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Gesto e liberdade1

Gabriela Reinaldo

Espasmo número 1 – as coisas como elas são.


O olho parado, fixo em um ponto de luz, agüentando sem piscar o
quanto pode (mas sem sofrimento! é só a impressão que importa) e o resíduo
dessa experiência nas retinas. Imagens que se formam das sobras de claridade.
Luminescência como lembrança vaga e atordoada. Luz como memória dos
goles de absinto, a fada verde que tinge tudo de alucinação. Cortina de contas
feitas de flores, gotas de chuva, restos de sol, espelhos de água. Nenúfares
boiando, azaléias e alfazemas pingadas na tela. Luz que tudo banha, luz como
réstia, luz que borda a tela atravessando a textura da copa das árvores. Um
estremecimento da retina, dizia Duchamp da obra de Monet ou de Seurat. Mas
essa luz impressionista, luz orvalhada, estremece, se impacienta e seca.
Desorientadas, no pincel de Van Gogh, as cores saem detrás do véu de
catarata que cobre os olhos de Monet. As coisas como elas são. O homem que
pinta não calcula mais a medida dos pontos seguindo as leis da ótica ou do
código de cores matemático. Tudo agora tem peso. O peso das coisas como
elas são. O sol torra. Não um restinho de luz, mas o sol do Semeador ao pôr
do sol, o sol do Campo de trigo com ceifeiro e sol, o sol de Oliveira com céu
amarelo e o sol, o sol de Vista de Saintes-Maries com igreja. O vento golpeia.
O homem é arrastado, angustiado no meio de uma paisagem que o sufoca.
Uma vez, observando as suas mãos, um médico em Amsterdam avaliou que
Vincent Van Gogh era um ferreiro. Van Gogh não tem as mãos de quem borda.
Ele vira bordado do avesso: sua tela tem a força dos nós e a aparente
desorientação dos contrários. Vigorosa, visceral, agressiva, a mão deixa marcas
– que são do espírito – sobre o tecido da tela. Os bolos de tinta como
testemunho da pungência dos gestos. Sem Van Gogh, Pollock não poderia se
insurgir contra os pincéis sedosos em sua action painting. Tubos de tinta
industrializada espremidos e algumas vezes ingeridos. Temendo ser engolido
pelas tintas, Van Gogh come o amarelo de cromo, o azul cobalto e o carmim.
Outras vezes, comeu cocô também. A planta que acompanha o sol jaz num
fundo azul. O girassol de Van Gogh nem mesmo se parece com uma planta. É
como um pedaço de um ser astral candente que se desprendeu – quem sabe

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do próprio sol – e caiu ainda flamejante, ardente, na terra. O gesto, que açoita
a tela e a energiza, comunga mundos antes apartados. Solidão e companhia,
céu e terra, serenidade e destempero, cima (o sol, as nuvens, os corvos) e
baixo (a terra, as raízes contorcidas). De seus campos nenhuma cena
extraordinária irrompe, mas há algo perturbador nessa calma. Férteis, também
trazem o gene da autodestruição. As coisas como elas são. A cadeira (a dele e
a de Gauguin). O trigal. Um vaso de flores. Um par de botas. O quarto de
dormir. O retrato do carteiro. O de uma menina. Um homem apoiado sobre
seu cotovelo. Uma família comendo batatas. Pessoas dormindo sobre o feno.
As coisas como elas são. Só um epilético bipolar para nos mostrar que as
coisas como elas são se situam além do realismo dos mecanismos óticos.
Gestos de quem pinta como um ferreiro.

Espasmo número 2 - Laura.


Laura nasce de um incesto. A mãe, aos 15, não consegue se vincular à
filha-irmã. O pai-avô não permite que lhe falte nada do ponto de vista de sua
sobrevivência física. Aos sete meses, Laura desiste de viver. Internada, é
estimulada pelas enfermeiras e reage. Retorna a casa. Isolada novamente,
recai. A cena se repete e aos sete anos Laura é levada para a adoção. Boris
Cyrulnik (1995) conta de sua primeira visita à menina. A nova casa tinha pais,
avós, uma irmã para Laura, dois cães, três patos, pombos, pardais e ouriços
morando todos sob o mesmo teto. Laura, apesar de não apresentar razões
fisiológicas que justifiquem o fato, não anda, ela se arrasta sobre as nádegas
ou engatinha.

Espasmo número 3 – a laboriosa inutilidade.


Beliscão. Mão no queixo. Estalando a língua. Umbigada. A pálpebra azul
de Jezabel. A face velada do morto. Cá dê Neném. Muxoxo. Pontapé.
Bundacanastra. Beliscão de frade. Dedo na venta. Bulu-bulu. Boca cozida. Mão
nas ancas. Juro! Carapinhé. Aperte essa mão! Mijar na cova. Figa! Ó. Negar de
pés juntos. Pegar no estribo. Torcendo os bigodes. Era gente assim.
Estes e mais um rol de outros gestos foram inventariados por Câmara
Cascudo em História dos nossos gestos. Iniciada em 1966, a cartografia de
Cascudo foi finalmente publicada em 1973. Diz o autor: “O Gesto é anterior à
Palavra. Dedos e braços falaram milênios antes da Voz. Áreas do Entendimento
mímico são infinitamente superiores à comunicação verbal”. E continua: “a
mímica não é complementar mas uma provocação ao exercício de oralidade.
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Sem gestos, a palavra é precária e pobre para o entendimento temático”


(Cascudo, 2003: 18). Moedas de circulação indispensável e diária, como dizia
Cascudo na introdução de seu livro, é impreciso dizer de onde vêm e no que
se transformarão. Sobre essa etnografia dos nossos movimentos, ele também
afirma: “Será uma laboriosa inutilidade, reminiscências de livros e reparos na
jornada invisível em que marchamos no rumo da noite imóvel” (Cascudo,
2003: 19).

Espasmo número 4 – o alfabeto é surdo mudo?

Espasmo número 5 – a laboriosa inutilidade e a falta de chão.


Outro que escreveu sobre gestos foi o filósofo tcheco Vilém Flusser.
Embora em sentido muito contrário ao de Cascudo, os dois se tangenciam na
percepção de que a origem e a permanência dos gestos é matéria da noite
imóvel, dos mistérios. Antes de tecer considerações sobre os gestos de que
discorre Flusser, me encarrego de seu modo de escrita. Como me pediram
para escrever um artigo científico, tento me ajustar à encomenda. Já neste
ponto em que avançamos do começo do texto e me retardo em cumprir as
normas, esclareço meu intento e minha hipótese. O leitor, que ainda não
desistiu de mim, pode bem avaliar se quer prosseguir a leitura (em minha
defesa, recomendo-lhe a leitura do espasmo número 11 em que Calvino faz
recomendações ao gesto de ler). Organizo-me: meu intento aqui é mostrar
porque se deve prestar atenção no que diz Flusser sobre os gestos. Minha
hipótese corre na direção de que podemos ouvir o que diz Flusser sobre os
gestos porque ele não quer dizer nada absolutamente muito sério nem muito
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definitivo. Ele toma a responsabilidade que o pesquisador deve ter de assumir


tarefas prosaicas e aparentemente sem importância, como o estudo dos
gestos. “Quem adquiriu o hábito de permitir a todo assunto ocasional ocupar
o centro do interesse, e quem o toma como pretexto para largar o fluxo de
reflexões”, diz Flusser em Natural: mente – vários acessos ao significado de
Natureza, “conhece o fascínio exercido não importa por que encontro com
não importa por que experiência”. (Flusser, 1979: 135)
Os textos de Flusser são fluxos, como o nome do autor, que indica o rio
(em alemão, fluss). Não apenas ele se dá o direito de escrever sobre qualquer
assunto, da Comunicação à importância dos Unicórnios para a Lógica, mas se
utiliza de um tipo de escrita que permite e justifica essa convivência: o ensaio.
Em Writings (Flusser apud Bernardo ET AL, 2008), Flusser discorre sobre sua
opção pelo ensaio como uma escolha ligada às suas crenças. O ensaio não
quer informar, mas questionar. No ensaio, o autor está implicado no tema e
corre riscos – o risco de se perder no tema e de perder o próprio tema, diz ele.
O ensaio não informa seus leitores do mesmo modo que o tratado pois
transforma o tema em agonia e enigma. Mas é exatamente onde reside seu
perigo que mora o seu encanto, sua atração. Equivalente ao ensaio é a opção
pelo diálogo.
Diálogo como contraponto ao discurso, explica em Bodenlos – uma
autobiografia filosófica. Se no discurso há um emissor, que se investe da posse
de informações válidas, de valores a serem transmitidos, no diálogo há vários
detentores das informações – todas, faz questão de sublinhar Flusser (2007),
parciais e duvidosas. O que importa no diálogo, assim como no ensaio, é o
processo. A informação nova não acontece unidirecionalmente do emissor ao
receptor. Ela é fruto de um processo coletivo. Bodenlos, título de sua
autobiografia, quer dizer sem sentido, sem chão, sem fundamento.
Por ser ensaio, a teoria dos gestos do Flusser, não pretende ser uma
receita ou um postulado sobre os gestos descritos. “O interessante no ensaio
não é o resultado, a hipótese confirmada ou refutada. O interessante é o que
se mostra ao longo da experiência empreendida” confirma a predileção dessa
forma de escrita em Natural: mente. Flusser diz que muitos aspectos
insuspeitos apareceram ao longo dos ensaios. A hipótese inicial não era nem o
mais importante nem o único motivo para a construção da obra. Em suas
palavras: “o motivo era, como sempre, o fascínio exercido pelas experiências
relatadas”. (Flusser, 1979: 138).
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A redescoberta da natureza, que tem início ainda na Idade Média,


provocando uma revolução da sensibilidade, quando o homem se volta para
assuntos periféricos, abstratos e distantes, como a astronomia e a mecânica,
deixando em sua margem as questões humanamente mais significativas, é
transgredida na época atual. A ciência moderna, marcada pelo modelo da
física como conjunto sistematizado de conhecimento, está em crise. Enquanto
o saber perambulava por regiões que Flusser chama de desinteressantes ao
homem, regiões extra-humanas, longínquas, é possível manter a ficção do
conhecimento objetivo. Contudo, no modelo atual, em que o saber penetra
onde o homem está implicado – ciências como a psicologia, sociologia e
mesmo a biologia – a separação entre sujeito e objeto é impossível de ser
operada e a direção do conhecimento se inverte. O Flusser de Natural: mente,
de Bodenlos ou o que escreve sobre os gestos empreende tentativas de
inventariar não um mundo novo que se descortina, mas um novo olhar para o
mundo. Somos tão ignorantes quanto os primeiros cientistas, mas como eles
somos pioneiros, estamos vivendo o desabrochar de uma outra forma de
compreensão, de uma outra forma de articulação de pensamento, e assim
podemos criar novas formas de catalogação, diz ele. Flusser irmana-se a
Husserl, Ortega e a Bachelard no que ele chama de ciência do futuro. O que
ele escreve é, em suas palavras, uma “literatura embriônica” (Flusser, 1979:
144). Mas o que são gestos, na compreensão de Flusser?

Espasmo número 6 – nu descendo a escada.


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Espasmo número 7 – Rachel e Laura


Quando abre o embrulho com uma orelha dentro, Rachel desmaia. As
outras prostitutas, acostumadas que estão com a vida, que como uma caixa ou
como um embrulho feito às pressas tudo pode conter, inclusive uma orelha,
não se espantam com o fato. Meses depois do incidente, internado mais uma
vez, na companhia do guarda do hospital ele visita o bordel nos Arles para se
desculpar pelo ocorrido. No hospital, dizem que Vincent tem manias por idéias
fixas. Seu psiquiatra também. Dr. Gachet merece ser retratado e Van Gogh,
que pintou pelo menos trinta e nove autorretratos, o faz duas vezes
curiosamente parecido consigo mesmo.
Na casa com pais, avós, uma irmã, dois cães, três patos, pombos,
pardais e ouriços morando todos sob o mesmo teto, Laura aprende a andar.
Cyrulnik conta: “o fato de ter sido criada em isolamento sensorial, privara-a do
modelo da postura bípede: não pensava em tentar a aventura da
bipedestação” (Cyrulnik, 1995, 45).
Andar traz inúmeras desvantagens para o homem, como varizes,
hemorróidas, dores ciáticas e problemas digestivos. Porém não partilhamos de
uma lógica puramente anatômica. Cyrulnik diz que as hipóteses para a origem
da escolha pelo bipedismo são variadas e todas apenas frutos de conjecturas
puramente intelectuais e sem comprovação – que para o homem seria mais
vantajoso andar de duas e não de quatro no chão porque sua visão se
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sobressaía em relação ao olfato (para os cães, por exemplo, a troca não traria
recompensas), que andar de duas pernas libertava as mãos para a construção
de instrumentos e desenvolvimento da capacidade motora mais fina, entre
outras. Independente do que nos fez escolher andar sobre as duas pernas, o
etólogo afirma que, o que se pode dizer hoje com segurança é que andamos
de duas pernas porque atribuímos um sentido a essa marcha. E o sentido
desse gesto, para o homem, está em se vincular a outro ser humano. O que a
etologia chamará de valor relacional: “uma criança sem um meio humano
nunca atribuirá a esse impulso nas pernas uma função de relação” (Cyrulnik,
1995: 48). Andar precisa ser aprendido. Mais do que isso, precisa fazer sentido.
E o nascimento do sentido, conclui Cyrulnik na obra assim intitulada, obedece
aos comandos das relações afetivas. Em O mundo codificado, Flusser afirma:
“O objetivo da comunicação humana é nos fazer esquecer desse contexto
insignificante em que nos encontramos – completamente sozinhos e
incomunicáveis”. Na nova casa, Laura aprende a andar sobre as duas pernas.
Angustiada, dominada pelo medo que lhe provocava a novidade, voltava às
gatinhas. Mas o estímulo afetivo era maior.
Os primeiros passos do bebê assustam o pai e o próprio bebê. Seria
mais seguro para todos se não andassem. Há riscos, mas o bebê relaciona o
ato motor com um vínculo. “Essa erotização da angústia, esse prazer solitário,
esse jogo com o medo, será amplificado pelas reações emocionais dos
adultos. Então, o jogo exploratório das capacidades do seu próprio corpo
tornar-se-á para a criança, um pretexto emocional intenso” (Cyrulnik, 1995, 48).
Laura começa a andar porque o gesto de andar, como qualquer gesto,
é linguagem e como linguagem ultrapassa os requisitos anatômicos e se
inscreve no plano dos afetos e dos vínculos. Laura, na nova casa com pais,
avós, uma irmã, dois cães, três patos, pombos, pardais e ouriços morando
todos sob o mesmo teto, se sentia amada e por isso queria andar, conclui
Cyrulnik.
A biografia da Van Gogh é composta de gestos como o de pintar,
arrancar, golpear, martelar (como um ferreiro), ingerir, mas também o desmaiar
como esmaecimento dos gestos, abandono do corpo. Quanto à Rachel, ela
merecia a orelha de Vincent, um pedaço de carne que nada lhe comunicava e
que poderia lhe soar como um destempero, uma violência e não como um
gesto de amor? Não temos como avaliar. Mas a falta de explicações é rica em
gerar hipóteses, em parir ficções. O que motivou a automutilação do pintor?
Qual a partilha pretendida por esse gesto, gesto tão estranho ao seu
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interlocutor? Gestos aparentemente sem nexo, sem lógica, mas que por isso
mesmo expressam a nossa humanidade.

Espasmo número 8 – o gesto e o homem


Publicado em 1991 pela Bollmann Verlag, a obra póstuma de Vilém
Flusser tem como título Gesten. Versuch einer Phänomenologie. A versão em
português, que poderia se chamar Os gestos – tentativa de uma
fenomenologia ainda não saiu. São mais ou menos dezesseis os gestos sobre
os quais Flusser discorre. Digo mais ou menos, porque há capítulos com títulos
bastante evidentes quanto aos gestos que o autor pretende discorrer, como o
de número 10, que é O gesto de filmar, ou o de número 8, que versa sobre O
gesto de pintar. Mas entre os dezoito capítulos da obra há títulos como O
gesto do vídeo, Além das máquinas e Gesto e conformidade. Há ainda o gesto
de escrever, de falar, de fazer, de amar, de fazer a barba, de fumar cachimbo,
de telefonar, de fotografar, de inverter a máscara, entre outros. Embora o livro
tenha sido publicado nos anos 1990, sobre o tema Flusser se debruça mais
detidamente na década de 1970 e, portanto, logo após seu retorno à Europa.
Em 1974 ele apresenta nos Estados Unidos a lecture “Phenomenology of the
human gesture”; em 1975, profere sobre o gesto no Institute d´Environement
en Paris e, em 1977, na École d´Art d´Aix en Provence. Segundo sua tese, a
decodificação dos gestos, a busca pelos seus significados, seria um caminho
para se chegar à significação do ser humano no mundo.

Espasmo número 9 – os gestos do homem


Nunca assisti a uma aula de Flusser. Nunca o vi pessoalmente. Mas
sempre me chamou atenção, quando vejo suas imagens gravadas em vida, a
sua excessiva gesticulação e a aspereza de sua voz. Como isso se parece com
sua escrita! Ele se contorce para falar; ajeita a roupa; espalma as mãos; aponta;
se afasta do encosto da cadeira para se aproximar de seu interlocutor e para o
encosto retorna para se distanciar e, quem sabe, reformular o pensamento
sobre o assunto; entrelaça os dedos; abaixa a cabeça para ouvir; se apóia
sobre os cotovelos; tenciona os músculos da face; modifica o ritmo das
sentenças que pronuncia e chega a quase soletrar, quando quer chamar
atenção para uma informação nova, não apenas com a voz mas com o corpo
todo. Não há pensamento sem gesto, afirma. “Sem gestos”, avisa Câmara
Cascudo, “a palavra é precária e pobre para o entendimento” (Cascudo, 2003:
18). As palavras de Cascudo se adéquam com perfeição a Flusser. A mímica
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não como um complemento da palavra verbal, mas como uma “provocação ao


exercício da oralidade” (Cascudo, 2003: 18).
Flusser nos ensina que gesto que é liberdade porque é escolha.
Pensamos como pensamos porque é assim a nossa constituição física. Para
nós, o mundo tem dois lados, o bom e o mau, o feio e o bonito, o certo e o
errado, porque somos simétricos. Não uma simetria absoluta, mas cheia de
faltas (só no deus criador, diz Flusser, é possível alcançar essa simetria
utópica!). Ou, como quer Flusser, dialética, uma simetria dialética. Fôssemos
uma lula, abarcando o mundo pelos seus oito lados, nossa compreensão do
entorno seria outra. Nesta obra, o Flusser das imagens técnicas, que roubam
nossa individualidade ao adentrarem nas nossas casas abolindo a nossa
sensação de acolhimento, assaltando os nossos espaços privados, o Flusser da
escalada da abstração, que chama atenção para a atrofia dos gestos, para o
mundo da ponta dos dedos, se volta para algo extremamente palpável. No
capítulo “O gesto de fazer”, a pele é a terra de ninguém que separa o homem
do mundo e ao fazer a barba atua a violência da lâmina sobre a epiderme. No
gesto de escrever, ele alerta para o ato destrutivo que a sua raiz etimológica
indica. Grafar como arranhar, penetrar, rasgar. Tudo é tátil, móvel, penetrável,
violável. O gesto de fazer pressiona o objeto e, sob tal pressão, o objeto muda
sua forma: fazendo, imprimimos uma nova informação. Fazendo, mudamos
não apenas o objeto, mas a nós mesmos – a nova forma, a nova informação, é
uma das maneiras de superar a nossa constituição humana básica, diz o autor
(Flusser, 1994: 49). Rugoso ou liso, áspero ou macio, engelhado ou suave, o
mundo que Flusser descreve aqui é alheio ao universo numérico e
desencarnado das imagens técnicas. Os gestos não são vagos e destituídos de
intencionalidade. Os gestos irrompem contra obstáculos, eles violentam os
objetos, assim como para conhecer violentamos o mundo e subvertemo-lo. Por
isso, mesmo que atento ao cotidiano, ao fenomenológico, ao circunstancial e
experiencial, Os Gestos é um pretexto para falar do conhecimento e da
ciência. Conhecimento e ciência que, por sua vez, são temas que desembocam
na questão central de Flusser que é a liberdade.

Espasmo número 10 – kitsch ou autêntico – gestos são gestos porque


nos permitem mentir.
Gestos são movimentos do corpo, mas nem todos os movimentos. O
peristaltismo dos intestinos não é gesto porque para ser gesto é preciso haver
intenção e intenção é exercício de liberdade (Flusser, 1994). Tampouco é
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gesto quando alguém toma um choque ou queima a pele e se afasta da fonte


de dor de forma reativa. O gesto deve representar algo, dar sentido a algo. No
movimento reativo, a dor se anuncia através do movimento. Para ser gesto, o
movimento teria que simbolizar a dor. Não se trata de distinguir entre o choro
fingido e o verdadeiro, entre a representação (símbolo codificador) e a
exteriorização (sintoma), mas de reconhecer que, embora esses critérios
possam levar ao erro, eles existem. O gesto, artificializando o movimento, dá
sentido a ele, inscreve-o no contexto cultural. Assim, não podemos dizer que
um gesto é verdadeiro ou falso. Ao conferir significado ao mundo, o gesto,
como representação simbólica, deve ser examinado por critérios estéticos: “A
escala dos valores que nos serve de padrão não deve oscilar entre verdade e
erro, nem entre verdade ou mentira, mas entre verdade (autenticidade) e
kitsch” (Flusser, 1994: 15)
A estética, na obra de Flusser, não é um tema acessório. O julgamento
do que é autenticidade e do que é kitsch é central para se pensar, novamente,
a liberdade. Em Nossa morada, publicado em Pós-História, Flusser afirma que
o patriotismo é kitsch, e em Estrangeiros no mundo, artigo publicado no Jornal
O Estado de São Paulo, em 14 de dezembro de 1991, Flusser diz que ele é
“um sintoma de uma enfermidade estética porque transforma o hábito em
algo misterioso”. Há um fundo profundamente autobiográfico em suas
reflexões, uma vez que, além da herança de errância que marca a História do
Judaísmo, Flusser foi vítima de um dos acontecimentos mais atrozes do século
XX e que levava a bandeira do patriotismo e da pureza racial (que se colocava
sob a égide do discurso sobre o belo) às últimas conseqüências. Por causa do
nazismo, Vilém Flusser, aos dezenove anos, teve que deixar seu país, onde
perdeu todos os parentes mais próximos e vir morar num país completamente
estranho. Nesses textos, Flusser afirma que é impossível morar no caos, no
ruído. Precisamos nos cercar de hábitos, de costumes, que aplaquem o nosso
sentimento de abismo. Morar é estar imerso em redundâncias que nos
permitem decodificar as informações que recebemos e organizá-las. Por outro
lado, os hábitos, “camada de algodão que encobre os fenômenos e ameniza
as rebarbas”, diz em Estrangeiros no Mundo, nos cegam para essas
informações novas e ruidosas. A diferença do morador – que vive a dialética
dentro fora, estranho e conhecido, perturbador e habitual e, por isso mesmo é
capaz de receber novas informações – para o patriota é que o patriota se fecha
ao ruído.
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Voltando ao livro sobre os Gestos, diz o autor: “Gesto é um movimento


do corpo ou de um instrumento unido a ele para o qual não se dá nenhuma
explicação causal satisfatória” (Flusser, 1994: 8). Ou seja, por mais que
possamos explicar um determinado gesto, essa explicação não dá conta de
sua dimensão existencial. Flusser diz que, embora não tenhamos criado uma
teoria de interpretação dos gestos, estamos sempre lendo e interpretando
gestos. As ciências humanas, em suas tentativas, avizinham-se, mas ficam na
soleira porque pretendem uma cientificidade que até admite o caráter
espiritual, simbólico, passível de interpretação dos gestos, mas tendem a
reduzir os gestos a explicações causais. Para Flusser, a comunicação social
estaria mais apta uma vez que se distingue das demais ciências do espírito
graças ao seu caráter singularmente semiótico.

Espasmo número 11 – recomendações para ler: mantenha os pés


levantados e retire os olhos do papel.

“Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino,


Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-
se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o
mundo a sua volta se dissolva no indefinido. É melhor
fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor
ligado. Diga logo aos outros: ‘Não, não quero ver
televisão! ’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo!
Não quero ser perturbado! ’. Com todo aquele barulho,
talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite:
‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!
’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em
paz.
Escolha a posição mais cômoda: sentado, estendido,
encolhido, deitado. Deitado de costas, de lado, de
bruços. Numa poltrona, num sofá, numa cadeira de
balanço, numa espreguiçadeira, num pufe. Numa rede, se
tiver uma. Na cama, naturalmente, ou até debaixo das
cobertas. Pode também ficar de cabeça para baixo, em
posição de ioga. Com o livro virado, é claro.
Com certeza, não é fácil encontrar a posição ideal para
ler. Outrora, lia-se em pé, diante de um atril. Era hábito
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permanecer em pé, parado. Descansava-se assim,


quando se estava exausto de andar a cavalo. Ninguém
jamais pensou em ler a cavalo; agora, contudo, a idéia de
ler na sela, com o livro apoiado na crina do animal, talvez
preso às orelhas dele por um arreio especial, parece
atraente a você. Com os pés nos estribos, deve-se ficar
bastante confortável para ler; manter os pés levantados é
condição fundamental para desfrutar a leitura. (Calvino,
2003: 11-12)

Em Se um viajante numa noite de inverno, Calvino faz com que o leitor


experimente o gesto de ler, lendo. Que não apenas se conscientize, mas que
vivencie essa experiência. Logo no primeiro parágrafo do primeiro capítulo ele
começa com a frase que de tão óbvia causa espanto: “Você vai começar a ler
o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno”. Na
próxima frase, aconselha: “relaxe”. Seguida do aviso: “Concentre-se. Afaste
todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo a sua volta se dissolva no
indefinido”. Para, então, fazer com que o leitor abandone a leitura para se
assegurar que esse relaxamento atento seja de fato levado a cabo: “É melhor
fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado”. O parágrafo
seguinte trata das posições da leitura: sentado, estendido, encolhido, deitado
(de bruços, de lado, de costas), cabeça para baixo em posição de ioga, de pé
e até mesmo montado sobre um cavalo. O livro segue falando das posições do
corpo no ato da leitura: pernas esticadas, pés sobre almofadas, braços no sofá
ou encosto da poltrona ou na mesinha de chá ou num “globo terrestre” (o que
é simbólico, em se tratando de leitura). Contudo, dentre todas essas
disposições corporais, há uma essencial: “manter os pés levantados é condição
fundamental para desfrutar a leitura”. Segundo Calvino, pés levantados não
são um detalhe. São “condição fundamental para desfrutar a leitura” (Calvino,
2003: 12).
Na coletânea O Rumor da língua, Roland Barthes diz que com
freqüência é levado a levantar a cabeça e a retirar os olhos do papel quando
está lendo. Não por desinteresse na leitura, mas exatamente pela excitação
causada com o que está escrito. Ao tirar os pés do chão, o leitor de Calvino
pactua com a ficcionalidade da obra, pisa em outro solo, se transporta para
outra dimensão, assim como, ao levantar a cabeça enquanto lê, Barthes
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enxerga com os olhos da imaginação, que completa o que as pupilas


registraram dos desenhos das letras no papel.
Quando vai comentar sobre a Pós-História e sobre a escalada da
abstração, temas que o tornaram célebre no campo da Comunicação Social e
da Filosofia, é sobre a escrita que Flusser se dedica. Antes da escrita, o tempo
era circular. O olho vagava sobre a imagem, que já havia se tornado
bidimensional. Esse gesto alimentava-se de uma idéia de tempo circular e
mágica. Com a escrita linear, o tempo se lineariza e a magia já não faz mais
sentido porque os conceitos de destino e de acaso se embaçam. Linear é o
tempo e o mundo é histórico, regido por lógicas de causalidades. A primeira
dimensão, da profundidade, é perdida quando a imagem é gravada na
superfície. A segunda também se desfaz, quando se estabelece que existe um
sentido único (que pode ser da esquerda para a direita ou da direita para a
esquerda, de baixo para cima ou o contrário). O gesto de escrever é o gesto
“oficial” do pensamento no ocidente (Flusser, 1994). Com o surgimento das
imagens técnicas, desencarnadas, o mundo avança rumo à nulodimensão. A
pós-História é uma superação da escrita. “O gesto de escrever é um gesto
pobre, primitivo, pouco eficaz e custoso. Tanto em seu repertório quanto em
sua estrutura o alfabeto é um código limitado a um pensamento
autoconsciente”, diz Flusser (1994: 38). Os problemas de hoje devem ser
percebidos e analisados por meio de “códigos e gestos muitíssimo mais
refinados, exatos e ricos do que os do alfabeto”. O autor refere-se ao vídeo,
aos códigos digitais e multidimensionais.
Contudo, há os que apesar de serem conscientes de que já não vale a
pena escrever, ainda o fazem: “o motivo que as movem não responde à
necessidade de informar aos outros nem tampouco ao desejo de enriquecer a
memória coletiva”. O que os torna escritores – e Flusser se assume como tal –
é bodenlos, é a falta de fundamento. “O absurdo é este: tais pessoas não
podem viver especialmente bem se não escrevem por que sem a escritura sua
vida não tem muito sentido”. Para essas “existências arcaicas” para as quais
“as palavras das línguas sussurradas se deixam sentir com tal força e tal poder
de sedução que não podem resistir-se à tentação de escrevê-las” segue
vigente o lema de “scribere necesse est, vivere non est”. (Flusser, 1994: 38-39)
No nosso cérebro, há zonas que controlam a escrita do mesmo modo
como há zonas que comandam a nossa respiração. Mas a escrita não está
contida no nosso código genético assim como no dos pássaros está a
construção de seus ninhos. As pessoas que não escrevem não são uma
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aberração da natureza como são os pássaros que não sabem construir seus
ninhos. Por isso escrever é um gesto e não um movimento condicionado pela
natureza, explica Flusser. Porque nos gestos o que está em jogo é a liberdade.
Há capítulos como o gesto de falar e sobre o ouvir. Há, como vimos,
sobre o escrever. Do gesto de ler, Flusser não diz nada. Esse silêncio provoca
em nós várias leituras.

Espasmo número 12 – gesto e liberdade


Você vai começar a ler o livro Tal (a essa altura não sei ainda o título e
imagino que nem mesmo o próprio organizador o saiba) organizado pelo
professor Antonio Wellington de Oliveira Júnior. Relaxe. Concentre-se. Você o
comprou, ou ganhou, ou alguém lhe emprestou e agora você o tem nas mãos,
sente o peso dele, seu cheiro, observa a capa e o tipo de papel, depara-se
com o sumário e escolhe um assunto pela proximidade com seus interesses,
pelo ineditismo do título ou porque conhece o autor, já ouviu falar nele. Não,
você não está com o livro, nunca o viu, mas grifa com a bic ou com a marca
texto, se você tiver uma, o texto xerocado. Você só acha que entendeu se
riscar, se interferir nas palavras impressas com a sua grafia. No canto superior
esquerdo de todas as páginas, as letras ficam esmaecidas, mas você lê assim
mesmo porque depreende do que se trata confiando no que aprendeu
quando lhe disseram o que era a teoria da Gestalt. Ou você lê assim mesmo
porque o preço da Xerox em que você o mandou copiar é o melhor dentre as
Xerox que você passa na frente ou porque você nem sabe onde fica outra
Xerox e se tem os mesmos defeitos do que a que você costuma usar, ou
defeitos piores, ou se é mais cara. Breve, brevíssimo, os tablets estarão
popularizados (é o que cremos, agora, em julho de 2011) e você lerá essas
palavras na tela de um, que repousa no seu colo ou na sua mesa de almoço,
ou na de estudo, que pode ser a mesma em que você costuma almoçar, tomar
café e cochilar (o que você faz com mais freqüência do que costuma computar,
porque você, assim como eu e a maioria dos leitores, tem a leitura de forma
tão automatizada que nem percebe que, mesmo quando lê, cochila). Sua
compreensão será diferente de acordo com seu estado de espírito, com a
familiaridade que você tem com a temática da obra e com o meio em que
receberá essas mensagens.
Não sei se esse artigo será publicado com as imagens que sugeri ou
com as que citei, como as pinturas de Van Gogh, as de Monet, as de Pollock,
as de Duchamp. Mas sei que independente de como aconteça o seu gesto de
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ler – se essas imagens estiverem impressas em cores em papel adequado, se


xerocadas em preto e branco em folhas grampeadas ou se animadas nas telas
do seu tablete ou computador – o que sei é que você vai perceber dos gestos
que as compuseram mais pelo que você acabou de ler do que pela imagem
que pôde ter acesso (mesmo que pela lembrança). A menos que você esteja
lendo esse artigo em pé na frente do quadro autêntico de Van Gogh,
testemunhando o éter que provém da aura de que falava Benjamin e
experimentando a textura das pinceladas do mestre – o que é muitíssimo
pouco provável, pois acredito que você não perderia seu tempo em um museu
ou em uma galeria famosa dividindo a sua atenção com esse texto – os golpes
de tinta na tela são virtuais. Isso porque o meu gesto de escrever influenciará
no seu de imaginar, de ler. Se exitosa ou não, tentei fazê-lo sentir a ardência
do sol de Van Gogh, a privação e a superação de Laura e o próprio Flusser
gesticulando. Lembre-se: retirar os pés do chão é condição indispensável para
a leitura. Como gesto, o que fiz não é falso ou verdadeiro. Será autêntico ou
kitsch, bonito ou feio, elegante ou arrogante, honesto ou torpe. Porque, sendo
gesto, a escrita é, acima de tudo, liberdade. Caso contrário, se trata apenas de
uma reunião de espasmos que nada significam.

Bibliografia
BERNARDO, Gustavo, Anke Finger e Rainer Guldin. Vilém Flusser: uma introdução.
São Paulo, Annablume, 2008.
CALVINO, Ítalo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo, Planeta deAgostin,
2003.
CASCUDO, Luís da Câmara. História dos nossos gestos – uma pesquisa na mímica do
Brasil. São Paulo, Global, 2003.
CYRULNIK, Boris. O nascimento do sentido. Editora Piaget, 1995.
FLUSSER, Vilém. Bodenlos – uma autobiografia filosófica. São Paulo, Annablume, 2007
FLUSSER, Vilém. Los gestos – fenomenologia y comunicación. Barcelona, Herder,
1994.
FLUSSER, Vilém. Natural: mente – vários acessos ao significado de natureza. São Paulo,
Duas Cidades, 1979.
FLUSSER, Vilém. Nossa morada. Em Pós-História. São Paulo, Duas Cidades, 1983.
FLUSSER, Vilém. Estrangeiros no mundo. Publicado inicialmente no Jornal O Estado
de São Paulo em 14 de dezembro de 1991. Disponível em:
<http://www.dubitoergosum.xpg.com.br/a391.htm>. Acesso em: 8 jul. 2011.

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