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Entre as obras mais exemplares dessa evidência, Terra em Transe se destaca pela prática
intencional de seus fundamentos, e demonstra a relação entre transe e antropofagia com a
construção de novas categorias estéticas para o audiovisual. Em Di/Glauber, o
procedimentto se explicita no ritual xamânico tupinambá, encenado pelo diretor. Em
ambos os filmes, o eixo teórico da antropofagia é afirmado pelo conflito, estabelecido em
todas as dimensões possíveis da linguagem cinematográfica1, assumindo a face
politicamente incorreta da desigualdade social, ilustrada pelos protagonistas dos poderes
em crise. A atitude anti-hierárquica, que afirma o lugar do atraso como ponto de partida e
de chegada de uma consciência possível, conduz sem vacilo a trajetória do herói ao
marco zero.
Manifestos
A análise dos manifestos e textos teóricos modernistas e sua conexão com o Cinema novo
brasileiro demonstrou a centralidade da Teoria da Antropofagia como base conceitual do
movimento, bem como a importância do legado do seu marco histórico, o Manifesto
Antropófago (ANDRADE, 1995). Os primeiros passos dessa polêmica teoria foram
ensaiados nos procedimentos inovadores da linguagem literária que se distanciava da
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O conflito em Terra em Transe é a constante que promove o estado de crise representada
semióticamente na instabilidade entre som e som, entre som e imagem, entre imagem e imagem, entre os
personagens, entre figura e fundo, entre luz e contra-luz, entre os objetos orquestrado pela violência das
transições permitidas pelo movimento da câmera de mão.
escrita tradicional ao se aproximar do cinema ou do cinematógrafo, na utilização dos seus
recursos estilísticos e de sua linguagem.
O Rei da Vela, peça encenada uma única vez no Brasil pelo Teatro Oficina em 1968, foi
dirigida por José Celso Martinez e se transformou, juntamente com o filme Terra em
Transe, em marco do movimento neo-antropofágico do Tropicalismo. Segundo Orna
Levin, a montagem era a imagem exemplar do diagnóstico da mesmice e de absoluta
estagnação estrutural do país apresentado entre quatro paredes aos espectadores que
também quisessem se bestificar com a percepção do escuro enorme que a peça iluminou.
Um manifesto da chacriníssima2 realidade nacional que reabilitava o poder de reinvenção
da arte, e da criatividade para combater a falta de história – síntese do nosso oportunismo.
No plano das idéias, Mário e Oswald assumem uma nova perspectiva para pensar a
cultura brasileira, que acentua o aspecto do conflito presente desde sempre no encontro
forçado das diferentes tradições que aqui tiveram que se encontrar, sobreviver e se
reinventar. Ao atribuir uma positividade ao estado de barbárie, o fato etnográfico inscrito
no ritual Tupinambá de morte e devoração do inimigo capturado servirá simultaneamente
de metáfora, diagnóstico e terapêutica, como analisa Benedito Nunes (ANDRADE,
1995). Essa atitude frente ao outro, o inimigo, se coloca de forma anti-hierárquica
restabelecendo uma positividade que emerge da situação do atraso.
Cinema e antropofagia
Nos anos 1960, alguns artistas realizaram a vingança dos seus parentes modernistas,
devorados e mal interpretados pela validação acadêmica, à maneira Tupinambá, ao
reeditarem as idéias, textos, imagens e sons de suas obras nas formas audiovisuais do
cinema, da música, do teatro e das artes plásticas. No cinema, Joaquim Pedro de Andrade
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Referência a Chacrinha, por sua vez também palhaço e Abelardo, que já ocupava espaço no vídeo
da televisão brasileira desde 1957, quando estreou na Tupi com sua Discoteca do Chacrinha, responsável
pelo lançamento de vários e importantes talentos nacionais. Apesar do tom pejorativo utilizado pela autora,
os tropicalistas, ao contrário, tinham na sua atuação, figurino e uso do corpo em cena, uma autêntica fonte
de inspiração.
e Glauber Rocha são assumidamente seguidores dos precursores modernistas, e alguns de
seus filmes poderiam ser interpretados como ensaios neoantropofágicos.
Pensar o brasileiro é destruir mitos e dessa ruína extrair o que nos é vital, essa a arte de
Macunaíma, anti-herói moldado com pedaços de lendas, raças, comidas, costumes e de
vária geografia. Capaz de ser e não-ser ao mesmo tempo ao afirmar aquilo que nega na
produção igual de solução e enganação. O país é refletido no espelho distorcido
construído com a fina ironia antropofágica dos autores modernistas e do próprio diretor.
3
acessado em http://www.filmesdoserro.com.br/film_hp.asp
obstáculos, mas divertido e criativo. Foi um pouco assim que fiz o Oswald. Não
estou mais interessado no cinema como instrumento, mas sim no cinema como
objetivo. E, como Oswald, mais aberto, desarmado e solto na maneira de compor
a conversa.
Os filmes de Glauber Rocha adicionam a essa visão um desenvolvimento teórico,
enunciado pelo cineasta no seu Manifesto Estética da Fome, no qual reinterpreta Oswald
de Andrade para o contexto cinematográfico, afirmando o seu caráter de topos da
antropofagia nos anos 1960.
De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou,
analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens
comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para
comer, personagens fugindo para comer...(ROCHA, 2004:65)
Ao assumir a violência como única expressão legítima da fome, incorpora e valoriza o
primitivo como revolucionário, restabelecendo a metáfora canibal ao apontar para o
inimigo (interno e externo), que é incapaz de compreender a força da cultura que ele nega
ou explora. Essa violência, que não incorpora o ódio, reconhece a necessidade do outro
como margem e fronteira de sua existência e autonomia, representada em Deus e o diabo
na terra do sol pelo amor brutal de Rosa, que ao destruir o mito (Sebastião), permite
entrever o devir. Sara, movida pela mesma energia amorosa, abandona Paulo em sua
agonia, e volta pela mesma estrada, apontada no gesto de Rosa.
Mais que um filme, Terra em Transe é um acontecimento, um fato que marcou a cultura
brasileira e cinematográfica, no final dos anos 1960. No contexto da ditadura, foi alvo da
censura que tentou sem sucesso compreender a mensagem subversiva do filme e acabou
convencida de que o cineasta não sabia fazer direito um filme4. No cenário internacional,
teve o reconhecimento no festival de Cannes e foi ovacionado pela crítica francesa e
européia, garantindo ao diretor um lugar de autor cinematográfico. Foi mal digerido pela
maioria da inteligência brasileira, à esquerda e à direita confirmando a tese de Darcy
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Essa aparente ironia, vem sendo repetida pelos críticos contemporâneos de Glauber Rocha, que como o
censor citado, também afirmam a incompetência técnica e narrativa presentes nos filmes do diretor. Visão
que sugere uma forma de resistência ao embate proposto pelo mau comportamento dos procedimentos
cinematográficos adotados por ele e que, a meu ver, apenas atestam a atualidade do autor e de sua obra.
Ribeiro sobre a “difícil tomada de consciência de si” (1995:132) que marca desde sempre
a relação da sociedade brasileira com a imagem bárbara do país.
Alex Viany atenta para isso, ao relativizar a importância do filme ter tido um público
restrito enfatizando no entanto o seu papel na cultura, comparando-o à Semana de Arte
Moderna, “cuja influência se foi espalhando em círculos excêntricos, influindo primeiro
naqueles que estavam mais preparados e que por sua vez trataram de passar a mensagem
a terceiros e quartos, num movimento sempre mais amplo e mais profundo.”
(CINEMAIS, 2005:73-74) Para o crítico e cineasta, Glauber criou em Terra em Transe
um compêndio das dores e mazelas da América Latina, se tornando um profeta do
subdesenvolvimento.
A fortuna crítica publicada na ocasião permite dimensionar o incômodo gerado pela obra,
que como disse Nelson Rodrigues, ficava agarrada em quem a ela se expunha. A
metáfora do vômito foi usada tanto para criar a imagem provocada pela película como
para definir a sensação diante de prato tão desagradável - o Brasil cordial sendo
atravessado e massacrado pela anamorfose da verdadeira barbárie. Segundo o
dramaturgo, o que acontecia é que
“estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil.
Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver
uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma
impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os
Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte,
para ter sentido no Brasil precisa ser esta golfada hedionda!” (CINEMAIS,
2005:80-81)
A metafísica bárbara
Oswald de Andrade dizia no Manifesto Antropófago que “O espírito recusa-se a
conceber o espírito sem o corpo” (ANDRADE, 1995:?), sendo essa marca física uma
característica do próprio modo de conceber o mundo para o eu americano. Glauber
transfere para a câmera o sentido desse aforismo, que se comportará dando substância
corporal às imagens. Por sua vez, os corpos serão o objeto privilegiado na composição do
quadro, transformados em esculturas vivas (FAVARETO, 1995:30).
Pensar com o corpo e “atender ao mundo orecular (sic!)” são os pressupostos do percurso
na consciência agônica do protagonista de Terra em Transe - nossa própria saga rumo ao
vazio constituído pelas ilusões modernistas, que o filme destrói ao optar pela perspectiva
do transe, que conduz o olhar do espectador. Corpos em transformação, imagens
instáveis, mudança contínua, apontam para a impossibilidade de redução das inúmeras
faces dos conflitos apresentados.
O filme é um ensaio político e poético, situado num terreno em que o onírico nasce do
real. Toda a linguagem é distorcida por falas literárias, textos projetados, repetições,
discursos tipificados que no seu conjunto estão a serviço da destruição dos significados
prévios e estereotipados das interpretações da nossa história política. É na violência
antropofágica que Glauber Rocha acorda o espectador que busca um líder, ou um
caminho a seguir para compreensão do filme.
Aqui também não há redenção possível como anuncia o melancólico e antropofágico fim
de Macunaíma, ao som da marchinha patriótica embalando a bandeira verde
ensangüentada, resto da devoração do herói pela Uiara. O intelectual, poeta, jornalista e
político Paulo Martins é um emblema para significar toda uma classe social que se
mobilizava para pensar mudanças no Brasil dos anos 1960.
Glauber produz uma crítica atroz aos messianismos populistas e seus voluntarismos
românticos, construindo uma visão supra-real, na qual o continuum da devoração de
fracos e fortes é produzido pelo movimento do transe, proposto ora pela imagem, ora pelo
som ou pela montagem. Esse texto, escrito com um uso original do dispositivo
cinematográfico, não se entrega fácil ao espectador, obrigado ele mesmo, a se deslocar e
perder sua própria consciência, ao entrar em contato direto com a obra, como desejava o
diretor.
Para Glauber Rocha, a problemática da consciência presente em todos os seus filmes, não
é abordada como programa didático, mas na forma cinematográfica do transe que não
visa alcançar nem a boa, nem a má consciência, mas a possibilidade do movimento e da
mudança. Por isso impede qualquer tipo de proselitismo, ou mensagem política explícita
não deixando os personagens escaparem da sua análise crítica, que se faz pela distorção e
exagero, operadores estéticos da arte barroca.
Glauber incorpora ao método antropofágico uma outra forma presente nas culturas
tradicionais indígena e africana, que é a de tomar posse do outro pela alteração do estado
de consciência, como ocorre no transe místico, estabelecendo um novo pacto com o
espectador. A começar por reconhecer que todos têm o direito a sua própria consciência,
no estágio em que ela estiver, pertencente à classe social, política ou cultural a que
pertencer, boa ou má, à esquerda ou à direita, a favor ou contra os poderosos, a favor ou
contra o povo, ou aos menos favorecidos, inclusive da própria consciência.
Alteração de si
O filme anuncia o transe logo na primeira cena onde vemos o mar e o continente do país
interno – Eldorado, embalado por um canto africano, o mesmo som do candomblé de
Barravento, primeiro filme de Glauber, onde ele denunciava a alienação das crenças
africanas as quais estavam submetidos os pescadores e a comunidade de Buraquinho,
praia do litoral da Bahia. No segundo momento, entramos no transe por meio de dois
dispositivos: a câmera de mão de Dib Lutfi, e o som quase histérico de uma bateria que
simula tambores militares e coreografa os inúmeros deslocamentos dos personagens no
terraço de Vieira, vivendo a crise da deposição do governador.
Não há como resistir, e somos tomados por essa onda de ritmo e movimento que nos
levará de um lado ao outro até o fim do filme. É como se na primeira cena o espectador
fosse vítima de um passe mediúnico no qual baixaria o santo obrigando-o a atravessar
junto a agonia do narrador póstumo, e fio condutor da epopéia. Isso se dá porque o
particular nessa história é o Brasil de ontem e sempre, mas também a América Latina e
suas relações colonialistas e de poder com os países externos,(Europa e os Estados
Unidos). Na sua reversibilidade (externo-interno), oprimidos, opressores, oprimidos
opressores, opressores oprimidos, a saga de Paulo Martins, além de ser a nossa, diz
respeito a todos os seres humanos e atinge aí o universal.
Esse fluxo de imagem e som que se segue propõe mais do que a fruição ou a reflexão
(como em Eisenstein e Rossellini), mas uma experiência real, um contato com o ser
Brasil, construído e reconstituído em alegorias pela combinação cuidadosa e detalhada de
seus emblemas. Em cada quadro, está assegurado o lugar para o representante das elites,
das forças armadas, da militância política, do poder executivo, das forças populares, da
santa igreja católica, signo esse proliferado na evocação da cruz e da fé. Não há no
entanto, qualquer figuração naturalista, o que impediria a ampliação dos sentidos e a
compreensão das parábolas dentro da visão de cada espectador.
As formas criadas não buscam parâmetros, padrões que permitam qualquer mensagem
explícita, porque tudo, absolutamente tudo, leva ao conflito, a um estado de instabilidade.
Não há um instante em que o movimento cesse, sempre proposto em mais de um registro.
O quadro enquanto dispositivo da construção metafórica do país é arruinado a cada
momento por um movimento brusco da câmera de mão ou por uma fala ou gesto
violento. O constante estado alterado de consciência do moribundo narrador produz a fala
delirante e poética do personagem, nos conduzindo sempre ao simbólico, ao abstrato, em
choque com a dureza realista das imagens, com as quais temos que nos identificar.
Tudo aqui está em excesso. A floresta, a floresta, a floresta. O sol, o sol, o sol. A
exuberância tropical é sufocante em contraposição a todos os estados de carência e de
falta presentes nas situações apresentadas. Na falta de terra para os pobres, na falta de
sinceridade dos políticos, na falta de coerência dos intelectuais, na falta de visão das
esquerdas, na falta de compaixão das direitas, na falta de coragem dos oprimidos, na falta
de saída para o pais. O ceticismo da elite e dos brasileiros é ilustrado pela fala do
magnata Júlio Fuentes, que ao ouvir de Paulo Martins a afirmação de que o país tinha
outra saida que não a dos caudilhos Fernandes ou Diaz, pergunta, para onde?
A principal delas é a polifonia composta entre as falas, trilha sonora e sons incidentais,
quase sempre percussivos, sem qualquer relação imediata com as imagens. Daí o adjetivo
operístico utilizado de forma apropriada em várias análises do filme, já que ele funciona
como uma ópera orquestrada ao som dos brasileiros Carlos Gomes, Villa Lobos e Sérgio
Ricardo e do compositor italiano, Verdi. Sobre esse último, Sérgio Magnani descreve os
elementos da sua ópera realçando o papel do coro, como o do povo, do anseio coletivo,
da paixão pela pátria e da terra e da angústia de luta e de libertação. Segundo ele,
Aqui a matéria é outra. Eldorado era o sonho dos colonizadores, uma terra mítica, rica em
metais preciosos, florestas, pássaros e animais raros que contagiaram o imaginário dos
exploradores europeus. A atmosfera do filme produz um efeito de ressonância no espaço
ampliado, como se as ações pudessem reverberar no cenário da floresta, ou na luz tropical
estourada. Tomadas aéreas e planos gerais nos dão a dimensão das áreas verdes e mesmo
do chão (filmadas no Parque Lage) tomamos contato com as plantas da floresta da Tijuca,
com seus excertos de mata atlântica.
O transe da consciência
Como é característico da obra de Glauber, não há a figura do herói já que o próprio poeta
encontra-se emaranhado nesse processo, frustrando a nossa tendência natural em idealizar
o protagonista, que é visto pelo diretor de maneira crítica. Para Robert Stam (1981;41-2),
isso caracteriza uma recusa das convenções do realismo dramático, na criação de um
narrador póstumo, como em Brás Cubas de Machado de Assis. Assim, a memória de
Paulo Martins se constitui numa auto-análise implacável de onde surge o passado de
Eldorado, sem qualquer encantamento. Picado (1990:57) chama atenção para a forma
como essa memória vai ser erigida caracterizando uma reflexividade do olhar e uma
recusa de Glauber em fazer coincidir o pensamento com a realidade. Para ele,
“A imagem virtualizada da memória do poeta em Terra em Transe é uma unidade
entre um modelo não atualizado de lembrança e uma imagem conceitual, produto
de uma intelectualização do processo de articulação das imagens.”
A imagem de Diaz condensa de forma alegórica todos os signos das nossas tradições
étnicas, religiosas e culturais que, segundo Picado, faz com que vejamos “esses seus
traços constituidores atribuídos pela imagem, de uma forma quase instantânea – seria
quase que uma atribuição sem narração”(1990:60).
Sua propedêutica diz respeito aos elementos para a construção também de uma
linguagem em transe, que elege o gênero da epopéia como narrativa, elevando a
representação de personagens à generalidade do humano. A épica, que para Glauber é
uma prática poética que do ponto de vista estético projeta o ético, narra uma determinada
saga dos povos da América Latina e do terceiro mundo, e daí a importância de marcar
com elementos da realidade o seu caráter. Criar emblemas que facilitam e ampliam o
significado de cada personagem, sempre sugerindo uma galeria de tipos de tal forma bem
construídos que podem resistir ao tempo e às mudanças que ocorreram na sociedade
brasileira por que refletem os mitos estruturantes dessa realidade.
Em Terra em Transe, as alegorias são o procedimento que permite a transição entre essas
imagens esculpidas no movimento entre mostrar e mascarar, até que se cumpra a
significação, que é resultado dos contínuos massacres e ruínas processadas ora na
imagem, ora nas falas ou no som, ampliadas pela eficiência simbólica que regula a
montagem.
No filme Di/Glauber, quase dez anos depois da realização de Terra em Transe, Glauber
retoma o tema da morte e do transe, experimentando um formato que incorpora o
documentário, a videoarte e a televisão.
Di e a manducação glauberiana.
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Aqui é a forma que está em questão, já que a antropofagia é um pressuposto assumido pelo diretor em
toda sua obra.
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Para Rubens Caixeta “o princípio antropofágico tal como praticado pelos índios americanos pressupunha
grupos sociais distintos partilhando em pé de igualdade de um mesmo universo cultural, no qual nenhum
era ou se considerava superior ao outro.” In CAIXETA, 1999. p.41. Segundo ele, a antropofagia não
poderia se dar entre modernistas e vanguardistas europeus porque não haveria pé de igualdade entre eles. A
meu ver, o autor não compreende o seguinte: 1.A antropofagia Oswaldiana modernista é uma metáfora que
simboliza a recuperação da força ancestral para combater o trauma cultural herdeiro da repressão jesuítica
que instituiu essa diferença que não existia entre os tupis da Costa e os europeus que aqui chegaram. Esses
grupos, como demonstram os relatos de viajantes e padres, tinham desejos mútuos de absorção de valores
devida a decalagem de tempo e espaço que os povos da periferia mundial estariam
condenados, já que por origem habitam as margens do centro. A perspectiva
antropofágica é crítica e produtiva ao estabelecer a troca com os outros desejados, e para
determinar o lugar do significado cultural inscrito nas próprias obras.7
uns dos outros. No Manifesto Antropófago, Oswald inverte a hierarquia da absorção dos valores
eurocêntricos demonstrando que esses dependeram em muitos casos da descoberta do outro americano. Diz
ele, “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” 2.A antropofagia
modernista vai permitir o diagnóstico dessa situação produzindo pela linguagem ou metáfora poética, a sua
superação.
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Isso vem se materializando hoje nos movimentos das periferias dos grandes centros urbanos como atesta a
neo antropofagia proposta pela Semana de Arte Moderna 2007 conceituada em seu Manifesto da
Antropofagia Periférica. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG79089-6014-
487,00.html
novas possibilidades de interação entre a obra, o real e o espectador o que será
posteriormente desenvolvido na sua atuação para o Programa Abertura e levado ao cabo
em A Idade da Terra. Essa liberdade de absorver a heteronomia adquirida na devoração
de toda e qualquer diferença é transubstanciada na afirmação de uma autonomia frente a
linguagem cinematográfica.
Para realizar essa transformação, o filme toma como objeto a morte, a morte no cinema, a
morte do ciclo modernista, a morte enquanto impossibilidade de realização de um projeto
autônomo da cultura nacional, para questioná-la. Di/Glauber, representa tanto o
movimento das idéias e da cultura, condensados na obra e vida do pintor Di Cavalcanti
como a própria situação do cineasta, nesse mesmo cenário. Fundido ao ilustre cadáver,
Glauber vai utilizar os recursos do cinema para encenar a devoração ritualística do artista,
ou nas suas palavras, para vencer o dragão, entidade que representa a dimensão mítica
das forças contrárias e poderosas que impedem a afirmação e o reconhecimento de uma
cultura genuína e vigorosa. É o dragão da maldade em sua eterna luta contra o santo
guerreiro, São Jorge, que Glauber também encarna como seu próprio personagem no
filme (ROCHA, 198?).
Para comer Di, Glauber vai incluir na sua desnarração todas as formas literárias e
midiáticas de produção de notícias, de fatos, de eventos da televisão, do rádio ou do
cinema. A página policial, o fait-divers, a crítica especializada, a narração de futebol são
utilizadas como formas iconoclastas que operam a dessacralização do ritual católico,
transformando-o em ato xamânico antropofágico (FONSECA, 1999: 50-57). Glauber
assume a figura do afim incumbido de levar Di do mundo dos vivos ao mundo dos
mortos, utilizando personagens e aspectos narrativos do mito de Orfeu e Eurídice. Essa
operação crítica que funde fato e mito causa imediato estranhamento no espectador que
não sabe mais sob qual registro deve acompanhar o desenrolar do funeral.
Logomaquia glauberiana
O conflito de imagem e som tem origem no trauma repressor simbolizado pelo funeral
católico, que faz da morte uma tragédia e ato de constrição, opondo violentamente a ele a
vitalidade da obra de Emiliano Di Cavalcanti, orquestrada pelo ritmo do corpo de Pitanga
ao som de Lamartine Babo, ambos parentes do morto. A despeito do valor atribuído pela
crítica cultural, as imagens resgatam aos nossos olhos, o vigor, a beleza e espontaneidade
registradas nos quadros, animados pela dança da câmera e do ator Antônio Pitanga.
O transe como categoria estética plurívoca permite a passagem entre estados emocionais,
que leva a momentos de crise e aponta para o que ainda não há. Essa escolha sempre
arriscada revela o desejo irresistível de libertar o espectador da imobilidade da
consciência, forçado a entrar na dança das imagens, palavras e sons.
Com poderes mágicos de um pagé, o diretor homenageia o Quarup, festa indígena de
celebração dos mortos e ressuscita Di. A morte em Di, como afirma Glauber, é um
massacre dialético que se autodefine na síntese fílmica e “é do expurgo que sobram as
metáforas vitais.” Glauber descreve aqui o procedimento alegórico, recorrente na
elaboração parabólica de suas obras, onde a destruição e a violência operam a
consciência. Para o autor, filmar a morte de Di além de ser um o ato de humor
modernista-surrealista era uma forma de resistência. Fênix Glauber, morto e renascido, se
identifica com o defunto, com a morte de um ciclo (o dos modernistas brasileiros) que se
encerra naquele caixão. Como prato de um banquete antropofágico, Glauber oferece aos
espectadores o debate vivo da cultura brasileira que suscita as “grandes indagações
metafísicas”, como ironiza o diretor.
No seu livro Diários Índios, Darcy Ribeiro (1996) anota aspectos cotidianos dos grupos
Urubu e Kaapor, do alto-xingú narrando seu cotidiano. Segundo o antropólogo, um
desses grupos costumava acordar diariamente com um choro de criança em torno das
3:30 da manhã, e então começava uma intensa movimentação em torno do fogo para
fazer o chimbé, seguido do entoamento de cantos e danças que contaminavam toda a tribo
e se transformava numa animada cerimônia, antes mesmo do galo cantar. Assim ficavam,
por quase duas horas quando então voltavam às suas redes para descansar, principalmente
em dias de chuva.
Se nada fica intocado pela metralhadora implacável do diretor, é desse arruinamento que
surge a obra de arte, nesse fluxo de dor e sangue, declarando na morte insignificante do
protagonista de Terra em Transe, o triunfo da beleza e da justiça. O princípio estético é
indagado a todo momento e colocado às vistas para a nossa perplexidade ao mesmo
tempo que nele reconhecemos algo que nos é próprio e que diz respeito a nossa
originalidade. Para Stam (1981:38), no entanto, há nesse filme uma espécie de exorcismo
artístico no qual Glauber Rocha purga seu próprio romantismo. O filme mostraria que
atitudes românticas não teriam mais lugar num mundo sujeito ao transe, o que ele mesmo
levou a cabo, provando com a sua morte prematura que a poesia e a política eram demais
para um só homem.
Terra em Transe se representa e reitera a contradição da alma brasileira, entre o que
espera que o país seja e aquilo que é, propõe que essa impossibilidade se transforme em
trunfo, em base para uma futura sociedade humana mundial, como sugere Jarbas
Medeiros (1987). Ou nas palavras de Glauber, “Construir uma civilização na América
Latina a partir de sua realidade mesma de dor, de podridão, do circo.” (MEDEIROS,
1987).