o desejo de contribuir para sua teoria; porém esse senhor não pôde resistir à
grande ferida narcísica causada em Perls pela frustração que teve em Praga (1936)
quando foi friamente recebido pelo mestre. Não é demais ressaltar que nessa ocasião
já era bastante precário o estado de saúde de Freud, além da recente decepção
causada pela dissidência de Jung.
Perls ressentiu-se bastante, iniciando então, juntamente com seus conhecimentos
anteriores (como o da psicologia da Gestalt
e a teoria de campo de Kurt Lewin, dentre outras), o caminho que acabaria por
configurar uma nova abordagem em psicologia: a Gestalt-terapia.
Em princípio, o questionamento de Perls relacionava-se basicamente à atuação
psicanalítica, especialmente quanto à lentidão; aos poucos, porém, as diferenças tanto
teóricas como de atuação terapêutica foram se evidenciando cada vez mais.
Ponciano retrata bem a dinâmica que se estabeleceu para que ocorresse o
rompimento:
Perls, de certo modo, partiu da psicanálise, um dos berços da Gestalt [ mas com
inúmeras modificações, de modo que do berço original se podem perceber traços, mas
não mais reconhecê-los como antigamente. Perls falou que era grato à psicanálise ou à
Freud pelo tanto que ele evoluiu, colocando-se contra Freud, sobretudo no que se
refere ao método do trata mento psicoterapêutico, afirmando ainda que a filosofia e
técnicas freudianas se tornaram obsoletas e obscuras. Dc outro lado, reconheceu o
valor de Freud ao afirmar que ele era o Edison da psiquiatria e, ao mesmo tempo, um

73
“santo-demônio-gênio” [ (1985, p. 115)
Ainda segundo Ponciano, é devido à diferença de concepção de homem e mundo que
a incompatibilidade entre os dois pensamentos assume sua característica mais
fundamental. Esse aspecto parece-me de vital importância, uma vez que a partir dessa
concepção delineia-se o potencial humano e seu modo de interagir com o mundo. A
visão de homem em Gestalt-terapia pressupõe um lastro filosófico eminentemente
existencial e fenomenológico, contrariando assim a visão de homem em psicanálise,
que assume como lastro filosófico uma concepção mecanicista, biológica e
psicodinâmica. (1985)
É evidente que a partir dessas diferenças o aspecto teórico de cada uma dessas
abordagens assume um sentido específico, ainda que em alguns casos a nomenclatura
seja a mesma. Vejamos então algumas diferenças conceituais básicas entre uma e
outra abordagem, segundo o próprio Perls (1969) e Ginger (1985).
134
Inconsciente
Perls não nega o inconsciente, porém propõe um acesso contrário ao proposto em
psicanálise, conforme explica Ginger (1985):
Perls acha que com a observação atenta dos fenômenos de superfície atuais pode-se
aprender tanto sobre eles quanto nas lentas “escavações arqueológicas”, que tendem a
exumar “pseudo-recordações da infância” — de qualquer forma, amplamente faiscadas
pelas recolaborações ulteriores. (1985, pp. 64-5)
Neurose
Para a psicanálise, a neurose , segundo Laplanche e Pontalis (1991), é uma afecção
psicogênica na qual o sintoma é urna expressão simbólica de um conflito psíquico cujas
raízes remetem à infância do sujeito, sendo caracterizada por conflitos entre desejos e
defesas.
Para Perls, ao contrário, a neurose surge basicamente das relações estabelecidas
entre o indivíduo e seu meio:
1...] a neurose é consecutiva à soma de “gestalten inacabadas” ou seja, às
necessidades interrompidas ou insatisfeitas, mais do que aos desejos proibidos pela
sociedade ou recalcados pela censura do superego ou do ego. A neurose nasceria,
então, essencialmente de um conflito entre o organismo e seu meio (a mãe, o pai, os
outros) e, por isso, revela-se principalmente na fronteira de contato entre o indivíduo e o
meio em que vive. (Gingcr, 1985, p. 65)
Transferência
Na psicanálise a transferência é conceito central, pois é a partir dela que se estabelece
toda a dinâmica de análise entre paciente e analista.
[ é o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados
objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles, e,
eminentemente, no quadro da relação analítica.
Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantís vivida com um sentimento de
atualidade acentuada. (Laplanche e Pontalis, 199 , p. 514)
Na Gestalt-terapia, a transferência não é negada, porém o que a difere da psicanálise é

74
a utilidade terapêutica da transferência. Enquanto na psicanálise a transferência presta-
se a um potente instrumento de trabalho analítico, na Gestalt-terapia a relação
transferencial que ocorre no processo psicoterapêutico deve ser apontado:
A transformação deliberada da transferência espontânea do cliente em “neurose dc
transferência”, supostamente análoga à neurose infantil, e artificialmente sustentada
pelo analista, lhe parece [ Perls], um desvio inútil e até perigoso. Ela contribui para
prolongar consideravelmente o tratamento, induzindo uma dependência excessiva que
pode alienar o cliente durante anos. Por outro lado, pode favorecer e alimentar
mecanismos projetivos, que Peris considera uma resistência em ver a realidade social
de frente e uma fuga diante da responsabilidade. Ele preconiza então aquilo que chamo
de “envolvimento controlado”, que permite um contato mais mobilizador, de pessoa
para pessoa. No entanto, as interferências da transferência não são negadas, mas
apontadas à medida em que aparecem, e ela não constitui o motor principal da terapia:
é então a estratégia terapêutica que difere. (Ginger, 1985, p. 65)
6’ eporqu
Para Perls, há sempre a prevalência do corno sobre o porquê; segundo esse raciocínio,
o porquê (tantas vezes buscado pela psicanálise) explica o bloqueio ou dificuldade
existencial, “autorizando” o indivíduo a sentir-se preso. Um determinismo fatalista não
promove mudança efetiva, mas retira de sua existência a responsabilidade. O “como”,
no entanto, tão difundido em Gestalt terapia, propicia perceber “ a maneira como a
perturbação se manifesta hoje, e dos eventuais benefícios secundários que me
proporciona agora [ (Ginger, 1985, p. 66)
Assim vemos claramente a prevalência do “como” sobre o “porquê”, do presente sobre
o passado e da responsabilidade
157
sobre a própria existência. É importante ressaltar, porém, que Perls não negava a
importância do passado, mas, antes, salientava a importância de remeter tanto passado
como futuro ao presente, como única forma de sentido e integração.
Esse aspecto refere-se em Gestalt-terapia ao processo de presentificação, conforme se
apresentou nos pressupostos básicos da Gestalt-terapia.
Compulsão repetição
Em psicanálise esse conceito refere-se a um processo de origem inconsciente no qual
o indivíduo repete compulsivamente situações dolorosas sem se dar conta do que está
ocorrendo. Esses sintomas reproduzem elementos de um conflito primário (Laplanche e
Pontalis, 1991). “Perls retém a noção freudiana de compulsão de repetição, mas esta
tendência estaria ligada, segundo ele, às necessidades insatisfeitas, às ‘Gestalten
inacabadas’ [ (Ginger, 1985, p. 69)
Dessa forma, para a Gestalt-terapia a compulsão e a repetição são situações
inacabadas, Gestalten que não puderam ser destruídas e permanecem abertas,
voltando tantas vezes quanto permanecerem inacabadas.
A mI cia
No caso desse conceito não há diferenças conceituais básicas, mas correlação entre
esse termo eminentemente psicanalitico e “polaridades”, proposto em Gestalt-terapia
quando o trabalho terapêutico enfoca a integração dessas polaridades, como

75
amor/ódio, autonomia/dependência etc.
Sonho
É amplamente utilizado tanto na psicanálise como na Gestalt-terapia, porém a maneira
de trabalho bem como a atuação do psicoterapeuta são muito distintas. Em psicanálise,
o sonho é a via régia do trabalho e é a partir dele que conteúdos inconscientes podem
tornar-se conscientes através de associações verbais e da interpretação; determinados
objetos que aparecem em sonhos podem ter uma interpretação genérica, como no
caso de objetos fálicos.
Já em Gestalt-terapia não é concebível uma interpretação de qualquer outra pessoa
senão o próprio sonhador, pois cada elemento do sonho é uma parte alienada de si
mesmo e só ele pode atribuir-lhe sentido. Perls afirma que o sonho são mensagens
existenciais e propõe como técnica uma vivência do sonho no presente, atribuindo vida
própria a determinadas partes e levando o cliente a estabelecer um contato com elas,
através do diálogo e da presentificação.
Sintoma
De maneira clara e concisa, Ginger explica a diferença
entre sintoma para a psicanálise e para a Gestalt-terapia:
[ em psicanálise tradicional, o sintoma é às vezes relegado ao segundo plano,
considerado de certa forma como uma simples sinalização no caminho da auto-
descoberta. Busca-se a conscientização progressiva do recalcado por uma abordagem
global da personalidade profunda, por meio da análise da transferência e das
resistências e graças à interpretação [ A visão do homem é subjetiva e principalmente
pessimista (determinismo esmagador da primeira infância, tendências “perversas
polimórficas” naturais, etc. Em Gestalt-terapia o sintoma é considerado um chamado
específico da pessoa: é a linguagem que ela escolheu, mesmo inconscientemente. Nós
o ouvimos assim, com atenção e respeito, encorajamos mesmo sua expressão máxima,
intensificando-a para melhor escutá-lo. O sintoma, especialmente o corporal, será
geralmente a porta de entrada que permite um contato mais profundo com o cliente. A
visão de homem é aqui intersubjetiva e deliberadamente otimista, acentuando a riqueza
do potencial explorável de cada um. (1985, pp. 71-2)
Podemos perceber a partir dessa breve explanação que
139
embora a Gestalt-terapia tenha se baseado em muitos dos aspectos psicanalíticos para
construir sua abordagem, o distanciamento subseqüente acabou por delinear uma nova
concepção, tanto no que diz respeito aos aspectos teóricos como nos técnicos.
O caminho pessoal de Perls, que amiúde confunde-se e mistura-se com a construção
de sua abordagem, acabou configurando uma especificidade da Gestal-terapia que
pressupõe, de todos que a seguem, uma visão de homem potente, cujos recursos
individuais podem subsidiar uma vida plena e consciente independentemente de seu
passado.
E pela psicoterapia que esses recursos podem ser disponibilizados, resultando então
num funcionamento organísmico saudável em que o ciclo de contato funcione de
maneira eficiente e o indivíduo possa estabelecer cada vez mais contatos de qualidade
para obter a satisfação de suas necessidades e, subseqüentemente, promover um

76
suporte de boa qualidade e awareness.
Reich e a análise do caráter
Perls e a Gestalt
A influência de Reich sobre Perls e a Gestalt-terapia tem caráter menos polêmico ou
controvertido; isso porque Perls passou por um processo de análise com Reich (1
930-32) no qual pôde progredir em seu auto-desenvolvimento. É importante assinalar
que cm sua formação inicial Reich também era psicanalista ortodoxo, desfrutando da
preferência pessoal de Freud — tanto que este lhe confiou pessoalmente a tarefa e a
responsabilidade pela formação didática de psicanalistas. Porém aos poucos Reich foi
atribuindo cada vez mais importância à sexualidade, conforme relata Ginger:
[ atribuiu] ao acúmulo de tensão sexual genital a origem da agressividade e das
neuroses e insistiu na “função do orgasmo” [ Propôs então a análise do caráter, e
procurou dissipar a couraça do caráter, ou couraça muscular [ achava que era preciso
encorajar uma forma de expressão total do cliente, e não só seu discurso verbal [ Reich
observava atentamente sua [ cliente] respiração, sua postura, as inflexões de sua voz
[ .1 Insistia também na primazia do como sobre o porquê, na forma e não só no
conteúdo da mensagem. (Ginger, 1985, p. 80)
A partir do relato acima, não é difícil identificar a herança do pensamento reichiano
legado à Gestalt-terapia: como Reich, Perls também enfatizava a importância do como,
e não do porquê; possuía uma visão holística do homem, dando funda mental
importância ao organismo como um todo, encorajando uma forma de expressão total e
integrada. Também o aspecto corporal encontra nas duas abordagens papel de grande
importância, pois é a partir de manifestações corporais que alguns conteúdos internos
podem ser explicitados.
Além do mais, a atuação terapêutica de Reich era frontal, assim como a de Perls,
evidenciando-se nos dois um contato com o cliente em que não raramente a habilidosa
frustração fazia parte do processo como um todo. E Perls quem afirma:
Reich era vital, vivo, rebelde. Ar/do por discutir qualquer situação, especialmente
política e sexual [ com ele, a importância dos fatos começa a definhar. O interesse nas
atitudes passou mal para o primeiro plano. Seu livro A análise do caráter foi uma
contribuição fundamental (1973, p. 66)
Existem, portanto, muitos pontos em comum entre as duas abordagens, e alguns deles
foram discriminados por Ponciano.
Ambas acreditam que as lembranças são acompanhadas dos afetos aos quais estão
ligadas. Perls afirmava que de nada vale trabalhar determinado fato se ele não vier
acompanhado pela emoção que o representa. Reich também acreditava que era inútil
tornar o inconsciente consciente, a não ser que esse episódio pudesse ser
acompanhado da genitalidade encerrada nele.
O corpo deve estar presente no ato psicoterapêutico.
140
Embora nenhuma das duas abordagens possam ser consideradas corporais, é inegável
a importância que esse aspecto assume em ambas. Essa importância é dada
basicamente pelo pressuposto de indivisibilidade do ser.
Reich falava da couraça muscular como forma de resistência e Perls afirmava que a

77
resistência é função do organismo como um todo. Perls falava da linguagem
psicossomática, chamando a atenção para toda e qualquer forma de comunicação não-
verbal. Na realidade, não se pode conceber um trabalho reichiano ou gestáltico sem
que o corpo esteja imerso na própria compreensão do processo. O corpo é o aqui e
agora, é o fenômeno que se revela, é, por assim dizer, a intencionalidade a existência
passada. (Ginger, 1985, p. 118)
Assim, nas duas abordagens vemos uma deliberada inclusão do corpo e suas
manifestações no processo terapêutico.
Postura comum entre Reich e Perls é o trabalho por meio da frustração. A Gestalt-
terapia tem como um de seus pressupostos que uma habilidosa frustração por parte do
terapeuta pode levar o cliente a perceber suas formas de manipular e sua realidade,
modificando sua interação com o mundo, quando necessário. Para Reich, a frustração
pode levar o cliente à constante busca de auto regulação, posto que não encontrará no
terapeuta o apoio que por si mesmo já possui.
Reich e Perls afirmavam que mais importante do que o cliente comunica é como ele se
expressa. Ao contrário da teoria psicanalítica, para Reich e Perls não é suficiente que o
cliente fale tudo que lhe ocorrer no momento. O fundamental é como ele fala, pois as
palavras podem enganar, mas não o jeito como se fala, as emoções manifestadas.
Finalmente, vale a pena ressaltar que tanto Reich como Perls viam em suas
abordagens uma função política em última instância, pois a partir do processo
terapêutico o indivíduo poderia adquirir autonomia e responsabilidade, que o impediriam
de submeter-se às regras sociais com as quais não concordasse.
A respeito da função política do processo terapêutico, e da correlação entre mente e
corpo, Reich afirma:
Os indivíduos criados com uma atitude negativa diante da vida e do sexo contraem uma
ânsia de prazer fisiologicamente apoiada em espasmos musculares crônicos. Essa
ânsia neurótica de prazer é a base na qual certas concepções de vida, negadoras da
vida e produtoras de ditadores, são reproduzidas pelos próprios povos. (1985, p. 16)
M e o psicodrama,
Per e a Gestalt-terapia
A influência do psicodrama na Gestalt-terapia não é clara mente explícita, muito embora
seja possível perceber traços de similaridade entre as duas abordagens, mais
notadamente em relação à técnica, pois ambas utilizavam-se de técnicas cuja raiz
estava firmemente calcada no teatro (dramatização, desempenho de papéis, palco,
jogos).
Para Moreno, a técnica psicodramática consistia basicamente em propiciar ao indivíduo
ou grupo a possibilidade de vivenciar sentimentos, fantasias ou conflitos, atuais ou não,
de maneira a promover uma catarse — que para ele estaria ligada à liberação desses
mesmos sentimentos ou conflitos reprimidos —, insight e posterior elaboração do
conteúdo dramatizado.
É importante ressaltar que o psicodrama carece de teoria estruturada; porém, a partir
de conceitos centrais como espontaneidade, papéis e encontro, delineia-se uma técnica
que possui em si mesma potencial terapêutico.
Peris sempre esteve fortemente influenciado pelo teatro, uma vez que sua mãe
acalentava o sonho de ser atriz e cantora de ópera e por esse motivo levava os filhos
78
regularmente ao teatro. Mais tarde, na construção da Gestalt-terapia, percebemos essa
influência, tanto que um dos termos utilizados constante mente por ele é “medo de
palco” — expressão que designa medo do julgamento dos outros sobre a ação de um
indivíduo. Outro termo corrente em Gestalt-terapía é “jogo”, relativo às defesas
143
neuróticas do indivíduo para esquivar-se de responsabilidade sobre si mesmo.
Tanto em psicodrama como em Gestalt-terapia há a valorização do momento presente,
pois é por meio da vivência no agora que é possível ressignificar ou elaborar o que é e
o que já foi.
Moreno utiliza o termo “encontro” para designar o que Perls designa como “contato”,
inclusive entre terapeuta e cliente, pois só a partir dessa relação é que se torna possível
um vínculo verdadeiro e construtivo. Em relação ao uso da técnica psicodramática,
Perls esclarece: mas tendo reconhecido a relação entre fantasia e realidade, podemos
na terapia faz uso inteligente da fantasia e de todos os seus crescentes estados de
intensidade na direção da realidade — uma fantasia verbalizada, escrita, representada
a lravelí do psicodrama. Podemos representar um psicodrama com nossos pacientes
ou pedir-lhes que laçam só este que se chama “monoterapia ‘ Nesse ultimo caso, o
paciente cria seu próprio palco, seus próprios atores, seus próprios adereços, direção e
expressão. Isso lhe dá uma chance de compreender que tudo que ima é seu e lhe dá
uma chance de ver os conflitos dentro de si. À monoterapia, portanto, evita a
contaminação, os conceitos de outros que estão usualmente presentes no psicodrama
comum. (1973, p. 98)
O trecho explicita adesão à técnica psicodramática, ou melhor, recriação daquilo que foi
proposto por Moreno, uma vez que ao assumir toda a atuação sozinho (vivendo,
portanto, um monodrama) Perls reafirma sua postura de que o auto-desenvolvimento
presume vivência responsável (e até solitária) de todos os conteúdos possíveis de cada
um.
Logo, é na vivência desses jogos teatrais que alguns conteúdos emocionais podem ser
trabalhados em Gestalt terapia, porém não como técnica única, mas apenas como mais
um recurso disponível ao Gestalt-terapeuta. É importante ainda ressaltar que tanto
psicodrama como Gestalt-terapia estão subordinados a uma visão de homem e de
mundo existencial fenomenológica, o que os torna similares por pressupostos.
No célebre poema “Divisa”, que repetia com freqüência,
Moreno deixa clara também a sua postura dialógica, que é central para a Gestalt-
terapia:
E quando estiveres perto, arrancarte-ei os olhos e colocá-los-ei no lugar dos meus;
E arrancarei meus olhos para colocá-los no lugar dos teus.
Então ver-te-ei com os teus olhos, e tu ver-me-ás com os meus.
Assim, até a coisa comum serve o silêncio
E nosso encontro permanece a meta sem cadeias:
O lugar indeterminado, num tempo indeterminado,
A palavra indeterminada para o homem indeterminado.

79
O pensamento oriental,
Perls e a Gestalt-terapia
Perls, em sua busca pelo auto-suporte e responsabilidade da existência, questionou a
existência de Deus, e após o rompimento com Freud (1936) desiludiu-se totalmente de
qualquer crença religiosa, bem como do sistema freudiano. Podemos perceber
claramente esse sentimento em seu relato autobiográfico:
Então veio a iluminação: Nenhum apoio moral, espiritual, financeiro, de fonte alguma!
Todas as religiões eram cruezas inventadas pelo homem, todas as filosofias eram jogos
de encaixe intelectuais e artificiais. Eu próprio tinha que assumir toda a
responsabilidade pela minha existência. (1969, p. 78)
Nota-se que nesse momento Perls demonstrava ceticismo em relação inclusive ao
pensamento oriental, cuja influência permaneceu marcada na Gestalt-terapia, apesar
dessa “nova postura”.
Foi por meio de seu amigo Paul Weiss que Perls teve o primeiro contato com o
pensamento oriental, mais especificamente com o zen budismo, pelo qual se interessou
imediatamente,
144
realizando uma viagem ao Japão para estabelecer contato mais estreito com esse
modo de conceber a vida.
Vejamos alguns princípios da Gestalt-terapia cujas raízes remontam ao pensamento
oriental.
A Gestalt-terapia propõe um mergulho gradativo nos próprios sentimentos a fim de que
ele possa ser cada vez mais conhecido, mais do que isso, apreendido pela
conscientização.
essa postura de colocar o indivíduo de volta para si mesmo, este sentido de integração
da pessoa na sua totalidade, é mensagem contínua da Gestalt e do zen [ Essa postura,
dentro do espírito zen, significa um despojar-se, um não ter apego às coisas velhas,
passadas, significa.um apelo à consciência da totalidade e não um conviver
permanente e doentio com partes envelhecidas pelo tempo, pelos hábitos. (Ponciano,
1985, pp. 125-6)
Assim como no zen, em Gestalt-terapia valoriza-se muito o presente. É no agora que a
vida é possível e nova; o momento não se repete, e ter a capacidade de vivê-lo como
novo a cada instante promove um processo de conscientização continua.
Outra questão existencial que assume importância central na Gestalt-terapia e que por
certo é herança direta da filosofia oriental é o conceito de nada, vazio. Segundo a
Gestalt-terapia, “o nada é um lugar” psíquico fundamental para se estar, dependendo
do momento; é nele que o indivíduo pode entrar em contato com a experiência de ser,
sendo o que é. É esse ponto zero que antecede o momento de criação, cm que
qualquer coisa é possível.
Perls freqüentemente referia-se a dois tipos de vazio:
o estéril e o fértil, sendo esse segundo tão vazio quanto o primeiro porém configurando-
se como terreno fértil para novas possibilidades.
Assim, ficar com o nada, poder prescindir de pensamentos e racionalizações para se

80
chegar às emoções é caminho possível para o crescimento, tanto que Perls (1969)
afirmava: “Perca a cabeça, chegue aos sentidos”.
Podemos perceber claramente ainda outros pontos em com o pensamento oriental,
conforme nos esclarece Ginger (1987): a expressão livre e espontânea, a importância
do corpo como morada do espírito, a libertação das introjeções moralizantes e o
trabalho de integração das polaridades. É clara, portanto, sua influência sobre a
Gestalt-terapia, no sentido de conceber sua abordagem, procurando integrar o homem,
um homem sempre potencialmente capaz, dono de sua própria existência e capaz de
modificá-la a partir de uma aceitação de si mesmo, procurando realizar-se naquilo que
é.
No entanto, é evidente que o pensamento oriental diverge diametralmente do ocidental
e carece de linearidade — tão cara aos ocidentais — ou de teorias construídas de
forma linear, tal como a própria Gestalt-terapia. Não há em seu pensamento um
sistema de crenças ou valores, mas antes um convite deliberado à reflexão e
responsabilidade.
Juntas, essas influências pessoais sofridas por Perls e as teorias de fundo acabaram
por configurar a Gestalt-terapia.
Porém, longe de ser um apanhado desconexo de tudo ou um recorte aleatório de cada
uma das partes, esse todo configurado pôde ser reorganizado e ressignificado de
maneira a criar uma abordagem na qual a originalidade está justamente no resultado
que emergiu de maneira ímpar e inacabada por sua própria constituição, pois a partir
do que é dado é possível cada um trilhar o próprio caminho da existência aqui e agora.
O homem ocidental, ao deparar-se com o pensamento oriental, necessita de uma
mudança de paradigma para que possa apreender o cerne de seus pressupostos; isso
porque, culturalmente, temos tendência em fazer prevalecer a razão sobre a emoção.
Existe preocupação maior com o imediato e material, aspectos que são colocados em
segundo plano na perspectiva oriental de pensar a vida.
O pensamento oriental tem uma concepção orgânica de homem e mundo, segundo a
qual ambos estão interligados, interagindo em dependência e sintonia um com o outro.
147

@@@A GESTALT-TERAPIA

As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e


di
quanto se nos pretenderia J crer.
A maior parte dos acontecimentos é inexprimível,
e ocorre num espaço em que nenhuma palavra
nunca pisou...
Rilke
pós a breve incursão pelas influências que a Gestalt terapia sofreu em sua construção,
81
e de posse da história de vida de seu criador, Frederick Peris, é possível explicitar mais
claramente essa abordagem.
Como vimos, devido ao grande número de influências, encontraremos na Gestalt-
terapia a utilização de termos e conceitos primariamente concebidos em outras teorias,
doutrinas ou abordagens. Perls, porém, “apropria-se” desses conceitos, raramente
atribuindo-os a seus criadores. Entretanto, ele apresenta uma explicação que
aparentemente o isenta dessa responsabilidade.
A maior parte de seus fundamentos pode ser encontrada em muitas outras abordagens
do assunto; o que é novo aqui não são necessariamente as partes e fragmentos que
vão construir a teoria, mas o modo pelo qual são usadas e organizadas e que da a esta
abordagem sua singularidade e o apelo a nossa atenção [ a premissa e que a
organização de fatos, percepção, comportamentos ou fenômenos e não os aspectos
individuais de que são compostos, que os define e lhes dá um significado específico e
particular (1973, p. 18)
Para que seja possível entender do que fala a Gestalt
Consciência
terapia, relacionarei de forma breve seus conceitos centrais, já com características
Gestalt-terapêuticas, independentemente de sua origem.
Embora esses conceitos tenham sido pensados ou inspirados por Perls, alguns não
foram inscritos na Gestalt-terapia por ele. Esse fato deve-se aquilo que já comentamos
em outro momento, um certo descompromisso da parte de Perls em sistematizar sua
abordagem. Outros poucos conceitos, também a partir de seus pensamentos, foram
elaborados por outros teóricos da Gestalt-terapia após a sua morte, procurando
preencher possíveis lacunas teóricas existentes. Sempre que houver algum desses
casos, eles serão evidenciados.
O QUE É GESTALT-TERAPIA
A Gestalt-terapia é uma abordagem psicoterapêutica nascida da inter-relação de várias
escolas filosóficas e teóricas a partir da organização específica que seu criador,
Frederick Perls, construiu.
De fato, o modo peculiar de organização dos conceitos articula uma forma de conceber
o ser humano na qual o processo prevalece sobre o evento, a construção sobre o
resultado.
Não é demais lembrar que a concepção da Gestalt-terapia é da autoria de Perls,
embora existam, entre outros, dois articuladores teóricos que organizaram e
acrescentaram algumas idéias à abordagem, podendo então ser considerados co-
autores da Gestalt terapia: Lore Perls e Paul Goodman.
Para a Gestalt-terapia, a existência humana é definida segundo a relação campo-
organismo-meio, sendo impossível conceber o ser humano fora do contexto e do meio
no qual ele está inserido, e das relações que estabelece a paror daí.
O processo de conscientização é fundamental, pois é a partir dele que o indivíduo pode
estabelecer contatos de boa qualidade, responsabilizando-se por sua existência e
assumindo plenamente seu potencial, que nada mais é do que a auto-realização.
Por isso convém resgatar o conceito de consciência em Gestalt-terapia; embora
possamos encontrar as palavras “consciência” e “conscientização” na explanação

82
teórica da Gestalt-terapia, o termo awareness (embora não seja tradução exata) parece
ser mais adequado para definir o que é a tomada de consciência ou a própria
consciência, uma vez que em Gestalt-terapia dificilmente encontramos conceitos
absolutos, mas sim relacionais e funcionais.
Pensando então em awareness como sinônimo de consciência ainda que com
restrições, conforme explicitado em sua definição —, vejamos o que nos diz Perls:
Eu fi da tomada de consciência o ponto central da minha aborda reconhecendo que a
fenomenologia é o passo básico e indispensável no sentido de sabermos tudo que é
possível saber. Sem consciência nada há, sem consciência há vazio. (1969, p. 88)
Au
Há em todo organismo um princípio de auto-regulação, ou homeostase, responsável
pela satisfação de necessidades e pelo conseqüente equilíbrio organísmico..
Como no item anterior esse processo fica claro, cito aqui apenas a relevância de tal
pensamento para a Gestalt-terapia.
A vida aqui e agora
Essa é a única possibilidade de existência, posto que o ontem já foi e o amanhã não
chegou. Mesmo que o indivíduo teça fantasias sobre o futuro, ou rememore o passado,
isso está sendo feito aqui e agora e tudo que há para saber está disponível neste
momento.
Tal idéia define por si mesma grande parte dos pressupostos gestálticos; pensar assim
equivale a ficar com o aspecto fenomenológico de cada momento, e quando isso não é
possível instala-se a ansiedade.
Para Perls, a ansiedade é um distúrbio relativo à impossibilidade de permanecer no
presente, por isso projetamos fantasias a respeito do que ainda não foi:
A ansiedade é a tensão entre o agora e o depois. (1969, p. 203)
Sempre que não estamos seguros de a dos nossos papéis, desenvolvemos a
ansiedade [ ligamos isso com o fato de toda a realidade estar no agora, e sempre que
abandonamos aposição segura de estar em contato com apresente, e saltamos para o
futuro em fantasia perdemos o apoio para a nossa orientação [ Apalavra ansiedade tem
sua conotação derivada da palavra latina “angústia “, passagem estreita. O excitamento
não pode fluir livremente [ (1969, p. 20 4-5)
Podemos entender, portanto, a importância central dos aspectos descritos, uma vez
que antes de mais nada são total mente consoantes com os pensamentos filosóficos
que norteiam a Gestalt-terapia.
É importante ressaltar um aspecto específico relativo à força no presente, tal como a
Gestalt-terapia apregoa. Pode parecer que não há lugar para o passado da pessoa e
sua história, nem mesmo para os fatos marcantes de sua existência; isso não é
verdade, pois seria um paradoxo. Paradoxo porque a abordagem gestáltica volta-se
para o todo, e em muitos aspectos somos a totalidade de nossas experiências, o que
implica dizer que não reconhecer o passado significa alijar do indivíduo uma parte que o
compõe.
Entretanto, falar sobre o passado não traz energia suficiente para presentificá-lo nem
possibilidade de integrá-lo ao presente de modo a propiciar crescimento. Da mesma
forma, viver como se estivesse no passado ou futuro retira qualquer possibilidade de
83
viver o único momento possível: o agora.
Preval do como sobre o porquê
A Gestalt-terapia valoriza o processo de viver, enquanto a explicação, o motivo de
determinado fato, muitas vezes são desconsiderados sob o ponto de vista do auto-
desenvolvimento, uma vez que explicar geralmente distancia a pessoa da emoção
contida em determinado ato ou circunstância.
Ao expor determinado motivo que o levou a agir dessa ou daquela forma, a pessoa em
geral usa a explicação para racionalizar e não raro encontra motivos suficientemente
auto-convincentes para permanecer com um repertório de respostas pouco criativas
diante dos fatos novos que se desvelam a cada momento.
Um exemplo disso é a pessoa que diz ser organizada ao extremo com suas coisas por
ter aprendido isso com sua mãe e que ressalta não conseguir fazer de forma diferente,
ainda que muitas vezes se sinta cansada e frustrada por não conseguir deixar as coisas
como acha que devem ficar. Ao justificar seu comporta mento, ela não consegue tomar
consciência de que repete compulsivamente um padrão comportamental adquirido, e
mais, não toma contato com seu desejo, permanecendo obscura para ela qualquer
possibilidade de mudança de atitude.
Pode ser esclarecedor conhecer como essa pessoa age perante suas exigências
consigo mesma e as exigências externas pode ser esclarecedor, pois dessa forma ela
toma contato com seu modo de agir e com as muitas outras possibilidades que se
configuram a partir dessa consciência.
Perls (1970) afirma que a tentativa de explicar o evento pelo seu precedente leva a
pessoa a misturar recordações com história, causando uma confusão que acaba sendo
acrescida dc explicação racional. Na abordagem gestáltica há a tentativa de
compreender a existência de qualquer evento por meio do processo, prevalecendo,
portanto o como sobre o porquê.
Spangenberg (1996) lembra:
O “como” sempre nos refere à experiência presente, ao que estamos fazendo agora, ao
como organizamos nosso ser no mundo, O “porquê” nos refere ao passado, à memória,
à abstração, às categorias que deixam inalterada nossa forma de ser, convertendo a
experiência de estar vivo numa abstração segura e conveniente. (p. 112)
Considero importante introduzir aqui um último conceito, a fim de propiciar uma melhor
visão do todo (muito embora meu objetivo primeiro não seja esgotar todas as
conceituações encontradas na Gestalt-terapia). Trata-se do conceito de polaridades,
herdado basicamente do pensamento oriental do yin e yang — segundo o qual todo
inteiro contém em si seu oposto. Com a influência desse aspecto taoístico Perls (1969)
concebe a existência de polaridades no psiquismo humano.
Essas polaridades devem ser integradas, e não destruídas. Tomemos o exemplo do
ódio como polaridade do amor; nenhum dos dois sentimentos tem valor absoluto, e o
funcionamento organísmico saudável prevê que cada um desses sentimentos possa ser
vivenciado em situações em que sejam compatíveis.
Em nível psíquico também existem as polaridades que Perls (1969) denominou top dog
(relativo ao aspecto da personalidade que domina com regras e padrões morais) e
Iinder do,g (relativo ao aspecto que é dominado porém se defende com jogos ou
sedução). A possibilidade de integrar essas partes não presume interação “justa” (meio

84
a meio) mas uma dinâmica na qual um lado não precisa prevalecer sobre o outro,
possibilitando assim uma relação capaz de promover o crescimento do indivíduo.
Essas premissas certamente nos ajudarão a compreender o processo psíquico do ser
humano segundo a óptica gestáltica.
Este capítulo abriu com a tentativa de esclarecer o que é a Gestalt terapia; Perls, assim
a definiu:” Gestalt! Como posso fazer entender que Gestalt não é só mais um conceito
inventado pelo homem? Como posso dizer que Gestalt é — e não só para a
psicologia — algo inerente à natureza?”. (1969,p. 79)
CONCEITOS CENTRAIS
Com o objetivo de promover maior compreensão da abordagem, serão apresentados
nesta parte os conceitos centrais em Gestalt-terapia: homeostase, figura e fundo,
awareness, contato e fuga, saúde e doença e ajustamento criativo.
Horneosfase
Esse conceito é fundamental para entender a Gestalt terapia, pois a partir dele
fundamentam-se todos os outros.
Nossa premissa se é que todos os comportamentos são, governados pelo processo
que os cientistas chamam de homeostase e que os lez chamam de adaptação. O
processo homeostático é aquele pelo qual o or mantém seu equilíbrio, e
conseqüentemente sua saúde, sob condições diversas. A homeostase e; portanto, o
processo através do qual o oiganismo satisfatórias necessidades. Uma vez que suas
necessidades são muitas e cada necessidade perturba o equilíbrio, o processo
homeostático perdura o tempo todo [ .j Desta forma, poderíamos chamar o processo
homeostático de processo de a//to-re o processo pelo qual o organismo intera com seu
meio [ (1973, pp. 20-1)
Assim, utilizando-se de um conceito de origem biológica, ou seja, o princípio geral de
auto-regulação dos organismos vivos enunciado por Cannon cm 1926, Peris empresta
do termo “homeostase” uma função aplicável não somente aos aspectos fisiológicos
mas também aos psicológicos, posto que sua visão de homem pressupõe
indivisibilidade, ou seja, trata-se de uma visão eminentemente holística. Na verdade,
essa indivisibilidade nos remete a um pressuposto contido na psicologia da Gestalt,
segundo o qual o todo é diferente da soma de suas partes.
É, portanto na relação com o mundo que o indivíduo retira subsídios para a
manutenção da sua existência, a partir da demanda organísmica do momento.
Evidentemente esse processo é cíclico e constante, porém há as necessidades “fixas”,
isto é, inerentes à manutenção da sobrevivência da espécie, e outras regidas por uma
miríade quase infinita de possibilidades.
Em relação à satisfação das necessidades e como elas podem surgir
concomitantemente, existe uma dinâmica interna que possibilita hierarquizá-las, pois
poderá ser satisfeita apenas uma por vez.
Torna-se então evidente a íntima relação estabelecida entre os conceitos de
homeostase, de figura e fundo e também de contato e fuga, como veremos adiante.
E possível afirmar que a figura é a necessidade que emerge a cada momento a fim de
ser satisfeita; fundo é toda a gama infinita de possibilidades de outras vivências,
necessidades e percepções que naquele instante cedem lugar para o surgimento e

85
configuração de uma necessidade dominante. E pelo contato ou fuga do meio,
dependendo da demanda, que o indivíduo pode obter a satisfação de suas
necessidades.
Para a Gestalt é do equilíbrio homeostático que depende a saúde do indivíduo.
h8ura e
Conforme foi descrito, quando o organismo se depara com várias necessidades
simultâneas a serem satisfeitas (físicas ou emocionais) e tenta estabelecer um
equilíbrio homeostático, ocorre uma hierarquização:
Desde que seja incapaz de fazer adequadamente mais de uma coisa de cada vez o
organismo se encarrega da necessidade de sobre vivência dominante antes de cuidar
de qualquer das outras; age, em primeiro lugar, de acordo com o princípio das coisas
fundamentais [ Formulando esse princípio em termos da Psicológicos da Gestalt,
podemos dizer que a necessidade dominante do organismo, em qualquer momento, se
torna afigura do primeiro plano, e as outras necessidades recuam, pelo menos
temporariamente,para o segundo plano (Perls, 1973, p. 25)
A necessidade a ser satisfeita imediatamente é a figura, e a que passa ao segundo
plano, o fundo.
Esse processo, dinâmico por excelência, quando em funcionamento harmonioso leva o
indivíduo a “fechar a Gestalt” de determinada situação ou necessidade, conforme Perls
relata:
Para que o indivíduo satisfaça suas necessidades, feche a Gestalt, passe para outro
assunto, deve ser capaz de manz a siprot’rio e ao seu meio pois mesmo as
necessidades puramente fisiológicas só podem ser satisfeitas mediante a interação do
organismo com o meio” (1973, p. 24)
É da plasticidade da interação entre essa dinâmica figura e fundo que o indivíduo
interage com o meio, constituindo aquilo que em Gestalt-terapia denominamos de ciclo
de contato.
Em relação às características desses conceitos herdados da psicologia da Gestalt, é
Ponciano quem nos esclarece: “A figura não é uma parte isolada do fundo, ela existe no
fundo. O fundo revela a figura, permite à figura surgir [ (1985, p. 72)
Awareness
Em nosso idioma esse conceito não tem tradução compatível com sua complexidade.
Barros explica:
Awareness é uma palavra que não possui correspondente preciso em nosso idioma.
Em geral é traduzida por “consciência”, porém, seu significado é muito mais amplo. No
sentido psicológico o equivalente em inglês de “consciência” seria consciousness.
awareness, porém, possui uma conotação que transcende este sentido envolvendo um
aspecto maior de “consciência”. Assim, awareness pode significar “consciência”,
“conheci mento”, “ciência”, “atenção”, “percepção”, ou “sensação da presença de algo”
[ (Barros, apud Stevens, 1988, p. 11)
Pode-se afirmar que awareness é um processo de contato na relação estabelecida
entre campo, organismo e meio, com qualidade acentuada de atenção e sentido.
Ainda sobre uma possível definição de awareness, Yontef postula três corolários sobre

86
o tema:
Awareness é uma forma de experienciar. É o processo de estar cm vigilante contato
com o evento mais importante do campo organismo meio, com pleno suporte sensorio-
motor-emocional-cognitivo-energético. Um contínuo de awareness, fluido e não
interrompido, leva a uma descoberta, uma apreensão imediata da unidade óbvia de
elementos isolados no campo. Através desse contato, novos “todos” são criados F
(1984, p. 29)
Corolário 1: Awareness só é eficiente quando fundamentada e energizada pela
necessidade predominante presente no organismo.
Assim, não basta estar em contato, pois o indivíduo pode realizar determinada tarefa
mecanicamente, com a energia “pulverizada” em outra necessidade.
Corolário II: Awareness não é completa sem o conhecimento direto da realidade da
situação e de como se está nela.
Este corolário está conectado com o pressuposto de responsabilidade de cada um;
estar em uma situação de modo pouco responsável, envolvido sem a real apreensão do
que se está fazendo e como se está fazendo, não significa estar aware.
Corolário III: Awareness é sempre aqui e agora. E mutante, desdobrando-se e
transcendendo-se.
Awareness é sensorial e não mágica. Ela existe. Tudo que existe, existe aqui e agora.
O passado existe agora sob a forma de memórias, remorsos, rancores, tensão corporal
[ o futuro não existe, exceto agora, como fantasias, esperanças, expectativas.
Na Gestalt-terapia enfatizamos awareness no sentido de saber o que eu estou fazendo
agora, na situação que está sendo. E não confunde-se esse estar sendo com o que foi,
poderia ter sido, poderia ser. Nós guiamos nosso procedimento baseados na
awareness do que é, energizando a figura em questão no presente e com vivo
interesse.
O ato de awareness é sempre aqui e agora, mesmo que o conteúdo da awareness
esteja distante. Saber que agora eu estou rememorando é muito diferente do que cair
no ato de lembrar sem awareness. Awareness é experienciar e saber como e o que eu
estou fazendo agora.
O agora muda a cada momento. Awareness é um processo dinâmico e exclui um modo
imutável de ser e de ver o mundo (figura fixa) [ (Yontef, 1984 30-1)
Contato e fuga
Este conceito é também nomeado de contato/retração, especialmente quando é
empregado no contexto do ciclo de contato. Aqui utilizo contato/fuga por ser o termo
mais utilizado por Perls.
O contato e a fuga são opostos dia/éticos. São descrições dos caminhos pelos quais
encontramos os fatos psicológicos. São nossos meios de lidar na fronteira de contato
com objetos do campo. No campo/organismo/meio as catexis positiva e negativa
(contato e fuga se comportam de maneira muito semelhante às forças de atração e
repulsão do magnetismo. De/à/o, o campo total or meio é uma unidade dialeticamente
diferenciada. E diferenciada biologicamente em organismo e meio, psicoIo em si
mesmo e o outro, moralmente em egoísmo e altruísmo, cientificamente em subjetivo e
objetivo etc.

87
Quando o objeto catexial, seja sua catexis positiva ou negativa, for apropriado ou
destruído, contatado ou dele se fugiu, ou relacionado de algum modo satisfatório com o
indivíduo, tanto ele quanto a necessidade a que está associado desaparecem do meio;
a Gestalt está fechada [ Contato e fuga, padrão rítmico, são nossos meios de satisfazer
vo.r.ra necessidade de continuar os progressivos processos da vida. (Perls, 1973, pp.
36-7)
O conceito de fuga em Gestalt-terapia assume aspecto bastante relativo; fugir não
significa necessariamente um comporta mento defensivo neurótico. O que determina a
adequação e
161
asserção desse comportamento está relacionado com a awareness envolvida na
situação.
Se ao encontrar um animal feroz numa floresta o indivíduo empreende uma fuga, não
seria adequado supor que seja indício de comportamento neurótico, mas antes indício
de um comportamento perfeitamente saudável, segundo o qual aquele contato
construtivo deve ser evitado por meio da fuga.
O contato ocorre na fronteira entre o indivíduo e o mundo (denominado cm Gestalt-
terapia de fronteira de contato). Ginger (1985) utiliza-se de um exemplo para explicitar
esse conceito: a pele como fronteira de contato que delimita o indivíduo, fazendo com
que ele perceba o dentro e o fora de si, ao mesmo tempo que recebe e dá notícias
suas do e para o mundo. Nesse aspecto a fronteira é sentida como contato e também
como isolamento.
O contato é estabelecido para que o indivíduo possa satisfazer uma necessidade ou
fechar uma figura, e após a obter esse resultado existe uma retração para que surja
nova necessidade, novo contato, assimilação e retração. A esse processo a Gestalt
terapia denomina ciclo de contato. Esse conceito será visto posteriormente em
“funcionamento organísmico em Gestalt-terapia”.
Saúde e doença
Devido à influência do holismo, na Gestalt-terapia saúde está longe de significar pura e
simplesmente ausência de doença.
Pensando no processo homeostático descrito antes, pode ríamos pensar em saúde
como um processo sempre cambiante, em que por meio de uma interação adequada
com o meio o organismo satisfaz suas necessidades.
Obviamente essa visão engloba todos os aspectos do ser humano como um todo
organizado; o físico, o psíquico e o espiritual somam-se numa configuração indivisível
cujo funcionamento é harmônico.
A capacidade de interagir com o meio é potente, e o indivíduo utiliza-se do ajustamento
criativo para obter a satisfação de suas necessidades, que nesses casos estão
hierarquizadas de maneira inequívoca.
Pensando num estado de equilíbrio, o indivíduo de posse plena de suas potencialidades
tem condições de interagir com o mundo, promovendo um fluxo constante de
surgimento de figuras e seus fechamentos.
Para Perls, a Gestalt-terapia serviria a todas as pessoas, e não apenas às “doentes” —
ainda que a “doença” fosse de caráter psíquico , porque o desequilíbrio homeostático

88
em si, quando perene, constituiria doença naquele que supostamente avaliamos como
saudável.
Quando o processo homeostánco é mantido, permanece o estado de saúde, ainda que
em condições adversas.
Toda a vida é caracterizada pelo uso contínuo de estabilidade e desequilíbrio no
o1gamsmo. Quando o processo homeostático falha, em al escala, quando o organismo
se mantém num estado de desequilíbrio por muito tempo, e é incapaz de satisfazer
suas necessidades, está doente. Quando falha o processo homeostático, o organismo
morre. (Perls, 1973, p. 20)
Devido às características desse processo, Perls chama-o também de auto-regulação.
Para a Gestalt-terapia o termo “saúde” pode, a grosso modo, ser substituído por
“crescimento”, uma vez que reconhecidamente o conceito hermético de saúde, ligado a
ausência de doenças, tem se tornado anacrônico.
Mas uma ressalva de ser feita, pois embora o conceito de saúde ainda esteja
subordinado ao dc “não-doença”, Ginger (1985) lembra que a definição mais recente da
Organização Mundial de Saúde (OMS) define: “A saúde não é a ausência de doença ou
enfermidade, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social”. (p. 14)
Peris (1977) define simplesmente: “Saúde é um equilíbrio apropriado da coordenação
de ti/do aquilo que somos.” (p .20)
163
Ajustamento criativo
Este termo refere-se aos ajustamentos possíveis entre o indivíduo e o meio que
possam promover de alguma forma o fechamento de figuras.
Quando falo em “fechamento de figuras” não estou afirmando que houve
necessariamente uma resolução que evoluiu a bom termo no que se refere a valores
preestabelecidos do que seria “bom” ou “ruim”, mas sim uma interação com o campo,
na que por meio do contato o indivíduo possa optar por uma decisão que lhe pareça a
melhor no sentido de cumprir a demanda organísmica que se torna figura naquele
momento.
Assim, pensando no termo ajustamento criativo e desmembrando-o, podemos entender
que esse processo demanda um ajustamento possível naquele momento, porém
interagindo criativamente dentro do campo de interação.
Nesse sentido, poderíamos pensar no processo de auto regulação como suficiente para
estabelecer contatos de boa qualidade, mas apenas isso não é suficiente.
Perls, Hefferline e Goodman (1997) esclarecem:
[ Dada a novidade e a variedade indefinida do ambiente, nenhum ajustamento seria
possível somente por meio da auto-regulação herdada e conservativa; o contato tem de
ser uma transformação criativa. Por outro lado, a criatividade que não está
continuamente destruindo e assimilando um ambiente dado na percepção, e resistindo
à manipulação, é inútil para o organismo e permanece superficial, faltando-lhe energia
[ (p. 211)
A partir desses conceitos centrais, podemos iniciar uma tentativa de apreensão do que
é a Gestalt-terapia, tendo em vista que nela a referência básica de raciocínio remete-

89
nos a processo e não a estrutura.
O EUNCIONAMENTO ORGANÍSMICO EM GESTALI—TERAPIA
Vimos até agora os conceitos básicos em Gestalt-terapia e também seus postulados.
Na tentativa da apreensão de um todo cada vez mais integrado, veremos agora suas
articulações no funcionamento organísmico de cada indivíduo.
Quando o termo “organísmico” é utilizado, a referência da abordagem gestáltica é a da
teoria organísmica de Goldstein, que conforme vimos anteriormente — pressupõe o
homem como pessoa una, integrada e organizada. Aqui, portanto, a visão organísmica
subentende indivisibilidade do ser humano, afirmando que o que ocorre em uma parte
afeta o todo. E uma visão eminentemente holística, e concebe o homem somente em
interação com seu meio. Logo, falamos de um homem em interação, e mais, de um
homem que se auto-regula enquanto totalidade.
Organismicamente, há uma gama infinda de necessidades a serem satisfeitas a cada
instante; essas necessidades podem ser basicamente fisiológicas (fome, sono etc.) ou
psíquicas (aceitação, afeto etc.).
É no mundo que o indivíduo vai buscar as satisfações de suas necessidades, e para
que ele as obtenha precisa antes de mais nada, discriminar a cada momento a
necessidade dominante, isto é, a figura a ser fechada. Esse homem está o tempo todo
em relação com o seu meio; isso significa que não é possível desvinculá-lo do mundo
onde está inserido para compreendê-lo.
Esses pressupostos levam a uma linha de raciocínio na qual o processo sempre
prevalece. Tal processo de reconhecer e satisfazer uma necessidade é chamado de
formação e destruição de Gestalt.
É importante esclarecer que o termo “destruição” está ligado a assimilação, resolução,
e funciona da seguinte maneira: surge uma necessidade (no caso de mais de uma
necessidade concomitantemente, o organismo as hierarquiza para que apenas uma
fique como figura) a partir da qual surge uma tensão, pois o organismo se desequilibra,
ocorrendo uma mobilização para a ação (busca da homeostase), que implica interagir
com o meio para satisfazer a necessidade dominante (que é a figura). A essa ação
denominamos contato. Porém, dependendo da situação pode ser também rejeição, isto
é, a necessidade dominante do momento leva à fuga. Quando há a necessidade é
satisfeita, a figura volta ao fundo; ao surgir uma nova necessidade ou figura o ciclo
reinicia.
Esse é o processo denominado em Gestalt-terapia de ciclo de contato, isto é, o
processo estabelecido na dinâmica figura/fundo, para obter a satisfação de
necessidades.
O fundo é composto por aspectos individuais da pessoa mas refere-se basicamente à
história de vida — com todos os aspectos que a compõe (situações inacabadas, fluxo
da experiência presente, crenças, filosofia de vida, religião, mecanismos de defesa
etc.) — e é contra ele que a figura se delineia.
Algumas figuras podem ser chamadas de fixas ou cristalizadas; são aquelas que não
obtiveram seu fechamento, pressionando o organismo constantemente na busca de
sua satisfação. O acúmulo delas leva à neurose.
Ciclo de contato é uma noção básica em Gestalt-terapia desenvolvida por Perls,
Goodman e Hefferline (1951) em cesia/i Iheinpj, estando incluída na teoria do self.

90
Para que o ciclo de contato se complete, é necessário que a figura se destaque
claramente contra o fundo.
O contato se dá na fronteira de contato, que é o que delimita o indivíduo ao separá-lo e
ao mesmo tempo integrá-lo ao mundo.
Ginger (1985) exemplifica com a pele humana, pois ela contém o indivíduo e ao mesmo
tempo é o órgão de contato com o mundo externo. E na fronteira que ocorre contato.
Conforme vimos, algumas figuras não são fechadas, e esse processo de interrupção
ocorre durante o ciclo de contato.
Dependendo da fase do ciclo em que houve interrupção e da maneira como estava
operando o self naquele momento, teremos diferentes tipos de perda das funções do
ego.
Conforme veremos na teoria do self em Gestalt-terapia, o self na função ego assume
posição ativa, escolhendo e rejeitando aspectos do ambiente; é aí que o indivíduo atua
em relação às suas responsabilidades, fazendo suas escolhas.
Essas perdas de função do ego são análogas aos mecanismos de defesa e na Gestalt-
terapia, mais especificamente para Perls, são classificadas em: introjeção, projeção,
confluência e retroflexão.
E importante ressaltar que não é todo distúrbio do ciclo dc contato ou da fronteira de
contato que pode ser classificado como patológico, tampouco as defesas sào utilizadas
apenas dentro de um funcionamento não saudável.
Ginger (1985) esclarece:
Esses mecanismos de defesa, ou a tentativa de se evitar o contato podem ser
saudáveis ou patológicos, conforme sua intensidade, sua maleabilidade, o momento em
que intervém, e de uma maneira mais geral, sua oportunidade [ Cabe especificar
porém, que a Gestalt-terapia, contrariamente a outras abordagens, não visa “arrancar”,
vencer ou superar as resistências, mas principalmente torná-las mais conscientes, mais
adaptadas a situação do momento [ E claro que essas resistências podem ser normais
e necessárias ao equilíbrio psicossocial: elas são, no mais das vezes, uma reação
saudável de adaptação. Somente suas exacerbações, e principalmente sua
cristalização em momentos impróprios constituem um comportamento neurótico. (pp.
132-3)
O SELE EM GESTALT—TERAPIA
Teorizar Gestalt-terapia não é tarefa fácil. Seu criador, Frederick Perls, por seu estilo, e
mais, pela própria abordagem que criou, “viveu” esses conceitos gestalticamente,
promovendo a cada evento de sua própria existência, assim como a cada nova
descoberta — não dos conceitos em si, uma vez que a maioria deles foi pensado e
reorganizado a partir de teorias já escritas, j mas da nova configuração daí resultante ,
uma nova possibilidade de articulação entre os conceitos, “vitalizando” a abordagem
que ele denominou Gestalt-terapia.
Esse aspecto, porém, não deve impedir uma análise acadêmica, em que a Gestalt-
terapia possa figurar cada vez mais como abordagem consistente que é.
Penso que o estudioso que se proponha a tal empreitada precisa, sem abrir mão do
rigor teórico e metodológico, necessariamente fazer a priori um exercício de mudança
de olhar. A linearidade não leva necessariamente a uma compreensão daquilo que se

91
quer expor, mas sim um movimento dialético e reflexivo profundo, de maneira a
proporcionar ao leitor a apreensão do todo, ao compreender o processo e não uma
visão segmentada de cada um de seus conceitos.
Pelo exposto, talvez o conceito de self em Gestalt terapia seja aquele que mais se inter-
relacione, pois sua funcionalidade constante pode ser comparada a uma fronteira do
contato permeável.
Convém ainda lembrar que, genericamente, a palavra self é utilizada quase como um
sinônimo de “eu” ou “eu mesmo”, determinando, portanto, uma característica de
instância psíquica, ou seja, um lugar em mim mesmo que sou “eu”. Vejamos o que é a
teoria do self em Gestalt-terapia.
Embora as raízes de tal conceito remontem aos escritos de Perls, foi Goodman quem
articulou tal teoria, que consta no livro Gesta/t-t/ierapy (1951), escrito em parceria com
Hefferline e Perls; sua compreensão depende, conforme apontado antes, não da
compreensão anterior, mas da concomitante à de outros conceitos que se integram ou
subjazem a este.
Parece que Perls também pensou nos primórdios da construção desse conceito na
palavra “eu”, não como um precursor dc sclf ou seu substituto, mas antes como um
questionamento
que pode ter servido a Goodman como base. Esse relato aparece em seu livro
autobiográfico, no qual Perls (1969) procura fechar uma Gestalt forte em relação ao
que pensou e pensa sobre sua vida e a Gestalt-terapia:
O que é “eu”? Uma composição de introjetos (conforme sugeriu Freud)? Uma coisa que
o neurologista pode localizar no cérebro? O organizadas nossas ações? O capitão da
minha alma? Nada disso... O “eu” é experiência da figura em primeiro plano.
E a soma de todas as necessidades emergentes, o recinto de sua satisfação.
E o fator constante dentro da relatividade das exigências internas e externas.
E o agente responsável por aquilo com que se identifica. Responsável, capaz de
responder à situação, e não “responsável” no sentido moralista de assumir obrigações
ditadas pelo dever... Reconhecemos que “eu” não é uma coisa estática, mas um
símbolo para uma função de identificação [ (pp. 138-9)
Foi provavelmente a partir dessas reflexões e de outras mais, tanto de caráter pessoal
como teórico, que Goodman postulou (muito embora essa definição seja atribuída
oficialmente à Peris, Hefferline e Goodman em Gestalt-therapy).
Self é o sistema complexo de contatos necessários ao ajustamento no campo imbicado
[ não deve se pensar o se/f como uma instituição fixada; ele existe onde quer que haja
de fato uma interação de fronteira, e sempre que esta existir... o se/f pode ser
considerado como estando na fronteira do organismo, mas a própria fronteira não está
isolada do ambiente; entra em contato com este, e pertence a ambos, ao ambiente e ao
organismo [ (p. 179)
Essa definição, um tanto obscura, acabou por cair em desuso pelos Gestalt-terapeutas;
provavelmente pela complexidade. Em relato registrado no livro de Ginger (1985),
Simkin, Gestalt terapeuta renomado e colaborador direto de Perls, escreve a seu não
menos renomado colega Latner a respeito de Gestalt-therapy fazendo referência à
“obscuridade” do livro que traz a teoria em questão: “O cuidado de Goodman é
evidente, mas sou incapaz de captar alguns de seus saltos... Não recomendo
92
absolutamente o volume II aos estudantes que tentam aprender Gestalt-terapia e
compartilho com eles minhas próprias dificuldades com este volume”. (p. 126)
Para que seja possível compreender essa teoria é necessário refletir sobre o processo
que ela encerra.
Pensando assim, o self não pode ser considerado como instância, mas como sistema
cuja função é variável dependendo da necessidade organísmica e do meio no qual esse
organismo busca sua satisfação. Se é que há uma localização para o self, ela pode ser
considerada como a fronteira do organismo, “lugar” que delimita o indivíduo, isolando-o
do meio, e ao mesmo tempo colocando-o em contato com o mesmo. Esse “lugar” serve
apenas para efeitos didáticos, uma vez que é muda a cada momento, a cada contato.
O self portanto propicia e age como integrador de experiências, e quando falamos em
experiências não podemos deixar de pensar em percepção num sentido amplo.
Quando um contato é estabelecido a fim de satisfazer uma necessidade, há interação
entre as várias forças organísmicas, tanto físicas como psíquicas, e se este contato
atinge seu objetivo configura-se uma Gestalt impulsionadas pelo self, que nada mais é
senão o processo de figura-fundo em situações de contato.
A “força” do self é diretamente proporcional à demanda de energia necessária para o
fechamento de determinada figura, portanto ele tanto mais está presente quanto mais
difícil for a necessidade a ser satisfeita. Aqui o self assume a função de mediador, ao
promover o ajustamento criativo necessário, e quando há a resolução ele perde a
intensidade, uma vez que a demanda diminui sensivelmente.
O self, portanto, também se “auto-regula”, aparecendo mais intensamente quando há
maior conflito entre figura e fundo.
A teoria de Goodman exemplifica esse aspecto, lembrando- nos que é necessário um
self mais ativo para obter alimento quando a fome vira figura, do que para a deglutir e
digerir, ocasiões cm que há um self reduzido. (1951)
O self é, portanto, potencialidade, força integradora organísmica que se auto-regula a
cada momento, dependendo da demanda. Mas aqui estamos falando de funcionamento
saudável. O que ocorre quando esse processo faU por algum motivo?
Lembremos que para a Gestalt-terapia a neurose nada mais é do que o acúmulo de
figuras inacabadas. Como funcionaria então o self na neurose?
Diz-se que inibição do self na neurose é uma incapacidade de conceber a situação
como estando em mutação, 0/1 sofrendo outro processo; a neurose é uma fixação no
passado que não muda. Isso é verdadeiro, mas a função do se/f é mais do que o
processo de aceitar as possibilidades, é também a identificação e a alienação destas, o
criativo alcançando uma nova figura, é diferenciar entre as respostas “obsoletas” e o
comportamento novo e início que é exibido. (Perls, Goodman e Heferiline, 1951, p. 181)
Lembremos que tanto no funcionamento saudável como naquele cm que há neurose
com respostas obsoletas a novos chamados, o self assume uma característica
relacional, ou seja, é específico para cada um com o seu ser e estar no mundo.
Latner propõe outra definição de self, que pode promover maior compreensão do
conceito: “O self é nossa maneira particular de estarmos envolvidos em qualquer
processo, nosso modo de expressão individual em nosso contato com o meio [ .1 Ele é
o agente de contato com o presente, que permite nosso ajustamento criador.” (1985, p.

93
127)
O self é espontâneo, e para que possamos entender o que isso significa vejamos a
definição de espontaneidade para Goodman:
À espontaneidade é o sentimento de estar atuando no organismo! ambiente que está
acontecendo, sendo não somente seu artesão ou seu artefato, mas crescendo dentro
dele. A espontaneidade não é diretiva, nem auto diretiva, e nem nada a está
arrastando, embora seja essencialmente descompromissada, mas é um processo de
descobrir e inventar à medida ( prosseguimos, engajados e aceitando o que vem.
(1951, p. 182)
170
171
Essa característica imprime ao self uma gama infinita de possibilidades integradoras
entre o indivíduo e seu campo; exemplo dessa espontaneidade, podemos pensar nos
sentimentos, que simplesmente aparecem no contato estabelecido em deter minada
situação.
Já que o self assume essa “plasticidade” em relação a sua função, pode assumir a
função ou aspecto de Ego, Id e Personalidade, muito embora essas três funções
tenham mais efeito didático do que uma correspondência total com a realidade, posto
que viver é processo e existe a subjetividade e a peculiaridade de cada um.
Aqui, Id, Ego e Personalidade são concebidos como aspectos e/ou funções do self.
FUNÇÃO ID: de todas as funções, é a que parece necessitar menos de “consciência”,
uma vez que está ligada às funções e atos automáticos, como a satisfação de
necessidades vitais e pulsões internas.
FUNÇÃO EGO: trata-se de uma função ativa do self em que há deliberação de atitude
por parte do indivíduo, tanto no sentido de assimilação como no de rejeição. A partir da
tomada de consciência, o indivíduo deliberadamente manipula o ambiente, contatando-
o ou fugindo, dependendo do movi mento que precisa fazer, ou melhor, do tipo de
contato que precisa estabelecer para fechar uma Gestalt.
FUNÇÃO PFRSONALIDADE está intimamente ligada à auto- imagem de cada um; a
grosso modo, é como cada um se percebe. Esta função tem por tarefa básica
assegurar a integração das experiências anteriores, construindo a identidade de cada
um ao longo do tempo.
Essa teoria suscitou e ainda suscita muita polêmica entre os Gestalt-terapeutas, pois
alguns deles, como Tobin, discordam de seus pressupostos. Tobin (1982) critica a
concepção de self como processo e afirma que o self também é estrutura: “Uma das
maiores limitações em Gestalt-terapia é que o foco primário tem sido os distúrbios
funcionais de fronteira, entre a pessoa e seu ambiente, com quase nenhum
reconhecimento de distúrbios estruturais no núcleo da pessoa, ou seja, no self”. (p. 2)
Yontef (1983), outro renomado Gestalt-tcrapeuta, discorda publicamente de Tobin
defendendo a posição de Perls, Goodman e Hefferline: “A Gestalt-terapia é contruída
sobre a idéia da teoria de Campo, que afirma que estrutura e função são inseparáveis,
e que as estruturas humanas são um processo. Não se questiona portanto se as
estruturas existem, mas elas são conceitualizadas como processo [ (p. 7)
Assim, estabeleceu-se uma discussão que ainda hoje podemos considerar como atual.

94
Tobin (1982) afirma que ao pensar em processo descarta-se toda e qualquer
possibilidade de aprofundar um estudo na área da psicopatologia, uma vez que
sabidamente as psicopatologias tem caráter estrutural.
Yontef (1983), por sua vez, concebe plausível a teoria do self em Gestalt-terapia, uma
vez que se refere a estruturas em constante movimento.
Pouco antes de morrer, Perls (1969) manifestou o desejo de aprofundar-se no estudo
da psicopatologia sob o enfoque gestáltico; isso porém não foi possível devido ao
pouco tempo de vida que lhe restou. Talvez esse esclarecimento tivesse ocorrido de
qualquer maneira, a abordagem gestáltica pressupõe acréscimos e reconfigurações
que podem ocorrer a qualquer momento, desde que essa seja uma figura forte para
algum estudioso da abordagem.
Muito embora a Gestalt-terapia não tenha fundamental mente mergulhado na área da
psicopatologia, é nesses conceitos que se baseiam o funcionamento saudável ou
patológico do indivíduo, conforme a perda de função específica que está ocorrendo.
Assim, a perda da função Ego ocasionaria a neurose e a perturbação da função Id, a
psicose.
172
A NEUROSE
Para a Gestalt-terapia a neurose surge a partir de interrupções no fluxo natural de
figuras, tornando-as “inacabadas”. Em função do acúmulo de situações não resolvidas
o indivíduo começa a perder a capacidade de hierarquizar necessidades, cristalizando
determinadas situações e tornando-as “figuras rígidas”. Perls afirma:
Parece-me que o desequilíbrio surge quando, simultaneamente, o indivíduo e o grupo
vivenciam necessidades diferentes, e quando o indivíduo é incapaz de distinguir qual é
a dominante [ O indivíduo que é parte desse grupo, vivência a necessidade de contato
com ele como um de seus primitivos impulsos psicológicos de sobrevivência, embora,
sem dii vida, não experimente necessidade tão proibidamente sempre. Mas quando ao
mesmo tempo sente uma necessidade pessoal, para afia satisfação necessita do
grupo, podem começar os problemas. Na situação de conflitos de necessidades, o
indivíduo tem que ser capaz de tomar uma decisão clara. Se ofar. oujica em contato, ou
foge; sacrifica temporariamente a necessidade menos dominante à mais dominante
epronto! Nem ele nem o meio sofrem qualquer consequência grave. Mas quando não
pode discriminar, quando não pode tomar uma decisão, ou se sente insatisfeito com a
decisão que tomou, não faz um bom contato, nem uma boa fuga, tanto ele quanto o
meio 12 caiu afetados.
(1973, p. 42)
A interrupção dos processos contínuos da vida é tamanha, que acaba por
sobrecarregar o indivíduo, impedindo-o de estabelecer figuras cristalinas e, por
conseqüência, impedindo seu fechamento.
Além do mais, o ritmo de contato/fuga que ele estabelece com o meio está de alguma
forma distorcido, impedindo-o de fechar as Gestalten.
Em Gestalt-teraphi Verba/luz (1969), Perls explica a estrutura da neurose, dividindo-a
em cinco camadas, a saber:
C DOS CLICll1 nessa camada encontramos símbolos e gestos destituídos de sentido e

95
por isso vividos automaticamente.
É o caso dos cumprimentos sociais como “bom-dia” e das frases usadas socialmente
como “que frio, não?”. Segundo Perls, ao utilizarmos esse tipo de comunicação, na
verdade não estamos nos comunicando e sim mantendo um isolamento por meio de
uma relação impessoal e anteparada por esses clichês.
CANI DO DVSFNIPFNI 10 1)1: 1 essa camada se incumbe de mostrar ao mundo e ao
outro aquilo que não somos. Dessa forma, o indivíduo cumprirá aquilo que espera de si
mesmo ou o que ele pensa que esperam dele; alguns podem parecer mais fortes do
que realmente são, outros mais alegres etc.
Em relação a essas duas camadas, Perls (1969) esclarece:
Agora, este nível sintético é o primeiro que deve ser trabalhado e ultrapassado. Eu o
chamo de nível sintético porque ele se adota muito bem ao pensamento dialético. Se
traduz a dialética — tese, antítese e síntese —para “existência”, pode remos dizer:
existência, anti-existência e existência sintética. A maior parte da nossa vida é uma
existência sintética, um meio-termo entre a anti-existência e a existência [ Mas a
maioria de nós dá a aparência daquilo que não é, aparência para a qual razão temos
nosso suporte, nossa força, nosso desejo genuíno, nossos talentos genuínos. (p. 84
IN1P\SSI após as camadas descritas e quando de alguma forma elas podem ser
superadas, ocorre o impasse, que segundo Perls (1969) nada mais é do que a
experiência da anti-existência. Ao vivenciá-lo, o indivíduo sente-se “preso” e “perdido”
em sua própria existência; perde a referência de uma vida segura, plena de papéis a
serem desempenhados e de clichês.
Instala-se então um “vazio”, que quase sempre o indivíduo experiência com fobia e de
alguma maneira tenta afastar, preenchendo esse espaço com atitudes fóbicas. Mas se
o indivíduo “agüenta” permanecer nesse estado de vazio no qual geralmente se
encontra o “escotoma” (ponto cego onde muitas vezes reside o cerne do problema),
acolhendo seu sofrimento e confusão, pode passar para outra camada.
174
Esse processo demonstra, no geral, em que fase do ciclo de contato o indivíduo se
interrompe.
C 1M1 também denominada por Perls (1969) de camada de morte, pois ocorre uma
“paralisia” causada por forças em oposição. A tônica dessa camada repousa no medo
da morte ou numa vivência na qual o indivíduo se identifica como se passasse por um
processo de morte. A maneira de viver que existia até então já não serve, e não há
outra forma para substituí-la.
A polaridade entre manter o funcionamento anterior — obsoleto, mas conhecido e
pouco ameaçador — e transformar a própria existência a partir da percepção do quanto
ela era artificial, leva à paralisação.
À medida que o indivíduo supera esse impasse e toma consciência da paralisia que o
acometeu, inicia um processo de juntar forças, o que acaba por levá-lo à última camada
da neurose.
Lembremos que na abordagem gestáltica a simples tomada de consciência pode
promover mudança no indivíduo.
C 1 a partir do processo descrito, a camada de morte energiza-se, voltando à vida e

96
fazendo o “implodir” tornar-se “explodir”.
Se na implosão havia reinvestimento de energia em si mesmo, agora há a possibilidade
de direcionar essa energia para manter contato com o mundo.
Segundo Perls (1969) essa implosão pode vir na forma de quatro sentimentos básicos:
explosão em pesar genuíno (quando o sentimento de uma perda ou morte pode
finalmente ser vivido em sua plenitude), explosão em orgasmo (quando a energia
sexual é liberada), explosão em raiva (relativa à possibilidade de viver um profundo
ressentimento ou ódio que até então não havia sido percebido e vivido totalmente) e
explosão em alegria de viver (da mesma forma, refere-se a viver determinada alegria
que até então, devido aos papéis desempenhados ou à pouca percepção, não ocorria
plenamente).
Perls (1969) lembra que o desempenho de papéis é em grande parte destinado ao
consumo de energia para o controle dessas explosões, e não para promover uma
existência genuína na qual a tomada de consciência do que ocorre a cada momento faz
da vida algo mais pleno.
A defesas em Gestalt-terapia
Quando as interrupções são constantes e as Gestalten não podem ser fechadas,
origina-se o que Perls (1973) chamou de mecanismos neuróticos. A título de
esclarecimento, vale ressaltar que na Gestalt-terapia esses mecanismos têm sido
denominados de várias formas dependendo do autor, o que gera certa confusão.
Ginger (1985) esclarece: “ de fato, vários autores os definem com vocábulos diferentes:
‘mecanismos neuróticos ou perturbações neuróticas na fronteira do contato’ (Perls),
‘perdas da função dc ego’ (Goodman) [ ‘distúrbios do sclf ou interferências na a
\vareness’ (Latner) [ ‘interrupções no ciclo do contato’ (Zinker) [ (p. 132)
Aqui, evidentemente, ficaremos com o vocabulário empregado por Peris:
Todos os distúrbios neuróticos surgem da incapacidade do indivíduo encontrar e manter
o equilíbrio adequado entre ele e o resto do mundo, e todos têm em comum o fato de
que na neurose o social e os limites do meio sejam sentidos como se estendendo
demais sobre o indivíduo [ sua neurose é uma manobra defensiva para proteger contra
a ameaça de ser barrado por um mundo esma trata-se de uma técnica mais evoluída
para manter o equilíbrio e o sentido de auto-re numa situação em que sente que as
probabilidades estão todas contra ele. (Perls, 1973, p. 45)
Os distúrbios ocasionados a partir daí comprometem a auto-regulação e, por
conseqüência, o crescimento do indivíduo.
O fato de a pessoa utilizar-se das defesas não significa que
176
esteja de alguma forma comprometida em seu desenvolvi mento; todas as pessoas em
determinadas situações utilizam-se de defesas, que podem ou não ser do caráter
neurótico, dependendo da ocasião.
Basicamente, os mecanismos são: introjeção, projeção, confluência e retroflexão
(segundo Peris, pois a exemplo da nomenclatura aqui também existem ligeiras
variações ou acréscimos, dependendo do autor)
Introjeção
Ao estabelecer contato com o mundo e com o outro, retiramos subsídios para satisfazer
97
nossas necessidades e fechar as Gestalten que emergem a cada momento.
Quando retira do meio aquilo de que necessita, o indivíduo precisa assimilar o que
retirou; essa assimilação pode ser comparada ao processo de digestão. (Perls, 1973)
Ao alimentar-se, o indivíduo toma do meio determinado alimento, ‘ depois seu
organismo processa o alimento, assimilando o que será proveitoso e eliminando nas
fezes o que não tem utilidade. Aquilo que foi aproveitado passará a fazer parte do
próprio indivíduo, não existindo a partir daí possibilidade de separação entre o alimento
e o organismo.
Esse processo possui um correlato psicológico, que para efeitos didáticos foi ilustrado
com o ato de alimentar-se.
Ainda prosseguindo com esse exemplo, quando por algum motivo o processo digestivo
não se completa, a distinção entre alimento e indivíduo permanece, ainda que o
alimento esteja dentro do estômago. Passando ao plano psicológico, Perls esclarece:
O processo psicológico de assimilação é eventualmente semelhante ao seu vrrela/o/ Os
com isto.,nossos padrões de comportamento, a moral os valores ético estéticos,
políticos — todos nos chegam originalmente do mundo e não há nada em nossas
mentes que não venha do i e não há nada no meio para o qual não haja uma
necessidade orgânica, física ou psicológica. L devem ser de dominadas, se quiserem
se tornar nossa de verdade, realmente uma parte da personalidade. (1973, pp. 46-47)
Mas se por falta de recursos ou critérios o indivíduo recebe do meio coisas inteiras e
não as assimila, destruindo suas partes para que ela possa ser digerida, ocorre a
chamada introjeção.
Esse mecanismo — assim como os outros — não tem valor negativo cm si, pois
eventualmente introjetar algo do meio pode ser saudável. Perls (1973) exemplifica esse
aspecto com o estudante que por algum motivo nào assimilou a matéria dada em aula
porém precisa tirar uma boa nota; ele pode passar a noite em claro estudando e por
conseqüência introjetando a matéria necessária. Novamente há correlação entre o
fisiológico e o psíquico, conforme esclarece Perls:
o alimento psicológico que nos fornece o auxílio externo tem que ser assimilado
exatamente da mesma forma que o alimento real Tem que ser desestruturado,
analisado, separado e de novo relido sob a forma que nos será mais valiosa”. (1973, p.
47)
Nesse trecho encontramos uma referência à palavra destruição. Para Perls, a
destruição está ligada a uma possibilidade de transformar e incorporar aquilo que até
então era estranho; transformação que necessita de agressão para que possa ocorrer.
Em seu livro E Hun and À Perls (1942) trata exatamente da agressão como força
psíquica necessária e transformadora daquilo que o indivíduo retira do mundo.
A transformação aqui referida nada mais é do que o processo de assimilação.

Confluência
Na confluência o indivíduo não sente barreiras entre si mesmo e o mundo ou o outro.
178
Esse estado pode ser ocasionado por momentos absoluta mente saudáveis, em que

98
um sentimento de pertinência é de tal forma experienciado que de fato não há
barreiras. Isso acontece por exemplo na vivência de um tórrido romance, pois de certa
forma podemos afirmar que há uma sensação de “eu estou com o outro, no outro, sou
também o outro e do outro”. Assim, ocorre a “dissolução” da fronteira de contato,
ficando obscuro o limite estabelecido entre o indivíduo e aquilo com o que está em
confluência.
Esse estado pode ser saudável em determinados momentos, porém deve vir seguido
de um resgate da fronteira, para que o indivíduo retome sua identidade, separando-se
do que é “eu e não-eu”.
Esse resgate nada mais é do que a vivência do momento pós-confluência, isto é, um
momento de retração, de separação entre o indivíduo e o outro ou o mundo.
Existem implicações sociais no que se refere a esse mecanismo, como bem explica
Ginger:
No piano social, a confluência impede qualquer confronto e qualquer contato verdadeiro
(que implica diferenciação entre duas pessoas distintas), portanto, qualquer evolução
social,mas toda ruptura brutal da confluência acarreta, então, urna viva ansiedade —
em geral acompanhada de culpa — podendo chegar até a decomposição psicótica.
(1985, p. 133)
Perls (1973) explica que algumas situações demandam confluência, como o caso dos
rituais, nos quais as barreiras entre o externo e interno desaparecem temporariamente,
promovendo um sentimento de pertinência e sincronia com os outros e com a situação.
Nessas ocasiões, o adulto acaba vivendo a confluência semelhante a dos momentos
iniciais de vida; nesses momentos, feto e mãe vivem confluentemente, dado o processo
simbiótico estabelecido na relação.
Com relação ao desenvolvimento infantil, FerIs esclarece:
“Os recém-nascidos vivem em confluência; não possuem o sentido de distinção entre
dentro e fora, entre si mesmo e o outro”. (1973, p. 51).
Á
Em alguns casos esse sentimento de completa identificação perdura, não havendo o
momento seguinte, isto é, a retração. Existe então a cristalização do mecanismo,
cessando a fluidez do processo.
Podemos pensar que, nesses casos, o que deveria ser processo transforma-se cm
estrutura e aos poucos perde-se a fluidez da dinâmica contato/retração.
É evidente que o contato de boa qualidade inviabiliza-se, pois para um contato pleno é
necessário um distanciamento e uma discriminação entre o indivíduo e o mundo ou
outro. Feris ilustra bem essa situação:
Somos feitos de milhares de células. Sentíssemos uma confluência seríamos como
uma massa gelatinosa e não haveria qualquer possibilidade ele organizar. Por outro
lado, cada célula está separada de o//Ira por zuna membrana permeável e esta
membrana é o lugar de contato, de clz.rcivmnação para o que é “aceito” o que é”
rejeitado”. (1973, p. 52)
A confluência patológica impede que o indivíduo perceba e respeite as diferenças
incluídas em determinada situação; evidencia-se uma dificuldade crônica de barreira e
aceitação daquilo com o qual ele não está confluente.

99
Projeção
Considerado o oposto da introjeção, na projeção há uma tendência a responsabilizar o
meio por conteúdos que são do próprio indivíduo.
Para interagir adequadamente com o seu meio o indivíduo necessita avaliar
determinadas possibilidades, projetando de alguma maneira referências suas sobre o
mundo; aqui novamente aparece o fato de que, a exemplo dos outros, esse mecanismo
não é em si saudável ou patológico, pois depende da situação e da dinâmica que se
estabelece a partir daí.
O indivíduo que projeta constantemente, atribui ao mundo
181
e ao outro defeitos ou qualidades que no geral estão cm si mesmo. Assim, ele pode
dizer que as pessoas não são confiáveis, quando
j na verdade ele mesmo não o é. Agindo dessa forma, de alguma forma ele tende a
alienar-se de si mesmo, não reconhecendo como se comporta com o meio no qual está
inserido.
Perls afirma que a paranóia é caracterizada pela projeção levada às últimas
conseqüências:
“Clinicamente reconhecemos que a paranóia que é caracterizada pelo desenvolvimento
de um sistema altamente organizado de ilusões é o caso extremo de projeção [ (1973,
p. 49)
No caso da neurose, o mecanismo gera o deslocamento da barreira entre ele e o
mundo, exageradamente a seu favor (“os outros não entendem”, “as pessoas são
falsas mesmo” etc.)
Refroflex
Segundo Perls (1973), o termo retroflexão quer dizer literalmente “voltar-se
rispidamente contra”.
Nesse mecanismo, o indivíduo percebe a si e ao mundo que o rodeia de forma nítida,
porém redireciona para si mesmo a energia ou comportamento que gostaria de ter feito
ou gastado com outro.
[ indivíduo] pára de dirigir suas energias para fora, na tentativa de ,na,n pula reprovocar
mudanças nomeio que satisfaçam suas necessidades ao invés disso, redirigem sua
atividade para dentro, e se coloca no meio, como alvo de comportamento. /1 mccii cia
em cjuefa ande sua personalidade em «gente e parente da ação. Torna-se literalmente,
seu piorinimi (1973, p. 54)
Perls utiliza-se do exemplo de pronomes para exemplificar as diferenças básicas entre
os mecanismos existentes. Assim, o introjetivo utiliza o pronome pessoal “eu” quando
na realidade deveria usar “eles” ; o projetivo usa o pronome “ele”, “ela”, ou “eles”
quando sua vivência interna é de “eu”; na confluência, o individuo geralmente faz uso
do pronome “nós” quando o significado verdadeiro está obscuro, e, finalmente, o
retroflexor utiliza “eu mesmo”.
Um exemplo de comportamento retroflexivo é a frase “Estou cansado de mim mesmo”,
na qual é flagrante a denúncia da cisão entre ele e ele mesmo.
Perls sintetiza os mecanismos defensivos: “O introjetivo como os outros que ele fi o
100
projetivo/ aos outros aquilo que os acusa de lhe fazerem, o homem em confluência
patológica não sabe quem está fazendo o que a quem e o retroJiexorfz o o que gosta/ia
de/ aos outros.” (1973, p. 54)
T E “REGRAS” EM GESTALI—TERAPIA:
O GESTALT—TERAPEUTA
Ao falar em Gestalt-terapia muitas vezes o leigo imediata mente se reporta às técnicas
contidas no bojo de sua teoria, porque por bastante tempo ela foi vista corno um
conjunto de técnicas que podia promover algo que Perls jocosarnente denominou de
“cura instantânea”. Perls fazia alusão às pessoas que utilizavam suas técnicas de forma
inadvertida, sem se preocupar com os fundamentos ou com a adequação da aplicação
de cada uma.
A confusão que até hoje persiste (felizmente cada vez menos!) em relação à
abordagem, fazendo crer aos CflOS informados que a Gestalt-tcrapia resume-se à
aplicação de técnicas, teve certamente sua origem nos workshops e seminários
dirigidos por Perls, sobretudo em Esalen. O objetivo dos workshops era crescimento
pessoal, porém os seminários de fim de semana pretendiam basicamente levar a
Gestalt-terapia ao conhecimento das pessoas.
Nessas ocasiões, Perls em geral trabalhava com uma pessoa do grupo, procurando
demonstrar sua abordagem por meio da
l85
e ao outro defeitos ou qualidades que no geral estão em si mesmo. Assim, ele pode
dizer que as pessoas não são confiáveis, quando na verdade ele mesmo não o é.
Agindo dessa forma, de alguma forma ele tende a alienar-se de si mesmo, não
reconhecendo como se comporta com o meio no qual está inserido.
Perls afirma que a paranóia é caracterizada pela projeção levada às últimas
conseqüências:
“clinicamente reconhecemos que a paranóia que é caracteriada pelo desenvolvimento
de um sistema altamente organizado de ilusões é o caso ex/remo deproj [ (1973, p. 49)
No caso da neurose, o mecanismo gera o deslocamento da barreira entre ele e o
mundo, exageradamente a seu favor (“os outros não entendem”, “as pessoas são
falsas mesmo” etc.)
Retroflexão
Segundo Perls (1973), o termo retroflexão quer dizer literalmente “voltar-se
rispidamente contra”.
Nesse mecanismo, o indivíduo percebe a si e ao mundo que o rodeia de forma nítida,
porém redireciona para si mesmo a energia ou comportamento que gostaria de ter feito
ou gastado com outro.
[ indivíduo] pára de dirigir sua energia para fora, na tentativa de manipular e provocar
mudanças no meio que satisfaçam suas necessidades; ao inr disso, redirige sua
atividade para dentro, e se coloca no l/ do meio, como alvo de comportamento. À
medida em que fa çso, dirije sua personalidade em gente e paciente da Torna-se
literalmente, se//pior inimigo.” (1973, p. 54)
Feris utiliza-se do exemplo de pronomes para exemplificar as diferenças básicas entre

101
os mecanismos existentes. Assim, o introjetivo utiliza o pronome pessoal “eu” quando
na realidade deveria usar “eles” ; o projetivo usa o pronome “ele”, “ela”, ou “eles”
quando sua vivência interna é de “eu”; na confluência, o indivíduo geralmente faz uso
do pronome “nós” quando o significado verdadeiro está obscuro, e, finalmente, o
retroflexor utiliza “eu mesmo”.
Um exemplo dc comportamento retroflexivo é a frase “Estou cansado de mim mesmo”,
na qual é flagrante a denúncia da cisão entre ele e ele mesmo.
Peris sintetiza os mecanismos defensivos: “O intr como os outros que ele J opi tivoJ2i
aos outros aquilo que os acusa de lhe fazerem, o homem em conjiuéncia patologica
não sabe quem está J o que a quem e o retroflexivo. O que e todavia de aos outros.”
(1973, p. 54)
TÉCNICAs E “RECRAS” EM GESTALT
O GESTALT—TERAPEUTA
Ao falar em Gestalt-terapia muitas vezes o leigo imediatamente se reporta às técnicas
contidas no bojo de sua teoria, porque por bastante tempo ela foi vista como um
conjunto de técnicas que podia promover algo que Feris; ocosionalmente denominou de
“cura instantânea”. Perls fazia alusão às pessoas que utilizavam suas técnicas de forma
inadvertida, sem se preocupar com os fundamentos ou com a adequação da aplicação
de cada uma.
A confusão que até hoje persiste (felizmente cada vez menos!) em relação à
abordagem, fazendo crer aos menos informados que a Gestalt-terapia resume-se à
aplicação de técnicas, teve certamente sua origem nos workshops e seminários
dirigidos por Perls, sobretudo em Esalen. O objetivo dos workshops era crescimento
pessoal, porém os seminários de fim de semana pretendiam basicamente levar a
Gestalt-terapia ao conhecimento das pessoas.
Nessas ocasiões, Perls em geral trabalhava com uma pessoa do grupo, procurando
demonstrar sua abordagem por meio da
18
prática. Sua habilidade de perceber o que de fato estava acontecendo levava muitas
vezes a pessoa envolvida no trabalho a conscientizar-se de interrupções que mantinha
em sua vida e a resgatar figuras inacabadas.
A partir daí, Perls passou a ser visto por alguns como guru e por outros como charlatão.
Essa divergência de opiniões em relação a sua pessoa não foi novidade, urna vez que
durante toda sua vida recebeu repúdio e respeito, amor e ódio, desprezo e
reconhecimento, o que levou-o a lidar aparentemente bem com esse tipo de
controvérsia.
Os encontros promovidos em Esalen tiveram como objetivo primeiro (conforme o sonho
antigo de Perls) promover o reconhecimento da Gestalt-terapia e, por que não dizer, de
seu criador. Lamentavelmente, alguns profissionais insistem em “copiar” o estilo
pessoal de Perls, e com isso se desqualificam como Gestalt-terapeutas, porque a rigor
distanciam-se dos pressupostos básicos da abordagem, ou seja, a criatividade, a
awareness de cada momento, de cada cliente e a não repetição de formas talvez
obsoletas de agir.
Ficar com o que ocorre a cada momento significa utilizar qualquer forma de contato que
de alguma maneira possibilite ao cliente entrar em contato com o que está
102
acontecendo, perceber como ele se interrompe, como funciona. E para que isso possa
acontecer cada gestalt-terapeuta precisa necessariamente estar ligado ao momento
presente, na sua melhor forma, que imagino ser impossível a qualquer um que se
subordine à melhor forma do outro.
184
Não quero dizer que as técnicas utilizadas por Perls não tenham seu valor; longe disso,
elas podem contribuir muito em um processo terapêutico. Porém, acredito que essa
contribuição seja tão válida quanto qualquer outra forma específica de atuar, desde que
não seja uma aplicação de técnica destituída de sentido claro.
Em seu livro Gestalt-therapy Verbatim (1969), no qual
Á
consta transcrições de alguns seminários, Perls explica seu trabalho em Esalen:
Aqui em nosso trabalho com Gestalt-terapia, fazemos distinção entre dois tipos de
trabalho: um é o seminário, o outro éo workshop. O workshop é com um número muito
limitado de pessoas, no máximo quinze, e ali, nós trabalhamos. O grande seminário de
fim de semana tem outro propósito: faz com que vocês se [ com aquilo que estamos
fazendo, e eu espero, apesar disso, que vocês ainda aprendam alguma coisa. Agora,
estes seminários com palestras e demonstraçães não são workshops terapêuticos. São
uma espécie de situação de amostra e qualquer e terapêutica ou de crescimento, será
pura coincidência [ assim, minha aflição como terapeuta é ajudar vocês a tomarem
consciência do aqui e do agora, e frustrar vocês em qualquer tentativa de disso. Esta é
a minha existência como terapeuta, no papel do terapeuta. (p. 107)
Voltando à questão das técnicas, não é possível falar delas sem antes compreender a
que cada urna delas visa, muito menos sem partir das concepções de homem e mundo
contidos em sua teoria.
Para a Gestalt-terapia, o homem tem possibilidades infindas de desenvolver o suporte
necessário para viver plenamente, configurando sua existência a partir do que é agora.
Porém, quando ele não consegue fechar as Gestalten, instala-se a neurose, que nada
mais é do que o acúmulo de figuras inacabadas.
Nesse sentido, numa terapia de contato como a Gestalt terapia, a premissa básica é
desenvolver a consciência no caminho da potencialização do melhor de si mesmo,
promovendo a integração entre as polaridades e permitindo que o indivíduo acolha para
si as partes alienadas de si mesmo.
Para isso, a Gestalt-terapia utiliza-se quando necessário de técnicas que visam
basicamente ao fechamento de figuras e à conscientização do que é, aqui e agora. As
técnicas, em si, não possuem valor absoluto, pois como nos lembra Paulo Barros:
Não obstante a forma espontânea e lúdica como são apresentados e embora em toda a
sua variedade representem uma riqueza potencial como fonte de crescimento, esses
exercícios em si são tão neutros quanto
183
o papel e os tipos que constituem este livro. Podem ser divertidos se usados de forma
lúdica. Podem ser perigosos, se aplicados de forma descuidada. Podem ser
impessoais, se utilizados apenas como técnicas.
Podem ser produtivos se orientados com propriedade. Como um espelho, os resultados
103
refletem de forma nítida a maneira como são utilizados. (1988, p. 15)
186
Assim, as técnicas de Pcrls refletiam seu estilo pessoal e por isso podem (e devem!)
ser modificadas, criadas, acrescidas ou subtraídas em função do estilo de cada
terapeuta e da situação vivida com o cliente. Se não fosse assim, a rapidez de sua
aplicação, com a conseqüente ignorância do momento presente, nos reme teria a
pressupostos que definitivamente não condizem com os da Gestalt-tcrapia, ligados à
espontaneidade e à consciência do momento presente.
É por esse motivo, portanto, que este capítulo não tem compromisso com a explicitação
dc todas as técnicas, mas sim com as mais difundidas, e apenas a título de ilustração
do modo pelo qual Perls praticava a sua Gestalt-terapia.
Em relação à rigidez da aplicação das técnicas, ao referir-se ao método psicanalítico
Perls gostava de contar uma hist6ria que pode certamente v também para as técnicas
contidas na Gestalt-terapia.
Certa vez, alguns americanos gostaram muito de uma xícara de porcelana vinda da
China. Como não era possível fabricá-las em seu país e tivessem interesse em
comercializá-la, embalaram a peça cuidadosamente remetendo-a de volta à China, com
a orientação de que fizessem mil peças absolutamente iguais ao modelo. No entanto a
asa da xícara quebrou-se durante a viagem. Ao chegar a encomenda, os americanos
tinham mil xícaras sem cabo...
A utilização das técnicas, portanto, deve ser parcimoniosa, visando sempre ao
favorecimento da tomada de consciência e do contato do cliente com ele mesmo,
propiciando assim possibilidade de integração.
Outro aspecto que deve ser ressaltado é o fato de que, além das técnicas ou “jogos”
utilizados em Gestalt-terapia, existem as “regras” de trabalho com o cliente. Se não por
mais nada, esse nome “regra” aplicado a algum conceito de Gestalt-terapia assume por
excelência uma posição paradoxal, uma vez que é a conscientização do momento
presente, com toda a espontaneidade e criatividade que isso pode trazer, que propicia
a awareness. Por isso a aplicação de regras parece de alguma forma ferir os
pcssupostos básicos da abordagem.
Essas “regras” nada mais são do que elementos facilitadores para a integração e
conscientização do indivíduo e por isso devem ser utilizadas como premissas básicas
de trabalho. Para que esse princípio possa ser suficientemente esclarecido, vejamos
quais são elas:
“Regras” em Gestalt
Antes de explicitá-las (Pcrls, 1968) , vejamos o que afirma Polster:
Se quisermos realmente fazer Justiça ao espírito e à essência da Gestalt-terapia,
devemos reconhecer claramente a distinção entre regras e mandamentos. A filosofia
das regras consiste em dotar-nos com meios eficazes para unificar o pensamento e o
sentimento. Tem por finalidade ajudar-nos a exumar resistência, promover uma
conscientização mais apurada — enfim, facilitar o processo de maturação. Não tem,
definitivamente, a intenção de construir uma lista dogmática de deves e não deves; pelo
contrário, são propostas no espírito de experimentos que o paciente pode realizar. Com
frequência, revestem-se de um considerável valor de choque e, assim, demonstram ao
paciente os muitos e sutis caminhos pelos quais ele se impede de experimentar

104
plenamente a si e ao seu meio. Quando a intenção das regras é verdadeiramente
apreciada, elas serão compreendidas em seu significado intrínseco e não em seu
sentido literal. (1971, p. 184)
Assim, as regras às quais a Gestalt-terapia está subordinada destinam-se apenas a
propiciar a tomada de consciência.
187
O princípio do agora
Tendo em vista que a única possibilidade de viver está no agora uma vez que o ontem
á foi e o amanhã não chegou, é nesse momento que a conscientização, a
responsabilidade e a criatividade são possíveis. Além do mais, a única possibilidade de
qualquer controle, especialmente da situação, também só é possível no agora.
O que acontece, acontece agora, e para que esse evento tenha o brilho de uma figura
energizada é necessário que o indivíduo tenha claro o momento presente.
Porém, muitas pessoas perderam a habilidade que seria natural: a de permanecer com
a sua vida, esteja ela como estiver, no agora, momento único em que ela se desenrola,
tecendo assim a trama de uma existência mais ou menos plena, mais ou menos
criativa, enfim, mais ou menos consciente, dependendo da qualidade de contato que
desenvolver a partir da conscientização do que é agora.
Assim, ocupam-se do passado, rememorando o que foi, ou projetam para o futuro o
que querem que seja. Nem uma nem outra situação levam a um contato pleno com a
realidade, que é agora (muito embora possamos presentificar o passado resgatando-o
e energizando-o com o que ele significa agora).
A consciência do que ocorre entre o indivíduo e seu meio pode ser bastante elevada
quando ele pode falar de si mesmo, agora, e para isso o Gestalt-terapeuta usa como
palavra insistente o agora, pedindo por esse tempo verbal constantemente. Em geral as
perguntas feitas por um Gestalt-terapeuta giram em torno de: “O que você está
percebendo agora?”, “O que está acontecendo agora?”, “E agora, o que você está
sentindo quando me fala sobre o que aconteceu?”.
A relutância em permanecer no presente é dividida com o cliente, para que ele possa
perceber sua dificuldade de permanecer com o que é, agora.
Muitas vezes a regra ou técnica se confunde com o objetivo geral da Gestalt-terapia,
pois, como no caso de permanecer no agora, essa habilidade resulta necessariamente
por si só em diminuição de ansiedade (que para Perls nada mais é do que o vácuo
estabelecido entre o agora e o depois) e aumenta consideravelmente o nível de
awareness, já que esta só é possível no momento presente.
Eu e tu
Essa regra, notadamente herdada do pensamento de Buber, tem como objetivo levar o
cliente a compreender a separação entre ele mesmo e o outro em relação à
comunicação entre emissor e receptor da mensagem, estabelecendo uma possibilidade
de comunicação com menos interferências. Em geral há dificuldade de se estabelecer
diálogos genuínos, uma vez que ao emitir a mensagem percebemos que o indivíduo
não se vincula à resposta do outro, mas organiza-se para responder, segundo um
processo interno, uma “conversa silenciosa” consigo mesmo, muitas vezes ignorando o
que o outro está dizendo.

105
Em Gestalt_terapia é grande a importância de se saber escutar e isso só é possível
quando podemos estabelecer a diferença entre nós mesmos e os outros. O Gestalt-
terapeuta procura estabelecer claramente o que o outro falou e o que o cliente sentiu a
partir dessa fala. Para isso o nome de quem falou é freqüentemente lembrado.
Espera-se com isso que exista comunicação de melhor qualidade e,
conseqüentemente, um contato também mais adequado com o meio.
L Jngiza neutra e língua do Eu
Ao longo de seu trabalho, Perls observou que para muitas pessoas existe tendência em
generalizar ou despersonalizar
188
determinado fato ou sentimento; esse comportamento tanto mais aparece quanto mais
fóbica for a evitação.
Se uma mulher possuiu alguma experiência negativa com determinado homem, há
tendência cm dizer que “os homens são assim mesmo”, percebendo-se uma
comunicação distanciada, neutra, geralmente na terceira pessoa. A mudança que o
terapeuta requisita do cliente é no sentido dc que ele tome essa opinião pessoal,
acolhendo o que é seu e responsabilizando-se pelo que sente. O terapeuta poderia
perguntar dc que homens ela está falando, substituindo “os homens” por “João e José”,
por exemplo.
Outra tendência é despersonalizar os sentimentos, como o cliente que diz “a gente fica
com o coração apertado”, afirmação que o terapeuta poderia pedir que fosse trocada
por “eu sinto meu coração apertado”.
Parecem jogos de semântica sem muita importância, mas ao longo do processo
terapêutico facilitam a responsabilidade pela própria pessoa e tornam os sentimentos
mais próximos, propiciando maior integração entre as partes alienadas.
A essas regras de semântica outras podem ser acrescentadas, sempre no sentido dc
levar o cliente a perceber que ele não é, e que não deve ser, agente passivo de sua
própria história, ao contrário, é responsável por tudo que vive ou pelo menos por como
vive.
ContÍnuo a conscientização
Notamos que em terapia por via de regra o cliente vem com suas interrupções e
dificuldades pedindo o apoio do terapeuta. Esse comportamento explicitado em forma
de perguntas certamente está ligado à falta de auto-suporte. Ele espera que lhe digam
o que deve fazer, se está certo ou não, se entendeu ou não.
O que ele ainda não sabe é que existe dentro de si uma sabedoria que não é e não
pode ser suplantada pela sabedoria de ninguém. Apenas cada pessoa pode saber o
que é melhor para
190
si mesma. O cliente chega com perguntas e é surpreendido quando, a partir dessa
regra, pedimos que ele as transforme em afirmações.
Se num momento de tomada de decisão o cliente nos pergunta: “Será que é melhor
dizer a meu sócio que não quero comprar essa nova máquina?” E pedimos para ele
transformar essa pergunta na melhor afirmação que puder fazer, ele poderá então

106
afirmar: “Vou dizer ao meu sócio que não quero comprar aquela máquina”.
É dispensável dizer a diferença que isso faz; porém, para evitar uma reação sem
sentido nenhum, geralmente após substituir a indagação pela afirmação o terapeuta
pode perguntar ao cliente:
“Como você está se sentindo agora com essa afirmação?”.
Assim, o terapeuta propicia que o cliente adquira cada vez mais confiança nele mesmo
e muitas vezes ele se surpreende com a quantidade de coisas que já sabia, mas que
viciosamente perguntava aos outros.
Técnicas em Gestalt -terapia
Conscientização
Começamos pela técnica denominada “tomada dc consciência” ou “conscientização”.
Convém lembrar que em Gestalt-terapia a tomada de consciência ou awareness é o
objetivo primeiro, pois só a partir dela é que o indivíduo pode auto-regular-se. Portanto,
denominar esse aspecto de técnica não parece ser de todo adequado, uma vez que
essa aquisição assume caráter conceitual a partir da concepção de homem que subjaz
a ele. Existem, porém, possibilidades técnicas que contribuem para levar o indivíduo a
tomar consciência de sua própria existência e do que faz com ela.
É nesse ponto que podemos falar de “técnicas” que propiciam
19
uma awareness por parte do indivíduo. Na verdade, antes de ser um conjunto de
técnicas, é a postura do terapeuta que pode levar o indivíduo a esse desvelar dele
mesmo. Vejamos o que nos diz Perls em relação à prática do Gestalt-terapeuta:
Assim, primeiro o terapeuta proporciona a oportunidade de descobrir o que a pessoa
necessita — as partes que faltam, que foram alienadas e deixadas para o mundo.
Então o terapeuta deve proporcionar a oportunidade, a situação na qual a pessoa
possa crescer. E o meio é frustrarmos o paciente de tal forma que ele passa
desenvolver seu próprio potencial. Proporcionamos de maneira hábil a frustração para
que o paciente saiba achar seu próprio caminho, a descobrir suas pro possibilidades,
seu próprio potencial e a descobrir que o que ele espera do terapeuta, ele pode
conseguir muito bem sozinho. (1977, p. 61)
Nota-se que muito mais do que uma técnica o que esse pres suposto encerra é uma
postura que podemos encontrar em toda a abordagem da Gestalt-terapia. Para que
esse processo seja possível, o terapeuta utiliza-se de meios que incluem a
compreensão, a representação e a possibilidade de tornar-se partes rejeitadas do
indivíduo, vivenciando-as e integrando-as à própria existência.
Quando a consciência de algo se torna desagradável, a tendência é que o próprio
indivíduo interrompa-se, criando então uma zona de neurose, mantida geralmente por
essas interrupções, que nada mais são do que figuras inacabadas.
É por meio do trabalho terapêutico que o indivíduo pode chegar perto dessas
interrupções, atribuindo-lhes agora uma capacidade de retomada de fluxo e integração.
Isso é o que Perls denomina de continuum de consciência.
Este continuum de tomada de consciência parece ser muito simples, apenas tomar
consciência do que se passa, segundo após segundo [ Entretanto, assim que essa
tomada de consciência se torna desagradável ela e’ interrompida pela maioria das
107
pessoas. Então essas, repentinamente, começam a intelectual usar palavreado do tipo
blablablá, voar em direção ao passado, voar para as expectativas, boas intenções, ou
usar esquisitas associações livres, saltando como um louva-a-deus,
Para Perls, os sonhos são mensagens existenciais e uma possibilidade de tornar figura
aquilo que até então era fundo. Segundo essa visão, cada fragmento do sonho é o
próprio sonhador e não há possibilidade de interpretação por qualquer outra pessoa
que não o próprio sonhador.
[ psicanálisel o que geralmente seja com os sonhos é cortá-los em pedaços, seguindo-
se uma associação de sign e interpretação. Bem, tal tec chegar a a integração com
este procedimento, mas eu não creio muito, porque na maior parte dos casos não
passa de mero jogo intelectual [ . se quiserem tirar a coisa real de um sonho, não o
interpretem, não façam ,j de ins, intelectuais, nem façam associações ou dissociações
livres empresas.
Em Gestalt-terapia nós não interpretamos sonhos. Fazemos com ele algo muito mais
interessante. E em vez de analisar e contar o sonho, nós queremos trazê-lo de volta à
vida. E o jeito de trazê-lo de volta à vida é revivê-lo como se ele estivesse ocorrendo
agora. Em vêz de contar o sonho como uma história do passado, encene-o no
presente, de modo que ele se torne parte de você, de modo que você realmente se
envolva. (1977, pp. 100-1)
Como podemos ver, a técnica de trabalho com sonhos em Gestalt-terapia é
inteiramente não interpretativa, e se houver algum tipo de interpretação ela só será
possível quando oriunda do próprio sonhador.
Quando um cliente traz um sonho ou um fragmento, cabe ao Gestalt-terapeuta pedir
para ele presentificar o sonho vivendo-o no presente, isto é, aqui e agora.
Assim, o cliente substitui frases do tipo “Sonhei que estava subindo uma escada e...”,
por “Eu estou subindo uma escada e...”. Isso pode promover uma vivência não só do
sonho mas especialmente das emoções e interrupções contidas no mesmo.
a)
de experiência em experiência, e nenhuma dessas experiências chega a ser
experienciada, são apenas uma espécie de Jiash, que deixa todo o material disponível
não assimilado e sem utilidade. (1977, p. 81)
192
Cada elemento do sonho, cada objeto ou aspecto, é uma parte do sonhador. Assim,
após a presentificação o terapeuta pode perguntar ao cliente qual a parte ou objeto que
mais lhe chamou a atenção, ou então, seguindo a própria awareness do que está
ocorrendo com o cliente aqui e agora, sugerir urna parte ou objeto específico para
destacar, tornando figura emergente algo que pode tornar-se uma mensagem
existencial consciente.
A partir do que acontece, o terapeuta pode também sugerir que determinadas partes do
sonho “conversem” entre si; muitas vezes a partir dessa vivência surge urna integração
e posse de partes alienadas dele mesmo.
Trata-se de um trabalho bastante vivencial, no qual as palavras são meras
coadjuvantes de tudo o que ocorre organismicamente. A título de ilustração utilizo um
exemplo: um cliente traz ao presente um sonho em que ele vive uma situação de
afogamento num rio de lama. Há nesse rio uma tábua que ele precisa alcançar para
108
salvar-se, mas sempre que tenta ela enrosca-se em plantas aquáticas que o impedem
de atingir seu objetivo. Após a presentificação do sonho, o terapeuta pergunta-lhe qual
aspecto do sonho lhe chamou mais a atenção, ao que ele responde “lama”. O terapeuta
propõe então que o cliente seja a lama, atribuindo-lhe vida e trazendo ao aqui agora a
possibilidade de existência dessa lama. O relato poderia ser o seguinte:
“Eu sou lama; sou densa, viscosa e escorregadia. Por isso ninguém enxerga através de
mim e eu sujo tudo que toco. Quando as pessoas entram em contato comigo logo
querem se lavar para livrar-se da sensação desagradável de estar sujo. Mas se eu
seco, fica difícil livrar-se de mim; eu fico aderente e resisto o quanto posso para não
desgrudar...”.
Após essas revelações o terapeuta pode até dispensar comentários, dependendo de
como o cliente vivenciou esse “ser lama”; note-se quanto de sua vivência interna ligada
à rejeição, apego e abandono emergem dessa vivência, expondo pelo menos uma
parte de seu modo de ser e estar na vida. O terapeuta então pode pedir que ele seja a
tábua: “Eu sou uma tábua forte e agüento qualquer peso; vim de uma árvore nobre e
realmente sou muito bonita; tenho lindos veios e agora estou sentindo muita raiva de
estar mergulhada nessa lama horrorosa. Eu nasci para outra coisa, para ser um lindo
utensílio, e não para ficar toda suja mergulhada nessa porcaria”.
Com esse relato fica clara a divisão interna estabelecida entre o saudável e nutritivo e o
neurótico; com um diálogo entre essas polaridades o cliente pode chegar a uma
integração. Se for possível, pode-se então estabelecer uma conversa entre essas duas
partes (lama e tábua), e não é difícil imaginar a riqueza de uma conversa entre esses
dois elementos.
Essa vivência pode promover uma awareness de como o indivíduo mantém contato
com o meio e de que maneira ele se percebe nesse contato.
Ainda em relação à técnica utilizada no trabalho com sonhos, muitas vezes é na
interrupção do mesmo que se encontra a possibilidade de integrar o que é conhecido
com as partes alie nadas da própria pessoa. Portanto, o terapeuta pode solicitar ao
cliente que ele continue, aqui e agora, o sonho interrompido.
C vazia
A técnica da cadeira vazia tem sido ao longo dos anos umas das mais conhecidas em
Gestalt-terapia. Geralmente era utilizada por Perls em situações de grupo, quando
aconteciam os famosos workshops, ocasião em que difundia suas técnicas e teoria
para profissionais em formação ou grupos terapêuticos. Esses encontros ocorriam por
via de regra em Esalen, Califórnia.
Com o passar do tempo essa técnica revelou-se muitas vezes potente instrumento de
fechamento de figuras inacabadas e de awareness do cliente sobre situações
interrompidas. Basicamente, a técnica consiste em viver os dois lados de um conflito,
ou seja, presentificar uma situação cujo desfecho e assimilação não foi possível. Para
isso são necessárias duas cadeiras e a disponibilidade do cliente.
194
Imaginemos uma situação na qual a cliente tenha perdido sua mãe, mas ainda assim
sente-se presa e ressentida com ela pelo
j sentimento de abandono advindo dessa morte.
O terapeuta pode então sugerir que ela “converse” com sua mãe, que está sentada à
109
sua frente, na “cadeira quente”. Depois, a cliente deve sentar-se àquela cadeira,
“sendo” sua mãe e respondendo às queixas da filha.
Trava-se então uma conversa entre mãe e filha, na qual as representações de cada
papel e as fantasias que as acompanham podem ser trazidas ao aqui e agora
favorecendo uma integração entre as polaridades e o ressentimento ali encontrado.
Muitas vezes o próprio cliente surpreende-se com a integração que obtém a partir
dessa vivência.
Existe, portanto, uma cadeira vazia que estará disponível para essa utilização.
Vale ressaltar que cm Gestalt-terapia o importante é o que está acontecendo e como
está acontecendo, portanto não é pela técnica que esperamos alcançar alguma coisa,
mas é com a técnica cm si que alguma coisa real pode acontecer.
Quando o terapeuta, dc posse plena do que está acontecendo, percebe que uma
intervenção pode ser facilitadora ainda que sob a forma de frustração, ele pode intervir
conversando com a “parte” ou personagem que julgar mais adequado. Se utilizada dc
maneira adequada, essa técnica pode propiciar ao cliente um nível dc conscientização
das inter-relações que estabelece com o meio.
Cadeira quente (1 seat)
Esta técnica era utilizada como “convite implícito” à disponibilidade de alguma pessoa
presente aos grupos que Perls dirigia, para trazer algum conteúdo que quisesse
trabalhar. Na frente dessa cadeira ficava a “cadeira vazia”.
Monocirama
O monodrama é uma técnica que surgiu a partir das influências da mãe de Perls (gosto
pelo teatro) e de Moreno (psicodrama).
Perls freqüentemente afirmava que a diferença entre a Gestalt-terapia e a psicanálise
era que na Gestalt nada era analisado mas sim integrado. O monodrama seria então
mais uma possibilidade de integrar ao indivíduo partes dele mesmo.
Basicamente, o monodrama consiste cm representar e viver-como-se-fosse situações
que não podem ser vividas concretamente, seja por impedimento real (como no caso
de morte de alguém), seja por impedimento emocional.
Ao contrário do psicodrama, no monodrama o indivíduo representa todos os
personagens trocando de papel sempre que necessário, pois para Perls a riqueza da
técnica consiste justamente nas representações do significado de cada evento ou
pessoa, por parte da própria pessoa. “Contracenar” com outra pessoa significaria ter
que lidar com a subjetividade desta e não com a própria, o que não ajudaria a promover
a awareness.
Exa
Ainda no sentido de promover a tomada de consciência, o Gestalt-terapcuta pode
utilizar-se da exageração, que consiste, como o próprio nome sugere, em exagerar
determinada fala ou gesto que estariam “diluídos” num relato ou contexto pouco
propício para a awareness.
Dessa maneira, aproxima-se como figura o que se pretende trabalhar, trazendo à tona
o que provavelmente passaria despercebido. Como exemplo podemos imaginar um
cliente que nos traz o seguinte discurso: “ Eu disse para minha mulher que não vou
comprar o carro que ela quer; por mais que eu faça nunca parece ser o suficiente e
110
parece que eu sou uma peteca na mão dela e
197
das minhas filhas!”. O terapeuta pede para o cliente repetir a frase na qual ele diz
sentir-se uma peteca e, se necessário, que ele repita por várias vezes aumentando o
tom da voz.
Ele pode perceber que “ser uma peteca” é a questão, e a partir dessa conscientização
aumenta a possibilidade de que compreenda como interage com sua família.
Outro aspecto que o método de exageração compreende é o corporal, mas devido à
importância do corpo em Gestalt terapia (e embora não possa ser considerado como
técnica específica), opto para efeitos didáticos por falar do corpo em Gestalt-tcrapia
num irem específico.
o
Conforme vimos anteriormente, em Gestalt-terapia há uma visão de homem e um
compromisso com o todo indivisível. Nesse aspecto o corpo deve ser levado cm
consideração tanto quanto o psiquismo, e na psicoterapia ele é tão importante quanto
as emoções.
Na verdade o corpo é manifestação viva do que está acontecendo agora, e como tal
pode ser potente instrumento de conscientização. Gestos e microgestos, ritmo de
respiração, olhar, voz, postura etc. são considerados e incluídos no todo do processo
terapia.
Porém, a exemplo de outras técnicas, não há interpretação do gesto que se percebe,
mas antes “devolução” ao cliente do que c está fazendo, propiciando assim (até com
um pedido dc exageração quando necessário) integrar e compreender o que está
acontecendo agora.
Além disso o terapeuta deve estar atento a mensagens corporais que não condizem
com a linguagem do corpo, denunciando uma cisão; é o caso do cliente que nos conta
algo muito triste mas aparenta alegria e agitação desconexa com o que está
acontecendo. Segundo Gingcr (1985):
O sintoma corporal é deliberadamente utilizado corno “porta de entrada” que permite
um contato direto com o cliente, respeitando a “via” que ele mesmo escolheu, embora,
com freqüência, involuntariamente [ Sugere-se, eventualmente, que amplifique o que
sente ou seu sintoma para melhor percebê-lo, “dar-lhe a palavra” de certa forma, e isso
antes mesmo de interrogar sobre seu significado. (p. 162)
Apenas a título de exemplo, imaginemos urna cliente que de braços fortemente
cruzados afirma que ninguém se aproxima dela. Poderá ser muito útil perguntar-lhe o
que seus braços estão fazendo, uma vez que fica claro na sua postura o quanto ela se
protege, evitando as pessoas e projetando nelas aquilo que faz com ela mesma.
São essas as regras e técnicas básicas em Gestalt-terapia, porém, antes de esgotá-las,
essa explanação teve como objetivo apenas ilustrar as possibilidades de trabalho
dentro dessa abordagem, lembrando ainda que existem muitos outros jogos e modos
de trabalhar, dependendo do estilo pessoal de cada Gestalt-terapeuta.
Apenas para constar, é cada vez maior o número de Gestalt terapeutas que se utilizam
da arte como forma de expressão e trabalho, como pintura, escultura, modelagem,
música etc.

111
199
São Paulo, 1998
Querido Fritz
Confesso minha emoção ao estabelecer uma possibilidade de contato com você.
Quando soube de sua existência, de seus sentimentos em relação à vida, e de sua
postura,firme e solitária, você já tinha feito a longa viagem.
Vivemos em locais diferentes, em tempos e contextos disso porém não abalou minha
confiança e consciência de tudo que pude aprender com você.
Sena possível o contato genuíno do qual você tanto falou, quando um e apenas um tem
consciência desse des
Ou talvez esse desejo fosse também seu, independentemente de minha identidade,
mas pelo simples frito de eu ser uma das pessoas tocadas por aquilo que você
mostrou.
D essa palavra que traduz sua história em minha vida. Você diferença, desconstruir
aquela ponte de Homem a homem que você falou, para estar em contato, para
construir meu caminho.
Ás vezes, vejo seu modo de pensar de uma maneira peculiar e ressu fico alguma
consideração sua. À té nisso você pensou, deixando a todos nós a possibilidade
despudorada de incluir, repensar, discordar.
Emoção, emoção... Não preciso isentar-me de quem eu sou para saber o que sei,
acreditar no que acredito; isso não tem invalidado meu trabalho, ao contrário tem
enriquecido-o, como toda a minha vida.
Imagino ai vezes seus descaminhos, sua solidão e tiro daí a coragem de ser apenas o
que sou.
Sua arrogância e dureza muitas vezes me c/ocaram, mas imagino que se pudesse você
responderia que não nasceu para me agradar.
Pelo menos você teve coragem de assumir sua existência com a plenitude que muito
provavelmente a maioria de nós não poderá alcançar. Além do mais, sinto que sua
história acabou de uma certa forma “denunciando” a hz humana.

CONFIGURAÇÃO
Você sabe, e eu também, que por conta dessa coragem as pessoas jamais passaram
“impunes” à sua presença, e quero que saiba que eu faço parte do grupo que respeita e
agradece profundamente a pessoa que você foi.
Tenho lido, lido muito, mas é engraçado, quanto mais eu leio e estudo todas as
premissas (‘como você as chama, mais eu sei que a minha Gestalt não é e não será
pela minha mente, e sim pelo sign que venho dando a tudo isso.

112
Por hora, estou aqui e em contato — comigo, com o que me faz sentido — com você.
Talvez não exista muito mais do que “tudo isso “.
Atitudes é que todo meu respeito e admiração possa ser acolhido por você.
Obrigada por fazer sentido em minha vida.
Ana Maria Mczzarana Kiyan
Ao longo desta pesquisa procurei reunir dados de caráter histórico e teórico e
influências que estabeleceram o processo de existência de Perls e sua abordagem, a
Gestalt-terapia.
Olhar para partes pode parecer em princípio contraditório à Gestalt-terapia, pois um de
seus pressupostos principais é o aspecto da indivisibilidade do todo para sua real
apreensão.
Porém, lançar um olhar para cada “todo” que conteve cada uma dessas partes e
finalmente poder incluí-lo num “todo” abrangente sem jamais pretender ser acabado ou
estático parece-me exercício de possibilidades infindas. Não apenas de uma aquisição
teórica que não ecoa numa awareness do que se viveu, mas sim no sentido da
captação daquilo que, integrado ao que cada um é, pode transformá-lo ao acrescentá-
lo de alguma forma.
Assim foi esse estudo; há um todo que certamente pode ser compartilhado e se isso for
possível através desse trabalho terei sido acrescida e transformada na minha melhor
possibilidade de boa forma deste momento.
Há, entretanto, outro aspecto, ligado ao sentido específico que cada um dá aos
contatos que estabelece e que provavelmente é pessoal demais para que seja
compartilhado aqui.
Boa parte desse trabalho foi dedicada a contar uma história, que continha outra, que
continha outra...
E ao final, numa tentativa gestáltica de integração, fica a tarefa de devolver a fluidez ao
processo, acrescentando-lhe o movimento que o dado histórico descrito pode retirar-
lhe. Essa tentativa, porém, é mero exercício de subjetividade, ainda que baseada num
olhar fenomcnológico.
Fico então com essa última tarefa, consciente das limitações impostas por ela.
Quem foi Frederick Perls? A resposta segura que nos ocorre pode bem ser: um
psicanalista dissidente que concebeu uma abordagem que se opõe à psicanálise,
basicamente por uma decepção pessoal e por diferenças básicas na concepção do
modelo de homem inserido no bojo da teoria que passou a criticar. Ou ainda: foi o
criador da abordagem denominada Gestalt-terapia, que passou a ser conhecida a partir
dos anos 1960, devido às mudanças no contexto histórico social, as quais eram
consoantes com seus pressupostos.
Aqui seria possível imaginar outras tantas formas de descrever quem foi Fritz Perls,
sem no entanto chegar sequer perto de uma descrição que fizesse jus à abrangência
da questão.
Quem foi Fritz Perls?
Homem inquieto, rebelde, aflito, sempre em busca de algo, de si mesmo, de

113
compreensão do mundo cm que viveu, de entendimento da própria vida.
Homem à busca, à procura...
O que encontrou?
Basicamente parece ter encontrado a si mesmo, não sem antes passar por
desencontros nos quais a solidão, a dúvida, o ressentimento e o vazio existencial o
acompanharam.
Perls viveu de acordo com aquilo que acreditava: e o que acreditava a cada momento
era reavaliado, questionado, desacre ditado por sua própria experiência de vida.
Assim foi desde o começo de sua história; quando era
pequeno viveu de acordo com os preceitos familiares vigentes; parecia estar dc acordo
com os valores que lhe eram passados. Urna criança comum, numa família comum em
contexto comum.
Mas aquilo que era dado como “comum” aos poucos foi se revelando insuficiente para
as necessidades afetivas de Perls, que a cada momento aumentavam.
Ao entrar na adolescência, a inquietude que o acompanha pelo resto de sua vida já era
perceptível. Passou a partir daí a buscar incessantemente um sentido, uma direção que
não era clara e por isso não podia ser alcançada. Muitas das figuras inacabadas que
manteve durante grande parte de sua existência (algumas parecem não ter sido
fechadas até sua morte) tiveram início nessa fase, como a relação com o pai, por quem
se sentia abandonado e desprezado, e também a sua sexualidade, que parece ter sido
experimentada durante toda a sua vida como nos tempos de adolescência, quando
novas experiências eram quase compulsivas.
Quando adulto não pôde ser um pai muito diferente do que o seu próprio,
estabelecendo uma relação distante e ressentida com seus filhos, muito embora já cm
idade avançada tenha se aproximado um pouco mais de seu filho Steve; com Renate a
aproximação não ocorreu.
Também no casamento não pôde fazer muito diferente do que havia visto cm relação
ao casamento dc seus pais; porém, parece ter encontrado em Lore uma parceira que o
complementou no sentido de trocas necessárias para a manutenção de demandas que
servia aos dois (Perls oferecia a inquietude e vivacidade que Lore parecia não ter e
Lore parece ter oferecido a Perls a tranquilidade e equilíbrio que lhe faltavam).
Homem de sentimentos intensos, suscitava reações contra ditónas e também intensas
nas pessoas que o cercavam; é sabido que ele foi amado na mesma medida cm que foi
odiado, respeitado na mesma medida cm que foi desprezado.
Muitas vezes ao referir-se a si mesmo ele demonstrava
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claramente necessidade de exibir-se, mostrando ao mundo o quanto era formidável.
Tenho a sensação de que ele mesmo jamais acreditou que fosse formidável e na
necessidade de exibir-se podemos perceber um paradoxo constante em sua existência:
Perls pregava a liberdade e responsabilidade pela própria existência, deixando claro
que não se importava com os valores sociais, porém importava-Se com o que
pensavam dele, pois caso contrário não teria necessidade tão grande de ser
reconhecido.

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O reconhecimento para ele não significava aceitação ou inclusão, ao contrário, estava
sempre ligado a transgressões de valores morais vigentes, assim como também estava
ligado à busca incessante do reconhecimento da Gestalt-terapia, cuja eficácia e
correção eram para ele certezas absolutas.
Embora tenha inicialmente atuado como psicanalista, sua atitude sempre foi de
transgressão: jamais foi um psicanalista ortodoxo, embora tivesse atuação compatível
com o que era esperado de um psicanalista; não fez parte ativa de nenhuma escola em
psicologia, muito embora tenha fundado a Sociedade Psicanalítica da África do Sul.
Entretanto não parecia ser um psicanalista “confortável” com sua atuação, pois não
compactuava plenamente com as idéias do grupo ao qual supostamente deveria
pertencer.
A decepção com Freud assumiu aspecto fundamental para que ele pudesse romper
com a teoria que, acredito, já lhe era estranha em muitos aspectos.
Foi no ressentimento que Perls encontrou o seu melhor; do ajustamento criativo dessa
situação nasceu a Gestalt-terapia.
Outro aspecto marcante em sua vida foi o relativo à religião. Percebemos claramente
seu caminho desde criança, quando era um judeu praticante, até o fim de sua vida,
quando não acreditava em nenhuma religião, pois para ele a religião era uma maneira
confortável de eximir cada um dos seres humanos de suas responsabilidades
existenciais e também de adquirir apoio externo, o que
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era contrário ao pressuposto gestáltico de auto-apoio e regulação organísmica.
Olhar sua história é de alguma forma contemplar a solidão de Perls. Seus caminhos
foram muitas vezes áridos e solitários; demonstrou ao longo de sua vida um fluxo
contínuo de contato e retração, chegadas e partidas, sagacidade e confusão, enorme
vontade de viver e morrer. As polaridades quase extremas sempre fizeram parte de sua
vida; parecia fazer de cada ponto de chegada seu próximo ponto de partida.
Viajou, perambulou numa vida em que luxo e pobreza conviveram lado a lado, guerreou
por duas vezes e cada vez do lado de um país diferente.
Conviveu com a morte iminente e teve vida em abundância; amou profundamente e
abandonou as pessoas da mesma forma.
Viveu no geral em conformidade com sua abordagem, ou seja, “gestalticamente”.
Por viver “gestalticamente” entendo a maneira de conduzir a própria existência,
“ouvindo” seus desejos, buscando o fecha mento de figuras, regulando-se,
desenvolvendo suporte, responsabilizando-se e acima de tudo fazendo a tomada de
consciência.
Contudo, também viveu as questões nas quais as figuras inacabadas, interrupções de
contato e impasse estiveram presentes.
O fluxo cambiante entre as sucessivas figuras encontradas na vida de Perls permite-
nos pensar na riqueza de experiências que ele viveu e também na intensidade com que
viveu.
É na intensidade que localizo um dos aspectos que mais chamam a atenção. Homem
incansável ao extremo, levava a vida às últimas conseqüências; depois, parecia tão

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profundamente cansado que não mais queria viver.
Procurou levar a todos a mensagem da tomada de consciência como único caminho
para o desenvolvimento.
Ele mesmo teria feito sua tomada de consciência? Teria conseguido fechar as figuras
abertas?
209
Seu livro autobiográfico foi certamente a tentativa derradeira de colocar ordem em sua
existência, apreendendo o que dela fez sentido; nesse aspecto acredito que Perls
obteve o que esperava: uma Gestalt forte de toda sua história, entendendo os fatos não
de maneira causal, mas sim de modo processual.
Perls esteve inteiro na vida que lhe foi dada, fazendo dela a cada passo aquilo que quis
ou pôde. Porém tanta tenacidade e confusão foram recompensadas com o
reconhecimento da Gestalt-terapia.

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