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Gesto e liberdade1
Gabriela Reinaldo
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do próprio sol – e caiu ainda flamejante, ardente, na terra. O gesto, que açoita
a tela e a energiza, comunga mundos antes apartados. Solidão e companhia,
céu e terra, serenidade e destempero, cima (o sol, as nuvens, os corvos) e
baixo (a terra, as raízes contorcidas). De seus campos nenhuma cena
extraordinária irrompe, mas há algo perturbador nessa calma. Férteis, também
trazem o gene da autodestruição. As coisas como elas são. A cadeira (a dele e
a de Gauguin). O trigal. Um vaso de flores. Um par de botas. O quarto de
dormir. O retrato do carteiro. O de uma menina. Um homem apoiado sobre
seu cotovelo. Uma família comendo batatas. Pessoas dormindo sobre o feno.
As coisas como elas são. Só um epilético bipolar para nos mostrar que as
coisas como elas são se situam além do realismo dos mecanismos óticos.
Gestos de quem pinta como um ferreiro.
sobressaía em relação ao olfato (para os cães, por exemplo, a troca não traria
recompensas), que andar de duas pernas libertava as mãos para a construção
de instrumentos e desenvolvimento da capacidade motora mais fina, entre
outras. Independente do que nos fez escolher andar sobre as duas pernas, o
etólogo afirma que, o que se pode dizer hoje com segurança é que andamos
de duas pernas porque atribuímos um sentido a essa marcha. E o sentido
desse gesto, para o homem, está em se vincular a outro ser humano. O que a
etologia chamará de valor relacional: “uma criança sem um meio humano
nunca atribuirá a esse impulso nas pernas uma função de relação” (Cyrulnik,
1995: 48). Andar precisa ser aprendido. Mais do que isso, precisa fazer sentido.
E o nascimento do sentido, conclui Cyrulnik na obra assim intitulada, obedece
aos comandos das relações afetivas. Em O mundo codificado, Flusser afirma:
“O objetivo da comunicação humana é nos fazer esquecer desse contexto
insignificante em que nos encontramos – completamente sozinhos e
incomunicáveis”. Na nova casa, Laura aprende a andar sobre as duas pernas.
Angustiada, dominada pelo medo que lhe provocava a novidade, voltava às
gatinhas. Mas o estímulo afetivo era maior.
Os primeiros passos do bebê assustam o pai e o próprio bebê. Seria
mais seguro para todos se não andassem. Há riscos, mas o bebê relaciona o
ato motor com um vínculo. “Essa erotização da angústia, esse prazer solitário,
esse jogo com o medo, será amplificado pelas reações emocionais dos
adultos. Então, o jogo exploratório das capacidades do seu próprio corpo
tornar-se-á para a criança, um pretexto emocional intenso” (Cyrulnik, 1995, 48).
Laura começa a andar porque o gesto de andar, como qualquer gesto,
é linguagem e como linguagem ultrapassa os requisitos anatômicos e se
inscreve no plano dos afetos e dos vínculos. Laura, na nova casa com pais,
avós, uma irmã, dois cães, três patos, pombos, pardais e ouriços morando
todos sob o mesmo teto, se sentia amada e por isso queria andar, conclui
Cyrulnik.
A biografia da Van Gogh é composta de gestos como o de pintar,
arrancar, golpear, martelar (como um ferreiro), ingerir, mas também o desmaiar
como esmaecimento dos gestos, abandono do corpo. Quanto à Rachel, ela
merecia a orelha de Vincent, um pedaço de carne que nada lhe comunicava e
que poderia lhe soar como um destempero, uma violência e não como um
gesto de amor? Não temos como avaliar. Mas a falta de explicações é rica em
gerar hipóteses, em parir ficções. O que motivou a automutilação do pintor?
Qual a partilha pretendida por esse gesto, gesto tão estranho ao seu
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interlocutor? Gestos aparentemente sem nexo, sem lógica, mas que por isso
mesmo expressam a nossa humanidade.
aberração da natureza como são os pássaros que não sabem construir seus
ninhos. Por isso escrever é um gesto e não um movimento condicionado pela
natureza, explica Flusser. Porque nos gestos o que está em jogo é a liberdade.
Há capítulos como o gesto de falar e sobre o ouvir. Há, como vimos,
sobre o escrever. Do gesto de ler, Flusser não diz nada. Esse silêncio provoca
em nós várias leituras.
Bibliografia
BERNARDO, Gustavo, Anke Finger e Rainer Guldin. Vilém Flusser: uma introdução.
São Paulo, Annablume, 2008.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo, Planeta deAgostin,
2003.
CASCUDO, Luís da Câmara. História dos nossos gestos – uma pesquisa na mímica do
Brasil. São Paulo, Global, 2003.
CYRULNIK, Boris. O nascimento do sentido. Editora Piaget, 1995.
FLUSSER, Vilém. Bodenlos – uma autobiografia filosófica. São Paulo, Annablume, 2007
FLUSSER, Vilém. Los gestos – fenomenologia y comunicación. Barcelona, Herder,
1994.
FLUSSER, Vilém. Natural: mente – vários acessos ao significado de natureza. São Paulo,
Duas Cidades, 1979.
FLUSSER, Vilém. Nossa morada. Em Pós-História. São Paulo, Duas Cidades, 1983.
FLUSSER, Vilém. Estrangeiros no mundo. Publicado inicialmente no Jornal O Estado
de São Paulo em 14 de dezembro de 1991. Disponível em:
<http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a391.htm>. Acesso em: 8 jul. 2011.