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Quasídromo

Quando entrei no bar com o editor, Victor Vhil estava à mesa, diante de sua indefectível
xícara de café. No inverno, é só o que ele bebe. Victor nos havia prometido contar tudo
sobre o Quasídromo e seu desconhecido e lendário autor. É o romance mais comentado
do meio universitário, e no entanto parece que ninguém o leu. Além disso, nunca se viu
sequer um exemplar, embora três ou quatro obras panorâmicas da literatura local o
mencionem. Em que fontes se apóiam tais obras? E como os autores, dois dos quais já
mortos, tiveram acesso ao Quasídromo? Eram estes os pontos que o editor, chegado de
São Paulo aquela manhã, esperava esclarecer. A primeira pergunta que ele fez a Victor,
no entanto, foi: "Você tem um exemplar do livro?" "Não", Victor disse, inabalável, o
bigode imerso no vapor do café. O editor fez uma careta de desolação. Depois pediu
uma cerveja e se sentou para ouvir. O bar estava vazio, o que facilitou sobremaneira a
insólita narração de Victor.

Nenhum poema de Haldo Ward jamais fora aceito por nenhuma revista ou jornal.
Mesmo reunidos em livro, seus poemas não despertaram interesse. Uma a uma, as
editoras os recusaram, através de cartas convencionais, lacônicas. Nem ao menos
sugeriram que ele eliminasse alguns poemas e modificasse outros, pois ele o teria feito,
com prazer. A Haldo Ward restou trocar de gênero. Passou ao romance. Leu todos os
que lhe caíram nas mãos e que seus olhos avistaram nas prateleiras das bibliotecas.
Não havia critério em sua linha de leitura. Um romance é um romance, bom ou ruim,
grosso ou fino. Três semanas depois, ele empreenderia sua primeira tentativa de
criação romanesca. Um fracasso. Não foi além da décima página. Muitas outras
tentativas se seguiram, e todas malograram, reduzidas a pedaços de textos
abandonados em gavetas e velhos cadernos.

Haldo decidiu, então, tornar-se contista. E voltou às bibliotecas, e folheou centenas de


coletâneas do gênero. Logo entregava-se ao exercício de criação, rabiscando os
argumentos para suas primeiras incursões. Passados seis meses, tinha ele já dois livros
prontos e mais dois a caminho. Ao quarto reservou, enfim, uma estrutura que se
poderia chamar de arrojada: os contos, lidos em conjunto, formavam uma unidade
maior, uma massa legível, talvez um romance, e a depender da direção que o leitor
adotasse, mudava o enfoque, a história se transformava. Essa descoberta o fez tremer,
suspirar. Mais que um contista, tornara-se um inventor.

Entretanto, seus contos também foram recusados. As respostas das editoras, a


despeito da mudança de gênero, não mudaram, sempre as mesmas, amadoras,
omissas, telegráficas. Haldo ficou atônito. Que era preciso fazer para publicar? Pagar do
seu próprio bolso a edição? Se prostituir pelos corredores frios da política? Desposar
uma mulher rica que o amasse, ou à sua juventude, e que fechasse os olhos ao seu
estilo, que achasse tudo muito bom, tudo magnífico? De repente, como se estacasse de
uma longa, inconsciente e desenfreada corrida, Haldo Ward compreendeu que era tudo
inútil. Seu nome jamais seria exposto nas bibliotecas e livrarias. Ele próprio não queria
ser escritor, aquele artista regular que ano a ano traz à tona de si e para a luz do
mundo um livro dileto. Era muito preguiçoso para isso.

A idéia lhe veio por acaso, meses depois, numa solitária noite de insônia. Uma idéia
avassaladora, mágica, elegante, genial. Seu livro deveria se criar a si mesmo, "em
publicando". Um texto que fosse ao mesmo tempo obra, autor, editor, crítico e, sim,
isso também, leitor. Tal idéia só poderia ocorrer a Haldo, que, distante da superfície, se
viu obrigado a enxergar em plena treva. O mais surpreendente é que ainda assim ele
continuou anônimo...

Na semana que antecedeu o carnaval de 1984 (e seguramente por isso), Haldo fez
publicar a seguinte nota no jornal: ALançamento hoje. Quasídromo, romance de Haldo
Ward, pela editora Navio Negreiro. Livraria Passagens, 19 horas". No dia seguinte,
outra nota, mais longa, comentava, com uma leve ponta de tristeza: "Ninguém
compareceu ontem, na Livraria Passagens, ao lançamento do romance Quasídromo, de
Haldo Ward. A despeito disso, sábado próximo circulará em nosso suplemento literário
um comentário crítico da referida obra, seguido de uma breve entrevista com o autor."
Eis um fiel e ágil resumo da resenha: "Quasídromo é magnífico, tom original, forma
fluente, condução impecável. História de uma mulher e um homem, numa estranha
atmosfera pós-guerra. Depois do idílio, o crime. As diferenças, então. As culpas, as
acusações, o roçar furtivo da lei, a fuga. Grávida, a mulher precisa escolher entre o
homem e a criança. Sua opção, dolorosa, conduz ao trágico e inesperado desfecho. Não
há dúvida de que Haldo Ward é uma grata promessa".

No domingo, uma última nota, e certamente escrita pelo próprio punho de Haldo Ward
(como todas as outras, aliás), arrematou o breve conhecimento de sua única obra:
"Ontem, enquanto nossos leitores liam, em nosso suplemento literário, a crítica ao
romance Quasídromo, seu autor desaparecia na Baía de Todos os Santos, após cair do
último e quase vazio ferry-boat da noite. Segundo testemunhas, o escritor passeava na
borda da embarcação, quando subitamente escorregou e foi ao mar. A embarcação
demorou a parar, apesar do alarme dos passageiros. Feita a manobra de retorno, lenta
e angustiante, descobriu-se com pavor que a vítima havia desaparecido, sem deixar
qualquer rastro. O único pertence da vítima, encontrado na água, foi um velho
exemplar de Fome, de Hamsun. Houve consenso de que ele o portava embaixo do
braço quando caiu. O editor da Navio Negreiro, consultado sobre o trágico
desaparecimento do jovem autor, externou o interesse de publicar seus inéditos".

"Então o livro não existe?!", o editor perguntou, alarmado. Victor esvaziou sua terceira
xícara de café: "Claro que existe, pois foi mencionado no jornal quatro vezes... Você só
não o leu, nem eu, nem ninguém. Mas os críticos o mencionam e, se mencionam, é
porque o leram..." Permanecemos em silêncio, digerindo o bolo. Victor se levantou:
"Publique o Quasídromo, esse punhado de folhas vazias, como muitas que há por aí".

MAYRANT GALLO. Poeta e contista. Publicou O inédito de Kafka (Cosac & Naify, 2003).
Conto publicado originalmente no Correio da Bahia, em 20/07/2003.

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