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Virgínia Woolf
Título original, The Cotnmon Reader.
Contracapa
Orelhas:
tradução de
Luciana Viégas
Rio de Janeiro
Graphia, 2007.
Tradução de: The common reader
ISBN 978-85-85277-54-3
1. Literatura inglesa - História e crítica. 2. Literatura
moderna - História e crítica. I. Título.
07-0516
CDD: 820.9 CDU: 821.111.09
Sumário
Nota do editor 7
O leitor comum 11
Notas sobre uma peça elizabetana 13
Montaigne 23
Divagações sobre Evelyn 34
Robinson Crusoe 42
Defoe 50
JaneAusten 59
Ficção moderna 71
O ponto de vista dos russos 80
O patrocinador e as flores 91
Joseph Conrad 96
Como atacar um contemporâneo 104
A Viagem Sentimental 115
Como se deve ler um livro? 123
GRAPHIA EDITORIAL Rua da Glória 366 - grupo. 1001 - Glória - Rio de Janeiro -
Brasil
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www.graphia.com.br
2007
NOTA DO EDITOR
Este livro, que resume a arte de escrever e a arte de ler segundo Virginia
Woolf, celebra quem, mesmo ignorando segredos de tais artes, protagoniza o
fenômeno literário
porque lhe cabe, como argumenta o texto de abertura, decidir o destino final de
toda e qualquer autoria: aquele que lê pelo prazer de ler, livre se possível de
tudo,
pois a liberdade é a primeira, a mais importante condição proposta nestas
páginas para o exercício pleno da leitura.
Que seria, afinal, da literatura se faltassem leitores, simples leitores, e
sobrassem escritores, críticos, teóricos e editores, todos debruçados sobre os
textos
com propósitos e pareceres profissionais? É a principal questão que o título
destes ensaios sugere de forma implícita e premonitória. Quando Virginia Woolf
os escreveu,
na primeira metade do século XX, o horizonte de um mundo sem leitores, ameaçador
não só para os que vivem da literatura mas para os que a amam, já se
prenunciava,
ainda que não fosse tão dominante. Estamos, portanto, antes de tudo, ao entrar
neste livro, no limiar do futuro.
O Leitor Comum foi originariamente publicado em dois volumes pela Hogarth Press,
o primeiro deles em 1925, sete anos após a editora ter sido fundada por Virginia
e seu marido, Leonard Woolf, na casa em que moravam. Reunião de vinte e um
textos críticos da escritora, que estreara na ficção em 1915 com The Voyage Out,
a primeira
série traz, entre inéditos e publicados em periódicos, artigos sobre obras
clássicas e temas permanentes da literatura ao lado de questões da atualidade às
vezes
diretamente relacionadas a sua militância pessoal. No primeiro caso, incluemse
os estudos sobre o teatro elizabetano e a herança paradoxal,
exuberante e tediosa, dos contemporâneos de Shakespeare; a sabedoria e a solidão
de Montaigne, na troca das disputas mundanas pela viagem ao fundo da própria
alma;
a originalidade do romance russo e a grandeza de Dostoievski, Tchecov e Tolstoi;
o lugar e o encanto da ficção de Jane Austen; o grande mar romanesco de Conrad.
No segundo caso, ao refletir sobre a arte contemporânea e as dificuldades de
julgá-la, não se furta à polêmica, resguardado o
tom sempre requintado e sutil, seja
apontando o empobrecimento da ficção inglesa de então, personificada em Wells,
Bennett e Galsworthy, por excesso de "materialismo"; seja saindo em defesa de
Joyce,
depois que a Little Review, pressionada por denúncias de imoralidade, suspendeu
a publicação de Ulisses, em 1920, - ("difícil não proclamá-la uma obra-prima",
escreve
em "A ficção moderna"); seja exemplificando, em nota de pé-de-página, a
virulência com que a crítica recebeu The Waste Land ("Um punhado de papel
inútil", segundo
The Manchester Guardian), de T. S. Eliot, um dos autores, como se sabe,
publicados pela Hogarth Press, que editou também E. M. Forster e Katherine
Mansfield e trouxe
para uma Inglaterra ainda vitoriana as obras de Freud.
Em 1932, quatro anos após a publicação de Orlando, o segundo volume de O Leitor
Comum é lançado, reunindo vinte e dois novos estudos, entre resenhas para
jornal,
inéditos e palestras. A ênfase desloca-se dos clássicos (entre os quais Sterne e
Defoe) para autores e obras que, em sua maioria, não ultrapassaram as fronteiras
nacionais.
Apresentados aqui na ordem original de publicação - à exceção do artigo dedicado
a Robinson Crusoe, que se paginou antes do estudo sobre as personagens femininas
de Defoe - os catorze textos que compõem a presente edição foram selecionados,
ressalvada a subjetividade da escolha, pela atualidade e interesse dos temas e
pela
significação de obras e autores na cultura ocidental. Conseqüentemente, apenas
três deles foram extraídos da segunda série de estudos: o mencionado ensaio
sobre
Crusoe e os dois capítulos finais.
Há pouco mais de meio século, uma leitora brasileira de rara argúcia, Lúcia
Miguel Pereira, a crítica e biógrafa de Machado de Assis, já ressaltara, em
artigo para
jornal, que os ensaios de
1925 são "nitidamente superiores" aos do volume seguinte. E ao destacar O Leitor
Comum no conjunto da obra de Virgínia Woolf, entre "as suas melhores, as suas
grandes
páginas", escreveu: "Haverá outros críticos mais profundos ou mais diferentes do
que Virginia Woolf: para só falar de vivos e de escritores de língua inglesa, aí
estão T. S. Eliot e Edmund Wilson; mas creio que nenhum a excede em finura, em
vivacidade, nenhum dá mais vontade de conhecer os autores que comenta. com ela,
embora
feita com precisão, com agudeza e com erudição, a crítica perde qualquer
dogmatismo, abandona aquele ar de superioridade que é um dos seus mais
desagradáveis
e mais freqüentes defeitos."*
O leitor comprovará, virando a página, o acerto deste juízo.
* Ver Lúcia Miguel Pereira, Escritos da maturidade, Rio de Janeiro, Graphia,
2005,
(2» edição).
Há uma frase em Life ofGray, de Dr. Johnson, que deveria estar pendurada em
certas salas, modestas demais para serem chamadas de bibliotecas, ainda que
repletas
de livros, onde algumas pessoas compartilham a leitura. "Agrada-me concordar com
o leitor comum; pois no senso comum dos leitores, não corrompido por
preconceitos
literários, a despeito de todos os refinamentos da sutileza e do dogmatismo do
aprendizado, devem finalmente decidir-se todas as pretensões de reputação
poética".
Isso define suas qualidades; dignifica suas intenções; confere a uma atividade a
que se devota grande parcela de tempo, e que, mesmo assim, tende a ser deixada
de
lado como algo não muito substancial, o aval da aprovação pelos grandes homens.
O leitor comum, como compreende Dr. Johnson, se diferencia do crítico e do
professor. Ele é menos instruído, e a natureza não o fez tão generosamente
dotado. Lê
para seu próprio prazer muito mais do que para repartir conhecimento ou corrigir
opiniões alheias. Acima de tudo, ele é guiado pelo instinto de criar para si
mesmo,
à margem de quaisquer outras miudezas que possa amealhar, alguma espécie de
plenitude - o retrato de um homem, a descrição de uma época, uma teoria da arte
de escrever.
Enquanto lê, ele jamais pára a fim de remendar alguma construção imperfeita e
precária que lhe daria a satisfação momentânea de se parecer suficientemente com
alguma
coisa real ao ponto de lhe despertar o afeto, o riso, a discussão. Impaciente,
descuidado e superficial, pinçando ora um poema, ora as sobras de um velho
cenário,
sem se importar onde o encontra ou de que natureza seja desde que sirva a seus
propósitos e sustente seus argumentos, as
deficiências críticas do leitor comum são bastante óbvias para serem apontadas;
mas se ele tem, como defende Dr. Johnson, alguma palavra final no legado das
reputações
poéticas, então, talvez, poderá valer a pena prosseguir escrevendo algumas
idéias e opiniões que, insignificantes em si mesmas, irão contribuir muitíssimo
para um
resultado.
12
NOTAS SOBRE UMA PEÇA ELIZABETANA
Existem, deve-se admitir, alguns territórios extraordinariamente notáveis na
literatura inglesa, e o principal entre eles aquela mata virgem, floresta, selva
que
é o drama elizabetano. Por muitas razões, nenhuma a ser examinada aqui,
Shakespeare se sobressai, Shakespeare que se manteve sob os focos de luz dos
seus dias aos
nossos, Shakespeare que se eleva mais ainda quando examinado ao nível de seus
próprios contemporâneos. Mas as peças dos elizabetanos menores - Greene, Dekker,
Peele,
Chapman, Beaumont e Fletcher -, aventurar-se naquela selva é para o simples
leitor uma provação, uma experiência perturbadora que o importuna com perguntas,
atormenta-o
com dúvidas, alternadamente o deliciando e o irritando com prazeres e
sofrimentos. Pois somos capazes de esquecer- lendo, como tendemos a fazer,
somente as obras-primas
de uma época passada o grande poder que o corpo de uma literatura possui para se
impor: como ele não se deixa ser lido passivamente, mas nos pega e nos ensina;
zomba
de nossos preconceitos; questiona princípios que adquirimos o hábito de
desconsiderar, e, de fato, divide-nos em duas partes enquanto lemos, fazendo-
nos, mesmo se
gostamos, ceder terreno ou empunhar nossas armas.
A princípio ao ler uma peça elizabetana somos surpreendidos pela extraordinária
discrepância entre a visão elizabetana de realidade e a nossa. A realidade a que
crescemos acostumados é, falando toscamente, baseada na vida e na morte de algum
fidalgo chamado Smith, que sucedeu a seu pai no negócio familiar de importação
de
madeira, comércio de toras e exportação de carvão vegetal, era bem considerado
nos círculos políticos, moderados e da igreja, muito fez pelos pobres de
Liverpool,
e morreu na última
quarta-feira de pneumonia enquanto visitava seu filho em Muswell Hill. Este é o
mundo que conhecemos. Eis a realidade que nossos poetas e romancistas têm de
expor
e elucidar. Então abrimos a primeira peça elizabetana que nos cai às mãos e
lemos como
/ once did see
In my young traveis through Armênia An angry unicom in hisfull career Charge
with too swiftafoot ajeweüer , ,
That watch'd himfor the treasure ofhis brow, ""?"-£ And ere he could get
shelter of a tree "'"-"
Nail him with his rich antlers to the earttí
Onde está Smith, perguntamos, onde está Liverpool? E os bosques do drama
elizabetano ecoam "onde"? Rara é a satisfação, sublime o alívio de ser liberado
para perambular
na terra do unicórnio e do joalheiro entre duques e nobres, Gonzalos e
Bellimperias, que passam a vida entre assassinatos e intrigas, vestem-se como
homens se são
mulheres, como mulheres se são homens, vêem fantasmas, enlouquecem, e morrem em
quantidade, à mais leve provocação, falando como se despejassem imprecações de
soberbo
vigor ou elegias do mais selvagem desespero. Mas logo a voz baixa, implacável,
que se quisermos identificar devemos supor típica de um leitor alimentado pela
moderna
literatura inglesa, francesa e russa, indaga por que, então, com tudo isto para
estimular e encantar, estas velhas peças são há tanto tempo tão intoleravelmente
monótonas? Não deve aquela literatura, se é para nos manter alerta durante cinco
atos ou trinta e dois capítulos, de alguma forma, ser baseada em Smith, ter um
pé
tocando Liverpool, levantar vôo em quaisquer alturas que satisfaçam à realidade?
Não somos tão tolos para supor que um homem por se chamar Smith e morar em
Liverpool
seja "real". Sabemos de fato que esta realidade é de feição camaleônica, o
fantástico tornando-
* "Certa vez eu vi/Em minhas viagens de juventude pela Armênia/Um unicórnio
raivoso em plena carreira/Atacar com os pés muito velozes um joalheiro/Que o
espreitava
pelo tesouro de sua testa,/E antes que ele pudesse se abrigar em uma
árvore/Pregou-o com seus ricos chifres à terra."
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se freqüentemente tanto mais nos acostumamos com ele o mais próximo da verdade,
o sóbrio mais afastado dela, e nada mais comprovador da grandeza de um escritor
do que sua capacidade de consolidar sua cena pelo uso daquilo que, até que ele o
tenha tocado, parecia fiapos de nuvens e fios emaranhados. Nossa argumentação
simplesmente
é de que existe uma estação, em algum lugar no espaço, de onde Smith e Liverpool
podem ser vistos com melhor proveito; que o grande artista é o homem que sabe
onde
se localizar sobre o cenário mutante; que, nunca perdendo a visão de Liverpool,
nunca a vê em uma perspectiva errada. Os elizabetanos nos aborrecem, então,
porque
seus Smiths são todos transformados em duques, suas Liverpools em ilhas
fabulosas e palácios em Gênova. Em vez de manter uma estabilidade adequada acima
da vida,
eles se elevam milhas céu adentro onde nada é visível por horas de uma vez só,
exceto uma orgia de nuvens, e uma paisagem de nuvens afinal de contas não é
satisfatória
aos olhos humanos. Os elizabetanos nos aborrecem porque sufocam nossa imaginação
em lugar de colocá-la para trabalhar.
Além disso, apesar de forte o bastante, o aborrecimento de uma peça elizabetana
é de uma qualidade totalmente diferente do aborrecimento que uma peça do século
dezenove,
uma peça de Tennyson ou de Henry Taylor, inflige. O turbilhão de imagens, a
violenta volubilidade da linguagem, tudo isto sacia e farta nos elizabetanos mas
parece
ser arrancado com um berro do mesmo modo que um fogo tênue é sugado por uma
folha de jornal. Há, até no pior, um intermitente vigor gritando que nos deixa
com
a sensação, em nossas tranqüilas poltronas, de cavalariços e de mocinhas ruivas
aparteando as falas, retrucando-as com veemência, vaiando ou manifestando
aprovação.
Mas o drama deliberado da era vitoriana é escrito evidentemente em um estúdio.
Tem como público relógios tiquetaqueando e fileiras de clássicos encadernados em
marroquim.
Não há manifestação, nem aplauso. Não deixa - como ocorreu, com todas as suas
deficiências, com o público elizabetano - a platéia incendiada. Retóricas e
bombásticas,
as falas são atiradas e impelidas à cena e conseguem as mesmas improvisações
felizes, têm a mesma exuberância e
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imprevisibilidade insolentes, que a encenação algumas vezes atinge, mas
raramente em nossa época a autoria deliberada e solitária. De fato, metade do
trabalho dos
dramaturgos,
sente-se, foi feito na época elizabetana pelo público.
Contra isto, no entanto, convém apontar o fato de que a influência do público
foi em muitos aspectos detestável. Para começar devemos ter em mente o grande
peso
que o drama elizabetano coloca sobre nós - o enredo; as incessantes,
improváveis, quase ininteligíveis circunvoluções que presumivelmente satisfaziam
de fato o espírito
de um público excitável e inculto em uma casa de espetáculos, entretanto apenas
confundem e fatigam um leitor com o livro diante de si. Indubitavelmente, alguma
coisa deve acontecer; indubitavelmente uma peça em que nada aconteça é uma
impossibilidade. Mas temos o direito de exigir (desde que os gregos provaram que
é perfeitamente
possível) que o que aconteça deve ter um fim em vista. Deve produzir grandes
emoções; trazer à tona cenas memoráveis; fazer com que os atores digam o que não
poderia
ser dito sem este estímulo. Ninguém pode deixar de lembrar o enredo de Antígona,
porque o que ocorre é tão proximamente confundido com as emoções dos atores que
lembramos as pessoas e o enredo em um único e mesmo momento. Mas quem pode nos
dizer o que acontece em White Devil ou emMaid's Tragedy, exceto pela lembrança
da
história separada das emoções que ela provocou? Quanto aos elizabetanos menores,
como Greene e Kyd, as complexidades de seus enredos são tão grandes, e a
violência
que aqueles enredos demandam tão terrível, que os próprios atores são esquecidos
e as emoções, que, de acordo pelo menos com nossas convenções, merecem a mais
cuidadosa
investigação, a análise mais delicada, são totalmente apagadas do quadro. E o
resultado é inevitável. Afora Shakespeare e talvez Ben Jonson, não há
personagens no
drama elizabetano, apenas a impetuosidade de quem sabemos tão pouco que mal
podemos cuidar que venham deles. Pegue-se qualquer herói ou heroína naquelas
peças antigas
- Bellimperia na Spanish Tragedy servirá tão bem quanto qualquer outra - e
honestamente podemos
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dizer que nos inquietamos um pouco que seja pela moça infeliz que passa por toda
uma série de misérias humanas até se matar no final? Não mais do que por um cabo
de vassoura animado, devemos replicar, e em um trabalho que lida com homens e
mulheres a prevalência de cabos de vassoura é uma desvantagem. Mas a Spanish
Tragedy
é reconhecida como uma precursora incipiente, grandemente valiosa porque tão
primitivos esforços deixam à mostra a estrutura descomunal que dramaturgos
maiores poderiam
modificar, mas têm de usar. Ford, como se sabe, é da escola de Stendhal e de
Flaubert; Ford é um psicólogo. Ford é um analista. "Este homem", afirma Mr.
Havelock
Ellis, "escreve sobre as mulheres não como um dramaturgo ou um amante, mas como
alguém que tem procurado intimamente e sentido com simpatia instintiva as fibras
dos seus corações."
A peça - 'Tis pity she's a Whore - sobre a qual este julgamento é principalmente
baseado mostra-nos por inteiro a natureza de Annabela saltando aqui e ali numa
série
de vicissitudes terríveis. Primeiro, seu irmão lhe diz que a ama; a seguir ela
confessa seu amor por ele; a seguir engravida dele; a seguir se força a casar
com
Soranzo; a seguir é descoberta; a seguir se arrepende; finalmente é morta, e é
seu amante e irmão quem a mata. Traçar o rastro de sentimentos que se pode
esperar
que tais crises e calamidades ocasionem em uma mulher de sensibilidade comum
deve ter preenchido muitos volumes. Um dramaturgo, claro, não tem um volume para
preencher.
Ele é forçado a condensar. Mesmo assim, ele pode esclarecer; pode revelar-nos o
suficiente para que adivinhemos o restante. Mas o que é isto que sabemos sem
usar
microscópios nem nos perder em minúcias sobre o caráter de Annabella? Tateando
compreendemos que ela é uma menina esperta, com seu desprezo pelo marido quando
ele
abusa dela, seus trechos de música italiana, sua astúcia atenta, sua maneira de
amar simples e alegre. Mas de caráter, como compreendemos a palavra, não há
traço.
Não sabemos como ela chega a suas conclusões, apenas que chega. Ninguém a
descreve. Ela está sempre no auge da paixão, nunca no início. Compare-a com Anna
Karenina.
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A mulher russa é de carne e osso, vibrante e temperamental, tem coração,
cérebro, corpo e mente onde a menina inglesa é plana e rude como uma face
pintada em uma
carta de baralho; ela é sem profundidade, sem extensão, sem complexidade. Mas ao
dizermos isso sabemos que perdemos alguma coisa. Deixamos o significado da peça
escapar por nossas mãos. Ignoramos a emoção que vem-se acumulando porque foi
acumulada em lugares em que não esperávamos achá-la. Estivemos comparando a peça
com
prosa e a peça, afinal de contas, é poesia.
A peça é poesia, dizemos, e o romance, prosa. Vamos tentar suprimir detalhes, e
colocar os dois diante de nós lado a lado, sentindo, tanto quanto pudermos, os
ângulos
e limites de cada um, reconsiderando cada um, tanto quanto formos capazes, como
um todo. Então, de uma vez, as diferenças básicas aparecem; o longo romance há
muito
tempo cultivado; a pequena peça concisa; a emoção toda cindida, dissipada e
depois recomposta, devagar e gradualmente reunida em um todo, no romance; a
emoção concentrada,
generalizada, elevada na peça. Que momentos de intensidade, que frases de beleza
estonteante a peça nos atira!
O, my lords,
I but deceived your eyes with antic gesture, * • f
When one news straight carne huddling on another ,i, Ofdeath! anddeath!
anddeath! still Idanced forward* : ;;
r\--
Ou
Youhave oftfor thesetwolips Neglected cássia or the natural sweets Ofthe spring-
violet: they are not yet much wither 'd. *" com toda sua realidade, Anna
Karenina
jamais diria:
"You have oftfor these two lips Neglected cássia ".
' Oh, lordes,/ Apenas enganei seus olhos com caretas / Quando umas notícias
chegavam misturadas a outras / De morte! morte! morte! E ainda dancei diante
dela."
" "Quase sempre tens por estes lábios / Rejeitado as cássias ou as doçuras
naturais / Das violetas em flor: elas ainda não estão muito murchas."
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Algumas das mais profundas emoções humanas ficam por esta razão fora do alcance
dela. Os extremos da paixão não são para o romancista; os casamentos perfeitos
de
som e sentido não são para ele; ele precisa domesticar sua velocidade até a
lentidão; manter seus olhos no chão, não no céu; sugerir pela descrição, não
revelar
pela iluminação. Em vez de cantar
Lay a garland on my hearse
Ofthedismalyew; Maidens, willow branches bear; ,
Say I died true, *
ele deve enumerar os crisântemos murchando sobre uma sepultura e os homens da
funerária bufando com pressa em suas carruagens. Como, portanto, podemos
comparar
esta arte pesada e morosa com a poesia? Garantidas todas as pequenas habilidades
pelas quais o romancista nos faz saber o individual e reconhecer o real, o
dramaturgo
segue além do específico e distinto, mostrando não Annabella amando, mas o amor
em si; não Anna Karenina se jogando debaixo do trem, mas a ruína e a morte e a
...soul, like a ship in a black storm, ... driven, Iknow not whither."*
Portanto, com perdoavel impaciência podemos exclamar ao terminarmos nossa peça
elizabetana. Mas qual é então a exclamação com que fechamos Guerra e Pazl
Nenhuma
de desapontamento; não somos deixados lamentando a superficialidade, censurando
a trivialidade da arte do romancista. Antes, nos tornamos mais do que nunca
cientes
da riqueza incansável da sensibilidade humana. Aqui, na peça, reconhecemos o
geral; ali, no romance, o particular. Aqui reunimos todas as nossas energias em
um ramaIhete
e florescem. Ali nos estendemos e nos expandimos e deixamos
* "Ponham uma guirlanda em meu caixão / De teixo escuro / Donzelas, trazei os
ramos do
salgueiro / Digam, estou morto de verdade."
** "...alma, como um navio na negra tempestade, /...guiada, não sei para onde."
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vir com vagar de todos os quadrantes impressões deliberadas, mensagens
acumuladas. A mente fica tão saturada de sensibilidade, a linguagem tão
inadequada à
sua experiência, que, longe de descartar uma forma de literatura ou de decretar
sua inferioridade em relação às outras, nos queixamos de que são incapazes de se
manter passo a passo com a riqueza do material, e esperamos com impaciência a
criação do que poderia ainda ser imaginado para nos liberar do enorme peso do
inexpressado.
Assim, apesar da monotonia, do tom bombástico, da retórica, e da confusão, ainda
lemos os elizabetanos menores, ainda continuamos nos aventurando na terra do
joalheiro
e do unicórnio. As fábricas familiares de Liverpool se esvanecem no ar e mal
reconhecemos qualquer semelhança entre o fidalgo que importava toras de madeira
e morreu
de pneumonia em Muswell Hill e o Duque da Armênia que morria como um romano pela
espada enquanto a coruja guinchava na hera e a Duqueza dava à luz um bebê morto
entre mulheres uivando. Para ligar aqueles territórios e reconhecer o mesmo
homem em diferentes disfarces temos de nos ajustar e corrigir. E fazer as
necessárias
alterações de perspectiva, retirar naqueles filamentos de sensibilidade o que os
modernos têm tão maravilhosamente desenvolvido, usar em seu lugar o ouvido e o
olho
que os modernos têm tão radicalmente enfraquecido, ouvir as palavras conforme
são gargalhadas e gritadas, não conforme são impressas nas letras pretas sobre a
página,
ver diante dos olhos as faces mutantes e os corpos vivos de homens e mulheres -
colocar-se, em resumo, em um estágio diferente porém não mais elementar de
desenvolvimento
de sua leitura e então os méritos verdadeiros do drama elizabetano irão afirmar-
se. O poder do conjunto é inegável. Deles, também, é o talento da invenção de
palavras,
como se o pensamento mergulhasse em um mar de palavras e brotasse grotejando.
Deles é aquele humor franco baseado na nudez do corpo que, por mais
ardorosamente que
o espírito público possa tentar, é impossível uma vez que o corpo está vestido.
Então, por trás disso, impondo não a unidade mas alguma espécie de estabilidade,
está aquilo que se pode sumariamente chamar de o senso da presença dos Deuses.
Seria um
crítico corajoso aquele que tentasse impor algum credo à quantidade e à
variedade de dramaturgos elizabetanos, e, no entanto, subentende-se timidez se
desconsiderarmos
que um conjunto da literatura com características comuns é uma mera exalação dos
altos espíritos, uma empresa de fazer dinheiro, um feliz acaso intelectual que,
por circunstâncias favoráveis, irrompe sucessivamente. Mesmo na mata e na selva
a bússola continua a orientar.
"Lord, Lord, that l were dead!"* •
estão para sempre chorando.
O thou soft natural death that art joiní-twin To sweetest alumber -**
O espetáculo do mundo é maravilhoso, maS o espetáculo do mundo é vaidade. , , ••
glories
Ofhuman greatness are butpleasing dreams
And shadows soon decaying; on the stage
Ofmy mortality my youth hath acted
Some scenes ofvanity - *** • .
Morrer e se desembaraçar de tudo é o desejo deles; o sino que badala por todo o
drama é morte e desencantamento.
Ali life is but a wandering tofind home, "•
When we're gone, we're there."**
A ruína, o cansaço, a morte, perpetuamente a morte, colocam-se inflexivelmente
em confronto com outra presença do drama elizabetano que é a vida; a vida farta
de
fragatas, pinheiros e marfim, de delfins e de néctar das flores do verão, do
leite de unicórnios e do hálito de panteras, de colares de pérolas, cérebros
20
* "Deus, ó Deus, estivesse eu morto!"
" "Oh, vossa suave morte natural que é semelhante / Ao mais doce descanso -"
Glórias / da grandeza humana são nada mais que bons sonhos / e sombras em breve
decaindo; no palco / De minha morte minha juventude tem representado / Algumas
cenas
de vaidade."
*"* "Toda a vida é somente o sonho de encontrar a casa / De onde viemos, para
onde iremos."
21
de pavão e vinho de Creta. A isto, a vida a mais temerária e abundante, eles
respondem
Man is a tree that hath no top in cares,
No root in comforts; allhis powerto live " '"'
Is given to no endbut t'have power to grieve*
Este é o eco lançado com veemência do outro lado da peça que, se não tem o nome,
ainda mostra o efeito da presença dos Deuses. Assim divagamos pela mata,
floresta
e selva do drama elizabetano. Assim nos relacionamos com imperadores e palhaços,
joalheiros e unicórnios, rimos e nos exultamos e maravilhamos com o esplendor,
o humor e a fantasia de tudo isto. Uma raiva nobre nos consome quando cai a
cortina; ficamos aborrecidos, também, e enjoados com os velhos truques
enfadonhos e
os floreados bombásticos. Uma dezena de mortes de mulheres e homens maduros nos
mobiliza menos que o sofrimento de um vôo de Tolstoi. Perambulando no labirinto
da
história impossível e tediosa subitamente algum ímpeto apaixonado se apodera de
nós; alguma sublimidade se exalta, ou algum trecho harmonioso de música encanta.
É um mundo cheio de tédio e delícia, prazer e curiosidade, de riso extravagante,
poesia e esplendor. Mas aos poucos isto se apossa de nós, e então estamos sendo
contraditórios? O que é isto que estamos querendo com tanta persistência, que a
menos que tenhamos instantaneamente, devemos procurar em outros lugares? É a
solidão.
Não há privacidade aqui. Sempre a porta abre e alguém entra. Tudo é
compartilhado, tornado visível, audível, dramático. Enquanto isso, como se
cansada da companhia,
a mente se retira para meditar em solidão; para pensar, não para agir; para
criticar, não para compartilhar; para explorar sua própria escuridão, não as
faces esplendorosas
dos outros. Ela retorna para Donne, para Montaigne, para Sir Thomas Browne, para
os guardiões das chaves da solidão.
' "O homem é uma árvore sem grandes cuidados na cabeça, / Sem raízes
confortáveis; todo seu poder vital / E dado para fim nenhum senão ter o poder de
chorar."
22
MONTAIGNE
Certa vez, em Bar-le-duc, Montaigne viu um retrato que Renato, Rei da
Sicilia, fizera de si mesmo, e indagou, "Por que, da mesma maneira, não é
permitido a qualquer
um se desenhar com uma pena, como ele fez com crayonT' Imediatamente alguém deve
ter respondido, que não só é permitido como nada pode ser mais fácil. Outras
pessoas
podem iludir-nos, mas nossas próprias feições são demasiado familiares.
Comecemos. E então, quando nos aventuramos na tarefa, a pena escorrega de nossos
dedos; é
um assunto de profunda, misteriosa e esmagadora dificuldade.
Afinal, no conjunto da literatura, quantas pessoas conseguiram retratar-se com
uma pena? Somente Montaigne e Pepys e talvez Rousseau. AReligio Mediei é um
vidro
colorido através do qual se vêem obscuramente corridas de estrelas e uma alma
estranha e atormentada. Um espelho brilhante e bem polido reflete a fisionomia
de Boswell
espreitando entre os ombros de outras pessoas na biografia famosa. Mas este
relato de si mesmo, seguindo as próprias fantasias, dando o mapa completo, o
peso, a
cor, e o diâmetro da alma em sua desordem, sua polimorfia, sua imperfeição -
esta arte pertenceu a um homem apenas: a Montaigne. Conforme se passam os
séculos, sempre
há uma multidão diante deste retrato, examinando em suas profundezas, vendo sua
própria face nele refletido, vendo mais longe do que costuma olhar, nunca apta a
expressar com exatidão um pouco daquilo que vê. Novas edições comprovam esta
perene fascinação. Neste momento, a Navarre Society está reeditando na
Inglaterra em
cinco belos volumes * a tradução de Cotton; ao mesmo tempo na França a empresa
de Louis Conard publica as obras completas de Montaigne com as várias revisões
em
edição a que
Dr. Armaingaud dedicou um longo tempo de pesquisas.
Contar a verdade sobre si mesmo, revelar-se como na palma da mão, não é fácil.
Não ouvimos falar de mais do que dois ou três precursores que persistiram nesta
trilha [disse Montaigne]. Ninguém desde então seguiu-lhes as pegadas; é um
caminho
acidentado, muito mais do que parece, seguir um andar tão errante e incerto,
quanto o da alma; penetrar as obscuras profundidades de seus meandros mais
íntimos;
selecionar e capturar tantos pequenos impulsos de sutil agilidade; trata-se de
um empreendimento novo e extraordinário, e que nos priva das mais corriqueiras e
recomendadas
ocupações mundanas.
Há, em primeiro lugar, a dificuldade de expressão. Todos nós nos deixamos levar
pelo estranho e delicioso processo chamado pensamento, mas quando ele começa a
falar,
ainda que a um oponente nosso, o que pensamos, como ficamos insignificantes para
o transmitir! O fantasma atravessa a mente e fica do lado de fora das janelas
antes
que consigamos saltar em seu rabo, ou bem devagar afunda e retorna para a
escuridão profunda que se iluminou por um momento de uma luz inconstante. Rosto,
voz e
sotaque suprem com dificuldade nossas palavras e marcam a debilidade delas
fortemente quando se fala. No entanto, a pena é um instrumento rígido; pode
dizer muito
pouco; possui todos os tipos de hábitos e cerimônias próprias. Também é
ditadora; está sempre transformando homens comuns em profetas, e alterando a
viagem naturalmente
cambaleante da fala humana em uma marcha solene e estática de estilos. É por
esta razão que Montaigne se sobressai da legião de mortos com uma vivacidade tão
irreprimível.
Não duvidamos nem por um instante de que seu livro era ele mesmo. Ele
" Essays of Montaigne, tradução de Charles Cotton, 5 volumes. The Na varre
Society,
6 libras. (Nota da edição inglesa.)
24
se recusou a ensinar; se negou a fazer pregações; manteve-se declarando que era
exatamente igual às outras pessoas. Todos os seus esforços foram para se
descrever,
para comunicar, para contar a verdade, e ela era' 'um caminho acidentado, muito
mais do que parece. Pois além da dificuldade de comunicação propriamente, há a
suprema
dificuldade de ser si mesmo. A alma, ou a vida dentro de nós, de maneira alguma
concorda com a vida exterior. Se alguém tiver a coragem de lhe perguntar o que
pensa,
ela sempre responderá o exato oposto ao que outras pessoas diriam. Outras
pessoas, por exemplo, há muito tempo resolveram que os cavalheiros idosos e
inválidos devem
ficar em casa e instruir todos os demais com o espetáculo de sua fidelidade
matrimonial. A alma de Montaigne diz, ao contrário, que é na velhice que se deve
viajar
e que ao casamento - que, certamente, estaria com maior freqüência fundado no
amor - nas proximidades do fim da vida, assenta melhor uma gravata formal de que
dispensá-la.
Retornando à discussão política, os governantes estão sempre exaltando as
grandezas do Império, e apregoando a obrigação moral de civilizar o selvagem.
Mas examinando
a Espanha no México, Montaigne revoltou-se numa explosão de raiva. "Tantas
cidades demolidas, tantas nações exterminadas... e a parte mais rica e mais
bonita do
mundo arrasada pelo tráfico de pimenta e pérola! Conquistas da máquina!" Assim,
quando os camponeses chegaram e lhe disseram que haviam encontrado um homem
mortalmente
ferido e o abandonaram por medo de que a justiça os incriminasse, Montaigne
indagou:
O que eu poderia ter dito àquelas pessoas? É certo que este dever de humanidade
lhes causaria problemas... Nada mais há nem tão grosseiramente nem tão
ordinariamente
falho quanto as leis.
Aqui a alma, tomada de impaciência, agride as formas mais palpáveis das grandes
assombrações de Montaigne, a convenção e a cerimônia. Mas acompanhem-na enquanto
ela medita junto ao fogo na sala íntima daquela torre em que, mesmo separada do
castelo principal, possui uma visão abrangente da situação. De fato ela é a mais
esquisita criatura do mundo, próxima do heróico,
25
volúvel como um catavento, "tímida, insolente; casta, lasciva; tagarela,
silenciosa; diligente, delicada; criativa, enfadonha; melancólica, agradável;
mentirosa,
verdadeira; erudita, ignorante; liberal, sovina e pródiga" - em resumo, tão
complexa, tão indefinida, correspondendo tão pouco à versão que a ela se atribui
em público,
que o homem pode consumir sua vida meramente correndo atrás dela pôr toda a
terra. O prazer da procura supera qualquer dano que se possa impor às
perspectivas mundanas
de alguém. O homem que é ciente de si mesmo é a partir de então independente; e
nunca está aborrecido, e a vida é apenas muito curta, e ele está completamente
imerso
em uma felicidade profunda ainda que moderada. Ele simplesmente vive, enquanto
outras pessoas, escravas das cerimônias, deixam que a vida escape por elas numa
espécie
de devaneio. Às vezes se conformam, às vezes fazem o que outras fazem pois elas
assim o fazem, e a letargia se apossa sobretudo das mais refinadas disposições e
capacidades da alma. Ela se torna disforme e vazia por dentro; entorpecida,
insensível e indiferente.
com certeza, então, se pedimos a este grande mestre da arte de viver que nos
conte seu segredo, ele nos recomendará que nos recolhamos à sala íntima de nossa
torre
e lá fiquemos a folhear as páginas dos livros, a perseguir fantasia após
fantasia enquanto elas se seguem umas às outras pela chaminé, e deixar o governo
do mundo
para os outros. Recolhimento e contemplação - estes devem ser os principais
elementos de sua prescrição. Mas não; Montaigne não é de maneira alguma
explícito. É
impossível extrair uma resposta clara e simples daquele homem sutil, meio
sorridente, meio melancólico, com suas pálpebras pesadas e a expressão sonhadora
e zombeteira.
A verdade é que a vida no campo, com alguns livros e verduras e flores, é quase
sempre extremamente insípida. Ele nunca pôde ver que suas ervilhas verdes eram
muito
melhores que as de outras pessoas. Paris foi o lugar que mais amou no mundo -
"jusques à sés vermes et à sés taches".*
* Traduções livres do texto original de Montaigne foram agrupadas no final do
capítulo. (Nota da tradutora.)
26
Quanto à leitura, ele raramente podia ler qualquer livro por mais de uma hora, e
sua memória era tão fraca que esquecia o que estava em sua cabeça enquanto
andava
de um quarto a outro. O saber livresco não é digno de muito orgulho, e em
relação às conquistas da ciência, quanto elas custariam? Ele sempre se misturou
a homens
inteligentes, e seu pai devotava uma veneração indiscutível por eles, mas ele
observou que, apesar de terem seus momentos de fineza, seus exageros, suas
miragens,
o mais iluminado deles estremece quando à beira da loucura. Observe por si
mesmo: em um momento você está enlevado; no minuto seguinte, uns óculos
quebrados põem
seus nervos no limite. Todos os extremos são perigosos. É melhor se manter no
centro da estrada, nos trilhos habituais, ainda que gastos. Ao escrever, escolha
as
palavras cotidianas; escape dos exageros e da eloqüência - porém, é bem verdade,
a poesia é uma delícia; a melhor prosa é aquela que mais estiver entranhada de
poesia.
Parece, assim, que estamos almejando a uma simplicidade democrática. Podemos nos
regalar em nosso quarto na torre, com as paredes pintadas e as estantes
espaçosas,
mas lá embaixo no jardim há um lavrador que enterrou seu pai pela manhã, e é ele
e os seus que vivem a vida real e falam o idioma real. Há com certeza uma
partícula
de verdade nisso. Coisas são ditas com muita elegância ao fim da mais humilde
refeição. Talvez haja mais das qualidades que interessam entre os incultos do
que
entre os instruídos. Mas, por outro lado, que coisa desprezível é o populacho!
"a mãe da ignorância, da injustiça, e da inconstância. Será razoável que a vida
de
um homem culto deva depender do julgamento de parvos?" Suas mentes são frágeis,
mansas e sem poder de resistência. Devem ser orientados sobre o que lhes é útil
saber.
Não lhes cabe encarar os fatos como são. A verdade só pode ser conhecida pelas
almas bem-nascidas - "l'âme bien née". Quem, então, são estas almas bem-
nascidas,
a quem deveremos imitar se somente Montaigne nos esclarece com exatidão?
Mas não. "Je n'enseigne poinct; je raconte." Apesar de tudo, como ele pôde
explicar às almas de outras pessoas se nada pode-
27
ria dizer "inteiramente simples e sólido, sem confusão ou mistura, numa só
palavra", sobre si mesmo, quando de fato isto lhe vinha mais e mais obscuro a
cada dia?
Uma propriedade ou princípio há talvez - não se devem fixar regras. As almas com
quem gostaríamos de nos assemelhar, como Etienne de La Boétie, por exemplo, são
sempre as mais condescendentes. "C'est être, mais cê n'est pás vivre, que de se
tenir attaché et obligé par necessite a un seul train". Leis são meras
convenções,
incapazes de salvaguardar vestígios da imensa variedade e do tumulto dos
impulsos humanos; os hábitos e os costumes são conveniências tramadas como
amparo para naturezas
tímidas que não ousam permitir a suas almas movimentos livres. Mas nós, que
temos uma vida própria e a resguardamos até o infinito como a mais preciosa de
nossas
posses, suspeitamos muito de uma orientação. Sem rodeios começamos a protestar,
a assumir também posições, a ditar leis, definhamos. Vivemos para os outros, não
para nós mesmos. Devemos respeitar aqueles que se sacrificam em serviços
públicos, cumular-lhes de honras, e nos apiedarmos deles por tolerarem, já que
assim deve
ser, os compromissos inevitáveis; mas quanto a nós, que se esvaneçam fama,
honra, e todas as ocupações que nos coloquem devendo favores a alguém. Deixemos
que se
aqueçam nosso caldeirão incalculável, nossa cativante confusão, nossa salada de
impulsos, nosso milagre incessante - pois a alma se assombra a cada segundo. O
movimento
e a mudança são a essência de nosso ser; a rigidez é a morte; conformidade é
morte: vamos revelar o que se passa em nossas cabeças, nos repetir, nos
contradizer,
espalhando no ar as bobagens mais impensadas, e seguir as fantasias mais
fantásticas sem se preocupar com o que o mundo faz ou pensa ou diz. Pois nada
importa exceto
vida; e, é claro, ordem. Esta liberdade, então, que é a essência de nosso ser,
deve ser controlada. Mas é difícil vislumbrar qual poder invocaremos para nos
ajudar,
uma vez que todas as restrições à opinião particular ou à lei pública têm sido
escarnecidas, e Montaigne jamais deixa de despejar desprezo sobre a miséria, a
fragilidade,
a vaidade da natureza humana. Talvez, portanto, seria aconselhável o retorno à
28
religião para que nos guie? "Talvez" é uma de suas expressões favoritas;
"talvez" e "eu acho" e todos aqueles termos qualificativos de suposições
precipitadas da
ignorância humana. Estas palavras ajudam a abafar opiniões que seriam altamente
impelidas se professadas com franqueza. Para alguns, nada significam; existem
algumas
coisas no presente que devem ser apenas insinuadas. Escreve-se para muito poucas
pessoas, as que compreendem. com certeza, aspira-se à orientação divina de todas
as formas, mas, entretanto, há, para aqueles que gozam de uma vida própria,
outro guia, um censor invisível interno, "un patron au dedans", cuja censura é
muito
mais temível do que qualquer outra pois conhece a verdade; também não há nada
mais agradável que a sonoridade de sua aprovação. Este é o juiz a quem devemos
nos
submeter; é o censor que nos ajudará a conquistar a graça daquelas almas bem-
nascidas. Pois "c'est une vie exquise, elle qui se maintient en ordre jusques en
son
prive". Mas ele agirá mediante luz própria; por algum equilíbrio interno
conseguirá aquela estabilidade precária e inconstante que, enquanto sob
controle, de maneira
alguma impede a liberdade da alma de investigar e experimentar. Sem outro guia,
e sem precedente, por certo é muito mais difícil viver bem a vida privada do que
a pública. É uma arte que cada um deve aprender consigo mesmo, embora existam,
quem sabe, dois ou três homens, como Homero, Alexandre, o Grande, e Epaminondas
entre
os antigos, e Etienne de La Boétie entre os modernos, cujo exemplo pode nos
auxiliar. Mas é uma arte; e a matéria real em que se trabalha é variável,
complexa e
infinitamente misteriosa - a natureza humana. Dela devemos ficar bem perto. "...
il faut vivre entre lês vivants". Convém recearmos qualquer excentricidade ou
requinte
que nos aparte de nossos semelhantes. Abençoados são todos que conversam
facilmente com seus vizinhos sobre suas atividades esportivas ou seus prédios ou
seus aborrecimentos,
e com sinceridade apreciam a prosa de carpinteiros e jardineiros. A comunicação
é nossa tarefa principal; a sociedade e o companheirismo nossos prazeres
principais;
e a leitura, não para acumular conhecimento, não para ganhar a vida,
29
mas para alargar as relações com nosso tempo e nossa província. Tais maravilhas
estão no mundo; aves fabulosas e terras desconhecidas, homens com cabeças de cão
e olhos no peito, e leis e costumes, tudo pode acontecer, bem acima de nós. É
possível que estejamos adormecidos neste mundo; é possível que haja algum outro
em
que sejam reveladas aos seres percepções que nos faltam agora.
Eis aqui, a despeito de todas as contradições e de todas as qualidades, algo
definido. Estes ensaios são uma tentativa de comunicação de uma alma. Neste
ponto, pelo
menos, ele é explícito. Não é a fama que deseja; não é daqueles tipos de homem
que buscam renome no futuro; não está levantando uma estátua na praça do
mercado;
ele deseja somente comunicar sua alma. A comunicação é saúde; a comunicação é a
verdade; a comunicação é a felicidade. Compartilhar é nossa obrigação; ir até o
fundo
ousadamente e trazer à luz os mais mórbidos dos pensamentos ocultos; nada
esconder; nada fingir; se somos ignorantes digamos então; se amamos nossos
amigos deixemos
que saibam disso.
"... car, comme je sais par une trop certaine expérience, U n 'est aucune si
douce consolation en Ia perte de nos amis que celle que nous aporte Ia science
de n'avoir
rien oublié a leur dire et d'avoir eu avec eux une parfaite et entière
communication.
Há pessoas que, quando viajam, se agasalham, "se défendans de Ia contagion d'un
air incognu", em silêncio e desconfiadas. Ao jantar, precisam servir-se da mesma
comida que têm em casa. Todas as paisagens e costumes são ruins a menos que se
pareçam com os de sua província. Viajam apenas para retornar. Esta é de todas a
pior
forma de começar. Deveríamos partir sem qualquer idéia fixa de onde passaremos a
noite, ou de quando pretendemos voltar; a viagem é tudo. O mais necessário,
conquanto
seja sorte mais rara, é que antes de partir devemos tentar encontrar alguma
pessoa de nosso estilo que siga conosco e a quem possamos dizer a primeira coisa
que
nos venha à cabeça. Pois o prazer não tem sabor algum a não ser que o
compartilhemos. Quanto aos perigos
30
- podemos nos resfriar ou ter uma dor de cabeça - sempre vale a pena se arriscar
a uma indisposição por causa de um prazer. "Lê plaisir est dês principales
espèces
du profit". Além disso, se fazemos o que gostamos, sempre fazemos o que é
bom para nós. Médicos e homens prudentes podem se opor, mas vamos abandonar
médicos e
homens prudentes à triste filosofia que professam. De nossa parte, que somos
homens e mulheres comuns, vamos agradecer à Natureza por sua generosidade
aproveitando
cada um dos sentidos que ela nos deu; variando de circunstância tanto quanto
possível; indo ora para este lado, ora para aquele, no rumo da cordialidade, e
saboreando
por inteiro, antes que o sol se ponha, os beijos da juventude e os ecos de uma
voz bonita cantando Catulo. Toda estação é aprazível e os dias chuvosos e os
belos,
o vinho tinto e o branco, a companhia e a solidão. Mesmo o sono, esta deplorável
restrição à alegria de viver, pode ser pleno de sonhos; e as ações mais
corriqueiras
- uma caminhada, um diálogo, a solidão em nosso quintal - podem ser realçadas e
iluminadas pela cooperação do pensamento. A beleza está em todo o lugar, e a
beleza
representa não mais que uma pitada da bondade. Logo, em nome da saúde e da
sanidade, não vamos nos alongar sobre o fim da jornada. Que a morte caia sobre
nós no
plantio de repolhos, ou quando estivermos a cavalo, ou que sorrateiros nos
escondamos em alguma cabana e, lá, estranhos nos fechem os olhos, pois um soluço
de um
criado ou um toque de mãos nos faria sucumbir. Melhor de tudo, que a morte nos
encontre em nossas ocupações cotidianas, entre meninas e bons companheiros que
não
protestariam nem se lamentariam; que nos ache "parmi lês jeux, lês festins,
faceties, entretiens communs et populaires, et Ia musique, et dês vers
amoureux". Basta
de morte; é a vida que interessa.
É a vida que irrompe com cada vez maior clareza conforme estes ensaios sem
chegar ao seu final bruscamente se interrompem. É a vida que se torna mais e
mais absorvente
à proporção que a morte se aproxima da intimidade de um, da alma de outro, de
cada fato da existência: de alguém que sempre está bem vesti-
31
do seja inverno ou verão; põe água no vinho de outro; corta o cabelo após o
jantar; precisa ter copos para o drinque; nunca usou óculos; tem
tom de voz alto; carrega
um relógio em um dos pulsos; guarda segredos; mexe com os próprios pés; é capaz
de
coçar as orelhas; gosta de carnes caras; limpa os dentes com um guardanapo
(graças
a Deus, eles são bons!); deve ter um cortinado para sua cama; e, o máximo da
curiosidade, começa gostando de rabanetes, depois desgosta, e agora gosta de
novo. Nenhum
fato é tão insignificante para se deixar escapulir entre os dedos, e a despeito
de todo o interesse que os fatos despertam temos o singular poder de alterar os
fatos
pela força da imaginação. Observe como a alma está sempre revelando suas luzes e
sombras; como torna o substancial, oco, e o débil, substancial; sonha em plena
luz
do dia; se excita tanto com fantasmas quanto com a realidade; e no instante da
morte se diverte com ninharias. Observe, também, sua duplicidade, sua
complexidade.
Ela fica sabendo da perda de um amigo e se compadece, e, não obstante, tem um
agridoce prazer malicioso diante do sofrimento dos outros. Ela crê; e ao mesmo
tempo
não crê. Observe sua extraordinária susceptibilidade para as impressões,
especialmente na juventude. Um homem rico furta porque seu pai o mantinha com
pouco dinheiro
quando menino. Este muro não foi construído só por ele, mas porque seu pai
gostava de construir. Em resumo, a alma está totalmente ornada de enervações e
afinidades
que contaminam suas ações, e inclusive, ainda agora em 1580, ninguém tem um
entendimento claro - somos tão covardes, amamos tanto os plácidos caminhos
convencionais
- de como ela trabalha ou o que é se não a mais misteriosa de todas as coisas, e
dentro de cada um o maior dos monstros e dos milagres existentes no mundo,
"...plus
je me hante et connois, plus ma difformité m'estonne, moins je m'entens en mói".
Observa, observa sem parar, e, enquanto existam tinta e papel, "sans cesse et
sans
travail", Montaigne escreverá.
Mas permanece uma questão final que, se pudéssemos fazêlo desviar os olhos desse
ofício cativante, gostaríamos de apresentar a este grande mestre da arte de
viver.
Nestes volumes extraordinários
32
de declarações curtas e fragmentárias, elaboradas e eruditas, lógicas e
contraditórias, escutamos os verdadeiros ritmos e pulsações da alma, palpitando
dia
após dia, ano após ano, por intermédio de um véu que, com o passar do tempo,
torna-se quase transparente. Eis aqui alguém vitorioso diante da perigosa
empresa da
vida; quem serviu a seu país e viveu em retiro; foi proprietário de terra,
marido, pai; conviveu com reis, amou várias mulheres, e refletiu sozinho por
horas sobre
velhos livros. Através de experimentos incessantes e observações das mais sutis
ele realizou por fim um ajuste miraculoso de todas aquelas partes irregulares
que
compõem a alma humana. Agarrou a beleza do mundo com todos os dedos. Alcançou a
felicidade. Se tivesse de viver novamente, afirmou, viveria a mesma vida do
princípio
ao fim. Mas, à medida que assistimos com interesse meticuloso o encantador
espetáculo de uma alma a se descortinar diante de nossos olhos, a questão se
coloca por
si, O prazer é o fim de tudo? De onde surge este preponderante interesse pela
natureza da alma? Por que este supremo desejo de se comunicar com os outros? A
beleza
deste mundo é suficiente, ou haverá, alhures, alguma elucidação do mistério?
Para ele, que respostas podem haver lá? Nenhuma. Há apenas mais uma indagação:
"Que
sais-je?"*
* Na edição da Hogarth Press, utilizada aqui - a de 1933, uma reimpressão da
terceira edição, de 1929 - por erro de revisão: "Que scais-je?". Há outras
falhas nas
transcrições do francês: "1'estre" por "l'étre", por exemplo. As demais citações
do texto original de Montaigne, em tradução livre, são as seguintes: "até às
suas
verrugas e às suas sardas"; "a alma bem nascida"; "Não ensino coisa alguma, eu
relato"; "É ser, mas isso não é viver, estar preso e obrigado pela necessidade a
uma
única maneira"; "um patrão interior"; "É uma vida incomum, aquela que se mantém
em ordem até em sua privacidade"; "É preciso viver entre os viventes"; "pois,
como
eu sei por grande experiência, inexiste consolação alguma tão doce na perda de
nossos amigos do que estar ciente de nada ter esquecido de lhes dizer e de com
eles
ter havido uma comunicação perfeita e completa"; "se protegendo do contágio de
um ar desconhecido"; "O prazer é uma das principais espécies de benefício";
"entre
os jogos, os festins, os gracejos, divertindo-se com parentes e populares, e a
música, e uns versos amorosos"; "quanto mais me acompanho e conheço, tanto mais
minha
deformidade me espanta e menos me entendo"; "sem interrupção e sem sobresforço";
"Que
sei eu?"
33
A VIAGEM SENTIMENTAL
r j listram Shandy, embora seja o primeiro romance de JL Sterne, foi escrito em
uma época em que muitos escreviam sobre seus vinte anos, isto é, quando tinham
vinte
e cinco. Mas ostenta todos os sinais de maturidade. Nenhum jovem escritor
poderia ter a ousadia de tomar tamanhas liberdades com a gramática e a sintaxe e
o sentido
e a propriedade e a tradição há muito estabelecida de como um romance deve ser
escrito. É necessária uma forte dose da segurança da meia idade e de sua
indiferença
à censura para correr tantos riscos de chocar os letrados pela inconveniência do
estilo pessoal, e os seres honrados, pela irregularidade de sua moral. Mas o
risco
foi corrido e o sucesso foi prodigioso. Todos os grandes, os exigentes, ficaram
encantados. Sterne tornou-se o ídolo da cidade. Só que na algazarra das
gargalhadas
e dos aplausos que saudaram o livro, a voz do público comum em geral podia ser
ouvida protestando que, vindo de um clérigo, se tratava de um escândalo, e que o
arcebispo
de York deveria aplicar, para dizer o mínimo, uma repreensão. O arcebispo,
parece, nada fez. Mas Sterne, por menos que tenha deixado transparecer, sentiu
as críticas
no fundo do coração. Aquele coração já muito aflito desde a publicação de
Tristram Shandy. Eliza Draper, o objeto de sua paixão, viajara para se encontrar
com o
marido em Bombaim. Em seu próximo livro, Sterne estava determinado a apresentar
os efeitos da mudança que lhe aconteceu, e a provar, não apenas o brilho de sua
inteligência,
mas as profundezas de sua sensibilidade. Em suas próprias palavras, "meu projeto
com isso foi nos ensinar a amar o mundo e os nossos próximos melhor do que
fazemos".
Foi com motivos iguais a esses animando-o,
114
que se sentou para escrever a narrativa de uma pequena viagem à França que
chamou de Uma Viagem Sentimental.
No entanto se era possível a Sterne corrigir suas maneiras, era-lhe impossível
corrigir o estilo. Ele se tornou cada vez mais uma parte sua, como o nariz
grande
ou os olhos brilhantes. Desde as primeiras palavras - Elas ordenam, digo, eu,
este assunto melhor na França - estamos no mundo de Tristram Shandy. Um mundo em
que
qualquer coisa pode acontecer. Dificilmente sabemos que gracejo, que zombaria,
que lampejo de poesia não estará à espreita de repente através da brecha aberta
por
esta pena surpreendente e ágil na espessa cerca viva da prosa inglesa. Será
Sterne, ele mesmo, o responsável? Será que sabia que o que iria dizer em seguida
a todos
seria analisado como o comportamento mais importante de sua época? As frases
espasmódicas, desconectadas, são tão rápidas e tendem a parecer tão pouco
controladas
como as frases que jorram dos lábios de um orador brilhante. A verdadeira
pontuação é a do discurso, não escrito, e traz consigo os sons e as associações
do discurso
oral. A ordem das idéias, a surpresa e irrelevância delas, é mais fiel à vida
que à literatura. Há uma intimidade nesta comunicação que permite que as coisas
escapem
irreprimidas de modo que seria de gosto duvidoso terem sido ditas em público.
Sob a influência desse estilo extraordinário o livro torna-se semi transparente.
As
cerimônias e convenções usuais que mantém leitor e escritor distantes um do
outro desaparecem. Estamos tão próximos da vida quanto podemos.
Que Sterne consiga essa ilusão apenas pelo uso de extrema arte e de
extraordinário esforço fica óbvio sem que se vá aos seus manuscritos para
comprovar. Pois embora
o escritor seja sempre perseguido pela crença de que de algum modo deva ser
possível espanar para longe as cerimônias e convenções da escrita e falar ao
leitor tão
diretamente quanto pela palavra oral, qualquer um que tenha tentado a
experiência foi por sua vez emudecido pela dificuldade, ou traído por uma
desordem e uma dispersão
incríveis. Sterne de algum modo resolveu esta combinação surpreendente. Nenhum
texto parece fluir com mais exatidão entre as muitas
116
dobras e rugas da mente dos indivíduos, para expressar suas mudanças de ânimo,
para responder a seus caprichos e impulsos mais brilhantes, e ainda assim o
resultado
é perfeitamente tranqüilo e preciso. A mais extrema fluidez coexiste com a mais
extrema permanência. É como se a maré subisse e agitasse o mar para lá e para cá
e deixasse as marcas do ir e vir das ondas na areia como que em mármore.
Ninguém, claro, teve mais necessidade da liberdade de ser ele mesmo do que
Sterne. Pois enquanto há escritores cujo dom é impessoal, de modo que um
Tolstoi, por
exemplo, pode criar um personagem e nos deixar em paz com ele, Sterne precisa
sempre estar lá em pessoa para nos ajudar em nossa comunicação. Pouco ou nada de
Uma
Viagem Sentimental sobraria se tudo a que chamamos o próprio Sterne fosse
extraído dali. Ele não tem qualquer informação valiosa para dar, nenhuma
filosofia razoável
para compartilhar. Ele deixou Londres, conta-nos, "com tanta precipitação que
sequer me veio à cabeça que estávamos em guerra com a França". Ele nada tem a
dizer
sobre quadros ou igrejas ou sobre a miséria ou o bem-estar campestre. Esteve
viajando pela França de fato, mas a estrada passava sempre através de sua
própria mente,
e suas aventuras principais não eram com bandidos e precipícios mas com as
emoções de seu próprio coração.
Esta mudança no ângulo de visão foi por si mesma uma inovação ousada. Até agora,
o viajante havia observado certas leis de proporção e perspectiva. A Catedral
tem
sido sempre um imenso edifício em qualquer livro de viagens e o homem uma figura
pequena, adequadamente diminuta, a seu lado. Mas Sterne era perfeitamente capaz
de omitir a Catedral por inteiro. Uma moça com uma carteira de cetim verde
poderia ser muito mais importante que a Notre Dame. Pois não há, ele parece
insinuar,
escala alguma de valores universal. Uma moça pode ser mais interessante que uma
catedral; um jumento morto mais instrutivo que um filósofo vivo. Isto é tudo uma
questão do ponto de vista de cada um. Os olhos de Sterne eram ajustados de tal
modo que coisas pequenas quase sempre tinham neles importância maior que as
grandes.
117
A conversa de um barbeiro sobre a presilha de sua peruca revelava-lhe mais sobre
o caráter da França do que a grandiloqüência de seus estadistas.
Penso que posso ver os sinais precisos e distintos do caráter nacional mais
nestes minutiae sem sentido, do que nos mais importantes assuntos de estado;
onde os
grandes homens de todas as nações conversam e andam de maneira tão semelhante,
que não daria sequer uns vinténs para estar entre eles.
Da mesma maneira, se alguém deseja dimensionar a essência das coisas como um
viajante sentimental faria, seria preciso procurar por isso, não sob o claro
meio-dia
em ruas largas e abertas, mas de uma esquina despercebida à chegada do
anoitecer. Seria preciso cultivar uma espécie de taquigrafia que exprimisse as
muitas variedades
de olhares e braços em palavras claras. Era uma arte em que Sterne se exercitou
durante muito tempo para praticar.
De minha parte, graças a antigos hábitos, faço isto tão mecanicamente que quando
ando pelas ruas de Londres,
vou interpretando todo o caminho; estive mais de uma
vez por perto de uma roda de pessoas, onde nem três palavras haviam sido ditas,
e carreguei comigo vinte diferentes diálogos, os quais poderia muito bem
escrever
e assinar embaixo.
É assim que Sterne transfere nosso interesse do exterior para o interior. Inútil
ir a um livro de viagens; devemos consultar nossas próprias mentes; somente elas
podem nos falar qual a importância relativa de uma catedral, um jumento e uma
moça com carteira de cetim verde. Ao preferir os meandros de sua própria mente
ao
guia de viagens e às bifurcações das rodovias, Sterne é singularmente de nossa
época. Em seu interesse pelo silêncio maior do que pela fala Sterne é o
precursor
dos modernos. E por estas razões ele é muito mais íntimo de nós hoje do que seus
grandes contemporâneos, os Richardsons e os Fieldings.
Porém há uma diferença. A despeito de todo seu interesse em psicologia Sterne
foi muito mais ágil e menos profundo do que os mestres desta escola um tanto
sedentária
vieram a ser.
118 • VIRGÍNIA WOOLF
Ele está, afinal, contando uma história, ocupando-se de uma viagem, conquanto
seu método seja arbitrário e em ziguezague. Por todas nossas divagações,
percorremos
a distância entre Calais e Módena no espaço de algumas poucas páginas.
Interessado como era no modo como via as coisas, as coisas em si também o
interessavam intensamente.
Sua escolha é caprichosa e individual, mas nenhum realista conseguiu ser mais
brilhantemente bem sucedido ao exprimir a impressão do momento. Uma Viagem
Sentimental
é uma sucessão de quadros - Monk, a senhora, o Cavalheiro vendendo pâtés, a moça
na livraria, La Fleur em seus novos culotes; - uma sucessão de cenas. E embora o
vôo desta mente errante seja tão ziguezagueante quanto o de uma libélula, não se
pode negar que esta libélula tenha algum método em seu vôo, e escolhe as flores
não ao acaso mas por alguma rara harmonia ou alguma discórdia brilhante.
Sorrimos, choramos, zombamos, simpatizamos por etapas. Mudamos de uma emoção
para outra
oposta num piscar de olhos. Esta frágil ligação com a realidade aceita, esta
negligência com a seqüência ordenada da narrativa, permite a Sterne quase uma
licença
poética. Ele consegue expressar idéias que os romancistas comuns iam ignorar em
linguagem que, mesmo se o romancista comum pudesse dominá-la, pareceria
intoleravelmente
estranha em suas páginas.
Caminhei solenemente até a janela em meu casaco preto etnpoeirado, e olhando
através da vidraça vi o mundo todo amarelo, azul e verde, correndo na arena do
prazer.
- O velho com suas lanças quebradas, e em elmos que tinham perdido suas viseiras
- o jovem em armadura esplendorosa que brilhava feito ouro, emplumado com
vistosas
penas orientais - todos - todos lutando como se empunhassem espadas fascinantes
em torneios de outrora por fama e amor.
Há muitos trechos como este de pura poesia em Sterne. É possível recortar e os
ler destacados do texto, e ainda assim pois Sterne foi um mestre da arte do
contraste
- eles assentam harmoniosamente lado a lado na página impressa. Seu frescor,
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sua leveza, seu perpétuo poder de surpreender e de chocar são o resultado destes
contrastes. Ele nos leva às verdadeiras margens de algum profundo precipício da
alma; lançamos um breve olhar em suas profundezas; no momento seguinte, somos
empurrados de volta para olhar os prados verdes se incendiando do outro lado. Se
Sterne
nos inquieta, é por outra razão. E aqui a responsabilidade repousa, ao menos em
parte, sobre o público - o público que ficou chocado, que reclamou após a
publicação
de Tristram Shandy que o escritor era um cínico que merecia ser destituído da
batina. Sterne, lastimavelmente, considerou necessário replicar.
O mundo imaginou [disse a Lord Shelburne] que por ter escrito Tristram Shandy,
eu era mais shandeano do que de fato sempre fui... Se ele (Uma Viagem
Sentimental)
não é considerado um livro casto, tende piedade daqueles que o leram, pois devem
ter uma imaginação ardente, sem dúvida!
Assim sendo em Uma Viagem Sentimental nunca nos é permitido esquecer que Sterne
é acima de todas as coisas sensível, simpático, humano; que acima de todas as
coisas
preza a decência, a simplicidade do coração humano. E sem rodeios um escritor se
ergue para provar a si mesmo que esta ou aquela de nossas suspeitas são
incitadas.
Pois a pequena tensão excedente depositada na qualidade que deseja que vejamos
nele, torna-a grosseira e de um colorido borrado, de forma que em vez de humor,
temos
farsa, e em vez de sentimento, sentimentalismo. Aí, em vez de sermos convencidos
da ternura do coração de Sterne - que em Tristram Shandy jamais esteve em
questão
- começamos a duvidar. Pois sentimos que Sterne está pensando não na coisa em
si, mas na sua repercussão sobre o que achamos dele. Os mendigos se juntam ao
seu redor
e ele dá âopauvre honteux mais do que era pretendido. Sua mente, porém, não está
apenas e tão simplesmente nos mendigos; sua mente está particularmente em nós,
para
verificar se apreciamos sua bondade. De modo que sua conclusão, "e acreditei que
ele me agradeceu mais do que todos os outros", colocada, para maior ênfase, ao
fim
do capítulo, nos enjoa
com sua doçura como um torrão de açúcar puro no fundo de uma xícara. Na
realidade, a principal falha de Uma Viagem Sentimental vem do interesse de
Sterne por nossa
boa opinião sobre seu coração. Há uma monotonia acerca disso, apesar de seu
brilhantismo, como se o autor tivesse refreado a variedade natural e a
vivacidade de
seus gostos, com receio de que pudessem ser ofensivos. O humor é subjugado a
alguém uniformemente bondoso, terno e compadecido demais para ser natural.
Perde-se
a variedade, o vigor, a libertinagem de Tristram Shandy. O interesse pela sua
sensibilidade cegou sua agudeza natural, e somos obrigados a fitar por longo
tempo
a modéstia, a simplicidade e a virtude estabelecidas com imobilidade demais para
serem olhadas.
Contudo é significativo da mudança de gosto que nos atinge que seja o
sentimentalismo de Sterne que nos ofende e não sua imoralidade. Aos olhos do
século dezenove
tudo o que Sterne escreveu ficou enevoado por sua conduta como marido e amante.
Thackeray chicoteou-o com sua justa indignação, e exclamou que "Não há uma
página
dos textos de Sterne em que não haja alguma coisa que seria melhor à distância,
uma perversão latente - uma insinuação de uma impura presença." Aos nossos dias,
a arrogância do romancista vitoriano parece pelo menos tão digna de culpa quanto
as infidelidades do pároco do século dezoito. Onde os vitorianos deploraram suas
mentiras e suas frivolidades, a coragem com que devolveu todas as aflições da
vida ao riso e o brilhantismo da expressão são muito mais evidentes agora.
De fato Uma Viagem Sentimental, por toda sua leveza e perspicácia, é baseada em
alguma coisa fundamentalmente filosófica. É verdade que é uma filosofia que
estava
bem fora de moda na era vitoriana - a filosofia do prazer; a filosofia que
defende que é necessário se comportar bem tanto com as pequenas coisas quanto
com as
grandes, que faz a alegria, mesmo a de outras pessoas, parecer mais desejável
que seus sofrimentos. O homem desavergonhado teve a ousadia de confessar "ter
tido
um caso amoroso com uma princesa ou outra quase por toda a minha vida", e de
acrescentar, "e desejo poder continuar assim até morrer,
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firmemente convencido de que se alguma vez realizei uma ação maldosa, deve ter
sido em algum intervalo entre uma paixão e outra". O pulha teve audácia de
chorar através
dos lábios de um de seus personagens. "Mais vive Ia joie... Vive 1'amour! Et
vive Ia bagatelle!" Embora fosse clérigo, teve a irreverência de refletir,
enquanto
assistia aos lavradores franceses dançando, que poderia distinguir uma elevação
de espírito, diferente da que é causa ou conseqüência de simples alegria. -
"Numa
palavra, creio que vejo Religion misturado à dança."
Era um atrevimento para um clérigo perceber a relação entre religião e prazer.
Porém, o que pode, talvez, desculpá-lo é que, em seu caso, a religião da
felicidade
teve grande dificuldade para se sobrepor. Se você não é mais jovem, se está
totalmente endividado, se sua esposa é desagradável, se, ao sacolejar pela
França em
uma carruagem, você está consumindo todo o seu tempo, então, afinal, a procura
da felicidade não é tão fácil. Ou mais, persegui-la é uma obrigação. É preciso
piruetar
pelo mundo, olhando e prescrutando, deleitando-se com um flerte aqui, entregando
uns cobres ali, e sentando-se em qualquer pedaço de terra ensolarado que se
possa
achar. É preciso contar uma piada, mesmo que a piada não seja muito decente.
Mesmo na vida diária é preciso não se esquecer de gritar "Ave, minúsculas, doces
cortesias
da vida, pois tornais a estrada da vida mais fácil!" É preciso - basta de tanto
precisar; este não seria um termo que Sterne gostasse de usar. Somente quando se
põe o livro de lado e se invoca seu equilíbrio, sua graça, sua sincera alegria
em todos os diferentes aspectos da vida, e a tranqüilidade e a beleza brilhantes
com
que nos são transmitidas, se acredita ter um escritor uma convicção que o apoia.
Não foi o covarde de Thackeray - o homem que desperdiçou seu tempo de forma tão
imoral com tantas mulheres e escreveu cartas de amor em papéis ornados de ouro
quando deveria estar deitado em uma cama de doente ou redigindo sermões
- não foi ele um estóico à sua maneira e um moralista, e um professor?
Escritores muito maiores existem, afinal. E de que Sterne foi um grande escritor
não podemos
duvidar.
COMO SE DEVE LER UM LIVRO?"