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X SEL – Seminário de Estudos Literários

UNESP – Campus de Assis


ISSN: 2179-4871
www.assis.unesp.br/sel
sel@assis.unesp.br

A FIGURA DO PÍCARO NA OBRA JOÃO VÊNCIO: OS SEUS AMORES. 1

Monique Lipe Moretti (Graduanda – UNESP/Assis)


Rubens Pereira dos Santos (Professor – UNESP/Assis)

RESUMO: O presente projeto de pesquisa visa analisar “A figura do pícaro na obra João Vêncio: os seus
amores”, cujo objetivo central é analisar os elementos que compõem a figura do anti-herói João Vêncio,
protagonista do romance do autor angolano Luandino Vieira. Este livro foi escrito num contexto em que a
nação angolana passava por momentos históricos de opressão, os quais foram decisivos para o caminho
do País. Tais fatos trouxeram à luz um sentimento de resistência por parte do cidadão angolano e,
consequentemente, fizeram com que seus escritores despertassem para um sentimento nacionalista.
João Vêncio é um anti-herói que nos confessa experiências através de memórias, revelam-nos uma série
de aventuras e trapaças, por meio de uma longa conversa com seu companheiro de cela, externando,
assim, suas fragilidades, frustrações, contradições internas e sua desordem existencial. A construção do
protagonista faz-se, de acordo com nossa análise, à maneira do gênero picaresco. Sendo assim, levando
em conta o diálogo da obra de Luandino com a tradição picaresca, pretendemos demonstrar os
elementos que caracterizam o personagem João Vêncio um pícaro.

PALAVRAS-CHAVE: literatura angolana; gênero picaresco; pícaro; Luandino Vieira.

Aquele que é de Luanda

borboletas de luz
esvoaçando
de cadáver em cadáver
colhem
o fedor dos mortos em
vão
e
pelos buracos da renda
dos dias
passam alacres
do mundo do esquecimento
ao país da indiferença
levando consigo

1 O projeto de pesquisa tem como orientador o Professor Doutor Rubens Pereira dos Santos, atuante no

Departamento de Literatura da FCL - Assis. E-mail: moniquelipe@hotmail.com

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o pólen fatal
das flores da guerra
borboletas de luz
(Arlindo Barbeitos)

A leitura do poema do angolano Arlindo Barbeitos remete-nos ao cenário deplorável


em que os angolanos viviam e, no âmbito literário, faz-nos pensar sobre o grande desafio que os
poetas e escritores enfrentaram para produzir obras literárias de excelência, em meio à luta,
sofrimento, prisões e opressão aplicadas aos colonos angolanos pelo colonizador português.
Essa sensibilidade das palavras poéticas em meio à dor, à guerra e à miséria torna-se um fator
capaz de despertar no leitor um encantamento pela literatura africana.
Para entender tais confrontos sociais, econômicos e políticos, é necessário saber que
Angola encontrava-se como uma colônia de Portugal, colonizada no século XV, dependente de
Portugal até 1975, quando, finalmente, tornou-se um país independente.
Angola sofreu várias formas de repressão, como a privação de direitos (que não
existiam para os nativos, e devido sua ligação à cidadania portuguesa, não tinham direito à
defesa), o esmagamento cultural e religioso, o subdesenvolvimento educacional, as
manifestações e torturas pelo racismo, a exploração dos angolanos, impedindo sempre sua
ascensão social e intelectual.
A busca da defesa e dos direitos dos colonizados e a luta pela independência do país,
fez Luandino Vieira tornar-se membro da MPLA (Movimento Popular pela Libertação da Angola).
Esse engajamento político rendeu-lhe uma prisão de onze anos, de 1961 a 1972, por atividades
anti-colonialistas.
O escritor usa suas palavras como instrumento de luta social, ou seja, tem sua
literatura envolvida com os confrontos e tensões do país angolano e a resistência contra os
colonizadores, por isso, Luandino Vieira optou sempre em suas obras situar os aspectos
culturais do país focado nas tensões, as quais são os estados permanentes da obra e de Angola.
Luandino Vieira ou José Vieira Mateus da Graça é de origem portuguesa. Mudou-se,
ainda criança, tendo pouco mais de um ano de idade, com seus pais, para a colônia portuguesa
na África: Angola. Embora de origem lusitana, o escritor manteve estreitas relações com a
identidade nacional angolana, tal fato se confirma em seu registro civil, assim como em sua
assinatura nas produções literárias: responde pelo nome “Luandino”, ou seja, aquele que é de
Luanda.

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Na colônia, Luandino foi viver com seus pais no musseque, bairros onde vivem
pessoas das mais baixas classes sociais. Moram nos musseques, vítimas de discriminação
racial, econômica e intelectual. Foi nesse espaço que o escritor vivenciou suas experiências,
relatando mais tarde essas vivências em suas obras. Segundo o escritor, escrever sobre as lutas
das classes e injustiças é algo que ele deve a sua própria vida, “pois essas preocupações
constituem uma espécie de aquário onde nadam as minhas memórias”. (apud, GUIMARÃES,
2008).

Minha ficção sempre se alimentou da memória. É do que se inscreveu na memória que


retiro o material que submeto a todos os maus-tratos possíveis até perceber se é válido
para justificar meu trabalho sobre ele. Da actualidade conheço pouco. Mas revela-se-me
permanente e com persistência o que em minhas memórias de mais de meio século se
inscreveu - e não apaga. Tenho minhas minas para garimpar (idem).

Engajado na luta contra as mazelas sociais, o espírito crítico de Luandino se faz


presente em meio à opressão sofrida pela nação angolana, atentando-se para o despertar da
consciência crítica como libertação e declara que:

O papel de um escritor em qualquer sociedade é ser realmente, a consciência crítica dessa


sociedade [...]. Portanto, a consciência crítica seria uma consciência que aponta os erros,
as dificuldades, os defeitos; tudo quanto, na realidade, deve ser transformado para melhor.
(ibid).

Luandino se declara um contador de histórias e assim será também a personagem


analisada no romance João Vêncio: os seus amores. Neste livro, o narrador, João Vêncio, assim
como seu criador, assume a figura de um contador de histórias, evocando a recriação de sua
trajetória e experiências, a partir de suas memórias.
A visão de João Vêncio em relação ao mundo, suas opiniões e atitudes acerca das
pessoas e suas relações amorosas são elementos capazes de aproximar a personagem para a
figura de um pícaro.
Pode-se chamar de pícaro, aquele que se apoia na subversão de valores instaurados
na sociedade, é aquele que vive um mundo às avessas, que possui e rege suas próprias leis.
Segundo Antonio Cândido (1970), o pícaro é dominado pelo ambiente físico e social em que
vive, por meio dos diversos lugares em que passa e pelo contato com vários grupos e camadas
sociais. Ainda citando González:

Pícaro: a pseudo-autobiografia de um anti-herói que aparece definido como marginal à


sociedade, a narração de suas aventuras e a síntese crítica do processo de tentativa de
ascensão social pela trapaça; e nessa narração é traçada uma sátira da sociedade
contemporânea do pícaro (GONZÁLEZ, 1988, p. 42).

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O romance é narrado pelo próprio João Vêncio, ou seja, pelo narrador-protagonista,


aquele que narra e vive a história contada. Neste sentido, este recurso narrativo inverte os polos,
pois o que era para ser uma confissão de pecados acaba por situar o narrador na posição de
vítima. Isso porque a história é narrada a partir das perspectivas de suas próprias memórias.
Deste modo, ele nos remete ao seu interior, fazendo com que tenhamos acesso apenas ao seu
ponto de vista, ou seja, uma opinião fixa e focada, unilateral.

Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha a visão da realidade em
torno do seu ângulo restrito; e esta voz na primeira pessoa é um dos encantos para o leitor,
transmitindo uma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recurso psicológico de
caracterização [...] (CANDIDO, 2004, p.19).

Os acontecimentos, ao decorrer da narrativa, não ficam abertos, pelo contrário, se


fecham na conclusão de um processo, cuja explicação é construída pelo mundo existencial do
próprio protagonista. O narrador-protagonista representado por João Vêncio “Não será mais a
expressão do que acontece a alguém, mas do homem existindo no que acontece”. (GONZÁLEZ,
1988, p.10).
No romance, a dor e repressão vivida por Juvêncio na infância iniciam-se aos oito
anos. Esses acontecimentos serão resgatados por meio da memória e serão responsáveis, no
futuro, em transformar sua vida num mundo de caos e destruição.

Tanto assim que lhe falta um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que
leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’. Na
origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e
sem escrúpulos, quase como defesa [...] (CANDIDO, 2004, p. 19-20).

Pela narrativa, é possível observar o processo de transformação da personagem.


Assim, nota-se a construção da trajetória desde oito anos da personagem até o momento
presente da história. Neste contexto, Gozález declara que:

Ele se caracteriza por sua origem incerta, sua transformação num pícaro num mundo cheio
de picardia, o caráter gratuito de sua picardia, a incapacidade de amar ou de sentir
emoções fortes, a incapacidade de vincular sua personalidade a alguma ideia ou ideal
conduta, seu caos interior, que se reflete em papeis protéicos e pela instabilidade de
personalidade [...]. (GONZÁLEZ, 1994, p. 233).

João Vêncio, Juvêncio Plínio do Amaral, João Capitão Francisco do Espírito Santo e
Álias são os nomes que o protagonista assume ao decorrer da narrativa. Essas múltiplas facetas
se explicam por sua inclinação ao anonimato, pois sempre é levado a confessar suas culpas e

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por isso, a necessidade de trocar de nome ou mudar de identidade a cada lugar por onde passa.
Deste modo, faz-se mister citar González:

O que temos não é, pois a história de um herói – desenvolve em um sentido de bem


comum – mas da sua antítese que protagoniza uma série de aventuras em que se aprende
a procurar antes de qualquer coisa, seu próprio proveito e apenas isso (GONZÁLEZ, 1988,
p. 12).

A fim de conquistar prestígio na sociedade, o pícaro se auto-define como homem de


bem pela roupa que veste. Por meio desta atitude, a personagem tenta reproduzir
caricaturalmente a figura do cidadão honrado, aceito pelo código moral daquela sociedade. O
narrador usa tais artifícios numa espécie de ritual de auto-afirmação: “Até já tive emprego de
Estado, funcionário assalariado, um ano. De farda e tudo”. (VIEIRA, 1979, p. 63).
O protagonista João Vêncio, por meio de um diálogo com seu companheiro de cela,
constrói um tecido textual entrecortado por fragmentos narrativos. Assim, neste romance,
teremos narrações principais (narrativas curtas, contos, exemplos), digressões de vários tipos
(autocrítica ou crítica social) e narrações secundárias (ensinamentos, sentenças, comentários e
definições). Neste universo ficcional, a personagem envolve-se em constantes aventuras, ligadas
ao jogo das trapaças e, por conseguinte, ao risco e à mentira.

Um vencido-vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da astúcia o
seu escudo; que vivendo num mundo hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a
adversidade, acaba sempre driblando o infortúnio (GONZÁLEZ, 1994, p. 98).

Nesta passagem, podemos pensar na figura de qualquer anti-herói ou de um pícaro,


que se constrói nos defeitos opostos às qualidades do herói, como também se opõe às ações
dos feitos heróicos.
Parte da realidade do submundo frequentado pelo pícaro, o erotismo é citado nas
narrativas de João Vêncio. Entretanto, as experiências eróticas do narrador são afetadas por
uma espécie de auto-repressão sexual, motivo de comportamentos misóginos. No romance
neopicaresco, assim como no testemunho narrativo desta obra de Luandino, o amor é visto tão
somente para fins pragmáticos do pícaro.
O pícaro não trabalha, procura sempre caminhos e trabalhos alternativos. O mundo do
trabalho para João Vêncio, como não poderia ser diferente, é também o submundo do trabalho.
Desempenhando o papel do típico de um pícaro, a personagem declara que “trabalho é só para
a ‘cúria’” (comida). Assim, está sempre apoiado no disfarce de aparências, envolvido em
aventuras, resultando sempre em tentativas fracassadas. “Capinar jardim, engraxar sapato,

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vender jornal, lotaria, servir no bar, viajar de ajudante de carro, isso eu faço – trabalho serviço
que dá só a cúria. Comigo não fazem fortuna, muadié.” (VIEIRA, 1979, p. 63).
“Nasci pessoa de educação, não sou ciumoso e também não gosto de demasias, sou
normal”. (VIEIRA, 1979, p. 35). Vemos aqui um caráter que nos leva a pensar em uma pessoa
correta e de boa índole, o que passa a ser contraditório dentro da imagem deste tipo de
personagem.
É comum na história do pícaro uma origem humilde e, algumas vezes, de forma
irregular, como cita González:

Quanto à estrutura do gênero picaresco, [...] forma pseudo-autobiográfica; a genealogia do


pícaro; o encontro deste com um mundo caótico, trapaceiro; a solidão do pícaro; sua
passagem da inocência para a malícia; sua visão parcial, sarcástica e polêmica do mundo
[...]. (GONZÁLEZ, 1994, p. 224).

E identificamos tal elemento quando é contada sua aventura amorosa com Florinha: “a
Florinha-eu falo o nome bonito dela e vejo a minha mãe, desconhecida madre”. (VIEIRA, 1979,
p. 108). João Vêncio apresenta-se na narrativa como um mulato criado pelo pai, que era pedreiro
e pela madrasta com quem não se relacionava bem. Constrói, assim, a imagem do pícaro a
partir de sua desonra genealógica.
Em tom sarcástico, João Vêncio critica todo o caráter de repressão legal. Quando
preso, confronta o tribunal para se defender das acusações. É acusado das múltiplas identidades
para fugir da polícia. “Dantes eu pensava doutoro de leis e juiz, eram magnatas, eles são é
sapos no vôo, pregos no nado, na inteligência”. (VIEIRA, 1979, p. 62).
Nas passagens a seguir, há na sua confissão o gosto pelas mudanças, o que pode ser
justificado pelas múltiplas facetas que a personagem assume ao longo da narrativa. Tais ações
se configuram como características próprias do pícaro.

Juvêncio – com u, xié, ngana. João Vêncio também – e outros... João Capitão, aliás,
Francisco do Espírito Santo, aliás... O doutoro juiz chama-me é o <<Aliás>>. Para fugir a
polícia, responsabilidades? Balelas! (VIEIRA, 1968, p. 62).

Eu gosto muito de mudar de nome. Eu penso que gosto é de mudar de vida. Eu não posso
viver muito tempo na mesma casa, na mesma rua, no mesmo sítio. Sempre mudo o meu
quarto de dormir - cacimbo e chuvas. Sempre mudo as mobílias na casa. Uso e desuso
bigode. Mulher também [...] E mudo a cor do cabelo. (VIEIRA, 1979, p. 62).

Tive um cão, mudava o nome dele a cada mês – ele abanava o rabo, alegrias. (VIEIRA,
1979, p. 63).

José J. B. Martinho no prefácio da obra afirma o caráter pícaro da personagem.

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É do tipo que não se fixa - sempre de passagem. Veja-se a lista de tarefas a que se têm
dedicado pequenos biscates de marginal, para lhe garantirem a estrita sobrevivência de
pícaro [...]. João Vêncio [...] veste, apesar da maneira como defende sua imagem, as
roupagens do anti-herói. (1979, p.17).

A personagem muda de aparência física, de nome, de endereço, sempre pelo mesmo


motivo de qualquer pícaro: quer driblar a justiça vigente.

Como os pícaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nem reflexão; mas ao
contrário deles nada aprende com a experiência. De fato, um elemento importante da
picaresca é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular
a vida à luz de uma filosofia desencantada [...] (CANDIDO, 2004, p. 20).

O desafio do pícaro será sobreviver ao sistema de repressão a partir de suas trapaças


e artimanhas. Sendo assim, assume sempre um tom de persuasão em seu discurso. Num
momento da narrativa, ao se defender da acusação de heresia nos tribunais, justifica que já foi
um sacristão, apresentando novamente uma contradição com relação à sua imagem.

Religião? Todas! O muadié tem cada pergunta!... Cantei missão com minha conversada
Máristrêla e sus hermanos, a mãe dela, na escola dominical; bebi água benta e vinho de sô
padres. Eu fui sacristia-ajudante, o galheteiro era comigo. Deixei crescer minhas asas – em
procissão eu ia, pertigado, minhas penas de anjo seráfico [...] (VIEIRA, 1979, p. 65).

João Vêncio protagoniza uma série de aventuras e o caráter delas já se apresenta no


título da obra: os seus amores. Deste modo, esta personagem narra cinco aventuras que
fundamentam sua vida e resultam na sua prisão.
Em sua primeira aventura amorosa, Juvêncio apaixona-se por Tila, uma moça nova,
órfã, sua vizinha, trazida pelo doutoro. Esta personagem desperta no protagonista encanto e
desejo, sentimentos que marcam profundamente sua vida.
Tila apanhava do marido e, por muitas vezes, Juvêncio presenciou tal cena. Isso fez o
protagonista alimentar dentro de si a vontade de matá-lo. Juvêncio diz a Tila seus planos de
matar o doutoro e então se casar com ela, mas acaba levando uma surra por isso. Nesta cena,
podemos encontrar a primeira repressão e desonra pessoal sofrida pelo protagonista.
Sua segunda aventura amorosa é com Mimi, um garoto diferente de todos do
musseque. Juvêncio e os monandegues (crianças) o perturbam constantemente na escola,
caçoando da sua sensibilidade e fragilidade. Mas aos poucos Juvêncio passa a protegê-lo e logo
ambos cultivam uma amizade, transformando-se, mais adiante, num envolvimento amoroso. A
relação dura cerca de dois anos. Juvêncio é sempre muito sutil na descrição do seu
envolvimento com Mimi, com a intenção de descartar uma possível leitura preconceituosa que
poderíamos ter de seu envolvimento amoroso com seu amigo. Porém sua intenção é fracassada

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quando a professora flagra um beijo entre eles e dá uma surra nos meninos. Mimi não suporta tal
agressão e, devido a sua fragilidade física, acaba morrendo.
Juvêncio narra, então, sua terceira aventura amorosa. Nessa relação, faz menção à
sua companheira como a namorada de “verdade”, entretanto qualifica-a como “feia”, “ranhosa” e
com “focinho de puco” (rato de campo). Fato marcante em sua memória de narrador é o ritual
praticado pelo casal: caçar pássaros e furar os seus olhos com agulhas de crochê. Cabia a
Juvêncio a tarefa de afiar as agulhas, faziam isso com a justificativa de que a dor purificava a
beleza, logo os cantos dos passarinhos seriam mais belos. “Mas todos os dias a minha alegria
era encher o coração de ódio, afiar agulhas para a Máristrela, para as nossas brincadeiras com
os pássaros.” (VIEIRA, 1979, p. 42). A relação amorosa termina quando a menina, aos 12 anos,
começa a prostituir-se para o sustento da família.
Sua próxima aventura amorosa é com Florinha, passagem da obra que leva Juvêncio a
evocar a imagem de sua mãe: “Florinha - eu falo o nome bonito dela e vejo minha mãe,
desconhecida madre” (VIEIRA, 1979, p. 108). Florinha é uma prostituta e mãe de um dos
meninos do musseque, e tem seu filho morto por mordida de um cão. Depois da morte do seu
filho, pratica mensalmente um ritual com os meninos do musseque, uma espécie de iniciação
sexual precoce. Quando chega a vez de Juvêncio, a experiência não lhe é agradável, causando-
lhe revolta. Tal episódio acrescenta mais uma experiência traumática na galeria de repressões
instauradas na vida do protagonista.
A quinta e última aventura amorosa do protagonista da história é com a Bailunda,
vendida a ele pelo valor de “300 paus e uma máquina de costura”. É nela que Juvêncio vai
descarregar todas as suas vinganças, desejo que o acompanha desde menino, pelas repressões
amorosas que sofrera. Num determinado momento da relação, flagra a traição de Bailunda com
o Sô Ruas, será quando tenta matá-la estrangulando-a. Por esse motivo, é preso por tentativa
frustrada de homicídio.
João Vêncio refaz todo o percurso da sua vida, em busca da sua própria identidade,
explicando para seu companheiro de cela, chamado por ele de “muadié” (senhor), o porquê do
seu caos existencial. A presença de um interlocutor sugere a ideia de que o pícaro esteja
prestando contas de suas trapaças à sociedade.
Outro aspecto passível de observação na constituição desse tipo de personagem é o
medo da solidão. Este sentimento é constante em qualquer pícaro, as exclusões e repressões

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sofridas no decorrer da vida fazem com que tenha medo de acabar só. Na maioria dos casos, de
fato, a solidão será o fim do pícaro.

Gosto de ser vizinho da senhora morte quiatumbandala, o que eu tenho medo no mundo
só, é de ficar só (VIEIRA, 1968, p. 58).

[...] eu sou todo de gostar de missa, mas para dizer, não é para sentir só. (VIEIRA, 1979, p.
64).

O meu medo só é o que o senhoro bem sabe – voz, cara e alma de gente não encontrar, o
deserto humano, solidão de sozinho. Eu chego de dormir de luz acesa para fingir sol em
meu quarto (VIEIRA, 1979, p. 112 – 113).

O espaço do pícaro será na maioria das vezes urbano. Os pícaros na sociedade são
aqueles que não se adaptaram ao sistema de normas e valores impostos na sociedade e por
isso, acabam expulsos para as margens da cidade. O musseque será o espaço físico de João
Vêncio, podemos pensar nesse cenário como a “expulsão para as margens da cidade”. Antes de
o asfalto chegar, não existia diferença entre a cidade e o musseque, mas com o asfaltamento da
cidade de Luanda, os brancos, negros e os mestiços não dividiram mais o mesmo espaço social.
Num determinado momento da narrativa, Juvêncio faz a seguinte declaração: “Poeta? Não
insulte muadié. Sou poesista [...]” (VIEIRA, 1979, p. 46). Segundo Pinheiro, “o sufixo – ista
incorporando o neologismo aponta para uma possível associação como “terrorista”, “comunista”,
‘anarquista’ (PINHEIRO, 2002, p. 93)”, o que sugere um sentido simbólico de quebra de valores
estabelecidos, sobretudo no âmbito da linguagem e, consequentemente, de liberdade implícita
na voz do protagonista.
A obra foi escrita durante o processo de resistência ao colonialismo. Deste modo,
observamos que, além da visão pessoal de Juvêncio, há marcas de apropriações do discurso
coletivo expressas na voz subversiva atacando as convenções nas ironias e nos
questionamentos, configurando uma série de elementos que vão contra a repressão sofrida pela
nação angolana.
Podemos, então, ver a obra a partir de uma escrita argumentativa, pela qual Juvêncio
quer provar a sua inocência, sendo resistente e irônico frente as normas impostas pela
sociedade, e criando suas próprias leis.
Segundo Antonio Cândido (1970), em Dialética da Malandragem, o pícaro é de origem
ingênua, será a brutalidade da vida e o choque grosseiro com a realidade que fará com que, aos
poucos, este se torne esperto e sem caráter. Essa mudança de comportamento é a defesa que o
pícaro cria para a sua sobrevivência.

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Portanto, as repressões e a brutalidade das experiências sofridas por João Vêncio


desde a infância são fatores predominantes para o desenvolvimento e, consequente,
degeneração de seu caráter. Tal processo pode se enquadrar no discurso de Antonio Candido.
Luandino Vieira estava preso no Tarrafal, acusado de atividades anticolonialistas
quando escreveu a obra; escreveu-a num espaço de tempo de 27 de junho a 1º de julho de
1968. Este fato biográfico nos leva a pensar que o autor, nesse pequeno espaço de tempo,
talvez tivesse presenciado o relato que compõe a narrativa deste romance na cela. Neste
sentido, verdade e verossimilhança estariam, de certo modo, latentes no romance do escritor
angolano, essa marca de composição literária, de fato, é comum nos textos luandinos.
Além de demonstrar os elementos que compõem o personagem como pícaro na obra
como vimos neste trabalho, nosso projeto de pesquisa também busca trazer à luz que as
repressões sofridas pelo protagonista, seus comportamentos e pensamentos transportam para o
universo ficcional os resquícios da repressão sofrida pela sociedade colonial angolana à época
em que este livro foi escrito.
Portanto, João Vêncio, em suas aventuras pícaras, representa a quebra de uma antiga
ordem e a busca de uma nova identidade, construída entre as adversidades de um mundo
caótico.

Referências bibliográficas

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Publicação de Área de Estudos Comparados de Língua Portuguesa da Universidade de São
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http://fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/03/Artigos e Ensaios - Adriana Mello
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MOURÃO, F. A. Albuquerque. A sociedade angolana através da literatura. São Paulo: Ática,


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