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RESUMO: O presente projeto de pesquisa visa analisar “A figura do pícaro na obra João Vêncio: os seus
amores”, cujo objetivo central é analisar os elementos que compõem a figura do anti-herói João Vêncio,
protagonista do romance do autor angolano Luandino Vieira. Este livro foi escrito num contexto em que a
nação angolana passava por momentos históricos de opressão, os quais foram decisivos para o caminho
do País. Tais fatos trouxeram à luz um sentimento de resistência por parte do cidadão angolano e,
consequentemente, fizeram com que seus escritores despertassem para um sentimento nacionalista.
João Vêncio é um anti-herói que nos confessa experiências através de memórias, revelam-nos uma série
de aventuras e trapaças, por meio de uma longa conversa com seu companheiro de cela, externando,
assim, suas fragilidades, frustrações, contradições internas e sua desordem existencial. A construção do
protagonista faz-se, de acordo com nossa análise, à maneira do gênero picaresco. Sendo assim, levando
em conta o diálogo da obra de Luandino com a tradição picaresca, pretendemos demonstrar os
elementos que caracterizam o personagem João Vêncio um pícaro.
borboletas de luz
esvoaçando
de cadáver em cadáver
colhem
o fedor dos mortos em
vão
e
pelos buracos da renda
dos dias
passam alacres
do mundo do esquecimento
ao país da indiferença
levando consigo
1 O projeto de pesquisa tem como orientador o Professor Doutor Rubens Pereira dos Santos, atuante no
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
o pólen fatal
das flores da guerra
borboletas de luz
(Arlindo Barbeitos)
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Na colônia, Luandino foi viver com seus pais no musseque, bairros onde vivem
pessoas das mais baixas classes sociais. Moram nos musseques, vítimas de discriminação
racial, econômica e intelectual. Foi nesse espaço que o escritor vivenciou suas experiências,
relatando mais tarde essas vivências em suas obras. Segundo o escritor, escrever sobre as lutas
das classes e injustiças é algo que ele deve a sua própria vida, “pois essas preocupações
constituem uma espécie de aquário onde nadam as minhas memórias”. (apud, GUIMARÃES,
2008).
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Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha a visão da realidade em
torno do seu ângulo restrito; e esta voz na primeira pessoa é um dos encantos para o leitor,
transmitindo uma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recurso psicológico de
caracterização [...] (CANDIDO, 2004, p.19).
Tanto assim que lhe falta um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que
leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das ‘picardias’. Na
origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e
sem escrúpulos, quase como defesa [...] (CANDIDO, 2004, p. 19-20).
Ele se caracteriza por sua origem incerta, sua transformação num pícaro num mundo cheio
de picardia, o caráter gratuito de sua picardia, a incapacidade de amar ou de sentir
emoções fortes, a incapacidade de vincular sua personalidade a alguma ideia ou ideal
conduta, seu caos interior, que se reflete em papeis protéicos e pela instabilidade de
personalidade [...]. (GONZÁLEZ, 1994, p. 233).
João Vêncio, Juvêncio Plínio do Amaral, João Capitão Francisco do Espírito Santo e
Álias são os nomes que o protagonista assume ao decorrer da narrativa. Essas múltiplas facetas
se explicam por sua inclinação ao anonimato, pois sempre é levado a confessar suas culpas e
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por isso, a necessidade de trocar de nome ou mudar de identidade a cada lugar por onde passa.
Deste modo, faz-se mister citar González:
Um vencido-vencedor, que faz da fraqueza a sua força, do medo a sua arma, da astúcia o
seu escudo; que vivendo num mundo hostil, perseguido, escorraçado, às voltas com a
adversidade, acaba sempre driblando o infortúnio (GONZÁLEZ, 1994, p. 98).
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vender jornal, lotaria, servir no bar, viajar de ajudante de carro, isso eu faço – trabalho serviço
que dá só a cúria. Comigo não fazem fortuna, muadié.” (VIEIRA, 1979, p. 63).
“Nasci pessoa de educação, não sou ciumoso e também não gosto de demasias, sou
normal”. (VIEIRA, 1979, p. 35). Vemos aqui um caráter que nos leva a pensar em uma pessoa
correta e de boa índole, o que passa a ser contraditório dentro da imagem deste tipo de
personagem.
É comum na história do pícaro uma origem humilde e, algumas vezes, de forma
irregular, como cita González:
E identificamos tal elemento quando é contada sua aventura amorosa com Florinha: “a
Florinha-eu falo o nome bonito dela e vejo a minha mãe, desconhecida madre”. (VIEIRA, 1979,
p. 108). João Vêncio apresenta-se na narrativa como um mulato criado pelo pai, que era pedreiro
e pela madrasta com quem não se relacionava bem. Constrói, assim, a imagem do pícaro a
partir de sua desonra genealógica.
Em tom sarcástico, João Vêncio critica todo o caráter de repressão legal. Quando
preso, confronta o tribunal para se defender das acusações. É acusado das múltiplas identidades
para fugir da polícia. “Dantes eu pensava doutoro de leis e juiz, eram magnatas, eles são é
sapos no vôo, pregos no nado, na inteligência”. (VIEIRA, 1979, p. 62).
Nas passagens a seguir, há na sua confissão o gosto pelas mudanças, o que pode ser
justificado pelas múltiplas facetas que a personagem assume ao longo da narrativa. Tais ações
se configuram como características próprias do pícaro.
Juvêncio – com u, xié, ngana. João Vêncio também – e outros... João Capitão, aliás,
Francisco do Espírito Santo, aliás... O doutoro juiz chama-me é o <<Aliás>>. Para fugir a
polícia, responsabilidades? Balelas! (VIEIRA, 1968, p. 62).
Eu gosto muito de mudar de nome. Eu penso que gosto é de mudar de vida. Eu não posso
viver muito tempo na mesma casa, na mesma rua, no mesmo sítio. Sempre mudo o meu
quarto de dormir - cacimbo e chuvas. Sempre mudo as mobílias na casa. Uso e desuso
bigode. Mulher também [...] E mudo a cor do cabelo. (VIEIRA, 1979, p. 62).
Tive um cão, mudava o nome dele a cada mês – ele abanava o rabo, alegrias. (VIEIRA,
1979, p. 63).
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É do tipo que não se fixa - sempre de passagem. Veja-se a lista de tarefas a que se têm
dedicado pequenos biscates de marginal, para lhe garantirem a estrita sobrevivência de
pícaro [...]. João Vêncio [...] veste, apesar da maneira como defende sua imagem, as
roupagens do anti-herói. (1979, p.17).
Como os pícaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nem reflexão; mas ao
contrário deles nada aprende com a experiência. De fato, um elemento importante da
picaresca é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular
a vida à luz de uma filosofia desencantada [...] (CANDIDO, 2004, p. 20).
Religião? Todas! O muadié tem cada pergunta!... Cantei missão com minha conversada
Máristrêla e sus hermanos, a mãe dela, na escola dominical; bebi água benta e vinho de sô
padres. Eu fui sacristia-ajudante, o galheteiro era comigo. Deixei crescer minhas asas – em
procissão eu ia, pertigado, minhas penas de anjo seráfico [...] (VIEIRA, 1979, p. 65).
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quando a professora flagra um beijo entre eles e dá uma surra nos meninos. Mimi não suporta tal
agressão e, devido a sua fragilidade física, acaba morrendo.
Juvêncio narra, então, sua terceira aventura amorosa. Nessa relação, faz menção à
sua companheira como a namorada de “verdade”, entretanto qualifica-a como “feia”, “ranhosa” e
com “focinho de puco” (rato de campo). Fato marcante em sua memória de narrador é o ritual
praticado pelo casal: caçar pássaros e furar os seus olhos com agulhas de crochê. Cabia a
Juvêncio a tarefa de afiar as agulhas, faziam isso com a justificativa de que a dor purificava a
beleza, logo os cantos dos passarinhos seriam mais belos. “Mas todos os dias a minha alegria
era encher o coração de ódio, afiar agulhas para a Máristrela, para as nossas brincadeiras com
os pássaros.” (VIEIRA, 1979, p. 42). A relação amorosa termina quando a menina, aos 12 anos,
começa a prostituir-se para o sustento da família.
Sua próxima aventura amorosa é com Florinha, passagem da obra que leva Juvêncio a
evocar a imagem de sua mãe: “Florinha - eu falo o nome bonito dela e vejo minha mãe,
desconhecida madre” (VIEIRA, 1979, p. 108). Florinha é uma prostituta e mãe de um dos
meninos do musseque, e tem seu filho morto por mordida de um cão. Depois da morte do seu
filho, pratica mensalmente um ritual com os meninos do musseque, uma espécie de iniciação
sexual precoce. Quando chega a vez de Juvêncio, a experiência não lhe é agradável, causando-
lhe revolta. Tal episódio acrescenta mais uma experiência traumática na galeria de repressões
instauradas na vida do protagonista.
A quinta e última aventura amorosa do protagonista da história é com a Bailunda,
vendida a ele pelo valor de “300 paus e uma máquina de costura”. É nela que Juvêncio vai
descarregar todas as suas vinganças, desejo que o acompanha desde menino, pelas repressões
amorosas que sofrera. Num determinado momento da relação, flagra a traição de Bailunda com
o Sô Ruas, será quando tenta matá-la estrangulando-a. Por esse motivo, é preso por tentativa
frustrada de homicídio.
João Vêncio refaz todo o percurso da sua vida, em busca da sua própria identidade,
explicando para seu companheiro de cela, chamado por ele de “muadié” (senhor), o porquê do
seu caos existencial. A presença de um interlocutor sugere a ideia de que o pícaro esteja
prestando contas de suas trapaças à sociedade.
Outro aspecto passível de observação na constituição desse tipo de personagem é o
medo da solidão. Este sentimento é constante em qualquer pícaro, as exclusões e repressões
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sofridas no decorrer da vida fazem com que tenha medo de acabar só. Na maioria dos casos, de
fato, a solidão será o fim do pícaro.
Gosto de ser vizinho da senhora morte quiatumbandala, o que eu tenho medo no mundo
só, é de ficar só (VIEIRA, 1968, p. 58).
[...] eu sou todo de gostar de missa, mas para dizer, não é para sentir só. (VIEIRA, 1979, p.
64).
O meu medo só é o que o senhoro bem sabe – voz, cara e alma de gente não encontrar, o
deserto humano, solidão de sozinho. Eu chego de dormir de luz acesa para fingir sol em
meu quarto (VIEIRA, 1979, p. 112 – 113).
O espaço do pícaro será na maioria das vezes urbano. Os pícaros na sociedade são
aqueles que não se adaptaram ao sistema de normas e valores impostos na sociedade e por
isso, acabam expulsos para as margens da cidade. O musseque será o espaço físico de João
Vêncio, podemos pensar nesse cenário como a “expulsão para as margens da cidade”. Antes de
o asfalto chegar, não existia diferença entre a cidade e o musseque, mas com o asfaltamento da
cidade de Luanda, os brancos, negros e os mestiços não dividiram mais o mesmo espaço social.
Num determinado momento da narrativa, Juvêncio faz a seguinte declaração: “Poeta? Não
insulte muadié. Sou poesista [...]” (VIEIRA, 1979, p. 46). Segundo Pinheiro, “o sufixo – ista
incorporando o neologismo aponta para uma possível associação como “terrorista”, “comunista”,
‘anarquista’ (PINHEIRO, 2002, p. 93)”, o que sugere um sentido simbólico de quebra de valores
estabelecidos, sobretudo no âmbito da linguagem e, consequentemente, de liberdade implícita
na voz do protagonista.
A obra foi escrita durante o processo de resistência ao colonialismo. Deste modo,
observamos que, além da visão pessoal de Juvêncio, há marcas de apropriações do discurso
coletivo expressas na voz subversiva atacando as convenções nas ironias e nos
questionamentos, configurando uma série de elementos que vão contra a repressão sofrida pela
nação angolana.
Podemos, então, ver a obra a partir de uma escrita argumentativa, pela qual Juvêncio
quer provar a sua inocência, sendo resistente e irônico frente as normas impostas pela
sociedade, e criando suas próprias leis.
Segundo Antonio Cândido (1970), em Dialética da Malandragem, o pícaro é de origem
ingênua, será a brutalidade da vida e o choque grosseiro com a realidade que fará com que, aos
poucos, este se torne esperto e sem caráter. Essa mudança de comportamento é a defesa que o
pícaro cria para a sua sobrevivência.
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Referências bibliográficas
ABDALA JUNIOR, Benjamim. De vôos e ilhas: Literatura e Comunitarismos. Cotia: Ateliê, 2003.
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Publicação de Área de Estudos Comparados de Língua Portuguesa da Universidade de São
Paulo, 1999.
GUIMARÃES, Adriana Mello. Luandino Vieira: o mineiro angolano de memória. Disponível em: <
http://fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/03/Artigos e Ensaios - Adriana Mello
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ANAIS DO X SEL – SEMINÁRIO DE ESTUDOS LITERÁRIOS: “Cultura e Representação”
HAMILTON, Russel G. Literatura Africana. Literatura Necessária. Edições 70. Lisboa, 1984.
PINHEIRO, Layss Helena Teodoro. João Vêncio: os seus amores: escritura neopicaresca e
angolanidade. 2002. 107f. Tese (Doutorado em Letras) - Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, 2002.
VIEIRA, José Luandino. João Vêncio: os seus amores. Lisboa: Edições 70, 1979.
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