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[...] o bem cultural, como todo signo, tem um imprescindível suporte físico –
dimensão material que é o suporte da comunicação; uma estrutura
simbólica que lhe dá sentido [...] (BAHIA, IPAC, Pano da Costa, 2009)
Trajes vindos das ruas, a partir das negras de ganho1, e das irmandades2 – citando
a famosa Irmandade da Boa Morte da cidade de Cachoeira como exemplo mais vivo
– inseridos na realidade e cotidiano dos terreiros de candomblé mantiveram sua
importância e zelo na forma de vestir.
1
Por negras de ganho, entendem-se as mulheres negras forras ou não que trabalhavam nas ruas das
grandes cidades (destaque para Salvador e Rio de Janeiro) vendendo seus ganhos, que poderiam
ser quitutes, ou até mesmo produtos de primários de consumos (frutas e grãos).
2
As irmandades negras foram instituições de grande importância para as comunidades negras
africanas ou afro-brasileiras, visto que as mesmas representavam, de maneira oficial determinado
grupo social – ainda que apenas religiosamente – dando certo tipo de notoriedade, organização e, de
certa forma auxiliando na preservação da cultura negra.
3
A partir dos exemplos citados podemos verificar que os trajes funcionam como
possibilidades expositivas, por seu caráter material, quando se trata de expor algo
que remeta a herança/legado africano ou forma de expressão cultural dos afro-
brasileiros. Sobre a questão expositiva da indumentária, o Professor Doutor Marcelo
Bernardo Cunha, em sua tese de doutorado Teatro de Memória, palco de
esquecimentos: Cultura africanas e das diásporas negras nas exposições, defendida
no ano de 2006, expressa a seguinte análise:
3
Texto escrito pela Professora Doutora Joseania Miranda Freitas, professora do Departamento de
Museologia e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia
(UFBA).
4
Como também eram chamadas as negras de ganho
4
Esse fato deve-se a uma face do patrimônio cultural, ainda timidamente explorada
em montagens expográficas de instituições museológicas, e que as indumentárias
dos cultos afro-brasileiros não deixam de possuir: a cultura imaterial. Essa
“categoria” de patrimônio cultural ganhou notoriedade a nível governamental
nacional5 – muito embora já tenha sido elaborada e estabelecida por organizações
internacionais e explicitada em forma de textos por pensadores e pesquisadores
brasileiros – a partir do Decreto n° 3.551, que instituiu o Registro dos Bens de
Natureza Imaterial; esse trabalho de registro vem sendo realizado pelo Instituto do
Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) por meio da elaboração de
Inventários baseados em um processo de pesquisa, documentação e registro que
são posteriormente divulgados pelo presente órgão.
sagrado pelos praticantes das religiões candomblé. Iris Verena Santos de Oliveira
em sua dissertação de mestrado Becos, ladeiras e encruzilhadas: andanças do
povo- de-santo pela cidade de Salvador descreve a situação durante o período de
perseguição6, assim como a reversão dessa situação:
6
Em relação à perseguição policial e a forma de lida com a mesma, Júlia Braga em seu texto Na
Gamela do Feitiço faz a seguinte observação:
[...] fica evidente a complexidade que envolvia as relações/tensões entre o povo de santo, jornalistas,
policiais e estudiosos, o que impossibilita qualquer informação enfática, apontando aliados e inimigos,
ao tempo em que também relativiza o papel dos adeptos do candomblé que não podem ser tratados
como vítimas ou réus. Foram pessoas que defenderam seus interesses religiosos e se posicionaram
em meio à teia de acordos e conflitos que lhes foi apresentada. [...] (BRAGA, 1995, p.123)
6
Seu modo de fazer, embora ainda não oficialmente registrado pelo IPHAN, pode,
sim, ser considerado um bem cultural. Por isso não podemos deixar de destacar as
Casas de Alaká, que funcionam como escolas de costura de roupas do Candomblé
7
Como exemplo temos o Edital de Notificação expedido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN) no Diário Oficial da União de 10 de janeiro 2011:
NOTIFICAÇÃO A RESPEITO DO TOMBAMENTO DO TERREIRO JEJE ZOGBODO MALE BOGUM
SEJA UNDE, NO MUNICÍPIO DE CACHOEIRA, ESTADO DA BAHIA - Na forma e para os fins do
disposto nos arts. 6° ao 10 do Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937 c/c o art. 15, parágrafo
único, da Portaria n.º 11, de 11 de setembro de 1986, o INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E
ARTÍSTICO NACIONAL - IPHAN, dirige-se a todos os interessados para lhes NOTIFICAR que está
promovendo por meio do Processo n.º 01502.000147/2009-58, o tombamento do Terreiro Jeje
Zogbodo Male Bogum Seja Unde, no Município de Cachoeira, Estado da Bahia, em razão do seu
elevado valor histórico e etnográfico, a ser inscrito nos Livros do Tombo Histórico e Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico, compreendendo o acervo histórico, etnográfico e paisagístico,
correspondente ao conjunto de bens imóveis - o sitio natural e os elementos edificados ou de
espécies arbóreas referenciais do ritos JEJE, conforme identificados e descritos a seguir: A. Gleba de
terreno descrita no processo. B. Componentes referenciais: Edificados: B1. Casa de Hospedagem I;
B2. Casa de Hospedagem II; B3. Oiá (Altar); B4. Peji (cerimonial) de cima; B5. Peji de baixo, com
salão, "ronco" e cozinha sagrada; B6. Casa dos Antepassados; B7. Fonte de Oxum; B8. Poço; B9.
Ponte; e B10. Instalações Sanitárias. Árvores Sagradas: Nana, Tiriri, Ogum Eroquê, Avequité, Zogbo,
Bessém, Ogum, Ajuzum, Lokó, Badé, Aqué e Parara.Riacho Caquende – ODÉ e as margens ou
lados Aziri e Avinagé. Cumpre ressaltar que o bem em comento passa a gozar de proteção por meio
do IPHAN, para os efeitos previstos notadamente nos art. 17 e 18 do Decreto-Lei n.º 25, de 30 de
novembro de 1937. No prazo de 15 (quinze) dias, a contar da publicação desta notificação, assiste a
eventual proprietário do Terreiro Jeje Zogbodo Male Bogum Seja Unde, no Município de Cachoeira,
Estado da Bahia, a faculdade de anuir ou impugnar a iniciativa, após o que se prosseguirá na forma
do disposto nos arts. 6º ao 10 do Decreto-lei n.º 25/1937, combinado com o art. 1º, da Lei n.º 6.292,
de 15 de dezembro de 1975. Ressalte-se, a necessidade de manifestação da Superintendência
Estadual do IPHAN, situada na Casa Berquó - Rua Visconde de Itaparica - 08, centro, Barroquinha,
CEP: 40.020-080, Telefone: (71) 3321-0133, para os processos de licenciamento envolvendo tanto os
bens tombados como aquele(s) situado(s) em sua área de entorno. AMPARO LEGAL: Art. 216, inciso
V, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988; Decreto-lei n.º 25, de
30 de novembro de 1937; Portaria n.º 11, de 11 de setembro de 1986; Lei n.º 6.292, de 15 de
dezembro de 1975; Lei n.º 8.029, de 12 de abril de 1990; Lei n.º 8.113, de 12 de dezembro de 1990;
Decreto n.º 6.844, de 07 de maio de 2009; Lei n.º 9.784, de 29 de janeiro de 1999.
CORRESPONDÊNCIA PARA: Presidente do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural - SBN,
Quadra 02, Edifício Central Brasília, 6° andar, Brasília, Distrito Federal - CEP: 70.904-040.DALMO
VIEIRA FILHO.Presidente do Instituto Substituto (p. 16-17)
7
Mas por que estudar as roupas utilizadas nos rituais e no cotidiano dos terreiros de
candomblé? Seria esta uma questão de tamanha relevância para que se faça um
estudo específico sobre este determinado tema? Ao iniciar a presente pesquisa,
ainda na graduação do curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia –
mais especificamente em uma das disciplinas do processo de conclusão da
formação acadêmica Curso Normativo da Formação Étnica da Arte Baiana – o olhar
para este tema, foi despertado, a partir dos estudos iniciais sobre as roupas das
crioulas e negras de ganho, se anteviu, a partir de leituras, entrevistas e pesquisas
in loco vários pontos de observância de cunho sociológico e até mesmo artístico nas
roupas de santo e de ração (de uso diário dentro dos terreiros).
Entendendo que os trajes de crioula passaram das realidades das negras de partido-
alto e das irmandades para os barracões e festas dos terreiros; podemos entender
que o trajar completo que hoje vemos nas celebrações nada mais é do que uma
construção tecida, literalmente, por negras8 que assimilaram alguns aspectos da
cultura européia e mourisca, e unindo-os aos seus próprios, deram origem ao que
chamamos hoje de roupa de crioula, traje de beca e consequentemente roupa de
santo. Ao tratar das vestimentas, as obras mais específicas sobre o tema, abordam,
8
A especificação de gênero deve-se ao fato do maior número de elementos contemplativos do trajar
feminino á análise, não desconsiderando a presença de elementos estéticos e identitários presentes
nos trajes masculinos. O presente escrito não analisa tal questão, mas a mesma pode ser
aprofundada posteriormente.
8
Nas mais diversas sociedades, o ato de trajar uma vestimenta vai além da mera
proteção do corpo ou deslumbre estético. Podem tornar-se símbolos de identidade,
podendo um estudioso refletir, a partir deles, sobre valores sociológicos e culturais.
As roupas utilizadas hoje nas cerimônias do candomblé representam mais do que
um eixo identitário de uma cultura afro-brasileira, refletida na religiosidade;
simbolizam a ascensão social conquistada pelas negras crioulas (de ganho ou
partido alto) não só através da religião, mas também do trabalho nas ruas.
Filhas-de-santo antigas falam que havia um modelo de torço para cada uma
das diferentes „nações‟: torço à moda gêge, à moda ketto, ijexá, angola,
congo etc. Também falam numa correlação entre o tipo de torço e a posição
da pessoa dentro do culto, ou de correlação entre o torço e a divindade,
„orixá‟ a que se está consagrado. Tal correlação abrangeria tanto o formato
do pano como seu colorido e modo de amarrá-lo. Pelo visto assunto
suficiente para uma pesquisa especial [...] (VALLADARES, 1952, p.7)
10
Termo usual da época também utilizado por Nina Rodrigues em seus escritos.
11
Espécie de zeladora dentro do culto, que não passa pelo processo de transe.
10
um importante acervo a ser estudado acerca do corrente tema. Embora não fazendo
parte da análise, não podemos deixar de mencionar o acervo fotográfico e postal do
Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do Museu Tempostal, ambos localizados
na cidade do Salvador; foram fontes de pesquisa de vários artigos e dissertações
publicadas a respeito dos modos de vida e costumes dos negros baianos, da qual
podemos destacar o trabalho de Sofia Olszewski Filha, em sua dissertação A
fotografia e o negro na cidade de Salvador (1840-1914), e do próprio Manuel
Querino.
12
Como são denominados os objetos, utensílios e até indivíduos ligados ao candomblé.
12
Nota-se, a partir da análise das fotografias, desenhos, dos relatos dos viajantes que
aqui habitaram o Brasil durante o período imperial, assim como os estudos feitos
durante o final do século XIX sobre os “modos” dos africanos, que as roupas eram
utilizadas tanto na esfera sacra como no cotidiano, com distinções estéticas e
hierárquicas. Nessa perspectiva, podemos sugerir que os trajes foram incorporados
do cotidiano para as celebrações religiosas, por uma preferência cultural dos
adeptos que deram origem aos cultos de matriz africana, sendo que hoje
encontramos exemplos dessa forma identitária na realidade dos terreiros de
candomblé e nas celebrações públicas das mesmas. Partindo dessa perspectiva,
temos os trabalhos dos viajantes do Brasil Império como primeira referência de
trabalhos não só bibliográficos como também documentais, visto que as descrições
escritas do ambiente social que circundava as cidades brasileiras durante o período
em questão são seguidas de aquarelas e gravuras contendo imagens das cenas ou
de outras que por ventura chamaram à atenção o observador. Após esse referente
período, temos algumas observações acerca dos trajes nos textos que serão
analisados nos tópicos seguintes, que remetem aos africanistas e antropólogos
precursores nos estudos sobre o negro e seu legado cultural.
Já segundo José do Prado Valladares, em sua obra O torço da Baiana, “(...) o torço,
ou turbante é, pois, uma das partes essenciais do traje da baiana. Baiana sem torço
[...] é baiana incompleta a que faltou um dos arremates.” (VALLADARES, 1952, p.5).
Entenda-se baiana, nesse sentido, também, como uma negra de ganho.
Podemos considerar que a obra de maior significância escrita por Lody, em relação
à indumentária afro-religiosa seja, o Dicionário de arte sacra e técnicas afro-
brasileiras; assumindo o estudo a Ergologia13, e contendo informações advindas em
sua maioria de pesquisas de campo, o autor propõe uma obra de consulta – que
está aberta, já que não a considera o assunto esgotado. São 1.407 verbetes, com
valores descritivos, analíticos, e correlacionado os temas. O autor assim a define:
13
Ramo da etnologia que estuda a cultura material.
14
Nesse referido capítulo, definindo a palavra Axó – o termo usual na realidade dos
terreiros para roupa ou conjunto de roupas – enfatiza que nos candomblés de
origem Kêtu e Nagô existem cargos para pessoas responsáveis por cuidar das
roupas de uso ritualístico; são elemaxó (para figura masculina) ou iamaxó (para
figura feminina). E complementa dizendo que: “[...] A roupa, sem dúvida, é um dos
14
Ainda nesta obra, Raul Lody, explicitando sobre outros objetos da indumentária afro-brasileira,
afirma que Gilberto Freire em Casa Grande & Senzala relata sobre as usuais roupas de escravos,
reconhecendo através das mesmas os trabalhos e atividades desenvolvidos pelos cativos.
15
As irmãs da Boa Morte são denominadas “senhoras que vestem bata”, denotando o
alto grau hierárquico que possuem dentro das casas de candomblé que frequentam,
16
pois apenas pessoas com altos cargos ou iniciadas há muito tempo pode fazer uso
de tal parte do traje; as abiãs e yaôs (pessoas recentemente iniciadas) apenas o
camisu15 ou roupas simples sem adornos lhes é permitido.
Outros textos que não podemos deixar de citar são Bahia Negra na Coleção do
Museu Tempostal, de Jeferson Bacelar e Cláudio Pereira16, e Caderno Wearable-art:
O traje da Baiana, produzido pela Fundação G. B. V. Museu do Traje Wearable-art,
com apoio da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de Salvador (BA)
através da Fundação Gregório de Mattos. O primeiro é um estudo sobre a Coleção
de postais do referido museu, criado a partir da doação do acervo particular de
Antonio Marcelino do Nascimento17, priorizando a imagem do negro e de suas
relações de trabalhos; as indumentárias são apresentadas a partir das imagens
cedidas pelo Museu Tempostal, não havendo no texto referências relevantes a
respeito do tema. Em O Traje da Baiana, que conta com introdução elaborada pelo
18
historiador Cid Teixeira, além da descrição da “roupa sura” há uma descrição,
ainda que reduzida do turbante, tronco (no caso batas), da saia, dos calçados, da
roupa interior e dos acessórios; há ainda um pequeno apontamento sobre o traje na
atualidade, falando especificamente sobre as quituteiras de acarajé, cocada e outros
elementos gastronômicos que encontramos facilmente pelas ruas da capital baiana.
15
Tipo de camisão que vai, normalmente, até o joelho, sem adornos, antecedendo a bata.
16
Jeferson Bacelar é Doutor em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia, professor do
Departamento de Antropologia e dos cursos de pós-graduação de Estudos Étnicos e Africanos e de
Antropologia da UFBA e pesquisador do Centro de Estudos Afro-Orientais. Cláudio Pereira é Doutor
em Antropologia pela Universidade de Campinas, Professor do Curso de pós-graduação de Estudos
Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia e pesquisador na área de Antropologia da
Religião e Antropologia Visual.
17
Antonio Marcelino do Nascimento foi secretário da Escola de Teatro em Salvador e acumulou
postais de todos os estados brasileiros e de vários lugares do mundo. Doou sua coleção, que contava
com mais de 35 mil postais, em 1995 para o Governo do Estado.
18
[...] O Conjunto era composto por uma saia e blusa, desprovido de ornamentos e adereços, liso e
muito discreto. [...] (FUNDAÇÃO G. B. V., 1997, p.7)
17
19
Lenço branco em formato triangular, preso ao queixo, no qual remetem as mulheres da Irmandade
de Boa Morte às negras Mulçumanas.
18
O animismo fetichista dos negros baianos em Salvador, escrito por Raymundo Nina
Rodriguez; As religiões africanas no Brasil, de Roger Bastide; Costumes africanos
no Brasil, trabalho do professor Manuel Querino; Notas sobre o culto dos Orixás e
Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na
África, escrito por Pierre Verger; A fotografia e o negro na cidade de Salvador (1840-
1914), de Sofia Olszewski Filha; O candomblé e o tempo, artigo escrito por
Reginaldo Prandi; Arte Religiosa Afro-brasileira: as múltiplas estéticas da devoção
brasileira artigo de Vagner Gonçalves da Silva; O Pano da Costa na Representação
dos Viajantes: Séculos XVII ao XIX, texto escrito por Maria da Conceição Barbosa
da Costa e Silva, presente no Caderno I do IPAC; e Teatro de Memória, palco de
esquecimentos: Cultura africanas e das diásporas negras nas exposições, tese de
doutorado defendida pelo professor Marcelo Nascimento Bernardo Cunha. São
estes os textos, obras e artigos selecionados para a análise bibliográfica a que se
propõe o presente escrito. É imprescindível atentar para o fato de que as obras –
principalmente os livros com diversas edições publicadas – não serão aqui
analisadas em sua totalidade, seja ela temática ou de exposição. A seleção baseou-
se na utilização de pesquisadores e textos consagrados pela antropologia do negro
no Brasil (como Nina Rodrigues, Roger Bastide, Manuel Querino e Pierre Verger),
assim como textos deveras contemporâneos em formatos de dissertação, teses e
artigos para revistas científicas – o caso de Sofia Olszewski e Maria da Conceição
Barbosa da Costa e Silva, Marcelo Cunha, Reginaldo Prandi e Vagner Gonçalves,
respectivamente. Dessa forma, teríamos uma “evolução de pensamentos” e um
panorama das diferentes formas de perceber, pensar e tratar o tema afro-religioso,
podendo identificar as quebras de paradigmas e mudanças conceituais a respeito do
tema.
Faz-se necessário citar também os faltantes nesta análise, suscitando, assim novas
possibilidades, e novos trabalhos a serem desenvolvidos. Os pesquisadores
estrangeiros Donald Pierson e Ruth Lands, que muito escreveram sobre os negros e
seus costumes; Edson Carneiro, autor de Ladinos e Crioulos, Antologia do negro no
Brasil e Candomblés da Bahia; Arthur Ramos, discípulo de Nina Rodrigues, e autor
de obras como O negro na Civilização Brasileira e As culturas negras no Novo
20
20
Colocamos aqui “raça negra” entre aspas por considerar, com base em estudos antropológicos em
voga, que o uso de tal terminologia encontra-se hoje em total desuso por não ser mais considerada
pertinente no ambiente acadêmico. Não se tratando assim de uma analogia ao mito da democracia
racial que inibe o preconceito existente a considerar todos como uma única raça – humana – e
desconsidera as diferenças étnicas e a necessidade de alteridade entre as mesmas.
21
Ainda sobre o método de abordagem aplicado por Bastide, discorre a mesma autora:
Sobre Manuel Querino há muito a ser falado; não só sobre ele, mas como de toda
sua trajetória e de sua obra, logicamente. Sobre ele falam, respectivamente, na
apresentação, e prefácios de Costumes africanos no Brasil, Thales de Azevedo21:
“[...] Manuel Querino ficou como um dos fundadores da Antropologia brasileira ao
menos no relativo ao que nesta tem relevo os aportes da multiplicidade de africanos
aos quais tanto devem nossos modos de ser [...]”; Raul Lody22: “Enquanto homem
negro, de formação intelectual nos moldes exigidos para a época, segundo padrões
europeus, especialmente franceses, não se afastou do cotidiano afro-soteropolitano
de um mundo marcado e indivisível de matrizes africanas e portuguesas.”; e Arthur
Ramos23: “Sem o rigor metodológico e a erudição cientifica de Nina Rodrigues, foi,
contudo, Manuel Querino um pesquisador honesto, um trabalhador incansável,
impulsionado por aquele interesse insuspeito que provinha das suas próprias
origens africanas.”. Apesar de todos os predicados apresentados acima, Manuel
Querino faleceu em Salvador em 1923, sem o reconhecimento pelos seus trabalhos
intelectuais, só alcançado uma década após sua morte.
Tendo notoriedade também como etnofotográfo, Pierre Verger, por ser autodidata,
sentiu-se a vontade para desenvolver a sua forma própria de trabalho: anotações
21
Apresentação da segunda edição da obra Costumes africanos no Brasil, de Manuel Querino
(1988).
22
Prefácio da segunda edição da obra Costumes africanos no Brasil de Manuel Querino (1988).
23
Prefácio da primeira edição da obra Costumes africanos no Brasil de Manuel Querino (1938).
22
sobre relatos orais, cultura material e rituais; além do estudo sobre as religiões de
matriz africana desenvolveu outros relacionados às conseqüências sociais,
econômicas e políticas do tráfico de escravos para o Brasil. Sobre as fontes de
pesquisa utilizadas pelo autor, fala Vivaldo Costa Lima:
A obra apaixonada e admirável de Pierre VERGER é toda ela, por sua vez,
confessadamente jeje-nagô na abordagem e na interpretação e sua valiosa
documentação fotográfica acentua claramente, no emprenho de
identificação formal, o seu enfoque rigidamente comparativo. (LIMA, 1977,
p.50)
24
Sofia Olszewski é pesquisadora e atualmente participa de bancas examinadoras de diversas
dissertações de mestrado, principalmente no campo da história da arte; Reginaldo Prandi é professor
titular da Universidade de São Paulo (USP) e docente permanente do programa de pós-graduação
em Sociologia da mesma Universidade; Vagner Gonçalves Silva é professor do Departamento de
Antropologia da USP, realizou seu pós-doutorado na Havard University; Marcelo Bernardo Cunha é
professor titular do Departamento de Museologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e
coordenador do Museu Afro-Brasileiro, também vinculado a UFBA.
23
A importância dada por esses autores, mesmo que em um único parágrafo, ao tema
é de extrema importância, pois cada texto parte de uma perspectiva. Dessa forma, é
importante ressaltar que este escrito não comportará comparativo entre os textos; os
mesmos contam com informações variadas e enfoques bastante diferenciados
sejam por questões temporais ou ideológicas.
24
A roupa pode ser considerada uma das expressões mais requintadas, dentro da
lógica dos terreiros, pois o Candomblé é uma religião que trabalha com o elemento
simbólico e estético como determinante. Dessa forma, através da leitura dos estudos
desenvolvidos dentro dessa lógica cultural singular, que é o universo religioso afro-
brasileiro, foi possível elencar uma série de informações sobre os trajes; informações
estas contidas não em textos específicos, como já observados, mas em textos que
abordam, de uma maneira geral, e sobre vários viéses a cultura negra e afro-
religiosa.
Os trajes não são, de forma alguma, utilizados aleatoriamente; assim como tudo
dentro do Candomblé, há uma lógica pertinente, uma explicação mítica, uma regra a
ser seguida em relação à utilização das vestes. São as categorias e modo de
utilização das indumentárias, válidos para todos os praticantes do culto. Nina
Rodrigues, descrevendo uma situação em seu texto, faz a seguinte observação:
25
Alguns trechos que remetem à indumentária foram grifados, a fim de dar destacar as passagens
relacionadas ao tema.
25
[...] As vestes variam também de santo a santo. [...] Este vestuário é tão
constante que facilmente se distinguem por ele os iniciados de cada
confraria. O conhecimento da significação das vestimentas de santo me
foi de grande auxílio nas minhas observações.[...] (RODRIGUES, 2005,
p. 51-52). [Grifo nosso]
A questão categórica e de utilização dos trajes é citada ainda quando Pierre Verger
refere-se a um mito relacionado às divindades africanas:
[...] Obatala é o rei dos Orisa. Está velho, cansando e convoca seus súditos
a fim de saber qual é o mais inteligente e mais digno de substituí-lo. Envia-
os mundo afora. Será seu sucessor aquele que receber mais honrarias.
Partem todos juntos, usando seus mais belos trajes, porém Ose é pobre e
seu único haver é um saco velho. [...] Ao regressar, eles se apresentam
diante de Obatala. Os Orisa narram um de cada vez suas viagens, as
grandes recepções e os banquetes suntuosos de que participaram. [...] „E o
que vocês me trazem como prova de tudo isso? ‟ pergunta Obatala.
Somente Ose, ao abrir o saco e retirar dele a cabeça, os pés e os ossos dos
animais, pode demonstrar a exatidão de suas palavras. Obatala faz Ose
sentar-se no trono, tira seus trajes e entrega-os a Ose. (VERGER, 2000.
p.98). [Grifo nosso]
Além de ceder seu trono, Óbatala – a divindade africana em questão – entrega seus
trajes, mostrando que os mesmo também estão relacionados ao poder. Já Vagner
Gonçalves da Silva fala de uma conotação sagrada presente nas roupas:
26
Bastide e Querino descrevem duas ações que se completam: o despir das roupas
usuais do individuo em transe e o vestir da roupa-de-santo; a comunicação presente
27
em tais atos entende que o indivíduo, por hora, encontra-se incorporado, atuante e
vestido por outra figura: a do orixá. Manuel Querino ainda atenta para questões
corpóreas, salientando que as roupas não devem marcar anatomicamente o tipo
físico do indivíduo. Esclarece-se, portanto, que a questão de gênero é relevante, e
suscitaria um estudo direcionado, quando tratamos de vestes; uma mulher, por
exemplo, que incorpora um orixá masculino se vestirá de acordo com as roupas e
portará as insígnias do mesmo; o mesmo vale para um homem que possui um orixá
feminino; quem está ali naquele momento é à força da natureza e não indivíduo;
nesse momento, esta força, o orixá, dita as regras.
Verger relata um caso africano, descrevendo um culto de Abomé: “[...] Ele faz três
aparições sucessivas diante do público usando diferentes trajes [...]” (VERGER,
2000, p.110). Em nota de rodapé, o autor especifica o simbolismo presente nos
trajes das três aparições realizadas pelo iniciado no culto. Há também a descrição
de ritos internos feitas por Roger Bastide:
[...] Uma vez conhecido o nome do orixá, tem lugar então a entrada no
santuário. Vai então a candidata, nas trevas em geral luminosas das noites
tropicais, tomar banho na fonte sagrada; põe de lado as velhas vestes antes
de entrar na água, envergando novas roupas à saída. Assim fica
simbolizada, pelo banho lustral e pela mudança de trajes, a passagem da
vida profana à vida mística. [...] (BASTIDE, 1958, p. 48)
Roger Bastide descreve ainda uma cerimônia funerária; o funeral de uma pessoa
que venha a falecer e possua um alto cargo dentro de um terreiro é cercada de ritos
e procedimentos singulares; as roupas utilizadas por esse membro também são alvo
de algumas ações, como bem descreve o autor:
[...] Mas o morto deixou outros objetos ainda, que não estão em sua casa,
mas se encontram no próprio recinto do candomblé; não podem servir a
26
Bori significa em ioruba, dar comida à cabeça e corresponde a um dos ritos iniciais do Candomblé
de origem iorubana.
28
nenhuma outra pessoa, pois foram ligados unicamente àquele que acabou
de morrer; constituem de certo modo seus „pertences‟, são elementos
constitutivos de sua personalidade. Far-se-á, pois um despacho com esses
elementos litúrgicos; depois é perguntado aos orixás ou a Ifá, com o auxílio
dos búzios, o lugar onde as vestes, as insígnias etc. devem ser
abandonadas, mar, água doce, floresta..., os filhos do terreiro dirigem-se ao
lugar designado para jogá-las ali e, em seguida, regressarão sem olhar para
trás nenhuma vez. [...] (BASTIDE, 1958, p.66)
No primeiro caso, Prandi fala em “preparar o toque” e inclui o cuidado com os trajes
nesse processo; Já Vagner Gonçalves coloca a expressão “vestir o santo”, que
corresponde ao indivíduo preparado para entrar em estado de transe e possessão
do orixá. Temos dessa forma: uma expressão que exige a execução de tarefas que
envolvem a roupa e seus cuidados; e outra que relaciona o ato de trajar/vestir a
outro ato de extrema importância e ocorrência dentro dos terreiros: a possessão.
Vagner Gonçalves da Silva ainda destaca que as roupas e outros adereços como “a
face mais conhecida do candomblé”; é por onde a comunicação visual ocorre.
Destaca também os trabalhos de Pierre Verger e Carybé no registro visual dos
trajes.
Porém, muito antes da discrição acima, já escrevia Roger Bastide sobre o processo
de confecção dos trajes:
Sobre as formas e padrões temos dois fatores determinantes: cor e textura, sendo a
cor o fator de maior observância por parte dos estudiosos. A cor está sempre
relacionado à força da natureza, ao orixá. O branco, relacionado ao orixá Oxalá, está
sempre presente nos ritos iniciais e também nos funerais. É a cor predominante no
candomblé. Está ligada a criação, a limpeza, ao fim (ou recomeço)
[...] A iaô ou as iaôs que acabam de ser feitas efetuam nessa noite três
aparições sucessivas, que condensam ou resumem simbolicamente o
conjunto cerimonial de iniciação. Na primeira aparição, elas vêm com
roupas comuns, lembrança do passado que acaba de ser abolido. Na
30
No que tange às representações feitas de negras crioulas e das vestes dos cultos
afro-religiosos, temos nesses três expoentes analisados aqui (atentando para
existência de tantos outros) uma breve noção de comunicação e sentido visual
transmitido pelas indumentárias. Primeiramente, temos as gravuras de Jean Baptiste
Debret, pintor que viveu na França durante a segunda metade do século XVIII, e
recebeu o convite para vir ao Brasil – junto a outros artistas – desembarcando aqui
no início do século XIX (janeiro de 1816). Trouxe para terras brasileiras a arte
neoclássica, mas não deixou de notar a presença marcante dos negros que
circulavam pelas cidades, passando a representá-los por meio de litografia sobre
papel. Retratando a mulher e o homem negro, retratou conseguintemente suas
vestes, como aponta Maria da Conceição Barbosa Costa e Silva:
5. CONSIDERAÇÕES E DESDOBRAMENTOS
REFERÊNCIAS ANALISADAS
OUTRAS REFERÊNCIAS
______, Raul. O que que a baiana tem: um traje nacionalmente brasileiro. Rio de
Janeiro: [s.n.], 1996. 7 p. (Comunicado aberto26)
37
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Roger Bastide e o Brasil. Afro - Ásia n° 12, 1976, p
47-52.
TORRES, H.A. Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana. In: Cadernos
Pagu, n° 23, Campinas, jul/dez 2004.