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A coleção Assim lutam os povos tem o prazer de trazer assrrT

até nossos leitores uma obra única sobre a Revolução


os ntan
IOVOS
,

^
aSS
o utam
Cubana . Única não apenas pelo fato de brotar da
capacidade de análise de Forestan Fernandes, mas
ovos

»
também porque elabora um minucioso quadro teórico da
•r
experiência cubana, desde suas origens históricas até as

** ¥ experiências de implantação do poder popular a parir de


197 A . Como diz Antônio Cândido na apresentação ao
livro “talvez o traço principal da obra madura de Forestan

Em fotografia de Alberto Korda,


Camilo Cienfuegos (ao centro) no
calor da vitória da Revolução Cuba
seja o profundo sentido revolucionário, nutrido pela fusão
entre o conhecimento rigoroso e a força da convicção".
Urn esforço constante de buscar unir o saber sociológico
com a "paixão política do socialista". De certa forma a
CUBAN
O
ÇÃ
Visual América
experiência revolucionária cubana é assim: uma
riquíssima experiência sociológica que nunca poderá ser
compreendida se não apaixonadamente. Como diz
Silvio Rodríguez , compositor cubano de renomado
REVOLU
â
DA
SOCIALSMO GUERRILHA AO
sucesso, seguiremos românticos até o fim além de
í
absolutamente “imposmodernizáveis". Elaborado
diretamente a partir dos roteiros das aulas ministradas na
PUC - SP em 1979, este livro é uma bem-vinda
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•I
V SOCIALISMO
Forestan Fernandes
oportunidade de tornar acessível aos militantes e AO
A REVOLUÇÃ O
ER ILHA
estudiosos uma das rnais precisas análises da
Revolução Cubana,
K /IPI irn I LIIO? looí
CUBANA
972.91064
- - - -
ISBN 978 85 87394 95 9 Senado Federal
F363
DGU
e pre3 sáo
*
POPULAR
Jl 88587 l 394958 SEN00349303
Assim lutam os povos é uma coleção
que tem por objetivo levar aos militantes

de nosso tempo as experiências e as

reflexõ es te óricas daqueles que

construíram a luta da humanidade por


sua emancipação.

O car áter mundial do modo de produção


capitalista nos leva à urgência de pensar
a emancipaçã o humana como um

processo necessariamente internacional, DA GUERRILHA AO SOCIALISMO :


de maneira que a luta de cada povo seja A REVOLU ÇÃ O CUBANA
encarada como nossa pró pria luta, nosso

sangue e nossa carne. Sentir como se


fosse em nossa face o tapa dado na face

de qualquer ser humano , como dizia Che,

aprendendo com nossas derrotas e

partilhando nossas vitórias.

As revoluções nã o acontecem, são feitas.


As mudanças sociais que marcam a
história da sociedade de classes são
produzidas por uma complexa
combinação daquelas que Lenin chamou
de condições objetivas e subjetivas. Nã o
basta que as contradições objetivas, que
têm por base o choque produzido pelo

avanço das forç as produtivas e a forma

das antigas relações sociais dominantes ,

aflorem em uma situação revolucionária.


FLORESTAN FERNANDES

DA GUERRILH A AO SOCIALIS MO :
A REVOLU ÇÃ O CUBANA

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MANDAMENTOS '
Rua Goitacases, 82 - Centro - BH - MG
(31) 3213 - 2777 - Fax (31) 3213 4349 -
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Temos um aOvog&Oc junto so Pm, Jesus Cristo, o Justo. " I JO 2:1

Ia edição
EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo - 2007


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Copyright © 2007, by Expressão Popular Por Cuba e


pelo socialismo
Revisão: Geraldo Martins de Azevedo Filho
Escá ner: José Carlos Barbosa de Madureira
Projeto gráfico e diagramação: Z7LP Design
Capa: Marcos Cartum
Impressão: Cromosete
Foto da capa: Acervo Iconographia

Dados Internacionais de Cataloga çá o-na-Publicaçã o (CIP)


Fernandes, Florestan, 1920 -
F363d Da guerrilha ao socialismo : a Revolução Cubana /

Florestan Fernandes ~1.ed. São Paulo : Expressão
Popular, 2007.
352 p. : il.

Indexado em GeoDados - http:/ /www. geodados. uem.br


ISBN 978-85-87394-95-9

1. Cuba - Historia. 2. Cuba - Condições sociais. 3. Cuba -


Revolução. 4. Cuba - Condições económicas. 5. Cuba -
Guerrilha. I . Titulo.

CDD 972.91
CPU 338:972.91
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Ia edição: janeiro de 2007

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SUM Á RIO

PREFÁ CIO
UMA INTERPRETAçãO EXEMPLAR - ANTONIO CANDIDO 9
NOTA EXPLICATIVA 17
INTRODUÇÃO AO ESTUDO DE CUBA SOCIALISTA 21

O PASSADO COLONIAL E NEOCOLONIAL 39


1- CUBA SOB O ANTIGO REGIME COLONIAL 42
2 - ACELERAçãO DO DESENVOLVIMENTO COLONIAL SOB FRUSTRAçãO
DA EMANCIPAÇÃO NACIONAL 50
3-0 NEOCOLONIALISM © DA DOMINAÇÃO IMPERIALISTA 65
A GUERRILHA E A CONQUISTA DO PODER 87
1- POR QUE CUBA ? 91
2 - POR QUE A GUERRILHA ? 111

3 - Os GUERRILHEIROS E O PODER 132


ECONOMIA E SOCIEDADE SOB O SOCIALISMO 147
1 - CONDIçõES E EFEITOS DO PLANEJAMENTO 150
2 - As TRANSFORMAçõ ES DA ECONOMIA 172
3 - NOVA SOCIEDADE E NOVO HOMEM 210

ESTADO REVOLUCIONÁRIO E PODER POPULAR 263


1 - REVOLUçãO SOCIALISTA E PODER POPULAR 266
2 - A REDE DE PODER 280
3 - SOCIALISMO OU COMUNISMO ? 310

ANEXO 1 - REVOLUçãO CUBANA: SIGNIFICADO E CAMINHOS 325


ANEXO 2 25 - ANOS DE CASTRISMO - A VITóRIA DA REVOLU çãO CUBANA 335
PREF Á CIO

Antonio Candido

UMA INTERPRETAÇÃO EXEMPLAR’


Chama logo a atenção no livro de Florestan Fernandes sobre
Cuba a extrema densidade, aliás habitual nas suas obras, porque
ele trabalha com um máximo de informação e de reflexão, aliadas
ao fervor máximo. Daí urna escrita densa que requer leitura tensa
e no caso muito compensadora, porque o leitor sai dela com um
conhecimento privilegiado da Revolução Cubana.
Talvez o traço principal da obra madura de Florestan seja o
profundo sentido revolucionário, nutrido pela fusão entre o conhe¬
cimento rigoroso e a força da convicção. O esforço quase obsessivo
de harmonizar o saber do sociólogo com a paixão política do socia¬
lista faz dos seus escritos urna vigorosa militância e leva a pensar
naquele tipo de homem descrito por Vauvenargues, que, movido
pela força do sentimento e marcado pelo “ acordo secreto das incli¬
nações com as luzes” , põe “ em movimento todas as suas capacida¬
des e toda a sua atividade em benefício de um objetivo ú nico.”

Resenha, publicada em 1981 no “ Folhetim ” da Folha de S . Paulo, de


FERNANDES, Florestan. Da guerrilha ao socialismo: a Revolução Cubana . São
Paulo, T. A. Queiroz, 1979. Reproduzido de Florestan Fernandes , Antonio
-
Candido, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 1996, pp. 17 25.
10 11
DA
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

Para expor a sua maneira de ver essa extraordin á ria mani ¬ por seus vínculos com os estamentos dominantes, e mais poderosa em
festação do fenômeno revolucionário que é o caso cubano, termos da sua capacidade de dominação global” .
Florestan remonta ao “ passado colonial e neocolonial ” ( t í tu ¬ As conseqiiências disso na configuração da luta conduzida
lo da segunda parte do livro), indicando como ocorreu em por Fidel Castro a partir de 1953 são objeto da terceira parte, “ A
Cuba algo diverso do que caracterizou a independência na guerrilha e a conquista do poder” , em que Florestan começa por
maioria dos países latino-americanos: uma substituição de constatar que a frustração da emancipação nacional no século
metr ó pole. 19 adiou a revolução mas não aboliu a sua força potencial. Ela
Na segunda metade do século 19, os Estados Unidos tinham eclodiu nos anos de 1950 com a possibilidade de criar um Esta ¬
alargado sobre ela a rede dos seus interesses económicos, e para do nacional liberal, burguês, ou de criar um Estado revolucio¬
preservá-los acabaram por frear a transformação do estatuto co¬ nário. Mas trazia consigo o pressuposto raro da união de classes,
lonial em estatuto nacional. Cuba deslizou da “ dominação colo ¬ porque em Cuba (por causa da referida frustração) a idéia de
nial direta” (Espanha) para a “ dominação colonial indireta” nação tinha uma força integradora e uma capacidade dinâmica,
(Estados Unidos). A “ Guerra dos Dez Anos” (1868-1878) e a da visando como visava a superar a situação neocolonial. Por isso:
Independ ência (1895 -1898), esta apoiada pela interven ção “ Pela primeira vez, na história da América Latina, uma revolução nacio¬

estadunidense, foram canalizadas para uma “ revolução dentro nal deixaria de dissociar o elemento nacional do elemento democrático e,
da ordem” que, assegurando a permanência das oligarquias, es ¬ ao vencer, a idéia de nação arrasta com ela a construção de uma ordem
tabeleceu entre elas e os Estados Unidos um pacto que permitiu social inteiramente nova e socialista” .
a estes levar a cabo o que haviam começado desde meados do Uma conclusão como essa nos põe no centro da atitude
século: “ modernizar a colonização” , isto é, ajustá-la para levá-la interpretativa de Florestan, que procura ver a Revolução Cuba ¬

“ até o fundo” . Com isso, Cuba não alcançou sequer o estádio de na, não com referência a modelos teóricos elaborados fora do
“ nação em potencial” , como outros países latino-americanos, mas contexto latino-americano, ou regidos por uma visão demasia ¬

apenas o de “ subnação em potencial” . A independência formal do gen érica, mas relacionando-a “ à especificidade da situação
e tardia assegurou, não a sua libertação, mas um “ destino colo ¬ concreta” . O estudo anterior sobre o passado colonial e
nial” , que Florestan estuda como neocolonialismo, analisando neocolonial lhe permite desentranhar com êxito os traços dessa
as causas e condições desse processo, que impediu a “ criação de situação e mostrar cada vez mais, a partir dessa altura do livro, o
uma sociedade nacional” . tipo de socialismo que resultou do movimento revolucionário.
Ora, isso gerou por outro lado um estado de coisas que favo¬ Inclusive apontando as alternativas descartadas, que a teriam
receu os fermentos de luta nacional: podido levar a soluções nacional-burguesas.
“ O problema da independência passava a ser, de novo, uma realidade ex¬ A essa luz, o estudo da guerrilha ganha todo o seu relevo e sig¬
plosiva e algo a ser conquistado a partir de e contra a ordem neocolonial nificado, porque ela determinou os rumos e o próprio teor do que
em elaboração. Portanto, a frustração das duas revoluções não elimina as viria a ser o primeiro Estado socialista da América. “ [...] a guerrilha
lutas pela libertação nacional. Ela apenas repõe a necessidade de travar e o guerrilheiro desapareceram, mas o espírito da guerrilha dura
-
essas lutas em um contexto histórico social diverso e contra uma metró¬ até hoje, identificando-se ao próprio espírito da revolução cubana” .
.
pole menos visível em sua orientação colonialista, mais forte internamente No entanto, ela só triunfou e adquiriu esse significado devido aos
12 1;
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM O S P O V O S
I DA GUERRILHA A O SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO C U B A N A

i
pressupostos revolucionários que a animaram, encaminhando-a para de conquista do poder a pró pria revolu ção social foi antecipa ¬
uma teoria e uma prática socialistas. Conforme Florestan, dentro da” ; de modo que não havia como freá-la para favorecer um
de uma perspectiva leninista graças à qual a guerrilha não teve o retrocesso liberal, que seria a própria capitulação em face do
destino de outras, isto é, o fracasso final. imperialismo.
As funções da guerrilha foram m últiplas, mas ela não deve s
O estudo do passado e da guerrilha permite a Florestan che ¬
ser considerada apenas, diz Florestan, como fator de gar com segurança à parte mais importante do seu texto, o capí¬
“ ressocializaçã o da personalidade do guerrilheiro pela guerrilha e pela tulo sobre “ Economia e sociedade sob o socialismo” , ou seja,
convivência com o campesino e suas condições concretas de existê ncia. sobre o que a revolução realizou na constru ção de uma socieda¬
Sem d ú vida, esse aspecto é fundamental, mas h á outro igualmente impor ¬ de realmente socialista, que cont é m dinamicamente no bojo o
tante (e de uma import â ncia polí tica estratégica): o que o proto -Estado processo de formação da sociedade comunista. Essa constru ção
guerrilheiro representou como amarramento com o poder popular e o era a alternativa justa em face da sociedade neocolonial
aprofundamento antecipado da revolução. Se o primeiro aspecto explica espoliadora, porque a ú nica capaz de superá-la a fundo. E aqui
o amadurecimento hist ó rico do homem que vivia dentro do guerrilheiro, Florestan contesta vivamente os que acham necessá ria, como
o segundo nos põe diretamente diante do nascimento do guerrilheiro como condição sine qua, a fase intermédia do desenvolvimento capita ¬
homem polí tico. Foi gra ças a esta circunstâ ncia que a guerrilha operou lista. Nos pa íses subdesenvolvidos, o socialismo é a alternativa
como um equivalente social e pol ítico do partido revolucion ário. O enla ¬ “ direta” :
ce antecipado com o poder popular e a concretização antecipada do que “ Onde a revolução burguesa revela- se impraticá vel, porque a própria bur¬
deveria ser Cuba depois da derrocada da ordem existente constitu íam um guesia é incapaz de conduzi-la, ou onde a revolução de liberação nacional
salto histórico revolucion á rio sem retorno” . leva diretamente ao socialismo, a revolu ção socialista não ‘herda os pro¬
Esse trecho enfeixa quase todos os temas principais desen ¬ blemas que o capitalismo n ão resolveu’: ela se afirma como a ú nica alter ¬
volvidos nesta parte do livro e dispensa coment á rio maior. Ele nativa possível do desenvolvimento capitalista” .
deixa claro o específico revolucion á rio cubano que Florestan E aí surge o grande problema: “ como passar de uma acumu ¬
procura determinar, e prepara o leitor para entender tanto o lação capitalista neocolonial e ultrapredat ória a uma acumula ¬

que diz sobre o papel decisivo de Fidel Castro, guerrilheiro ção socialista originária” . O capítulo estuda de que maneira Cuba
desdobrado em estadista, quanto sobre a sua decisão, ditada o conseguiu - descongelando o seu destino histórico, realizando
pela lógica revolucion á ria, de superar a fase de coalizão com a “ uma reforma agrária que se inscreve na história das grandes
burguesia nacionalista. Com efeito, chega um momento em que realizações que ocorreram na América Latina no século 20” , aca ¬

o processo revolucionário suscita em muitos o desejo de brecá- bando com a miséria e vencendo o cerco capitalista feroz a que
lo, antes de consolidada a revolu çã o na coerê ncia irreversível foi submetida.
dos seus termos finais. Aí surge o perigo da contra- revolução - Não tenho espaço para analisar este capítulo fundamental,
e impedir que esta ocorra é o dever do revolucioná rio, como cheio de vistas penetrantes, inclusive a que mostra como, em
Fidel, que levou ao seu termo, isto é, o Estado socialista, o com ¬ Cuba, o planejamento (objeto de uma análise cuidadosa) “ levou
promisso encarnado na guerrilha, encarada em toda a sua ri ¬ a revolu ção às estruturas económicas da sociedade” ; e como ocor¬
queza no trecho de Florestan citado acima. “ [...] no processo reu uma integração harm ónica do planejamento social, do de-
14
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

senvolvimento econômico -social e do controle estatal, sobre a atuação de pequenos grupos altamente conscientes e ativos, ha ¬
base de uma revolução que mobilizou a fundo o setor geralmen ¬ bituados ao mando, para a atuação da maioria (eventualmente
te marginalizado do campesinato, de maneira a incorporá-lo ao todos), que precisa ser esclarecida, treinada, iniciada na vida
processo revolucioná rio no que teve de mais vivo, isto é, a for ¬ pol ítica a fim de reger o seu destino. Neste sentido, Florestan
mação, em Cuba, de uma verdadeira economia socialista, bas ¬ estuda a correlação (inclusive na dimensão do tempo) entre go ¬
tante generalizada para, inclusive, controlar a “ crescente e verno revolucioná rio, partido revolucionário e Estado revolucio ¬
cont í nua estatização” . ná rio, a caminho do socialismo, mostrando como por meio dela
Tudo isso se liga à transformação do homem, que Florestan foi possível superar erros e buscar soluções estáveis, mas capa ¬
analisa no mesmo capítulo, sublinhando a importância decisiva zes de preservar o ímpeto da transformação social.
de uma nova filosofia do trabalho coletivo, “ alfa e ômega da re¬ Nessa an álise, não escamoteia os aspectos negativos, como a
volu ção” , pois “ só ele poderia alimentar as fluxos da acumula ¬ tend ê ncia ao centralismo estatal, o perigo de hipertrofia e
ção socialista a partir da agricultura” , além de promover a esclerose burocrática, as falhas devidas a erros etc. Ao mesmo
“ irradiação das idéias-chave da vanguarda para a massa” . Como tempo, ressalta a força das condições positivas, sobretudo a in ¬
coroamento, o admirável esforço educacional, prioritá rio para crível disposição do povo de construir uma ordem que desde
uma liderança de cunho largamente pedagógico. A descrição e a logo percebeu ser a mais justa e adequada. E ainda a natureza
análise do sistema educacional - que erradicou o analfabetismo, especial da rela ção entre a liderança e as massas, encarnada nal ¬
refez, ampliou e refinou os quadros intelectuais e técnicos emi ¬ guns homens de envergadura excepcional, dotados da capacida ¬
grados, estendeu extraordinariamente o ensino secundário e o de ao mesmo tempo de ensinar e captar, funcionando como guias
superior - completam esta parte do livro, deixando claro como o e simultaneamente mandatá rios, como é o caso de Fidel Castro.
pressuposto fundamental da Revolu ção Cubana (e ao mesmo Para resumir os problemas centrais da análise nesta ú ltima
tempo o baixo -contínuo deste livro) é a mobilização intensa da parte do livro, poder íamos dizer que ela aborda a necessidade de
sociedade, que corrige a cada instante as tendências autocrá ti ¬ conciliar a estruturação política a partir da vontade da massa
cas da burocracia e permite forjar a democracia socialista em ( que escolhe os dirigentes de base e institui os respectivos orga ¬
toda a sua força de participação coletiva. nismos) com a necessidade de manter o espírito revolucionário
Como acontece nas obras bem articuladas, esta acaba por uma representado pelo grupo restrito dos líderes históricos. Estes
parte que recebe toda a seiva das anteriores e, embora tratando precisam conservar a preemin ência a fim de completar e desen ¬
de um problema específico (a organização do poder), faz dele o volver a sua tarefa, e por isso chamaram a si atribuições da cole¬
coroamento da análise e a síntese das posições do autor. tividade; mas tentaram superar o impasse transferindo a esta
“ O Estado revolucionário e o poder popular ” é mais sensível muito da capacidade decisó ria, de modo a frear a concentração
que as outras partes do livro às dificuldades, aos tateios, erros e do poder por meio da iniciativa popular. O governo revolucio ¬
lacunas da Revolução, a partir do momento em que ela precisou ná rio “ tinha de ser substitu ído por um organismo pol ítico que
ser canalizada para organizar e fazer funcionar a sociedade nova, não fosse só funcionalmente igualit á rio e democrá tico, mas que
impondo a soluçã o de um terrível problema: a passagem da ini¬ se estruturasse, funcionasse e crescesse de modo igualitário e
ciativa dos grupos revolucioná rios para as massas. Passagem da democrático” .
I c O L E ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

Daí a constituição do “ poder local” , alicerce da organização NOTA EXPLICATIVA


política revolucionária sobre o qual assentam a esfera provincial
e a nacional, gerando um mecanismo de escolha das lideranças a
partir da base, que guarda o poder de fiscalização permanente,
com substituição a cada instante (se necessá rio) dos mandatá rios
que não correspondem. Isso cria condições para desenvolver a
“ cidadania igualitária” , que leva ao máximo a consciência e o
rendimento político do “ povo trabalhador ” .
Sensível à grandeza da Revolução Cubana, aos problemas de
construção do socialismo e também aos seus obstáculos e erros,
Florestan Fernandes elaborou uma visão cálida e realista, que
faz deste livro uma leitura fascinante e um modelo de aná lise
sociológica e política orientada pelas concepções socialistas.
Este livro é constituído pelos roteiros de aulas de um curso
de pós -graduação que desenvolvi na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo ( Io semestre de 1979). O curso foi repeti¬
do no segundo semestre (para os alunos do período noturno) e,
na forma de curso livre, patrocinado pelo CEUPES, foi nova ¬
mente dado na USP (no prédio do Departamento de Ciências
Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas).
A sugestão de editar as anotações partiu diretamente dos es ¬
tudantes, que trabalharam com elas por meio de cópias xerox ou
de reprodução mimeografada. Não tinha intenção de publicar
as anotações, pois penso que Cuba e a revolução cubana estão
muito acima de um trabalho modesto e relativamente improvi ¬
sado. Depois de ouvir diversos tipos de razões e de convencer ¬
me, mas ainda muito relutante, pedi a Antonio Candido de Mello
e Souza, Heloisa Rodrigues Fernandes e Atsuko Haga que fizes ¬
sem uma leitura das anotações e considerassem se seria realmente
oportuno dar a lume um trabalho que fora projetado para um
fim restrito (introduzir os estudantes ao estudo da revolução
-
cubana). As opiniões foram favoráveis à publicação e acatei as.
Não modifiquei os roteiros: deixei-os na forma original, como
uma homenagem aos meus estudantes e também como uma evi-
18
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
I 19
|

dência de que as salas de aula ainda constituem uma fronteira decimento, do fundo do coração. Ajudaram-me a vencer muitas
na luta pela liberdade e pela autonomia da cultura. Agradeço limitações e a melhorar a qualidade do trabalho que logrei levar
àqueles amigos e colegas a preciosa colaboraçã o que me presta ¬ para as salas de aula.
ram, sem a qual não venceria o temor que me inibia de modo
justo e compreensível. A publicação ficou com Thomaz Aquino Florestan Fernandes
de Queiroz, que foi o primeiro a tomar a iniciativa de pedi-la São Paulo, 9 de outubro de 1979
para sua editora. Antes, porém, ouvi Gabriel Cohn e Tam ás
Szmrecsà nyi, para saber se endossavam a incorporação do livro
à sua Biblioteca Básica de Ciências Sociais. Não só anu í ram como
indicaram que o livro abriria a série sobre a Am é rica Latina,
dirigida por eles em colaboração com Alfredo Bosi (que tam ¬
b ém concordou com a escolha). A todos agradeço a oportunida ¬

de desta edição que, espero, poderá ser o ponto de partida de


uma preocupa ção mais séria por Cuba e pela revolu ção cubana
nos centros universitá rios.
Recebi uma colaboração espontâ nea tocante de muita gente,
que me trouxe material sobre a revolução cubana nas mais varia ¬
das formas. Na impossibilidade de agradecer a todos, queria, ao
menos, mencionar os que deram uma contribui ção mais
prestimosa e impressionante. A Octavio Ianni devo o emprésti ¬

mo prolongado de numerosos livros e ensaios. Antonio Candido


conseguiu, em Cuba, graças a Roberto Ferná ndez Retamar, vá ¬

rias obras que lhe pedi. Gérard Pierre - Charles não só doou exem ¬
plares de sua obra para uso dos estudantes como enviou - me
diversos livros importantes, que não teria condições de obter no
Brasil. Warren Dean fez a mesma coisa (e continua remetendo-
me livros que, ainda agora, não chegam às nossas livrarias). Pela
mesma raz ã o, devo agradecimentos a Jos é Nun , Lenina
Pomeranz e Armando Castro. Através desses amigos, recebi li ¬

vros oferecidos por Julio le Riverend Brusone e Oscar Pino San ¬


tos, que foram de suma importância para mim. Essa solidariedade
mostra que n ã o estamos sozinhos e que o trabalho intelectual
tamb é m pode assumir as feições de uma guerrilha... Aos que
foram lembrados nominalmente e a todos os demais o meu agra-
INTRODU ÇÃ O AO ESTUDO DE CUBA
SOCIALISTA *

Desde que voltei a lecionar, primeiro no Sedes Sapientae, em


1976, e na PUC, em 1977 (último trimestre) fiquei atento à possi ¬
bilidade de ocupar-me de um curso ou de uma seqiiência de expo¬
sições sobre Cuba. No entanto, só quando foram projetados os
cursos do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais
na PUC, para 1979, foi possível atingir esse objetivo. Compreen ¬
dia que o assunto transcendia às minhas qualificações, mas pen ¬
sava que era necessário arcar com o ônus da improvisação, pelo
menos até que se consiga abrir um espaço adequado para o estudo
do socialismo no mundo moderno, em geral, e de Cuba socialista,
em particular, dentro das atividades de ensino e de pesquisa na
universidade brasileira.
A incorporação de ambos os assuntos ao nosso currículo uni¬
versitário deveria ter sido feita há tempo. Com referência a Cuba,
mesmo que não se tivesse avançado nessa direção no início da
década de 1960, por volta de 1965 ou logo depois, não se justifica ¬
va a omissão. Não se pode nem se deve atribuir ao regime implan ¬
tado em 1964 essa situação. Ela decorre, claramente, do teor
provinciano de nosso “ espírito universitário” . Como ignorar o

* Versão extremamente condensada do roteiro de exposição.


22 23
¡ COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

significado de um novo padrão de desenvolvimento económico, revolu ção cubana por si mesma, mas pelo que ela significava para
social e político nas Américas ? Por que a obsessão pelo desenvol¬ os demais povos da América Latina. “ Por que essa atitude [de
vimento e pelo estudo do capitalismo dependente? Seria possível transformar o ‘desenvolvimento’ em um abre-te Sésamo alienador]
entender a América Latina contemporâ nea sem tentar-se expli ¬ tende a converter-se em verdadeira aberração no cenário hist óri ¬
car o que representa a revolução cubana e o socialismo em Cuba co interamericano? A resposta a tal pergunta deve ser procurada
nas relações (e nas lutas) das nações periféricas contra as nações nas conseqiiências dos conflitos que abalam o equilíbrio do siste ¬
centrais? Diante de revolu ções burguesas em atraso, a revolu ção ma transnacional de poder nas Américas. A revolu ção cubana for ¬
em avanço procede do socialismo, o que quer dizer que temos de çou uma redefinição das polarizações de lealdades, com referência
estudar Cuba se pretendemos desvendar o futuro e conhecer a aos padrões de integração social que correspondem às alternati ¬
história de ritmos fortes, que se abre para a frente e assinala uma vas de desenvolvimento do nosso sistema civilizatório. De um
“ nova época de civilização” no solo histórico da América Latina. lado, ela provocou reações defensivas que orientaram as influên ¬
1) Portanto, não é preciso fundamentar esse tema. Ele se impõe cias estadunidenses em nova direção: de intervir ativamente jun ¬
pela natureza mesma da situação e as ciências sociais não podem to aos governos e à opiniã o pública latino-americana para fortalecer
ignorá-lo, nessa exata dimensão. Entretanto, devo justificar-me. Não a adesã o às soluções neoliberais de desenvolvimento econó mico,
sou um especialista em Cuba e uma revolu ção tão complexa quanto polí tico e social. Esse episódio possui, em si mesmo, indisfarçável
a revolução cubana exige mais que uma improvisação necessária e importâ ncia histórica. Ele representa o fim de uma era de acomo ¬

feita com ânimo construtivo. Ao longo de minha carreira, vi mui ¬ da ção, deveras chocante mas inevitável, entre a polí tica oficial
tos brazilianists’ e latinamericanists procederem a improvisa ções dos Estados Unidos e o tipo de conservantismo cultural praticado
injustificá veis (embora tenha visto tamb ém o contr á rio, os pelas camadas dominantes nos vá rios pa íses de tradição ibérica
“ scholars” exemplares). Não queria dar esse passo e muito menos da América Latina. E bem poderá significar o início de uma nova
sugerir que o que é um defeito nos outros seria uma virtude em era, em que o eixo de acomodação de interesses ser á a expansão
mim... Declaro-me de início um simples aprendiz, como o profes¬ industrial, provavelmente sob a égide da especialização económi ¬
sor deve ser por ofício, e saliento que este curso possui um caráter ca regional. Parece evidente que da í resultará o fortalecimento
elementar e introdutório. Nunca avançarei além de fronteiras que gradativo dos círculos sociais inovadores em ascensão, desde que
poderão ser exploradas com base nos conhecimentos e na expe ¬ proporcionem suas aspira ções de desenvolvimento às possibili ¬
riência que possuo e, ainda que isso aborreça vocês, terei de repetir dades de um radicalismo moderado. De outro lado, a revolução
com freqiiência os limites que decorrem de uma sondagem cubana introduziu a experiência socialista nas Am éricas, ou seja,
exploratória. converteu em realidade histórica as opções inconformistas diante
Preocupei-me pela revolu ção cubana de formas diferentes da mudança social de cunho específicamente revolucionário. Desse
anteriormente. Quando se deu a revolução, ela causou grande ângulo, o episódio teve duas conseqiiê ncias imediatas relevantes:
impacto político nos países latino-americanos. Como outros inte ¬ 1. deu alento às correntes sociais que não se empenhavam, ape ¬
lectuais brasileiros, compartilhei das esperan ças que ela configu ¬ nas, em combater “ os problemas humanos do subdesenvolvimen ¬

rava. A seguinte transcrição, extra í da de um escrito redigido em to” , mas em corrigir, simultaneamente, os dilemas materiais e
1961 e início de 1962, demonstra que não me preocupava com a morais da ordem social capitalista; 2. compeliu os ‘círculos de
II
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

esquerda’, de diversos matizes, a reverem e a modificarem a estra ¬ ascensão (como o do Chile e os que se vinculavam à guerrilha). A
tégia anterior, de contenção do radicalismo político e de apoio revolução cubana aparecia-me, finalmente, à luz dos contrastes
decidido a um nacionalismo económico desproporcionalmente fortes que fazem dela um marco político crucial, o único ponto de
benéfico aos interesses empresariais.” (F. Fernandes, A Sociologia referência que possuímos para embasar historicamente o pensa ¬

numa era de revolução social, 2a edição, Rio de Janeiro, Zahar Edi¬ mento socialista revolucionário na América Latina. Se em To¬
tores, 1976, pp. 219-220.) A contra-revolução, no Brasil, em ou¬ ronto a forma guerrilheira absorveu minha atenção, nesta nova
tros países da América Latina e em todo o mundo, levou-me a etapa concentrei-me na análise do essencial: as origens e a evolu ¬
voltar à revolução cubana. De 1969 a 1972, em Toronto, dispunha ção da situação revolucioná ria e sua relação com a guerrilha como
de muito tempo para leituras intensivas. Nas circunstâ ncias his ¬ solução política que pode ou não repetir-se. É pela situação revo¬
tóricas, ficava evidente o que Cuba representava no conjunto de lucionária que Cuba vem a ser “ universal” ( no sentido em que os
forças mundiais, que movimentavam a história contra a estraté¬ antropólogos empregam o termo) e “ novas Cubas” terão de sur¬
gia global da contra-revolução preventiva. Consegui ler muitos gir, porque não é possível deter a História. Esse é o resumo das
trabalhos, a maioria dos quais não possuo mais, e que eram repro ¬ três etapas que percorri. Elas não aparecem na exposição nem são
duzidos em xerox por estudantes e organizações de vanguarda importantes a ponto de merecer uma parcela do nosso tempo.
nos Estados Unidos, no Canadá ou na Europa. Então, a revolução Contudo, quero estabelecer com vocês uma relação honesta e
cubana interessava-me em sua especificidade e como parte do límpida. Se não sou um especialista, tenho outros títulos para ar ¬
quadro histórico mundial de luta de vida ou morte entre os siste¬ rojar-me a esta tarefa e poderemos avançar juntos, em colabora¬
mas de poder capitalista e socialista. Como subproduto dessa ex¬ ção. Sabendo de minhas limitações e conhecendo minhas razões,
periência, estava a atenção que eu devotava a Cuba na Universidade vocês poderão completar o trabalho que estou em condições de
de Toronto, tanto no curso que dei em 1970-1971 e 1971-1972 fazer e de ir além. Ao superar-me vocês entrarão, mais do que
sobre “ Política e governo na América Latina” , quanto no curso poderiam supor, no universo mental da revolução cubana, que
que desenvolvi em 1971 (em colaboração com outro professor) converteu a superação constante em incentivo moral e em pré-
sobre “ Política no Terceiro Mundo” ( na parte que me coube, qua ¬ requisito da psicologia revolucionária.
se um terço das exposições foi devotado à revolução cubana). Mais 2) Há algo que precisa ser demarcado desde já: o modo de
tarde, no curso de pós-graduação de que me incumbi na Univer ¬ compreensão do nosso tema. Proponho-me uma tarefa que é,
sidade de Yale em 1977, sobre “ Política e Estado na América La ¬ inextricavelmente, intelectual e política; e pretendo enfrentá-la
tina” , dediquei à revolução cubana uma unidade de trabalho como tal, com a objetividade do sociólogo e o ardor do militante
didático completa. Por fim, de 1973 em diante, minha permanên¬ socialista. Poder-se-ia estudar Cuba como uma nação e, mais es ¬
cia no Brasil, sob grande isolamento intelectual e político, permi ¬ pecíficamente, como uma nação do Caribe. Porém, é Cuba da ex¬
tia-me continuar as sondagens e as reflexões sobre Cuba e sua periência socialista vitoriosa que nos interessa: Cuba como a
revolução. Como o meu trabalho principal se voltava para o estu ¬ primeira fronteira histórica e o primeiro patamar concreto da
do sistemá tico da contra-revolução no Brasil, a revolução in flux, manifestação do socialismo na América Latina.
em escala latino-americana, configurava-se historicamente em A objetividade do sociólogo é essencial. Ela poderá nos ajudar
termos de Cuba ou de movimentos socialistas que pareciam em a entender que não se pode exigir de Cuba o que a transição para
26
DA
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

o socialismo ainda não chegou a produzir nem na União Soviéti¬ de uma nova sociedade? Poderiam ter ido mais longe e não foram
ca, nem na China, nem na Iugoslávia, nem no Vietnã, nem em por causa de uma relação frouxa, na consciência revolucionária,
outros países socialistas. Alguns revelam impaciência histórica, dos meios e dos fins? Ou foram tão longe quanto puderam no
outros intransigência teórica, movidos ou pelo dogmatismo ou âmbito de nosso solo histórico e nas potencialidades de uma pe ¬
pelo “ revolucionarismo subjetivo” . Ora, na cadeia dos elos mais quena sociedade nacional plantada às barbas de Tio Sam? E, o
frágeis, pela qual surgiu e se expandiu o “ socialismo difícil” (ou que é o mais importante, quais são as idades que um socialista
socialismo de acumulação), Cuba foi o país no qual as condições consegue detectar nos processos transcorridos desde a implanta¬
difíceis se mostraram do modo mais difícil. Não podemos ignorar ção do socialismo em Cuba ? Uma coisa é a conquista do povo.
os fatos e, se há algo admirável com relação a Cuba, é a forma pela Outra, o que se faz ou se pode fazer com ele. As várias tentativas
qual a revolução procurou subjugar e ultrapassar os fatos mais sucessivas de reformar 0 capitalismo por dentro, de introduzir os
duros e adversos. Não se deve ignorar isso, se se quiser compreen ¬ planos apesar da precariedade do ponto de partida, de vencer o
der, amar e servir à revolução cubana. subdesenvolvimento pelo socialismo, de lançar a forma política
A paixão socialista militante também é essencial. A revolução democracia da maioria - sem abrir brechas diante da contra-re¬
cubana está aí, estuante de vida. Ela não é uma revolução dos volução e acelerando a própria revolu ção -, tudo isso significa
outros - uma revolução dos cubanos. É o nosso quinhão da histó ¬
várias idades encadeadas da realização do socialismo em um país.
ria coetâ nea e contemporânea: Cuba vive, no presente, o nosso Tudo isso indica que a ótica socialista permite desdobrar, comple ¬
futuro de outra maneira. Temos de entender e participar da revo¬ tar e relativizar a análise sociológica. O socialismo revolucioná
rio
lução cubana como da história em processo que, por comunhão não é um jogo de azar, no qual se arrisca tudo para ganhar o máxi¬
ideológica e utópica e também por opção política, é a nossa pró¬ mo. E preciso ficar rente aos valores que dão sentido ao socialismo
pria história. Essa atitude nada tem a ver com uma “ compensação -
revolucionário para poder se avaliar 0 quanto eles se concretizam
conformista” . Ao contrário, ela define um solo histórico comum no vir a ser histórico. Por isso a correção socialista é tão decisiva.
e um futuro político compartilhável. E, o que é mais importante Não estamos em busca de Cuba como ela é (graças à sua revolução).
por enquanto, ela permite corrigir o esquerdismo, separando o Temos de descobrir o que a civilização moderna, sob o socialismo
real e o possível, que estão entrelaçados na construção da história revolucionário, reserva à América Latina e já pode ser constatado
concreta. Nenhuma revolução gravita no vácuo e tampouco ca¬ concretamente em Cuba, pelas transformações ocorridas e, mais
minha segundo as intenções “ mais puras” , “ mais sinceras” e “ mais ainda, pelas transformações em processo. Tudo isso é demasiado
revolucionárias” . Quem não gostaria de Cuba como encarnação ambicioso. Mas, conto com vocês, para aperfeiçoar o trabalho que
da utopia socialista? O importante, porém, não é o grau de utopia logramos fazer na sala de aula.
que se concretiza na história. É a continuidade, o aprofundamento 3) Neste debate, de “ limpeza de terreno” , seria conveniente
e a maturidade da própria revolução. A ideologia e a utopia são suscitar uma questão de maior envergadura, as relações entre
instrumentais para a revolução e o que nos cabe indagar, durante revolução e consciência de classe. Nessa esfera, impõe-se reco ¬

o curso: Cuba traiu (ou jamais traiu) o socialismo? Até onde os nhecer que mesmo os pa íses “ mais ricos” e “ avançados” da
revolucionários cubanos levaram a revolução socialista na trans ¬ América Latina acham -se nas malhas do capitalismo dependente.
formação de todo um padrão de civilização - ou seja, na formação De uma perspectiva liberal ou de uma perspectiva conservado-
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRIL AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
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ra, essa variedade de capitalismo empobrece a consciência bur ¬ tários, que logram completar o ciclo dinâmico da
revolução bur¬
guesa, tornando-a confusa, opaca e mistificadora em níveis des¬ guesa graças à incorporação ao centro imperial. Não
viveram e
conhecidos nos países centrais. A apropriação dual do excedente jamais conseguirão viver o “ momento glorioso , que
” encadeou
económico nacional - uma porção fica dentro dos países que o a revolu ção industrial à revolução nacional e democrá
tica atra¬
geram, nas mãos das burguesias dependentes; a parte do leão é vés do capitalismo. Por isso, elas também não sabem sequer
como
drenada para fora e abocanhada pelas burguesias centrais - tor¬
na a base económica da dominação burguesa muito débil e vul ¬ alguma forma tímida e arcaica) e n ão conseguem absorver -
lidar com o radicalismo burguês (se ele chega a manifestar se de
social¬
nerável. Em suma, ao mesmo tempo em que perdem as condições mente as pressões radicais das classes despossuídas: não exis ¬
materiais para desempenhar suas tarefas mais criadoras, as bur ¬
tem mais condições estruturais e dinâmicas para associar
a
guesias dependentes se vêem forçadas a intensificar, em todos mudança social progressiva às “ revoluções dentro da ordem . A

os n íveis, o seu egoísmo de classe e se apavoram diante da luta manutenção e a reprodução social dos superprivilégios exigem
de classes (ou de seus efeitos sobre a mudança social mais ou uma redução severa do espaço político reservado à “ tolerância de
menos incontrolável). Sua margem de barganha com os estratos classe” e a consciência burguesa passa a ser a primeira vítima do
divergentes das classes médias e, principalmente, com as classes enrigecimento. O último argumento é sempre o primeiro: a pres¬
trabalhadoras e a massa da popula ção pobre é tão reduzida que são radical precisa ser suprimida, mesmo quando ela possui
uma
elas possuem um baixíssimo poder de cooptação - tendo assim natureza capitalista e uma origem burguesa. Nem mesmo os
cien ¬
de compensar sua própria fraqueza por meio de formas tirâ nicas tistas sociais da ordem podem compensar essa perda de horizon ¬

e circunstancialmente até extremamente tirânicas de repressão te cultural histórico” . Marx demonstrou, em A crítica da
Economia
e de opressão. Como conseqiiência “ natural” , o seu impulso re ¬ Política e em O capital que os clássicos não haviam saltado a ¬
dis
formista é quase nulo e sua propensão a proteger-se através do tância que separa a ideologia da ciência. Hoje, os
sucessores dos
imperialismo e de suas técnicas policiais ou militares de “ con ¬ clássicos não logram saltar sequer a distância que separa uma
ideo ¬
trole da mudança social revolucionária” , muito alta. logia viva de uma ideologia “ morta” . Converteram se em
- técni ¬
Já discuti esse tema em seus vá rios aspectos (Sociedade de cos e trabalham com uma tecnologia económica, que não aumenta
classes e subdesenvolvimento, cap. 1; e principalmente Capitalismo a racionalidade da consciência social mas, diretamente,
a eficácia
dependente e classes sociais na América Latina, passim, eA revolução dos controles estabelecidos “ dentro da ordem” e nos limites da
burguesa no Brasil, capítulos 5 a 7). O que convém salientar aqui “ reprodução da ordem” . Portanto, a ideologia burguesa não che¬
é que as descrições clássicas da ideologia e da consciência bur¬ gou ao fim, ela se esgotou no contexto do confronto
entre o capi¬
guesas, elaboradas por Marx e Engels ou por Lukács nem por talismo monopolista da era atual e as grandes revoluções proletárias
isso perdem sua validade e a vigência histórica. Contudo, exis ¬ do século 20. Em seu célebre estudo sobre o imperialismo,
Lenin
tem peculiaridades que decorrem da situação particular dessas apanhou os principais sintomas dessa decadência da
consciência
burguesias dependentes. Elas crescem no momento em que o social burguesa. O que ele não podia era prever que estava descre¬
capitalismo monopolista atinge, ao mesmo tempo, o seu apogeu vendo apenas os sintomas iniciais e que o quadro ainda se torna¬
e a sua crise, armando-se até os dentes e lançando-se à contra- ria mais dramático, especialmente quando observado a partir
da
revolução preventiva de escala mundial. São comensais retarda ¬ periferia do mundo capitalista.
30 3i
LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
COLEÇÃO ASSIM

Em contraposição, Cuba não é somente o ú nico país da Amé¬ entanto, isso não aconteceu. Dentro de uma sociedade capitalista
rica Latina no qual a consciência social burguesa entrou em co ¬ neocolonial, não havia como levar a revolução para diante dentro
lapso irreversível. Seguindo-se as vá rias idades da revolução do capitalismo. Ela deslocou e esmagou a burguesia, nacional e
cubana, pode-se observar em condições ideais: 1. os limites da estrangeira, porque para liberar a nação e para criar um Estado
consciência burguesa (como, posta sob extrema tensão o que - democrático soberano ela tinha de converter-se em uma revolu ¬
ocorre durante o governo Urrutia - a burguesia mostra-se inca¬ ção contra a ordem, ou seja, anticapitalista.
paz de conciliar os interesses particulares de classe aos interesses Essa sumária caracterização global suscita duas espécies de
coletivos da nação, deixando a nu a irracionalidade do capitalis ¬ reflexões gerais. Uma, que diz respeito à autonomia do político.
mo como forma social de produção, de organização da sociedade Outra, que se refere ao vigor e ao caráter aberto da revolução
e de ordenação do Estado); 2. como um movimento de liberação cubana.
nacional específicamente revolucionário pode ultrapassar rapi¬ Lenin foi o primeiro a observar a autonomia do político no
damente os limites da consciência burguesa e da “ revolução den ¬ contexto de uma revolução socialista. No próprio fluxo da im ¬
tro da ordem” e identificar-se com a situação de interesses da classe plantação do regime soviético, ele percebeu que o controle do poder
revolucionária (sem ter uma “ origem social proletá ria” a revolu¬ pela maioria conferia aos revolucionários a possibilidade de levar
ção cubana converteu-se, assim, em uma das grandes revoluções a revolução até o fim e até o fundo. De fato, em contraste com a
proletárias de nossa época); 3. o que dinamiza e lança para a fren¬ revolução burguesa, a revolução proletária não cresce pelo solapa-
te, ininterruptamente, uma revolução proletária que se enlaça ao mento gradual da ordem preexistente. O despotismo de classe da
socialismo e como se processa o florescimento de formas pura¬ burguesia possui três bases distintas (a empresa, as instituições-
mente socialistas de consciência social (não é a “ herança positiva chave da cultura e o Estado nacional). Por conseguinte, a revolu ¬
do capitalismo” que dá vida ao crescimento gradual e complicado ção contra a ordem só se liberta e torna-se viável depois da
de formas socialistas de organização da economia, da sociedade e conquista do poder pelas classes trabalhadoras (ou por uma van ¬
do Estado - é a sua inexistência, a necessidade amarga de partir guarda, que se identifique com as classes trabalhadoras, atue em
de um ponto zero, de uma “ pré-transição” , que infunde à irrupção nome delas e com o seu apoio). Isso explica a autonomia do polí¬
do socialismo uma força construtiva tão grande). Já se disse que o tico em termos muito elásticos e muito amplos - não certamente
contexto histórico desse complexo processo não se vincula às “ pos ¬ para “ fazer qualquer coisa” mas para ajustar a revolução a ritmos
sibilidades clássicas” de maturação das relações e conflitos de clas¬ históricos que não são previsíveis de antem ão (ou seja, que não
ses sob o capitalismo e da conquista do poder pelo proletariado. são antecipados pela via teórica, pois a revolução libera as forças
Na verdade, com referência a Cuba, a teoria sempre andou atrás sociais acumuladas que fixarão o patamar histórico a ser atingi¬
da prática. Além disso, o dínamo das variações apontadas esteve do). Ora, em Cuba o político se desprendeu com um grau de liber¬
sempre no político: ao tornar-se possível e necessária, a revolução dade relativa que não se configura em nenhuma outra grande
obrigou os revolucionários a descobrirem sua natureza, seu nível revolução deste século ( mesmo que as comparações tomem como
de profundidade histórica e seus rumos políticos. Parecia que a ponto de referência a União Soviética, a China, ou o Vietnã), em ¬
revolução ficaria interrompida em um patamar burguês, nacio¬ bora a autonomia do político nem sempre pudesse ser aproveita¬
nal-democrático e de “ reforma capitalista do capitalismo” . No da concretamente na mesma extensão e com a mesma rapidez na
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

criação dos pré-requisitos da transição e, portanto, na aceleração descrição será interrompida no que corresponde ao plano da for ¬

do desenvolvimento socialista. Não se trata, aqui, de um “ mito da mação incipiente de estruturas de poder de forma política socia ¬

revolução” , gerado pelos revolucionários e aceito ingenuamente lista, as quais se vinculam à institucionalização do poder popular.
pelo observador da cena histórica. Com efeito, a revolução cuba¬ Mas, a intenção subjacente ao percurso percorrido fica clara. Não
na sofreu uma aceleração muito forte, em virtude da inibição da permaneci na dialética da conquista do poder e procurei acompa ¬

burguesia nativa e da pressão estadunidense, que foram habil ¬ nhar a lógica viva da revolução cubana, nos vários saltos sucessi ¬

mente aproveitadas pelos revolucionários. Mas eles não tinham vos que ela (ou melhor, os revolucionários com apoio do povo
como imprimir uma aceleração análoga ao desenvolvimento in¬ cubano) se vira forçada a ousar. Esse percurso nada tinha a ver
terno do país. Como avançaram até o ponto histórico de equilí¬ com uma sobreposição de várias tentativas reducionistas. Ao con ¬

brio intrínseco à aceleração da revolução, o seu problema político trário, cada momento pressupõe um significado principal, que
só apareceu muito mais tarde, quando a sociedade cubana levan ¬ não se perde em seguida. As forças revolucionárias se acumulam
tou de forma indireta, em 1970, a questão da aceleração do desen ¬ e, atritando-se, geram a aceleração em espiral, pela qual um pata ¬

volvimento e da sua compatibilização com formas socialistas de mar mais complexo da revolução passa a ser o ponto de partida de
responsabilidade coletiva. É indispensável manter-se à vista todo uma evolução subseqüente, ainda mais complexa; isso indefini ¬

esse quadro de fatores para entender-se, em diversos momentos, a damente (não sei dizer se esse modelo turbilhonar é peculiar à
extrema liberdade da vanguarda e, eo ipso, da “ revolução desde el fase de constituição da pré-transição e, em especial, se de agora
poder” , tanto quanto a sintonização de ambas com os anseios, ex¬ em diante o processo revolucionário tenderá a assumir o que
pectativas e esperanças da classe trabalhadora e da massa da po¬ muitos descrevem como “ modelo orgâ nico” ). Ao que parece, as
pulação pobre. Se não se fizer isso não se compreenderá como e condições externas ou histórico-sociais da revolução (ou seja, a
por que uma revolução de liberação nacional e democrá tica era, combinação do que é “ geral ” ao que é “ particular” em termos de
também, em um nível mais profundo e por isso menos visível, Cuba) se não criam nem determinam aquele modelo turbilhonar,
uma revolução proletária e socialista. Desse ângulo, o “ volunta¬ pelo menos lhe infundem alguns dos seus dinamismos básicos. É
rismo” dos revolucionários - inegável no plano ideológico e do necessário levá-los em conta, pois eles indicam que “ novas Cubas”
pensamento político - constitu ía uma resposta às exigências e às aparecerão, porém desde que certas tendências de transformação
potencialidades da situação histórica. revolucionária não sejam tolhidas por assim dizer “ a meio cami ¬

Estas exigências e potencialidades, por sua vez, cobram uma nho” . A exposição seguinte arrola sinoticamente esses dinamis ¬

análise objetiva e revolucionária, que ponha em relevo o que se mos.


poderia chamar, analógicamente, de caráter compulsivo da revo¬ Primeiro, Cuba é o ú nico país na América Latina no qual a
lução cubana. Vejo-me na contingência de debater este assunto descolonização foi apreendida como realidade total e no qual a prá¬
preliminarmente para que não se pense que toda a unidade de tica política se organizou para extinguir todos os fatores, efeitos e
trabalho didá tico inicial, voltada para os períodos colonial e resíduos do colonialismo e do neocolonialismo. Os revolucionários
neocolonial, visasse a facilitar uma apreensão reducionista da re¬ cubanos - com Fidel Castro à frente - fizeram a crítica implacável
volução cubana. Procurarei apanhá-la, neste curso, em sua totali¬ da dominação colonial e da dominação neocolonial, embora obser ¬
dade e em termos de “ unidade no diverso” . É óbvio que minha vando a máxima de José Marti de conter a explicitação da den úncia
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

e de não precipitar os embates decisivos. A crítica foi feita com estes fins. Não se lutava por palavras de ordem vazias (ou melhor,
igual profundidade com relação aos fatores daquela dominação que que iriam beneficiar o pólo hegemónico, imperialista, ou os pri ¬

se organizavam a partir de dentro e a partir de fora da sociedade vilegiados nativos). Os combates às iniqúidades, às desigualda ¬
cubana. Tome-se como paralelo História me absolverá: não se trata
^
só de cortar os “ tentáculos” dos Estados Unidos ou de “ reduzir os
des, às deforma çõ es, as quais proscreviam a democracia e
impediam o aparecimento de um Estado nacional, foram trava¬
privilégios” da burguesia compradora e latifundista. Mas, de extir ¬
dos sucessivamente, com afinco e até o fim. Onde, quando e como
par a miséria, o trabalho semilivre, a exploração impiedosa dos “ hu ¬ surgiram resistências, a partir de dentro ou de fora, elas foram
mildes” , a corrupção privada e oficial, o Estado títere etc. Quando isoladas, atacadas e esmagadas. Em resumo, o radicalismo nacio ¬
se verifica que até hoje - como sucede no Brasil - prevalece uma nal e democrá tico foi liberado para que surgisse de baixo para
enorme relutâ ncia em aceitar-se que a descolonização não se com¬ cima, unindo contra a ordem existente todos os deserdados da
pletou, pode-se avaliar objetivamente o tipo de giro que a revolu¬ terra. Por aí se vê, simultaneamente, duas coisas. A “ revolução
ção cubana imprimiu ao desmascaramento e à extin ção do dentro da ordem” foi um momento real da revolução cubana.
colonialismo. Durou pouco e se extinguiu depressa porque só os deserdados da
Segundo, em nenhum país ( nem mesmo na Argentina, no terra se mobilizaram para lutar por ela. A “ revolução contra a
Uruguai e no Chile, em dados momentos supostos asilos “ suíços” ordem” tomou-se, alternativamente, uma realidade permanente
da democracia burguesa), o radicalismo nacional- democrático foi .
e em aceleração crescente Porque não havia nada mais a salvar do
levado às últimas conseqúências. Por quê? Não certamente por capitalismo e só o socialismo respondia ao radicalismo nacional e
causa do “ grau de expansão do capitalismo” (os que pensam nes ¬
democrá tico da maioria.
ses quadros mecanicistas ignoram o peso do padrão neocolonial Terceiro, enfim, sem pretender o exagero: Cuba ficou per ¬
de desenvolvimento capitalista). Mas porque somente em Cuba manentemente aberta a todos os caminhos do socialismo. É algo
as classes privilegiadas, em seus estratos altos e médios, não pu ¬
curioso, sobre o que não se refletiu o suficiente. Quando se im ¬
deram congelar e corromper o último surto da revolução nacional põe a op ção socialista, a experiência cubana leva ao modelo so ¬
e democrá tica. Esta revolução se desprendeu de um controle ca ¬
viético de transição, mas o que resulta da prá tica concreta é uma
pitalista “ cego” - imperialista ou nacional; fugiu às falsas priori
¬
combinação contraditória de centralização crua, de romantis ¬
dades coletivas, que eram prioridades particularistas do capital mo revolucioná rio e de humanismo marxista. Mais tarde, quan ¬
externo e interno (como a “ criação de empregos, a aceleração do do esse modelo se mostra irrealizável, avança-se a um extremismo
desenvolvimento económico” , a “ modernização industrial” etc.). ultra-revolucionário terceiro mundista, que alguns designam er ¬
Durante e sob a égide da guerra fria, esse controle recorreu a mo ¬
roneamente de “ sino-guevarismo” , o qual marca os últimos anos
dalidades conhecidas de contra-revolução preventiva e gerou di ¬
da década de 1960. Tratava-se de uma autêntica aceleração da
taduras burguesas que separaram a aceleração do desenvolvimento revolu ção, que tinha de falhar, por falta de desenvolvimento so¬
da revolu ção nacional e democrá tica. Em Cuba, todo o espaço cialista prévio ou concomitante. Por fim, na d écada de 1970 ten ¬
histórico e pol ítico que o liberalismo reconheceu, em teoria, como ta-se explí citamente uma volta à ortodoxia soviética mas, agora,
necessário à existência e ao crescimento da nação, do Estado so ¬
tomando-se como modelo uma forma mais sofisticada de con ¬

berano, da democracia etc., foi criado na prática e para atingir trole econ ómico socialista. Busca-se o suporte numa base políti-
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

ca (a institucionalização do poder popular) e fica em suspenso o ção do Caribe colocar as Américas no circuito mais avançado da
saber se a base económica permite tal salto em uma economia época do socialismo.
socialista agroindustrial. A revolução é sempre lançada para a fren ¬ 0 curso foi projetado para ser desenvolvido ao longo de 18
te e o grosso da população acompanha os saltos, pois a aceleração unidades expositivas de três horas. O programa original era o se¬
da revolução encontra apoio revolucionário maciço na massa tra ¬
guinte:
balhadora. Os que “ temem” o Partido Comunista Cubano (PCC) 1 - O passado colonial e neocolonial.
destorcem essa realidade viva e ignoram que os partidos revolucio ¬ 2 - A guerrilha e a conquista do poder.
nários não modelam as sociedades revolucionárias. O inverso é 3 - A transi ção para o socialismo.
que é verdadeiro. De onde vêm os ritmos lentos e as contradições 4 - Economia e sociedade.
da revolu ção cubana? Certamente não dos modelos absorvidos e 5 - Estado revolucionário e poder popular.
tampouco da impulsão fermentativa inerente ao comportamento 6 - Presente e futuro: o significado de Cuba para a América
da vanguarda e à receptividade das massas. O “ atraso cubano” , Latina.
herança do capitalismo neocolonial, é a bota de chumbo. Ele pode Depois de iniciado o curso, verifiquei que dispunha apenas
ser vencido, mas aos poucos e com muitos sacrifícios. O socialis ¬ de 15 unidades expositivas. O programa foi reformulado. O últi¬
mo revolucionário não gera milagres: o subdesenvolvimento só mo tema foi eliminado. O quarto foi reorganizado: economia e
pode ser suplantado gradualmente - e o fato patente é que ne¬ sociedade sob o socialismo. O terceiro foi suprimido, mas as prin¬
nhum país da América Latina consegue emparelhar com Cuba cipais questões transferidas para as unidades quatro e cinco do
em conquistas marcantes. Mesmo que se leve em conta que os programa final (ver o índice). O que vem reproduzido como texto
novos avanços também suscitam reservas, de uma perspectiva dos capítulos é o roteiro das aulas. Estas chegaram a alcançar de
socialista, uma coisa fica meridianamente clara. Cuba tentou e duas horas e meia a três horas, até quatro horas, conforme o tema.
explorou vários caminhos que conduzem ao socialismo e há mui ¬ Portanto, n ão há relação entre o conteú do dos roteiros e o das
tas razões que aumentam a esperança otimista de que forjará, aulas, embora o cará ter sintético daqueles se preste bem à forma
em tempo, saídas próprias de construção do socialismo e de pas ¬ de livro. Como o estudante, o leitor terá de colaborar comigo e
sagem para o comunismo. trabalhar muito para chegar a um conhecimento aproximado mais
Esta última digressão sugere o quanto a pequena Cuba ultra ¬ completo e claro da revolução cubana.*
passou as demais nações da América Latina. Pode-se dizer que a
revolução mudou a natureza e os conteú dos do horizonte cultu ¬
ral do homem médio cubano, que ela modificou os dinamismos
da consciência social e das lutas de classes etc. No entanto, algo
sobreleva no quadro global. O que Cuba botou de si pró pria e da
substâ ncia í ntima do homem pobre e trabalhador para engen ¬ Nesta introdu ção estava contida, na forma de aula, um balanço crítico da
drar essa viragem da história. As revoluções não caminham so ¬
bibliografia e a apresentaçã o dc um elenco de ternas, sugeridos para a
zinhas. Temos de pensar nisso se não quisermos trabalhar com preparação dos trabalhos de aproveitamento. Dado o teor didático dessas
hipóteses abstratas e ignorar por que coube a essa pequena na ¬ duas partes, achei melhor suprimi-las.
0 PASSADO COLONIAL
E NEOCOLONIAL

É difícil fazer um balanço sintético sem alguma arbitrariedade.


A crise económica e política do antigo sistema colonial teve dois
pólos - um europeu, outro latino-americano. A partir da Europa, a
pressão sobre a Espanha e Portugal concentrava-se nos centros co ¬

loniais de maior desenvolvimento económico relativo, que podiam


passar mais rapidamente para o novo sistema de indirect rule e nos
quais era mais fácil deslocar a dominação espanhola ou portugue ¬

sa; a partir da América Latina, a pressão maior surgia das regiões


nas quais o desenvolvimento económico prévio conferia aos
estamentos dominantes maiores possibilidades de confrontação
vitoriosa com as metrópoles e de realização da revolução política
que conduziu ao aparecimento de Estados oligá rquicos que iriam
balizar e dirigir a “ emancipação nacional” .
As variações regionais introduziram peculiaridades nessa
conhecida evolução. Ela não era universal e, portanto, “ mecâni ¬

ca” ou “ automá tica” . A Espanha, em particular, lançou -se à de ¬

fesa do que lhe era possível salvar do velho império na América


Latina. Cuba representa um dos baluartes dessa resistência pro ¬
longada e pertinaz, que esmagou as rebeli ões internas e neutra ¬

lizou a voracidade externa. Nela, a coroa espanhola dispunha de


vá rias condições favoráveis tanto para a autodefesa militar quanto
40 41
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

para um relativo êxito político e económico. Por sua vez, seria a metrópole organizou -se para defender com unhas e dentes o
com o açú car que Cuba iria atrair a cobiça externa de modo vio ¬ que sobrara do vasto império em desagregação. Portanto, o flu ¬
lento, o que contribuiu para retardar a eficácia deste fator e para xo do crescimento económico e da modernização cultural, do
fazer com que ele se configurasse através dos Estados Unidos (e segundo quartel do século 19 em diante, não contou com estru ¬
não da Europa ). turas de poder que conferissem àqueles estratos a monopoliza ¬
Temos, assim, um longo período de dominação colonial espa ¬
ção das decisões e o escudo protetor do Estado “ soberano” ou
nhola, que chega aos fins de 1898 e não dá in ício a um Estado “ nacional ” . A espoliação inerente ao esbulho colonial continuou
soberano (ou “ nacional” ) propriamente dito. As pressões aberta¬ a imperar e a revolução nacional frustrada converteu- se numa
mente anexionistas dos Estados Unidos cristalizaram-se nos fins heran ça política, transferida para o futuro. Fidel Castro identi ¬
do século 19 e foram endossadas pelos interesses espanhóis. Es ¬ fica-se com essa herança ao retomar a tradição de Marti e sua
tes, “ com o â nimo de conservar uma boa parte do predomínio ideologia revolucioná ria. Acabar com as ditaduras que apenas
alcançado em Cuba, preferiram aliar-se ao jovem e agressivo im¬ prolongavam, como versão militar e política modernizada, a ti¬
perialismo estadunidense” (J. le Riverend, La Republka, p. 2). rania espanhola, e extinguir a satelização aos Estados Unidos,
Em resumo, quase 4 séculos de dominação colonial ininter ¬ que apenas era uma versão imperialista da dominação colonial,
rupta. Nesse período, o regime colonial filtrou e condicionou converteram -se nos dois pólos sine qua non da revolução nacio ¬
várias transformações, inclusive algumas impostas pelas condi ¬ nal.
ções de existê ncia imperantes em Cuba ou exigidas por seus ha ¬ Tudo isso quer dizer que o passado não nos preocupa, aqui,
bitantes. Contudo, o sistema colonial tinha de atender a como um processo hist órico vivido e morto, mas como o
dinamismos mais amplos, que nasciam dos interesses metropo¬ epicentro de um legado cultural e pol ítico permanente, o qual
litanos, das vicissitudes do império na Amé rica Latina ou da facilitou e exigiu, a um tempo, o enlace dos tempos burgueses
situação mundial. Todas essas transformações mereceriam ser e populares da revolu ção nacional. Trata-se de um passado que
discutidas com cuidado, se nosso propósito fosse o de investigar acumulou tensões, agravando-as sem cessar e não resolvendo
a formação e a evolução de Cuba. Para o nosso corte interpre¬ nenhuma delas. Ao materializar -se militar e politicamente es ¬
tativo, o que se impõe em primeiro plano é a peculiaridade de sas tensões converteram a revolu ção nacional em um processo
Cuba (uma peculiaridade que tem duas faces, uma histórica e irrefreá vel, arrasador e construtivo, fazendo com que em me ¬

outra estrutural; a histórica “ não se repete” fora de Cuba, mas a nos de 10 anos Cuba saltasse da mentalidade servil da burgue ¬
outra é universal entre os países da América Latina que perma ¬ sia compradora* para o ultra- radicalismo burguês e para o
neceram na situação neocolonial até meados do século 20, dota ¬ socialismo.
dos ou não de um Estado nacional). Em Cuba, as rebeliões contra A revolu ção não é, pois, uma manifestação exó tica do Caribe
o pacto colonial e a dominação espanhola eclodiram de modo e tampouco uma projeção extravagante do “ elemento fantásti¬
endémico, atingindo seu apogeu na “ guerra dos dez anos” (1868- co” em Cuba. Os demais países da América Latina que ainda se
1878). Contudo, os estratos hegemónicos da população nativa
não tiveram condições para impor ou conquistar a emancipaçã o
a não ser muito mais tarde, no fim do século 19. De outro lado, * Recapitular: por que o conceito é adequado quanto a Cuba.
42
DA GUERRILHA
43
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

acham na situação neocolonial (o Peru inclusive) comprovam sa” ). Os que quiserem fazer essa recapitulação (sob muitos as ¬
que não existe outra saída senão aquela que resgata o país das pectos necessária) poderão cotejar os seguintes livros
com a bi¬
-
tensões acumuladas e libera o para encontrar vias de autodeter ¬ bliografia recomendada pelos autores: F. Novais, Estrutura e dinâmica
minação anticapitalistas e socialistas. As dificuldades que temos do sistema colonial , Lisboa, Livros Horizonte, 1975; C. S.
de enfrentar são, por conseguinte, expositivas. Como sintetizar Assadourian e outros, Modos de producción en America Latina,
e como escolher, nessa longa evolu ção de 4 séculos, o que tem Córdoba, Cuadernos de Pasado y Presente, 2o ed., 1974 (os dois
maior relevâ ncia para a compreensão do nosso tema? Como pro ¬ ensaios de Ciro Flamarion Cardoso, pp. 83-109 e 135-159); e S.
ceder para não pulverizar esse passado ou para não reduzi-lo a S. Stein e B. H. Stein, The colonial heritage of Latin America. Essays
certas categorias intelectuais abstratas, sem significado histó ri¬ in economic dependence in perspective, Nova York, Oxford
co vivo? Dentro de minhas limitações procurei uma linha des ¬ University Press, 1970. Quanto a Cuba, Ramiro Guerra, Manual
critiva que parece permitir, pelo menos, uma rotação histórica de historia de Cuba; J. Le Riverend, Historia económica de Cuba,
produtiva: o “ n úcleo” do mundo colonial em Cuba; o desabro ¬ esp. parte II, caps. IV-XIII; O. Pino Santos, Aspectos fundamentales
char tardio e instá vel desse mundo colonial sob a dominação dela historia de Cuba, caps. I-XVII; M. Moreno Fraginals, El
espanhola, que se renova durante o século 19; a reconstrução e a ingenio, vols. I e II, passim; H. S. Klein, Slavery in the Americas
intensa modernização desse mesmo mundo colonial pela sua (esp. pp. 2-22, 57-85, 128-164 e 194-227; como irei utilizar
mui ¬

inscri ção em nova órbita imperial, mais próxima, mais podero ¬ tos dados levantados por este autor, a leitura é fundamental ).
sa e, també m, mais insaciável. Percorrendo esse caminho, sub ¬ Para cotejar com o Brasil, F. Fernandes, Circuito fechado, São
dividi a matéria em três tópicos entrelaçados (e que são discutidos Paulo, Hucitec, 1976 (cap. 1).
independentemente uns dos outros, por motivos didá ticos): 1. Três pontos específicos precisam ser recapitulados, por sua
Cuba sob o antigo regime colonial; 2. aceleração do desenvolvi¬ importância analí tica. Primeiro, a coroa de Castela aplicou a
mento colonial pela frustração da emancipação nacional; 3. o contratación em escala universal (pois essa instituição constituiu
-
neocolonialismo na domina ção imperialista. Note se, n ão pre¬ uma das bases da conquista - os vassalos foram mobilizados, em
tendo dizer que a ausência de fatores (como a revolução nacio ¬ suas riquezas, talentos e poder militar ou político, em proveito
nal, em certa época) seja um dado explicativo, mas salientar o da “ grandeza da Coroa” ; no contexto histórico, porém, não
se
que produz a continuidade do elemento colonial em um contex ¬ tratava, de modo específico, de uma manifestação da iniciativa
to histó rico que exigia a concomitâ ncia de liberação nacional e a privada, como pretendem muitos historiadores estadunid
enses )
absorção de um modelo mais complexo de desenvolvimento ca e, assim que pôde modificar o padrão de colonização,
¬
deslocou e
pitalista. Nesse sentido, Cuba tomou o que lhe foi negado com substituiu por funcionários próprios os vassalos em questão. No
suas próprias m ãos. E, ao fazer justiça, levou-a até o fim. caso de Cuba, Castela recuperou todos os direitos e regalias her ¬
dados por Diogo Colombo, conferindo ao vice-rei uma pens
ão
i - Cuba sob o antigo regime colonial compensadora ( um processo rápido, que se completa
sob o go ¬

Não nos interessa discutir o antigo regime colonial ou como vernador Diego Vel ázquez ). Segundo, as instituições da
ele foi posto em prá tica na América espanhola e em Cuba (em encomienda também foram aplicadas de forma universal.
Em
contraposição ao Brasil, por exemplo, como “ América portugue Cuba, ela realizou sua função básica de aprovisionar os
¬
colonos
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ASSIM LUTAM 05 POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
I 45
|
COLE ÇÃ O

à colo¬ etc., pp . 387-388 de Contrapunteo). Por conseguinte, o desapare


de força de trabalho escrava disfarçada e de proporcionar
¬

cimento do “ privilégio imobiliário e industrial” do hacendado


nização meios demográficos e materiais elementares.
Essa insti¬
nativas, marca uma etapa na penetração do capitalismo mercantil no
tuiçã o encontrou forte oposiçã o das popula çõ es
submetidas a uma dizimação inconcebível (resultante dos
maus - controle global da produ ção dos engenhos.
, da Para o que nos interessa desvendar, a respeito do funciona¬
tratos, do trabalho forçado em condições e ritmo desumanos
de mento do antigo regime colonial em Cuba, basta situar dois te ¬
má alimentação, da desorganização dos modos tradicionais
ncia etc.). mas-chave. Primeiro, as conseqiiências da posição estratégica
vida, de contágio e perda do interesse pela sobrevivê
de Cuba no seio do vasto império colonial espanhol. Segundo,
E, com o tempo, essas manifestações de resistência encontraram
-
advogados entre os missioná rios (saliente se Bartolomeu
de Las as linhas de desenvolvimento colonial abertas a Cuba e o que
elas representaram para as possibilidades de consolidação ou de
em
Casas, o mais famoso; ele pró prio um antigo encomendem
1558, data desagregação da dominação colonial no momento histórico em
Cuba). Aranda menciona que entre o descobrimento e
passaram de que o antigo sistema colonial entrou em crise irreversível.
da abolição das encomiendas, as populações nativas
agraria en Tão próxima de Santo Domingo, do Haiti e da Jamaica, bem
80 mil ou 100 mil para 5 mil pessoas ( La revoluci n ó
meno ¬ como do México (210 km, com referência à península do Yucatan)
Cuba, pp. 227-228). Outros autores propõem estimativas
como e da Flórida (180 km, com referência ao estreito da Flórida), Cuba
res, mas a conquista desabou sobre as populações nativas
exis adquiriu desde logo uma importâ ncia estratégica para Castela e,
uma hecatombe. O escravo africano tornou-se a alternativa ¬

, nas tentativas posteriormente, para a Espanha, seja como porto de escala e praça
tente como fonte de trabalho forçado nas minas
(veja ¬ de armas, seja como privilegiada de comunicação com as Améri¬
de implantação do açú car e na produção de mantimentos
negros cas Central e do Sul. Ao longo do crescimento, do apogeu e da
se, especialmente de F. Ortiz, “ Del inicio de la trata de
úcar y decadência do império colonial espanhol, essa importância estra¬
esclavos en America e su relación con los ingenios de az
, in tégica manteve-se inalterada ou chegou a aumentar. Isso obrigou
del vituperio que cayo sobre Bartolomé de Las Casas”
contido em a metrópole a dotar Cuba e especialmente La Habana de condi¬
“ Historia, etnografía” etc., o segundo ensaio ão ções para funcionar como entreposto militar e comercial de certo
Contrapunteo, pp. 346-372 ). O desenvolvimento da escravid
o só foi porte. Em outras palavras, uma parte da diferenciação colonial de
foi constante, mas o clímax na evolução dessa instituiçã
, pro ¬ Cuba nasce de fatores exógenos, decorrentes de sua incorporação
alcançado em Cuba durante o século 19. Terceiro Castela
curou impedir uma estrutura fundiária feudalizante e , por isso , à estrutura, transformações e funcionamento do próprio império
direitos colonial. Ao longo do tempo, desde os alvores do século 16, esse
os privilégios decorrentes do monopólio da terra e dos
es. fato teve importância para o afluxo de segmentos estáveis ou alta ¬
conferidos pela Coroa não passavam de uma ou duas geraçõ
ou a imunida mente móveis da população, a especialização militar de La Habana,
Contudo, os hacendados contaram com a franquia
¬

esse di ¬ principalmente, a expansão do comércio ou da produção de gêne¬


de de suas propriedades agrá rias (Ortiz chega a chamar
1848 é ros, os ritmos da urbanização etc. Os conflitos com as potências
reito exclusivo de magna charta dos hacendados ). Só em
empenhadas em desagregar o império colonial da Espanha, os
que se tornaria possível renunciar a tal privilégio; e é somente
gozar do ataques de piratas ou corsários, a exploração da Flórida e a crise
de 1865 em diante que os novos engenhos deixam de
, etnografia ” final do antigo sistema colonial só intensificaram essa tendência,
“ benefício” ou imunidade legal (cf. F. Ortiz,‘Historia
46
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS 47
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

que converteu Cuba em baluarte militar, marítimo e comercial da no Haiti, de 1789 a 1804, no caso do açúcar, explicam esse súbito
Espanha nas Américas. florescimento.
As condições naturais de Cuba eram propícias tanto à explo ¬ Por conseguinte, o que caracteriza a economia colonial cuba ¬
ração direta do butim (havia jazidas de ouro e várias madeiras na, até o fim do século 18, é um dinâmico comércio, movimen ¬
preciosas) quanto à produ ção de gêneros e de artigos coloniais tado por fluxos metropolitanos, uma economia agr í cola
importantes (como o tabaco, o açúcar etc.) e à introdu çã o da diversificada e na qual havia lugar tanto para o produtor branco
criação organizada ( de bois, porcos, cabras, carneiros, cavalos, e livre quanto para o produtor negro e mesti ço, escravo ou livre
aves etc.). Uma boa parte dessas possibilidades foram aproveita ¬ ( na próxima exposição serão examinados os problemas relacio ¬
das concretamente, na produção de mantimentos para as frotas nados com a organização do trabalho), uma enorme diferencia¬
e para a tropa ou a população local. Não obstante, por muito ção do trabalho e uma expansão relativa do setor urbano, que se
tempo Cuba permaneceu como uma pérola sem brilho do impé¬ refletia na diferencia ção do trabalho (inclusive no volume de
rio colonial. O ouro e a madeira deram azo a explorações impor¬ trabalho servil, investido no setor urbano). Essa diversificação
tantes, mas de curta dura ção; malgrado a importâ ncia da criação, da economia teve reflexos tanto no padrão de composiçã o da
ela não gerou um verdadeiro eixo de expansão da vida económi¬ população quanto na proporção de negros e mulatos livres sobre
ca. Contudo, à criação se ligam a ocupação do solo, o apareci¬ os negros e mulatos escravos ( muitos trabalhos, na cidade ou no
mento das haciendas comuneras, o crescimento da economia de campo, n ã o eram compatíveis com a escravidão: eles proporcio ¬
subsistência e a expansão da população. Esses efeitos, em con ¬ nariam oportunidades incontroláveis de fugas sistemá ticas), na
junto, conferem -lhe um significado especial na conformação e distribuição racial da qualifica ção artesanal para várias ocupa ¬
na evolu ção da economia agrá ria cubana (ver, a respeito, esp. ções e profissões numa linha relativamente aberta (o que preva¬
Ramiro Guerra, Azúcar y población en las Antillas, caps. V e VI). lecia era a necessidade de mão - de-obra), no aproveitamento do
O que se poderia descrever como arranque econó mico colonial negro e do mesti ço na tropa (um interesse da Coroa, que se ex¬
não se processou sob o fastígio do antigo sistema: até meados do pande gradualmente), em instituições como a coartación, o
século 17 somente o tabaco chegou a desfrutar de significado de palenque e a marronería (cujas proporções e tolerância só podem
monta ( não obstante, em 1717 se produziam 8 milhões de libras ser compreendidos à luz da situação da sociedade colonial). Não
de tabaco e, em 1788, essa cifra era de 9 milhões de libras: cf. obstante a extensão e importâ ncia do trabalho livre (por causa
Klein, op. cit., p. 149). F. Ortiz afirma que o tabaco cubano só do tabaco, da criação e do tamanho do setor urbano), a escravi ¬
“ saiu à conquista do mundo em 1782” , depois que os ingleses dão “ era todavia a base fundamental da exploração colonial da
conquistaram La Habana (cf. Contrapunteo, p. 107). O café, por Espanha, contra a qual era delituoso atentar ” ( F. Ortiz, “ Historia,
sua vez, começou a ser explorado no fim do século 18, e o açúcar, etnografia” etc., p. 368).
que iria fornecer a órbita da revolução colonial na posição de Poder-se-ia dizer que essa economia colonial diversificada
-
Cuba, desprendeu se de um crescimento lento também na tran ¬
mantinha-se no limite dos fluxos mínimos para a existência da
sição do século 18 para o século 19. Condições externas, vincu ¬ produção e do mercado colonial: seus dinamismos eram suficien¬
ladas ao deslocamento de plantadores e capitais franceses de tes para aumentar a continuidade de um crescimento colonial fraco
Santo Domingo para Cuba, no caso do café, e com a revolu ção (ou “ contido” ) e para a reprodução da ordem económica colonial
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

correspondente. Em suma, nenhum setor da sociedade era bas¬ do produto (em 1610 La Habana já exportava açúcar; cf. Ortiz,
tante forte para negar o pacto colonial a partir das estruturas colo¬ .
loe. cit.) Calcula-se que por volta de 1606 viviam em Cuba cerca
niais da produção e do mercado. O que fazia com que os estamentos de 20 mil escravos negros, estimando-se, no fim do século 17,
privilegiados e proprietários não dispusessem de uma base mate¬ que a população negra e mestiça seria de 40 mil pessoas (cf.
Klein,
rial para desafiar a dominação colonial e tentar deslocá-la em pro ¬ p. 142 e 147). O censo de 1774 registrava uma popula ção de
veito próprio. Viam-se, assim, forçados a contemporizar e a 172.620 pessoas, 96.440 brancos e 76.180 negros e mestiços, dos
comprometer-se com os interesses diretos ou indiretos da metró¬ quais 31.847 livres e 44.333 escravos (cf. Aranda, p. 231).
Por ¬
pole, malgrado o inconformismo contra o estancamento econó¬ tanto, no limiar do último quartel do século 18 existia um pa¬
mico, o esbulho colonial, os conflitos com a Coroa ou seus dr ã o de composição demogr áfica que refletia o padrão da
funcionários e o potencial de rebelião latente (que só iria “ explo ¬ composição económica da sociedade. Os brancos ainda consti
¬
dir ” dos fins da terceira década do século 19 em diante, mas sem ¬ tuíam a maioria, com aproximadamente 56% da população;
os
pre tolhido pelo fortalecimento que a domina ção colonial direta escravos representavam mais que o dobro da população negra e
ganhou ao tornar-se instrumental ou simplesmente superpor-se mestiça, mas apenas pouco mais que 1/4 da população total. Em
à transformação do padrão de desenvolvimento colonial). seguida, isso iria se alterar com certa rapidez, em função da pro ¬
Por sua vez, a esse padrão de organização da economia colo¬ dução do café, do tabaco e principalmente do açúcar (como se
nial corresponde um padrão demográfico típico. Há um cons ¬
verá na próxima exposição). Não obstante, até este limite pode¬
tante crescimento da população escrava. Contudo, a proporção mos refletir sociológicamente sobre as potencialidades de Cuba
de escravos na população trabalhadora adapta-se a essa econo¬ em função desse legado de m ínimos da economia e da socieda ¬
mia diferenciada e à sociedade correspondente. Somente entre de, construídas entre os séculos 16 e 18.
os fins do século 18 e o primeiro quartel do século 19, com a Enquanto em outras sociedades coloniais da América Lati¬
seleção final de produtos tropicais “ dinâmicos” ou o apareci¬ na os estamentos proprietários, especialmente nos estratos vol ¬
mento de novas oportunidades no mercado mundial, a pressão tados para a produção e a exportação de produtos tropicais,
sobre a força de trabalho escravo iria aumentar de forma des¬ associavam o liberalismo à crítica do pacto colonial, na situação
proporcional. Apenas como indicação sum á ria: é provável que cubana o decisivo era explorar as novas oportunidades ainda sob
Fernando Velázquez tenha trazido negros escravos consigo, em o pacto colonial. Os hacendados nã o dispunham de uma base
sua primeira expediçã o, em 1511; em 1515 a pró pria Coroa in ¬ material que lhes permitisse, a um tempo, lutar contra a Coroa e
troduziu 12 escravos negros de sua propriedade (cf. Klein, p. substituí-la; eles não podiam, pois, desempenhar (naquele mo¬
141); em 1532 já havia 500 negros escravos em Cuba, mas o mento e mesmo meio século depois) o papel hist órico de
cabildo suplicava o envio de mais escravos e em 1535 esse n ú¬ estamento revolucionário. Sua situação de interesses não se vol ¬
mero duplicara (cf. F. Ortiz, “ Historia, etnografia” etc., op. cit., tava para a emancipação nacional e a constituição de um
Estado
pp. 386 e 387); em 1595 o cabildo municipal de La Habana e o soberano, mas para a continuidade do status quo e, principal ¬

governador solicitaram medidas especiais para o fomento da mente, para a eclosão econ ómica que entrou em curso dos fins
fundação de engenhos de açúcar, atendidas pela Coroa, que rea ¬ do século 18 em diante. Os interesses espanhóis, por sua vez,
lizou investimentos de certa monta e assim acelerou a produ ção -
revelaram se relativamente flexíveis e articularam- se com ou
-
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POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS

tros interesses estrangeiros envolvidos nas transformações em estamentos e castas). O peculiar, de um â ngulo histórico socio¬
processo, facilitando essa inesperada revolução económica den ¬ lógico, é que essa evolução, em Cuba, se dá dentro e através da
tro da ordem, que permitia manter a dominaçã o colonial direta, dominação colonial direta da Espanha. O antigo regime colonial
afastando -a de uma crise precoce e, mesmo sob certos aspectos, não foi nem abolido nem derrocado: ele se adaptou às condições
impregnando-a de maior eficácia económica, militar e política. históricas em que ocorre essa revolucion ária alteração do pa ¬
O seguinte texto comprova essa interpreta ção: “ já em 1798, o drão de desenvolvimento económico e sociocultural da colónia.
influente hacendado cubano Francisco de Arango y Parreño vis ¬ A conjunção entre escravidão e latifú ndio se extinguiria antes
lumbrava o proveito que se podia tirar da revolução haitiana, no do fim do século; porém, a ligação dinâ mica do latif ú ndio com o
negócio do açúcar. Ele advogaria fervorosamente diante da Cor ¬ açúcar continua e alcança proporções ainda maiores na evolu ¬
te da Espanha a liberdade de com ércio da ilha, fazendo finca-pé ção ulterior. Tudo isso faz com que as transformações, iniciadas
em que tal liberdade, ao permitir o acesso dos produtores cuba ¬ durante esse século [19], tivessem conseqúências enormes tanto
para impedir a eclosão de uma revolução de emancipação nacio ¬
nos ao mercado estadunidense, proporcionaria à metrópole avul¬
tadas arrecadações. ‘Cuba não tem outra alternativa senão esta: nal suficientemente forte, quanto para condicionar e permitir a
perecer, ou poder vender seu açúcar ao estrangeiro sem nenhu ¬ conversão da dominação colonial direta em dominação colonial
ma interrupção. Por esse comércio tem de receber tudo o que indireta permanente (na verdade, sob um tipo de indirect rule
consome e sem ele não pode pagar o valor desse consumo.’ Essas que não seria exclusivo mas que em nenhuma parte chegou a ser
palavras plasmavam o que veio a ser o destino da ilha quanto à tão completo).
sua inserção no mercado capitalista, a partir do século 19. Sela ¬ A Espanha demonstrou certa flexibilidade na condução de
vam a ideologia das classes dominantes cubanas, assim como a seus negócios económicos e dos seus assuntos políticos, o que se
das burguesias metropolitanas” (G. Pierre- Charles, Génesis de la tornou possível graças à colaboração ativa ou passiva dos estratos
revolución cubana, pp. 21-22). mais importantes dos estamentos proprietários. Muitas alterações
entraram na categoria dos fatos consumados. Outras nasceram
2 - Aceleração do desenvolvimento colonial sob frustração da como imposições das próprias alterações socioeconómicas, que
emancipação nacional não poderiam ser detidas: o impulso capitalista vinha rente à re¬
Em termos de florescimento económico e de modernização, volução económica dentro da ordem colonial e não havia como
o século 19 poderia ser chamado o século de ouro da era colonial detê-lo. A Espanha teve de avançar para prevenir o pior, através
em Cuba. Esse florescimento resultou, naturalmente, da explo¬ de concessões ou de inovações que pressupunham mudanças po¬
ração do café, do tabaco e, principalmente, da rápida transfor ¬ lítico-legais funcionais para ajustar a dominação direta aos avan ¬
mação do açúcar em produto dominante na produ ção e na ços realizados ou em processo, pelos quais os estamentos
exportação. Ocorreu, pois, uma revolução económica dentro da privilegiados ganhavam maior autonomia relativa e Cuba podia
ordem colonial que, de um lado, estimulou o escravismo e a con ¬ aproveitar melhor os novos fluxos do capitalismo comercial, nas
centração da propriedade fundiária e, de outro, suscitou uma relações com países europeus e, principalmente, com os Estados
intensa moderniza ção tecnológica e uma profunda transforma ¬ Unidos. É claro que tanto a flexibilidade da Espanha quanto as
ção das relações de classes (seria melhor dizer: entre os vá rios iniciativas dos próprios cubanos pertencentes aos estamentos pri-
52 53
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

vilegiados tornaram-se factíveis graças à expansão anterior da termos políticos), uma traição que é, simultaneamente, um fe ¬

burocracia colonial, ao grau de desenvolvimento urbano- comer ¬ nômeno espanhol, cubano e estadunidense. No entanto, o perío ¬
cial e ao plano de segurança militar da colónia. A metropolização do central para entender por que a moderna Cuba estava
prévia de várias estruturas administrativas, económicas e sociais condenada a gravitar em torno dos Estados Unidos e poderia,
dessa sociedade colonial pagava, por fim, dividendos inespera ¬ também, realizar a “ revolu ção dentro da revolução” é este. É
dos, servindo de patamar a uma evolução que conflitava com o preciso ser claro: ele surge à análise, simultaneamente, como o
momento histórico, em escala mundial ou latino-americana. Em per íodo de apogeu da era colonial e o período de formação de
suma, os espanhóis contavam com uma sociedade colonial Cuba moderna (ou seja, de crise e extinção do antigo sistema
maleável, apta a absorver um padrão mais complexo de desenvol ¬
colonial). Estas são as duas faces da mesma moeda, pois Cuba
vimento colonial e o fluxo correspondente de moderniza ção não estava fora ou acima dos circuitos da história mundial. Para
tecnológica, mantendo-se as demais condições da ordem existen ¬
salientar as dimensões e as facetas dessa realidade histórica t ão
te ou contando -se com a vantagem de controlar suas transforma ¬ contraditória procurei isolar três aspectos da revolução dentro
ções, em ú ltimo caso pelo recurso à força e à brutalidade. Na da ordem colonial que as revelam de forma mais incisiva: 1. as
verdade, essa flexibilidade ou maleabilidade custou muito caro alterações no sistema de produção e seus reflexos sobre a com ¬
ao povo cubano. A mencionada revolução dentro da ordem colo ¬ posição da população; 2. as transformações da organização do
nial só beneficiou aos espanhóis, aos estamentos privilegiados (ou trabalho; 3. a impossibilidade de “ modernizar a colonização” e
mesmo, ultraprivilegiados) e aos interesses capitalistas externos. de “ lev á -la at é ao fundo ” mediante um sistema de poder
A possibilidade de modernizar a colonização e a possibilidade estruturado para a dominação colonial direta.
ainda mais importante para eles de levar a colonização até ao fun ¬ O último quartel do século 18 e o início do século 19 assina¬
do casaram a modernidade de Cuba com um destino colonial. lam como Cuba chega a selecionar o seu grande produto colonial.
Todavia, o sistema de poder inerente à dominação colonial direta Lograda esta descoberta, ela se converte em uma “ feitoria do açú ¬

era posto à prova e, a largo prazo, ele seria submetido a testes que car ” , como já se disse, e se organiza para explorá-lo e ser explora ¬
passavam pela violência pol ítica, espontânea e organizada. da em função dele. O eixo da rotação inicial era tríplice - o café, o
Esse período da vida colonial em Cuba apresenta, pois, ex¬ tabaco e o próprio açúcar. Não obstante, o café teve um ciclo
tremo interesse para uma an álise que pretenda associar passado meteórico e seu rápido declínio serviu para deslocar capitais, mão-
e presente. A demarcação dos limites histó ricos possui, inevita ¬ de-obra escrava e terras para a órbita do açúcar.
velmente, uma complexidade insuperável ( de onde partir, e onde Introduzido em 1768, o café só se tornaria comercialmente sig¬
terminar?). Para os fins desta discussão, contudo, podemos omitir nificativo na última década do século. Como exigia o regime de
certas exigências da explicação histórica, tomando o último quar ¬ plantação, ele atraiu fortes investimentos de capital em mão-de-
tel do século 18 e a revolução de 1895 como as balizas temporais obra escrava. De acordo com H. S. Klein, sua produção cresceu
da reflexão sociológica. É evidente que a fase posterior, na qual rapidamente, indo de 7 mil arrobas, em 1790, a 900 mil em 1815;
se organiza a dominação colonial indireta, lança suas raízes nos nesta data, absorvia o trabalho de cerca de 28 mil escravos e confe¬
meados do século 19 (em termos económicos), no fracasso da ria a Cuba uma posição forte no mercado mundial do produto (cf.
“ revolução dos dez anos” e na traição à revolução de 1895 (em Slavery in the Americas, p. 149). Sua produção, em 1827, era estima-
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

da em 33 mil toneladas métricas, das quais se exportavam 26,2 mil presentando 18% da popula ção negra e mestiça, e que, em 1860,
toneladas (S. Aranda, La revolución agraria en Cuba, p. 232). estimava-se que havia quase 150 mil escravos nas plantações de
O açúcar, por sua vez, experimentou um crescimento acelera¬ açúcar, ou seja, cerca de 24% da população negra e mestiça e 38%
do nesse período. “ Assim, sua produção durante 1780-1789 atin ¬ da população escrava ( cf. H. S. Klein, op. cit., p. 152 ). Do mesmo
giu cerca de 1 milhão de arrobas por ano, 2 milhões no período modo, é relevante lembrar que o padrão de propriedade do escra¬
1790-1799, e praticamente dobrou a cada década até que, por vol ¬
vo variava do campo para a cidade. Assim, o censo de 1855 ( cf. op.
ta de 1850, a ilha produzia quase 30 milhões de arrobas por ano.” cit., p. 160) registrava 283.625 escravos rurais para 25.947 senho ¬

(H. S. Klein, op. cit., p. 150.) Os dados coligidos por Aranda com ¬
res rurais ( ou seja, um proprietá rio para 10,9 escravos ) e 65.121
pletam a descrição dessa impressionante evolução: em 1775, 473 escravos urbanos para 20.947 senhores urbanos (ou seja, um pro ¬
engenhos produziam 1,3 milhão de arrobas de açúcar (ou 14.950 prietário para 3,1 escravos). Boa parte desses escravos ocupava- se
toneladas métricas); em 1827, cerca de mil engenhos produziam de trabalhos proporcionados por mestres artesãos brancos.
8,091 milhões de arrobas (ou 93.047 toneladas métricas ). A ilha Essas mudanças de ritmo e de volume afetavam, naturalmente,
exportara, nesta data, 5.967.066 arrobas de açúcar, 2.606.739 arrobas tanto a estrutura da produção quanto a incorporação de tecnologia
de melado e 2.664 pipas de aguardente de cana ( op. cit., p. 232). moderna e o significado comercial de Cuba. A expansão dos cafe ¬

As tendências de aumento da produ ção do café e do açúcar zais e das plantações de cana não acarretava a introdução de uma
desencadearam uma procura crescente de mão-de-obra escrava. nova forma de produ ção. Todavia, pela primeira vez o escravismo
“ O n úmero de escravos chegados à ilha se eleva de forma extraor ¬

atingia um nível de saturação m áxima e isso iria ocorrer no clímax


dinária: passou de 3.271 anuais no per íodo de 1796-1800, a 7 mil do desenvolvimento colonial e sob a égide de sua combina ção com
anuais até 1805, alcançando entre 1816-1820 a média de 17 mil uma nova organização económica do espaço e com novas técnicas
anuais, ou seja, em torno de meio milhão de escravos na primeira de produção. Na verdade, o florescimento colonial tardio coincidia
metade do século 19.” (G. Pierre-Charles, Génesis de la revolución com um novo modo de incorporação de Cuba ao mercado mundial,
cubana, p. 20.) à tecnologia agroindustrial de ponta e aos dinamismos da econo ¬
A população dá um salto paralelo e sua composição alcança o mia estadunidense. Por conseguinte, primeiro o café, e quase
padr ã o típico de uma economia colonial. O censo de 1827 ( cf. S. concomitantemente o açúcar, desencadearam uma evolução de longa
Aranda, op. cit., p. 231) continha as seguintes cifras: população duração, a qual, graças ao açúcar - como indicam as interpretações
total, 704.487 pessoas; brancos, 311.051 (44%) pessoas; negros e de Ramiro Guerra -, tornou - se demasiado complexa para ser
mestiços, 393.436 (56%), dos quais 106.454 livres (15% ) e 286.942 compatibilizada com o antigo sistema colonial e para nele ser con ¬

escravos (41%). A proporção de escravos na população negra e tida. O patamar dessa evolução, é claro, podia ser construído e di ¬
mestiça era, aproximadamente, de 77%. Pelas estimativas de namizado nos quadros das formas coloniais de produ çã o, herdadas
Humboldt fica-se sabendo que, em 1825, 221 mil escravos viviam do passado. Todavia, ao avançar ela ficaria tão complexa e dinâ mica
no campo, assim distribuí dos : 70 mil nas plantações de açúcar, 50 que teria de abrir novos rumos históricos - de in ício, pressionando
mil nos cafezais, e mais de 100 mil em pequenas plantações e ati ¬
a dinamização do escravismo e conduzindo à concentraçã o
vidades dispersas ( idem ). É interessante notar que, pelo censo de fundiária, pela qual o latifú ndio se tornou um concomitante da ex¬
1846, 116.735 escravos trabalhavam nos engenhos de a çúcar, re- pansão do açú car e do seu predom ínio desproporcional na econo-
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LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA
COLE ÇÃ O ASSIM

mia cubana. A médio prazo, porém, essa evolução se desprende da O açúcar, por sua vez, altera o significado de Cuba no merca ¬

órbita colonial e volta-se contra ela. do mundial e sua importância para os grandes centros financei ¬

Essa mutação tem muito que ver com a natureza intrínseca da ros. Já no in ício dessa evolu ção a Espanha viu-se forçada a abrir
própria evolução, que se fundava em vastos capitais e exigia fortes uma brecha no pacto colonial exclusivo, permitindo a Cuba, em
fluxos de modernização tecnológica. As circunst â ncias circuns ¬ 1818, vender seu açúcar nos Estados Unidos (cf. G. Pierre-Charles,
creveram seu aparecimento e primeiro surto à ordem colonial. Génesis de la revolución cubana, p. 22). As cifras mencionadas aci¬
Ela era, porém, extracolonial e ultracolonial ( de fato, a ordem co¬ ma, relativas à produ ção e à exportação do produto, salientam por
lonial era uma forma arcaica e constrangedora, com referência à si mesmas que a posição de Cuba no mercado mundial sofrera
estrutura íntima e aos dinamismos específicos da mutaçã o consi ¬ substancial alteração. Daí em diante ela iria atrair a voracidade
derada e, ao objetivar-se, iria mostrar sua verdadeira face). O pon¬ dos grandes centros financeiros e converter-se em uma “ presa
to central de sua ruptura com o passado e com a dominação colonial colonial ” tentadora. Isso forçava os interesses espanhóis a um
direta estava na tecnologia requerida e na organiza ção tecnológica permanente jogo contraditório, pelo qual tentavam imprimir o
do espaço que a grande plantação mercantil de açúcar impunha. máximo de flexibilidade à dominação colonial direta e, ao mesmo
Fernando Ortiz descreve a fundo os vá rios aspectos dessa revolu ¬ tempo, fortalecer suas garras, aos n íveis econ ómico, polí tico e
ção tecnológica, que começa com a introdução da m áquina a vapor militar, a partir de dentro da sociedade colonial. O que não impe¬
nos trapiches cubanos, em 1820; aprofunda-se com a construção diu ( nem poderia impedir), que o circuito da revolução dentro da
de estradas de ferro, encetada por iniciativa de fazendeiros criou ¬ ordem transbordasse, completando -se contra os interesses espa¬
los em 1837 - as quais seriam aplicadas em larga escala em segui¬ nhóis e, portanto, contra a continuidade do antigo sistema colo ¬
da, depois da “ guerra dos dez anos” , com a invenção dos trilhos nial. A Tabela 1, organizada por J. le Riverend (cf. Historia económica
de a ço e o conseqüente barateamento dos custos: as vias férreas de Cuba, p. 186, apud G. Pierre-Charles, loc. cit. ), evidencia o sen ¬
ligam entre si as várias partes do engenho ou as zonas de açú car tido e as conseqúências de tal desfecho histórico:
com os portos de armazenagem e de embarque; e se universaliza
no último quartel do século: a mecanização alcança o “ último TABELA i - Cuba: destino e proced ê ncia do comércio exterior
tr â mite fabril, ou seja, as turbinas ou purgadoras centr ífugas” . (1880-1886) (em porcentagem)
Então, “ tudo é mec â nico, nada se faz a m ão” ( ver F. Ortiz, País Exportação Importação
Contrapunteo, pp. 68-70. Todo o ensaio deve ser lido cuidadosa ¬
Estados Unidos 62 % 20 %
mente). Portanto, o desenvolvimento da grande planta ção de açú ¬ -
Grã Bretanha 22 % 20 %
car, pelas propor çõ es que ela assume e pelos dinamismos Espanha 3% 30 %
Outros 13 % 30 %
económicos envolvidos, iria entrar em conflito com as limitações
e as potencialidades intrínsecas ao antigo sistema colonial. A cri ¬
se histórica do escravismo agravou esse conflito, deixando a des¬ De fato, o ví nculo colonial de Cuba com a Espanha repousa ¬
coberto as inconsistências da dominaçã o colonial direta e a va sobre processos estáticos (de reprodução da ordem existente)
impossibilidade de conciliar o “ despertar de Cuba” com a ordem e numa relação parasitária insustent á vel entre a metr ópole e a
imperante na velha sociedade colonial. col ónia. O sistema de poder colonial, fundado na dominação
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

direta, perdera sua base econó mica. Ele se sustentava na força cit., p. 69). O processo desenrola -se gradativamente, em função
militar, no apoio direto ou indireto que os interesses espanhóis dos dinamismos do crescimento econ ómico e dos obstáculos à
recebiam de muitos hacendados e negociantes cubanos e na con ¬
expansão da rede ferroviá ria ( que só se completa nas duas ú lti¬
fian ça dos estadunidenses na eficácia desses interesses para man ¬ mas décadas do século 19 ). Segundo, essa é uma evolu ção de
ter a estabilidade da ordem vigente. A “ guerra dos dez anos” , larga duração, que deveria culminar no “ engenho supercentral ” .
por é m, indica de maneira precoce que as fraturas da base econó ¬ Ora, por volta de 1880, na província de Matanzas, a extensão
mica eram irrecuperáveis e que as soluções internas passavam territorial do engenho ainda não é enorme: cada engenho pos ¬
pela emancipação nacional. suía, em m édia, 49 caballerías* e tinha semeadas 23 caballerías de
O segundo tema poderia ser negligenciado, pois as altera ¬ canaviais. O processo avan çava t ão depressa que, em 1890, o
ções quantitativas e qualitativas do sistema de produ ção apon ¬ engenho Constancia produzia safras de 135 mil sacos de a çú car,
tam claramente para as transforma çõ es decorrentes da consideradas as maiores do mundo ( cf. F. Ortiz, op. cit., p. 69-
organização do trabalho. Não obstante, a mudança da escala de 70). Em contraste, com o tabaco as condições de cultivo e de
produ çã o e de técnicas produtivas se superp õe a certas peculia ¬ elaboração industrial mantinham - se em formas artesanais e de
ridades nas relações de trabalho na produção do açúcar, acentuan ¬ trabalho do produtor ou assalariado. A vega** é pequena e
do o cará ter explosivo do escravismo numa sociedade que atinge corresponde ao padrã o agrícola da horticultura; n ão forma lati ¬

tardiamente o clí max do desenvolvimento colonial. Além disso, fú ndios nem fomenta a concentração agrá ria. Os donos das vegas
-
a produção de tabaco mantém se, até quase o fim do século, nos não são fazendeiros, mas monteros , sitieros ou guajiros , que vivem
moldes tradicionais e os contrastes, apanhados de forma tão su ¬ nos bohíos , sendo predominantemente brancos e livres. A ma ¬
til por Fernando Ortiz, no seu famoso ensaio, agravavam as ten ¬ nufatura do tabaco, por sua vez, só depois de meados do século
sões criadas pela coexistência de trabalho livre e trabalho escravo. começa a ser absorvida pelo capitalismo industrial. Ela se man ¬
Portanto, a organização das relações de trabalho não interessa tém como uma atividade urbana que exigia pouco pessoal alta ¬
por si mesma. Ela permite entender melhor o contexto social mente treinado e especializado , de baixa densidade de
que tornou a emancipação nacional prematura, entre 1868 e 1878, maquinaria. Prevalecia, pois, no campo e na cidade a pequena
e pouco prová vel entre 1895 e 1898. produção em moldes artesanais (cf. F. Ortiz, op. cit, p. 76-77). Ao
Por enquanto, ainda não nos interessam todas as conseq úên - penetrar na produ ção e na industrialização do tabaco, o capita ¬

cias da imensa transformação do engenho. Entre a década de lismo ir ía alterar essas condições, dentro de linhas que decorriam
1820 e os últimos 20 anos do século 19 as alterações ocorridas da qualificação da m ão - de - obra e das imposições do trabalho
foram notáveis - e, em certo sentido, catacl ísmicas para o equi¬ livre ( cf. idem, p. 96).
lí brio da sociedade colonial. Duas coisas merecem maior aten ¬
Essas peculiaridades na produ ção e na industrialização do
ção, em termos do objeto desta an álise. Primeiro, a mecanização açúcar e do tabaco tiveram obvias conseqúências sociais. A trans ¬
altera, de imediato, o tamanho do engenho e a forma de explora ¬ formação do engenho pressionou o crescimento da força de tra-
ção do trabalho escravo ou de sua combina ção com o trabalho
livre. Como escreve F. Ortiz, “ graças ao vapor, tudo se torna novo * Cada caballer
í a equivale, aproximadamente , a 13, 45 hectares .
na maquinaria do engenho; també m tudo se torna grande” ( op. ** As culturas de tabaco , nas vá rzeas.
6o 6i
I C 0 LÍE Ç Ã 0 ASSIM . LUTAM O .S POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

L J..
balho escrava. O tabaco manteve- se preso à rede do trabalho prios de comunicação, solidariedade e propaganda, com fortes
livre e o seu setor urbano origina um desenvolvimento precoce impulsões socialistas ( idem, pp. 125-127). Quando a ú ltima re ¬

da consciê ncia operária, centrado nas atitudes e nos comporta ¬ volução nacional atinge seu apogeu, é entre eles que surge o maior
mentos dos tabaqueiros. O que importa são as relações entre as apoio popular ao movimento e muitos leitores contavam entre
formas de organização do trabalho e os conflitos sociais que elas os líderes proletários da insurreição ( idem, loe. cit.). Por fim, ao
comportavam e liberavam ( ver E Ortiz, op. cit., pp. 120 e segs.). ; -
completar se todo o ciclo, assiste-se a uma dupla migração de
O escravo rompia com a ordem de modo violento, convertendo- sentido contrário: os tabaqueiros cubanos imigram para o exte ¬
se em cimarrãos e buscando proteção nos palenques. “ As greves rior; haitianos e jamaicanos são importados como braceiros, nos
nos engenhos e cafezais foram a rebeldia dos negros escravos. períodos de safra, para trabalhar nos engenhos ( idem, p. 127).
Algumas das grandes sedições de escravos foram descritas pelas A descrição poderia ser completada em muitos outros aspec ¬
pró prias autoridades como verdadeiras revoluções sociais pla¬ tos. O que foi enumerado basta para comprovar que Cuba foi
nejadas para a libera ção do trabalho açucareiro. Com o fim dos vítima, primeiro, de seu “ atraso relativo” , e, em seguida, do seu
escravos o proletário r ústico que os substituiu foi geralmente “ progresso desigual” . Em 1868, os estamentos mais ricos e po ¬
quieto, antes e depois da ú ltima revolução pela independência, derosos (inclusive dos que ficavam nos desdobramentos pura ¬
a qual n ão teve o mesmo sentido social que a de 1868 com a mente comerciais dos negócios com o açú car e outros produtos)
aboli çã o da escravid ão. Tanto o guajiro das lavouras e os achavam -se divididos econó mica, social e politicamente no que
cortadores de safras como os operários das máquinas participam se referisse a uma luta contra a Espanha e pela emancipação na ¬
do caráter fundamentalmente rural do proletariado açucareiro, cional. Apenas uma fração desses estamentos, quase toda con ¬
mais desagregado, menos lido e menos disposto à organização centrada no setor a ç ucareiro, ia tão longe. A “ guerra dos dez
coletiva, permanente e dirigida. Só no século 20, agora que os anos” , dessa perspectiva, colidia com a situação global de inte¬
engenhos são cidades com centenas de povoadores em seus resses dos estamentos senhoriais, a qual não lhes propiciava con ¬
bateyes , aparecem na massa trabalhadora fabril, menos campo¬ dições coletivas para conduzir uma revolu ção pol ítica contra a
nesa que antes, a consciência de sua classe, o esforço de sua or ¬ ordem existente. Acresce que esses estamentos ( pelo menos sua
ganização e o impulso das “ reivindicações” ( F. Ortiz, idem pp., maioria “ moderada” , “ reformista” e “ pr ó-espanhola” ) foram
121-122). O cultivador de tabaco, por seu lado, não precisava praticamente lançados nos braços da metrópole pelo teor radi¬
recorrer à violência para alterar seu status ou por causa das con ¬ cal que aquele movimento assumiu espontaneamente (o que se
dições de trabalho (seus conflitos vinculavam - se a abusos que evidencia em dois pontos de modo muito claro: o temor causa ¬

surgiam na fase propriamente comercial das negociações do pro ¬ do pela bandeira da emancipação imediata da escravidão; e o
duto do trabalho). O tabaqueiro, por sua vez, ao proletarizar -se, temor ainda maior de que o controle polí tico- militar do movi ¬

mant é m o orgulho artesanal e o combina a formas operá rias de mento passaria fatalmente para grupos sociais identificados com
luta social ou económica. Recorre à greve dentro de “ uma cons ¬ a pressã o popular por uma revolução democrática). Em 1895, os
ciê ncia de classe proletária” ( idem, p. 124). A pr á tica da leitura dados hist óricos eram outros. No entanto, o centro de gravidade
durante o trabalho desenvolvera nesse setor maior instru ção, da situa ção de interesses dos estamentos privilegiados sofrera
maior sensibilidade política e maior interesse pelos meios pró- um deslocamento para fora ( ou seja, para os Estados Unidos).
62 63
DA GUERRILHA SOCIALISMO
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS AO A REVOLUÇÃ O CUBANA

Da í resultava um vazio político letal, pois não havia como com ¬ tui um processo de duas faces, que beneficia espanh óis e cuba ¬
pensar esse fator. As massas de trabalhadores espoliadas possuíam nos, mas que favorece muito mais os Estados Unidos. O indirect
um n úcleo organizado e politicamente ativo muito reduzido e rule podia ser exercido com total elasticidade e de modo brutal:
não poderiam servir de suporte à saturação política revolucio ¬ j as condições coloniais vigentes não erguiam outra barreira, a
n á ria do pólo militar. Se a intervenção estadunidense não se con ¬ n ão ser a dos interesses materiais da dominação colonial espa ¬

cretizasse, a ausê ncia da compensação não teria import â ncia. nhola e dos estamentos privilegiados cubanos, à atua ção e à pe ¬

Dada a intervenção, a revolução foi bloqueada no plano militar netração dos capitais estadunidenses. Configura- se, na verdade,
e paralizada no plano pol í tico; o que resultou dela foi, em senti ¬ i uma nova conquista, assentada no poder democrá tico do dinhei ¬

do estrito, uma transição neocolonial para uma nebulosa e lon ¬ ro. Se o poder colonial ou metropolitano se movimentasse con ¬

gínqua emancipação nacional. Se em outros povos da Amé rica tra essa conquista ou se os estamentos privilegiados cubanos
Latina surgiram nações em potencial, em Cuba o que se confi ¬ pudessem liderar uma resistência nacional contra ela, é prová ¬

gurou foi a subna ção em potencial (ou uma formação estatal pré- vel que o indirect rule ficasse contido nos mecanismos do merca ¬

nacional ). Portanto, o “ despertar cubano” dera todos os seus do e nas relações de dependê ncia econ ómica, cultural e política.
frutos. Mas sob uma chocante frustraçã o do sonho patriótico de Como ocorreu o contrá rio - os interesses espanhóis e cubanos
independ ê ncia nacional. aceitaram e estimularam a incorporação ao espaço econó mico,
O ú ltimo tema - a impossibilidade de “ modernizar a coloni ¬ sociocultural e político dos Estados Unidos - a história foi mo ¬

zação” e de “ levá-la até ao fundo” mediante um sistema de po ¬ vimentada na direção da defesa de particularismos metropolita ¬
der estruturado para a dominação colonial direta - é, por assim nos e cubanos. As contradições vinculadas à modernização da
dizer, uma digressão teórica conclusiva. Pelo que vimos, a mo ¬ coloniza ção e ao processo de levar a coloniza ção até ao fundo se
dernização da colonização provocou efeitos estruturais e dinâ ¬ deslocaram da construção de uma sociedade nacional para a ela ¬

micos que puseram em cheque a dominação colonial direta. boração de uma sociedade neocolonial strictu sensu (ou semi-
Todavia, os estamentos proprietá rios cubanos, em geral, e seus colonial).
estratos mais privilegiados, em particular, não lograram apro ¬ Essa discussão põe em relevo a questão: a quem aproveita as
veitar as oportunidades novas. Ao aprofundar- se, a moderniza ¬ contradições? As combinações possíveis entre estrutura e histó ¬
ção da coloniza ção for çou uma rearticulação com os espanhóis e ria abriam várias solu ções. Na prá tica, somente uma foi selecio ¬
a incorporação comercial e financeira de Cuba aos Estados Uni¬ nada concretamente. Nem a metr ó pole nem os estamentos
dos. Em conseqúência, as contradições n ão contribu íram para privilegiados cubanos dispunham de condições estrat égicas para
intensificar ou fortalecer a primeira tentativa de revolução nacio ¬ salvar seus interesses juntamente com a criação de uma socieda ¬
nal, mas para impor a contenção conservadora e contra- revolu ¬ de nacional ( isto é, n ão -colonial). Em conseq úê ncia, 0 que po ¬
cioná ria das for ças vivas da sociedade colonial cubana. O mais deria estar na origem de uma revolu ção política e da formação
grave, porém, não está aí: está na demora com que se processa a de um Estado nacional permitiu o seu avesso, a ocupação mili ¬
desagregação interna da dominação colonial direta e na rapidez tar estrangeira e a formação de um Estado satélite ou neocolonial.
com que caminha a incorpora ção de Cuba ao mundo dos negó ¬ As ra ízes económicas diretas e indiretas dessa frustra ção da
cios estadunidenses. O levar a colonização até ao fundo consti- emancipa çã o nacional já sã o bem conhecidas. Eis como J. le
65
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILH A AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUSANA |

Riverend as resume, com toda clareza: “ A evolução econó mica se do sistema de poder fundado na dominação colonial direta
de Cuba havia propiciado, nos fins do século 19, um desenvolvi ¬ gerou uma situação hist órica de instabilidade política cró nica.
mento cada vez mais íntimo das relações comerciais entre Cuba Essa “ desestabilização permanente” poderia ser superada pelos
e os Estados Unidos. Pode-se assegurar que o primeiro grande espanhóis, pelos cubanos, pelos espanhóis apoiados pelos cuba ¬
mercado do nascente capitalismo estadunidense foi Cuba. Quan ¬ nos, pelos cubanos apoiados pelos estadunidenses etc. Os inte ¬

do, nos meados do século 19, os Estados Unidos eram um país resses privados estadunidenses escolheram uma via própria, pela
no qual se faziam fortíssimas inversões britâ nicas, os comercian ¬ qual a solução passava por eles, amparados no poderio militar,
tes de Baltimore, Nova York e Boston tinham muitos capitais diplomá tico e político do governo dos Estados Unidos. A fó r ¬

empregados no cr édito açucareiro de Cuba. Esse crédito era con ¬ mula polí tica escolhida é t ípica de uma potência imperialista
cedido fundamentalmente para aquisição de escravos com pra ¬ emergente. Uma sateliza ção que privaria Cuba de qualquer au ¬

zo determinado, aquisi çã o de maquinaria e antecipa çõ es têntica soberania nacional ( mesmo relativa), mas que livrava os
( verdadeiras penhoras) sobre o açúcar que os comerciantes Estados Unidos dos custos diretos ou indiretos e das responsa ¬
estadunidenses compravam em Cuba para abastecer o mercado bilidades da dominação colonial direta. Podiam dispor de uma
do Leste dos Estados Unidos; també m era usado para favorecer possessão colonial com todas as vantagens da dominação indi ¬

a importaçã o de produtos estadunidenses em Cuba. Estas rela ¬ reta. O que prevaleceu foi a escolha que assegurava uma estabi ¬
ções mercantis propiciaram o estabelecimento em Cuba de ci¬ lização política pelo meio mais rápido, mais fácil e “ mais prá tico” ,
dadãos estadunidenses que compraram e operaram alguns com a garantia suplementar de que caberia aos cubanos montar
engenhos. (...) Tais relações mudaram radicalmente de sentido e manter a “ pol ícia da ordem estabelecida” . Assim, a revolução
quando, a partir de 1880, a ind ú stria de refinação de açúcar do dentro da ordem colonial n ão se extingue pela negação em seu
Leste dos Estados Unidos se concentra do ponto de vista finan ¬ contrá rio, a revolu ção nacional. Ela se redefine e se reconfigura
ceiro e orienta- se para a obtenção em Cuba do açúcar cru, que graças ao aparecimento de um poder externo, bastante forte para
lhe servia de matéria-prima. Começam então os investimentos absorver aquela revolu ção dentro da ordem colonial em uma
diretos estadunidenses na ind ústria açucareira de Cuba. Junta¬ inexorá vel “ expansão de fronteiras” e para impor a dominação
mente com estes investimentos açucareiros há também investi¬ indireta na forma de uma tutela institucional, aceita e legitima ¬
mentos de outros tipos, como os mineiros. Ligam- se, ent ã o, os da constitucionalmente pelos cubanos.
interesses da ind ústria refinadora estadunidense com os inte ¬
resses dos investidores estadunidenses em Cuba, de modo que 3 - O neocolonialismo da domina ção imperialista
estes vêm a ser aliados e apêndices daqueles. Calcula- se que os O assunto desta exposição forma uma unidade com o da expo¬
estadunidenses haviam investido em Cuba, por volta de 1895, siçã o anterior. Não é o caso de insistir demais nesse aspecto, para
uns US$ 50 milhões” ( La republica, p. 14 ). ganharmos tempo. Entre o último quartel do século 19 (especial ¬
A essas raízes econó micas corresponde uma mutação políti ¬ mente nas duas últimas décadas) e os primeiros 15 anos deste
ca. Ao chegar ao seu ápice, depois de duas convulsões político- século [20], Cuba sofreu uma transformação deveras importante
militares de grande envergadura - ea revolução de 1895 só n ão em sua economia, na sociedade e na organização do seu poder
acabou vitoriosa por causa da intervenção estadunidense - a Oí ¬ político. Ora, toda transforma ção tem dois lados - certas conti-
66 67
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA |

nuidades e certas mutações. No caso de Cuba, o que é peculiar é a bém ocorrem com freqúência e como fenômenos típicos. Seria
extensão e a intensidade com que estruturas específicamente co- f preciso, pois, não perder isso de vista (e, se possível, retomar a
loniais ficam intactas ou são mantidas com pequenas modifica ¬ problemá tica envolvida: cf. esp. F. Fernandes, Capitalismo depen¬
ções. Como a revolução nacional abortou, não houve propriamente dente e classes sociais na América Latina, Zahar, Rio, 2a ed., 1975,
uma transição para uma situação de desenvolvimento capitalista cap. 1; F. H. Cardoso e E. Faletto, Dependência e desenvolvimento
e nacional dependente. O que apareceu e persistiu, por mais de na América Latina, Zahar, Rio, 2a ed., 1973, caps. Ill e IV). A outra
meio século, foi um desenvolvimento capitalista semicolonial ou, diz respeito à caracterização do sistema de poder que emerge numa
para usar termos precisos, um desenvolvimento capitalista situação neocolonial durável ou “ permanente” . Esse sistema de
neocolonial (extra e antinacional, sob vários aspectos; e prolon ¬ poder pressupõe duas coisas: 1. a desagregação do antigo sistema
gado, quanto à duração). Tudo isso quer dizer que as duas grandes colonial; 2. a frustração da emancipação nacional. Os dois termos
revoluções (e principalmente a ú ltima) se desvaneceram sob o cir ¬ - “ colonial” e “ nacional” - ficam ambíguos e imprecisos. Como
cuito de interesses neocoloniais externos e internos, como se as descrever 0 sistema de poder emergente? No caso de Cuba, al¬
mudan ç as necess á rias fossem estritamente econ ó micas, guns autores utilizaram o conceito de protetorado (que não é cor¬
tecnológicas e institucionais, sem afetar as condições básicas da reto) e o de neocolonial (que vem a ser preciso, se se entender por
existência do povo e em seu detrimento. O máximo de moderni¬ essa palavra a situação típica, transitória ou permanente, na qual
zação foi combinado com o máximo de preservação e de conti¬ a dominação indireta gradual limita o alcance e os ritmos da
nuidade da velha ordem colonial. O problema da independência descolonização, freando-a em proveito da nação ou das nações
passava a ser, de novo, uma realidade explosiva e algo a ser con ¬ hegemó nicas). Desta perspectiva, pode-se falar de uma Cuba
quistado a partir de e contra a ordem social neocolonial em elabo¬ neocolonial e de um Estado cubano neocolonial. É preciso não
ração. Portanto, a frustração das duas revoluções não elimina as esquecer, porém, que esse Estado constitui uma formação social
lutas pela libertação nacional. Ela apenas repõe a necessidade de amorfa e intrinsecamente impotente. Talvez por essa razão alguns
travar essas lutas em um contexto histórico-social diverso e con ¬ autores prefiram lidar diretamente com o governo, suas institui ¬
tra uma metrópole menos visível em sua orientação colonialista, ções e disfunções, pois aí 0 Estado se apresenta sob sua face ins¬
mais forte internamente, por seus vínculos com os estamentos trumental e ativa, por assim dizer com maior concreticidade
dominantes, e mais poderosa em termos de sua capacidade de histórica. Como designar esse governo? J. le Riverend (em La
dominação global. republica ) emprega sistematicamente o conceito de republica
Duas questões preliminares precisam ser suscitadas. Uma diz intervenida . Aqui, parte-se do regime político e busca-se, através
respeito à conceituação da dominação externa em uma situação de suas contradições, os m ú ltiplos encadeamentos existentes en ¬
neocolonial. Na América Latina, o paradigma da análise é, como tre dependência e revoluçã o. Todavia, n ão se pode ignorar que a
regra, fornecido pelos povos que converteram a transição intervenção é um simples meio e que as contradições não são in¬
neocolonial em um período de duração limitada (como sucedeu trínsecas ao regime político (elas emanam da organização da eco¬
com a Argentina, de modo mais curto, ou com o Brasil, de forma nomia e da sociedade em condições nas quais o desenvolvimento
mais demorada). Não obstante, a transição neocolonial prolonga¬ capitalista se enlaça à inviabilidade da emancipação nacional, pro-
da e, mesmo, a institucionalização da dominação neocolonial tam- duzindo-se uma situação neocolonial permanente). Daí resulta
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

um ponto de vista sociológico que põe em primeiro plano a tarefa quista” se desenrolava mediante uma gradual expansão de fron ¬
central de explicar a constituição, a reprodução e a desagregação teiras: os Estados Unidos e seu “ mundo de negócios” surgem
da formação societária neocolonial. Essa formação societária, na como centro metropolitano de Cuba moderna. O interesse
medida em que o desenvolvimento capitalista engrena-se, a par¬ estadunidense pela “ revolu ção industrial do açúcar ” cubano
tir de dentro e a partir de fora, com a expansão das grandes deixara de ser apenas uma realidade económica para ser tam ¬

corporações e do imperialismo, torna-se crescentemente mais bém uma necessidade polí tica.
expoliativa, odiosa e inexeqüível. Em vez de tornar obsoletas as É dessa perspectiva que se deve interpretar a evolução das
idéias de nação e de revolução nacional, ela as recupera e as proje ¬ relações de Cuba com os Estados Unidos. A proximidade espa ¬
ta na consciência social como alvos supremos, a serem atingidos cial e a facilidade com que os dinamismos da economia estadu ¬
através ou contra o capitalismo, o que redimensiona o nacionalis¬ nidense especializaram Cuba, convertendo-a em uma feitoria
mo como ideologia básica da luta contra o neocolonialismo. agroindustrial moderna, impuseram aos Estados Unidos o pro ¬
A passagem para a dominação indireta n ão se deu ex abrupto. blema polí tico de como impedir a revolução nacional cubana e
Os dados expostos na aula anterior indicam que ocorreu um cres¬ de como proceder para formalizar, diplomá tica e “ legalmente”
cimento gradual da penetração estadunidense ao longo de todo (sob uma aparência de consenso) a satelização política de Cuba.
o século 19. Essa penetração começa abrindo uma brecha no pacto Por que não foram ressuscitados os planos anteriores de ocupa ¬
colonial exclusivo, assume uma expressão definida antes da ção pura e simples? Primeiro, porque a intervenção militar não
“ guerra dos dez anos” (segundo indicações fornecidas por O. se processava, de fato, para apoiar Cuba contra a Espanha. Era
Pino Santos, Aspectos fundamentales da Historia de Cuba, p. 87, de evidente que o desenlace militar das lutas políticas pela inde¬
1826 a 1830 as exportações de Cuba, em milhões de pesos, alcan ¬ pendência iria garantir a Cuba a condição de uma nação emer ¬
çam 3,72 para os Estados Unidos, contra 2,8 para a Espanha; e gente. Segundo, pelo vulto já então alcançado pelos negócios do
de 1856 a 1860 a mesma proporção é de 18,37 para 5,31) e torna ¬ açúcar. Muitos interesses, dentro e fora dos Estados Unidos, se
se um predomínio patente de 1880 em diante (como vimos na opunham às tendências que os refinadores estadunidenses im ¬
exposição anterior). Na verdade, como demonstra aquele autor, primiam aos seus negócios e ao projeto político decorrente, en ¬
o anexionismo define- se como uma tendência constante, nos dossado pelo governo. Portanto, era preciso combinar a maior
Estados Unidos, desde o início do século. Por sua vez, os audácia com a maior prud ência e uma espantosa hipocrisia de
estamentos privilegiados cubanos dividiram- se entre uma auto ¬ permeio.
nomia com reforma, dentro da Espanha, e a anexação aos Esta ¬ Ainda aqui, a preocupa ção de vincular passado e presente
dos Unidos (veja-se, a respeito, O. Pino Santos, op. cit. cap. XIII, restringe 0 âmbito da discussão a certos aspectos desse comple¬
no qual o autor descreve as tentativas cubanas de acelerar a ane ¬ xo deslocamento de uma situa ção colonial para uma situação
xação manu militari, solapadas pelos Estados Unidos, que prefe ¬ neocolonial permanente. Parece óbvio que três temas são essen ¬
riam chegar a esse termo por via própria). Entre o fim do século ciais: 1. a natureza da situa ção neocolonial em Cuba; 2. as últi ¬
19 e o início do século 20 as proporções da penetração económi ¬ mas etapas da “ revolução industrial do açúcar ” ; 3. os efeitos
ca estadunidense eram tão consideráveis que a incorpora ção de estruturais e dinâ micos sociopá ticos da satelização neocolonial
Cuba aos Estados Unidos tornou-se inelutável. A “ nova con - de Cuba pelos Estados Unidos, como eles aparecem através de
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

uma trindade crónica: crises econó micas, anomia social e vio ¬ truturas económicas, sociais e políticas preexistentes, sem as quais
lência pol ítica. seria impossível ampliar e intensificar as duas tendê ncias mencio ¬
O primeiro item deve ser proposto com a maior latitude nadas (modernizar a colonização e levar a colonização até ao fun ¬
possível. É lógico que n ão se deve atribuir a deteriora ção dos do). O que indica que a modernização pretendida nã o ia contra
processos de emancipaçã o nacional de Cuba exclusivamente aquelas estruturas. O poder imperial, pela iniciativa privada ou
aos Estados Unidos. Hacendados poderosos, grandes comercian ¬ oficial, precisava daquelas estruturas e onde elas deveriam ser fa ¬
tes e v á rios tipos de especuladores, a alta burocracia civil e talmente destruídas seriam criadas estruturas equivalentes, espe¬
militar embotellada, os políticos reacioná rios e corruptos, os in ¬ cíficamente neocoloniais (0 que freou consideravelmente não só
telectuais orgâ nicos da ordem etc. cooperaram de modo ativo a constituição de uma sociedade nacional e de um Estado sobera ¬
para arruinar o “ projeto nacional ” cubano. Cuba possu ía uma no, mas também a diferenciação e a expansão de um regime de
prodigiosa burguesia compradora ( e parece que, na América classes sociais). Segundo, os estratos mais organizados e podero ¬
Latina, não existiu outra tão aut êntica e empreendedora). Ela sos da sociedade cubana compartilhavam de interesses simétricos
se ocupou, com extremo requinte, de um só negócio: como os e complementares, empenhando-se não apenas conjunturalmente,
estadunidenses, o de extrair de Cuba toda a riqueza possível. mas a largo prazo, na sabotagem da revolução nacional. Para esses
Só que ela dependia da mediação dos Estados Unidos para al ¬ estratos, a persistência de estruturas económicas, sociais e políti ¬
can çar esse alvo. cas preexistentes constituía uma garantia de que a extrema con¬
No exame da situação neocolonial cubana deve-se ter em men¬ centraçã o da riqueza, do prestígio social e do poder permaneceria
te dois elementos centrais. Primeiro, o que é mais importante: ela indefinidamente intocada. Isso explica por que eles se retra íram
se produz como conseqíiência do crescimento e da transformação diante dos progressos da revolução nacional (em vez de aumenta ¬
de um fator de domina ção externa longamente incrustrado e con ¬ rem paulatinamente o seu envolvimento); e por que endossaram
solidado na velha ordem colonial. Não ocorreu uma sú bita subs ¬ tão depressa e tão facilmente as exigê ncias expressas pela Emen ¬
tituição de uma dominação metropolitana por outra. Na verdade, da Platt (aprovada pelo Senado dos Estados Unidos em 2 de mar ¬
a penetração estadunidense ajudara a diminuir os ritmos da desa ¬ ço de 1901 e pela Convenção Constituinte de Cuba em 12 de junho
grega ção da velha ordem colonial, pois as duas tend ê ncias con ¬ de 1901, convertida em apêndice à Constituição) e pelo Tratado
vergentes de modernizar a colonização e de levar a colonização Permanente entre Cuba e os Estados Unidos (assinado em 22 de
até ao fundo partiram dos Estados Unidos. A dominação estadu ¬ maio de 1903). [É oportuno, aqui, lembrar que por essa emenda
nidense sempre operara através da velha ordem colonial, em arti ¬ ficava reconhecido “ 0 princípio de que o governo dos Estados
culação ou contra os interesses espanhóis e cubanos - espanh óis. Unidos podia intervir nos assuntos internos de Cuba” e que en ¬
Quando essa ordem se vê ameaçada de uma desagregação final, os quanto essas exigências n ã o fossem aceitas continuaria a ocupa ¬
Estados Unidos bloqueiam o processo por meio da intervenção çã o e o governo militar ( cf. J. le Riverend, La republica, p. 24).
militar, da ocupação e pela negociação político-diplomática. Ao Quanto ao tratado, estabelecia a reciprocidade nos seguintes ter ¬
que parece, a questão não era, t ão-somente, impedir o apareci¬ mos: “ Primeiro: os artigos que até esse momento entraram livres
mento de um Estado nacional independente e soberano em Cuba. de direitos nos Estados Unidos e em Cuba e fossem de produção
Mas - e principalmente - fomentar a estabilidade de todas as es - desses países continuariam desfrutando dessa liberdade. Segú n-
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

do: uma série de artigos cubanos fixados em lista especial desfru¬


permite falar numa “ hist ó ria natural do neocolonialismo” . O
tariam, em sua importação pelos Estados Unidos, de uma tarifa
neocolonialismo cresceu, simultaneamente, de fora para dentro
preferencial cerca de 20% mais baixa que a tarifa aplicada a pro¬
e de dentro para fora. Porém, com um ponto de equil íbrio está ¬
dutos similares procedentes de outros países americanos ou euro ¬
tico que não provinha apenas do fator externo. Com todo o po ¬
peus. Terceiro: os produtos estadunidenses especificados em lista
der económico, cultural e político- militar de que já dispunham,
desfrutariam, em sua importação por Cuba, de tarifas preferenciais os Estados Unidos jamais atingiriam seus alvos privados e oficiais
que oscilariam entre 25% e 40%. Quarto: as tarifas alfandegárias
se as elites da sociedade cubana não funcionassem, durante tan¬
poderiam ser alteradas e aumentadas, mas mantendo -se sempre a
to tempo e reiteradamente, como uma vanguarda da contra-re ¬
margem preferencial. Quinto : as preferências estabelecidas no
volução. (Sobre esse assunto, é fundamental estudar com atenção
tratado não poderiam ser estendidas a nenhum outro país porque
constituíam um tratamento especial, diferente do que se reconhece
J. le Riverend, La republica; e aconselhável suplementar a leitu ¬
ra com O. Pino Santos, Aspectos fundamentales de la Historia de
na t écnica tradicional dos tratados como cláusula da nação mais
Cuba, cap. XXIII.) O que importa assinalar é que não se confi ¬
favorecida” . (Cf. J. le Riverend, Historia económica de Cuba, pp. gurou, nas condições histórico-sociais apontadas, uma transi ¬
213-214.)] Essa disposição coletiva predominante nos estratos pri ¬
ção neocolonial encadeada a uma revolução nacional, ainda que
vilegiados era tão forte que, de 1902 a 1959, eles se empenharam
débil e em ziguezagues. A situação neocolonial, em Cuba, repre¬
em ativar os dispositivos intervencionistas do governo
senta o produto do aproveitamento das contradições da velha
estadunidense - ora em defesa dos “ princípios liberais” , ora para
ordem colonial por uma potê ncia que logrou converter -se em
proteger os “ ideais conservadores” . O que prevalecia era a mais
centro imperial, impedir o êxito militar e polí tico da revolução
pura orientação reacionária e contra-revolucionária. Portanto, fa ¬
nacional e engendrar um novo colonialismo.
tores internos propiciavam suporte material, ideológico e polí ti ¬
Esse novo colonialismo não passava pela dominação centra ¬
co est á vel ao novo centro imperial . Se os estadunidenses
lizada aos níveis econ ómico, cultural e político. Ele se fundava
precisavam de uma ampla reprodu ção de estruturas da velha or¬
em controles indiretos, criados pelos mecanismos de mercado e
dem colonial, para dar continuidade à moderniza çã o e ao
do desenvolvimento capitalista ou pelos dinamismos da incor ¬
aprofundamento da colonização, os estratos privilegiados preci ¬
poração e da satelização. Desse â ngulo, Cuba foi convertida em
savam da mesma coisa para restringir e dificultar a descolonização.
apêndice segmentar e especializado dos Estados Unidos. É cer ¬

Para eles, a vitória de uma autêntica revolução nacional equivalia


to que a economia arrastava e dirigia esse imenso processo de
a um risco catastrófico.
modernização, que ia da tecnologia à educação formal, à ideolo ¬

Por aí se vê que a fraqueza relativa e a mentalidade colonial gia dominante e à organização do Estado. Em todas as esferas
dos estratos privilegiados marcam, de ponta a ponía, o impasse
prevaleciam controles indiretos e descentralizados, operados à
crónico a que ficou sujeita a crise do antigo sistema colonial. As
distâ ncia: a órbita nativa funcionava como cadeia de transmis ¬

contradições foram contidas, na medida do possível, pelo topo,


são e, com freqúência, de execução. A presen ça militar, a inge ¬
e quando finalmente elas se desataram prevaleceu a tendência a
r ê ncia mais ou menos aberta e a pressão diplom á tica ou política
favorecer o poder que cresceu e se transformou nesse ínterim, apenas tinham por função reforçar os controles indiretos, não
convertido naturalmente em á rbitro político final. Tudo isso
substituí-los. Tudo isso permitia uma profunda hipocrisia, como
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

se uma dominação neocolonial que se tornava rapidamente im ¬ return” . Os gráficos elaborados por M. Moreno Fraginals ( El
perialista pudesse ser extracolonial, democrá tica e pró-nacional. ingenio, vol III, esp. gr áficos Vb e VIb, pp. 79 e 81) comprovam
N ão obstante, o que se procurava era transferir os custos do que a evolução de Cuba na direção da dependência a um produto
neocolonialismo para a sociedade submetida e eliminar toda e e a um mercado alcançara seu novo padrão típico. Pelos dados
qualquer responsabilidade direta (o que pressupõe, num parale ¬ fornecidos por esse autor pode-se estimar que no período 1896-
lo com o antigo sistema colonial, um aperfeiçoamento negativo 1900 os Estados Unidos receberam quase 92%, em média, do açú ¬

das técnicas de domina ção externa ). O projeto pol ítico imanente car exportado por Cuba (op . cit., quadro VI, p. 77). A concentração
a essa modalidade de colonialismo transcende às operações eco ¬ da indústria açucareira realizou-se, pois, sob a égide dos trustes,
n ó micas: ele é um projeto político global e funda- se na mais que se lançam à compra de terras, à refundição dos engenhos, à
egoísta determinação de consolidar supranacionalmente o po ¬ invasão de terras novas em proví ncias não açucareiras e à refina ¬

der imperial. O pólo dominado não existe em si e para si; ele çã o do a çú car bruto cubano nos Estados Unidos. A tarifa
constitui uma função das necessidades, das vantagens e da gran ¬ MacKinley, de 1890, abriu o caminho para a exclusão dos melho ¬

deza do centro hegemónico. A pá tria e a civilização n ão ficam res tipos de açúcar cubano do mercado estadunidense e para o
em suas fronteiras, mas no cora ção do n ú cleo imperial. As refle
¬ monopólio de fato desse mercado pelos trustes. “ Os capitalistas
xões de Fernando Ortiz sobre o cará ter centrífugo do açúcar eram estadunidenses compreenderam que era um grande negócio pro ¬

corretas. Não porque essa fosse uma propriedade daquele pro ¬ duzir açúcar bruto em Cuba. Por outra parte, ao produzir-se este
duto, mas porque o açúcar se converteu no nexo substancial desse resultado, Cuba ficara completamente submetida às necessidades
complexo sistema de poder. da ind ústria estadunidense.” (J. le Riverend, op. cit., pp. 66-67.)
O segundo item permite completar a descrição das transfor ¬ Os hacendados cubanos que n ão podiam fornecer o tipo de açúcar
mações da produção e da exportação do açúcar. Entre as duas últi ¬ bruto exigido pelo truste tendiam a ser eliminados, seus enge¬
mas décadas do século 19 e o início do século 20 a penetra ção nhos acabando nas refundições em processo. Nasce também o
estadunidense nesta esfera atinge o seu cl ímax, demonstrando que superengenho ou supercentral, como o engenho Washington, que
modernização, desenvolvimento capitalista e colonialismo iriam em 1910 contava 2,2 mil caballerías e que chegaria mais tarde a 6
caminhar juntos por muito tempo. O investimento estadunidense mil ( idem ). O mesmo autor informa que, em 1905, “ existiam 29
direto revolucionou os negócios do açúcar de alto a baixo, origi ¬ engenhos de propriedade estadunidense, cuja produção consti ¬

nando várias alterações em cadeia na organização e nas escalas da tuía 21% das safras cubanas” (idem, p. 68).
produ ção, no transporte, na comercialização, na exportação, con ¬ Podemos acompanhar os vá rios aspectos dessas alterações
troles de mercado e na especulação financeira. Atkins, em 1882, pelas descrições de F. Ortiz. O maquinismo triunfa de maneira
adquiriu o engenho Soledad, tornando-se o primeiro hacendado total. As fainas manuais desaparecem e o maquinismo altera por
ianque em Cuba ( F. Ortiz, Contrapunteo, p. 89). Ele próprio com ¬ completo a estrutura industrial, jurídica e pol ítica da economia
prou, em 1892, o engenho Trinidad e assumiu papel ativo como do açúcar ( Contrapunteo, p. 70). Com o supercentral vêm o de ¬

membro do truste açucareiro estadunidense (J. le Riverend, La senvolvimento do superlatif ú ndio, o deslocamento do centro
republica, p. 15). A incorporação de Cuba às estruturas e aos dina
¬ agrá rio de Cuba para as proví ncias de Camagúey e Oriente, o
mismos da economia central atingira, nessa época, o “ point of no tr áfico de trabalhadores braçais, o crescimento da pobreza e da
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO C U B A N A|

miséria etc. “ O engenho já é algo mais que uma simples hacienda; Em síntese, se o apogeu do neocolonialismo trouxe consigo uma
em Cuba já não existem verdadeiros hacendados. O central mo ¬ época de ouro, esta só existe para os especuladores da economia
derno não é uma simples exploração agrária, sequer uma fábrica central e para um reduzido n úmero de cubanos privilegiados.
com a produção de suas matérias-primas ao lado; hoje, é todo O açúcar servia de base a uma florescente rede de negócios,
‘um sistema de terras, máquinas, transportes, técnicos, traba¬ que abrangia todos os aspectos da economia interna. Essa rede
lhadores, dinheiros e população para produzir açúcar’; é todo já era próspera no início do século, entre 1898 e 1908, como se
um organismo social, tão vivo e complexo como uma cidade ou infere da reconstrução de le Riverend (cf. La republica, cap. V,
município, ou um castelo feudal com sua comarca cheia de
vassalos, solarengos e tributá rios.” ( idem, p. 72.) O latif ú ndio
-
esp. pp. 68 74). A porfia era “ ver quem extraía mais riquezas de
Cuba” . A segunda década do século é a que se presta melhor
apenas constitui a base territorial de um imenso complexo, ver ¬
“ para uma visão global (cf. idem, cap. XII). Segundo esse autor, “ o
tebrado por uma estrutura económica e jurídica que combina processo de dominação económica de Cuba, que se desenvolvia
massas de terras, massas de máquinas, massas de homens e mas ¬ com lentid ão desde fins do século 19 até 1911, começou a acele-
sas de dinheiros, tudo proporcionado à magnitude integral do rar-se a partir dessa data. Não só se acelerou como, pode-se di ¬

enorme organismo sacarífero” (idem, p. 73). Adiante, retoma o zer, especializou- se de acordo com o plano continental do
assunto e salienta: “ Para a produção do açú car concentram -se a capitalismo estadunidense, intensificando-se num determina ¬

produ ção e a ind ústria, criando essa complexa institui o que do setor da produção de Cuba que, como sabemos, é a ind ústria
çã é
o engenho, composta da grande plantação dos canaviais, da enor ¬ açucareira” (p. 150). Por meio do esquema já descrito acima, de
me fábrica com suas máquinas de prensar, evaporação, cristali ¬ refinação e monopolização do mercado, “ produz-se o fenômeno
zação, centrifugação e transporte, e do n úcleo urbano, casario de estrangulamento do desenvolvimento económico indepen ¬

ou cidade que é o batey, com seus barracões, vivendas, oficinas, dente de Cuba. Não somente criou-se uma indústria absoluta ¬

armazéns, estábulos e outros serviços” (idem, p. 113). Por sua mente predominante que constituiria o principal capí tulo do
vez, a concentração fundiária elimina o pequeno proprietário. comércio e da renda nacional, isto é, não somente deformou-se
“ O pequeno proprietário cubano, independente e próspero, cons ¬ a economia, que graficamente, poder-se-ia dizer, era um anão
tituinte de uma forte burguesia rural, vai desaparecendo; o cam ¬ com cabeça de gigante, mas ainda ergueu-se uma muralha a todo
ponês se proletarizou, é mais um trabalhador, sem raízes no desenvolvimento diversificado e Cuba ficava reduzida ao papel
solo
e movediço de uma zona para outra.” ( idem, p. 74.) Além disso, a de abastecedor de uma matéria-prima a um só mercado. Em con-
diminuição crescente da duração da safra iria ampliar o tiempo seqúência, toda a economia cubana achava-se inteiramente de ¬

muerto: de um semestre, essa duração reduz-se a 100 dias


ou pendente das mudan ç as, por m í nimas que fossem, que
menos. “ Todo o resto do ano é tiempo muerto. Então, os trabalha ¬ ocorressem no com ércio e no consumo da população estadu ¬

dores braçais das migrações temporá rias, que vieram a Cuba para nidense. Uma economia, portanto, a tal ponto submetida que se
a safra, vão-se do país com suas economias e o proletariado vê impedida de ir compensando os defeitos de sua própria estru ¬
nati¬
vo sofre larga desocupação temporal e incessante insegurança.
” tura e, em conseqúência, não conseguiria, ao largo dos anos, se ¬

Grande parte da massa trabalhadora vê-se forçada a viver com n ão uma intensificação dos desajustes e um agravamento de seus
os jornais de 3 ou 4 meses durante todo o ano (cf. idem, p. 85). defeitos políticos e sociais” (idem, pp. 150-151).
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA I

Como o mercado estadunidense estava em crescimento e para os Estados Unidos, como molas propulsoras de uma gigan ¬
como a I Grande Guerra abriu oportunidades sú bitas às refina ¬
tesca acumulação de capital, que ajudou a alimentar a transfor ¬
rias e aos especuladores estadunidenses - a guerra interferiu so ¬ mação dos Estados Unidos na maior potência imperialista da
bre a produ ção açucareira da Europa e criou dificuldades ao atualidade.
transporte do açú car de zonas mais ou menos distantes, como O terceiro item deve ser apenas aflorado. O capitalismo não
Java Cuba tornou - se cenário de “ uma verdadeira orgia de in¬ produz as mesmas conseq úências em toda parte. É preciso aten ¬
vestimentos estadunidenses” ( idem, p. 151). Tais investimentos tar com cuidado para um fato fundamental: em Cuba ele se
dirigiam-se tanto para o açúcar quanto para a mineração, as es- ¡
manifestou e expandiu -se em fun ção de um padr ão de desenvol¬
tradas de ferro, a indústria manufatureira e a rede bancária. Não vimento económico neocolonial. Isso quer dizer que a forma
obstante, os investimentos no açúcar, sozinhos, equivaliam à de apropriação dual do excedente económico se apresentava
soma de todos os demais (idem, pp. 151-152). Os investidores na modalidade mais drástica para os setores burgueses locais e
estadunidenses podiam operar através dos engenhos mais pode¬ para as classes trabalhadoras. As operações financeiras e co ¬
rosos. Assim, em 1918, detendo menos da metade dos engenhos, merciais, de modo estruturalmente colonial, deslocaram para
elaboravam mais de 70% da safra ( idem, p. 152). Os “ milionários fora e especificamente para o centro imperial as transforma ¬
do açú car ” cubanos e hispano-cubanos cobriam o resto da pro ¬ ções finais do açúcar e as prá ticas verdadeiramente mais lucra ¬
dução. A penetração bancá ria estadunidense, que de 1915 em tivas, ou geravam, de maneira incessante, nas crises e nos
diante foi extremamente rápida e considerável, implantava den ¬ períodos de prosperidade, os “ grandes golpes” especulativos.
tro de Cuba os principais controles financeiros de toda a vida Em termos globais, apenas uma diminuta massa da riqueza
económica e punha em mãos estadunidenses novos processos produzida ficava em Cuba ( para alimentar os fluxos da repro ¬

de deslocamento e substituição dos hacendados. Antes e depois du ção ampliada do capital, “ nacional” ou “ estrangeiro” ). O gros ¬
da crise de 1920-1921 os bancos tornaram-se instrumentais para so dessa riqueza era drenado colonialmente para fora, através de
a compra de propriedades e execuções hipotecá rias. [Recomen ¬ mecanismos ultramodernos de apropriação comercial e finan ¬
do com insistência a leitura dos capítulos XII e XIII da obra ceira; o que ficava em Cuba, pois, correspondia ao mínimo ne¬
citada; esses capítulos devem ser aproveitados como uma espé¬ cessário para manter em atividade o desenvolvimento capitalista
cie de estudo de caso crítico.] As práticas especulativas e de ex¬ neocolonial. Sem esse m ínimo, não haveria reprodução social
torsão empregadas em Cuba, pela iniciativa privada e oficial, do sistema produtivo, do trabalho e da ordem social imperante.
são conhecidas e comuns. O que espanta são a envergadura e o Quando os historiadores e os economistas cubanos falam na
cinismo, que nos fazem meditar sobre o significado do distorção da economia, em sufocação e impossibilidade de di ¬
neocolonialismo imperialista. Empresá rios, especuladores, aven ¬
versificação e autonomia, eles descrevem os efeitos desse padrão
tureiros, militares, políticos, embaixadores e assessores, todos neocolonial de desenvolvimento capitalista. A reprodução am ¬
lembram robber barons' devotados à drenagem de riquezas de Cuba pliada do capital era dimensionada para gerar, ampliar e inten ¬
sificar a exploração de toda a colónia, embora a verdadeira carga
Título do livro de Matthew Joscphson , sobre os grandes capitalistas devesse recair nos ombros dos trabalhadores das várias catego ¬
estadunidenses (publicado originalmente cm 1934). rias e nos setores mais pobres da população.
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C U B A N A II
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A tradução histórica desse fato aparecia tanto no volume do são económica, cultural e política. Os que ficavam com a parte do
trabalho semilivre ( a maior parte do proletariado rural entrava leão, no plano económico, monopolizavam o poder real, aos ní ¬
nessa categoria, caracterizada por F. Ortiz como “ peonagem veis económico, sociocultural e político. A “ Republica interve¬
miserável” ; e, por efeito da estrutura da mercantilização do tra ¬ nida” podia constituir um biombo ou uma realidade, tudo
balho e da inobservâ ncia das garantias sociais dos trabalhado ¬ dependendo da maneira pela qual aquele poder real passasse por
res, mesmo os operários semiqualificados do campo e da cidade ela e a dinamizasse. O que quer dizer que o “ nosso agente na coló¬
tendiam a cair dentro dela) como na margem brutal de explora ¬ nia” e o “ mais independente” representante dos estamentos pri¬
ção do trabalho ( na verdade, no agroindustrial a empresa era vilegiados ou ultraprivilegiados cubanos eram fraudados de várias
capitalista na organização da produção, na tecnologia e nas prᬠmaneiras e debilitados sistematicamente pelos seus parceiros ex¬
ticas comerciais ou financeiras, mas pré- capitalista - ou seja, ternos. Na verdade, como a apropriação colonial, a apropriação
especificamente colonial - quanto à taxa de exploração da mais- neocolonial deixava esses tipos humanos sem qualquer suporte
valia). Várias conseqiiências conhecidas poderiam ser arroladas. material ou polí tico de autodefesa e de auto-afirmação coletivas.
A importação de braceros (principalmente do Haiti e da Jamaica), Esse é um requisito tanto do sistema colonial quanto do sistema
o desemprego sistemá tico dos trabalhadores cubanos e o cons ¬ neocolonial de poder. Se não for observado, isso significa que tal
tante aumento do tiempo muerto . De outro lado, um n ível de vida sistema se enfraquece e desagrega, dando margem ao aparecimento
extremamente baixo, em crónico desafio aos m ínimos vitais (os de um Estado “ moderno” , soberano e independente. A diferen ça
“ mínimos da decência” só valem para as nações capitalistas ri¬ entre o colonial e o neocolonial está no fato de, no último, a domi¬
cas), o qual atestava que a carga pela reprodução social do traba ¬ nação ser indireta e descentralizada. O que envolve um terrível
lho recaía inteiramente sobre os trabalhadores. Se o trabalho exercício permanente de submissão induzida, de lealdades com ¬
livre fosse universal e a ordem capitalista valesse para todos - e, pradas, de corrupção política e de alienação moral. As classes
portanto, para o capital e para o trabalho - isso não sucederia. possuidoras nativas se “ voltam para fora” e, por aí, lideram a
As seqüelas se configuravam sob formas cruéis, descritas por “ americanização de Cuba” e perdem todas as oportunidades de
todos os estudiosos de Cuba: miséria, fome, doença, falta de ins ¬ usar o antiimperialismo sequer como arma de autodefesa econó ¬

trução etc. Não se tratava de um “ fenômeno incipiente” e tran ¬ mica, cultural e política. Ao mesmo tempo grassa nessas classes
sitório. Essa era uma das estruturas coloniais persistentes e ela um particularismo selvagem, quase de sobrevivência e certamen ¬
só seria eliminada depois de 1959. Os deserdados não se exclu íam te de compensação, pelo qual elas se divorciam da realidade nacio ¬
da ordem social neocolonial, eles eram excluídos. nal do mundo em que vivem, tornando-se assim títeres do poder
No outro extremo, estavam os que se apropriavam do exce¬ central, dos centros efetivos de decisão e dos “ chefes” nativos sal¬
dente económico gerado por essa forma neocolonial de repro ¬ vadores. [A esse respeito, seria conveniente estudar com cuidado
du ção ampliada de capital. A mentalidade de robber baron não alguns capí tulos de La republica, de J. le Riverend, esp. o cap. IX
era (nem podia ser) exclusiva dos estadunidenses e dos estran ¬ sobre o governo de Menocal; o cap. XIV, sobre o governo de Zapas;
geiros. Ela era universal e exigia certas práticas socioeconómicas os caps. XVII, XVIII e XIX, sobre a ditadura de Machado. Esse
ou políticas também universais. Contudo, o sistema de poder livro é fascinante, porque desvenda o que é a burguesia compra¬
neocolonial deslocava para fora os verdadeiros centros de deci- dora nos quadros históricos e políticos do neocolonialismo em
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

Cuba.] Sua debilidade, em termos de situação de interesses de motivos reais. Para o poder central, a “ violência funcional” pa ¬
classe, força-a a dissociar suas vantagens no desenvolvimento ca ¬ rava nos limites da preservação da ordem existente, com suas
pitalista neocolonial das vantagens que poderia ter com a consti ¬ estruturas coloniais. Seria disfuncional, por exemplo, acirrar o
tuição da nação e a autonomia do Estado. Por conseqiiência, ela ódio das massas inutilmente e abreviar, por aí, a desagregação
própria tece sua desdita, tornando-se ativamente funcional para a daquela ordem. A ausência de uma institucionalização do fluxo
dominação externa e estreitamente instrumental para a acelera ¬ das decisões e do comando, do poder central para o governo fun ¬
ção do desenvolvimento capitalista neocolonial. Ou seja, na lógi¬ dado na capitulação negociada, tornava essa exigência de eficá ¬
ca da dominação neocolonial, ela se encarrega de garantir os cia pol ítica inexeqiiível. As “ classes dominantes” nativas viam-se
requisitos políticos do neocolonialismo imperialista, pondo a ca ¬ sob sucessivos dilemas, pois não dispunham de um Estado que
pitulação negociada e a negação da revolução nacional a serviço lhes possibilitasse agir e tomar decisões que atendessem, simul ¬
do poder central, servindo de mediadora entre este e seu próprio taneamente, suas situações de interesses e as situações de inte¬
governo. resses do poder central. Acresce que a bipolarização mantinha
Esta reconstrução esquemática aponta para outro dado es ¬ aceso um vulcão político real (ainda que as potencialidades glo ¬
sencial. A sociedade neocolonial é fortemente bipolarizada (o bais de conflito não eclodissem todas de uma vez). Essa fragili ¬
que não exclui uma complexa e necessá ria diferenciação entre dade intrínseca do Estado cubano era um produto da fragilidade
os pólos fortes extremos. Carlos Rafael Rodriguez mostra, em intrínseca ao sistema de poder central, à burguesia compradora
função da revolu ção, os vá rios estratos das classes possuidoras e e à dominação neocolonial. Para superá-la e vencer a paralisação
despossuídas. Ver Cuba en el transito al socialismo - 1959-1963, relativa resultante seria necessá rio ou que o poder imperial avan ¬
pp. 30-45 ). A massa dos despossuídos, constitu ída em sua maior çasse até a incorporação de Cuba aos Estados Unidos como sua
parte de um proletariado rural, mantém- se em tensão perma ¬ própria entidade nacional ou que as “ classes dominantes nati ¬
nente com a ordem social neocolonial (substancialmente análo ¬ vas” avançassem até a revolu ção nacional. O compromisso entre
ga à tensão entre o escravo e a ordem escravista, embora as a tutela pragmática e a capitulação negociada entregava Cuba a
oportunidades de objetivação dos conflitos não sejam compará ¬ um impasse histórico. O centro imperial e as “ classes dominan ¬
veis ). Essa polariza ção define a subst â ncia de violê ncia tes nativas” podiam depenar Cuba a seu bel-prazer, sozinhos e
institucional intrínseca a essa ordem social, e os rumos violen ¬ em colaboração. Mas não podiam fazer mais que isso e, princi¬
tos da dominação neocolonial. Para preservar essa mesma or ¬ palmente, não tinham como organizar, económica, cultural e
dem, manter o controle conservador do governo e sabotar a politicamente, a transição da época colonial para o tipo de for ¬
revolução nacional, forjando os requisitos pol íticos do sistema mação societária nacional requerido pelo desenvolvimento ca ¬
de poder imperial, a minoria dos possuidores precisa oprimir e pitalista alcançado.
reprimir sem esmorecimento. O “ valor político que tal minoria Em conseqiiência, no período considerado Cuba teve de en ¬
poderia ter para o poder central tinha forçosamente de envolver frentar convulsões que deitavam raízes na tentativa de perpetuar
essa especialização, sob o pressuposto tácito de que a opressão e estruturas sociais de origem ou significado colonial, tanto quanto
a repressão deveriam dosar a “ violência necessária” sem dar de ¬ em inovações institucionais improvisadas, que só atendiam aos
masiada visibilidade à sua existência e, principalmente, aos seus interesses do centro imperial e das “ classes dominantes” . Ao
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA |

longo dos 57 anos, esse é um elemento crónico. Observa- se um cia estadunidense quanto a emancipação nacional de Cuba por
encadeamento multidirecional, recíproco e dialético entre cri¬ iniciativa de suas classes dominantes n ão tinham viabilidade
ses económicas, anomia social e violência política (e a correla ¬ dentro da ordem existente. Até essas soluções teriam de ir con¬
ção entre causas e efeitos, em cadeia, agravava ainda mais a tra a ordem, na hipó tese de que elas se configurassem historica ¬
situação, tornando-a insustentável, como descreve Fidel Castro mente, o que não ocorreu ( nem poderia ocorrer ).
em A História me absolverá ). O painel é simples. Sucessivas crises Tem- se falado sobre a “ imobilidade” da ordem social colo¬
econ ómicas, elas próprias fonte de especulação neocolonial den ¬ nial. Ora, a ordem social neocolonial padecia, em Cuba, de para ¬
tro e fora de Cuba, devastaram as forças produtivas e as riquezas lisia total. Não se trata de “ culpar os imperialistas” ou de
do país. Uma anomia social crónica, ela própria um ingrediente converter as “ elites cubanas” em bodes expiatórios. A descrição
indispensável para manter ou reforçar certas estruturas de ori ¬ feita acima sugere que não havia soluções dentro da ordem: a
gem colonial e para induzir apatia ou repulsa à vida cívica ativa sociedade neocolonial cubana era inexeqüível. Talvez, se o cen ¬
nas classes destitu ídas. Uma violência política enraizada, ela tro imperial fosse mais sensível ou se as “ classes dominantes
própria um jogo pendular, pelo qual o centro imperial e as “ clas ¬ nativas” demonstrassem maior firmeza, surgissem alternativas
ses dominantes nativas” podiam passar da conciliação (isto é, o históricas. Nesse caso, porém, a ruptura com a ordem neocolonial
abafamento negociado dos conflitos contra a ordem existente) teria de partir de um lado ou de outro. O fato é que nada disso se
para a ditadura (ou seja, o mesmo abafamento por meios extre ¬ deu e a sociedade neocolonial enfrentou, permanentemente, um
mos). O equilíbrio da sociedade neocolonial era inviável, já que impasse crónico insuperável. O desatamento desse nó acabou
não havia como vencer as tensões criadas pela bipolarização, o surgindo mas ele saiu de forças sociais que n ão estavam com ¬
desgaste produzido pela mencionada articulação recíproca en ¬
prometidas com a ordem neocolonial e, de forma aberta, como
tre crises económicas, anomia social e violência política, e as uma revolu ção dentro da ordem que gravitou rapidamente na
interfer ê ncias imprevisíveis do poder central. Nesse quadro glo ¬ direção oposta. Essa era a condição para liquidar um passado
bal, as crises económicas, a anomia social e a violência política colonial que se prolongou por tanto tempo e para construir em
imprimiam cará ter potencial explosivo às tensões criadas pela Cuba uma sociedade nacional viável.
bipolarização e uma intolerância extrema do grosso da popula ¬
ção diante das interferências do poder central. Nasciam, assim,
motivações coletivas que operavam como equivalentes do patrio ¬
tismo e do nacionalismo, malgrado tudo que se possa dizer de
negativo sobre a apatia política das massas e a falta de padrões
de cultura cívica. Além disso, o mesmo quadro global demons ¬
tra que a ordem neocolonial - como sucedera antes com a or ¬
dem colonial - não engendrara qualquer forma de revolu ção
dentro da ordem suscetível de originar soluções pacíficas para
os referidos dilemas e promover uma transição gradual para a
situação nacional. Na verdade, tanto a incorporação à democra-
A GUERRILHA E A
CONQUISTA DO PODER

O fascínio do estudo de Cuba está em que ela desmente todos


os dogmatismos possíveis, tanto os “ especificamente científicos”
quanto os “ puramente socialistas” . O dogmatismo, é certo, não passa
de uma simplificação, feita em nome do pensamento sobre a “ es¬
sência” , a “ verdade” o “ modo de ser” da realidade pensada. Feito
em termos científicos, o dogmatismo desloca a crítica das teorias
em favor da verdade absoluta; feito em termos socialistas, ele des¬
loca a crítica dos fatos em favor da ú nica escolha possível. Ora,
nenhum cientista social e nenhum socialista revolucionário pode¬
ria prever, ante eventu, a revolução cubana. Precisamos evocar isso
em nosso ponto de partida para não caminharmos do recente para
trás, como se a clareza que possuímos sobre muitos acontecimen ¬
tos e processos históricos fosse dada de antemão e não construída
ex post facto. Havia uma razão ideológica e política que iluminou a
visão prospectiva de alguns revolucionários e ela se mostrou, sob
muitos aspectos, correta. Ainda assim, só um homem, Fidel Cas¬
tro, chegou ao fundo dessa razão e hoje são evidentes as aproxima¬
ções e as incertezas que impregnaram suas lutas políticas. Diante
de algo tão grande e valioso como essa revolução recomenda-se,
pois, que se evitem as simplificações, para apanhá-la o mais possí-
{ vel em seu fluir, em sua totalidade e em sua beleza intrínseca.
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DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS

Fala- se na guerrilha como se ela tivesse sido um “ abre-te revolucionários cubanos avançaram sempre, ou para conseguir
Sésamo”. Ora,no que diz respeito à revolução socialista não exis ¬
êxito militar e político ou para garantir a continuidade da revo ¬

tem fórmulas mágicas nem saí das fá ceis, e, muito menos


lução.
determinismos inevitáveis. Em uma situação revolucionária tudo Portanto, se não quisermos reduzir a realidade em nome da
é possível, inclusive a vitória da revolução. Se essa revolução for dialética temos de aprender a conviver com a grandeza incomum
socialista, ela libera os seres humanos e suas capacidades cria ¬
dessa revolução, com sua beleza íntima e exterior - e tamb ém
doras. A revolução crescer á como revolução na medida em que com sua ingenuidade perene. A situação revolucionária existia
o socialismo for sendo criado. Não poderia ser de outra maneira de fato (ela não foi induzida ou inventada: vinha do início do
(e note- se: a criação de uma base material adequada faz parte da século, agravando - se sem cessar). Mas, como os contra-revolu ¬

atividade construtiva dos seres humanos empenhados coletiva ¬


cionários, os revolucionários careciam de meios institucionais e
mente na produção social do homem socialista, da sociedade tiveram de descobrir pela experiência até onde ir, onde teriam
socialista e da civilização socialista). de chegar, independentemente de dogmas e de fórmulas. Como
Se se observa com cuidado a atividade dos principais lí deres não suscitaram e nem mesmo tiveram um papel direto maior na
da revolução cubana e os vários aspectos centrais da situação criação da situação revolucionária, também não determinaram
revolucionária de que ela nasceu, o que sobe à tona e se impõe nem escolheram quantas revoluções sucessivas deveriam enfren ¬

sobre tudo o mais são palavras simples, como compaixão, hu ¬


tar, e está acima de dúvida que os limites à revolução, nascidos

mildade, integridade, fraternidade, repulsa, trabalho, prudên ¬


objetivamente, chocaram- se com seu idealismo revolucionário
cia, tenacidade, paciência, abnegação, ousadia, cavalheirismo. tanto quanto com sua generosidade e sede de justiça. O seu mé ¬

Eles não eram “ revolucionários profissionais”, mas “ amantes rito e o seu talento residem no fato de haverem perseverado e
da revolução” por necessidade, que foram socializados politica ¬ I levado a revolução até o fim. As várias revoluções frustradas e
mente graç as e através dos embates com a situação revolucioná ¬
latentes vieram à luz do dia e, ao cabo, a transição para o socia ¬

ria. O seu discernimento (com sua lógica política) não era lismo corporificou- se e revelou- se por inteiro como solução viá ¬

partidário, exclusivista, o que permitiu que avançassem aos pou ¬


vel e necessária.
cos e soubessem aproveitar as oportunidades, espontâneas ou Se devemos operar com a totalidade, ela está aí, nos vários
provocadas. Todo socialismo deve ser experimental. Não aspectos que se voltam para 0 passado (remoto e recente), para 0

obstante, entre as grandes revoluções proletárias do século 20, é presente e para o futuro, e que se ligam entre si de modo

a revolução cubana que apresenta essa face como a mais saliente inextricável. Não é possível dar conta de tudo (nem isso seria de ¬

e característica. Por isso, ela é a mais simples, a mais imprevisível sejável). A tarefa que se define a esta unidade de trabalho didático
e também a mais tocante, pois brota de dentro do homem para é clara: como se passa de maneira tão r ápida da pré-história à
fora, dos sentimentos e aspirações mais profundos dos humil ¬
história de Cuba. A essência da revolução cubana não est á em ter
des e dos condenados da terra. O severo travejamento racional, desatado o nó górdio do neocolonialismo e da dominação imperia ¬

que atravessa todas as correntes do socialismo europeu - e de ¬


lista, mas na construção de um caminho socialista para 0 futuro.
pois atinge os revolucionários russos e chineses - constitui um Essa Cuba socialista será sondada adiante. Aqui, avançando aos
florescimento tardio (ou uma imposição), na direção da qual os poucos, temos de concentrar-nos em um assunto candente: sem a
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA
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guerrilha não haveria nem conquista do poder nem transição para i - Por que Cuba?
o socialismo. O debate sobre a “ teoria do foco” não nos interessa. Para muitos, é um enigma que a revolu ção, que iria abrir pelo
Inclusive, n ão vamos examinar a guerrilha por dentro, em seus meio a história das Américas, tenha ocorrido em Cuba. Por que
aspectos propriamente militares. Isso já foi feito por quem de di ¬ Cuba? Poderíamos seguir em frente, desdenhando esse debate,
reito (como Ernesto Che Guevara ou Fidel Castro). Em nossa dis ¬ no fundo ingénuo. Proceder desse modo seria ignorar, porém, que
cussão, ganham precedência : a constituição de uma situação a revolução cubana transcende a Cuba e ao Caribe: ela coloca as
revolucioná ria, que converteu a guerrilha no meio cubano de che¬ Américas no próprio circuito de formação, difusão e expansão de
gar ao socialismo; e a guerrilha que permitiu, a um tempo, desa ¬ um novo tipo de civilização. Representa, para todas as Américas,
gregar a capacidade de resistência da tirania burguesa e neutralizar a conquista de um patamar histórico -cultural que parecia nebu ¬
a dominação imperialista dos Estados Unidos. Segundo a nature ¬ loso ou improvável e, para a América Latina, em particular, a evi¬
za do assunto, esta unidade didá tica ser á devotada: 1. ao resumo dência de que existem alternativas socialistas para a construção
dos argumentos sociológicos que nos esclarecem quanto ao tema de uma sociedade nova no Novo Mundo. Apanhar o tema por
“ Por que Cuba ?” ( uma revolução de tal magnitude n ão ocorreu, aqui implica, sem d ú vida, uma deflexão. N ão há nada de mal em
apesar de tudo, nos países tidos como os mais avan çados da Amé¬ aceitá-la, desde que se mantenha presente a idéia de que seme¬
rica Latina); 2. ao balanço das razões que converteram a guerrilha lhante discussão é preliminar ( ela não explica a revolução cuba ¬

no “ braço político” de uma revolução que derrota, simultanea¬ na ). N ã o devemos, sob qualquer hipó tese, atar Cuba aos que
mente, vários inimigos internos e externos e impõe a pergunta ficaram para trás e o que há de mais importante a conhecer tem de
“ Por que a guerrilha ?” ; 3. e a uma ú ltima análise - por que os ser visto por Cuba e através de Cuba. Portanto, à presente discus¬
guerrilheiros n ão traíram, por que romperam com uma “ tradição são cabem dois temas. Primeiro, sem pretender levar a análise
política” cubana, a de traficar com o imperialismo e com o poder? muito longe ou mais a fundo, como entender-se o “ salto revolucio ¬
Não se trata de endeusar alguns homens, identificados como guer ¬ ná rio” cubano ? Segundo, como se constitui e evolui (quanto a
rilheiros, tampouco de reduzir a revolu ção, em seus vários mo¬ certos aspectos essenciais para o entendimento do presente) a si¬
mentos, à guerrilha. A guerrilha foi um mero instrumento e seria tua ção revolucion á ria que levaria ao socialismo ? Vejam bem,
preciso que não se perdesse de vista que mesmo a luta armada precisamos fugir ao europeucentrismo e à poluição cultural esta¬
ultrapassou a guerrilha, logo transformada em apêndice ou técni¬ dunidense. As nações capitalistas industrializadas e “ adiantadas”
ca suplementar da guerra de movimento. Ela é essencial porque bloqueiam o avan ço do socialismo: uma via democrá tica, que
representou algo parecido com o que foram os partidos socialistas impede a revolu ção, ou uma via revolucioná ria, que conduzirá à
revolucionários em outros países. Ela plasmou a mentalidade re ¬ democracia socialista ? Esse é o dilema e a experiência cubana nos
volucionária e educou os guerrilheiros para a a ção pol í tica revo¬
leva à essência desse questionamento.
lucion á ria, estabelecendo os marcos que separariam a “ sua” N ão se poderia falar num elemento diferencial decisivo.
revolução das outras. A guerrilha como entidade rom ântica e o Contudo, conjecturas ou presun ções comparativas permitem
guerrilheiro como homem providencial são mitos. Em um estu ¬
salientar que o teor do nacionalismo cubano e as peculiaridades
do histórico -sociológico mais amplo isso deveria ser tomado em da revolução nacional em Cuba permitem entender e, até certo
conta. O que é dispensável neste curso elementar. ponto, explicar o mencionado salto. Trata- se de um bom â ngulo
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

de observação e de análise, porque tanto o nacionalismo quanto dominação estadunidense. Embora os intelectuais tivessem um
o cl ímax da revolução nacional têm de ser pensados à luz da papel enorme na formulação política dos vários projetos nacio ¬
interação entre estruturas em mudança e história da sociedade nalistas sucessivos, eles não passavam de porta-vozes (e, por ve ¬
global, envolvendo também fatores psicológicos e polí ticos que zes, de líderes) de sentimentos e ideais nacionalistas profundos,
operam em continuidade e em profundidade. Uma conseqiiên- sofridos e exaltados, compartilhados de forma vertical pelos se ¬

cia, que precisa ser mencionada: dessa perspectiva, a revolução tores mobilizados pela militância nacionalista. Ocorre, assim,
cubana é representada em estreita conformidade com as identi ¬ um desenvolvimento do nacionalismo de baixo para cima, sob
ficações ideol ógicas e as polarizações utópicas do movimento uma constante fermentação política radical-nacional, que osci¬
castrista, como ele se delineia na época de sua estruturação e lava nos momentos de maior tensão económica, social e políti ¬
desencadeamento. ca. Acresce que todos os conflitos, entre estamentos, primeiro, e
Já foi acentuado que a frustração da emancipação nacional entre classes, depois, tinham de passar pelo crivo desse naciona ¬
apenas reformulou, aprofundou e transferiu para diante as fun ¬
lismo militante e de sua alta fermentação política. Ele foi
ções históricas desagregadoras e construtivas da revolução nacio¬ paralizado ou neutralizado pela ordem social colonial e, por pou ¬
nal. Um dos efeitos mais importantes desse processo aparece no co mais de meio século, pela ordem social neocolonial. O que
tipo de nacionalismo que se constitui em Cuba, ao longo de uma não impediu que ele crescesse, amadurecesse e acabasse por ex¬
evolu ção secular. Em outros países, sentimentos e ideais nacio ¬ primir um corte vertical de uma sociedade lançada com todo o
nalistas foram decepados da idéia de nação, pois o que se definiu vigor na aspiração de tornar- se uma nação-livre, independente,
como “ nação” era uma projeção liberal dos interesses e dos va ¬ senhora de seu destino histórico e de sua soberania política. Em
lores conservantistas dos estamentos privilegiados (que, de fato, suma, um nacionalismo puro, de apóstolos (lembrem -se da re ¬

não realizaram um movimento nacional e limitaram-se a criar presentação normal e do culto a José Martí), que se insurgia con ¬
um Estado oligá rquico, de substituição da Coroa e do governo tra a capitulação negociada dos estratos dominantes da burguesia
colonial). Tudo isso vinha antes do aparecimento de burguesias e contra a intromissão sistemá tica do imperialismo. Nas déca ¬
mais ou menos consolidadas e, portanto, estava-se muito longe das de 1930 e 1950 esse nacionalismo ressurgiria em um clímax
das funções que o nacionalismo representou, no desenvolvimento histórico, batendo-se aguerridamente contra esses dois pólos
capitalista, como fator de unificação política e de hegemonia simultâneos, em um clima político suscet ível de elevar ao máxi ¬
social de classe. Em Cuba, mesmo os rudimentos dessa transfor ¬ mo sua eficácia ideológica e utópica. Dada a penetração imperia ¬
mação não se produziram historicamente e o nacionalismo con - lista na dominação burguesa, a compulsã o contra a ordem
finou-se aos setores mais radicais das várias camadas sociais da neocolonial abrange componentes radical-burgueses, que pode¬
população. Ele cresceu não a partir da dominação económica, riam conter a revolu ção nacional sob o capitalismo, e compo ¬
social e política dos estratos conservadores freqüentemente alia ¬ nentes estritamente anticapitalistas, que tenderiam a levar a
dos aos controles externos e à pró pria repressão antinacionalista, revolução nacional até ao fundo. Na luta contra Batista esses
mas da confluência de várias forças sociais divergentes, empe ¬
dois componentes se mesclaram e ativaram- se mutuamente.
nhadas na liberação nacional, no combate ao governo colonial e Depois do êxito do exército rebelde, os segundos componentes
à dominação espanhola ou nas lutas contra o imperialismo e a se impuseram e cresceram rapidamente, mostrando a verdadei-
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REVOLUÇÃ O |
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A CUBANA

ra face revolucioná ria do nacionalismo cubano. Nenhum país ção, em nome dos quais se pronunciavam para defender interes ¬
em todas as Américas chegou a elaborar um nacionalismo desse ses particularistas e ultraparticularistas, todos entranhadamen -
tipo, que pudesse encadear-se quer a uma vit ória burguesa, com te antinacionais ou extranacionais ). Ao retardar - se, a revolu ção
a integração nacional que daí poderia resultar, quer a uma vitó ¬ nacional em Cuba fugiu a esse circuito nefasto. A tutela conser ¬
ria das massas e do proletariado, com a liberação nacional con - vadora e reacionária impediu ou freou a desagregação da ordem
seqüente e a transição para o socialismo. Nas fases decisivas da colonial e impôs uma ordem neocolonial que tornava a idéia e a
desagregação da ordem social neocolonial, esse nacionalismo realidade da nação inviáveis. Todavia, quando o fluxo da revolu ¬
libertário teve uma enorme importância dinâ mica na mobilização çã o nacional cresce até um nível de ebuliçã o irredut ível e
das massas e na implantação do poder popular. indestrut ível, nas lutas contra a ditadura de Machado, ou seja,
A revolução nacional, como processo hist órico e como trans ¬ da década de 1930 em diante, essa tutela não tinha como impor-
formação política, contém duas peculiaridades centrais no caso se. Ela se fragmentara, despojando as classes burguesas de uma
cubano. Uma diferença relaciona-se com elementos t ípicos dis ¬ posição estratégica no controle pol ítico e policial- militar do
tintos vinculados à altera ção do contexto hist ó rico -social ( algo movimento nacionalista. Tudo isso iria agravar- se em seguida,
inevitável: não só se passa do século 19 para o século 20; a cone ¬ pois o antiimperialismo e o antagonismo provocado pela dita ¬
xão entre capitalismo, contenção da descolonização e uma do ¬ dura de Batista converteu a revolução nacional em uma autênti ¬
mina ção externa que se torna imperialista particulariza meio ca cruzada (no que se poderia chamar de uma revolu ção dos
século de evolu ção histó rico - social ). Outra diferença relaciona ¬ povos, de todas as classes, contra a ordem social vigente - por ¬
se, especificamente, com o conte ú do de classe (e n ão, apenas, tanto, com base de unificação nos interesses e valores sociais
com o conte ú do social) da revolu ção nacional em Cuba. Esta comuns a todas as classes ). A idéia de nação corporifica-se, pois,
eclode e vence tardiamente, mas não em atraso: no fluxo de uma nesse contexto histó rico-social como uma concreção que deve¬
transformação profunda da sociedade cubana, ela teria de refle ¬ ria atender também as classes possuidoras e a seus estratos do ¬
tir - e a elas dar predominâ ncia - as for ças sociais revolucion árias minantes como à s classes trabalhadoras e aos estratos mais
do século 20 (e não às que poderiam ser revolucion á rias por oca ¬ humildes.
sião da “ guerra dos dez anos” ou da “ revolução de 1895” ). A essa diferença de contexto histórico- social corresponde,
A regra, na América Latina ( não nos Estados Unidos; mas naturalmente, uma diferença de conteúdo de classe da revolu ¬
também no Canadá), consiste em que as revoluções “ nacionais” çã o nacional. Nas condições particulares da luta contra o impe ¬

vitoriosas eram lideradas e freadas pelos estamentos privilegia ¬ rialismo e as ditaduras de Machado ou de Batista, a tendência a
dos dominantes. Na verdade, a revolu çã o nacional significava, privilegiar os interesses e os valores sociais comuns era modera ¬

como ponto de partida, uma nativização dos controles econ ómi ¬ da e burguesa. Essa tendência estava em atrito com forças sociais
cos, sociais e pol í ticos - inclusive no n í vel do poder político - ultranacionalistas (de “ direita” e de “ esquerda” , em termos re ¬
estatal: surgiu um Estado desp ó tico, menos “ nacional” que lativos: pensando - se no ultranacionalismo dos donos; e no
estamental, oligá rquico, escravista ( em muitos casos ) e nacionalismo libert á rio inerente ao movimento estudantil, ao
antipopular (sua órbita democr á tica era restrita e só possu ía ple ¬ sindicalismo ou ao socialismo das classes trabalhadoras). E, o
na eficácia para os estamentos que se viam como o povo e a na- que é mais importante, ela também estava sendo deslocada pela
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

tendência alternativa, pois o próprio centro de gravidade da re¬


ticamente na década de 1950 e denunciado de modo tão vivo por
volução nacional passara, gradativamente, do topo para a base
Fidel Castro. Para que a burguesia pudesse impor uma revolu ¬

da sociedade. O nacionalismo militante extremado, puritano e


ção contra a ordem através do capitalismo seria necessário que
revolucionário caíra nas mãos dos jovens radicais, de certos es ¬
ela preservasse suas posições estratégicas de dominação de clas ¬

tratos das classes médias e da pequena burguesia e, principal ¬


se. A plebe não tinha vínculos fundamentais com a ordem social
mente, do proletariado rural e urbano. Se já era impraticável
competitiva e a aceleração da revolução nacional levou-a à con ¬
conter a revolução nacional dentro da ordem (como conciliá-la
quista de uma nova composição, da qual resultaria a hegemonia
com a ordem social neocolonial?), esse deslocamento do centro
de classe dos trabalhadores. Pela primeira vez, na história da
de gravidade pressupunha que os limites da revolução contra a
Am é rica Latina, uma revolução nacional deixaria de dissociar o
ordem iriam nascer da prá tica política e da luta militar ( não do
elemento nacional do elemento democrá tico, e ao vencer, a idéia
nacionalismo, em si mesmo, nem das ideologias e utopias das de nação arrasta com ela a construção de uma ordem social in ¬
classes em conflito). Por essa razão, à medida que a relação de
teiramente nova e socialista.
forças decide que o que deveria prevalecer eram os interesses e
É arriscado tentar uma interpretação sociológica global da
os valores das massas populares (isto é, das classes trabalhado¬
revolução cubana. Não porque ela esteja muito perto. Mas, por¬
ras), a revolu ção nacional irá deslocar - se no sentido de cor ¬ que a investigação sociológica da sociedade neocolonial ainda é
responder, estrutural e dinamicamente, ao seu novo eixo
insuficiente. Há, além disso, a desvantagem de algumas das me¬
gravitacional. Esse impulso se devia à necessidade de extirpar o
lhores descrições e interpretações terem absorvido demais mode¬
neocolonialismo em todos os níveis (o da dominação imperia ¬ los ou pressupostos do desenvolvimento capitalista autónomo, o
lista e o das classes burguesas cubanas). Porém, ao ir tão longe e que coloca a perspectiva de interpretação que perfilho, mais rigo ¬
tão fundo, ele desprende a revolução nacional do “ idealismo
rosa quanto à especificidade da situação concreta, sob suspeita de
burgu ês” , do liberalismo, da democracia constitucional e repre¬
parcialidade. Apesar de tudo - partindo dessa perspectiva e to ¬
sentativa. E inverte a tendência predominante no século 19: o
mando em conta o fim desse período, que vai da década de 1930
conteú do de classe da revolu ção nacional viria de baixo para
ao primeiro ano da década de 1960 - gostaria de, buscando a “ uni¬
cima, ou seja, das massas populares, dos humildes e explorados,
dade no diverso” , dar um balanço na superposição, desencontros
dos setores organizados das classes trabalhadoras.
e interpenetração de alterações estruturais (aqui descritas em ter¬
Em conseqiiência, a revolução nacional deixa de ser uma mos da passagem da ordem social neocolonial para uma nova or¬
revolução puramente política (de constru ção de um aparelho de
dem social competitiva, que estava em processo mas acabou
dominação estatal “ soberano” , nacional e “ independente” ). Ela esboroando-se) e de transformações históricas (aqui focalizadas
se dissocia - depois que os guerrilheiros dividiram o poder com em termos da atuação de personalidades, grupos e correntes polí¬
setores radicais da burguesia -, segundo ritmos crescentes e rá ¬
ticas, que mudaram o curso daquele processo e criaram uma alter ¬
pidos, da impregnação burguesa de defesa e consolidação de uma
nativa não prevista para o desfecho das lutas contra a tirania e o
tão almejada ordem social competitiva. A experiência histórica imperialismo e pela autonomia nacional). Sem dúvida, as altera¬
com a ordem social competitiva fora catastrófica: levara Cuba
ções estruturais também são história (história em profundidade e
ao impasse económico, social e político que se configura drama- de longa duração); e as transformações históricas, quando afetam
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

o comportamento coletivo e o “ destino” de uma sociedade nacio¬ dura Machado - sublinha algo evidente: tanto no nível da bur¬
nal, também sã o estruturais (as estruturas em emergência e em guesia quanto no nível do operariado, estabeleceram-se contradi¬
formação, que, no caso cubano, revelam uma guinada por causa ções insan á veis ( que iriam agravar- se incessantemente, em
da “ revolução na revolu ção” : o salto do capitalismo ao socialis ¬
seguida) com o modelo neocolonial de desenvolvimento capita ¬

mo). A importâ ncia de manter as distinções aparece no nível da lista. Este modelo se esgotara e, na medida em que se perpetuava,
considera ção do objeto - o grau de consciê ncia racional ou objeti ¬ pela pressã o imperialista, pela resistência à mudança das classes
va alcançada pelos indivíduos, grupos ou classes sociais em con ¬ privilegiadas ou pela reprodução estática da ordem (uma força de
flito dos processos em curso; e, suplementarmente, no n ível da “ inércia” muito forte em situações neocoloniais prolongadas ou
interpreta çã o. Se não recorrermos ao plano mais profundo, para ¬ permanentes), criava uma espécie de hiato histórico (a vigência
doxalmente, seremos incapazes de entender a situação revolucio ¬ sem eficácia da ordem neocolonial, que deveria desaparecer mas
nária que se formou dentro da ordem social neocolonial e serviu sobrevivia em contraposição à necessidade de uma ordem social
como uma espécie de escada rolante da verdadeira revolução, que mais complexa, a ordem social competitiva, parcialmente presen ¬

estava encubada nos fatos e na consciência social mas que só se te em muitas relações de produção ou de mercado, mas que não
revelou plenamente a partir dos avanços históricos que ocorre¬ podia crescer e universalizar -se). Tudo isso dava uma id éia falsa
ram at é a constituição do governo Urrutia e sua queda. de desordem institucionalizada ou de um caos invencível. O que
Uma coisa se poderia dizer: a forma de produ ção capitalista, havia, de fato, era uma extrema dura çã o e um extremo
com seu padrão de composição da população, a expansão relativa aprofundamento da desordem transitória, intrí nseca à mudança
do regime de classes e seus requisitos políticos, havia ido longe social progressiva ( na linguagem de muitos autores, a chamada
demais para caber nos quadros da ordem social neocolonial. Esta, “ mudança estrutural ” ). Nenhuma sociedade pode suportar essa
depois das crises das d écadas de 1920 e 1930 e, principalmente, da situação sem comoções internas graves e uma aparência de “ ca ¬
recuperação dos níveis alcan çados pelas forças produtivas, con- tástrofe final” . Uma ordem social demasiado d ébil para controlar
vertera-se em verdadeira camisa- de-força para o desenvolvimen ¬ as crises económicas, a anomia social e a violência política, tão
to capitalista. Toda a celeuma causada pela “ desorganização” da rica de artifícios para explorar todas elas e por isso para agravá-las
economia ou o “ caos” da sociedade deveria ser vista através deste normalmente, ao desagregar-se as expunha a um ciclo paroxísmico.
prisma. Forças económicas, sociais e políticas não encontravam Meu convite, pois, é para que se repense o dilema da transição da
vias de expressão e regulamentação - o que K. Mannheim formu ¬ ordem social neocolonial para a ordem social competitiva. N ão
lava como disciplinação e estruturação; mesmo que o capitalismo era só o centro imperialista que “ brecava o carro” . As classes bur ¬
se preservasse, as forças emergentes exigiam o espa ço nacional de guesas não tinham como trocar as marchas, primeiro, e como
que eram privadas ( ou seja, em outras palavras : a ordem deslanchar, depois; a camisa- de-for ça da ordem social neocolonial
neocolonial bloqueava as referidas for ças, impedindo que dela as tolhia, enquanto toda a sociedade era sacudida de alto a baixo
própria nascesse, espont â nea e naturalmente, uma ordem social pelas for ç as que nasciam de seu crescimento econ ó mico,
competitiva suficientemente diferençada, integrada e dinâ mica demográfico e cultural. Por conseguinte, a emergência da ordem
para responder “ às exigências da situa ção” ). Portanto, a vitalida ¬ social competitiva encontrava entraves onde deveria achar estí ¬
de dessas forças - já nas condições que marcam a queda da dita- mulos e as classes dominantes - internas e externas - passaram a
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA |

agir contra si próprias e suas situações de interesses, pensando o eixo de gravitação dessa situação revolucionária da transfor ¬
que defendiam o “ desenvolvimento capitalista” . Em suma, aí se mação capitalista inviável para a construção de uma ordem social
configura plenamente uma situação revolucioná ria explosiva. Uma que rompia em todos os pontos com o passado e com o presente,
situação revolucionária que não precisaria se agravar se pudesse convertendo a liberação nacional, o antiimperialismo e a revo ¬
resolver-se por meio de uma revolução dentro da ordem (ou seja, lução democrá tica na espinha dorsal do nascimento de novas
como uma transformação capitalista dentro da transformação ca¬ formas sociais de produ ção, de organização da sociedade e de
pitalista, pela absorção de estruturas e funções coloniais pelo ele¬ ordenamento do Estado. Ao ativar-se, em suma, a descolonização
mento dinâ mico nacional). Essa história não estava ao alcance de rompeu com o que se tornara uma camisa- de-força capitalista e
Cuba (embora ela se tenha repetido em tantos lugares). E uma imprimiu à situação revolucionária os ritmos e os alvos das re ¬

situação revolucionária, de origem tão rudimentar - uma exigên ¬ voluções proletá rias do século 20.
cia do capitalismo - serviu para acionar uma transformação que Para esclarecer esse quadro global é necessário tomar-se em
levou a descolonização até o fundo e até o fim (e poderia comple- consideração alguns aspectos centrais das relações e conflitos de
tar-se a revolução dentro da ordem de outra maneira ?). classes. De um lado, como estas relações e conflitos refletiam-se
A situação revolucionária apontada já estava montada, com na composição e funcionamento da dominação burguesa. De ou ¬

todos os elementos estruturais e dinâ micos que a tornaram tro, como e por que a oposição a ordem neocolonial atingiu as
cíclica, durante a derrubada de Machado e nas tentativas subse- proporções de uma revolução social, malgrado as inconsistências
qiientes de reconstrução, que falharam de modo completo. Por e as debilidades do regime de classes (e talvez por isso mesmo,
aí se tem o percurso histórico do crescimento latente dessa situa ¬ pois se ele estivesse mais consolidado as saídas contra a ordem
ção, até ao seu clímax e desenlace na década de 1950. O que deve existente encontrariam outros obstáculos e dificuldades, inclusi ¬

interessar-nos, aqui, são os aspectos vinculados às relações e con ¬ ve no nível da ligação das massas populares e das classes trabalha
¬

flitos de classes, que permitem entender, de um lado, por que a doras com vá rias modalidades conhecidas de emburguesamento).
transição da ordem social neocolonial para a ordem social com ¬ No plano da dominação burguesa operavam três elementos
petitiva era impossível e, de outro, por que a própria situa ¬ contraditórios. Primeiro, o elemento hegemónico, intrínseco aos
ção revolucionária foi conduzida à solução do impasse pela guerra interesses estadunidenses e ao imperialismo. Apesar das diver ¬
civil. De uma perspectiva histórica externa e superficial, toda gências setoriais e malgrado certas mudan ças ocorridas no con ¬
essa evolu ção pode ser ignorada. A luta contra Batista ganha o trole económico, com o aparecimento de novas áreas de investi ¬

centro do palco e a derrota do imperialismo aparece como uma mento e de produ ção industrial, o imperialismo continha a
conseqiiência. No entanto, se se vai ao fundo das contradições impulsã o estadunidense de modernizar Cuba nos limites
que trabalharam (ou movimentaram ) aquela situação revolucio ¬ neocoloniais. Foram feitas concessões, como a extinção da Emen ¬
nária, descobre-se: 1. que sua razão de ser não era a “ impotência da Platt (em 1934) ou as recomposições surgidas nos negócios
da burguesia” , mas a inviabilidade, nas condições cubanas, da do açúcar. Mas, o esquema de intromissão sistemá tica e univer ¬
ordem social neocolonial e a impossibilidade de conseguir-se, sal conservou-se intacto, tanto no nível económico quanto nos
dentro dela, uma transformação capitalista do capitalismo exis ¬ níveis cultural e político. Portanto, esse pólo poderoso, por sua
tente; 2. que os processos históricos iriam deslocar rapidamente importância decisiva nas entradas de capitais, na transferência
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA I

de tecnologia e nos fluxos do crescimento capitalista, constitu ía de bloco” , o que redundou na perda da oportunidade histó rica
o fator dinâ mico do impasse, pois era ele que impedia, de fato, o que se abria, embora debilmente, à burguesia cubana. Tercei ¬
colapso da ordem social neocolonial e sufocava as potencialidades ro, toda a massa de interesses capitalistas cubanos, repartidos
de expansão da ordem social competitiva em Cuba (a qual re¬ pelos vá rios setores da economia e da sociedade, que oscilava
queria uma “ revolu ção dentro da ordem” temida e bloqueada, entre uma forte propensã o pró -imperialista e um retraimento
sobretudo, a partir de fora ). Ao contrá rio da Espanha, os Esta ¬ autoprotetor. Esse era o pólo mais odiado pelos revolucion á rios,
dos Unidos n ão cederam terreno e mantiveram sua posição de qualquer que fosse sua identifica ção ideológica ou seu fervor
poder de modo determinado ( e mesmo com evidente miopia nacionalista . Nele imperavam a corrup çã o sem mistérios, o
política). Segundo, os interesses capitalistas “ locais” ( ou inter¬
oportunismo reacion á rio, a indiferença perante a situação de
nos ) que, de maneira alegórica, se poderia dizer estarem envol ¬ calamidade nacional de Cuba, um conservantismo cego etc.
vidos na cubanização do desenvolvimento capitalista. Esse pólo Contudo, por efeito de uma gravitação passiva, nele também
detinha um poder econó mico e social consider á vel, pois abran ¬
contavam os que possu íam um espí rito capitalista fraco ou apá ¬
gia vários tipos de negócios (entre os quais estavam os de dois tico (confiavam tã o pouco em uma poss í vel cubanização do de ¬
setores relativamente atuantes, como os hacendados empenha ¬ senvolvimento capitalista que preferiam bloquear quase 500
dos na recupera ção dos engenhos, e os colonos ). Ele sofria, n ã o milhões de d ólares, entre investimentos nos Estados Unidos e
obstante, uma dupla paralisia. De um lado, estava dividido diante o entesouramento). Podiam ver “ com simpatia” as irradiações
do imperialismo e quanto ao calibre revolucion á rio do movi ¬
do nacionalismo e a causa da democracia, mas omitiam- se e
mento nacionalista. De outro, n ão possu ía uma base material e refor çavam, indiretamente, o que restara da burguesia com ¬

social bastante forte para extinguir a safra de governos ditatoriais pradora .


e corruptos t ípica da agonia da “ Republica intervenida” . Na hi ¬ Esse apanhado geral indica duas coisas. A dominaçã o bur ¬
pótese de um longo período de estabilidade económica, social e guesa estava cindida, em termos estruturais. O imperialismo
pol í tica, poderia avan çar por dentro, logrando a cubaniza çã o n ã o era somente um “ tema pol ítico” . Ele definia a orienta ção
paulatina do desenvolvimento capitalista (comandando o cres ¬ da domina ção burguesa e constitu ía seu centro de gravidade,
cimento da ordem social competitiva). Criou- se, pois, um círculo n ão a partir de fora, mas a partir de dentro, de onde bloqueava
vicioso : esse pólo carecia de que o desenvolvimento capitalista a iniciativa das classes possuidoras, principalmente no n í vel
refor çasse sua posição e, na verdade, sua maior autonomia rela ¬ de seus estratos dominantes. Por aí, a liquidaçã o do status quo
tiva constitu ía um pr é- requisito para a cubanização do desen ¬ tornava - se imposs í vel e o desenvolvimento capitalista ficava
volvimento capitalista. O estancamento econó mico e a instabi ¬ imantado às condições neocoloniais, que precisavam ser supe ¬
lidade social cortaram esse caminho pela raiz, deslocando a órbita radas e destru ídas pelas classes burguesas. A ordem social, que
do movimento nacionalista para fora do campo das “ forças da deixara de responder à s exigências da situa ção histó rica, era
ordem” . Esse p ólo não foi neutralizado, mas perdeu poder real e preservada em detrimento de Cuba como um todo e à revelia
só concorreu ativamente para a desestabilização do regime vi ¬ dos setores da burguesia cubana que poderiam liderar uma
gente por meio de alguns de seus setores mais radicais e nacio ¬ implantação mais rá pida da cubanização do desenvolvimento
nalistas. Faltou -lhe o que se poderia descrever como “ movimento capitalista . Al é m disso, a dominaçã o burguesa também estava
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBA »» I

cindida em termos das situações de interesses e de valores das No plano da oposição havia uma fragmentação histórico-so ¬
próprias classes burguesas cubanas. Ela n ão possu ía nem uni ¬ cial e política simétrica. Os elementos que saíam das classes pos ¬
dade nem firmeza e eficácia - o que retirava das classes possui ¬ suidoras - de seus estratos altos, médios e baixos - achavam- se
doras e de seus estratos dominantes a possibilidade de se verem divididos por interesses, valores e opções ideológicas ou políti¬
convertidos em n ú cleo din â mico de desagregação da ordem cas. Nesses setores, 0 patriotismo radical dos colonos, por exem ¬
social neocolonial e de aceleração do crescimento interno da plo, só tinha em comum com o nacionalismo das correntes
ordem social competitiva. Este processo se desenrolava e se socialistas ou ultra- radicais o élan independentista do anti ¬
acelerava, portanto, por cima e contra o que poderia desejar ou imperialismo. O que os colonos pretendiam era uma espécie de
preferir a burguesia nacional. Existia uma oportunidade his¬ purificação da ordem, como paladinos mais extremados da con ¬
t órica concreta ( inclusive em termos de autodefesa e de “ exi ¬ solidação da ordem social competitiva (em suma, queriam todas
gências da situa ção ” , pois desde a derrubada da ditadura as vantagens do desenvolvimento capitalista, sem a presença
Machado a instabilidade política passara a minar as bases eco ¬ asfixiante e os entraves dos estadunidenses). As correntes socia ¬
nómicas de dominação de classe da burguesia ). Essa oportuni ¬ listas e ultra-radicais traziam, pela juventude universitária, os
dade, porém, n ão podia ser aproveitada pela burguesia, o que intelectuais ou a esquerda católica, 0 sopro mais profundo e puro
suscita não a questão da “ impotência da burguesia cubana” mas da utopia nacionalista. No entanto, seus comoventes sacrifícios
a de saber: para que classes ou setores de classes surgira aquela não as retirava de um isolamento relativo desesperador, que as
oportunidade histórica? As classes burguesas deveriam des¬ conduzia à revolta moral e ao extremismo, divorciando-as cada
prender- se e opor-se violentamente às condições neocoloniais vez mais da situação revolucionária de que emergiam e de sua
do desenvolvimento capitalista, à frente de uma revolução po ¬ própria condição burguesa. Por sua vez, os movimentos de mas ¬
lítica contra a ordem existente. Não realizando essa transfor ¬ sa vinculavam - se às classes trabalhadoras e retiravam sua dinâ ¬
ma çã o, elas continuaram a ser as classes burguesas que mica dos processos estruturais mais profundos, pelos quais as
construíram e mantiveram o neocoloniaíismo com suas pró ¬ greves, a luta por liberdade, pela democracia, e por condições de
prias mãos. Como poderiam surgir e atuar como classes revo ¬ trabalho etc., os tornavam ativos na desagregação da ordem so¬
lucioná rias? Desse â ngulo, nem os Estados Unidos avan çaram, cial neocolonial e na expansão simult â nea da ordem social
para proporcionar à burguesia cubana espaço econ ómico e po ¬ competitiva. Respondiam a uma postura nacionalista e antiim ¬
l ítico para realizar uma revolução dentro da ordem, pela qual a perialista, mas ela não lhes fornecia uma ética revolucionária.
ordem social competitiva poderia sair da hibernação, nem as Suas bandeiras estavam em reivindicações estratégicas que exi ¬
classes burguesas de Cuba possu íam condições e meios para se giam a presença de uma burguesia forte e que, na ausência de
tornarem revolucion árias no n ível de profundidade que se im ¬ uma revolução dentro da ordem, compeliram as classes traba ¬
punha espontaneamente, a qual exigia que “ arriscassem tudo” lhadoras e seus alvos históricos a deslocarem-se crescentemente
em troca de algo que parecia uma utopia ou um “ sonho” . O para a esquerda. Não obstante, elas teriam de ser 0 alfa e o ô mega
essencial, pois, não é o quanto a burguesia cubana estava divi¬ de qualquer solução, capitalista ou anticapitalista, e suas reivin ¬
dida internamente, mas o fato de haver preferido a contem - dicações tanto aceleravam a desagregação da ordem existente
porização como técnica de acumulação de forças. quanto faziam oscilar as forças que trabalhavam por dentro da
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS REVOLU ÇÃ
GUERRILHA AO SOCIALISMO A

situa çã o revolucion á ria, aumentando sua instabilidade e classes trabalhadoras (ao contrá rio do que ocorreu com as da
labilidade. burguesia ), naquele período histórico, tendia para a unificação
Esse bosquejo deixa claro que a dificuldade de uma evolu ¬
e para a t á tica da pressão em todas as frentes. Para as classes
çã o decisiva també m existia na á rea radical dos setores burgue ¬
trabalhadoras a dominação burguesa era uma domina ção de clas ¬
ses e no n ú cleo mais organizado e ativo das classes trabalhadoras. se. Não importava quem, na burguesia, estava de que lado e a
É preciso notar que “ imobilismo” da burguesia não procedia da interferência imperialista agravava a exasperação existente e tor ¬
falta de ação, mas da incapacidade de romper frontalmente e de nava a burguesia, como um todo, mais vulner á vel. [Quando o
uma vez por todas com a ordem social neocolonial . Ora, a mes ¬
elemento imperialista penetrava o conflito de classe, para o se ¬

ma coisa acabaria acontecendo na oposi çã o, na qual o excesso de tor mais organizado e forte dos trabalhadores o que entrava em
ação dispersiva fragmentava e enfraquecia a luta contra a ordem questão era o componente hegemó nico da dominaçã o burgue ¬
existente. A oposição era uma congérie: a ativar- se politicamen ¬
sa.] Portanto, é de baixo para cima, das classes trabalhadoras e
te, tendia a provocar o contrário do que pretendia, isto é, contri ¬
da população pobre que parte a principal força desagregadora da
bu ía para fortalecer a reprodu ção est á tica daquela ordem . O ordem, o dissolvente invisível e 0 fator básico da deterioração
governo ditatorial e os interesses estadunidenses ou cubaniza çã o do poder da burguesia e de seus governos. As reivindica ções eram
mais ou menos favorá veis ao neocolonialismo ganhavam maior postas e repostas com tenacidade e viol ê ncia crescente, obrigan ¬
espa ç o hist ó rico para agir reacionariamente ou contra ¬
do a burguesia a encolher -se e a mostrar sua incapacidade de
revolucionariamente, em nome da defesa dos costumes, da or ¬
conduzir a necessária transformação capitalista do capitalismo,
dem ou da propriedade e do direito. Todavia, as divisões que sem avançar na mesma direção que as classes trabalhadoras e a
floresciam não eram paralizadoras. Ao contrá rio da dominação população pobre. Em conseq úência, é essa pressão anónima mas
burguesa, a oposição contra a ditadura e o imperialismo podia maciça e constantemente crescente que muda a qualidade da
aproveitar a oportunidade histó rica, embora a questão fosse situação revolucionária e que faz com que esta pró pria ultrapas ¬

como ? E até onde? Sem um m í nimo de unifica çã o política este j se os quadros do capitalismo e da atua ção de classe da burguesia.
avan ço seria impossível e, pelo que se sabe, as contradições his ¬ Por fim, a quest ão de derrubar a ordem existente passou a ser
t ó ricas n ão se resolvem por si mesmas, automaticamente. uma questão pol í tica de natureza militar. A ordem neocolonial
Esse impasse foi rompido graças a três elementos. Primeiro, já estava praticamente destruída e mantinha-se por uma máqui ¬
o agravamento espont â neo constante da situação revolucioná ria na de coação que precisava ser desafiada e derrotada. O essencial,
( os que teimam em ignorar este componente, porque era intrin ¬ nesse quadro, n ão é, como j á se supôs, a “ substituição de gera ¬
secamente capitalista e foi subestimado, não conseguem enten ¬ ções” na década de 1930 e nas lutas contra a ditadura de Macha ¬
der que a guerrilha n ão criou “ outras Cubas” porque estava fora do. Mas, 0 í mpeto específicamente revolucion á rio das for ças que
de seu alcance engendrar a pró pria situa ção em que ela se torna ¬ sofriam as conseqúências mais destrutivas e desumanas da or ¬
ria revolucionariamente operacional). O agravamento nascia de dem social neocolonial. A expansão do regime de classes pren ¬
vá rios focos distintos. O mais importante estava nas pressões dia- se à expansão do capitalismo, o que, em Cuba, só poderia
radicais de baixo para cima dos trabalhadores e na insatisfação ocorrer através de um novo modelo de desenvolvimento capita ¬
popular generalizada. A situa çã o de interesses e de valores das lista. Se este não era possível, as lutas de classes teriam de cami-
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA I

nhar rapidamente para outro terreno e de redefinir-se segundo Ou seja, o desenraizamento deixara de existir e cedera lugar a
um novo eixo histórico, no qual as classes trabalhadoras e a massa uma consciência revolucionária objetiva e intransigente, dispos¬
pobre da população apareciam como portadores do poder real ta a ir até onde fosse possível para converter Cuba em uma socie ¬
revolucioná rio. dade nacional, dentro do capitalismo ou contra ele. Em seguida, 0
O segundo elemento é 0 que funcionou, ao longo de vá rias vazio histórico dissipou-se. O êxito militar dos jovens rebeldes,
décadas, como 0 “ barril de pólvora” da sociedade cubana. N ão só dos fins de 1957 em diante, deixara o campo político aberto para a
as gerações jovens, seu idealismo nacional e radicalismo político, eclosão das forças revolucionárias reprimidas nos confins da socie¬
mas 0 desenraizamento deliberado e desesperado de jovens que dade cubana. As classes trabalhadoras e os humildes foram deslo¬
repudiavam todo um estilo de vida e de poder que conheciam por cados para a condição de uma retaguarda mobilizada e militante.
dentro. Muitos brecariam a ruptura dentro da situação revolucio ¬ Atinge-se, então, 0 cl ímax da socialização política produzida e a
nária que se configurava como “ Cuba para os cubanos” . Outros consciência revolucionária do jovem rebelde traduz não só as exi ¬

saltaram logo desses limites e viram que o antiimperialismo exi ¬ gências da “ revolução nacional” e da “ luta antiimperialista” , mas
gia, como algo inevitável, o anticapitalismo: não se poderia dar a própria consciência da classe trabalhadora, que emerge como a
um salto histórico sem o outro e, portanto, impunha-se ir direto à classe revolucionária, e seu poder real, o poder popular. Para en ¬
concepção libertária e socialista de liberação nacional. Ora, uma tender-se 0 quanto o setor rebelde da geração jovem alterou a qua¬
geração que se desprendera de sua classe e da ideologia de sua lidade da situação revolucionária preexistente é preciso chegar-se
classe acabara ficando livre para fazer uma ou outra coisa. O que é a 1959, ano no qual também se desvenda por completo o sentido
fundamental: no caso de Cuba esse processo transparece desde as das relações entre classe, geração e revolução em Cuba. A “ revo ¬
lutas da década de 1930. Todavia, à medida que a desagregação da lu ção dentro da ordem” se evapora para sempre. As sortidas bur ¬
ordem social neocolonial se completa e que as classes trabalhado¬ guesas fracassam melancolicamente e a “ revolução dentro da
ras passam da revolução dentro da ordem para a revolução contra revolução” cresce sem cessar.
a ordem, a socializa ção política do jovem radical sofre uma O terceiro elemento é a guerrilha (a ser discutida, como tema,
transmutação. Ele apanha essa potencialidade ainda no seu esta ¬ na exposição subseqüente). A guerrilha foi o ingrediente pelo qual
do larval e avança através dela. Por conseguinte, o jovem radical se desmantelou o castelo de cartas e de ilusões. Ela surgiu em um
veio a ser um protagonista exemplar: veio a ser o sismógrafo das momento alcançado da decomposição da sociedade neocolonial,
sucessivas alterações da situação revolucioná ria e 0 porta-voz das quando já era politicamente claro que a “ revolução dentro da or¬
classes e estratos de classes específicamente revolucionários da dem” não passava de uma boa intenção e que a realidade vinha a ser
sociedade cubana. No in ício, esse avanço se dá em um vazio his ¬ a sobrevivência permanente do neocolonialismo. Por isso, ela não
tórico. Aparentemente, as classes trabalhadoras e os “ humildes” aparece como um fiat. Liga-se àquela situação revolucionária como
não respondiam ativamente. Como fenômeno histórico, porém, uma necessidade política e como o recurso final para tornar paten ¬
essa impregnação é deveras crucial. O idealismo nacionalista e o te seu desmoronamento. Também por isso ela é o braço armado de
antiimperialismo são projetados para baixo e para o fundo, vol ¬ um movimento político (o Movimento 26 de Julho), que era 0 seu
tando à tona reformulados em termos das exigências económicas, elo com todas as classes e com a efervescência política revolucioná ¬
sociais e políticas de uma revolução de toda a sociedade cubana. ria da sociedade cubana. A guerrilha cresceu além do que seria pre-
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

ciso se a rebelião fosse contida no plano burguês. No entanto, a seu engatamento com a liberação da classe oper ária, o significado
revolução cubana tinha um nível histórico próprio: ela não iria político da guerrilha seria muito menor. Havia um armazenamento
parar aquém da descolonização final e total. Foi isso que deu à guer- í ou acumulação secular de forças sociais na sociedade cubana. A
rilha e aos guerrilheiros um corpo político denso. Eles acabaram | revolução é o produto de todas essas forças, que não desaparece ¬

concentrando e representando essa necessidade histórica, pela qual ram ao longo da história. Concentraram-se e explodiram em mea ¬
seu antiimperialismo libertou-se da tutela burguesa e seu naciona¬ dos do século 20, assinalando que através de Cuba as Américas
lismo uniu-se ao ímpeto revolucionário das classes trabalhadoras e f participam das revoluções abertas para o futuro.
dos “ humildes” . Em um primeiro momento, só por sua possibili- j
dade de existência, ela atestou o grau de profundidade da situação 2 -Por que a guerrilha ?
revolucionária que prevalecia em Cuba. A ditadura não pôde tolher A guerrilha surgiu como uma solução militar madura para
nem sua implantação nem sua transformação em exército rebelde: uma “ revolu ção dentro da ordem” falhada e impossível. Ao ser
o que queria dizer que a ordem neocolonial estava em agonia e que | acionada, ela por sua vez acionou o golpe de misericórdia que
as forças burguesas haviam perdido qualquer possibilidade de con ¬ acabou com um regime económico, social e político arruinado e
ter a revolução nacional “ dentro da ordem” . Logo em seguida, as ¬ condenado. Ela não só “ iluminou o sinal ” dos tempos novos. A
sim que se consolidou militar e politicamente, a guerrilha deslocou guerrilha transferiu a guerra civil latente para o plano da história
o eixo de equilíbrio da ordem, passando-o da minoria para a maio ¬ vivida dia a dia e da ação direta. Em conseqtiência, ao brotar e
ria e emergindo, ela própria, como artífice e mediadora do poder garantir seu próprio espaço histórico, ela mudou a qualidade da
popular. Portanto, ela e sua vitória desatam o verdadeiro compo ¬ situação revolucionária preexistente, que a engendrou. Uma re ¬

nente revolucionário da revolução cubana. Ao criar espaço hist óri¬ volu çã o dentro da ordem desacreditada, soturna e frouxa, em
co para a manifestação e afirmação das classes trabalhadoras e da impasse cr ó nico, converteu- se no seu contrá rio, uma revolu ção
população pobre, ela levou ao limite extremo a situação revolucio ¬ contra a ordem cheia de fé, alegre e exuberante, que buscou e
nária e colocou as bases políticas de sua superação pelo socialismo. descobriu seus caminhos na fusão entre povo, nação e Estado em
Esse quadro é muito sum ário. Contudo, revela que a revolu ¬ Cuba. Antes de libertar a nação, ela liberou um espaço histórico
ção cubana não ocorreu por acidente. Já se tem salientado a “ im ¬ para a eclosão política das classes trabalhadoras e da população
pot ência da burguesia” e o papel revolucion á rio dos “ jovens pobre e, com isso, soltou a guerra civil, colocou-a a seu lado, ser¬
rebeldes” . Todavia, n ão é secundário o entrevamento dos Estados viu-a como o seu exército, protegeu-a contra a traição e a sabota ¬

Unidos, vitimados por um mau hábito: limitaram-se a intervir e gem, levou-a até o fim e até o fundo, amarrando -a definitivamente
a colaborar através do governo preposto (exatamente no momen ¬
à impulsão revolucioná ria dos prolet á rios e dos humildes.
to em que a “ Republica intervenida” chegava ao colapso final!). Essa via armada - embora instrumental e intrinsecamente po ¬
E, em particular, não é secundária a situação revolucioná ria, que j lítica - de chegar-se ao socialismo só teve semelhante importância
brotava de uma ordem social neocolonial em crise, em desagrega ¬ em Cuba. Ela aparece, por si mesma, como a “ política por outros
ção e em vias de desmoronamento, e cresceu contra a ordem gra ¬ meios” na ú nica forma social possível. Por isso, é preciso discuti-la
ç as à capacidade de organiza çã o e de protesto das classes aqui, pelo menos para assinalar dois pontos centrais: 1. o que con ¬

trabalhadoras e das massas populares em Cuba. Por fim, sem o i feria à guerrilha essa força histórica tão decisiva, criadora e surpreen -
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

dente; 2. por que a guerrilha e o guerrilheiro desapareceram, mas o à revolu ção cubana. Um fervor revolucioná rio humilhado e re¬
espírito da guerrilha dura até hoje, identificando-se como o pró¬ primido por quase um século, ao se concretizar, fez com que a
prio espírito da revolução cubana. Outros aspectos essenciais da condição humana do guerrilheiro transcendesse à própria uto ¬
história da guerrilha e dos guerrilheiros, militares ou políticos, pre¬ pia pela qual ele negava e suplantava a realidade histórica. Daí o
cisam ser ventilados de outra maneira (lendo -se os livros e escritos elemento cubano, que vai da guerrilha aos seus produtos, o qual
dos heróis daquela revolução ou dos estudiosos que se ocuparam destaca a revolução cubana como realização de um povo e a sin ¬
com os seus feitos, como Franqui, Karol, Matthews e tantos ou¬ gulariza em toda a história da humanidade. De outro lado, por
tros). Quanto ao significado revolucionário da guerrilha para a de¬ que a guerrilha, um recurso de luta armada tão simples, tornou-
sagregação do capitalismo e a passagem ao socialismo, o livro de se o eixo militar e político da revolu ção cubana ? É preciso re¬
Régis Debray preserva todo o seu valor, desde que se entenda e se cordar: os guerrilheiros batem, simultaneamente, um governo
redefina a problemática de uma perspectiva leninista (a situação títere e a superpotência que o sustinha; ao destruir a ordem so ¬
revolucionária não foi improvisada ou fabricada em Cuba: sem ela, cial neocolonial, eles derrotaram, simultaneamente, as forças
a guerrilha estaria provavelmente fadada ao fracasso, como suce¬ nacionais e as forças imperialistas que se empenhavam na defe¬
deu em outros países). Isso não significa que Cuba “ não se repetirá” sa militar e pol í tica daquela ordem. Naturalmente, é o segundo
(uma concepção imperialista e contra-revolucionária), mas que os tipo de reflexão que será explorado neste debate (em parte, por
outros países da América Latina terão de buscar suas vias próprias minhas limita ções pessoais; mas, substantivamente, porque o
de revolução socialista, imitando os cubanos em tudo que for possí¬ sociólogo não pode ir mais longe, mesmo que ele se apóie em
vel mas permanecendo abertos, como eles, às exigências concretas uma correção socialista do pensamento sociológico).
da situação histórica. A força histórica da guerrilha não estava nela mesma, mas
O primeiro ponto central comporta dois tipos distintos de na guerra civil, que ela desentranhou da situação revolucionária
reflexão. De um lado, o que imprimiu à guerrilha a grandeza e a preexistente. Se se entender que o exército rebelde não foi mais
eficácia extraordinárias que ela alcançou ? Essa é uma pergunta que um prolongamento e uma projeção da guerrilha, esta se tor ¬
pertinente, que pode ser respondida de várias maneiras. A mais nou, a um tempo, o instrumento militar e a bússola política da
simples: os cubanos acumularam uma longa experiência do uso guerra civil. Em termos especificamente militares, a guerrilha
da guerrilha, à “ conquista da guerra dos dez anos” e à revolu ção durou pouco tempo: já em carta de 14 de dezembro de 1957 Fidel
de 1895, experiência que foi refinada com afinco no combate Castro assevera que, na Sierra Maestra, “ não se dá, neste mo ¬

posterior às várias ditaduras que se sucederam no poder. Por ¬ mento, uma guerra de guerrilhas, mas uma guerra de colunas.
tanto, na linguagem dos antropólogos, havia “ uma tradição de Toda a população está sublevada. Se existissem armas, nossos
guerrilha” , embora a guerrilha posta em prá tica em Sierra destacamentos n ão teriam de cuidar de nenhuma zona” ( La
Maestra refletisse uma tecnologia e uma logística militares revolución cubana, p. 135). Em termos políticos, porém, a presen¬
ultramodernas. Essa tradição, não obstante, ajuda a compreen ¬ ça e a influência direta do exército rebelde garantem sua conti ¬

der muita coisa, inclusive a rapidez com que ela foi aceita e se nuidade até a consolidação do governo revolucionário.
alastrou. A mais complexa: o ethos cubano não está apenas por Aquela guerra civil deitava raízes nas contradições da or ¬
trás da eficácia da guerrilha, mas da grandeza que ela imprimiu dem social neocolonial, aparecendo como o componente expio-
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

sivo indisfarçável da situação revolucioná ria que caracterizou a “ anticastristas” com a pressão imperialista (as ocorr ências mais
sociedade cubana até fins da década de 1950. Embora ela se te ¬ graves dessa coalizão apareceram em abril de 1961, nas incur ¬

nha mantido em prolongado estado de latência, com irrupções sões aéreas contra os aeroportos de La Habana e Santiago; e na
sú bitas da contra-violência revolucioná ria, ela se manifestou de tentativa de invasão de Playa Girón, na Baía dos Porcos). Póde ¬

forma concentrada em dois períodos: nas lutas contra a ditadu ¬ se estabelecer, assim, como limite aproximado para o término
ra de Machado, culminando em sua derrubada, em 1933; e nas da relação construtiva entre guerrilha, exército rebelde e guerra
lutas contra a ditadura de Batista, de 1952 em diante. A frustra ¬ civil, a consolida ção do governo revolucioná rio (entre a queda
çã o da revolução de 1933 não só manteve o impasse - ela gerou do presidente Urrutia e o primeiro semestre de 1961).
condi ções hist ó ricas que favoreceram as vá rias correntes ou Tendo- se em vista esse quadro global, a guerrilha desempe ¬

movimentos voltados para a destrui çã o da ordem social nhou cinco funções distintas. Primeiro, abriu, por via militar,
neocolonial. O ataque ao quartel de Moneada, em 1953, consti ¬ um espaço histórico para a atuação organizada das for ças sociais
tui o marco do novo tipo de insurgência, que ir á combinar a revolucion á rias. Segundo, retirou a guerra civil do estado de
ação política rebelde à ação militar organizada. Ainda na prisão, intermitê ncia prolongada e de eclosão esporá dica, de baixa ou
Fidel Castro fundou o Movimento 26 de Julho, em 1954; no nenhuma eficácia política. Terceiro, lan çou à guerra civil a mas ¬
exílio, organizou nesse mesmo ano o n ú cleo militar desse movi ¬ sa da população e tornou ativos contra a ordem e a mão armada
mento ( no México) e ampliou a rede da articulação conspirativa os “ proletários” e os “ humildes” , no campo e na cidade. Quarto,
dos grupos rebeldes ( deve-se salientar, a respeito, o pacto de ação elevou, assim, o teor revolucioná rio da guerra civil e o manteve
conjunta com o Diret ório Revolucion á rio, em 1956). A expedi ¬ aceso, ao servir de garante às aspirações económicas, sociais e
ção do Granma foi concluída nesse ano, culminando na implan ¬ políticas das classes trabalhadoras e da população pobre (gra ças
tação de um centro de atividades guerrilheiras em Sierra Maestra a esta função da guerrilha, as alterações revolucion á rias absor -
(entre 18 e 25 de dezembro ). A guerra civil sai, pois, da inter ¬ í veram o impacto pol ítico do setor exclu ído da sociedade cuba ¬

mitência prolongada. Ao longo de 1957, o exé rcito rebelde tra ¬ na). Quinto, operou, do começo ao fim, como a bússola política
vou vá rias batalhas e consolidou suas estruturas militares e da revolução que deveria extinguir a guerra civil, canalizando
políticas (deve- se salientar : o desencadeamento de atividades politicamente as energias sociais virgens, que as classes traba ¬
subversivas em vá rias cidades, por seu movimento de resistên ¬ lhadoras e a população pobre lan çaram no circuito histó rico, e
cia urbana, os llanos ; a constante expansão do território livre; e, orientando-as no sentido de que atuassem, coletivamente, como
principalmente, a constituição de um proto -Estado pr óprio, pelo o motor da revolução nacional e democrá tico -popular.
qual ele delimitou sua legalidade e contrapôs- se à ilegitimidade As conclusões da discussã o anterior localizam a guerrilha
da ditadura ). O colapso do regime ditatorial e da ordem social no campo histó rico -social e político da sociedade cubana. A de ¬

vigente foi rápido, consumando -se em fins de 1958. Contudo, a composição e a transforma ção da ordem social neocolonial j á
guerra civil continuaria depois da constituição do governo re ¬ haviam avançado o suficiente para que a guerrilha pudesse, em
volucion á rio . De um lado, os setores radical - liberais da um tempo relativamente curto, desempenhar com tamanha efi ¬

burguesia, a partir de dentro do governo, tentaram solapar a obra cá cia funções tão complexas. Ela levou a história ao plano das
da revolu ção. De outro, a contra- revolu çã o associou cubanos i estruturas e, inversamente, elevou as estruturas ao plano da his -
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
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DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

tória (ou seja, acelerou a desagregação da velha ordem social e só poderiam ocorrer nas sociedades capitalistas centrais! Por aí
permitiu a rápida acumulação de condições favorá veis a cons ¬ se percebe que o dado crucial é outro: não o grau de avanço do
trução da nova ordem social). Não se trata de um mero jogo de regime de classes; porém, o grau de potencialidade desagregadora
palavras. Basta que se atente para a natureza das forças sociais ou construtiva da luta de classes em determinada situação con¬
que foram desembaraçadas e para o sentido do movimento his ¬ creta. Em conseqiiência, um regime de classes menos “ maduro”
tórico que elas desencadeiam, especialmente de 1959 em diante. pode ultrapassar sua idade hist órica, dependendo naturalmente
A discussão sociol ógica desses fatos precisa ser ponderada. É da relação de poder real entre as classes antagónicas. Em Cuba,
evidente que a guerrilha não fez tudo sozinha ( um tema de res ¬ 0 desenvolvimento capitalista transcendeu à ordem social
sonância amarga para a esquerda na América Latina) e que a neocolonial sem que surgisse, paulatinamente ou de súbito, uma
sociedade cubana não teria avan çado de qualquer maneira sem a ordem social competitiva suficientemente complexa e elástica
atividade política da guerrilha (onde teria parado a revolu ção para absorver os conflitos de classes decorrentes. As classes tra ¬
cubana sem a impulsão guerrilheira ?), 0 que exige que enfrente¬ balhadoras e destituídas ficaram postas à margem, com uma li¬
mos aquela história com a grandeza que ela própria continha. berdade potencial de conflito e de luta de classe que não podia
Um questionamento dessa envergadura suscita uma inter¬ ser absorvida e inibida dentro e através da ordem social vigente.
min á vel e insondá vel variedade de fatores diretos, indiretos e O que as continha não eram os dinamismos de uma ordem social
encadeados. Se a análise ficar no que certamente pode ser tido capitalista avan ç ada , mas a violê ncia brutal do Estado
como 0 mais simples e o essencial, n ão obstante, é prová vel neocolonial, com sua retaguarda imperialista. A guerrilha cor ¬
que as respostas se achem em três tipos de questões: 1. a rela ¬ tou de surpresa esse fator e liberou uma potencialidade selagem
ção entre guerrilha e regime de classes sociais na situaçã o re¬ de luta de classes. Por fim, 0 elemento neocolonial seria inverti¬
volucion á ria cubana; 2. o que a pr ó pria guerrilha acabou do antes de esgotar-se uma ordem social extremamente in íqua,
representando como fonte de socialização política revolucio ¬ e a minoria iria conhecer uma dose forte de seu próprio remé ¬
n á ria das massas populares; 3. a estratégia do movimento dio, aplicada pela maioria! É preciso n ão esquecer por que isso
castrista (este, o componente central, que não deve, no entan ¬ era possível: 0 desenvolvimento capitalista alcançado permitira
to, ser visto isoladamente). uma intensa experiência prévia dos “ proletários” e dos “ humil¬
Quanto à primeira questão, 0 importante não é saber se o des” nos movimentos sociais e, da década de 1930 em diante, em
regime de classes já era bastante “ maduro” , em Cuba, para com ¬ condições que favoreciam uma socialização política de classe pelo
portar uma revolução social de tamanha magnitude. Essa ma ¬ menos elementar. A guerrilha, portanto, subverteu a órbita das
neira “ dialé tica” de ver as coisas é puramente mecanicista. relações e conflitos de classes, conferindo às classes trabalhado¬
Medido por seu grau de diferenciação e de integração, o regime ras e destituídas a possibilidade (antes inconcebível) de enfren ¬
de classes cubano poderia ser funcional para uma cubanização tar as tarefas políticas que a situação revolucioná ria e a guerra
do capitalismo mas não para a “ revolução na revolução” (e foi civil lhes impunham . E o regime de classes, antes de tornar- se
exatamente porque ele nã o era bastante “ maduro” que a guerri ¬ “ maduro” , explodiu. Por sua vez, a revolução cubana girou so ¬
lha se impôs como alternativa histórica). E, de uma forma geral, bre esse eixo hist órico, deslocando- se rapidamente do poder
ficaríamos condenados à idéia de que as revoluções socialistas burguês para 0 poder popular.
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBADA

Quanto à segunda questão, é conveniente salientar que a des” , os milhões de deserdados e esquecidos convertiam- se na
guerrilha n ão era nem podia ser neutra com referência ao desti¬ razão de ser de uma guerrilha que n ão poderia fechar- se sobre
no da ordem social neocolonial. Esta devia ser destruída intei¬ um estreito circuito pol í tico -militar. Por isso, ela aparece, inde ¬
ramente e até o fim, o que punha a guerrilha em luta direta com pendentemente dos movimentos pol íticos a que se vinculasse,
os Estados Unidos. Ao buscar o apoio frontal das classes traba ¬ como o equivalente do partido de massas revolucioná rio e tem
lhadoras e da população pobre, ela não procurava uma retaguar ¬ de preencher fun ções pol í ticas aná logas.
da firme para sua luta armada contra a ditadura de Batista. Isso Quanto à terceira quest ão, não importa o que se pense sobre
seria um exagero. Ela preparava o terreno para o confronto mais “ o papel do grande homem na história” , o fato contundente é
á rduo e difícil com o imperialismo. Se o limite da luta política que, sem Fidel Castro, a revolu ção cubana n ão teria ocorrido da
fosse o mesmo da luta militar, a guerrilha poderia proteger - se e forma histó rica que a caracterizou. Por mais que esta revolução
vencer adotando as bandeiras e a causa do nacionalismo demo ¬ estivesse historicamente madura e fosse uma necessidade pol í ¬
crático burguês. A ordem neocolonial impedia, por si mesma, tica, sem ele e o movimento castrista a ruptura com a ordem
semelhante revolu çã o. O p ólo forte dessa ordem não estava den ¬ social neocolonial teria sido contida, de um modo ou de outro,
tro, mas fora do pa ís. Por conseguinte, sem a mobilização e a no n ível de uma composição nacional- burguesa mais ou menos
solidariedade das classes trabalhadoras e da popula ção pobre a conservadora e pró-imperialista . A melhor contraprova dessa
guerrilha ficaria sem uma verdadeira retaguarda e, a revolução afirmação acha- se no desempenho do governo Urrutia, que ten ¬
que ela defendia, sem a consagração nacional ( ou seja, o apoio tou brecar a revolu ção e adapt á-la a um desenvolvimento que só
militante da maioria). Isso impunha que, à aliança t ática com o serviria para consolidar a ordem social competitiva. Assim, a
setor liberal-radical da burguesia, se superpusesse uma uniã o derrota de Batista e o desmantelamento do antigo regime cons ¬

inabalável com a massa das classes trabalhadoras e destitu ídas. tituiriam uma ponte para a transformação capitalista do capita ¬
Ela correspondia, assim, a um movimento histórico que impe¬ lismo, mas a revolu ção não levaria a descoloniza çã o até o fundo
rava na sociedade cubana desde o fim do século 19 e o in í cio do e at é o fim, bem como n ão daria a guinada que marca sua
século 20, e que atingira seu auge na década de 1930. E, ao res ¬ modernidade na direção do socialismo. Ora, isso n ão se ajustava
ponder a esse imperativo polí tico, via - se na contingência de an ¬ à linha polí tica do castrismo, endossada ponto por ponto pelo
tecipar a pró pria vitória, abrindo seus quadros, seus meios de exército rebelde e pela maioria, e colidia constrangedoramente
luta à participação das massas, ao mesmo tempo que deveria p ô r com o que ambos não queriam que voltasse a acontecer em Cuba.
ao seu alcance os frutos que seriam conquistados pela revolu ção. Tudo isso nos põe diante de Fidel Castro como e enquanto a
Esse era um fator incontrolável de radicalização permanente da personalidade política cuja ação revolucioná ria se erigiu em fator
guerrilha e da revolu çã o, e n ã o podia ser detido nem contido. A histórico específico. Sabe-se que dele disse o Che que era uma
substâ ncia democrá tica e popular da revolução cubana n ão nas ¬ “ força tel ú rica” da América Latina. O mesmo Che, que podia fa¬
cia somente de um ideá rio nacionalista e patrió tico. Ela provi¬ lar de igual para igual diante dele em termos de grandeza humana
nha da estrutura da situa ção revolucion á ria e do car á ter da guerra e de espírito revolucionário, testemunha, sobre o momento mais
civil, que envolviam na destruiçã o do Estado neocolonial a difícil na Sierra Maestra: “ Uns 15 homens destru ídos fisicamen¬
neutraliza ção da dominação externa. Os companheiros “ humil- te e at é moralmente, juntamo -nos e só pudemos ir adiante pela
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

enorme confiança que Fidel Castro teve nesses momentos decisi¬ passou a enfrentar um grave perigo, pois a contra- revolu ção con ¬
vos, por sua valorosa figura de chefe revolucionário e sua fé in¬ tava com o poder de repressão da ditadura, com recursos exter ¬
quebrantável no povo” (“ Proyeciones sociales del ejército rebelde” , nos facilmente mobiliz á veis e com a suicida propensão a
in F. Castro, La revolución cubana, p. 428). Um depoimento singu ¬ contemporizar de vários estratos poderosos da burguesia. Não
lar, que focaliza o homem no instante mais terrível e perturbador havia como sair do impasse a curto prazo, o que determinou a
de sua vida política, mostra a sua têmpera. Naquele instante, ele aceitação da guerrilha como o meio principal de luta e a forma ¬
era a revolução. Havia sido assim, desde que Batista retomara ile ¬ ção de um movimento político paralelo, cuja função inicial con ¬
galmente o poder, em 1952; e teria de continuar assim, nos anos sistia em impedir o isolamento político da guerrilha . Essa
tempestuosos de conflito com o governo Urrutia, com os interes ¬ correlação seria alterada pelo próprio êxito da guerrilha, cujo
ses burgueses nacionais e estadunidenses, ou de batalha pela con ¬ elemento político teria de transferir- se e concentrar-se gradual ¬

tinuidade da revolução e da implantação do socialismo. E não o mente nas atividades do movimento. O esquema era engenho ¬
era por caso ou por obra de sua ascendência como chefe político - so. Ele não podia compensar a ausência de uma organização
militar e de sua incrível popularidade. Fidel Castro foi o estrate- política revolucioná ria verdadeiramente forte e deixava a guer ¬
gista da revolução cubana - o único, aliás, que ela teve - e deve-se ra civil à mercê de um pólo militar relativamente débil. Contu ¬
à sua imaginação prodigiosa a criação de uma estratégia política do, n ã o havia outra sa ída. O importante, nas condi çõ es
que fez do movimento castrista uma vanguarda revolucionária e económicas, sociais, políticas e policial-militares imperantes em
o converteu, aos poucos mas de maneira muito rápida, no verda¬ Cuba na ocasião, vinha a ser : 1. fazer a situação revolucioná ria
deiro pilar da revolução cubana. girar tão rapidamente quanto possível para baixo, na direção dos
Tratava-se de uma estratégia muito simples e, também, mui¬ proletá rios e dos “ humildes” , escapando assim ao controle
to ousada. Seu êxito, na verdade, iria depender da consistência estabilizador da ditadura, dos Estados Unidos e das classes con ¬
de um certo n ú mero de previsões, que diziam respeito ao pro ¬ servadoras; 2. impedir por todos os meios o refluxo da guerra
cesso político cubano visto globalmente e de forma prospectiva, civil, que só favoreceria o regime ditatorial, os interesses capita ¬
especialmente quanto à evolução da situação revolucionária exis ¬ listas mais reacionários internos ou externos e a contra-revolu ¬
tente depois de detonada a guerra civil. Hoje parece claro que, ção. Por paradoxal que pareça, Fidel Castro arriscou tudo,
na época do ataque ao quartel de Moneada, Fidel Castro já era jogando com potencialidades contraditórias de classes e setores
senhor dessas previsões; o famoso Condena-me! A História me de classes sociais envolvidas nas correntes históricas antagóni¬
absolverá! deixa isso evidente. No entanto, os êxitos e os malo ¬ cas da revolu ção dentro da ordem e da revolu ção contra a or ¬
gros desse ataque permitiram que ele passasse do diagnóstico dem. Procurou somar todas as forças dessas correntes, evitando
dos problemas cubanos e de seus remédios políticos para um com a maior prudência aguçar atritos ou conflitos que enfra ¬
exame em profundidade das relações entre meios e fins na luta quecessem a guerrilha e o movimento político correspondente
revolucionária. Como sucede com freqúência (em Cuba, porém, por causa de opções puramente ideológicas. Estas só ficavam
de modo extremo), a situação revolucioná ria existente continha explícitas - e até com virulência - quando fossem centrais para a
forças que ultrapassavam a capacidade de organização e de ação concentração de forças na luta contra Batista e a derrubada do
dos grupos que deflagraram a guerra civil. A sociedade cubana regime político vigente.
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[ DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA
COLEç ãO ASSIM LUTAM OS POVOS

O eixo dessa estratégia política voltava a ação revolucioná ¬ estrangeiros, os defeitos da concentração agrária, da monocultura,
ria, portanto, pata a centralização, a coordena çã o e a direção de da dependência a um mercado etc. ( nesse sentido, a unidade
todos os processos revolucionários influx, de import â ncia para o polí tica da revolu ção procedia inicialmente de seu eixo demo ¬

ataque e a destrui ção da ordem social neocolonial . Os revolucio ¬ crá tico ). Em conseqiiência, o radicalismo utópico-ideológico só
n á rios n ã o criavam tais processos e não dispunham de condi ¬ tinha saliê ncia na esfera dos sentimentos humanit ários e patrió ¬
ções militares ou políticas para modificá -las a seu bel-prazer. ticos. Em todas as á reas vitais para o movimento revolucion á rio
Por isso, a fraqueza do adversário, a existente e a que podia ser prevaleciam alvos políticos reais, segundo a experiê ncia cotidia ¬
provocada, era crucial, surgindo como um elemento sine qua non na. O que permitia chegar a todas as classes e mobilizá-las para a
para a vit ória militar e pol í tica. E a “ revolu ção dentro da revolu
¬ revolu ção sem atiçar o antagonismo de classes e lançá-las umas
ção” seria um processo gradual, por etapas, de vitórias sucessi ¬ contra as outras (um extremismo “ revolucion á rio” de tipo in ¬
vas e encadeadas, militares e pol í ticas, pelas quais o agravamento fantil, que fortaleceria a contra - revolução ). Aliás, o precedente
constante da guerra civil permitiria passar a um aprofundamento da Guatemala, em 1954, deixava patente o risco mortal de pro ¬

da situação revolucionária ( e vice- versa ). [Até o esgotamento do vocar a reação, os Estados Unidos e coligá-los em torno de uma
adversá rio; o controle da guerra civil pelas for ças mais revolucio ¬ “ causa sagrada” . A mensagem positiva chegava, de qualquer
n á rias; e a mudança qualitativa da situação revolucioná ria, pelo modo, às classes trabalhadoras e à população pobre da maneira
predomí nio crescente das classes sociais identificadas com a re¬ mais eficiente possível, unindo o concreto, o cotidiano e a revo ¬
volu çã o nacional- democr á tica e popular.] Portanto, a sí ntese lu ção. Como a Constituição de 1940 continha normas ideais que
política revolucioná ria n ão era buscada pelo setor mais extre ¬ nunca seriam cumpridas, ela criava um espaço pol ítico legítimo
mado e radical, mas por uma acumulação de forças que unifica ¬ e legal para todo o debate. Fidel Castro explorou com sabedoria
va todas as correntes mais ou menos revolucioná rias e que esse espa ço, afirmando -se através dele como o paladino do nacio ¬

coincidem entre si no propósito de realizar aquela revolu ção por nalismo, da legalidade constitucional, do populismo e da demo ¬
Cuba e para Cuba. cracia, tocando o coração de todos os cubanos e despertando nos
É fascinante a sagacidade com que Fidel Castro se moveu destituídos uma nova esperan ça. Entre os aliados potenciais, os
nesse complexo e movediço tabuleiro, lançando palavras de or ¬ que n ão podiam ser atraídos como parceiros ativos ou como
dens diretas e concretas, muitas delas variavelmente pungentes, militantes eram mantidos em uma expectativa tolerante - o que
e que atendiam às frustra ções de todas as classes ou respondiam, aconteceu mesmo no exterior.
de uma ou de outra forma, a necessidades e aspirações sentidas Depois da conquista do poder o movimento castrista não
nos diversos estratos dessas mesmas classes ( nesse sentido, o renegou seus compromissos t á citos ou explícitos com as m ú lti ¬
centro de gravidade da revolução ficava, inicialmente, na libe ¬ plas forças revolucioná rias da sociedade cubana (as que queriam
ra çã o nacional). Por sua vez, o ataque frontal contra a ordem foi apenas uma consolidação da ordem social competitiva e as que
montado em termos de condenação moral, esta sim, extremista pretendiam a constru çã o de uma nova ordem social ). Apesar
e candente, mas tamb ém formulada em termos concretos: os disso, os setores liberal- radicais da burguesia n ão souberam (e,
excessos dos poderosos e da ditadura, os efeitos da expolia ção tamb ém, nã o podiam ) conciliar seus interesses de classe com as
extrema, os males da corrupçã o e da submissão aos interesses exigências centr ípetas da revolução cubana. As classes trabalha-
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COLEç AO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CliBANA |

doras e a população pobre venceram, através do castrismo, por ¬ de que não havia mais lugar para o diálogo político - com o
que emergiram da guerra civil como o setor revolucioná rio da Estado corrupto e corruptor toda política estava condenada ao
sociedade cubana. Fidel Castro não teve que desempenhar o papel malogro. Uma nova ordem social teria de passar pelo curso das
do demagogo que trai sua classe. Como havia repudiado a dema ¬ armas, o que exigia que Moneada ressurgisse sob um verdadeiro
gogia por uma postura revolucionária sincera, essa virada puri ¬ padrão revolucion á rio (do qual o Movimento 26 de Julho cons ¬
ficadora do sentido de classe da revolu ção converteu -o no umía o eixo político e a guerrilha o meio por excelência de sua
porta-voz daquele setor revolucion á rio e em intérprete de sua prá tica pol ítica). Sem subestimar a importância daquele movi ¬
vontade política. O castrismo emerge, pois, com um novo senti ¬ mento, que promovia a irradiação da forma final de uma ideolo ¬
do e teria que se redefinir de alto a baixo. A “ revolução dentro gia revolucion á ria longamente cultivada e servia de base à
da revolução” estava contida no castrismo desde 1953. Ela não unificação política das correntes de oposição ativas, a guerrilha
constitu ía, porém, o que se poderia chamar um projeto político tornou-se desde logo o elemento central da luta revolucionária.
proposto de antemão. No primeiro semestre de 1959 os fatos Em torno dela vai gravitar o esforço de organização e treina¬
promovem essa evolução. Para manter-se sob o compasso da re ¬ mento das forças militares no exterior e a partir dela vai surgir o
volução cubana e para poder servi-la até que ela completasse exército rebelde, o territ ório livre e um proto-Estado revolucio ¬
todo um ciclo, o movimento castrista se vê forçado a ultrapas ¬ nário. Não houve tempo para consolidar e expandir o movimen ¬
sar-se como filosofia política revolucion á ria e a superar- se como to, como o partido da revolução, e resolver através dele todos os
práxis revolucionária. A consolidação do poder popular e a cons ¬ problemas da seleção e forma çã o de quadros, de recrutamento e
tru ção do socialismo ganham autonomia histó rica e realidade preparação de uma vanguarda, de calibração e refinamento da
utópico-ideológica com suas molas mestras. ideologia revolucionária, do agit-prop , de entrelaçamento entre
O segundo ponto central coloca o problema da socialização o militar e o pol í tico etc. A guerrilha concentrou em si o
política revolucion ária do guerrilheiro. Não podemos simplifi¬ microcosmo da revolução em deslanchamento e em atividade
car as coisas e pensar que tudo começou em Sierra Maestra. Essa estuante. Por algum tempo ela foi simultaneamente o partido e
socialização pol ítica tivera início muito antes e, pelo que já vi ¬ o seu braço militar. Em vez de ser o instrumento daquele, ela
mos, constitui em parte o produto de uma velha tradição cultu ¬ foi, de fato, o veículo pelo qual as forças políticas revolucioná rias
ral. De outro lado, nas décadas de 1940 e 1950, graças à situação se agregaram e, no limiar da queda da ditadura e da derrocada
revolucioná ria in crescendo, exacerbara- se o elemento político do do regime vigente, chegou - se a uma forma pol í tica mais
protesto radical e nacionalista, o que converteria o desenraiza- integrativa e dinâ mica, em sentido especificamente revolucio ¬

mento do jovem rebelde em um fermento criador e a pressão nário, que o Movimento 26 de Julho. Em conseqíiência, o parti ¬
contra a ordem em um fator histórico específico. Contudo, se se do da revolução teria de nascer depois da conquista do poder e a
toma como ponto de referência o discurso de Fidel Castro, Con- guerrilha se oferece à análise como o verdadeiro elo estrutural e
dena-me! A História me absolverá!, constata-se que o ataque ao dinâ mico da socialização política revolucionária, da fermenta ¬
quartel de Moneada aparece como um divisor de águas. A rup¬ ção da consciência revolucionária e da mobilização das massas
tura com a ordem delineia-se como uma cruzada revolucionᬠpara a revolu ção. Desse â ngulo, a abordagem de Karol não é
ria, que possui uma filosofia política sistematizada e a convicção excêntrica à natureza da revolução cubana. Ele a acompanha pelo
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILH AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA |

lado que parece mais rom â ntico e exótico, mas que é, também, o levara tão fundo iriam ser postos à prova daí em diante, como
lado que revela a essência da revolução cubana no plano históri¬ jamais chegara a suceder anteriormente. Isso parece um parado ¬
co, o que a singulariza diante de outras revoluções do século 20 xo. Mas, é um paradoxo que se entende facilmente. O “ espírito
e o que define sua grandeza como realização humana. Pois, ma ¬ guerrilheiro” teria de inspirar um partido revolucionário cria ¬
jestoso painel que descreve com angustiante penetra ção levanta do depois da conquista do poder e, o que era mais complexo,
a questão tópica: como fazer a revolução social quando não resta deveria delimitar até onde chegaria a revolução cubana através
outro meio de chegar a ela sen ão a guerrilha. do novo Estado, da nova sociedade e do novo homem.
Toda a nossa discussão mostra a outra face da guerrilha: o Esse assunto tem sido focalizado com insistência. Porém, de
que esta logrou porque a sociedade cubana vivia um clímax re- um â ngulo limitado: o da ressocialização da personalidade do
volúcioná rio - ela parecia muito frágil, mas era imbatível, por ¬ guerrilheiro pela guerrilha e pela convivência com o campesino e
que se tornava a herdeira e a parteira de uma guerra civil que se suas condições concretas de existência. Sem d ú vida, esse aspec¬
atrasara no tempo mas n ã o em seu potencial revolucion á rio. Na to é fundamental. Mas, há outro igualmente importante (e de
verdade, Cuba se encarnava na guerrilha e renascia por seu in ¬ uma importância política estratégica): o que o proto-Estado guer ¬
termédio. Por algum tempo, a guerrilha não era apenas uma pe ¬ rilheiro representou como amarramento com o poder popular e
quena formação militar; era essa nova sociedade cubana em o aprofundamento antecipado da revolução. Se o primeiro as ¬
gestação, uma antecipação concreta do que deveria ser a nova pecto explica o amadurecimento histórico do homem que vivia
sociedade cubana Esgotado esse tempo, a guerrilha poderia de ¬ dentro do guerrilheiro, o segundo nos põe diretamente diante
saparecer: ela não se transformaria em crónica nem em mitos. do nascimento do guerrilheiro como homem pol ítico. Foi gra ¬
Sua vanguarda militar, que era por sua vez a própria vanguarda ças a esta circunstâ ncia que a guerrilha operou como um equi ¬
política da revolu ção, iria continuar a guerrilha por outros meios. valente psicossocial e político do partido revolucionário. O enlace
Ou seja, o guerrilheiro passou a ser o fiel da balança, a garantia antecipado com o poder popular e a concretização antecipada
de que a política revolucionária permaneceria fiel ao espírito da do que deveria ser Cuba depois da derrocada da ordem existente
revolução, constru ído nas duras condições da luta armada em constitu íam um salto histórico revolucion á rio sem retorno. Ele
Sierra Maestra e na atividade legendá ria do exército rebelde. não abria apenas uma esfera sólida de credibilidade política na
Por aqui fica claro o duplo movimento histórico que se efetuou, relação revolucioná ria do guerrilheiro com os “ humildes” , con ¬
no enlaçamento recíproco da guerrilha com a sociedade cubana cretizando os alvos ideais propostos nos discursos de Fidel Cas ¬
em crise e com a sociedade cubana que deveria ser constru ída tro. Ele já era a revolução em marcha, um limite aquém do qual
depois da solução guerrilheira da guerra civil. O guerrilheiro Cuba não poderia voltar, e uma imagem do que seria o governo
chegou ao poder como revolucionário - mas continuaria a exis ¬ revolucioná rio gerado pelo enlaçamento da guerrilha com o po ¬
tir o revolucioná rio em Cuba sem que o esp írito da guerrilha der popular.
sobrevivesse e se agigantasse depois da vitória? Não há um “ re¬ Os materiais que podem fundamentar a presente análise são
pouso do guerreiro” . A política seria, sem jogo de palavras, um muito ricos e bastante divulgados. É provável que o documento
prolongamento da guerrilha por outros meios. O “ mundo da comprobatorio, por excelência, por causa do seu teor interpre¬
guerrilha” , a “ fraternidade” e o “ fervor revolucionário” que ele tativo, seja a palestra de Che Guevara, pronunciada em 27/1/1959
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

( Projeções sociais do exército rebelde; em F. Castro, La revolución cu¬ sangrenta repressão policial levantou praticamente várias cida ¬
,
bana pp. 427-436). Essa palestra permite passar do primeiro as ¬ des (como Santiago de Cuba, Oriente, Camagüey e Las Villas) e
pecto ao segundo e ver, além disso, como eles se vinculavam deixou patente essa necessidade política, que lança o exército re¬
dialeticamente. Duas coisas ficam evidentes, de modo geral: 1. os belde na luta pelo poder em escala nacional. O fracasso da greve
guerrilheiros se puseram fora e acima de qualquer distâ ncia de de 9 de abril de 1958 já é avaliado dessa perspectiva: “ a revolução
classe, de dominação de classe ou de poder de classe em suas rela¬ não pertencia a este ou aquele grupo, mas devia ser a obra de todo
ções com os camponeses (situando-se, portanto, como companhei¬ o povo cubano; e para esse fim foram canalizadas todas as energias
ros no sentido mais próprio da palavra e limitando a desigualdade dos militantes do nosso movimento, tanto na planície quanto na
ao âmbito técnico do exercício da autoridade); 2. a ressocialização serra” (idem, p. 430).
da personalidade básica pressupõe uma identificação revolucio¬ O segundo aspecto merece, naturalmente, uma considera ¬
nária com o povo que possibilita a proposição de palavras de or ¬
ção mais extensa. Os materiais sugerem que, na consciência e na
dem revolucionárias concretas e a luta nacional pelo poder. A prá tica revolucioná rias dos guerrilheiros (e, por conseguinte, na
ideologia brota, pois, de baixo para cima e das massas para a van ¬ sua ideologia, que se objetiva gradualmente e se consolida pelo
guarda política (embora o discurso Condena-me! A História me progresso da ação revolucionária concreta), a retórica concilia¬
absolverá! tivesse feito um percurso ideológico-abstrato de senti¬ dora é constantemente ultrapassada pelo comportamento revo ¬
do inverso). Algumas citações simples saturarão claramente os lucioná rio. A retórica conciliadora caminhava no sentido de
fatos exemplares. “ (...) Não tocávamos em nada que não nos per ¬ unificar politicamente a oposi ção. A prática revolucionária, po ¬
tencesse, inclusive não com íamos nada que n ão pudéssemos pa ¬ rém, identificava a oposição efetiva com o movimento social das
gar e muitas vezes passamos fome por este princípio. Éramos um classes trabalhadoras e da população pobre (isto é, com a maio¬
grupo visto com tolerância mas que não estava integrado; e assim ria); e promovia o enlace político definitivo da maioria com a
passou muito tempo (...).” ( Idem, p. 428.) A ressocialização dos revolução. Isso demonstra que, na luta pela conquista do poder
guerrilheiros avançou paralelamente à ressocialização conco ¬ em escala nacional, a guerrilha deixava uma faixa muito estreita
mitante dos camponeses (processo acelerado e aprofundado pela de acomodação potencial mesmo com os estratos “ simpá ticos à
brutal repressão policial-militar da ditadura). Como conseqiiên- revolução” da burguesia (isto é, com seus setores radical-libe¬
cia, “ essa mudan ça se traduziu pela incorporação a nossas guerri¬ rais). Para que esses estratos tivessem êxito no governo revolu ¬
lhas do sombrero del yarey (...) [e] assim nosso exército de civis cion á rio seria preciso que eles absorvessem uma revolução
foi-se convertendo em um exército de camponeses” , com nume ¬ democr á tico - nacional que transcendesse n ão s ó a ó rbita
rosos quadros guajiros, que “ trouxeram à revolução seus ideais e neocolonial mas també m o tradicional Estado constitucional e
sua fé” ( idem, p. 429). Nesse contexto, a reforma agrá ria e a representativo burguês ( um estado de concentração “ democrá ¬
extirpação da miséria surgem como palavras de ordem que uniam tica” da dominação de classe da burguesia).
politicamente a guerrilha à população rural pobre, abrindo um Os materiais que comprovam esse avan ço por dentro da
espaço histórico que ampliava o desbordamento da atividade in ¬ guerrilha, do exército rebelde e de seu proto-Estado são muito
surgente do campo para a cidade. Segundo Che Guevara, a como¬ ricos. A descrição será mantida na linha do documento já cita ¬
ção popular provocada pelo assassinato de Frank País e pela do, de Che Guevara. “ Nessa época precisamente se iniciaram,
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DA GUERR SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS

no exé rcito rebelde, os primeiros passos para dar uma teoria e agropecu á rias. Diante da amargura do ataque e do cerco da fome
uma doutrina à revolução, oferecendo - se demonstrações pal ¬ com que rodearam Sierra Maestra, de todos os latifundiá rios das
p á veis de que o movimento insurrecional havia crescido e, zonas lim ítrofes, 10 mil reses subiram as montanhas; e não fo ¬
portanto, havia chegado à sua maturidade pol ítica . Havíamos ram só para abastecer 0 exército rebelde, pois elas também foram
passado da etapa experimental à construtiva, dos ensaios aos distribuídas entre os camponeses e, pela primeira vez, os guajiros
fatos definitivos. Imediatamente se iniciaram as obras das ‘pe ¬ da serra, nessa região, que est á particularmente empobrecida,
quenas ind ústrias’ na Sierra Maestra.” (...) Todos os militantes tiveram o seu bem - estar; pela primeira vez as crian ças campo ¬

do exército rebelde, homens e mulheres, se impuseram a mis ¬ nesas tomaram leite e comeram carne de rês. E pela primeira
sã o “ do melhoramento do camponês, sua incorpora ção à luta vez, tamb ém, receberam os benef ícios da educa çã o, porque a
pela terra, e sua contribui ção foi levada a cabo por meio de revolu ção trouxe em suas mãos a escola. Assim, todos os campo ¬
escolas que os mestres improvisados encontravam nos lugares neses chegaram a uma conclus ã o favor á vel ao nosso regi -
mais inacessíveis dessa região de Oriente. Fez- se ali o primei ¬ me.” (Idem, pp. 431-432.) Várias confiscações e medidas de cará ter
ro ensaio de repartição de terras, com um regulamento agr á rio social foram tomadas e, segundo 0 testemunho, impostas pelos
redigido pelo doutor Humberto Sor í Mar í n e por Fidel Castro, pró prios camponeses ( cf. idem, p. 433).
e no qual tive a honra de colaborar. Deram - se revoluciona ¬ Com a expansão da á rea de operações militares do exército
riamente as terras aos camponeses, ocuparam -se grandes pro ¬ rebelde, cresceu o territó rio livre e, com ele, fortaleceu - se o
priedades agrá rias de servidores da ditadura, as quais foram antiestado dos guerrilheiros. Vá rios escritos de Fidel Castro e
repartidas; e todas as terras do Estado come ç aram a ser essa mesma palestra atestam a natureza e a amplitude dessa le ¬

transferidas para a propriedade dos camponeses dessa zona . galidade revolucion á ria, que se contrapôs à ilegalidade do regi ¬

Havia chegado o momento que nos identificavam plenamente me ditatorial em todos os n íveis que conseguiu fazê-lo. Um bom
como um movimento campon ês ligado estreitamente à terra e exemplo de como isso sucedia era a Lei n° 3, pela qual se estabe ¬

com a reforma agrá ria como bandeira” ( idem, pp. 430-431) .“ Esta leceu a reforma agrá ria, apontada acima (cf. idem, p. 433). Os
foi uma guerra na qual contamos sempre com esse aliado beneficiários, mais de 200 mil fam ílias de colonos que arrenda ¬

imponderável de tão extraordiná rio valor que é o povo. Nossas vam terras de aproximadamente 15 hectares para baixo, atestam
colunas podiam enganar continuamente o inimigo e situar - se 0 volume da popula çã o atingida . Ao alcan çar esse grau de

nas melhores posições, n ão somente graças às vantagens t á ti ¬ institucionalização de sua própria organização legal e política, 0
cas e ao moral de nossos milicianos mas, tamb é m, em grau exército rebelde manejava um contra -Estado de relativa enver ¬
muito importante, à grande ajuda dos camponeses. gadura, que lan çara os germes do governo revolucion á rio e en ¬
O camponês era o colaborador invisí vel que fazia tudo que o cetara a revolução social. “ Estamos j á nas projeções sociais do
rebelde não podia fazer; ministrava- nos as informações, vigiava exército rebelde, temos uma democracia armada. Quando pla ¬
o inimigo, descobria os seus pontos débeis, trazia rapidamente nejamos a reforma agrá ria e acatamos as exigências das novas
as mensagens urgentes, espionava dentro das fileiras do exérci ¬ leis revolucion árias que a complementam e que as tornarão viá ¬
to atacante. E isto n ã o se devia a nenhum milagre, sen ão a que veis e imediatas, estamos pensando na justiça social que signifi ¬

havíamos iniciado com energia nossa pol ítica de reivindicações ca a redistribuição da terra e também na cria ção de um mercado
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM 05 POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBADA |

interno extenso e na diversificação dos cultivos, dos objetivos eixo político da guerra civil, colocaram no centro do palco os
cardeais inseparáveis do governo revolucionário que não podem prolet á rios rurais e urbanos. Tratava- se de uma massa sem uni¬
ser pospostos porque o interesse popular está implícito neles.” dade política, mas ela se convertera, de fato, na força viva da
( Idem, p. 434.) revolução. A ausência de um partido revolucionário, que edu ¬

Em suma, no processo da conquista do poder a própria revo ¬ casse e organizasse politicamente essa massa, dava origem a
lução social foi antecipada. A atividade legislativa e executiva muitos problemas graves. O castrismo ficava preso, em um pla ¬
que o exército rebelde forjou construía o espírito revolucioná rio no, a compromissos unitá rios de uma oposição relativamente
do guerrilheiro dentro da ação. E, o que é mais importante, como amorfa (se se excetuam o pró prio Movimento 26 de Julho, o
parte de uma realidade vivida e compartilhada com os humil ¬ Diretório Revolucioná rio ou o Partido Social Popular). E, no
des, envolvendo aquele espírito revolucion á rio, assim, pela par ¬ outro, ganhava uma grande liberdade, pois n ão se prendia ao
ticipação, pelo compromisso moral e pela solidariedade política dogmatismo de uma “ linha revolucioná ria de partido” , embora
com a situação de interesses e de valores das classes trabalhado ¬ tivesse de acompanhar as propensões revolucion á rias mais ou
ras e da população pobre. O que quer dizer que o guerrilheiro menos espontâ neas da massa. Entre esses dois extremos, esta ¬
socializara- se, politicamente, para conceber a revolu çã o social vam as organizações revolucioná rias dotadas de eficá cia políti ¬
como uma entidade e uma projeção da maioria, ou seja, como a ca: o exé rcito rebelde, o Movimento 26 de Julho e o Diret ório
nossa revolução, a revolu ção do povo cubano. Ela teria, pois, de Revolucioná rio. Ora, a guerrilha fundira o poder militar e o po ¬
caminhar sempre com a maioria, mesmo depois que a guerrilha der político revolucionariamente. Ao passar da fase a quente para
deixasse de existir e que o guerrilheiro desaparecesse por trás do a fase a frio da guerra civil, graças à sua vitó ria, os guerrilheiros
homem de Estado - do pol ítico ou do burocrata. As for ças que emergiam como uma vanguarda revolucionária vitoriosa e ti ¬
tentassem domesticá-la e restringi-la, em nome da democracia nham de confrontar -se com os papéis políticos decorrentes. Se
burguesa e do nacionalismo correspondente, ou que tentassem havia algum joio misturado ao trigo, o peneiramento se dera em
esmagá-la, a partir de dentro e a partir de fora, encontrariam condições muito duras e deixara como produto um corpo selecio ¬
pela frente, para barrá-las, esse espí rito guerrilheiro, que se en ¬ nado de revolucionários de primeira linha. Ainda que não pu ¬
tendia como a vontade política da democracia armada. dessem partir para as solu çõ es revolucion á rias ideais, sua
socializa ção política garantia, por sua vez, a capacidade potencial
3 -Os guerrilheiros e o poder de se identificarem com a classe revolucioná ria e a disposição de
Os guerrilheiros conquistaram o poder em uma posição que dirigi-la como e enquanto uma vanguarda revolucioná ria. O
os punha acima das classes. Todavia, a unificação pol ítica das desgaste teria de vir, pois, de duas direções : 1. de agrupamentos
for ças da oposição acarretara a necessidade de agregar e de da frente ampla que tentavam brecar a revolu ção * e 2. das
aglutinar correntes, grupos e organiza ções rebeldes mais ou
menos díspares entre si. Essa necessidade crescera, entre 1956 e Os dois tipos de atritos n ão serão examinados aqui . No entanto, este primeiro,
1958. Como os “ vitoriosos” , eles eram livres. Nem por isso po ¬ cumpre lembrar, n ã o lavrou s ó no SCLO do governo revolucion á rio dc frente
diam tomar a iniciativa de quebrar essa união sem perder em ampla, pois se manifestou, em poucos casos bem conhecidos , mesmo no
credibilidade política. De outro lado, ao deslocar para baixo o exé rcito rebelde.
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

impulsões revolucioná rias dos “ prolet á rios” e dos “ humildes” - um combate sem tréguas aos últimos baluartes da ordem social
e seus reflexos na composição ou no comportamento da própria neocolonial e logrou exportar a contra-revolução (fixando-a como
vanguarda - que transcendiam às probabilidades de iniciar a um abscesso, no corpo do centro imperial). São conhecidos os
revolução sem liquidar ou enfraquecer os compromissos unit á ¬
custos dessa opera ção, em termos emocionais, de capacidade
rios da frente ampla. administrativa e culturais. Todavia, esses custos foram ampla ¬
Inaugura- se, assim, o período “ menos heroico” ou “ menos mente compensados pelo fato de a revolu ção cubana ter - se li ¬
româ ntico” da açã o dos guerrilheiros, porém, o per íodo mais vrado de uma bomba de a çã o retardada e conquistado a
fecundo e construtivo da guerrilha como base da pol ítica revo ¬
possibilidade de formar seus quadros a partir de um ponto zero.
lucioná ria. É comum ouvir -se falar na “ radicalização na Serra” . A radicalização dos guerrilheiros no poder poderia seguir um
Ora, a radicalização na Serra n ão é nada em compara ção à curso livre, como se Cuba, nessa etapa de sua história, tivesse
radicalização concentrada, que teve de ser desenvolvida entre conquistado a capacidade de escolher seu próprio destino histó ¬
1959 e o primeiro semestre de 1961, a qual nascia da própria rico.
estrutura do poder revolucioná rio e da necessidade de tomar A radicalização, agora, seria determinada no campo estrita ¬
decisões especificamente revolucioná rias. A “ guerrilha militar ” mente polí tico, no qual a revolu çã o a partir de cima se organiza ¬

permitira chegar à conquista do poder. A “ guerrilha pol í tica” va e se convertia em realidade. A questão política central consistia
começara, ent ão, como uma t ípica revolução a partir de cima. em como fazer avan çar a revolução : como eliminar os obstácu ¬
Para a honra de Cuba e a grandeza dos guerrilheiros, eles en ¬ los, que se erguiam contra ela a partir de dentro e a partir de
frentaram essa passagem inevit á vel com bravura, compaixão e fora; e como aproveitar a oportunidade hist órica que, apesar de
imaginação pol ítica. N ã o faltou, mesmo, uma certa mal ícia no tudo, ficara ao alcance de Cuba no plano mundial. O argumento
uso do setor liberal- radical da burguesia como uma espécie de de que o castrismo “ traí ra” a revolução surgiu tanto dentro de
straw man. For çado a medir - se com as exigências da situação, Cuba quanto nos Estados Unidos (em carta de 8/ 4/1960 o presi ¬
esse setor deixou a descoberto as impossibilidades da burguesia dente Eisenhower endossou essa acusação; ela circula ainda hoje.
e de uma cubaniza ção do capitalismo - ou de uma “ reforma do Entre os epígonos desse ponto de vista, cf. T. Draper, Castroism,
capitalismo” a partir do empuxo da revolu çã o ( na verdade, a Theory and practice ). As classes possuidoras cubanas cometeram
composiçã o com os liberal- radicais funcionou como uma opera ¬ o equ ívoco de subestimar o castrismo e o exé rcito rebelde, como
ção de rescaldo, da qual Fidel Castro tirou todas as vantagens se pudessem restabelecer o status quo ante por meio de uma “ con ¬
possí veis ). Os estratos burgueses viram- se postos diante de tare ¬ ciliação nacional” . Os Estados Unidos caí ram no erro de redu ¬
fas polí ticas que n ão podiam desempenhar sem comprometer o zir o castrismo a uma revolu ção nacional- democrática e populista
capitalismo com a desagrega çã o da ordem social neocolonial, ou convencional, que poderia e deveria ser posta em seu lugar. Os
seja, sem desagregar o modo capitalista de produ çã o. Tiveram papéis históricos foram invertidos e os guerrilheiros postos na
de titubear, de oscilar e de passar à contra- revolução no momen ¬ parede : ou tra í am , literalmente, a revolução cubana ou se
to em que a pressão das classes trabalhadoras e da popula çã o radicalizavam ininterruptamente, até que encontrassem o pata-
pobre alcançara o zénite - o que simplificou deveras o trabalho mar histórico do processo revolucion á rio que conduziam. Por
destrutivo da revolu ção, que aumentou assim a liberdade de dar conseguinte, essa etapa continua a guerrilha por outros meios e
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

expõe os guerrilheiros ao que lograram evitar antes, tomar uma socialista. É preciso fazer essa ressalva, porque elas também po¬
posição fechada na luta de classes. A revolu ção “ desde o poder” deriam ser focalizadas de uma perspectiva mais ampla, o que
(como a designa J. le Riverend, La republica intervenida, p. 374) traria o debate até os dias que correm.
deixa de ser uma “ revolu ção de Cuba e para Cuba” , de todos os Quanto à primeira questão, a porosidade de Cuba aos Estados
cubanos. A vanguarda revolucionária proletariza- se* e, em se¬ Unidos, o grau de desenvolvimento capitalista em condição
guida, realiza mais dois saltos: torna-se anticapitalista e busca neocolonial e ausência de um partido revolucionário de extrema
no socialismo revolucionário uma saída para Cuba, arrastando esquerda hegemónico imprimiram à revolução cubana uma for ¬
consigo a massa dos proletários rurais e urbanos. No jargão re¬ ma histórica especial. Ela se fazia diretamente contra a metrópole
volucioná rio, estes deixam de ser os “ humildes” , pois os que imperial, mas a saliência política se concentrara no enfoque
lutavam pela revolu ção compartilhavam a condição política de independentista e só por implicação no “ antiimperialismo” . Como
companheiros ou camaradas. já foi assinalado, a situação revolucionária continha componen ¬

Esse bosquejo suscita à discussão sociológica três questões tes estruturais e dinâmicos de revolução dentro da ordem e de
básicas. Primeiro, a que se refere à própria natureza da revolu ¬ revolução contra a ordem, o que fazia com que vá rios tipos de
ção cubana (a crise da unidade política que ela envolve de ime ¬ forças sociais radicais, reformistas e especificamente revolucio¬
diato revela, hegelianamente, que a frente ampla era instrumental nárias, movimentadas simultaneamente pelas classes burguesas e
para derrubar a ditadura de Batista, mas não para destroçar a pelas classes trabalhadoras, gravitassem em torno da criação de
ordem social neocolonial). Segundo, a que diz respeito ao “ ini¬ um “ modelo nacional” de desenvolvimento capitalista ( nesse sen¬
migo principal ” ( quando a desagregação da ordem social tido, uma “ reforma nacionalista do capitalismo” surgia como um
neocolonial atinge a estrutura íntima da dominação burguesa, objetivo centralmente revolucion á rio no seio da ordem social
os Estados Unidos aparecem, inevitavelmente, como a barreira neocolonial). Os partidos existentes, com exceção do Partido So ¬
final à revolução a partir de cima e, portanto, como o verdadeiro cial Popular, não possu íam uma base material de poder para uni ¬
motor da radicalização ininterrupta da vanguarda revolucioná ¬ ficar as tarefas políticas da revolução nacional e do que se poderia
ria no poder). Terceiro, a que se relaciona com o momento da designar revolução pelo desenvolvimento (capitalista). Este par ¬
história universal (a revolução cubana, apesar dos ritmos retar ¬ tido, por sua vez, prendera-se demais a uma estratégia de luta de
dados do neocolonialismo, entrou em interação com as forças classes fundada na presunção de que a burguesia cubana seria ca ¬
que constroem no presente um novo padrã o de civilização, o paz, pressionada de baixo para cima, de unir a liberação nacional
que impregnou a revolu ção a partir de cima de conteú dos ideo ¬ com a reforma do capitalismo e a revolução democrá tica. O
lógicos e utó picos socialistas irreversíveis). Essas questões serão castrismo procura superar esse ponto morto, entre 1954 e 1956,
vistas em função do contexto histórico apontado, ou seja, dos apelando diretamente para um populismo ultra-radical (é conhe¬
quase dois anos e meio que vão da conquista do poder à virada cida a definição que Fidel Castro propõe para o Movimento 26 de
Julho: “ a organização revolucionária dos humildes, pelos humil¬
Como escrcvc Che Guevara: “ en el marco del proceso de proletarización de
des e para os humildes” . Cf. La revolución cubana, p. 110). Além
nuestro pensamiento” (“ El socialismo y el hombre” , La economía socialista: disso, seu projeto político global articulava a revolução nacional
debate, p. 376). com a autonomização do desenvolvimento capitalista e com a
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

implanta ção da democracia. Essa linha revolucionária n ão era composição legalista ou como um ponto final ( na mesma época,
antagónica às classes possuidoras e aos estratos nacionalistas da
ele proclamava que a revolução iria, enfim, começar e educava
burguesia cubana. Ao contrá rio, permitia uma flexível unificação as massas para entenderem isso!). Como escreve Karol: “ nem
pol ítica de todas as forças em torno de interesses comuns, vincu ¬ ele pretendia fazer um presente de sua revolu çã o a ninguém;
lados à revolução nacional, à autonomiza ção do desenvolvimento nem ele precisava estar no governo para controlá-lo” ( Guerrillas
capitalista, à implantação da democracia e, por esses meios, a um in power, p. 181). As classes burguesas apenas ganharam um es ¬
redistributismo de sentido socialista (mesmo tão perto da vit ória paço para colaborar na liberação nacional, na autonomização do
militar, em 20 de julho de 1958, Fidel Castro dera o seu aval - e o desenvolvimento capitalista e na implantaçã o de uma democra ¬

do exé rcito rebelde e do Movimento 26 de Julho - a “ um acordo cia social. Elas precisariam caminhar depressa para acertar seus
em favor de uma grande frente cívica revolucionária de luta, de passos com os dos guerrilheiros e, o que seria ainda mas decisi ¬
todos os setores” . Cf. op. cit., pp. 152-155). O estado de guerra civil vo, com o fluxo incontrolá vel das pressões de baixo para cima.
era tão generalizado que toda a sociedade cubana se achava mobi ¬ Na verdade, a revolução chegara muito tarde para aquelas clas ¬
lizada ( ativa ou passivamente) na derrocada da ditadura de Batis ¬ ses. A unidade nacional não se fizera sob a égide de um poder
ta. Esta n ã o podia sequer empregar toda a sua pot ência militar
burguês ( mesmo conservador ou reacion á rio, como acontecera
contra o exército rebelde (segundo autores bem informados, nun ¬
em certos países da Am é rica Latina). Além disso, os movimen ¬
ca pôde colocar na linha de frente mais de 1/4 de suas tropas. tos influx pela liberação nacional e pela revolu ção democrá tica
Sobre o assunto e as principais fontes, veja-se G. Pierre- Charles, não podiam ser creditados à ruptura burguesa com a ordem so ¬
Génesis de la revolución cubana, p. 154). No conjunto, os preceden ¬
cial neocolonial e seu modelo de desenvolvimento capitalista.
tes sobre o esmagamento do patriotismo revolucion á rio, a ênfase
Em termos de imagem histó rica e de consciê ncia social, a re ¬
unitá ria do Movimento 26 de Julho e sua absor ção seletiva pelo volução ficara presa aos guerrilheiros e estes a viam como uma
exército rebelde, por fim a constituição de um governo revolucio ¬ revolu ção popular.
ná rio de frente ampla pareciam indicar que a revolução cubana Tudo isso patenteia que a decomposi ção da sociedade
ficaria marcada como uma reformula ção nacionalista da demo ¬ neocolonial acabou sendo tão rápida que a burguesia se viu pri ¬
cracia burguesa. As “ projeções sociais” do exército rebelde per ¬
vada, em todos os seus estratos - inclusive o mais poderoso, o
maneceriam recolhidas na consci ê ncia revolucion á ria dos estadunidense - de base material e social para preservar a uni ¬

guerrilheiros e no coração das massas populares. À democracia


dade e a eficácia de qualquer dominação de classe burguesa ou
armada seria contraposta, como o rebento da história concreta, para manter seu controle sobre o Estado. Ao desmantelar a dita ¬
uma sociedade capitalista liberada.
dura, os guerrilheiros destroçaram, de fato, o Estado neocolonial
Em termos de Cuba e de Am é rica Latina, é claro, isso não e a forma pol ítica do governo t ítere ( que funcionava, também,
seria pouco! No entanto, como fazer semelhante evolu ção pas ¬
como um “ governo de conciliação” ). Ao monopolizar o poder
sar pela vitó ria militar do exército rebelde ou torn á-la conciliável
real do governo revolucion á rio de frente ampla, aos n í veis polí ¬
com a mentalidade revolucion ária dos guerrilheiros no poder ?
tico, policial-militar, judiciá rio e diplomá tico, os guerrilheiros
O governo revolucioná rio de frente ampla não era um governo
ficaram com a faculdade de arbitrar as rela ções e os conflitos
de concilia çã o nacional. Fidel Castro aceitara- o, não como uma
entre as classes antagó nicas ( e iriam exercer a arbitragem contra
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA I

o espírito capitalista inerente ao status quo ante). Onde e quando separaram nitidamente os tempos que se tornaram de decompo ¬
as classes burguesas pretenderam, por meio da sabotagem, da sição final do capitalismo e de implantação do socialismo. Aliás,
resistência passiva ou ativa e da contra-revolu ção, travar a libe ¬ é o que assevera O. Pino Santos: “ (...) parece difícil delimitar
ração nacional, a autonomização do crescimento económico e a cronologicamente 0 momento de passagem no qual a revolução
revolu ção democrá tica, elas foram dissuadidas pela punição e, liqiiida, já cumpridas, as tarefas de liberação nacional, e começa
finalmente, pelo afastamento do governo revolucion á rio e pelo as tarefas de construção socialista” . E é o que ressalta, de outro
encurralamento (J. O’Connor, The origins of socialism in Cuba, â ngulo, o presidente Osvaldo Dorticós: “ Não há modo de en ¬
cap. 10, contém uma l úcida an á lise das possibilidades de contrar uma solução de continuidade entre ambos os processos.
harmonização que se perderam e redundaram na destruição das Trata- se de um só processo de criação revolucionária emergente
classes burguesas). Não obstante, malgrado a ambigüidade do do triunfo da luta armada” ( cf. O. Pino Santos, Aspectos
governo revolucionário de frente ampla e a flexibilidade que fundamentales de la historia de Cuba, p. 320). A revolução cubana
sublinham as reformas dentro do capitalismo, até fins de 1960 e desata e realiza simultaneamente várias revoluções, que não se
o in ício de 1961 o sistema de poder nascido da revolu ção não era completaram no passado remoto ou recente. Essa possibilidade,
um sistema misto (ou seja, meio burguês, meio proletá rio). Ele todavia, vincula-se à emergência de uma nova organização do
era, apesar das aparências em contrário, uma ditadura guerri¬ poder que anulou a dominaçã o de classe burguesa, quer como
lheiro-popular. Esta era, pois, a forma pol ítica de sí ntese que a expressão da vontade imperialista estadunidense, quer como
democracia armada teria de assumir para rearticular os guerri¬ expressão da vontade capitalista propriamente cubana. Por isso,
lheiros, como vanguarda política, com a classe social majoritá ¬ a história foi tão rápida e tornou-se impossível salvar, na desa¬
ria e revolucioná ria. gregação final da ordem social neocolonial, o capitalismo, 0 re ¬
Se os Estados Unidos tivessem demonstrado maior elastici¬ gime de classes e 0 Estado representativo.
dade e se as classes burguesas cubanas contassem com um po ¬ Quanto à segunda questão, é óbvio que os Estados Unidos
tencial revolucionário próprio, a revolução poderia prescindir não precisariam passar de entrave à liberação nacional a “ inimi ¬
dessa “ etapa a partir do poder ” e, portanto, dessa “ democracia go principal” dessa revolução se as transformações capitalistas
armada” como forma política de transição. Nesse caso, nem a comandassem, a partir de dentro e a partir de fora, a desagrega ¬
política revolucioná ria teria sido um prolongamento da guerri ¬ ção da ordem social neocolonial. O elemento neocolonial
lha nem o poder de arbitragem acima das classes precisaria di ¬ imantou, polarizou e castrou de modo permanente as classes
luir- se t ão depressa, desaparecendo quase que automaticamente burguesas. E o fez claramente graças e através da presença do
em uma ditadura revolucionária exercida em nome, com o pa ¬ centro imperial como e enquanto exercício de uma hegemonia
trocínio e em defesa da maioria. A revolu ção poderia passar pelo neocolonial. No decl í nio da era neocolonial vá rios setores da
e encontrar- se no capitalismo nacionalista e reformado. Então burguesia cubana - e até seu n úcleo comprador - se dispuseram
se poderia afirmar sociológicamente que a revolução teria tido a sair do imobilismo. Essa alternativa falhou porque os Estados
vários tempos e que teria passado de um estágio democrá tico- Unidos bloquearam qualquer transformação capitalista do capi ¬
burguês para outro, socialista. Na realidade, as coisas não ocor¬ talismo, dentro de Cuba, que ameaçasse ou destruísse o caráter
reram nem poderiam ocorrer assim. Os ritmos históricos não neocolonial que sua dominação imperialista acabou assumindo,
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DA GUERRILH SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS

As fronteiras da guerra civil se deslocaram para os Estados Uni ¬


ao longo de uma evolu ção secular. Depois da conquista do poder
pelos guerrilheiros, tanto privada quanto oficialmente os Esta ¬
dos (onde antes estavam, mas de modo mediado e disfarçado).
Em consequência, o capitalismo teria de ser posto em causa jun ¬
dos Unidos responderam à guerrilha com a guerrilha. Conta ¬
tamente com a ordem social neocolonial, a dominação burguesa e
vam com a hipótese de que quem pode mais se desgasta menos e
com a certeza de que os cubanos seriam incapazes de levar a o imperialismo neocolónialista dos Estados Unidos.
Portanto, a posição egoísta, míope e agressiva dos Estados
descolonização até o fundo e até o fim. Ora, isso correspondia a
Unidos facilitou o desenvolvimento de uma estratégia política
encarar uma situação histórica nova à luz de experiências e de
que proporcionou à revolu ção cubana o próprio eixo pelo qual a
raciocínios políticos válidos para o status quo ante. Com a derrota
descolonização poderia ser levada até o fundo e até o fim. Toda a
de Batista e o enquadramento das classes burguesas cubanas,
controvérsia sobre a “ traição” e a “ virada comunista” dos guer ¬
dentro dessa linha de ação eram os Estados Unidos que ficavam
rilheiros não tinha nenhum sentido. Fidel Castro aproveitou-a
à mercê dos guerrilheiros (e não o inverso). À tática da asfixia
com extrema habilidade, de forma tipicamente guerrilheira, a
calculada e arrogante, Fidel Castro respondeu com a tá tica do
qual fugia aos parâ metros convencionais e fazia os erros cometi ¬
golpe contra golpe, seja preventivamente, seja em retaliação. A
dos pelo adversá rio renderem vantagens crescentes. O governo
situação mundial criara espaço histórico para que uma pequena
revolucioná rio, que depois da queda do presidente Urrutia já
“ nação problema” da América Latina ousasse ir tão longe desa ¬
tinha marcado por onde não iria e não permitiria ir, ganhou
fiando o colosso e derrotando-o.
uma dupla oportunidade. Uma, de dissociar-se de compromis ¬
O que conta, nesse quadro geral, é que o pólo hegemónico
sos assumidos inicialmente, na época da constituição do Movi¬
da dominação burguesa na sociedade cubana tornou-se uma ca ¬
mento 26 de Julho ou logo a seguir, e outra através dos pactos de
tastrófica bota de chumbo. Os setores mais abertos e os estratos
frente ú nica. Em suma, o governo revolucioná rio ficara mais
verdadeiramente reformistas (ou mesmo nacionalistas) da bur¬
livre para vincular reformas desenvolvimentistas com o comba ¬
guesia ficaram manietados por uma defesa do capitalismo feita
te de iniqiiidades herdadas do antigo regime. A interferência
sob medida para agravar a situação revolucionária e prolongar a
estadunidense suscitava, por aí, a redução do espaço político da
guerra civil, até que o centro imperial também fosse atingido
burguesia como uma espécie de “ questão nacional” . Posto à pro ¬
pela derrota militar.
va, o governo revolucioná rio demonstrava que, desta vez, os cuba ¬
Esse fato possuía importâ ncia secundária, do ponto de vista
nos n ão iriam recuar diante das tarefas impostas pela revolu ção
diplomá tico ou militar. O mesmo não sucedia do ponto de vista
nacional e democrática. A outra oportunidade possuía um cará ¬
psicológico ou político. Ao agravar a situação revolucioná ria de
¬

ter mais complexo. A interferência estadunidense, por si mes¬


pois da queda da ditadura e da derrocada do sistema de governo
ma, reativava a síndrome cubana, o temor da recrudescência do
t ítere, a interferência estadunidense contribu ía para tornar a
colonialismo disfarçado. Essa formação psicossocial e política
descolonização até o fundo e até o fim uma premente necessidade
reativa expunha o reformismo desenvolvimentista a uma pres¬
nacional. No contexto do aguçamento da luta de classes, enfra ¬
são erosiva extrema e erguia o questionamento central: como
quecia as classes burguesas cubanas, dividia-as irremediavelmen¬
conciliar o capitalismo com a autodeterminação e a soberania
te ainda mais e retirava delas qualquer possibilidade de
de Cuba? A “ reforma do capitalismo por dentro do capitalismo”
entendimento com os guerrilheiros para pôr cobro à guerra civil.
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA |

poderia responder aos dilemas sociais de Cuba e às exigências de apoio ou um mero “ fator de reforço” . Se essas nações aceitas ¬
histó ricas de sua revolução, ambos nascidos de deformações pro ¬ sem um mínimo de responsabilidades econó micas, culturais,
duzidas pelo próprio capitalismo? Colocando-se nesse contexto diplomá ticas, políticas e militares, configurar- se-ia, a partir de
a reforma agrária de 1959, as vá rias medidas redistributivas des ¬ fora, a possibilidade de inclusão de Cuba nas correntes históri¬
se ano e as nacionalizações de 1960, entende-se porque os guer ¬ cas da época do socialismo. O que estava em jogo, desse ângulo,
rilheiros no poder forçaram a mão, radicalizando-se de modo era o grau de liberdade de Cuba de saltar da descolonização para
contínuo e crescente. Ou seja, descobre-se o por quê de terem a autodetermina ção propriamente dita.
avançado até aonde parecia impossível ou desaconselhável den ¬ A essa oportunidade histórica prendeu-se a aceleração e o
tro do capitalismo, para que os compromissos da revolu ção com aprofundamento da revolução cubana. A partir desse patamar e
o povo e com a na çã o fossem atendidos . A interfer ê ncia dessa possibilidade, não havia o risco de que essa revolução re ¬
estadunidense contribuía para provocar, por aí, a intensa acele¬ produzisse a tragédia de outras revoluções da América Latina:
ração que estava conduzindo a revolu ção cubana ao que deveria ela não seria uma “ revolução interrompida” , que fora muito mais
ser o seu apogeu histórico. longe que as outras. Tampouco haveria o risco de “ o passado se
Quanto à terceira questão, é sabido que as grandes revolu ¬ repetir ” e a revolução cubana ser esmagada pelo peso do status
ções sempre trazem a marca de sua época. É ilusório buscar o quo ante. A oportunidade histórica oferecia uma alternativa de
caminho dessas revoluções apenas em suas potencialidades in ¬ padrão de civilização, ou seja, uma base material para a conti ¬
ternas. Estas são decisivas, mas mesmo o que elas contêm de nuidade da revolução e toda uma constelação de tarefas a ser
mais avançado ou de mais novo - a sua modernidade - só se enfrentada por ela, através da colaboração da vanguarda revolu ¬
revelam a partir de um campo externo que constitua o solo his ¬ cionária com a massa do povo cubano. O que significa que, nes¬
tórico do seu florescimento e consolidação. A importâ ncia desse ses quadros históricos, havia uma radicalização de 360 graus no
campo histórico externo varia de civilização para civilização e, rumo daquela vanguarda. Os guerrilheiros deram essa guinada
naturalmente, em uma mesma civilização, de época para época. e imprimiram à revolução cubana a forma pol ítica que ela deve¬
Permanecendo no essencial: o êxito das revoluções de liberação ria ter para que atingisse seus objetivos e colocasse a América
nacional, após a II Grande Guerra, dependia estreitamente da Latina nas correntes históricas da época do socialismo. A revo ¬
solidariedade externa [ uma questão que não pode ser discutida lução, que desde suas origens contivera componentes radicais e
aqui]. Cuba, forçosamente, tinha que depender de modo ímpar populares muito fortes, que lhe davam um sentido socialista,
desse fator, seja pela sua condição extrema de “ economia de um converteu-se numa das grandes revolu ções proletárias e socia ¬
só produto e de um só mercado” , seja porque os Estados Unidos listas do século 20. 1960 aparece como o ano que prepara e efeti ¬
passaram muito depressa da interferê ncia exacerbada para a guer¬ va esse toumant - e é, portanto, o ano no qual a revolu ção cubana
ra económica, diplom á tica e militar. Portanto, a União Soviéti ¬ se inicia, de fato e de modo irreversível.
ca, a China, as democracias populares e os países do Terceiro A revolu ção a partir de cima lograra, pois, ultrapassar todos
Mundo constituíam as alternativas possíveis entre tantas incer ¬ os alvos previstos. Nesta etapa, a guerrilha como meio para ou ¬
tezas. A cooperação com essas nações e, principalmente, com o tros fins começa a perder sua razão de ser e os próprios guerri ¬
chamado “ bloco socialista” não surgia como um simples ponto lheiros teriam de desaparecer como entidade hist ó rica .
14) 6 I
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

Convertidos na vanguarda do Estado revolucioná rio em elabo ¬


ECONOMIA E SOCIEDADE
ra çã o, continuariam a ser a mola mestra da revolu ção cubana.
Contudo, agora seriam os servos daquele Estado, empenhados SOB 0 SOCIALISMO
na consolidação do poder popular e na constru ção de Cuba socia ¬
lista.

Com a vit ória de sua revolução de libera ção nacional, Cuba


conquistou a liberdade de chegar ao socialismo. O grande pro ¬
blema que teve de enfrentar, nas décadas de 1960 e 1970, consis ¬

tiu naturalmente em como passar de uma acumulação capitalista


neocolonial e ultrapredató ria para uma acumulação socialista
originá ria. A “ expropriação dos expropriadores” constitui uma
bela frase. Como construir as bases materiais e sociais da transi ¬
ção para o socialismo num país que se vira reduzido, do modo
mais completo e com todas as deformações imagin áveis, a uma
economia de um só produto e de um só mercado? Apesar do
desenvolvimento alcan çado pelo capitalismo, por sua natureza
neocolonial ele não deixou uma heran ça que servisse, mesmo
precariamente, de ponte para essa passagem. Cuba teria de en ¬

frentar vá rias revolu ções interdependentes e sucessivas para abrir


seu caminho. E a acumulação socialista originária avan çou gra ¬
ças a sacrifícios sem conta, que permitem dizer que os cubanos
arrancaram de seu sangue, de sua carne e de seus ossos a subs ¬

tâ ncia que alimentou o encetamento e a estabilização da transi¬


ção (seria mais preciso, mesmo, falar-se de uma pré- transição, a
ser laboriosamente constru ída com base na produção e exporta ¬
ção do açúcar) .
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I COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS P ovos DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

O “ socialismo de acumulação” já foi caracterizado como um herança complicada, onerando a revolução cubana com o peso
socialismo difícil (ver A. Gorz, O socialismo dif í cil; trad. M. H. da terrível guerra económica, política e militar que lhe moveu
K ü hn, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968; E Fernandes, Apon¬ de forma impiedosa e prolongada. E a pró pria guerra civil teve
tamentos sobre a “ teoria do autoritarismo” , São Paulo, Hucitec, 1979, seus custos desastrosos, não só em termos económicos mas tam¬
pp. 90-107). Ora, esse “ socialismo difícil” mostrou-se, em Cuba, bém humanos. A revolução socialista precisou atacar m últiplas
mil vezes mais difícil. Não é que não existissem as célebres “ con ¬ causas, que se opunham à sua existência e à sua vit ória; e foi
dições objetivas e subjetivas” da revolução socialista. Estas são com muito denodo e com muito amor que os cubanos lograram
criadas pelos seres humanos ao produzirem coletivamente a vi¬ obter o conjunto de m í nimos econó micos, sociais, culturais,
tória da revolução socialista. É estranha e obsoleta a obsessão políticos e militares que permitem iniciar a organização das for ¬
mecanicista de um debate que nunca teve razão de ser. A idéia ças produtivas e da sociedade em bases socialistas. Demorou
de que um extenso e profundo desenvolvimento capitalista pré¬ muito tempo, embora não pareça, para que a revolução socialis ¬
vio é indispensável ao êxito da revolução socialista faz parte de ta saísse do seu “ período destrutivo” e encetasse o seu “ período
arraigados mitos eurocêntricos de nossa época. Onde a revolu ¬ construtivo” propriamente dito. Este processo é tão recente que
ção burguesa revela-se impraticável, porque a própria burguesia o êxito da revolução socialista em Cuba, por enquanto, deve ser
é incapaz de conduzi-la, ou onde a revolu ção de liberação nacio ¬ medido por essa proeza, que se desenrola ainda hoje, aos nossos
nal leva diretamente ao socialismo, a revolu ção socialista não olhos.
“ herda os problemas que o capitalismo não resolveu” : ela se afir ¬ Ao entrarmos na discussão desta unidade expositiva, temos
ma como a ú nica alternativa possível ao desenvolvimento capi ¬ à nossa frente, portanto, todo um mundo de problemas de suma
talista. Portanto, ela parte de seus próprios problemas, nos quais importâ ncia teó rica e prá tica para o socialismo. Já se disse que
se incluem a ruína de extensas massas humanas e a escassez ex ¬ Cuba não poderia socializar mais que a miséria. Nestes últimos
trema de recursos, seja para acelerar o desenvolvimento econó ¬ 20 anos Cuba fez mais que isso, o que exige que se retome a
mico, seja para fomentar os padrões socialistas de eqiiidade sem crítica desse julgamento cruel. Chega- se onde quando se parte
destruir a continuidade e o progresso da revolu ção. O que pare ¬ da “ socialização da miséria” ? Os inimigos da revolução cubana
ce ser um “ estágio capitalista dentro do socialismo” representa prestaram-lhe um serviço, certamente sem o querer! Graças ao
o deslanche que prepara a revolução socialista (ainda é preciso socialismo, apenas em 20 anos, Cuba: Io. livrou-se da condição
comprovar se as coisas poderão ser diferentes, pois é evidente de “ nação-problema” , que a levara ao beco sem saída em que se
que um intenso desenvolvimento capitalista prévio coloca ou ¬
encontrava; 2o. realizou uma reforma agrá ria que se inscreve na
tros problemas à revolu ção socialista, que a tornam igualmente história das grandes realizações que ocorreram na América La ¬
difícil e tormentosa. A “ abundâ ncia” não é nem poderia ser o tina no século 20; 3o. retirou a maioria de sua população, os se¬
crit é rio essencial da passagem para o socialismo!). É esse tores mais pobres dos proletá rios rurais e urbanos, da situação
deslanche que foi e continua a ser tão difícil em Cuba. Não só a crónica de condenados da terra, assegurando-lhes meios perma ¬
economia e a sociedade neocoloniais vinham de crises crónicas nentes de trabalho, um padrão sóbrio mas decente de vida, e a
sucessivas, constantemente agravadas, desde a década de 1920. possibilidade de viver como gente; 4o. suplantou um dos mais
Os Estados Unidos cortaram todas as soluções mais fáceis dessa terríveis cercos capitalistas e deixou definitivamente para trás o
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DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBAHA |
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

complexo colonial e a complacência da burguesia compradora chegue ao planejamento social e, assim, possa intensificar seus
( lembrem -se da mensagem de Raul Castro: “ Concretamente, ritmos, aprofundar -se e consolidar -se. Essa questão põe- nos dian ¬
senhores imperialistas, nossa posição é esta: nosso país é peque¬ te do primeiro assunto que deverá ser examinado nesta aula. Se
no e estreito e em torno dele existe o mar; n ão h á esperança para o planejamento n ão era um subproduto da revolu ção cubana,
recuar ” , discurso de 22/7/1967, Partisans, n ° 38, p. 18); elevou- como ela engendrou as condições externas que o tornaram his ¬
se, pelos êxitos relativos, à condição de um experimento ideal toricamente possível ? De outro lado, ao falar - se de revolução
entre os pa íses socialistas, pois demonstra o que é preciso fazer socialista e de planejamento social n ão se fala de duas entidades
para engendrar e, depois, estabilizar a transição socialista em distintas completamente separadas uma da outra. Na verdade, o
condições econ ó micas francamente adversas e o que falta à soli ¬ planejamento não constitui uma simples técnica instrumental
dariedade socialista para tornar-se uma força revolucion á ria efe ¬ da revolu ção socialista: ele é a revoluçã o socialista vista do â n ¬
tiva no plano internacional. gulo de seus fatores e processos positivos, ou seja, ele é a revolu ¬

Seria impraticável, e mesmo desaconselhável, explorar ques ¬ ção socialista quando esta consegue passar à constru ção das
t ões dessa magnitude em um curso tã o elementar. Ainda assim, formas sociais de organização da produção, da sociedade e do
é possível enumerar fatos e estabelecer, em linhas gerais, a natu ¬ Estado específicamente socialistas. Essa quest ão nos põe diante
reza dos avan ços realizados ( objeto desta e da próxima unidade do segundo assunto que deve ser discutido nesta aula: o que a
de trabalho did á tico ). Isso implica fazer um balanço global, na ¬ revolução cubana podia ou pôde pô r ao alcance do planejamen ¬
turalmente limitado pela precariedade das informações ou pela to social para que este tome as formas sociais socialistas de orga ¬

redu ção do tempo de que dispomos. Nesta primeira etapa, foca¬ nização da produção, da sociedade e do Estado uma realidade?
lizarei as formas sociais socialistas de organiza çã o da economia A vitória do socialismo como alternativa histórica não poderia
e da sociedade, seguindo o seguinte roteiro: 1. condições e efei¬ converter Cuba em uma nação socialista como por “ milagre” .
tos do planejamento; 2. as transformações da economia; 3. nova Para que isso suceda, é necessário que o comportamento revolu ¬
sociedade e novo homem. A escolha destes temas é arbitr á ria. cioná rio coletivo opere em todos os níveis e em todas as dire ¬
Porém, ela obedeceu a uma ambição intelectual construtiva: a ções segundo uma ideologia socialista (a ditadura do proletariado
de apanhar a revolu ção cubana como uma totalidade hist órico - como uma forma pol ítica democr á tica) e uma utopia socialista
social. Ao encar á-la, agora, como um processo em crescimento e (o socialismo como um estágio de transição para o comunismo ).
em sua marcha para a frente, senti que era preciso dar priorida ¬ Este segundo assunto envolve a situação hist órica in flux e em
de a temas inclusivos que melhor revelam como opera a “ revo ¬ termos de potencialidades que mal come çaram a delinear-se em
lução dentro da revolu ção” depois que toda uma sociedade se Cuba. Por isso, ele é naturalmente delicado e, em sua discussão,
organiza na defesa e na prá tica do socialismo. não é possível ir tão longe quanto seria teoricamente desejá vel,
o que me levou a evitar um debate de estilo “ ortodoxo ” (ou
i- Condi ções e efeitos do planejamento dogmá tico) do assunto.
A rela ção entre planejamento social e revolução socialista O primeiro assunto j á é relativamente conhecido e me limi¬
não é uma rela çã o simples e automá tica. Ao contrário, é preciso tarei a tratar de algumas evidências mais gerais (é preciso que se
que se criem certas condiçõ es para que a revolução socialista note: até hoje, só M. Gutelman realizou uma an álise dialética
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COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

em profundidade do planejamento em Cuba). O planejamento suscitar uma espécie de religião leiga onde a tradição neocolonial
social centralizado e em escala nacional abrange todo um siste ¬
fomentara uma ingerência tão universal e arbitrária quanto foi
ma de instituições, valores, normas, atitudes, comportamentos secularmente a dos Estados Unidos em Cuba; e onde a concilia¬
e controles sociais, que só pode aparecer, florescer e expandir -se ção se impunha como uma sorte de “ jogo sujo” no uso do governo
em condições históricas específicas ( por isso, K. Manheim de ¬ títere para fins particularistas internos ou externos ultra-egoísticos.
signou- o uma técnica social; e eu procuro ligá-lo tão precisa ¬ Além disso, o desenraizamento que se manifestava tão intensa ¬
mente quanto possível ao padr ã o socialista da civiliza çã o mente, em termos de geraçã o, como “ fenô meno de classes médias
moderna). Condições dessa natureza não existiam em Cuba no e altas” , a depressão do “ espírito capitalista” implícita na forte
início de 1959 e tampouco poderiam surgir como um “ produto compulsã o ao entesouramento e ao investimento seguro no exte ¬

orgâ nico” da revolu ção cubana, mesmo em fun ção do toumant rior, o tipo de racionalidade predatória que prevalecia no n úcleo
para o socialismo. No plano considerado, o planejamento não é mais ativo da burguesia compradora etc. distanciavam a mentali ¬

só uma forma social da produção; ele é, concomitantemente, dade burguesa de qualquer cruzada militante contra o planeja ¬
uma forma social da sociedade e do Estado. Ele exige, de modo mento como técnica social. Mesmo depois que a revolução cubana
coletivo, ou a disposição de consentir sua existê ncia, em si mes ¬ foi expurgada da alian ça com os setores “ liberais” da burguesia,
ma muito complexa, ou a disposição de querer a sua existência, mas ainda parecia que o governo revolucioná rio iria manter-se
ainda mais complexa. como semip úblico e semiprivado, em sua linha de ação política, a
Ao primeiro ní vel, Cuba teria certas condições favorá veis ao toler ância para consentir em algo como a aceitação do planeja ¬
rápido aparecimento do planejamento social centralizado em es¬ mento social dentro de certos limites existia nas classes possuido ¬
cala nacional. Aí há a considerar o “ aspecto técnico” , ao qual ras. No que se refere aos estratos mais politizados das classes
Guevara deu conhecida atenção. As “ consolidadas” - ou as gran ¬
trabalhadoras, como produto da expansão do sindicalismo, da
des empresas estadunidenses - transferiram para Cuba avançadas consistência de movimentos políticos radicais e revolucionários,
t écnicas de organiza ção e administra çã o. A revolu çã o podia da experiência de greves econ ómicas e pol íticas, da atuação do
aproveitá-las e, de fato, isso foi tentado. Além disso, o modo de Partido Social Popular etc., havia uma compreensão de que o pla¬
manifestação do capitalismo abria um certo espaço histórico à nejamento seria fundamental para diferençar e aumentar a pro ¬
toler â ncia ( nas classes possuidoras) e de apoio ativo (nas classes dução e expandir o mercado interno, redistribuir a riqueza e o
trabalhadoras) ao planejamento. A relação das várias classes sociais poder de forma mais democr á tica, combater o desemprego, o
com o padrão capitalista de civilização moderna era do tipo que subemprego e a pobreza etc. O Movimento 26 de Julho e a conso ¬
M. Weber chamaria de amorfa. A ordem social competitiva era lidação do castrismo, inclusive, contribuíram para modificar a
solapada e sufocada pela situação neocolonial. Em conseqiiência, percepção qualitativa das massas de todos esses problemas. Por
os seus valores e ideais básicos penetravam pouco fundo - em fim, o impulso radical-populista do exército rebelde e de seu proto-
termos de consciência social burguesa e de defesa puritana ou Estado vinculou a revolu ção democrática a alvos concretos, pon ¬

intransigente do espí rito privatista” - nas orienta ções de compor¬ do no centro da reconstrução a reforma agrária. Ora, isso tinha
tamento convergentes das vá rias classes e estratos de classes. Os tremenda import ância, porque unia a aspira ção da maioria dos
riscos, a “ imoralidade” ou ódio ao intervencionismo não poderiam prolet á rios rurais de trabalho na terra a medidas planejadas de
155
* 54 DA 6 UERRILHA AO S O C I A L I S M O A REVOLU ÇÃ O CUBANA |
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

reordenamento revolucioná rio da economia agroindustrial. Por viços p ú blicos ou na sociedade, para dar origem às condições
aí, portanto, seria possível detectar um vasto conjunto de tendên ¬ económicas, sociais e culturais que funcionam como requisito
cias mais ou menos favoráveis à adoção do planejamento social e histórico do planejamento centralizado e em escala nacional. Em
ao seu emprego sistemático pelo governo revolucioná rio. Entre suma, a revolução não herdara os meios de que precisava e teria
esse governo e outros, no passado recente, haveria a diferen ça de de criá-los decididamente, para que seus fins revolucion á rios
que ele seria, de fato, o primeiro a usar o planejamento como ala¬ mais amplos pudessem ser logrados a médio e a longo prazos.
vanca da liberação nacional, da transformação económica e da Essa passagem n ão poderia ser feita por um passe de mágica.
revolu ção democrá tica. Em primeiro lugar, ela pró pria era inviá vel enquanto persistisse
Todavia, essas são condições t écnicas e psicossociais que só o governo revolucion á rio de frente ampla. Em segundo lugar, a
poderiam favorecer de modo indireto a propensão do governo a partir da formação desse governo a revolução se impusera à van ¬

utilizar o planejamento social segundo um estilo revolucioná rio guarda revolucionária como a esfinge da lenda. Agora, a consciên ¬

e, dessa maneira, contribuir para a difusã o do planejamento so ¬ cia social revolucioná ria tinha de lidar com problemas de meios
cial em Cuba. Tais condições não possu íam um substrato econ ó ¬
e de fins; e precisava disputar o apoio das massas não apenas
mico, sociocultural e político que conferisse ao planejamento como um endosso (apoio das massas à revolu çã o ), mas como
como técnica social o condão de revolucionar o meio ambiente. uma participação militante (apoio revolucion á rio das massas ).
A disposição de querer sua existência com esta realidade só sur ¬ Impunha - se eliminar toda e qualquer ambig ü idade que blo ¬
gira e se consolidara fortemente entre os oficiais do exército re¬ queasse o avanço da revolu ção. A tática de reduzir a saliência
belde, em algumas organizações políticas revolucionárias e no das contradições e, principalmente, do que já se patenteava como
Partido Social Popular. Não houvera tempo para transferir esse irremediá vel, obstru ía essa marcha (um m í nimo de explicita ção
querer para as massas e, muito menos, de fomentar o apareci ¬ ideológica e utópica para homogeneizar o discurso revolucioná ¬
mento de requisitos económicos, sociocuí turais e políticos ne ¬ rio teria de ser aceito e posto em prá tica - o que era contido pela
cessá rios para que aquele querer se transformasse em processo tá tica de não provocar nem os Estados Unidos nem os setores
histórico-social. Tudo isso indica o marco em que se localizava a mais ou menos simpá ticos da burguesia cubana). Mas, esse aba ¬
quest ã o no início de 1959. O governo revolucionário tinha, diante famento relativo do élan revolucionário não prejudicou o entu ¬

de si, como tarefa pol ítica central, fomentar quer o aparecimen ¬ siasmo das massas e suscitou um giro peculiar da revolu ção
to de uma consciê ncia revolucion á ria da necessidade do plane ¬ cubana. A consciência revolucion á ria se esclarece e se concen ¬
jamento como t écnica social, quer a criação de certas condições tra - e també m não estaciona - por causa da rela çã o pedagógica
institucionais m ínimas para que o planejamento pudesse ser da vanguarda revolucionária com as massas (em particular, de
induzido, pelo menos inicialmente, como recurso b ásico da re ¬ Fidel Castro com as massas ). O desafio revolucioná rio tem uma
volução de cima para baixo. O que envolvia um novo estágio caixa de ressonâ ncia, que é a sociedade cubana, e o “ efeito de
da “ revolução dentro da revolu ção” e obrigava o governo a dois bumerangue” aparece como uma resposta do governo revolucio ¬
movimentos. Um, imediato, de renovação de sua pró pria estru ¬ ná rio a uma excitação revolucion á ria que ele mesmo provoca.
tura e â mbito de ação revolucion á ria; outro, de curto prazo, de Esse padr ão foi muito ativo no momento da conquista do poder
intervenção direta na organização da economia e de v á rios ser- e nele se fundou a ebulição de toda a d écada de 1960.
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

Na verdade, a socialização revolucioná ria das massas cami ¬ política no atendimento possível mas imediato de seus compro ¬
nhou muito rapidamente depois da tomada do poder pelo exér ¬ missos (para não falar em “ promessas” ). Como conseqiiência,
cito rebelde. De um lado, porque a revolução cubana cumpriu a ao desencadear a revolução a partir de cima, levaram a revolu ¬
promessa de ser uma “ revolução dos humildes, pelos humildes çã o ao â mago do cora ção e da razão das classes trabalhadoras e
e para os humildes” . De outro, porque Fidel Castro tomou a da população pobre.
iniciativa de desenvolver uma extraordinária pregação pedagó¬ Foi nessa etapa que se travou a luta política revolucionária e
gica, para explicar, exatamente, que a revolução não se confun ¬ na qual ela foi ganha. E ela foi travada conjuntamente pela van ¬
dia com a vitória militar e não se extinguia com a conquista do guarda revolucion á ria e pela massa dos trabalhadores livres ou
poder. Para que a revolu ção atingisse seus fins, o governo revo ¬ semilivres. No seu desenrolar, a própria atitude da vanguarda
lucioná rio dependia de todo o povo e, juntos, teriam de travar as diante do planejamento social modificou-se (evoluiu do amado¬
batalhas mais difíceis. Che Guevara apanhou com acuidade essa rismo revolucionário e da improvisação para o tirocínio na prá ¬
presença das massas. “ A massa participou da reforma agrá ria e tica, o qual demonstrou a natureza da revolução que devia ser
do dif ícil desempenho da administração das empresas estatais; feita na estrutura do Estado e da administração para se alcançar,
passou pela experiência heroica de Playa Girón; retemperou-se nas condições cubanas, o objetivo global da revolução ). Por sua
na luta contra os vá rios bandos armados pela CIA; viveu uma vez, a massa da população entendeu que a revolução não poderia
das definições mais importantes dos tempos modernos na crise ser uma dádiva do governo. Ela tinha de ser conquistada passo a
de outubro e continua hoje trabalhando na construção do socia ¬ passo, organizadamente, com paciência e muitos sacrifícios co ¬

lismo.” (“ El socialismo y el hombre” , La economia socialista: de¬ letivos. Nessa ampla e complexa evolução, deve-se distinguir o
bate, p. 377.) que significa “ a justi ça com as pr óprias m ã os” : ela era, primei ¬
Vista ex post facto, parece claro que a mudança de qualidade ro, uma forma de destruição total da antiga ordem social neo ¬
do comportamento das massas e, em conseqtiê ncia, do significa ¬ colonial pela revolução; e era, em segundo lugar, a via pela qual
do da pró pria revolução, prende- se à estratégia de fazer justiça se descobria como fazer, que instituições deveriam ser criadas
com as pr óprias mãos, adotada pelo governo revolucioná rio desde para que as formas da nova economia, da nova sociedade e do
o início e intensificada de modo crescente at é fins de 1961. É novo Estado n ão ca íssem nos vícios do passado - o que era a
patente que essa estratégia não era “ calculada” e que não foi posta descoberta da pr ópria necessidade hist ó rica do planejamento
em prá tica “ organicamente” . Ela constitu ía um subproduto po ¬ social. Por aqui se explica, aliás, a facilidade com que a revolu ¬
lítico do cará ter exemplarmente populista, democrá tico e igua ¬ ção cubana caminhou para o socialismo. Este não era apenas a
litário da revolu ção cubana. Provavelmente nunca atingiria as sua ú ltima ratio política; a via pela qual ele podia e devia ser
propor ções que alcan çou se a vanguarda revolucioná ria fosse absorvido germinara espontaneamente, na luta para aniquilar o
composta de “ revolucion á rios profissionais” , guiados por uma “ antigo regime” e para construir uma nova ordem social.
ortodoxia de partido revolucioná rio (é óbvio que eles condena ¬ E. Boorstein fornece uma rica documentação sobre esses dois
riam o “ distributivismo” como um risco pol ítico e manifesta ção aspectos da revolu ção cubana ( The economic transformation of Cuba,
“ oportunista” ). No poder, os guerrilheiros mantiveram-se fiéis esp. capí tulos 2 a 5 ). Seu livro poderia ser comparado, pela
à palavra empenhada e procuraram fundar sua credibilidade empatia com que acompanha a revolu ção cubana, ao famoso Dez
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CU BANA |

dias que abalaram, o mundo, de John Reed ( com a vantagem de Quanto ao segundo aspecto, era natural que o exército rebel ¬
nos apresentar os resultados de uma investigação feita à luz da de fosse 0 pr óprio n úcleo da emergência e da expansão inicial
economia política). Quanto ao primeiro aspecto, seria in útil re ¬ do planejamento social (como era, também, da constituição do
produzir os dados referentes ao modo pelo qual os antigos privi¬ governo revolucion á rio). Ele aparecia como 0 ú nico setor da
légios desabaram um a um e as massas tiveram acesso ao leite, às nação que tinha uma relação orgâ nica com a revolução. Al ém
praias, ao trabalho regular, à educação, à assistência médica etc. disso, dele dependiam os rumos e os ritmos do processo revolu ¬
O que interessa à análise é salientar o espírito com que foi leva ¬ cioná rio (e, o que não era de menor importâ ncia, a segurança
do avante o período destrutivo agudo da revolu ção cubana. O militar de Cuba). Ao envolver-se tão a fundo com o que chamei
governo revolucioná rio não se cingiu a “ socializar a miséria” . “ fazer justiça com as pr óprias mãos” , a intelligentzia revolucio ¬
Quebrou todas as barreiras que podiam ser aniquiladas pela via ná ria do exército rebelde descobriu as próprias fraquezas e, o
reformista legal, levando a revolução democrática tão longe quan ¬ que foi decisivo, que não estava preparada nem pol ítica nem
to possível. A reforma agr ária constituiu a espinha dorsal desse tecnicamente para conduzir a revoluçã o. A experiência técnica
processo e o que Boorstein afirmou a seu respeito poderia ser e política adquirida através do proto -Estado guerrilheiro fora
aplicado às outras inovações reformistas. “ Cuba necessitava da ú til, inclusive para estabelecer prioridades nas medidas
reforma agrária. Mas, uma verdadeira reforma agrária não é uma distributivistas e colocar a reforma agrá ria numa perspectiva
medida técnica que possa ser posta em prá tica a contento de prá tica. Contudo, a revolução de cima para baixo tinha de en ¬
todos. Uma verdadeira reforma agrária significa expropriar a terra frentar os problemas de toda a nação, aos níveis interno e inter ¬
das grandes propriedades e torná-la acessível ao povo. Uma ver ¬

nacional, e as exigências da pró pria revolução; não havia nem


dadeira reforma agrá ria fere; ela modifica o equil íbrio do poder respaldo técnico-administrativo no “ aparato do Estado” nem
político; ela inicia uma mudança mais ampla. Uma verdadeira informações organizadas que servissem de base para a tomada
reforma agrá ria não é uma reforma; ela é uma medida revolucio ¬ de decisões e para a previsão a curto ou médio prazos. O desen ¬

n á ria.” ( Idem, p. 15.) Ora, todas as medidas desse gênero acarre


¬
volvimento capitalista prévio revelava - se ú til, porque havia uma
taram uma tremenda pressão sobre os recursos econó micos de imensa capacidade ociosa na economia nacional e uma certa re¬
Cuba e suscitaram a iminência de um desastre. Por isso, as me ¬ serva de recursos. No entanto, isso apenas permitia ganhar tem ¬
didas foram aceitas e compreendidas pelas massas no seu senti ¬ po - n ão gerar com a rapidez necess á ria os requisitos do
do revolucioná rio: Cuba era de todos e a revolução deveria ser planejamento centralizado e em escala nacional. O que se podia
defendida com unhas e dentes. A vanguarda revolucioná ria não fazer no nível local ou regional e em termos setoriais era insufi ¬

tinha atr ás de si uma “ nação emergente” - mas uma nação revo ¬ ciente, diante das proporções do setor pú blico e da envergadura
lucionária, empenhada na defesa da sua revoluçã o. Ao encetar a dos problemas emergentes. A imaginação pol ítica criadora, a
etapa da nacionalização ou estatização das grandes empresas e improvisação e a dedica ção revolucion á ria permitiram remar
dos bancos, o governo revolucion á rio contava com apoio inter ¬
contra a corrente, em ziguezagues, avançar através de toda sorte
no para ir até onde precisasse, para expandir o setor pú blico em de dificuldades ou de imprevistos, e evitar um desastre prema ¬
detrimento do privado ( ou eliminar este setor ) e para converter turo da revolução. Os resultados eram certamente animadores.
o Estado na alavanca da revolu ção. Boorstein demonstra que o estilo de trabalho a la libre revelava
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO REVOLU ÇÃ O CUBANA

maior sensibilidade política, maior espírito inventivo e mesmo perturbador, como j á acontecera em outras partes (e iria repe ¬
maior eficácia que a primeira manifestação do estilo de trabalho tir - se em Cuba com maior intensidade relativa, dada a dificul ¬
formal e burocrático (pseudoplanejado ). Depois das nacionali¬ dade do país em fomentar muitos dos requisitos económicos,
zações, porém, ou a revolução se preparava para atingir seus fins culturais ou políticos do planejamento como técnica social ). É
organicamente ou ela se exporia ao desgaste e, quem sabe, ao fácil apontar quais são as forças económicas, socioculturais e
desmoronamento. A pressão externa, dos Estados Unidos, não pol í ticas que são devastadas, subaproveitadas ou reprimidas
deixava espaço para contemporizações; e a pressão interna, das em uma sociedade capitalista neocolonial. Nem por isso é pos¬
massas que aprenderam a amar a revolução e a impulsionavam, sível mudar de repente a relação da sociedade com essas for ¬
impunha uma aceleração constante do processo revolucionário. ças. Muito mais complicado vem a ser 0 problema de uma
Assim, 0 ano de 1961 compele o governo revolucionário a sociedade em transição para 0 socialismo: é preciso criar, em
defrontar -se com o novo salto histórico, que devia ser dado na todos os níveis da organização da economia, da sociedade e do
direção do planejamento social. A desagregação da antiga or ¬ Estado, forças hist órico -sociais novas, que não existem nem
dem social neocolonial já tinha ido muito longe e as tarefas cons ¬ têm razão de ser sob o capitalismo. Sem contar com meios pro ¬
trutivas da revolu ção deveriam ser orientadas para a produção porcionais, o planejamento centralizado e em escala nacional
das novas formas sociais da economia, da sociedade e do Estado. tinha de desdobrar-se em duas frentes simultâneas, ao tempo
Nesse momento, Cuba eclodia como uma nação que poderia ga ¬ em que os próprios cubanos começavam a adestrar-se no uso
rantir por seus próprios meios a criação de condições para a tran ¬ das técnicas de regulamentação, institucionalização e controle
sição para o socialismo. A oportunidade histórica, proporcionada inerentes ao planejamento. Boorstein descreve os episódios
pelas negociações comerciais com a União Soviética, a China e desse engatinhar penoso e os contratempos relacionados com
outros países, apenas serviram para consolidar essa tendência. a colaboração de especialistas estrangeiros ( tchecos e russos).
As leis promulgadas em fevereiro de 1961, antes da invasão de Isso carece de importâ ncia teórica ou prá tica. O que importa, a
Playa Girón e da proclamação de Fidel Castro sobre o cará ter esse respeito, é o fato de que o governo revolucion á rio j á havia
socialista da revolução cubana, assinalam que entre fins de 1960 atingido o patamar histórico em que ele podia forjar os meios
e princípios de 1961 0 aparato e a estrutura do governo revolucio ¬ para levar a revolu ção a todas as estruturas estratégicas da eco ¬
ná rio foram adaptados a tarefas revolucioná rias mais amplas e nomia, da sociedade e do Estado. Em pouco mais de dois anos,
profundas - e que o planejamento centralizado e em escala nacio¬ Cuba lograva passar: 1. da ebulição espontâ nea para o aprovei ¬
nal finalmente emergia como realidade histórica. tamento consciente, organizado e coordenado de suas forças
Essa adaptação não podia ser feita de um só golpe. No jar¬ histórico-sociais revolucionárias; 2. da reforma dentro do ca ¬
gão da velha sociologia alem ã, seria possível dizer que o plane ¬
pitalismo para a lenta e dif ícil construção do socialismo. Seriam
jamento centralizado e em escala nacional traduz a pol í tica necessá rios ainda muitos anos para completar essa evolução.
revolucion á ria em um có digo de linguagem administrativo Mas, o cará ter socialista da revolução cubana ficara definido
( como se ele fosse a revolu ção regulada e convertida em admi ¬ para sempre e o arcabouço de um governo revolucion á rio pla ¬

nistração). O que se iniciava, portanto, era algo que tinha de nificado fora estabelecido. As sementes do socialismo, em suma,
crescer e, por vezes, de modo contradit ó rio, irregular e haviam sido plantadas. A colheita viria a seguir.
1Ô 2
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO 5 0CIALISM0 A REVOLU ÇÃO CU

O segundo assunto nos põe diante da própria subst â ncia I hipotética, e buscam suscitar o questionamento socialista do
criativa do pensamento revolucioná rio cubano. Em termos de
“ condições objetivas” , a sociedade cubana só podia colocar à
I papel construtivo do planejamento social em Cuba.
O subdesenvolvimento complicava o problema da formação
disposição do planejamento social recursos materiais e humanos de pré-condições económicas do planejamento social. Por onde
I
incontestavelmente muito precários. Mesmo tendo garantida começar a acumulação socialista originá ria? Como gerar, dentro
a colheita da safra de 1958, resolvido o problema comercial do
f
r de Cuba, a passagem de um desenvolvimento capitalista estran-
açúcar e logrado um êxito marcante no impulso do crescimen ¬
f guiado e deformado para 0 arranque económico socialista? Certas
to econ ómico, a revolução cubana nunca se tornaria socialista medidas elementares e instrumentais foram tomadas entre 1959-
em função das “ condições objetivas” de que poderia dispor para 1960 ou até 1962-1963. A “ expropriação dos expropriadores” te¬
encetar a implanta çã o do planejamento. As revolu ções tendem
ria de começar, logicamente, pelos aproveitadores do regime ou
a conferir autonomia ao elemento político; as revoluções socia ¬ pelos agentes externos e internos do capitalismo neocolonial: a
listas reproduzem essa condição em escala mais elevada e, a recuperação dos bens malversados; a primeira e a segunda refor ¬

partir de Cuba, essa autonomia aparece em seu nível má ximo. mas agrárias; a nacionalização do capital estrangeiro; a nacionali ¬

É por aí que se pode entender como foi possível captar as exi¬ zação geral da indústria. Por aí se fez o confisco, sob várias formas,
gências da situação histórico- social e, em seguida, descobrir as e se pôs nas mãos do governo revolucionário uma considerável
solu ções que, a partir de dentro daquela situação, permitiam massa de riqueza (veja-se esp. J. Le Riverend, Historia económica
criar uma a uma ( de imediato ou a curto e a médio prazos) as de Cuba, parte VI; e também as obras já citadas de E. Boorstein e
vá rias condições objetivas do planejamento social. A vontade
J. O’Connor). Também se apelou, complementarmente, para ou ¬
revolucionária da vanguarda, fortemente apoiada e incentiva ¬ tras medidas diretas ou indiretas de fortalecimento económico
da pela massa da população, surge como o componente central do governo revolucionário, como, por exemplo: a contribuição
dessa vitória do socialismo. O pensamento revolucion á rio exer¬ voluntária de 4% do salá rio, com que os trabalhadores colabora¬
ceu, de fato, m ú ltiplas fun ções sociais e pol í ticas construtivas, vam na constituição de fundos para a industrialização, 0 fomento
jogando a revolu ção para a frente, primeiro, e lutando por seu da produção açucareira etc.; o congelamento dos salários, decidi ¬

car áter socialista, depois. Ele não se deixou intimidar e abater do pelas organizações sindicais; o controle das importações, a mo¬
pela adversidade das “ condições objetivas” . Enfrentou-a com nopolização estatal do comércio exterior, a centralização da política
extrema objetividade e uma encantadora mistura de precau ção cambial etc.; 0 racionamento, a instituição do acopio * etc. No con ¬
e de aud ácia. O que faz com que a revolu ção cubana seja t ão junto, 0 governo revolucionário preparava ou estimulava a cria ¬
humana, mesmo quando se considera a questão das relações ção de uma base económica para certas medidas de grande impacto
entre meios e fins. ou para 0 alargamento de sua intervenção na economia, ameaçada
Parece óbvio que o subdesenvolvimento estava na raiz das pela resistência empresarial ou pela represália dos Estados Uni ¬
dificuldades de alimentar a revolução revolucionariamente. Os dos. Todavia, por si mesmas, elas não comportavam uma mudan ¬
obstáculos eram, simultaneamente, econ ómicos e políticos. As ça qualitativa de vulto. Para que isto ocorresse seria necessário
considerações reunidas em seguida constituem uma formula ção
muito sumá ria de certas explicações de natureza aproximativa e * Sistema de recolhimento das colheitas dos setores privado c estatal.
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montar um novo modelo de produ ção, de reinversão e de distri¬ propriamente dito e, depois da conquista do poder, a vanguarda
buição da riqueza, que tivesse como alvo aumentar drasticamente revolucion á ria recorreu ao exército rebelde (e também a algu ¬
o volume da riqueza e reduzir (ou eliminar ) drasticamente as de¬ mas organizações revolucioná rias paralelas) como equivalente
sigualdades existentes em sua distribuição. Enquanto isso não fosse daquele E R.. A demora, na esfera pol ítica, acabou seguindo rit¬
feito, 0 planejamento social não contaria com uma base económi¬ mos mais lentos que na esfera econó mica - os dilemas da
ca sólida ( o que seria “ normal” em qualquer revolu ção socialista). institucionalização do poder popular podem ser avaliados pelo
Acresce que, em Cuba, tal resultado não poderia ser obtido sem seguinte ponto de referê ncia: a ORI (Organizações Revolucio ¬
que o planejamento fosse utilizado para criar as pré-condições ná rias Integradas), entidade que congregava o exército rebelde,
desse requisito: o que quer dizer que, por causa das condições 0 Movimento 26 de Julho, 0 Diret ório Revolucionário e o Parti ¬
intr í nsecas ao subdesenvolvimento, o planejamento social iria do Social Popular, só aparece em julho de 1961 e se torna for ¬
levar, de modo virgem, a revolução às estruturas económicas da malmente conhecida em mar ço de 1962; 0 PURS ( Partido
sociedade. Ele n ã o capta e parte da for ça econ ó mica insti ¬ Unificado da Revolução Socialista ), que a substitui, é constituí¬
tucionalizada pré-existente e do impacto da revolução sobre ela. do em fevereiro de 1963; finalmente, 0 PCC ( Partido Comunista
Ao contrário, ele precisa gerar suas próprias pr é-condições eco¬ de Cuba), como expressão da revolução, só surge em 1965. Essas
nómicas, realizando essa fun ção através de sua incorporação aos indicações assinalam os obst áculos que tiveram de ser enfrenta ¬
mecanismos institucionais de centralização e condensação do dos e vencidos pelo governo revolucioná rio. Este n ão contou
poder económico do governo revolucioná rio. Somente numa fase com as vantagens relativas de uma heran ça na qual existissem
mais avançada deste processo se tornaria imagin ável e fact ível bases politizadas suficientemente treinadas para receber e in ¬

separar, diferenciar e segregar uma superposição tão tosca de fun ¬ fluenciar as decisões do governo; quadros mais ou menos nu ¬
ções, liberando o governo revolucionário de um congestionamento merosos nos quais recrutar elementos de escol para a vanguarda
de atribuições e libertando, concomitantemente, o planejamento revolucion á ria e a administração de segundo escalão do próprio
social de uma tutela estatal direta e estreita. Nesta fase, à qual governo revolucionário; uma vanguarda mais diferen çada e tam ¬
parece que Cuba chegou finalmente na década de 1970, seria pos ¬ bém mais numerosa, com maior treinamento teórico e prá tico
sível pensar -se no equivalente de uma reprodu ção socialista am ¬ para enfrentar, sem tantas improvisa ções, as tarefas hist ó ricas
pliada e estabelecer uma verdadeira relação recíproca harmoniosa do governo revolucionário. Note-se: este arrolamento não con ¬
entre planejamento social, desenvolvimento econ ómico socialis¬ tém nenhum intento cr í tico negativo; ele é puramente “ descri ¬
ta e controle estatal. tivo” ( na unidade expositiva anterior já foi explicitado 0 quanto
Algo paralelo ocorre no nível pol ítico (embora 0 atraso rela ¬ a vanguarda revolucion á ria se revelou capaz de superar tais difi ¬
tivo envolvido apresente maior magnitude). O subdesenvolvi ¬ culdades). O governo revolucionário só contou com dois recur ¬
mento impediu a manifesta çã o de uma democracia burguesa sos flex íveis : a mobilização direta das massas e a influ ê ncia
dentro de limites t ão severos que até um florescimento limitado pedagógica da vanguarda revolucion á ria. O que não impedia que
dos partidos pol íticos foi prejudicado. A conseqiiê ncia disso j á a revoluçã o tivesse de desprender-se e de movimentar-se dentro
mereceu aten ção na unidade expositiva anterior: 0 movimento do espaço hist órico nascido do entrelaçamento da vanguarda
revolucioná rio esteve dissociado de um partido revolucioná rio revolucionária com as massas. Isso não fechava o horizonte po -
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DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

lítico da revolução. Mas submetia o governo revolucionário a nos “ polos débeis” do mundo capitalista: “ Nestes países não se
m últiplas pressões desgastantes e convertia o socialismo em um produzira ainda uma educação completa para o trabalho social e
alvo a ser conquistado, “ a partir de cima” , não em um processo a riqueza está longe de achar-se ao alcance das massas mediante
permanente de luta revolucion ária democrá tica (em contradi ¬ o simples processo da apropria ção. O subdesenvolvimento, por
ção com a ideologia e a utopia da revolução, construídas antes um lado, e a habitual fuga dos capitais para os países ‘civiliza ¬

de 1965). Constata-se, pois, a mesma coisa: o planejamento social dos’, por outro, tornam impossível uma mudança rápida e sem
não contava com uma base política sólida. Ele teria de gerar, por sacrifícios. Resta um grande espaço a percorrer na construção
si mesmo, as pré-condições polí ticas de sua existência, incorpo ¬ da base económica e a tentação de seguir os caminhos trilhados
rando- se aos mecanismos institucionais de centraliza ção e do interesse material, como alavanca propulsora de um desen ¬
condensa ção do poder político no governo revolucionário. Pelo volvimento acelerado, é muito grande” (op. cit., p. 379). É den ¬
que se observa, ainda hoje não foi possível alcançar uma separa ¬ tro dessa linha que ele explica, em “ Sobre o sistema orçamentário
ção mais nítida entre as duas entidades (e, por conseguinte, uma de financiamento” (op. cit., pp. 83-109; as citações seguintes re¬
interação mais eficiente e criadora entre as duas). Apesar da fun ¬ ferem-se a este texto), que a ausência de “ tradições centraliza ¬
dação do PCC, que simplificou esse processo, no n ível político a doras” nas empresas capitalistas cubanas levou os revolucionários
tutela do governo revolucioná rio sobre o planejamento social a estudarem as técnicas de organização ou de controle explora ¬

continua direta e completa, com perspectivas de mudan ças glo ¬


das nas grandes corporações ou “ consolidadas” (como a Esso, a
bais substantivas só para a década de 1980. Ficam no ar, assim, Texaco e a Shell). O SOF foi constru ído com base nessa experiên ¬
as duas perguntas básicas, erguidas pela revolu ção. Por onde cia e adotado como o ú nico caminho viável, embora precá rio,
começar o desenvolvimento político da democracia popular ? que o governo revolucionário podia seguir na reconstrução da
Como engendrar, dentro de Cuba, a passagem da república títe ¬ economia cubana. O que interessava, sobretudo, era 0 grau de
re para o controle popular da democracia armada ? centralização que ele permitia; e a facilidade com que essa cen ¬
O SOF (Sistema Orçamentário de Financiamento), segun ¬ tralização podia ser obtida e manipulada através de órgãos dire¬
do Che Guevara, teria sido escolhido porque, em Cuba, n ão se¬ tos do governo revolucioná rio. (Este podia encarar a empresa
ria possível partir de modelos de planejamento mais sofisticados, como “ um conglomerado de fábricas ou unidades que têm uma
testados em países socialistas mais avançados. Como o SOF foi base tecnológica parecida, um destino comum para a sua produ ¬

utilizado durante vários anos e, na prá tica, de forma predomi ¬


ção ou, em certo caso, uma localização geográfica limitada” . Eis
nante (o sistema de cálculo económico ou de autogest ão finan ¬
como exemplifica: “ todos os centrais açucareiros e outras uni ¬

ceira, que deveria ser aplicado no setor agrícola, de fato constituía dades relacionadas com o açú car constituem a Empresa Conso ¬
uma variação do SOF. Mesmo A. Lataste Hoffer, que não escon ¬
lidada do A çú car ” .) É claro que tais “ empresas” não possu íam
de suas reservas com referência ao SOF, salienta com razão essa nem autonomia financeira nem um status jurídico pró prio (o
realidade. Veja-se Cuba. Hacia una nueva economía política del que seria crucial em um tipo de planejamento centralizado mais
socialismo?, pp. 36-41), conviria explorar um pouco o pensamen ¬
sofisticado); e que as relações dessas empresas entre si n ão eram
to de Che Guevara e extrair dele as conclusões pertinentes. Em vistas como relações de compra e venda: elas transferiam bens e
“ O socialismo e o homem” ele esclarece como o socialismo eclode serviços de umas a outras e todas as operações implícitas eram
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reguladas pelo or çamento nacional; por fim, a moeda reduzia -se descobre é que a revolu ção cubana contava, de fato, apenas com
a uma ficção contábil: “ o reflexo, em preços, da gest ão da em¬ dois elementos básicos fortes - sua vanguarda revolucion ária e
presa” . O pr óprio Che resume, da seguinte maneira, os princi¬ 0 entusiasmo das massas. Nã o é de admirar que, nesse solo his ¬
pais traços desse tipo de planejamento: “ o sistema orçamentá rio tórico, Che Guevara tenha atentado, no fundo, só para os dois
de financiamento baseia- se em um controle centralizado da ati ¬ (segundo o padrã o pelo qual eles interagiam dialeticamente); e
vidade da empresa; seu plano e sua gestão económica são con¬ que, de uma perspectiva t écnica, o planejamento social sofresse
trolados por organismos centrais, de forma direta, não tem fundos uma evidente depleção. A seu favor pode-se adiantar o que foi
pr óprios nem recebe créditos bancá rios, e não usa, em forma visto acima : a pr ópria conversão do pol ítico em administrativo
individual, o est ímulo material, quer dizer, os prémios e casti¬ (ou das forças sociais revolucion á rias in flux em estruturas e con ¬
gos monetá rios individuais, e, no momento oportuno, usará os troles sociais) n ão avançara 0 suficiente para que se pudesse cor ¬

coletivos, mas o estímulo material direto está limitado pela for ¬ rer com maior velocidade na direção do socialismo. Tudo isso
ma de pagamento da tarifa salarial” . À presente discussão inte ¬ quer dizer que o plano, no in ício e por alguns anos, constituía
ressa ressaltar duas coisas. Primeiro, Che Guevara é enfá tico em muito mais uma intenção prospectiva que uma possibilidade
sua exposição : em Cuba não era possí vel seguir outro caminho. concreta, que a opera ção normal do planejamento iria surgir
Segundo, na fundamentação do planejamento centralizado ele gradualmente. Na verdade, o planejamento como forma social
associa, de modo incisivo, as duas funções simultâ neas da revo ¬ teria de ser criado juntamente com as pré- condições econó mi ¬

lução socialista, o desenvolvimento e a educação. Por isso, salien¬ cas, socioculturais e pol ítico-administrativas ou legais que o tor ¬
ta : “ o comunismo é uma meta da humanidade que se alcança nariam exeqíií vel e eficaz. Nesse marco zero, 0 espaço histórico
conscientemente; logo, a educação, a liquidação das taras da so ¬ da ação planificadora confundia-se com a pró pria capacidade de
ciedade antiga na consciência das gentes, é um fator de suma atuação política do governo revolucioná rio. Portanto, poder- se-
importâ ncia, sem esquecer - se, é claro, que sem avanços parale ¬ ia falar em um planejamento social in status nascendi, sem 0 qual
los na produ ção não se pode chegar nunca a tal sociedade” . A a revolução socialista seria inviável, mas que só era dinamizado
este respeito, aliás, seria conveniente lembrar uma passagem de em dois pólos - 0 da vanguarda revolucion á ria, 0 pólo decisório
“ O socialismo e o homem” : “ Para construir o comunismo, si¬ e diretor; e 0 de mobilização das massas, um pólo ativo de sus ¬
multaneamente com a base material é preciso construir o ho ¬ tentaçã o e de impulsionamento. Desse â ngulo, tanto a teoria
mem novo” ( op. cit., p. 380 ). quanto a pr á xis do planejamento social estiveram presas, na dé¬
As id éias expostas atraí ram muita atençã o, mas em termos cada de 1960, à sua matriz histó rica . Rejeitar uma redu çã o
de implicações gerais para o movimento socialista mundial. Te ¬ “ desenvolvimentista” da pré- transição e salientar as fun ções
ria sido melhor, por ém, se elas fossem encaixadas no contexto construtivas da educação socialista ( que pode ser antecipada à
hist órico-social de Cuba no primeiro qiiinqiiênio da década de constru ção da sociedade socialista nessa fase) vinham a ser as
1960 e se fossem vistas à luz dos obst á culos à transição para o duas faces de uma mesma moeda. Aí estava um recurso virgem
socialismo. Elas revelam, a olho nu, a integridade pol ítica e a para levar a revolu ção socialista às estruturas econó micas e polí¬
honestidade intelectual que prevaleciam, sem m áculas, na van ¬ ticas, através do planejamento social; e uma tentativa de impe¬
guarda revolucion á ria. Indo - se ao â mago das coisas, o que se dir que o car á ter socialista da revolu çã o cubana fosse
I/O 171
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CU
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

contaminado pela “ heran ça do subdesenvolvimento” e das bai¬ mercantis entre as empresas do Estado. De fato, foi suprimido 0
xas potencialidades de um desenvolvimento capitalista prévio orçamento estatal, substituído por uma atribuição de recursos
neocolonial. Não se tratava, pura e simplesmente, de evitar uma monetá rios para 0 pagamento dos salários e as relações de crédi ¬
escolha unilateral - desenvolvimento ou revolu ção. Mas, de levá- to e compra- venda com o setor privado.” ( “ El desarrollo
los para a frente conjuntamente em intera ção, apesar das debili ¬
económico de Cuba: 1959-1975” , p. 96.)
dades da sociedade cubana. Na verdade, os frutos do desenvolvimento económico ante ¬
O que transcorreu, no per íodo ulterior, confirma essa análi ¬ rior só iriam aparecer na década de 1970. Ao colocar- se, ao que
se do planejamento social. O primeiro plano anual, de 1962, ela ¬ parece de maneira decidida, a tarefa de organiza ção do poder
borado em 1961, n ã o teve viabilidade. O primeiro plano popular, a revolução muda o seu próprio contexto histó rico e
quadrienal, de 1962-1964, preparado com tanto cuidado e con ¬ começa a avançar, verdadeiramente, na instaura ção do “ período
tando com a margem de previsão de uma pol í tica económica de transição” . Sob influência soviética e os impulsos dinâ micos
decenal, acabou colhendo apenas êxitos parciais e sendo descar ¬ de melhor adaptação ao comércio mundial entre as nações socia ¬
tado . Outras tentativas de inova çã o foram feitas no ú ltimo listas, surgiram condições mais favoráveis para a exploração e o
quadriénio da d écada de 1960, com os “ mini” planos, mais flexí ¬
controle do planejamento centralizado, em conjunção com um
veis e ajust á veis à solução de problemas setoriais. A julgar pelas uso mais rigoroso da autogestão financeira e de projeções de curto
cr íticas dos erros entã o cometidos, feitas por Fidel Castro no e médio prazos, com o apuramento da coleta de dados estatísti ¬

Primeiro Congresso do Partido Comunista de Cuba, as altera ¬


cos, 0 emprego de técnicas de computação etc. O primeiro plano
ções não resolveram nem as quest ões decorrentes da centraliza ¬ q ü inq üenal, de 1976-1980, nasceu sob esse novo marco, que
çã o excessiva nem as exigências da acumulação socialista no mereceu prognósticos favoráveis dos especialistas ( veja- se C.
período inicial. “ O fato é que n ão existia um sistema ú nico de Mesa-Lago, Cuba in the 1970s, pp. 30 e segs.). N ão obstante, o
direção para toda a economia e, nestas circunstâ ncias, tomamos planejamento social ainda luta com as limitações do que a socie ¬
a decisão menos correta, que foi inventar um novo procedimen ¬ dade cubana pode colocar dentro dele, em termos de suas
to. (...) Interpretando o marxismo idealisticamente e separan ¬ potencialidades concretas ou da rela ção racional entre meios e
do - nos da pr á tica consagrada pela experiência dos demais pa íses fins na preparação da transição para o socialismo. Ele está, visi ¬

socialistas, quisemos estabelecer nossos próprios m étodos. Em velmente, sob a compulsão revolucioná ria de criar mais do que
conseqúência, estabeleceu- se uma forma de direçã o que se afas ¬ recebe, mas n ão passa, na prá tica, de uma espécie de correia de
tava tanto do cá lculo econ ó mico, que era geralmente aplicado transmissão da cabeça pol ítica da democracia armada. No men ¬
nos países socialistas, quanto do sistema de financiamento orça- cionado relatório de Fidel Castro fica evidente que a principal
ment á rio, que havia sido ensaiado em Cuba, seguida por um alteração básica vai surgir numa retomada mais ortodoxa do sis ¬
novo sistema de registro econó mico, que foi precedido pela tema de cá lculo econó mico ( cf. op. cit., p. 98 ). Apesar da ênfase
erradicação das formas mercantis e a supressão dos recebimen ¬
compensadora que ele p õe na motiva ção moral, é claro que Cuba
tos e pagamentos entre as unidades do setor estatal. Para alguns entrará, sob o primeiro plano q ü inq üenal, na fase típica de uma
de n ós, isso parecia demasiado capitalista, pois nã o entend ía ¬
concentra ção de esfor ços para acelerar o desenvolvimento eco ¬
mos bem a necessidade da perman ência das formas de relações nó mico. A correção dos efeitos unilaterais irá depender da con -
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1 COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO S O C I A L I S M O A REVOLU ÇÃ O CUBANA

solida çã o da organiza çã o do poder popular - um florescimento exposição mais simples, concentrada sobre tr ês aspectos que são
que só produzir á resultados na década de 1980. cruciais para conhecer as realizações de Cuba na esfera económi¬
O que quer dizer que a conclusão simpá tica mas reservada ca de sua revolução: 1. a socialização da agricultura; 2. a diferen ¬

de E. Mandei ainda continua válida. “ Há, por ém, uma contradi ¬ ciação da economia; 3. a relação entre trabalho e n í vel de vida. A
ção entre esta ‘linha de massas’ e a prá tica cotidiana do governo outra dimensão, que ficará faltando, poderá ser apanhada através
revolucion á rio. A esfera da gestão - e mais concretamente: a de uma leitura cuidadosa do relatório de Fidel Castro ao Primeiro
gest ã o da ind ústria - foi imunizada amplamente contra toda Congresso do Partido Comunista de Cuba, mencionado acima.
interven ção direta das massas. Não foi, pois, casual que o debate Trata-se de um “ documento oficial” e que, além do mais, visava a
econ ó mico de 1963-1964 surgisse sobretudo com os problemas uma comunicação política com a grande massa. No entanto, ele
que coloca esta gest ã o, e que vá rios camaradas que intervieram cont ém um retrato sincero da evolu ção da economia cubana, vis ¬
no debate pusessem indiretamente sobre o tapete a questão da ta por dentro, da perspectiva em que foram tomadas as decisões
rela ção das empresas e o comportamento das massas. A questão capitais (e, portanto, de um ó timo â ngulo na avalia ção de erros e
dos est í mulos materiais e morais est á diretamente vinculada a acertos). Para que se entenda a natureza desse documento, é pre ¬

este problema.” ( “ El gran debate económico” , La economia socia ¬


ciso refletir sobre ele à luz da presente situa ção histórica de Cuba
lista: debate, p. 68.) Nesta perspectiva, a democracia armada ain ¬ e de sua revolução. Até há pouco tempo prevalecia a concepção de
da n ão chegou a ser transformada por dentro, para deixar de ser que Cuba j á avançava na direçã o da ú ltima etapa, a pr ó pria
a fonte da “ revolução desde o poder ” . Em outras palavras, o pla ¬ edificação do comunismo dentro do socialismo. Uma concepção
nejamento social est á longe de ter penetrado ou, então, de haver arrojada, t ípica de uma revolução que teve de radicalizar-se sem
saturado todas as estruturas econó micas e políticas que ele de ¬ cessar e que refletia o orgulho que estava por tr ás do caráter exem ¬
veria revolucionar, para que Cuba pudesse encadear, em uma plar da revolu ção. Não obstante, era uma concepção que se choca ¬
“ transição exemplar ” , a aceleração do desenvolvimento com uma va com os fatos. O que não impede que, agora, Cuba possa voltar
educação democr á tico -popular. A revolu ção continua a ser pos ¬
ao ponto de partida, à tentativa de absorver modelos de países
ta acima de tudo, o que caracteriza Cuba, mas busca sua seiva socialistas mais avançados e que disponha de maiores recursos
nas massas, não nasce delas, diretamente, e do peso que o con ¬ materiais e humanos ou de uma posição no mercado socialista, os
trole democrá tico -popular j á deveria estar alcan çando sobre os quais garantem a eficácia de semelhante evolução. O documento
fins, as condições, os custos e o rendimento do planejamento não é um mea culpa: ele liga o passado recente ao futuro em cons¬
centralizado e em escala nacional. trução, indicando que Cuba est á, finalmente, madura para ence ¬
tar uma marcha segura e programada na edificaçã o da base
2 - As transformações da economia económica de uma sociedade socialista.
Gostaria de fazer um balan ço global da economia cubana, para A reforma agrária converteu-se na principal bandeira revolu ¬
pôr em relevo o que foi conquistado, depois de 20 anos de experiên ¬ cioná ria dos guerrilheiros. Como já foi visto, estes chegaram a
cias socialistas, e o que o futuro próximo parece reservar à conso ¬ implantá-la, por meio de editais ad hoc e pela Lei ir 3, de novem ¬
lidação dessas conquistas. Esbarrei, porém, na precariedade da bro de 1958. Esta lei outorgava a propriedade da terra a todos os
documentação empírica acessível. Como alternativa, farei uma pequenos colonos que ocupavam á reas de até duas caballerías e
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS D A G U ERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA I

repartia as terras do Estado, dos servidores da ditadura e dos que ção burguesa por caminhos contra-revolucioná rios e anticuba ¬
as possuíam graças a títulos dolosos. Como escreve Che Guevara, nos, aí esteve o ponto de partida histórico de uma oscilação em
“ de fato avançávamos com a reforma agrá ria como ponta de lança busca de uma ordem social que não seria só nova, mas socialista.
do exército rebelde” (“ Projeções sociais do exército rebelde” , in F. Nem os Estados Unidos podiam permitir essa “ via nacional” de
Castro, La revolución cubana, p. 433). No poder ela se tornou a solucionar os problemas do subdesenvolvimento, nem a bur ¬
“ ponta de lança” da própria revolução, surgindo como a medida guesia, como um todo, podia aceitar e conviver com um gover ¬
de maior envergadura tomada pelo governo revolucionário. Pro ¬ no revolucionário autónomo e que pretendia exprimir a vontade
mulgada em 17 de maio de 1959, ela passou a revolução do plano I nacional de modo permanente. A lei de reforma agrá ria aparece,
político para o plano socioeconómico: a guerra civil desmascara¬ pois, com a força de um vulcão. Os seus efeitos diretos e imedia ¬
ra-se e convertera-se literalmente, de modo aberto e declarado, tos poderiam ser absorvidos pelas classes burguesas e mesmo
em guerra de liberação nacional e de classes. Por isso, uma lei de por seu pólo hegemó nico, os Estados Unidos. O que não sucedia
reforma agrária de conteú do moderado (M. Gutelman observa, 1
com os seus efeitos estruturais e de longa duração. Foram estes
com razão, que ela era “ um documento político de tipo reformis¬ que elevaram os antagonismos de classe à superfície, infundin ¬
ta” : cf . A agricultura socializada em Cuba, p. 80) iria ter conseqúên- do-lhes crescente e incontrolá vel virulência, e impuseram a ado ¬
cias económicas, sociais, políticas e diplomá ticas muito amplas e ção, por parte do governo revolucionário, de medidas adicionais
funcionaria como o eixo em torno do qual teria de gravitar, da í de defesa e aprofundamento da revolução. Nesse sentido, o con¬
em diante, tanto a contra-revolução quanto a defesa ativa da revo ¬
flito desencadeado pelas classes possuidoras e pelos Estados
lução. No fundo, isso se prendia à importância alcançada pelo Unidos graduou a reforma agrária, insuflando o governo revo¬
açúcar; mas, era devido também à estrutura da dominação bur ¬ lucionário a ir cada vez mais longe, como recurso extremo de
guesa e à condição de polo hegemónico que os Estados Unidos autodefesa, até que, finalmente, a reforma agrária transbordou
ocupavam dentro dela. da “ revolução dentro da ordem” .
Desse â ngulo, a lei suplantou, desde sua promulgação, os Esta parte da exposição responde a um objetivo circunscri¬
limites históricos do combate ao subdesenvolvimento. Ela des ¬
to: o modo pelo qual se conseguiu, em Cuba, centrar uma revo ¬

ponta, em toda a plenitude, como uma lei pela qual Cuba recu ¬ lu ção socialista em uma base agr ícola, ou, melhor, na produ ção
perava sua soberania nacional e extinguia a base económica da e na comercialização de um produto agrícola, o açúcar. O debate
existência e fortalecimento de estruturas sociais coloniais, ar ¬
se voltará para dois temas capitais: 1. as principais etapas da
caicas ou modernas. Punha- se uma pá de cal sobre o passado e socialização da agricultura; 2. o delineamento de uma economia
lan çavam-se, simultaneamente, os alicerces de uma verdadeira socialista expansiva montada sobre um só produto (como pro¬
comunidade nacional, suprimindo-se de um golpe privilégios e duto principal), o açúcar. É preciso que se veja claramente que
iniq ü idades que impediam a emergência de estruturas nacio ¬ em Cuba travou-se um duplo combate. De um lado, pela defesa
nais de poder sob o capitalismo. Aí poderia estar o ponto de económica da revolução. Este levou os revolucionários a vence ¬

partida histórico de uma rápida consolidação e expansão da or ¬ rem gradualmente velhos preconceitos contra o açú car, como
dem social competitiva, esmagada pelo estatuto neocolonial “ produto colonial” e como fonte indireta de todos os males de
imperante de fato. Como os Estados Unidos conduziram a rea- Cuba. De outro, pelo cará ter socialista da revolu ção. Este levou
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

a novas vias de constru ção do socialismo: em Cuba só se poderia maioria das fincas* submetidas a trabalhos de cultivos está sen ¬
defender o car á ter socialista da revolu ção enfrentando-se cora¬ do atendida por pessoas que carecem da propriedade da terra e
josamente os dilemas de uma base econ ó mica lastreada na que a trabalham na condição de parceiros, arrendat á rios, colo ¬
-
agroind ú stria e no açú car. A partir daí seria possível pensar se nos e posseiros, enquanto os direitos dominiais estão em mãos
num futuro industrial e numa economia diferenciada - tudo absente ístas, o que representa em muitos casos uma situação
praticamente por conquistar e para ser conquistado j á sob as de injustiça social e, na totalidade dos casos, um fator de desa ¬

contradições de um “ período de transição” tão dé bil. lento à eficácia produtiva. (...) No mesmo Censo Agrícola se
Em sua fundamentação, a lei de 17 de maio de 1959 deu evidencia tamb ém a extrema e inconveniente concentração da
igual importâ ncia ao incentivo do desenvolvimento económi ¬ propriedade da terra em umas poucas mãos, existindo uma si¬
co ( mediante a diferenciaçã o e aumento da produ ção agrícola, tuação a tal respeito que 2.336 fincas representavam o dom í nio
a eleva ção do consumo através de aumento progressivo do n í ¬ sobre uma á rea de mil caballerí as de terra, o que quer dizer que
vel de vida, o crescimento do mercado interno e a criação de 1,5% dos propriet á rios possuem mais de 46% da á rea nacional
ind ústrias) e à erradicação da miséria ( mediante o combate ao em fincas, situação ainda mais grave se se tem em conta que há
latifú ndio, a distribuição de terras, o aumento da oferta de tra ¬ propriet á rios que possuem vá rias/mcas de grande extensão. (...)
balho, a assistê ncia económica, técnica, educacional, sanitá ria Em contraste com a situação descrita no considerando anterior,
etc.). Ela previa, de um lado, o est ímulo à ind ústria e à inicia ¬ produz - se o fen ô meno de 111 mil fincas de menos de duas
tiva privada, e, de outro, o amparo aos pequenos camponeses, caballerí as , que s ó compreendem uma extens ão de 76 mil
aos trabalhadores sem terras e à s cooperativas agr ícolas. No ,
caballerí as o que quer dizer, por sua vez, que 70% das fincas só
essencial, pretendia tr ês correções essenciais : 1. eliminar o la ¬ dispõem de menos de 12% da á rea nacional em fincas, existin ¬
tifú ndio ( a lei proscrevia, de imediato, os latif ú ndios impro ¬ do, além disso, um grande n ú mero de fincas - em torno de 62
dutivos; o artigo 2o excetuava da medida: as á reas semeadas de mil - que têm menos de 3/4 de caballerí as de extensão” .
cana, cujos rendimentos estivessem 50% acima da m édia nacio ¬ A lei era radical quanto à mudan ça de estrutura que preten¬
nal; as á reas de criação de gado que correspondessem aos crité¬ dia introduzir; mas moderada, porque previa vá rias exceções,
rios de produtividade do INRA; as á reas de cultivo de arroz mantinha a propriedade privada da terra e indenizava os pro ¬
que rendessem nã o menos que 50% da m édia da produ çã o na ¬ prietários quanto às paralelas expropriadas (ainda que tomando
cional; as á reas dedicadas a um ou a v á rios cultivos ou à por crit ério o valor de venda das fincas que apareciam nas decla ¬
agropecu á ria, com ou sem atividade industrial, “ para cuja ex ¬ rações fiscais dos municípios, até 10 de outubro de 1958, e ga ¬
plora çã o eficiente seja necessá rio manter uma extensã o de ter ¬ rantisse o pagamento em bónus da reforma agrá ria, com o prazo
ra superior à estabelecida como limite m áximo no artigo Io de 20 anos e a 4,5% de juros ). O limite estabelecido - 30 caballerí as,
desta lei” ) ; 2. corrigir os minif ú ndios; 3. extinguir legalmen ¬ ou 402 hectares - era bastante amplo para reduzir a resistência à
te, em futuro próximo, a aliena çã o de terras cubanas a estran ¬ lei (veja- se, a respeito, S. Aranda, La revolución agraria em Cuba,
geiros. Nos considerando, eram fornecidos os seguintes dados, p. 172). Até esse limite, as terras de dom í nio privado não seriam
que delimitavam o que deveria ser modificado radicalmente:
“ O Censo Agr ícola Nacional de 1946 evidenciou que a imensa Finca : propriedade agr ícola .
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

expropriadas, salvo se estivessem “ afetadas por contratos com ferior a 5 caballerías era-lhes garantida, por venda forçosa, a par¬

colonos, subcolonos, arrendatá rios, subarrendatá rios, parceiros te que faltasse entre 2 caballerías adjudicadas gratuitamente e as
ou ocupadas por posseiros, que possuam parcelas n ão maiores cinco que lhes era permitido possuir. Por fim, dispunha no art.
de 5 caballerías, casos nos quais também serão objeto de expro ¬ 17 sobre o destino que deveria ter a terra expropriada: “ As terras
priação conforme o estabelecido na presente lei” . Proibia, após privadas expropriáveis em virtude do disposto nesta lei e as ter ¬
um ano de vigência da lei, a exploração de colónias de canas por ras do Estado ser ã o outorgadas em á reas de propriedade
Sociedades Anónimas que n ão respondessem a certos requisi¬ proindivisas às cooperativas reconhecidas por esta lei, ou se
tos: “ a) que todas as ações sejam nominativas; b) que os titula ¬ redistribuirão entre os beneficiários, em parcelas n ão maiores
res dessas ações sejam cidadãos cubanos; c) que os titulares dessas que 2 caballerías, cuja propriedade receberão sem preju ízo dos
ações não sejam pessoas que figurem como proprietários, acio ¬ ajustes que o Instituto Nacional de Reforma Agrá ria realize para
nistas ou funcionários de empresas dedicadas à fabricação do determinar o ‘mínimo vital’ em cada caso” .
açúcar ” . A lei estabelecia no art. 15: “ A propriedade rústica só Como instrumentos da reforma agrá ria, a lei criava o Insti¬
poderá ser adquirida daqui por diante por cidadãos cubanos ou tuto Nacional de Reforma Agrária (INRA), as “ cooperativas agrá ¬
sociedades formadas por cidadãos cubanos” . No entanto, as ter ¬ rias” e as “ zonas de desenvolvimento agrário” (ao todo, 28). O
ras de engenhos de cana ou de fazendas de criação expropriadas INRA surgia como um superministério ou um Estado dentro do
não pressupunham qualquer discriminação imediata por nacio ¬ Estado, “ como entidade autónoma e com personalidade jurídi ¬
nalidade de origem dos proprietários. Ainda assim, a juízo do ca própria” . Apoiava-se legalmente no exército rebelde e dispu ¬
INRA, fincas não maiores de 30 caballerías poderiam ser coloca ¬ nha de atribuições tão amplas que podia, de fato, gerir toda a
das à disposição de empresas ou entidades estrangeiras. Quanto economia cubana. As cooperativas agrárias eram criadas, fomen ¬
ao minifú ndio, a lei definia “ duas caballerí as de terra fértil, sem tadas e administradas pelo INRA. “ As cooperativas agrá rias or ¬
regadio, distantes de centros urbanos e dedicadas a cultivo de ganizadas pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária nas terras
rendimento económico médio” como um “ mínimo vital” para de que disponha, em virtude do preceituado nesta lei, estarão
uma fam ília de 5 pessoas. Esse limite m ínimo era garantido de sujeitas à sua direção, reservando-se ao mesmo o direito de de ¬
forma universal e gratuita, como estabelecia o art. 18: “ As terras signar os seus administradores com o objetivo de assegurar o
de domínio privado cultivadas por colonos, subcolonos, arren ¬ melhor desenvolvimento na etapa inicial deste tipo de organi ¬
dat á rios, subarrendat á rios, parceiros e posseiros ser ã o zação económica e social, até que se lhes conceda por lei autono ¬
adjudicadas gratuitamente a seus cultivadores quando sua ex¬ mia maior.” As cooperativas deveriam ser constituídas por
tensão não exceda o ‘mínimo vital’. Quando os referidos agri¬ camponeses ou trabalhadores agrícolas com vistas a explorar o
cultores cultivem terras com uma extensão inferior a esse solo e colher seus frutos pelo concurso pessoal dos seus mem ¬
‘m ínimo vital’, ser-lhes-ão adjudicadas gratuitamente as terras bros e segundo o regimento interno regulamentado pelo INRA.
necessá rias para completá-lo, sempre que se possa dispor das As zonas de desenvolvimento agrá rio tinham um fito operacional
mesmas e as condições económicas e sociais da região o permi¬ e administrativo, sendo “ constitu ídas pelas porções cont í nuas e
tam” . Além disso, nos casos dessas pessoas, se elas possuíssem definidas do território nacional no qual, por decisão do Institu ¬
terras que excedessem ao “ mínimo vital” mas em um limite in ¬ to Nacional de Reforma Agrá ria, seja aquele dividido com os
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COLE ÇÃ O ASSI LUTA DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

fins de facilitar a realização da Reforma” ( todas as transcrições imperial a uma crise irremediável. Reversamente, ela punha em
foram extraídas do texto da lei, como está reproduzida em F. seu lugar a grande massa dos trabalhadores livres e semilivres,
Castro, La revolución cubana, pp. 437-461). começando a criar a base material da revolu ção pela organização
Este arrolamento das prescrições essenciais da lei de 17 de económica do poder popular.
maio de 1959 patenteia que ela transcendia às tarefas humanitá rias, Esse período coloca muitas questões de suma importância teó¬
económicas ou nacionalizadoras que procurava resolver. Sem pôr rica ou pr á tica para o estudo sociológico da reforma agr á ria. O
em causa o princípio da propriedade privada, al é m de proscrever experimento cubano possui peculiaridades que n ão podem ser
0 latif ú ndio, de propriedade nacional ou estrangeira, de socorrer ignoradas, pois nessa esfera o “ desenvolvimento económico pré¬
0 minif ú ndio, ela de fato transferia do setor privado para o setor vio” criava muitas possibilidades, que raramente aparecem em
pú blico 0 controle central na economia agrá ria (vale dizer, da eco ¬
conexão com o subdesenvolvimento. Os especialistas salientam
nomia cubana). Ela consolidava a aliança da revolução com os que a principal preocupação dos revolucionários voltava-se para a
camponeses e os trabalhadores agrícolas. Desagregava a base tra ¬
eficácia econ ó mica - tanto na correção do minifú ndio quanto no
dicional de dominação da burguesia nacional e estrangeira, com aproveitamento das vantagens relativas do latifú ndio. O que se
0 que reduzia drasticamente seu poder econó mico e social. E, o visava era a diferencia ção da produção agrícola, 0 aumento da pro ¬
que era deveras importante, atribuía a um órgão do governo revo ¬
dução de alimentos e o incremento do excedente económico da
lucion á rio (o INRA ) as tarefas de construir e orientar a pol ítica agricultura, com vistas à exportação. As medidas de correçã o do
agrá ria (à qual foi incorporada a concretização e o fomento da minif ú ndio beneficiaram mais de 102 mil camponeses, que pas ¬
reforma agrária). Dava origem a uma forma especial de cooperati ¬ saram a ter uma importâ ncia direta no setor produtivo privado
va administrada a partir de cima, da qual seria um simplismo (em junho de 1961, segundo uma fonte, eles dispunham de 2,725
dizer que fosse tutelada pelo Estado porque, na verdade, não exis ¬ milhões de ha ). Por sua vez, a transformação do latifú ndio em
tia outra maneira de introduzir fluxos reversíveis entre o centro cooperativa preservou as bases produtivas, organizatórias e técni ¬

( o governo revolucionário), os canais administrativos intermediá ¬ cas da grande empresa agrá ria. Isso permitia enfrentar os proble¬
rios (as zonas de desenvolvimento agrário ) e os conselhos de ad ¬
mas relacionados com as sucessivas fases de mudan ça concentrada
ministração das cooperativas. Isso não seria extirpar da reforma e acelerada da agricultura, sem pôr em risco os níveis anteriores
agrária 0 seu car á ter democr á tico ? Ora, 0 conte ú do democrá tico de expansão das forças produtivas. Os principais escritos dos lí¬
da reforma agrária estava em cada uma dessas medidas, isolada ¬ deres da revolução demonstram que eles perceberam muito bem
mente, e em todas elas, em conjunto. O governo revolucionário que não era universal a chamada “ fome de terra” . Na maior parte
tornou-se o mediador da posse de Cuba por seu povo, substituin ¬ da população trabalhadora agrícola prevalecia o que se poderia
do os 4 mil e poucos proprietários que eram donos de mais da chamar “ fome de trabalho” ( na forma de estabilidade ocupacional
metade do território nacional e de 57% da área de fincas (cf. S. e elevação dos salários). Assim, o lema anterior, adotado na fase
Aranda, op. cit , p. 171) pela imensa maioria dos que trabalhavam guerrilheira, “ a terra ao que a trabalha” podia ser substituído por
a terra e viviam de seus produtos. Por ser intrinsecamente demo ¬ uma palavra de ordem mais avançada - “ terra ou trabalho ?” (além
crá tica, a reforma agrária extinguia 0 latif ú ndio, reduzia o despo ¬ de S. Aranda e G. Gutelman, veja- se esp. J. e V. Martinez Alier,
tismo oligárquico à impotência e expunha a hegemonia do centro Cuba: economía y sociedad, pp. 109-208). Fidel Castro tomara a dian-
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS 183
DA GUERRILHA SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

teira e procurava impedir a fragmentação dos latifú ndios (para


criadores de gado e dos grandes produtores de açúcar, as quais
que não ocorresse uma devasta ção desastrosa dos meios de pro¬
foram em um crescendo do início de 1960 em diante, e a decisão
du çã o ou, então, para manter intacto um elevado n ível de utiliza¬ do governo estadunidense, recomendada pelo Congresso, de
çã o dos fatores produtivos ); e os trabalhadores agr í colas suspender a importação do açúcar, em julho de 1960, forçaram o
corresponderam à expectativa. governo revolucion á rio a sair das regras estabelecidas, a
Na aplicação da lei de reforma agr á ria dois aspectos mere¬ radicalizar - se e a impor medidas mais duras . A primeira
cem ser recapitulados. A batalha da safra da cana, em 1959, exi ¬
investida, a Lei n ° 851, de Nacionaliza ção das Empresas Estran ¬
giu ritmos diversos nos confiscos (estes se iniciaram logo nos geiras (6 de julho de 1960), levou ao confisco dos centrais a ç uca ¬
latifú ndios de cria ção ou nas plantações de arroz; nos latif ú ndios reiros com suas terras e das explorações agr ícolas de propriedade
de cana eles foram postergados para 1960 e se efetuaram depois estrangeira. A segunda investida, a Lei n° 890, de Nacionaliza ¬
da colheita). A cooperativa aparece como uma dupla frente de ção das Empresas Privadas (13 de outubro de 1960 ), levou ao
luta. Nela se travava, primeiro, uma luta económica, pela reor ¬ confisco dos centrais açucareiros com suas terras que ainda se
ganização e diferenciação da produ ção agr á ria, centradas no in ¬ encontravam sob o controle da burguesia cubana. Esse avan ço
centivo ao aumento da produtividade, da produ ção de alimentos acelerou os ritmos da reforma agr á ria e, em particular, exigiu
e do excedente económico comercializãvel. Mas, ela era, em se ¬
uma pol í tica econ ó mica mais agressiva, que produzisse a
gundo lugar, uma frente de luta política. Ela engajava o traba ¬ neutraliza çã o socioeconó mica e pol ítica da contra-revolução. A
lhador agr ícola na defesa consciente e ativa do governo Tabela 2, relativa à situação das terras em maio de 1961 ( ver M.
revolucion ário: os “ incentivos morais” nasciam, basicamente, Gutelman, op. cit., p. 87), d á uma idéia da precipita ção do pro ¬

dessa mobilização política fundamental e permanente, pela qual cesso e da firmeza do governo revolucionário:
a situação de classe dos trabalhadores agrícolas se confundia com
o êxito da reforma agrá ria e com a vitória da revolu çã o. O entu ¬ TABELA 2 - Situação das terras
siasmo que prevaleceu pode ser avaliado facilmente. Entre ju ¬
Superfície
nho e julho de 1960 foram formadas mais de 600 cooperativas de em ha %

cana. Em agosto de 1961 esse setor da economia apresentava os


Lei da Reforma Agr á ria 1.199 . 184 27 , 0
seguintes n ú meros: 115.675 cooperativistas e 44.897 trabalha ¬ Lei da Recuperação dos Bens Mal Adquiridos 163.214 3,7
dores tempor á rios; uma á rea de 65.400 caballer í as ( das quais Doações ao INRA 322.590 7 ,3
Vendas volunt á rias e art . 24 581.757 13 , 1
32.162 correspondiam às plantações de cana ); 158.500 cabeças Lei da Nacionalização ( n ? 851 ) 1.261 , 587 28,4
de gado; 2.730 tratores e 1.050 caminh ões. A atividade realizada Lei da Nacionalização ( n ? 890 ) 910.547 20 , 5
também foi enorme, pois a safra de 1961 constituiu um recorde Total 4.438 . 879 100 , 0
( 7 milhões de toneladas métricas de açú car); e nos 7 primeiros O crescimento do setor do Estado sobre o setor privado agu ¬
meses de 1961 foram semeadas mais de 4 mil caballerías de ou ¬ çou fortemente a pressão contra - revolucioná ria (esse autor indi¬
tros cultivos ( cf. S. Aranda, op. cit., pp. 180-181). ca que em fins de 1962 o primeiro abrangia 3,903 milh ões de ha,
Não obstante, a reforma agrária foi superada pela dinâ mica ou 44%, e o segundo 5.173.800 ha, ou 56%; cf. idem, p. 88 ). A
histórica da situação revolucioná ria. As sabotagens dos grandes posição da burguesia rural ainda era muito forte. Um levanta-
i8zj
185
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBMIA |

mento feito em agosto de 1961 revelara que ela ainda controlava ças produtivas na agroind ústria do açúcar, o n ível a partir do
mais de 22% da superfície nacional. Eis a distribuição das uni ¬
qual 0 INRA pretendia conduzir a correção maciça do subde ¬

dades agr ícolas exploradas pelo setor privado nessa data (cf. S. senvolvimento da economia cubana e a situa ção sociocultural
Aranda, op. cit., p. 190): da massa dos trabalhadores agrícolas. Desde logo ficou patente
que as cooperativas n ão provariam bem em algumas esferas (como
TABELA 3 - Unidades agrícolas do setor privado sucedeu, por exemplo, com os latifú ndios de criação). Em ou ¬

Superfície Total tras, onde os resultados positivos eram evidentes ( como ocorreu
Tamanho Número (em caballerías ) com os latifú ndios de cana), elas facilitavam a solu ção de graves
At é 5 caballerías 134.703 174.971 problemas da fase de pr é- transição (relativos à transferê ncia de
Mais de 5 at é 10 6.062 45.270 grandes volumes de recursos para a agricultura, 0 aproveitamento
Mais de 10 até 20 3.105 45.478
Mais de 20 at é 30 1.456 27.820 da mão- de -obra, a diferencia ção e 0 incremento da produçã o
Mais de 30 592 28.126 etc.), menos pela forma social cooperativa, em si mesma, que
pela maleabilidade dos trabalhadores agrícolas e sua gana de “ lu ¬

Em resumo, apesar da lei da reforma agrária, a burguesia tar pela revolu çã o” . A idéia de cooperativa suscitava uma repre ¬

rural ainda detinha o controle de uma imensa força econó mica e sentação revolucioná ria concreta de que a ruptura com o passado
social ( ao todo, 11.215 unidades agrícolas, numa extensão de era total e de que os trabalhadores passaram a produzir para si
í as ). Para esmagar essa força, o governo revolucio ¬
146.694 caballer próprios, para o seu bem - estar coletivo. Todavia, havia mais coo ¬
nário acionou sua terceira investida, que assumiu a forma da peração como processo societ á rio básico que uma alta viabilida ¬

Segunda Lei da Reforma Agrá ria (13 de outubro de 1963), com de e uma necessidade histó rica da cooperativa como forma de
o objetivo expresso de liquidar um adversá rio irremissivelmente associa ção dos produtores. Os pró prios impulsos pol íticos da
hostil. A lei adjudicou ao Estado cubano todas as propriedades revolução transcendiam ao patamar histó rico do cooperativismo.
rurais de á rea superior a 5 caballerí as (aproximadamente 67 ha) Existia, outrossim, uma contradição entre a escala de grandeza
e, com isso, alterou a relação entre o setor p úblico e o privado do desenvolvimento da economia, projetado pelo governo revo ¬
(M. Gutelman indica que, ao incorporar mais 1,8 milhão de ha, lucioná rio, 0 ponto de partida existente para uma experiência
o setor do Estado ficou com 5.513.700 ha, ou 60,1%, e o setor puramente socialista e as perspectivas de um crescimento es ¬

privado com 3.563.100 ha, ou 39,3%. Cf. op. cit., p. 88). O governo pont â neo das cooperativas. Imperativos económicos, t écnicos,
revolucionário tinha diante de si a responsabilidade de reorga ¬ administrativos e pol íticos impunham, além disso, uma forte
nizar o espaço agr ícola de Cuba, conduzindo a reforma agrária centralização estatal. O INRA e seus representantes diretos, os
para uma das mais completas experiências de socialização da delegados provinciais, os quadros administrativos das ZDA ( zo ¬

agricultura na história moderna. nas de desenvolvimento agr á rio) é que tomavam as decisões. As
As cooperativas constitu íram um artif ício para adaptar a parte cooperativas e seus conselhos de administração converteram -se
mais desenvolvida da economia agrá ria à conversão ao setor em último elo da cadeia e não transmitiam decisões, obedeciam -
p úblico e à coletivização. Poré m, não havia como estabelecer nas e as punham em prá tica. As granjas do povo surgiram, nesse
um enlace definitivo entre o grau de desenvolvimento das for - quadro, como uma solu çã o mais eficaz e avan çada . Elas
iS6
18?
¡ COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

correspondiam organicamente à palavra de ordem “ terra ou tra ¬ reforma agrária estavam totalmente incorporadas nas granjas do
balho ?” , encaixavam - se como uma luva à férrea centralização Estado; as granjas do povo, as granjas açucareiras, as explorações
predominante e, acima de tudo, não comportavam os mesmos administradas e os respectivos aparelhos tinham desaparecido
riscos potenciais que as cooperativas, em termos de deformação como tal. Todas estas explorações tinham sido substituídas por
do horizonte cultural do trabalhador agrícola . “ A transforma ¬ granjas do Estado especializadas na produ ção a çucareira ou
ção em granjas do povo significou reordenar e reagrupar as fa ¬ diversificadas, inserindo -se num ú nico modelo de agrupación ge¬
zendas estatais em todo o pa ís, de maneira a constituir grandes ral que correspondia às divisões pol í tico-administrativas da Ilha.
unidades de produção. Em agosto de 1961 havia organizadas um (...) A agrupación constitu ía a unidade agrícola propriamente dita
total de 298 granjas do povo, que contavam uma á rea de 1972 e as granjas do Estado eram os elementos constituintes” (idem, p.
mil caballerías ( 2.645 .500 ha ), 1,245 milhão de reses e 4.160 tra ¬ 166). As tentativas de descentralização, postas em pr á tica em se ¬
tores. O tamanho m édio de cada granja era de uns 8.870 hecta¬ guida, especialmente de 1966 a 1970, falharam. Todos esses pro ¬
res, embora dentro dessa m édia existissem unidades de 15, 20 e blemas dever ão ser resolvidos nas condições que permitiram a
25 mil hectares. Nas granjas trabalhavam, nessa data, 105 mil adoção do primeiro plano q ü inqüenal, a ser desenvolvido entre
operá rios transitórios e permanentes.” (S. Aranda, op. cit., p. 185.) 1976-1980.
A transformação das cooperativas de cana em granjas estatais Em suma, entre 1959 e a safra de 1970 a socialização da agri¬
foi decidida em setembro de 1962 (de 1.384 delegados eleitos cultura percorreu e encerrou todo um circuito. Esse processo
pelas cooperativas, 1.381 votaram a favor e 3 contra. Antes, a tem um significado global e implica ções que não podem ser ne ¬
proposta fora submetida, durante 2 meses, à discussão nas as- gligenciados. O seu motor foi uma forma peculiar de cooperati ¬
sembléias das cooperativas). Aranda assinala, a respeito, que as ¬ va, que logo se converteu em uma modalidade avan çada de
sim se encerrou uma fase de transição para o socialismo, com a coletivização da produção agrá ria. Esta teve, guardadas as pro ¬

opção por uma forma superior de propriedade, a propriedade de porções, o significado de equivalente funcional, em relação in ¬

todo o povo ( idem, p. 186). versa (por causa de seu cará ter intrinsecamente socialista ), à NEP,
Os “ agrupamentos” surgiram como órgãos intermediários de na União Soviética. Se tal evolu ção não fosse possível, o desen ¬
direção. Pela agregação de um certo nú mero de cooperativas ( mais volvimento das forças produtivas e a estabilização do socialismo
tarde de granjas ) tornava-se possível formar um truste regional em Cuba teria sido muito mais dif ícil (ou, mesmo, improvável ).
ou “ empresa agrícola propriamente dita” , que saturava o vazio Portanto, por tr á s de uma intensa, cont í nua e crescente
existente entre os centros de decisão e a falta de autonomia admi¬ estatização se achava a força viva da revolu ção, a “ classe revolu ¬
nistrativa e económica das cooperativas (ou das granjas). Depois cion á ria cubana” , os trabalhadores agr ícolas. Estes suportaram
da segunda reforma agrária e a conseqüente rearticula ção entre o o peso prolongado dos imensos sacrifícios realizados e apoiaram
setor público e o setor privado, as funções construtivas desses or ¬ sem vacilação as decisões que vinham “ do poder ” . Ao aprofundar-
ganismos aumentaram . Eles contavam certa autonomia se e ao tornar- se económica, a revolução alinhou essa classe re ¬
contabilística e dinamizaram o funcionamento das entidades lo ¬
volucion ária em todas as frentes nas quais se travaram as batalhas
cais ( cf. esp. M. Gutelman, op. cit., pp. 161 e segs.). Esse autor decisivas. Desse â ngulo, n ão foi a cabeça de an ão no corpo de
observa: “ Em junho de 1964, as terras confiscadas pela segunda gigante que levou, nesse per íodo, especialmente depois de 1961,
i 88 189
DA GUERRILHA
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

a revolução à vitória. O corpo de gigante absorveu os excessos que, às vezes, parece assumir a forma de flutuação nada tem a
da estatização (e da burocratização) e devolveu-os à sociedade ver com 0 essencial - mas com 0 estilo ou com ênfases, que varia ¬
cubana sob a forma económica e política de forças revolucioná ¬ ram, porque os problemas do subdesenvolvimento foram
rias, que bateram a contra-revolução e conduziram Cuba ao es¬ equacionados com recursos diferentes em momentos ou etapas
tágio no qual se encontra, no qual a anomalia da desproporção diversos do processo revolucionário. Além disso, os referidos
entre a cabeça e o corpo poderá ser sanada e ultrapassada. O objetivos centrais poderiam ser propostos a partir tanto de uma
novo estágio - que se abre com a safra de 1970, a discussão dos estratégia económica capitalista quanto de uma estratégia eco ¬
caminhos da revolução, que ela provocou, e as alterações subse- nómica socialista. Nos dois primeiros anos da revolução - e
qiientes da política econó mica e da planificação - presumivel ¬ mesmo pouco depois - era coerente recorrer a uma ou a outra
mente eliminará, no decorrer da próxima década, as distorções estratégia e às duas conjuntamente, o que pressupunha priori ¬
e as insuficiências, que não nasceram das formas socialistas da dades da diversificação da produção, do consumo e da industria ¬
produção agrária. É óbvio que elas decorreram da enorme ten¬ lização que não deveriam ser mantidas posteriormente.
são a que a agricultura e os trabalhadores agrícolas precisaram Quando a opção socialista se define como definitiva e se de¬
ser submetidos para que a revolução pudesse erguer a base eco ¬ lineia em função de alvos concretos, os mesmos objetivos pode¬
n ómica de que carecia para passar à primeira etapa da constru ¬ riam subsistir, por é m a escala de prioridades se alterara
ção do socialismo. substancialmente, junto com a escolha de certos meios para atin¬
O segundo aspecto da socialização da agricultura diz respei¬ gi-los. O que importa é que a estratégia econ ómica socialista se
to aos efeitos estruturais e dinâ micos da produção agrá ria socia¬ associa a conhecidas vantagens operacionais e políticas (vincula ¬
lizada sobre a reconstru ção e o desenvolvimento da economia das à capacidade de mobilização de recursos materiais e huma ¬
como um todo. Ou, como foi mencionado acima (cf. p. 39), no nos, de centralização e de coordenação global). Graças ao contexto
delineamento de uma economia socialista montada sobre um histórico e político da revolução cubana, essas vantagens relati¬
produto principal, o açúcar. O tema é demasiado complexo para vas (apesar das limitações impostas pelo subdesenvolvimento e
ser considerado apenas de relance. Todavia, essa incursão lateral pela pobreza de Cuba) alcançaram um ápice (pois 0 governo re¬
é indispensável para que se possa avaliar corretamente as reali¬ volucion á rio sempre contou com uma “ sociabilidade comuni¬
zações económicas da revolução cubana e suas perspectivas. O tá ria” altamente favorável à emulação da classe trabalhadora e
assunto, aliás, contém implicações teóricas e prá ticas mais ge ¬ da população pobre). É verdade que 0 açúcar foi negativamente
rais, j á que suscita a questão de a revolução agrícola e industrial afetado pela sí ndrome ou complexo colonial. Só a experiência
poder ser um produto e não a condição da edificação do socialis¬ mostraria que os “ males de Cuba” não provinham do açúcar,
mo na periferia do mundo capitalista contemporâ neo. mas do padrão neocolonial de dominação imperialista e de de¬
A política económica do governo revolucionário não se ela ¬ senvolvimento capitalista. Por fim, a sedução pela industriali ¬
borou de um golpe. Entretanto, tampouco ela foi flutuante, no zação maciça rá pida, que gerou tantas concep ções e anseios
que deveria ser essencial. Certos objetivos centrais tinham de simplistas, constituía uma típica manifestação de uma moléstia
impor-se fatalmente. N ão havia como enfrentar e ultrapassar os infantil, que seria superada em poucos anos. Exagerou - se 0 fator
fatores e os efeitos do subdesenvolvimento de outro modo. O volitivo e, com ele, a facilidade da decolagem industrial, desne-
191
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

cessariamente tida como pré-requisito sine qua non da implanta¬ certeza que procediam da natureza do estágio capitalista anterior;
ção do socialismo e de sua consolidação. 2. gerar formas de articulação, de interdependência e de influên ¬
Na verdade, Boorstein demonstra que essa etapa criara tais cia recíproca entre os vá rios setores da economia, que seriam
dificuldades que acabou por engendrar, por si mesma, o seu an ¬ inconceb íveis fora da planificação centralizada ( mesmo sob a
t ídoto. O que se poderia chamar, em termos abstratos, de estru ¬ exacerbação do elemento político). Portanto, desde que fosse
turas elementares da pol í tica econ ó mica revolucion á ria, possível manter ou ampliar a posição de Cuba no mercado mun ¬
cristalizam -se com muita rapidez e, mais tarde, permaneceriam dial do açúcar, ele podia concentrar em suas mãos muitas deci ¬

presentes em todas as tentativas de acelerar o desenvolvimento sões, que faziam sua política econó mica transcender quer às
econ ómico, vistas ou não como requisitos da “ edificação do so ¬ possibilidades de um pa ís economicamente subdesenvolvido,
cialismo” . Essas estruturas são focalizadas com notável clareza quer às exigências da implantação do socialismo. Aqui, o esque¬
e esp í rito de sí ntese no recente relat ório de Fidel Castro: “ N ã o ma de an álise de P Baran revela sua fecundidade em toda a ple ¬

basta somente a disposição de trabalhar e de realizar o m áximo nitude, embora seja evidente que a viabilidade da opção socialista
em cada centro de produção. É preciso tomar em conta que ma ¬ multiplicou geometricamente as potencialidades de autonomiza ¬
térias -primas e recursos empregamos em cada atividade e quais ção de Cuba. Sem qualquer â nimo de concessão superficial e
podemos obter. Há produções económicas nas quais o cresci ¬ sem omitir que as realizações também envolveram muitos erros
mento depende mais de nossos esforços que de recursos impor ¬ e distorções, salta aos olhos o enorme êxito da revolu ção nas
tados; nelas, do mesmo modo que em todas as que incrementam duas direções. Cuba, hoje, possui uma nova economia ( não ape¬
as exportações ou poupam importações, devemos colocar a maior nas por ser socialista) e, se ainda continua dependente do mer ¬
ê nfase” ( “ El desarrollo económico de Cuba: 1959-1975” , p. 77). cado mundial do a çú car, é ó bvio que essa depend ê ncia n ã o
Se tais estruturas aparecem com maior latitude nos últimos 4 impede nem a autonomia de sua pol í tica econ ómica revolucio ¬

anos da década de 1960, isso se deve ao fato de que, nesta fase, as nária nem uma crescente racionalização do controle das aplica ¬
condições hist óricas favoreciam uma consciência mais clara dos ções alternativas de recursos materiais e humanos escassos. O
meios e dos fins da revolu ção. Por esta razão - e n ão por qual¬ dilema da escassez dos recursos e de suas implicações apareceu,
quer outra - foi possí vel pensar que havia algo de específico na de modo dramá tico, como conseq úência do fracasso da safra de
política econó mica revolucioná ria nesses anos. ( O que explica 1970 ( ver esp. F. Castro, Autocrítica ) e ele deixou patente que, por
por que o pensamento dos economistas cubanos sobre a estraté¬ ser socialista, a nova economia de Cuba atingiu o patamar em
gia econ ómica do desenvolvimento socialista em Cuba foi aco ¬ que se encontra.
lhido com tamanho alvoroço. Mesmo D. Barkin, em seu not á vel Carlos Rafael Rodriguez salienta que a “ raridade” do capital
ensaio Agriculture: the turnpike to cuban development, sucumbiu a e a “ abund â ncia” da m ão - de-obra pressupõem um falso dilema
essa fascinação.) .
(apud M . Gutelman, op. cit , p. 289), ao qual Cuba não esteve, de
O governo revolucion á rio podia realizar duas tarefas com fato, presa. A dilapidação e a esterilização desses fatores, que
apreciável eficácia: 1. preservar o ní vel de expansão das for ças atingiram uma magnitude t ão considerá vel, prendiam -se ao pa ¬
produtivas, tanto no minif ú ndio quanto no latif ú ndio, escoi- dr ão neocolonial de dominação imperialista e de desenvolvimen ¬
mando ambas as explorações de deformações ou fatores de in ¬ to capitalista. A revolu ção n ã o só liberou capital e m ão- de-obra
193
192 GUERRI AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA
COLECÂO ASSIM LUTAM OS POVOS

para tantas realizações econó micas antes inconceb í veis; ela tam¬ pela elaboração industrial) sob as condições da acumulaçã o so¬
bém reorganizou toda a economia agrícola e imprimiu-lhe di ¬ cialista dá origem a transformações económicas que afetam toda
namismos que a converteram na base da revolu ção económica a economia e beneficia toda a população. A revolu ção alterou
em curso e da propagação do socialismo a toda a economia. ou, melhor, subverteu o significado histórico do “ comércio do
Aliás, basta que se leia com atenção o relatório de Fidel Cas¬ açúcar” . Tão nefasto, no passado, agora seus resultados positi ¬
tro sobre os resultados da política económica do governo revolu ¬ vos convertem-no em uma força centrípeta, que contribui pode¬
cionário para que se perceba os dois florescimentos concomitantes rosamente para sustentar a continuidade da revolu ção e para
da economia socialista em Cuba. De um lado, ele enfatiza como generalizar, dentro de Cuba, os impulsos socialistas da agricul ¬

essa política económica se voltou para o que poderíamos chamar tura para o resto da economia e para toda a sociedade.
revolu ção agrícola, introduzindo processos constantes e altamen ¬ A diferenciação da economia (cf. acima, p. 115 ) continua a
contar, n ão obstante, com uma base material demasiado estreita
te fecundos de modernização, mecanização e especialização em
todas as esferas da produção agrícola. De outro, aponta como o e oscilante. Nem é necessário lembrar a extensão de Cuba, suas
impacto dessa transformação da agricultura se encadeia aos rit¬ condições geográficas, o tamanho e a estrutura de sua popula¬
mos de uma industrialização generalizada que ainda se concentra ção, 0 rol de suas riquezas naturais em contraste com o rol de
na agricultura e nos bens de consumo mas que se está irradiando necessidades que estimulam importações estritamente “ comple ¬

para outras á reas. Em resumo, sob o socialismo em implantação mentares” ou essencialmente reprodutivas, para ter -se uma equa ¬
já está nascendo uma nova configuração do espaço económico, na ção objetiva dos obstáculos com que se defronta o governo
qual agricultura e indústria ou cidade e campo se entrelaçam se ¬ revolucioná rio para promover a adaptação da economia cubana
gundo um novo padrão histórico. aos requisitos e às normas ideais do socialismo. Os caminhos já
Para muitos, isso não seria espantoso. Ao contrário, dadas as foram traçados e refeitos quatro ou cinco vezes e é quase certo
pequenas dimensões da ilha e o crescimento anterior do açú car, que, no futuro, o mesmo se repetirá, cada vez que 0 país atingir
0 topo de uma nova virada. Os recuos, os tateios e os desvios se
do tabaco e de outros produtos, o governo revolucion á rio esta ¬
ria colhendo frutos que não plantou. Mas seria, mesmo, tão fácil farão, não obstante, com um largo acú mulo de vantagens e cons ¬
tante ganho de terreno. Ao que parece, n ão existe o risco de um
“ regular a ilha como um relógio” ou “ levar o progresso para toda
a ilha” ? Por que isso não foi feito antes ? Ou, melhor, por que foi passo à frente e dois para trás.
feito para tão poucos, aproximadamente só para pouco mais de Todavia, mesmo ignorando- se os custos diretos e indiretos
10% da população ? Além disso, por que a esfera da agroindústria do cerco imperialista, o grau ainda incompleto de coalescência
não comandou, antes, um processo de diferenciação da econo ¬ de Cuba às economias e às tecnologias do chamado bloco socia ¬
mia e de autonomização do desenvolvimento económico ? Por lista e 0 s úbito aumento de encargos de interesse social que pe¬

que n ã o se rompeu, antes, com o parasitismo da cidade sobre o sam terrivelmente no orçamento de um governo socialista, é fácil
campo e com uma satelização destrutiva, que reduzia o grosso perceber a contradição entre um excedente económico de ori ¬

da população rural ao desemprego e à miséria? As respostas a gem agrícola, a autonomização da polí tica econ ómica e a rápida
estas e outras quest ões an álogas são óbvias. O excedente econó ¬ diferenciação de uma economia socialista. Essa contradição é
mico gerado pela agricultura (com ou sem agregação de valor tanto maior quanto o excedente económico depende, basicamen-
194 195
COLE çãO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO REVOLU ÇÃ O CU B AH I

te, da produ çã o e exporta çã o do a çú car, ambas sujeitas a


flutuações incontroláveis, além de certos limites (por exemplo:
as secas, que podem arruinar inesperadamente as melhores pre¬
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visões; as oscilações de cotação do produto no mercado mundial, SO *í (N O
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especulações financeiras, modificações nas relações entre oferta (O O (

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e procura, efeitos conjunturais da prosperidade ou de crises eco ¬ 3
nómicas etc.). As duas tabelas seguintes proporcionam uma vi ¬ S
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são de conjunto da situação atual, revelando a alta magnitude da #
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dependência da exportação sobre o açúcar (apesar do esforço para
a diversificação dos bens exportáveis) e a pressão das importa ¬
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Jones, “ Trade winds A’ Changin’’, p. 15. Dados originais do Banco jv


Nacional de Cuba. Sobre a década de 1960, veja-se o artigo cita¬ is o
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do de D. Barkin, que fornece dados sobre os principais aspectos §
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da estrutura da economia cubana; e sobre a presente década,
principalmente C. Mesa-Lago, Cuba in the 1970s, cap. 2. Os ro ¬
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Economia de América Latina, México, n° 1, setembro de 1978, pp.
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enquanto, crescem em espiral. Além disso, a verticalização da 1 -§
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ja uma das esferas de maior êxito da política económica encetada
com a formação dos “ combináis” (veja-se esp. M. Gutelman, op.
cit., pp. 176 e segs.). O mesmo ocorre com a recuperação de terras,
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196 197
] COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

ser reequipados. A modernização de todas as atividades relacio¬ a safra de 1970 funcionou como um experimentum crucis político,
nadas com a criação de gado ou a cultura da cana-de-açúcar e com demonstrando o quanto uma base económica estreita - mesmo
as fases industriais, que ambas as explorações pressupõem, ergue sob uma política económica corajosa e o apoio decidido da maio¬
novos problemas de organização e de financiamento. No conjun¬ ria da popula ção - constitui um fator de vulnerabilidade na
to, pois, grande parte do excedente económico, gerado pela eco¬ edificação da passagem ao socialismo. Ainda assim, ela está longe
nomia agr ícola, é reabsorvida pelo setor agroindustrial. Nem de ser uma “ mancha negra” no ativo do governo revolucionário.
poderia ser diferente! A revolução herdou uma sobrecarga pesada Ao contrá rio, ela precisa ser encarada, também, da perspectiva da
e seu êxito na sustentação e na expansão da revolução agrícola é aceleração da revolução (em sua maioria, os analistas e os críticos
digno de nota. No entanto, aqui reside o principal obstáculo a fizeram finca pé no economismo e no tecnicismo, como se só con¬
uma política global de diferenciação da economia mais rápida e tasse a aceleração do desenvolvimento económico). Graças ao fra ¬

ambiciosa. Com o excedente económico de que dispõe, Cuba não casso relativo da safra de 1970, o governo revolucionário teve de
pode enfrentar, simultaneamente, essa revolu ção agrícola e a re ¬ proceder a uma reavaliação em profundidade das exigências do
volução industrial. As conquistas são obtidas a duras penas e fi ¬ período de transição em um pa ís com as potencialidades econó ¬

cam aquém quer das ambições do governo revolucionário, quer micas de Cuba; e o povo cubano teve de defrontar-se, pela experiên¬
das esperanças do povo cubano (para não falar dos requisitos ma ¬ cia cotidiana, com o significado histórico desse período, que exige
teriais da transição para o socialismo). sacrifício concentrado não apenas em um lapso curto de tempo,
A safra de 1970 exprime o teto provisório que a interdepen ¬
mas de forma prolongada. O futuro não está ao alcance das mãos!
dência das duas revoluções estabelece inexoravelmente à indus ¬ Um povo não pode livrar- se, em pouco mais de um decénio, do
trialização. O gigantesco esforço coletivo feito para plantar e colher fardo de uma heran ça pesada, deixada por 5 s éculos de
uma safra de 10 milhões de toneladas de cana-de-açúcar redun ¬ colonialismo e de neocolonialismo! Esta descoberta, somada aos
dou em fracasso parcial. Embora a safra conseguida fosse um re ¬ resultados da revisão crítica e de uma exploração mais sólida da
corde, pois os 8,5 milhões de toneladas ficarão como um marco na cooperação entre os países socialistas, desenha o fim de uma pri ¬
história de Cuba, o que ela custou em concentração e devastação meira etapa, que se poderia qualificar de “ período de pré-transi¬
de recursos, em desorganização transitória da economia e em sa¬ ção” . Em seu relatório de 1975 Fidel Castro afirmou: “ Contudo,
crifício humano demonstra que essa n ão é uma via recomendável a revolu ção cubana não soube, desde o primeiro momento, apro ¬
para a superação do subdesenvolvimento com critérios socialistas veitar no terreno da construção do socialismo a rica experiência
(um balanço global dos efeitos negativos da safra é fornecido por de outros povos que muito antes que nós empreenderam esse
C. Mesa-Lago, idem, pp. 47-52; quanto ao significado político das caminho” (“ El desarrollo económico de Cuba” , 1959-1975, p.
conseqíiências da mesma, leia- se Fidel Castro, Autocrítica). Era 95). O busílis da questão consiste em saber: poderia ter feito
previsível, quando a decisão foi tomada, em 1964, que uma safra isso ? A sociedade cubana não precisaria poder chegar à safra de
de tais proporções submeteria a economia cubana a um súbito 1970 e conhecer duramente suas limitações concretas, que são
deslocamento económico (veja-se, por exemplo, M. Gutelman, históricas e, portanto, superáveis, para entrar verdadeiramente
op. cit., pp. 270 e segs.). No entanto, parecia que não seria tão difí
¬
no “ período de transição” , como ele se configura a partir de Cuba
cil absorver e corrigir as distorções inevitáveis. Ora, na realidade, e para os cubanos?
198 199
|
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS D A GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

Nas condições econó micas apontadas, a captação de recursos na, e que estará na frente na produção por habitantes de energia
internos para financiar a diferenciação da economia, principal ¬ elétrica, aço, cimento e refino de petróleo” . As dificuldades eco ¬
mente no que se referia à reorganização do comé rcio e das ind ús ¬ n ó micas conjunturais e estruturais - estas decorrentes da
trias leves e ao fomento da ind ústria básica, envolvia decisões que reconversão de uma economia capitalista para o socialismo - im ¬

pressupunham contradi ções insuperáveis. O primeiro esforço, de puseram uma drástica revisão dessa pol í tica económica. O verão e
aproveitamento da capacidade produtiva instalada, como se pode 0 outono de 1963 marcam o retorno à prioridade da agricultura

inferir das descrições de E. Boorstein, esgotou-se rapidamente. O com referência à indústria. Fidel Castro proclamou, então, que
que vai marcar os primeiros anos são certos tra ços por assim dizer naquela década e, provavelmente, na década seguinte, a agricul ¬

de racionalização econó mica. A tendência dominante consistia tura deveria ser a base do desenvolvimento económico de Cuba.
em eliminar, onde isso se revelasse viável, a pulverização e a anar¬ Já em 1963, em um orçamento de 2,094 bilhões de pesos, destina ¬

quia da atividade económica. Tanto no comércio quanto em vá rios vam-se à agricultura 261 milhões e à indústria 241 milh ões. Em
ramos da ind ú stria procurou - se racionalizar a produ çã o, 1964, em um orçamento de 2,399 bilhões de pesos, eram reserva ¬
objetivando economia de escala. Onde centenas ou milhares de dos 343 milhões à agricultura e 194 milhões à ind ústria (ver Ser¬
pequenos estabelecimentos operavam, em bases artesanais, de gio de Santis, “ Debate sobre la gestión socialista en Cuba” , em E.
pequena escala, com a fragmenta ção inelutá vel da produ ção e 0 Che Guevara e outros, La economia socialista: debate, pp. 16-17 e
congestionamento da intermedia çã o, procedeu-se a uma concen ¬ 19-21). A distribuição setorial do investimento estatal, entre 1961
tra çã o que visava à racionalização da produção ou do comé rcio, à e 1964, exibia duas tendências concomitantes: 1. o investimento
diminuição dos custos, ao aumento da produtividade, à elimina ¬ diretamente produtivo cresceu de 51,5% para 79% (na agricultura
ção do intermediá rio, à baixa dos preços, à substituição de impor ¬ ele passou de 16,8% para 33,3%; e, na ind ústria, de 15,7% para
tações, à diferenciação das pautas da exportação etc. 27,4%, depois de ter atingido 30,4% em 1963); 2. 0 investimento
Quanto às prioridades relevantes, interrompeu-se muito de¬ em serviços sociais decresceu de 48,5% para 21% (ver D. Barkin,
pressa a euforia industrializante, a favor de uma industrialização artigo citado, tabela 1).
seletiva “ possível” . Sergio de Santis descreve essa passagem, pra- No entanto, 0 crescimento demográfico, a elevação do nível
ticamente imposta pelos fatos económicos. Em 1962, em um or ¬ médio de vida ( considerável, pelo n ú mero de pessoas que passa¬
çamento de 1,854 bilhão de pesos, destinavam -se ao investimento ram da economia de subsistê ncia ou de uma participação margi¬
estatal 703 milhões de pesos, dos quais 208 milhões deveriam ser nal no mercado para a condição de consumidor), a moderniza ção
aplicados no desenvolvimento industrial e 112 milhões na agri ¬ da agroindústria e do padrão de vida rural, a pressão seletiva so ¬
cultura. As metas eram ambiciosas. Pretendia-se incentivar o de ¬ bre as importações e a substituição de importações, o incremento
senvolvimento simult â neo dos setores siderú rgico, mecâ nico e da atividade exportadora etc. impunham uma polí tica de indus ¬
qu í mico. Previa-se um incremento anual da produ ção industrial trialização, tanto na esfera da produção de alimentos e de bens de
da ordem de 19,5% ( com 26% para certos setores). Regino Boti, consumo quanto na da ind ústria b ásica. Tornou- se imperioso
ministro da Economia e secretário da Juceplan, traduzia aquela manter a industrialização em ritmos que forçavam as possibilida ¬
euforia, em 1961, quando afirmava: “ Em 1965 Cuba será, em rela ¬ des orgâ nicas do país (o quadro anexo - Tabela 6 - sobre o cresci ¬
ção à sua população, o país mais industrializado da América Lati- mento dos produtos social e material, por setores económicos,
200 201
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CHI

permite observar as principais variações ocorridas entre 1962 e iú


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1
1975, com maior detalhe nos ú ltimos 6 anos, que nos interessam
mais). No referido relatório de Fidel Castro está indicado que,
entre 1961 e 1965, o PNB cresceu 1,9%; entre 1966 e 1970, 3,9%; e
de 1971 a 1975, mais de 10%. Ele salienta, porém, duas coisas que
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devemos levar em conta conjuntamente: os ritmos de desenvolvi ¬
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mento económico mencionados acarretavam uma sobrecarga na


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importação de matérias -primas, equipamentos e maquinaria, su ¬ Os

perior à capacidade existente, frisando que, no pr ó ximo


qüinqüénio, essa distorção precisará ser corrigida. E quanto ao j l|
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desenvolvimento industrial: a ind ústria básica se expandiu, de
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6,4% ( nos últimos 5 anos, de 11%); a indústria leve manteve-se
oscilante, entre 1965 e 1970, mas passou a crescer a uma taxa de ¡*_ I í— iitP I
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12% de 1971 a 1975; a indústria de alimentos cresceu a um ritmo
de 4% ao ano de 1966 a 1970, e de 6% de 1971 a 1975 (“ El desarrollo
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económico de Cuba” , pp. 80-81).
As perspectivas para o fim desta década, nos quadros do ingres¬
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so de Cuba no Conselho de Ajuda Mútua (CAME), em julho de
1972, e dos acordos de cooperação económica com a União Soviéti¬
ca, em dezembro de 1972, evidenciam, de novo, uma certa priori¬
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prevê, com apoio no crescimento cont ínuo da economia agrícola,
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um aumento de 6% ao ano da produção social, entre 1976 e 1980.
Pretende-se incrementar a produção do açúcar, de 35 a 40% sobre
os níveis atuais, para fazer com que ela fique, anualmente, entre 8 e
8,7 milhões de toneladas. A receita monetária resultante deverá ali¬
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mentar um aumento da importação de equipamentos e de bens sO
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intermediários imprescindíveis à expansão industrial. Em um to¬
tal de 3.877,7 milhões de pesos destinados a investimentos (dos
quais 2.600,5 milhões de pesos provirão de créditos externos, e 60%
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deles já estão contratados), a indústria básica deverá absorver 48%


dos novos investimentos; o setor de bens de consumo, 21%; e o de
construções, 14% (cf “ Cuba - una nueva etapa” , pp. 38-42).
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203
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA
COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS

Por a í se vê que a diferencia ção da economia entrou em uma


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5 i 3 etapa na qual se revelam dois tipos de influências din â micas
concomitantes e interdependentes: as que resultam de fatores
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endógenos; e as que refletem o grau alcançado atualmente pela
integração de Cuba ao mercado socialista (sobre as exportações e
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53§ 5 Z- 5 | 233 as importações de Cuba, veja- se Tabela 6). Este segundo fator é
1 SS SB 5 SS 5 , i r deveras importante, pois ele fortalece e corrige, a um tempo, as
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tendências marcantes que resultam da predominância da agricul ¬
tura e da exportação de uns poucos produtos na conformaçã o da
'5 p s« g * § ~ r = ~ |5 522525 | S 32 produção sob o socialismo. A integração mais completa salienta a
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- |5 555532 j , 22 maior elasticidade tanto da economia cubana quanto de seu po ¬
tencial para adaptar- se a um crescimento económico programado
Io. de médio ou largo prazos. De outro lado, a incorporação ao CAME
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o. dos demais países socialistas. Os acordos com a União Soviética,
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acelera ção do desenvolvimento econó mico, em particular no que
diz respeito à modernização do parque industrial e do sistema de
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ção centralizada (cf. “ Cuba - una nueva etapa” , loc. cit.). Os acor ¬
dos com a União Soviética, de significado especial no presente
contexto mundial, abrangem os seguintes arranjos recíprocos: 1.
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. preços maiores para o açúcar e o n í quel, os dois principais produ ¬
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de 6,11 cents para 11 cents a libra)’; 2. uma assistência técnica para
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vendendo seu a çúcar pelo preço fenomenal de 26 cents a libra” . Mais de 2
milhões de toneladas foram vendidas ao pre ço corrente de mercado. A União
Sovi é tica pagou a 20 cents a libra, “ como parte de um contrato de longa

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« 30 iSOa, 0 ifMJljlJtil s dura ção ” ( Revolution in Cuba , p. 313) . Pelo discurso de Fidel Castro fica-se
sabendo que o a çúcar subiu ainda mais, então , para cair, no in ício de 1975,
abaixo de 14 cents a libra ( loc. cit ., p. 91) .
204 205
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

vários fins, estimada globalmente em 300 milhões de rublos (com *o

vistas à mecanização da colheita do açúcar; à reparação, moderni¬


zação e expansão da exploração do níquel; à elevação da produção
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ção nos serviços de planificação e de computação); 3. dilação, por IA O CO VO (N • ^ **
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mais treze anos, no pagamento do debito de Cuba à União Sovié¬ § a
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tica (esse débito foi acumulado entre 1960 e 1972; segundo o novo 8 For
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arranjo deverá ser pago entre 1986 e 2011); 4. concessão do crédi¬
to necessá rio para compensar o déficit no balan ço de pagamento
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três anos, em condições não divulgadas (cf. C. Mesa-Largo, op.
cit., pp. 20-21).
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zação da economia cubana com referência aos dinamismos eco ¬
nómicos do mercado socialista. O que pressupõe maior rigor na
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çar esse objetivo foi instituído o CE (ou Controle Económico),
iniciado através de um conjunto de medidas administrativas e
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refere- se ao CE como Sistema de Direção da Economia e deixa


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que existe em todos os países socialistas” . A reviravolta, quanto I Popula


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é completa, como atesta a seguinte explanação: “ O sistema que
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206 207
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS | DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

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sejos. Entre estas leis está a lei do valor, a necessidade de que : A rela ção entre trabalho e n í vel de vida interessa, nesta par ¬
entre todas as empresas, incluindo as estatais, haja relações de te da exposição, apenas em termos do que representa uma das
cobran ças e pagamentos, e que nestas relações e em geral nas alterações mais notáveis produzidas pela revolu ção cubana. Ela
diversas relações que se produzem na economia, funcionem o j eliminou, quase completamente, 0 desemprego e 0 subemprego;
dinheiro, os preços, as finanças, os orçamentos, os impostos, os e, apesar de todas as dificuldades, procurou garantir um m íni ¬
cr éditos, os lucros e demais categorias mercantis, como instru ¬
mo de seguran ça e de bem -estar para todos. Mesmo as medidas
mentos indispensáveis para poder medir o uso que fazemos de restritivas, como 0 racionamento (adotado em 1962) e certas for ¬
nossos recursos produtivos e determinar até o último detalhe, mas de compressão indireta do consumo traduzem, no modo de
até o ú ltimo centavo, quanto gastamos em cada coisa que produ ¬ sua efetiva ção, a existê ncia e a persistê ncia de uma compulsão
zimos; para poder decidir que inversão nos resulta mais conve ¬ igualit á ria.
niente; para poder conhecer quais empresas, quais unidades, No ponto de partida, havia 686 mil desempregados em 1958
quais coletivos trabalham melhor e quais trabalham pior, e po ¬ (cf. Fidel Castro, Autocrítica, p. 9). Assim que tomou o poder 0
der tomar as medidas correspondentes” ( Idem, p. 98). governo revolucion ário tentou corrigir essa situação, asseguran ¬

É pouco prov á vel que tal processo desencadeie uma do condições de pleno emprego independentemente dos custos
miniaturizaçã o da economia cubana (e, por conseguinte, do de tal política para a aceleração do desenvolvimento económico.
car á ter socialista da revolu ção cubana ) segundo padr ões da Na atualidade, enfrenta- se em Cuba um sério déficit de trabalha ¬
Uniã o Soviética. Dadas as condições descritas, pelas quais os dores, malgrado 0 incentivo ao trabalho feminino, a difusão do
dinamismos da base econ ó mica agrícola e mineradora regula ¬ trabalho com objetivos pedagógicos e as tentativas empreendidas
r ã o o intercâ mbio comercial, o elemento pol í tico ter á de com
¬ depois de 1970 de racionalizaçã o controlada da produtividade do
pensar, ainda por algum tempo, o elemento econó mico, tanto trabalho ( a Tabela 8 indica qual é a proporção da força de trabalho
na configuração do planejamento social centralizado quanto na população e respectivas categorias de idade, em 1953 e em 1970).
na aceleração do desenvolvimento econ ó mico. Isso significa De outro lado, a revolu ção engendrou uma tradição característi¬
que muitas debilidades da diferencia ção da economia tende ¬ ca, que mesmo estudiosos simpá ticos à Cuba ou ao socialismo
rão a reproduzir - se, nesse ínterim e, complementarmente, que escrevem como “ paternalista” , de favorecimento dos setores mais
o impacto construtivo da União Sovié tica se fará mais no uso pobres e carentes da população. Exemplos dessa orientação en ¬
de controles económicos e na eficácia do aparelho administra ¬ contram-se em muitas medidas, desde a preservação da pequena
tivo. No mais, ainda n ão se sabe se os ritmos de uma transição unidade agrícola nas m ãos de camponeses, ao salário anual garan ¬
impulsionada pela agricultura sã o, de fato, mais lentos, se o tido aos trabalhadores da cana, no período de tiempo muerto ( me ¬

excesso de estatiza ção persistirá e continuará a manifestar - se dida que só foi revista em 1973), a elevação dos salá rios m ínimos
quase sem controle democr á tico pela base. Mas, é presum í vel e das pensões, as vantagens que foram concedidas aos operá rios
que nessas condições objetivas e na predomin â ncia do elemento das fábricas de vanguarda, por doença ou aposentadoria (suspensas
pol ítico se encontram fatores que permitem vaticinar que te ¬ em 1973), as compensações salariais destinadas ao trabalhador que
remos, no m áximo, uma cubanização de modelos soviéticos de se reeduca e procura melhorar suas qualificações etc. Por fim, ape ¬
implanta ção do “ arranque socialista” . sar de ver -se obrigado a reduzir seus investimentos na organiza-
208 209
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O C

ção e expansão dos serviços sociais, depois de 1962, e principal¬ ou em conseqiiência de má administra ção, do absente ísmo etc.
mente depois de 1964, o governo revolucioná rio tem enfrentado Porém, a revolução converteu, em um período de tempo tão cur ¬
com tenacidade as consequências e as pressões de uma política to, os condenados da terra na principal riqueza humana de Cuba
igualitária de distribuição das oportunidades à educação, à assis¬ e no fator n ú mero um da transformação da economia. Ao lado
tência médico- hospitalar, de amparo à velhice e às crianças, de desse aspecto, deve- se considerar a sobrecarga que uma tal com ¬
acesso à recreação, à vida artística, à prática de esportes, às via¬ preensão das fun ções de legitimação socialista de um governo
gens e ao turismo etc. Para muitos, inclusive para o próprio go ¬
revolucion á rio acarreta e como ela se multiplica à medida que a
verno, os limites dessa política são inferiores ao desejável e estão popula çã o aumenta e que um padr ão m í nimo de vida se
longe do ideal. Todavia, não h á exemplo de outra nação pobre, universaliza. O fato de que tanto a sobrecarga quanto o cresci ¬
empenhada em uma aceleração revolucionária do desenvolvimen ¬ mento do seu volume ou do seu peso estão ao alcance de Cuba
to, que entenda o significado, a necessidade e as vantagens de está comprovado. O que o governo revolucionário tem buscado,
uma política social t ã o onerosa. Tomando-se os três pontos assi¬ depois da crise da safra de 1970, não é livrar-se de ambos. Mas,
nalados globalmente, pode-se dizer que a revolução agrícola e as como torná-los realidade de modo mais criativo e compensador.
incipientes tentativas de deslanchar a industrialização contêm Dever-se-ia pensar que a humanização da condição huma ¬
concomitantes sociais igualmente revolucionários. Isso nada te ¬ na, nesse período de pré- transição, inibe ou enfraquece a capa ¬
ria de peculiar, em um país em transição para o socialismo, se cidade de preparação do “ arranque socialista” ? Essa é uma
Cuba não estivesse na fase mais dura da acumulação socialista. questão delicada. Na correlação entre revoluçã o e desenvolvi ¬
De uma perspectiva mais severa, a pol ítica distributivista e de mento económico não é possível estabelecer qualquer priorida ¬
eqiiidade social, que vem sendo posta em prática desde 1959, em ¬
de. Se um dos elementos for neutralizado ou obstru ído, por uma
bora nivele os cubanos por baixo, é “ um luxo” (e, quem sabe, compreensão unilateral dos fatos, então a pró pria possibilidade
mesmo um “ luxo pequeno -burguês” ). da edificação do socialismo é descartada ou posta em risco. Ao
Esse aspecto interessa aqui por dois motivos. Os que gostam que parece, tendo em vista as limitações de seu ponto de partida
de falar de capital humano poderiam descobrir em Cuba um económico, os cubanos tentaram ir tão longe quanto podiam na
exemplo de mobiliza ção total da força de trabalho (e, note- se, combinação da revolu ção com a acelera ção do desenvolvimento
por ela própria; não por causa da escassez de capital ou de “ al¬ econ ó mico. E, o que é mais importante, conseguiram alguns
ternativas à tecnologia de capital intensivo” , pois os esforços êxitos patentes porque converteram o elemento pol ítico em algo
nesta direção sã o igualmente salientes e fortes). Em suma, os instrumental para o elemento econó mico. Os que extra íram da
prolet á rios agrícolas e os trabalhadores semilivres deixaram de “ estatização excessiva” ou da “ distorção política” do planejamen ¬
existir como setor exclu ído e marginalizado. Foram incorpora ¬ to social centralizado tantas conclusões negativas ou pessimis ¬

dos ou à população economicamente ativa e produtiva ou aos tas negligenciaram essa correla çã o hist órica, que nasceu de
planos de seguro social e de aposentadoria. É certo que muitos condições contra as quais só se poderá lutar cruzando os dois
erros foram cometidos e que só no começo desta década come ¬ elementos e preservando a preponderâ ncia do pólo revolução.
çou- se a corrigi-los, com medidas diretas de controle da produ ¬ Pretende-se de Cuba o que nenhum regime socialista logrou fa ¬
tividade do trabalho, da devastação do trabalho pelo trabalhador zer at é hoje, nos quadros do socialismo de acumula ção: a absor-
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS P OVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

ção prematura das seqüelas de uma transição que, em seu caso, vertente utópica deste último (a qual possui, como se sabe, duas
só agora começa a emergir claramente como um período histó¬ faces: uma negativa, voltada para a condenação e a superação do
rico orgâ nico. E ignora-se a questão central, que se levanta, e capitalismo; outra positiva, voltada para a afirmação e a cons ¬

que consiste em saber-se quando uma revolu ção, que pretenda trução do comunismo). Como conseqúência, esperou -se deles o
ser socialista, deve encetar o socialismo como prá tica concreta, que não poderiam fazer em Cuba e, da revolu ção cubana, o que
mesmo que isso pareça ser perigoso para a consolidação da base ela não poderia ser. Deixou -se de ver o que era essencial, a
econó mica do “ arranque socialista” . contraparte terra-a-terra, realista, teimosa, paciente, dessa eclosão
do mito e da utopia na história. E não se entendeu o drama po ¬
3 - Nova sociedade e novo homem lítico da revolução cubana, que não renegou nenhum dos mitos
As grandes revoluções criam os seus mitos. E eles, por sua que se incorporaram à sua imagem, ao seu discurso e à sua reali ¬
vez, definem sua realidade histórica e seu impacto utópico. A dade histórica. Ao contrá rio, ela lutou e luta de modo orgulhoso
revolu ção cubana não escapou a essa regra. Nem poderia. Os e tenaz para atingir os seus fins e as suas promessas, sem trair-
mitos eram demasiado importantes para ela, como fatores de se. “ Esta revolução não foi importada de nenhuma parte: é um
compensa ção psicológica e política ou em face das exigências da produto genuíno deste pa ís.” (Fidel Castro, discurso pronunciado
situação histórica. A pequena Cuba tinha de superar-se a si mes ¬ em 3/10/1965, Socialismo y comunismo, p. 28; cf. també m p. 216,
ma para vencer o neocolonialismo, o veto estadunidense e as onde a mesma idéia aparece reformulada e generalizada, como
dúvidas que pairavam sobre a própria revolu ção. Os ú nicos alia ¬ parte de um discurso de 26/7/1968.)
dos certos, a massa dos trabalhadores livres e semilivres, care¬ Todavia, se era difícil derrubar a rep ública satélite e erigir a
ciam, também, da mais forte utopia e de um í mpeto vigoroso de base económica da revolução, mais difícil ainda vinha a ser le ¬

boa fé ou de irredutibilidade na identificação com a utopia. Aí vantar, um a um, os vigamentos da nova ordem social. Na verda ¬
se acham, segundo penso, as raízes psicológicas, culturais e po ¬ de, a revolução se ultrapassara várias vezes. Ao atingir o patamar
líticas da aura de romantismo, que impregnou até a medula a socialista, que era o seu n ível histórico possível mais alto, ela
revolu çã o cubana, e o teor carism á tico impessoal e n ão - conferira ao movimento revolucioná rio e especialmente à sua
institucionalizável do seu humanismo incondicional. E, outros- vanguarda a dura tarefa de atravessar, de 1959 a 1964, a distância
sim, a explicação da propensão de seus líderes principais à criação cultural e política que outras revolu ções proletárias deste século
de mitos. Ernesto Che Guevara e Fidel Castro, em particular, percorreram antes da conquista do poder. Era preciso fazer, si ¬

surgem como férteis criadores de mitos - “ homens de consciên ¬ multaneamente, duas coisas vitais. Primeiro, a revolução devia
cia íntegra” , que não recuam diante das dificuldades ou obstá ¬ gerar a sua filosofia política: o n ú cleo de idéias que iria marcar o
culos à sua concretização. Por isso, eles comoveram Cuba, a seu sentido histórico e, ao mesmo tempo, o seu potencial utópi¬
América Latina e toda a humanidade contemporâ nea. Em um co. Segundo, transferir estas id éias, como aquilo que K .
mundo destituído de grandeza e numa época histórica de nega ¬ Mannheim designaria como principia media, para o terreno da
ção do pensamento mítico, eles recuperavam a imaginação mítica efetivação, da formação de uma sociedade planificada em Cuba.
criadora, enla çavam - na à libera ção nacional de um povo Dada a rápida superposição de “ fases” e de “ passagens” (que até
semicolonial e cruzavam-na com o marxismo, revitalizando a hoje confunde os analistas dessa revolu ção), as duas coisas se
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

interpenetravam. E com freqiiência sucedia que o que deveria Nesta parte da exposição, isolei três temas centrais para o
vir antes aparecia depois, em um clima de urgência histórica e debate. Naturalmente, as formulações sobre o homem novo e a
de tensão política que precipitava a cristalização das id éias - cha- sociedade nova têm de comandar a seleção de textos. Em segui¬
ve pela pressã o dos fatos, ou, vice-versa, erigia a consciência re ¬ da, apenas para mostrar como o pensamento revolucioná rio re¬
volucion á ria diretamente em matriz de clarificação da atividade fundiu sua temá tica, serão concatenadas outras citações sobre o
pr á tica. A revolu çã o não era, em suma, um “ experimento de la ¬ lugar do incentivo moral e a import â ncia do trabalho em uma
borató rio” e o mí nimo que se pode dizer é que, em um período nascente sociedade socialista. É claro que a saliê ncia dessa
rico de hist ória, pensamento e ação interagiam de maneira ex¬ problematiza çã o no pensamento revolucion á rio cubano tem
tremamente criadora, suplantando o caos deixado pela guerra muito que ver com a pobreza do pa ís e com as expectativas de
civil e pela desintegração do antigo regime mediante a coorde ¬ que, através do socialismo, seria possível combater o subdesen ¬

nação revolucioná ria das for ças sociais que iriam produzir a nova volvimento. O trabalho coletivo desponta como o alfa e o ômega
ordem social. da revolução: só ele poderia alimentar os fluxos da acumulação
Essas duas questões constituem o objeto desta parte da expo ¬ socialista a partir da agricultura. A í est á o segredo do porquê
sição. Elas não podem ser debatidas com a amplitude e profundi ¬ aquele pensamento se voltou tão decididamente, mesmo no que
dade desejáveis. No entanto, isso não é o fundamental. O que ele possuía de mais abstrato e sistematizado, para o ser humano
importa, no caso, é apanhar esse “ período de mudança revolucio ¬ como o começo e o fim de todas as coisas. Não é o “ jovem Marx”
nária” com o máximo de saturação hist órica e pol ítica, realizando que retorna transfigurado. É Cuba que forja sua própria versão
um duplo movimento descritivo. De um lado, considerando a fi ¬ do socialismo, nos moldes intelectuais das nações proletárias do
losofia política revolucionária como a sublima ção de ideais e de século 20. O Che Guevara tentou fazer uma reciclagem utópico-
valores que exprimiam as aspirações coletivas mais profundas do ideológica da revolu ção cubana expost facto, à luz do marxismo
povo cubano. De outro, retendo o significado polí tico da consti ¬ (cf. esp. “ Notas para el estudio de la ideología de la revolución
tuição da nova ordem social: por meio desta, a vanguarda revolu ¬ cubana” ). Mas, honestamente, limita- se a acentuar: “ Nós, revo ¬

cionária e o governo revolucionário lançavam ao campo de batalha lucion á rios prá ticos, iniciando nossa luta, simplesmente cum ¬

todo o povo cubano. A base social da revolu ção não surge, pois, príamos leis previstas por Marx, o cientista, e, por esse caminho
como um simples “ requisito ” para que ela continue ou se de rebeldia, ao lutar contra a velha estrutura de poder, ao
reproduza e cresça. Ela absorve a “ revolução desde o poder ” e a apoiarmo - nos no povo para destruir essa estrutura, e ao ter como
devolve ao acontecer hist órico metamorfoseada, como um pro ¬ base de nossa luta a felicidade desse povo, estamos simplesmen ¬

cesso revolucionário generalizado por toda a sociedade e que, por ¬ te ajustando - nos às predições do cientista Marx. (...) As leis do
tanto, se transfigura em revoluçã o de baixo para cima. Essa marxismo estão presentes nos acontecimentos da revolução cu ¬

dialética do concreto só pode ser percebida quando se alcança a bana, independentemente de seus líderes professarem ou conhe ¬

safra de 1970 e os seus desdobramentos. Fica claro, ent ão, que cerem cabalmente, do ponto de vista teó rico, essas leis” ( Obra
Cuba é uma sociedade revolucionária, suficientemente madura revolucionaria, p. 509; texto de outubro de 1960).
para dar densidade histórica à filosofia política revolucionária e A primeira quest ão só teria a ganhar se o pensamento revo ¬

bastante consolidada para tornar-se socialista. lucion á rio fosse considerado no seu momento de maior tensão -
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM 0 5 POVOS
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DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CU

o da década de 1960. Como se repetissem a experiência do “ socia ¬ subdesenvolvida, a possibilidade de isolar, conhecer e superar
lismo em um só país” , os cubanos se voltam para dentro de si suas contradições. Os níveis de atraso ou de avan ço relativos
pr óprios, em busca das respostas mais graves e profundas à trans ¬ podem interferir nos ritmos histó ricos e nas formas dos planos.
formação socialista do mundo. Eis, em um resumo livre muito Contudo, não alteram as fun ções que os planos devem desempe ¬
condensado, a variedade e a natureza dessas respostas. O que nhar nem a natureza de seus resultados finais. Em síntese, a
vem à tona, em primeiro lugar, é o ser humano e o que ele possui revolu çã o socialista est á ao alcance de todos os povos, sem dis ¬
em qualquer parte para fazer uma revolução socialista, a for ça tin ções, e, no limite, o fator decisivo é a qualidade da consciên ¬

revolucion ária que brota de dentro do ser e que est á dentro do cia revolucioná ria e do comportamento revolucioná rio, mesmo
indiv íduo e da sociedade, multiplicada pela forma social da cons ¬ que, inicialmente, apenas de um pequeno grupo de homens dis ¬

ciência socialista. O essencial, portanto, é chegar a esta consciên ¬ postos a tudo.


cia, usá-la como uma espécie de arma para extinguir a alienação A temá tica do novo homem e da nova sociedade ficou ligada
e ir diretamente do socialismo ao comunismo. O pensamento a textos, hoje clássicos, de Che Guevara. Essa temá tica entrou
revolucioná rio distingue os vá rios objetivos mas não os separa na moda intelectual. Todavia, pela perspectiva do radicalismo
em etapas independentes e sucessivas. Eles se misturam e as eta ¬ abstrato “ de esquerda” , que fez dela uma fonte de compensa ção
pas se entrelaçam como que numa espiral. No desenrolar da re ¬ psicol ógica da socializa çã o segmentada e do isolamento da
volu ção, que muda constantemente de formas e conteúdos depois intelligentzia sob 0 capitalismo monopolista da era atual. Ora, as
que a consciência socialista se universaliza e hegemoniza, surge duas entidades são criadas antecipadamente na pessoa e no pe ¬
o novo homem e a nova sociedade. A interaçã o dos dois engen ¬

queno cosmos social dos revolucioná rios. Essa é a li çã o do Che:


dra uma civilização (isto é, uma tecnologia, uma pedagogia e 0 que vem primeiro é a proletarização do “ agente catalizador ” , a
uma cultura) que conduz o socialismo ao apogeu e o esgota. quem cabe suscitar as “ condições subjetivas ” da mobilização
Abstraído do momento imediato da crise histó rica que alimenta popular e da vitória. Por isso, insiste “ no marco do processo de
a eclosã o do socialismo, o elemento econ ómico é fundamental - proletarização do nosso pensamento” e na “ revolu çã o que se
porque é o substrato da exist ê ncia ou da sobrevivê ncia e o eixo operava em nossos há bitos, em nossas mentes” ( “ El socialismo
da reprodu ção social - mas aparece sob a realidade que deve ter y el hombre” , La economia socialista. Debate, p. 376 ), a qual se
sob o plano plenamente constituído e desenvolvido (e n ão sob o evidencia tipicamente nas transformações psicodin â micas e
mercado, como no capitalismo). Por conseguinte, o elemento sociodin â micas da personalidade, do padrão de vida e da exis ¬
econ ómico não serve de pretexto para imputar ao socialismo uma tência comunitá ria dos guerrilheiros em Sierra Maestra. O que
essência está tica ou uma impulsão estabilizadora. O plano re¬ vem em seguida, depois da conquista do poder pela vanguarda
duz e, por fim, extingue o determinismo econó mico. Dentro dele revolucion á ria, é a mutação revolucioná ria do homem e da socie ¬
e através dele o trabalho surge como o fator sociodin â mico da dade. “ Para construir o comunismo, juntamente com a base
libera ção do indiví duo e da sociedade. O que quer dizer que o material é preciso engendrar o homem novo.” ( Idem, pp. 379-
plano tamb é m abrevia a duração do socialismo como forma so ¬ 380; trecho já usado acima.) Aí n ão está dito que a última etapa,
cial intrinsecamente transitória. Al ém disso, o socialismo con ¬ a do comunismo, apareça como por encanto. Porém, que não se
fere, por si mesmo, a qualquer sociedade, desenvolvida ou chega a ela sem que as fases de transição socialista se esgotem
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

em dois níveis concomitantes. Um, de desmoronamento e supe ¬ forjaremos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma
ração do capitalismo e dos seus resíduos; outro, de constru ção nova técnica.” ( idem, pp. 384-386 e 389-390.) Tudo isso é muito
positiva do homem socialista e da sociedade socialista. Citações belo e comovente. Não obstante, convém lembrar, como Lenin o
que serão feitas a seguir (a propósito do segundo tema), esclare¬ demonstrou, que o extremismo revolucion ário também desem ¬
cer ão o seu pensamento. Ao provocar o desmoronamento e a boca em uma forma de alienação. Poder-se-ia, em Cuba, andar tão
superação do capitalismo, a revolução n ão constrói só por isso depressa e esquecer-se que os fatos mais crus e brutais sã o os que
sua base psicológica e social individual e coletiva. Para o comu ¬ devem merecer a atenção mais cuidadosa dos revolucion á rios ?
nista, não existe um ideal está tico de consolida ção da ordem: a Foi preciso recorrer ao SOF (Sistema Orçamentário de Financia ¬
revolução terá de seguir seu curso sem cessar, até tornar - se orgâ ¬ mento): era isso, ou não, um recuo diante do pensamento expos ¬
nica, penetrar o comportamento e a consciência de todos os in ¬ to ? De outro lado, o que se deveria fazer entrementes: absolutizar
div í duos, a organiza çã o e o funcionamento de todas as a teoria e a técnica improvisadas ou buscar nos fatos a superação
instituições, as estruturas, os dinamismos e as transformações gradual de deficiências insanáveis ? A resposta de Che Guevara é
de toda a sociedade. Desse â ngulo, as “ instituições revolucioná ¬ conhecida. “ (...) o que buscamos é uma forma mais eficiente de
rias” e a “ institucionalização da revolu ção” generalizam o im ¬ chegar ao comunismo (...).” O SOF “ pode elevar a eficácia da ges ¬

pulso da criação do homem novo e da nova sociedade. Atendem tão económica do Estado socialista, aprofundar a consciê ncia das
à “ última ambição revolucionária” : “ ver o homem liberado da massas e tornar ainda mais coeso o sistema socialista mundial,
alienação” ( idem, p. 382). sobre a base de uma ação integral” ( “ Sobre el Sistema Presu ¬
O homem novo e a sociedade nova n ão constituem produtos puestario de Financiamiento” , La economia socialista. Debate, p.
finais. São o ponto de partida do verdadeiro desenvolvimento do 90). “ Mas no plano haverá um reflexo cada vez mais pálido da lei
socialismo e da superação deste pelo comunismo: a garantia de do valor.” ( “ Sobre la concepción de valor” , La economia socialista.
que a revolu ção permanente persistirá e se fará na direção certa. -
Debate, p. 79.) Dá se por suposto um avanço que deveria ser reali ¬

Os seguintes excertos localizam o entrelaçamento da marcha da zado e por existentes condições que deveriam ser criadas. O Esta ¬

revolução e da construção do socialismo revolucioná rio à luz da do socialista e o plano, como realidades históricas plenamente
experiê ncia cubana. “ A teoria que surja dará indefectivelmente constituídas, mal se anunciavam no horizonte. Os revolucionários
preeminê ncia aos dois pilares da construção: a formação do ho ¬ pensavam à luz do futuro e queriam modelar o presente por ele.
mem novo e o desenvolvimento da técnica. (...) O socialismo é Cuba os acompanhou porque nada prendia ninguém ao passado e
jovem e cont ém erros. Nós os revolucionários carecemos, muitas todos se fundiam no élan de ultrapassar tudo o que não se concre¬
vezes, dos conhecimentos e da audácia necessários para enfrentar tizara antes, sob o capitalismo, ou que se perdera, pura e simples¬
a tarefa do desenvolvimento do homem novo por métodos distin¬ mente, como oportunidade hist órica.
tos dos convencionais; e os mé todos convencionais sofrem a in ¬ Por contraditório que pareça, essa filosofia política revolucio¬
fluência da sociedade que os criou. (...) O homem do século 21 é o nária parte de um longínquo ponto de chegada e por isso podia
que devemos criar, embora isso ainda seja uma aspiração subjeti ¬ propor- se “ a idéia de que o comunismo e o socialismo precisam
va e não sistematizada. (...) O presente é de luta; o futuro é nosso. ser construídos conjuntamente” ( Fidel Castro, Socialismoy comu ¬

Construiremos o homem do século 21; nós mesmos. (...) Nós nos nismo: un processo ú nico, p. 127). Parece óbvio que quando o mais
I
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ASSIM LUTAM OS POVOS 219
COLE ÇÃ O DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

extremo subdesenvolvimento é enfrentado mediante uma revo ¬


a educação, a liquidação das taras da sociedade antiga na consciên ¬

lução socialista, há pouco a ganhar percorrendo o passado do “ ou ¬


cia das pessoas, é um fator de suma importância, sem esquecer, é
tro” . Além disso, a estabilização prolongada de um período que claro, que sem avanços paralelos na produção não se pode chegar
deveria ser tão transitório quanto possível acarreta riscos nefastos nunca a tal sociedade. (“ Sobre el sistema presupuestario de
para um país que pretende superar as contradições do subdesen ¬
financiamiento” , op. cit., p. 89; essa citação já foi aproveitada par
¬

volvimento. “ E nós, bastante acostumados com os manuais, não cialmente acima.) A respeito dessa revolução pedagógica, aliás,
meditamos que é impossível ir construindo o socialismo separa¬ seria possível extrair muitos materiais e reflexões do livro de Fidel
do da construção do comunismo, e que, se se tenta isso, podem-se Castro, recém-citado. Mas, na atualidade, convém citá-lo mais para
produzir (...) e, mais ainda, existem objetivamente contradições indicar o quanto a revolução cubana se mantém presa, apesar das
entre os métodos socialistas para alcançar produções mais eleva¬ contingências e das mudanças institucionais, às idéias-chave ori ¬

das e os métodos mediante os quais se tem de educar uma geração ginárias. “ Junto com isso, e como parte dos princípios em que se
nova, todo um povo, para viver no comunismo ( idem, p. 17; con ¬ baseia este sistema de direção da economia, os estímulos morais
frontando-se com outra passagem, da página 80, obtém- se a rela¬ têm que ser ampliados, porque na realidade nós temos falado muito
ção entre o socialismo e a superação das três contradições de Cuba, de estímulo moral e temos dado poucos estímulos morais. Temos
nascidas do subdesenvolvimento). que elevar muito mais o papel dos estímulos morais. Ainda há
Che Guevara temia a ênfase no “ interesse material” princi ¬
muito por fazer no terreno dos estímulos morais e do aprofunda ¬

palmente por causa do subdesenvolvimento ( ver citação acima, p. mento da consciência das massas.” (“ El desarrollo económico de
111). “ Corre-se o risco de que as árvores impeçam de ver o bos ¬
Cuba” , p. 99. ) Sem repudiar a aceleração do desenvolvimento,
que. Perseguindo a quimera de realizar o socialismo com a ajuda procura-se dar prioridade à aceleração da revolução. “ O comunis¬
das armas desgastadas transmitidas pelo capitalismo (a mercado ¬
mo, certamente, não se pode estabelecer, como dizíamos, se não
ria como célula económica, a rentabilidade, o interesse material se criam as riquezas em abundâ ncia. Porém, o caminho, a nosso
individual como alavanca etc.) pode chegar-se a um beco sem saí¬ juízo, não é criar consciência com o dinheiro ou com a riqueza,
da. E chega-se ali depois de percorrer uma larga distâ ncia, na qual mas criar riqueza com a consciência, e cada vez mais riquezas
os caminhos se entrecruzam muitas vezes e onde é difícil perce ¬
coletivas com mais consciência coletiva.” (“ Fidel Castro, Socialis ¬

ber o momento no qual se errou de rota. Entretanto, a base eco ¬


mo y comunismo, p. 142.) “ O fato de a revolução triunfar num país
n ó mica adaptada j á fizera seu trabalho de sapa sobre o e proclamar a intenção de edificar a nova sociedade não garante,
desenvolvimento da consciência (...) Por isso é tão importante àeper se , que isto chegue a ser realidade. Para chegar ao socialis ¬

escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. mo e ao comunismo é necessário combinar dois fatores essenciais:
Esse instrumento deve ser de ordem moral, fundamentalmente, o desenvolvimento de um homem novo, com uma consciência e
sem esquecer-se uma correta utilização do estímulo material, so ¬
uma atitude novas diante da vida, e o avanço da técnica, capaz de
bretudo de natureza social.” (“ El socialismo y el hombre” , op. cit ., multiplicar a produtividade e gestar a abundância de bens. Para
pp. 379-380.) Como conseqiiência dessa postulação, o socialismo alcançar esta meta elevada da sociedade humana é preciso exercer
pressupõe e exige uma revolução pedagógica. “ O comunismo é uma política conseq ü ente com os princ ípios do marxismo-
uma meta da humanidade que se alcança conscientemente; logo, leninismo (...).” ( Idem, p. 170.)
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS A GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

O trabalho, por sua vez, passou de objeto da liberação para tudo o que necessitava. Mas a revolução deu ao povo tudo o que
fator da liberação. Ele está no eixo da pol ítica revolucion ária e podia; a revolu ção quis dar ao povo tudo o que tinha. E, acima
no centro da reconstrução do homem e da sociedade em Cuba. de tudo, criar no povo a confian ça, criar nele a seguran ça diante
O Che Guevara escrevia: “ O trabalho deve adquirir uma condi¬ do futuro.” ( Idem, p. 41.)
ção nova. (...) A mercadoria homem deixa de existir e instala-se Era fatal que a problemá tica do “ est ímulo moral” , “ est ímu ¬
um sistema que outorga uma cota pelo cumprimento do dever. lo material” , “ alavanca do desenvolvimento econ ó mico” se
(...) Os meios de produ ção pertencem à sociedade e a máquina é reequacionasse e se redefinisse em termos de mobiliza ção e qua ¬
apenas uma trincheira onde se cumpre o dever. O homem co ¬ lificação do trabalho, deslocando - se para a educação e suas fun ¬
meça a liberar seu pensamento do fato fastidioso que supunha ções construtivas. Tanto o preparo dos trabalhadores para o
suas necessidades animais mediante o trabalho. Começa a ver¬ socialismo como a difusão ou a produção de um novo saber cien ¬

se retratado em sua obra e a compreender sua magnitude huma ¬ tífico e tecnológico pressionavam nessa direção. Embora Che
na através do objeto criado, do trabalho realizado. (...) Isto já Guevara também se tenha dedicado a essas tarefas pioneiras, o
n ã o pressupõe deixar uma parte de seu ser em forma de for ça de paladino de soluções concretas para o novo tipo de institucio ¬
trabalho vendida, que não lhe pertence mais, por é m significa nalização da educação formal foi Fidel Castro. Os dois se com ¬
uma emanação de si mesmo, uma contribuição à vida comum pletam, na medida em que o Che desdobrou o painel de uma
na qual se reflete; o cumprimento do seu dever social. (...) Faze ¬ pedagogia revolucionária, enquanto Fidel lançou-se à obra de
mos todo o possível para dar ao trabalho esta nova categoria de transformar Cuba em uma imensa escola dos trabalhadores. Esse
dever social e uni-lo ao desenvolvimento da técnica, por um lado, é um ponto que exigiria demasiadas transcrições. Adiante, aliás,
e ao trabalho voluntário, por outro, baseados na apreciação mar¬ terei de voltar ao assunto. Por isso, coligi apenas alguns textos
xista de que o homem realmente alcan ça sua plena condiçã o que são t ípicos das solu ções que advoga. “ (...) se temos urgência
humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de técnicos, sempre será mais urgente formar homens verdadei¬
de vender- se como mercadoria” (“ El socialismo y el hombre” , ros, formar patriotas, formar revolucion á rios.” ( Idem, p. 71.) “ (...)
op. cit., pp. 382-383). Em resumo, a revolução do trabalho e pelo não formemos uma juventude desligada das realidades, desliga ¬
trabalho converteu Cuba em uma comunidade. A comunitari- da do trabalho; que n ão formemos neoburgueses em meio a uma
za ção, porém, ainda está em seu in ício. A impulsão igualitária, revolu ção (...)” ( Ibidem.) “ (...) o desenvolvimento das universi ¬
apesar de forte, esbarra na própria pobreza. Os dois pontos ga ¬ dades conduz ao desaparecimento das universidades; isto é, o
nham relevo em outros documentos. Vejamos um exemplo: “ De pró prio desenvolvimento máximo da instituição conduzirá ao
maneira que a revolu ção irá estabelecendo a igualdade nas ren ¬ seu desaparecimento.” ( Idem, p. 73.) “ De maneira que, no futu ¬

das, progressivamente, de baixo para cima, na mesma medida ro, praticamente cada fá brica, cada zona agr ícola, cada hospital,
em que se desenvolva a produção. (...) Isto é, a revolução aspira, cada escola ser á uma universidade, e os graduados dos n íveis
como um dos passos na direção do comunismo, a estabelecer de médios continuarão realizando os estudos superiores.” ( Idem, p.
baixo para cima a igualdade na renda de todos os trabalhadores, 76.) “ (...) n ão se concebe como é possível tornar realidade a socie ¬
independentemente da tarefa que desempenhem” ( Fidel Cas ¬ dade comunista sem a universalização dos conhecimentos cien ¬
tro, op. cit., p. 134). “ Ao povo, a revolução nã o pôde dar, logo, t íficos e técnicos.” ( Idem, p. 78.) “ (...) a combinação do estudo e
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBA

trabalho, a combinação do trabalho intelectual e o trabalho ma ¬ pitada e insustentável. Os cubanos já deram vá rias demonstra ¬
nual, não são simples frases: são idéias que contêm a essência da ções sucessivas de firmeza teórica e prá tica - e até hoje sua flexi
¬

sociedade do futuro.” ( Idem, p. 87.) bilidade “ nunca significou uma perda substancial de sua própria
Por fim, o igualitarismo cubano levou a duas compulsões ca¬ posição. No terreno da prá tica pol í tica chegam a ir muito longe
racterísticas: o “ nivelamento por baixo” e o combate ao “ privilé¬ na arte da conciliação. Contudo, o orgulho cubano, tão forte nos
gio” . Só na China, ao que parece, houve uma pressão idêntica no revolucioná rios, não permite concessões arrasadoras. O seu so ¬
primeiro sentido, mas não se associou com tanto entusiasmo a cialismo de cunho hierá tico apela para símbolos que nã o são
defesa da revolução com a den ú ncia do desvio burocrático. O ex¬ nem “ externos” nem puramente “ marxistas” . Por que, afinal de
tremismo da constru ção conjunta de comunismo e socialismo vin¬ contas, Marti é designado apóstolo? Por acaso Fidel Castro acei ¬

culava- se a essa obsessão, claramente vinculada ao temor do tou ficar aquém de Mart í ? A revolu ção já não produziu e não
passado. Ao diagnosticar o “ mal do burocratismo” , Fidel Castro está produzindo os seus apóstolos ? A superação terá de vir a
lança um anátema: “ a revolução se propõe ser uma revolução de partir do próprio desenvolvimento do socialismo em Cuba, qual ¬
verdade” (ver p. 108 e 110; no apêndice, pp. 168-176, vem trans¬ quer que seja a colaboração e a contribuição da União Soviética
crito um estudo notável sobre “ O perigo da burocracia como uma ou de outros países socialistas. As duas transcrições seguintes
camada especial” , publicado por Granma em 1967). “ A revolução atestam uma moralidade de imperativo categórico e um contro ¬
dos trabalhadores tem que chegar até o final, a revolução dos tra¬ le exterior que se materializa e absolutiza em nome do todo.
balhadores tem que estar vigilante para que não se desenvolvam “ Nós não podemos estimular e sequer permitir atitudes egoístas
problemas, para que não se desenvolvam vícios, para que não se nos homens, se não quisermos que os homens sigam o instinto
desenvolvam males que d êem lugar no futuro a dolorosas novas do egoísmo, da individualidade; que sigam a vida do lobo, a
batalhas no seio da sociedade.” (Fidel Castro, idem, p. 117.) vida da besta; o homem inimigo do homem, explorador do ho ¬
As idéias-chave que surgem neste debate certamente se alte¬ mem, preparando armadilhas para o homem. O conceito de so ¬

rarão no decurso da revolução cubana. Nada é perene sob uma cialismo e de comunismo, o conceito de uma sociedade superior,
revolução socialista. Todavia, há um impulso puritano e mora ¬ pressupõe um homem desprovido desses sentimentos, um homem
lista que não veio das correntes socialistas absorvidas em Cuba. que tenha subjugado esses instintos. Acima de todo sentimento
Ele é muito mais fruto de experiências históricas, uma resposta de solidariedade e de confraternidade entre os homens,
tardia ao repúdio de uma corrupção que corroeu a sociedade irrenunciável fé no ser humano.” “ O comunismo é o quanto a
cubana no passado, e produto do despojamento drástico que teve sociedade, considerada como um todo, com todos os seus recur ¬

de ser imposto pelo governo revolucioná rio para tornar possível sos, vela pela educação de cada cidadão, vela pela saú de de cada
a acumulação socialista originá ria. Esse radicalismo moral en ¬ cidadão, vela pelo bem- estar de cada cidadão, e toda a sociedade -
contrava um intérprete brando em Che Guevara mas encontra desaparecidas as classes, desaparecidas as desigualdades - traba ¬
instantes de ira no pensamento de Fidel Castro. Os dilemas do lha para todos e cada um de seus cidadãos.” (Fidel Castro, idem,
subdesenvolvimento infundiram muitos toques de originalida ¬ pp. 122 e 130-131.) Essa linguagem não é típica dos socialistas
de nesse socialismo revolucioná rio. Para muitos, a década de revolucioná rios fora de Cuba e a exaltação do povo continua a ser
1970 poderia ser sua sepultura. Penso que essa avaliação é preci- uma peculiaridade do castrismo.
224 225
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

O ideal seria dar à segunda questão um tratamento simétri¬ fora da órbita do “ socialismo de acumulação” . No entanto, Cuba
co ao que foi dispensado ao pensamento político revolucionᬠficou famosa por seu esforço educacional. O que não quer dizer
rio. Isso implicaria considerar o novo homem e a nova sociedade que tenha avançado, da noite para o dia, na direção de um verda¬
a partir da sua percepção e da explica çã o do próprio comporta ¬ deiro sistema socialista de educa ção. Mas, essa é uma área na qual
mento em situações concretas da vida cotidiana. Para isso, en ¬ o arco da revolu ção foi distendido ao máximo, pois aí os fatos
tretanto, seria necess á rio um certo avan ç o dos estudos impuseram seus próprios ritmos e exigências aos governantes. Em
sociológicos sobre a vida atual em Cuba, que ainda não foi lo ¬ poucas palavras, eles produziram suas próprias prioridades. Os
grado. Dois livros, entre os materiais publicados, poderiam ser problemas intrí nsecos ao subdesenvolvimento se agravaram pela
de grande utilidade. ( Revolutionary politics and the Cuban working imigra ção maciça de talentos, ocorrida no início; pelo peso de
class, de M, Zeitlin, que contém um ensaio sobre “ Os trabalha ¬ uma herança educacional que trazia as marcas mais profundas do
dores de Cuba, Cuba dos trabalhadores, 1969” , o qual proporciona neocolonialismo (sobre 100 graduados, em 1959: 78 correspondiam
alguns dados sobre as bases perceptivas e cognitivas das orienta ¬ ao ensino primário; 16,3 ao ensino m édio; e 4,7 ao ensino superior.
ções de comportamento dos trabalhadores; e Cuba. Dictadura o Uma estrutura escolar menos concentrada que a de outros países
democracia?, de M. Harnecker, o qual abrange vá rios levanta ¬ da América Latina, mas t ípica da educação como privilégio); e
mentos diretos das opiniões dos trabalhadores nos vá rios ramos pela obsolescê ncia autom á tica das instituições educacionais, em
da produ ção e que ocupam lugares em diversos organismos so¬ conseqiiê ncia das condiçõ es econ ó micas, sociais e pol í ticas
ciais ou pol í ticos, excelentes para o propósito que tenho em aparecidas com a opção pelo socialismo. O ú ltimo fator possui
mente.) O alcance de tal sondagem, evidentemente, ficaria algo uma presença constante em todas as revoluções socialistas. Estas
circunscrito. Por isso, julguei que seria mais avisado dividir a não podem absorver os sistemas escolares herdados, por mais
questão em dois temas. Um, que permitisse considerar os prin ¬ adiantados que eles sejam. Não obstante, uma infra-estrutura es ¬
cipais aspectos do esforço educacional da revolu çã o. Pode- se colar bem diferenciada e saturada, quanto aos níveis do ensino e o
perceber, desta perspectiva, qual é a natureza e o alcance da pe ¬ nú mero ou a qualidade das escolas, e bem distribu ída no espaço,
netração do processo revolucioná rio diretamente na formação atendendo todos os setores da população, pode constituir um co ¬
do novo homem e, indiretamente, na construção da nova socie ¬ meço mais fácil. Não foi o que aconteceu em Cuba. Tendo -se em
dade. Outro, uma excursão seletiva pelas contribuições contidas vista o volume e a variedade de obrigações que era preciso enfren ¬
no pequeno ensaio de Zeitlin e no Capí tulo 1 da obra organiza ¬ tar, de imediato, na esfera da educação formal, é ó bvio que o anti ¬
da por Harnecker (“ A ind ústria: um centro de decisão” ). Por go regime legou ao governo revolucionário um modesto ponto de
aqui se veria pelo menos alguma coisa a respeito do surgimento partida. A revolução teve de impor-se uma obra educacional de
do homem novo e de como este est á levando a revolução para as tão larga envergadura ( embora restringisse seu campo de ataque
estruturas da sociedade socialista em edifica ção. principalmente aos n íveis do ensino primá rio e do ensino m é¬
“ A educação para o socialismo” representa uma bela frase. dio), que seu êxito atraiu para Cuba o interesse de todo o mundo
Contudo, ela envolve toda uma revolução educacional, cujo cus¬ e o respeito dos especialistas em educa ção.
teio absorveria uma imensa massa de recursos económicos e hu ¬ Esse esfor ço educacional enorme (em termos relativos) teve
manos e cuja realização exigiria prioridades políticas localizadas de crescer sob constante fricção e desgaste. Pondo de lado os
226 22 7
i COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA |

efeitos estruturais da imigra ção maciça de talentos, que esva ¬ planificação nem ser entregue ao azar. Em todos os n íveis do
ziou, em escala dram á tica, os recursos humanos preexistentes ensino, as escolas adquirem uma verdadeira dimensão educacio ¬
na educação e gerou uma catastrófica car ê ncia de técnicos, pro ¬ nal, não só de adestramento ou de transmissão de conhecimen ¬
fissionais liberais e professores, bem como as conseqiiências da tos sistematizados, mas de socialização e de formação educativa:
guerra civil ou da rápida substituição improvisada dos quadros o trabalhador que se autonomiza, que precisa autodisciplinar - se
docentes, a revolu ção teve de defrontar- se com várias dificulda ¬ para viver em uma sociedade igualit á ria e aprender categorias
des, problemas e deficiê ncias crónicas. Acima de tudo, deve-se mais complexas e abstratas de pensamento (que as relacionadas
colocar o problema n ú mero um . O nível educacional m édio e a com a propriedade privada, a competição individual, a negocia ¬

rede escolar existente nã o tinham qualquer rela çã o estrutural ção coletiva de sal á rios, as greves etc.), constitui um fator de
ou funcional possí vel com a mudan ça sú bita que devia ser im ¬ revitalização do conte ú do educacional das escolas. É certo que
primida aos conteú dos da educação formal e à distribuição das essa aprendizagem não se faz totalmente nas escolas; por é m, a
oportunidades educacionais, sob a pressão de n ú meros crescen ¬ escola, em uma sociedade em transição para o socialismo, tem
tes de candidatos. Nem tudo podia ser resolvido na base da im ¬ de deixar de ser uma instituição especializada, segregada do meio
provisação feliz, como ocorreu com a famosa campanha de social e artificialmente perdida dentro de si mesma. O pró prio
alfabetiza ção, que lançou por todos os rincões do país, no in ício exemplo de Cuba sustenta esse fato elementar. N ão obstante, a
de 1961, aproximadamente 100 mil jovens. Havia necessidades revolu çã o precisou de 5 a 8 ou 10 anos para chegar a todos esses
urgentes, como as que se referiam à quantidade de técnicos e de problemas (e é evidente que, em relação a alguns deles, ainda
especialistas, de n í vel médio ou superior, inclusive de professo
¬
luta para atingir as metas mais incipientes, como parece ser o
res, que era preciso preparar de uma hora para outra. De outro, caso do ensino superior ). E teve de abrir os seus caminhos por
estava o dilema educacional inerente à substitui çã o imediata da conta pró pria, pois a experiê ncia dos pa íses socialistas mais avan¬

filosofia educacional básica inerente à pol í tica educacional e às çados não podia ser pura e simplesmente transferida.
prá ticas escolares. Fala-se muito sobre a escola democrá tica, o Outras facetas do dilema educacional cubano, no desabrochar
ensino democr á tico e o sistema de educa ção democr á tico, em e florescer da revolu ção, são mais ou menos conhecidos. Em uma
conexão com o capitalismo. É fant ástico o que pode restar disso enumera çã o ligeira, esta teve de garantir: 1. o crescimento das
tudo quando se passa para um regime socialista, no qual todos oportunidades educacionais dentro de certos ritmos m í nimos,
os seres humanos devam ser educados para o trabalho e para se previstos em função da taxa de aumento da popula çã o, na verda¬
igualarem pelo trabalho. Além disso, o aparecimento dos planos de relativamente alta (o governo revolucion á rio suplantou esses
exige um avanço paralelo na educa ção, por causa da mentalida ¬
m í nimos ); 2. a diversifica ção da mão - de- obra semi-especializada
de média comum que eles exigem e da pressão que eles fazem ou mais qualificada, decorrente da acelera ção do desenvolvimen ¬

sobre a qualidade de um consider á vel n ú mero de especialistas to, da revolu ção agr ícola com sua forte pressão sobre a moderni ¬

em vários ramos da tecnologia e da ciê ncia. Em certo sentido, za ção e a racionalização da produção e das exigências específicas
todos são quadros dos planos na fase de implantação e de conso¬ da planificaçã o; 3. os vários requisitos novos da educação: o tra ¬
lidação do socialismo. Por fim, a aquisição da mentalidade socia ¬ balho converteu-se no valor básico da educaçã o; em conseqúên-
lista n ã o pode ficar restrita à s exig ê ncias educacionais da cia, o uso racional do trabalho e do trabalhador, em termos
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALIS MO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

regionais, setoriais, de qualidade ou rendimento, da sociedade dual de normas ou objetivos efetivamente socialistas. A impor ¬
como um todo, impôs ajustamentos profundos (por exemplo: o tâ ncia da economia agrícola e da socialização da agricultura, por
deslocamento espacial ou ocupacional do trabalhador não pode exemplo, impôs certas linhas de expansão e de modernizaçã o do
mais ser regulado pelo mercado e pela competição; os critérios de ensino primá rio e médio na zona rural, a criação de comunidades
planificação orientam esse aproveitamento e ao mesmo tempo rurais dotadas de recursos educacionais “ urbanos” etc. N ão se
delimitam os padrões m édios de qualificação, supervisão e con ¬ punha em questão apenas reduzir a distâ ncia entre o “ trabalho
trole etc. Os conte ú dos da aprendizagem sofreram uma sú bita li¬ rural” e o “ trabalho urbano” . Apesar da persistê ncia de diferenciais
ga çã o com as orienta ções concretas do comportamento, com o de salários favoráveis a este ú ltimo, hoje o trabalhador agrícola
meio ambiente e com o desenvolvimento econ ó mico ); 4. a decide o que vai fazer. Aumentar os recursos educacionais e dotar
homogeneização crescente do padrão m édio de vida: com a im ¬ o meio rural gradualmente das “ facilidades urbanas” - especial ¬

planta ção do socialismo, a importâ ncia da cidade não desapare ¬


mente nos serviços p ú blicos e com referência a estes na instru ção
ceu, o que cresceu foi a importâ ncia do campo e sua incorporação primária, de nível médio ou pré-universitária - constitui a ú nica
ao estilo de vida imperante na cidade (em suma, uma tendência alternativa socialista de “ fixar ” o ser humano no campo (e, por
de nivelamento cultural, que se reflete nas oportunidades de tra ¬ conseguinte, de ter nele uma reserva de trabalho de interesse para
balho e nos níveis de vida das famílias, nas aspirações comuns a coletividade). Por outro lado, a necessidade de diminuir as im ¬

etc., e que impõe uma educação plástica e din â mica universal); 5. porta ções e de incrementar a variedade e o excedente de ali ¬
a consolidação dos valores socialistas dentro do horizonte cultu ¬ mentos estimulou, alé m dos valores socialistas, a forte associação
ral médio, algo incipiente mas fundamental, pois as fases de tran¬ do ensino com o trabalho. O que as vá rias escolas lograram pro ¬
sição típicas do socialismo põem em tensão formas contraditórias duzir sugere que esse processo n ão pode ser avaliado em termos
de responsabilidade individual e coletiva, de autonomia da pes ¬ estritamente educacionais. Na verdade, ao adquirir funções edu ¬

soa e de disciplina coletiva, de fruição da vida e de altruísmo, de cacionais na esfera da produ ção, as escolas se tornaram também
flexibilização das relações entre as gerações e de eliminação da entidades produtivas e de alto significado econó mico. Se o gover ¬
distâ ncia psicossocial e cultural entre elas, de identifica ção com o no revolucion ário custou para descobrir ou para pôr em pr á tica
bem- estar coletivo e, ao mesmo tempo, de dissolu ção do socialis ¬ com eficiê ncia as soluções certas, fica claro que, no fim da década
mo no comunismo (o que tudo isso representa na revolução edu ¬ de 1960 e no começo desta década, o salto educacional deixou de
cacional é ó bvio; acresce que em Cuba o dilema da memória é ser meramente quantitativo, o que permite falar em uma Cuba
fundamental; os que não viveram as experiências da atual geração socialista nessa esfera.
descendente, mesmo entre os trabalhadores, dificilmente pode ¬
Os que gostam de fazer balanços sumá rios sobre os “ êxitos
r ão conformar- se e sentir-se compensados com o que lhes oferece da revolu ção” encontram aí matéria para um bom debate. Os
uma drástica socializa ção da pobreza). É claro que o subdesenvol ¬ êxitos n ão são uniformes, nem poderiam ser. Além disso, as in ¬

vimento, as conseqiiências do cerco imperialista e as necessida ¬


dicações devem ser avaliadas de uma perspectiva socialista ( não
des de defesa militar de Cuba definiam certas prioridades e apenas pelo confronto simplista de n ú meros e porcentagens,
diretrizes fundamentais, algumas a serem reajustadas em função como é de gosto em Cuba ). Separando-se, em dois n í veis, os avan ¬
da aceleração do desenvolvimento econó mico ou da fixação gra- ços quantitativos e as transforma ções qualitativas, pode-se me-
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOC A REVOLU ÇÃ O CUBANA

dir melhor o que foi realizado. Ainda assim, penso que é na dé ¬ em 1977-1978 alcan çou 37,1%; e em 1977 -1978 - também com
cada de 1980 que os frutos diretos e indiretos da aceleração do referência a 1958-1959 - a matrícula no ensino superior foi multi ¬

desenvolvimento ( inclusive o educacional) se revelarão em toda plicada por 8, no nível m édio por mais de 10 e a educação primá ¬

a plenitude e com todas as conseqiiências. ria quase foi triplicada ( cf. J. Rebelló n e outros, op. cit., p. 134). Os
A fonte de onde extraí os dados e as tabelas sobre as conclu ¬ dados sobre as conclusões de curso (cf. os gráficos das páginas
sões de curso, desde 1958 ou 1959 a 1977 (J. Rebelló n e outros, seguintes, que registram todas as variações ocorridas no per íodo;
Arquiteturay desarrollo nacional. Cuba, 1978, cf. pp. 129-147; aliás extra ídos da mesma fonte, pp. 131-133) mostram um ó timo
uma obra not á vel, que concilia divulgação e propaganda com aproveitamento dos recursos educacionais em todos os n í veis do
uma sofisticada descrição da realidade), resume com precisão o ensino. As conclusões de curso aumentaram mais de 12 vezes no
quadro educacional, no ponto de partida e hoje. “ A situaçã o que ensino primá rio até 1977; mais de 13 vezes, no ensino médio ( ne¬
a revolu çã o encontrou no campo da educa çã o ao triunfar em gligenciando -se as conclusões duplas no nono e décimo anos se¬
1959 foi, em linhas gerais, a seguinte: mais de 1 milhão de anal ¬ cund á rios ); mais de 5 vezes no ensino superior. Tomados
fabetos na popula ção maior de 10 anos, o que representava 25% globalmente, no entanto, os dados sugerem que todo esse pro ¬
do total; 66% da população compreendida entre 5 e 24 anos ca ¬ gresso ainda n ão permitiu alterar a estrutura do sistema escolar.
recia de assistência escolar; um n ível m édio de escolaridade in ¬ Sobre 100 conclusões de 1977, tinha-se: 79,8 no ensino prim ário;
ferior ao terceiro grau na população maior de 15 anos; um í ndice 18,1 no ensino médio; 2 no ensino superior; os n ú meros que dão
de 3 conclusões de curso para cada mil habitantes e a concentra ¬ base a essas proporções são, sem dú vida, muito maiores, 0 que
çã o das escolas existentes nos principais centros urbanos.” ( Op. não esconde que a batalha se deu mais no sentido de enfrentar a
cit., pp. 129-130. ) Os dados sobre a população escolar excluída taxa de crescimento da popula çã o ou de expandir 0 ensino primá ¬

da matrícula geral, em 1960, indicam o que se deixara de fazer rio e 0 ensino médio. O que quer dizer que, por enquanto, procu ¬
antes: 182 mil ( ou 11,8% da faixa etária ) no ensino prim á rio; rou- se acabar com 0 “ privilégio educacional ” . Na verdade, a
615 mil (ou 83,4% da faixa etá ria) no ensino médio; 587,8 mil implantação do socialismo sempre envolve um decl ínio inicial
( ou 96,8% da faixa et á ria ) no ensino superior (dados extraídos do ensino superior. O desaparecimento do capitalismo põe em
de Situação social da América Latina, p. 162 ). É claro que, gra ças intera ção 0 colapso de carreiras mais conspícuas dos profissionais
à evasão escolar, ao analfabetismo, a deficiê ncias ou ausências liberais e 0 atrofiamento dos cursos superiores correspondentes.
escolares, o quadro global era muito pior do que esses n ú meros Em seguida, quando a maturidade do desenvolvimento socialista
e porcentagens deixam entrever. Por exemplo, a propor çã o de é alcançada, estabelece-se um novo equilíbrio entre 0 ensino su ¬
menores de 15 anos economicamente ativos, em 1950, era de perior e as necessidades culturais do meio ambiente. Cuba se acha
23%, e a propor ção da população de 7 a 14 anos não atendida no á pice da correla ção negativa. Muitos dos seus recursos ultra-
escolarmente, em 1960, era de 54,1% ( idem, p. 104). escassos para a educa çã o têm de ser drenados para programas edu ¬

As modificações obtidas nos ú ltimos 20 anos são sumariadas cacionais mais prioritá rios que a recuperação do ensino superior
desta maneira: “ Os progressos no setor da educa çã o refletem - se (0 que n ã o impede que se expandam programas educacionais se ¬
nas cifras seguintes: em 1958-1959, a matrícula de todos os níveis letivos nessa esfera; em Cuba esses programas se vincularam mais
do ensino representava 12,5% da popula ção total, enquanto que às ciê ncias biol ógicas e à engenharia ou, ainda, à pedagogia, às
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS P OVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

ciências e técnicas de comunicação e à arte, por seu interesse ins¬ Cuba: Conclusões de Curso - Ensino Prim á rio (1958 - 1978) *

trumental ou social). O orçamento da educação, por sua vez, seria


em 1973 da ordem de mais de 700 milhões de pesos (algo superior
a todo o orçamento da república antes de 1959). Por sua vez, a
evasão escolar ainda ocorre, em proporções sérias. A freqiiência 270

escolar, em 1972, alcançava: 10 anos - 99,8%; 12 anos - 94,5%; 15


anos - 55,7%; 16 anos - 39,7%. Segundo a fonte da informação, 250

umas 200 mil crianças ou adolescentes, entre 12 e 16 anos, “ nem .


vão à escola nem trabalham” (os últimos dados foram extraídos
de H. L. Mathews, Revolution in Cuba, p. 342 e 348). Não obstante,
com a cooperação da Confederação dos Trabalhadores de Cuba e
da Federação de Mulheres Cubanas estão sendo tomadas medi¬
das para que, até 1980, todos os trabalhadores (e principalmente
166
as mulheres) façam o ensino primá rio até o sexto grau (cf. D.
150
Cabezas, “ Work: freedom from underdevelopment” , Cuba review,
Vol. VIII - n° 2, p. 17).
A contraparte qualitativa dos êxitos quantitativos resulta da
WH
natureza dos problemas enfrentados. O elemento principal do
100
novo quadro educacional consiste na associação entre ensino e
trabalho, em todos os níveis do ensino e em todos os tipos de
82
escolas. Pode ou n ão existir uma exploração pedagógica simul ¬
tâ nea do ensino e do trabalho. Mas, crianças, jovens e professo ¬
res das diversas idades acostumam -se a dedicar- se às duas
atividades concomitantes. Assim, os estudantes poderão devo¬
22
tar a metade do dia aos estudos; a outra metade ao trabalho, com
maior freqúência agrícola. A exigência básica dessa filosofia da
educação é transparente e foi formulada, em 1966, nos seguintes g
termos por Fidel Castro: “ E será necessá rio que andemos crian ¬
1
do condições, de modo que cada ser humano veja no trabalho o
desenvolvimento pleno de suas aptidões, de sua inteligência, de
sua vocação, de sua personalidade. E sem dúvida de nenhuma
espécie, na medida em que logremos isto, iremos alterando cada
vez mais e mais o conceito de trabalho” ( op. cit., p. 59). Além do * Exclu ídos adultos
esforço produtivo direto na escola ou em seus terrenos, há vá rias Fonte: Ministé rio da Educação e Comité Estatal de Estatística
234 235
C O L EÇ Ã O A S S I M LUTAM O S P O V O S DA GUERRILHA A O SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

Cuba: Conclusões de Curso - Ensino Secundário Cuba: Graduados - Ensino Superior


(9â - 10- séries) e Médio (12- - 13- séries)

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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

formas de combinar trabalho e estudos. Primeiro, a tradição que Além disso, todos se definem como trabalhadores. Um gra ¬
já se configura caracter ística: o incentivo, por todos os meios, duado é um trabalhador intelectual, dependendo da natureza
de conduzir os trabalhadores a completarem o curso primário das ocupações a que se dedique. Na época da graduação, o gra ¬
( na verdade, os critérios de avaliação usados atualmente tornam duado fica sujeito a prestar um serviço social à comunidade. Não
esse requisito mí nimo e geral); a fazerem o curso secundá rio ou se entende que o simples exercício da ocupação corresponda a
algum programa especial ( de reciclagem ou de aquisição de co ¬ uma “ retribuição adiada” indireta, como diriam os antropólo ¬
nhecimentos para outra carreira); a chegarem ao curso superior gos. Os graduados de n ível médio e superior ficam obrigados a
ou a completá-lo; de seguirem cursos de cultura geral, artística trabalhar por algum tempo em determinadas regiões do país,
ou de formação política. A revolução concentrou-se no traba ¬ usualmente fora das cidades grandes e médias. Os médicos e os
lhador. Ele é o alfa e o ô mega, portanto, da revolução educacio¬ professores, por exemplo, devem ir por dois anos (ou mais, se
nal em curso - como sujeito-objeto, como produto e como o quiserem) para as zonas rurais. O que entra em jogo não é ape¬
agente previsí vel da consolidação da própria revolução ou do nas uma prestação de serviços para “ regiões menos desenvolvi ¬
socialismo. Todas as facilidades possíveis são conferidas aos tra¬ das” . Esse é tanto um meio para ampliar e aprofundar o horizonte
balhadores, para que eles respondam positivamente aos incenti ¬ cultural dos trabalhadores intelectuais, de educá-los para as “ rea ¬
vos e tentem a sua ressocialização. As informações indicam que lidades de Cuba” , como um mecanismo reverso de difusão da
em 1972, por exemplo, havia 166.021 trabalhadores fazendo cur ¬ cultura em todos os ní veis da sociedade e em todas as regiões.
sos de educação de adultos, de treinamento técnico ou profissio ¬ Essa experiência por vezes é recebida como um choque. Fidel
nal, ou de ensino superior e de tecnologia. Em 1973, esse n ú mero Castro refere- se a trabalhadores que se graduaram por um insti¬
já era de 517.803, ou seja, 27,3% dos trabalhadores (cf. H. L. tuto de tecnologia e foram enviados para o campo. Eles n ão es ¬
Mathews, op. cit., p. 347). O operário vê todo esse esforço com ¬ peravam as condições de vida que tiveram de enfrentar e que
pensado, pois recebe várias vantagens ( pagamento adicional, Cuba pretendia alterar com o tempo (cf. op. cit., p. 66).
aproveitamento em ocupações mais complexas, ascensão na es ¬ A relação da escola com o trabalho pretende erigir-se em
cala de promoções etc. O que é deveras mais importante, o êxito uma dimensão estrutural e dinâ mica do desenvolvimento edu ¬
pessoal do “ operário exemplar ” depende estreitamente de suas cacional, algo intrínseco, portanto. “ Estes exemplos indicam o
qualificações educacionais, especialmente no que se refere à ins ¬ processo mediante o qual a atual universidade irá desintegran ¬
crição no PCC e ao seu desempenho político posterior). Portan ¬ do- se para passar a ser uma instituição, um tipo de ensino que se
to, em um sistema igualitá rio o mérito funciona como estí mulo pratique em todos os centros de trabalho.” (Fidel Castro, idem,
básico. O trabalhador encara a educa ção como essencial, por si pp. 94-95.) “ E para que estudem centenas de milhares, não será
mesma e para sua reciclagem contínua, em programas de treina ¬ possível que estudem em universidades. (...) Assim, a produção
mento fora do serviço e, de uma forma mais ambiciosa, percor ¬ j mesma, as atividades produtivas, os processos produtivos cons ¬
rendo todos os graus possíveis do ensino. O impulso vem, assim, tituirão a base material, o laboratório, no qual todos trabalhado ¬

de baixo para cima e irradia-se de modo a gerar dinamismos res receberão no futuro seus estudos superiores.” H. L. Mathews
coletivos de compulsão do trabalhador à valorização da educa ¬ reproduz trechos de uma entrevista com José M. Millar Barrueco,
ção e de si próprio pelo patamar educacional alcan çado. I então reitor da Universidade de La Habana, que esclarece essa
238 239
I C O L E Ç A O A SSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBAN

concepção de socialização total da educação pela integração de da incorporação das populações rurais a um estilo de vida que
trabalho e educação ( ver op. cit., pp. 343-344 ). A fábrica se con ¬ tende à homogeneização e à universalização (as comunidades
verte em secção da universidade, na qual o estudante desenvol ¬ agroindustriais foram projetadas e disseminadas com esse pro ¬
ve, pelo trabalho direto, uma parte de seu programa de estudos e pósito); da organiza ção do poder popular, a qual, sozinha, des ¬
de sua aprendizagem; a outra parte, naturalmente, desenrola- se carrega sobre as escolas, individual e globalmente, m ú ltiplas
específicamente no meio escolar. A universidade torna- se parte fun çõ es educacionais formativas e um controle externo
ativa do ambiente, “ formando um novo homem enquanto for ¬ estruturado, impraticável em sociedades capitalistas ( uma ten ¬

ma uma sociedade revolucioná ria” . Tudo isso é incipiente. Mas dência que crescer á com grande vigor daqui para a frente). Essas
sugere que a universidade nascida da revolu çã o ter á de acolher tendê ncias, que nã o deixam de possuir contradições, as quais
outras divisões especializadas intramuros ou engendrar novas exibem deficiências ou não escapam de deformações inevit áveis
instituições que se encarreguem com eficácia da investigação no estágio incipiente do per íodo de transição, delimitam o cli ¬
básica na ciê ncia e na tecnologia. Por enquanto, Cuba poder á ma hist órico em que opera todo o sistema educacional cubano.
absorver conhecimentos cient íficos e tecnol ógicos produzidos Ele adquiriu uma enorme for ça de dinamização das atividades
no exterior. Não obstante, sua autonomia cultural sofrer á muito pedagógicas, responde à ansiedade que paira sobre todos ( traba ¬

se as diretrizes revolucioná rias do socialismo não se aplicarem lhadores intelectuais, manuais ou pol íticos) e não deixa de con ¬
normalmente à expansão da ciência básica, da ciência aplicada e tribuir para criar maior confiança no futuro. Os que se preocupam
da tecnologia avan çada. com a dimensão do refinamento intelectual, do espí rito criativo
Na esfera qualitativa tamb ém se colocam outras tendências ou da qualidade pol ítica das respostas culturais às exigências do
mais ou menos marcantes. Seria impossí vel sintetizar todas as socialismo deveriam atentar para o fato de que o pragmatismo
tendê ncias sem praticar algumas injustiças. Aos que se preocu ¬ não destruiu nem o interesse nem o est í mulo a uma grande varie ¬
pam com a dimensã o pr á tica do sistema de ensino, seria preciso dade de projetos mais ou menos ambiciosos ( que vão dos experi ¬
lembrar que constitui um erro pensar que o universo do traba ¬ mentos com plantas e animais, com o solo, com as vias de
lho reduza o valor criativo intrí nseco da educação formal. As comunica ção, a organização do espaço ou a arquitetura, à peda ¬

novas diretrizes se fundem com as reviravoltas mais dram á ticas gogia, às artes e formas de cultura de massa que são sufocadas
que ocorrem em Cuba no momento. O novo homem e a nova pela “ ind ústria cultural ” ). A desmistificaçã o deixou de ser um
sociedade não são entidades abstratas. São realidades concretas. “ jogo de faz de conta” , um esfor ço vazio da mente que não pode
Existem tendências à secularização da cultura, de homogenei ¬ escapar de um beco sem sa ída. Ela se realiza positivamente, como
zação cultural da personalidade e de participa çã o política que uma superação in concreto. O que se condena, o que se pretende e
sã o t ípicas do caminho que se percorre em Cuba na supera çã o o que se pode aparecem em conjunto ( no ballet, na televisão, no
do subdesenvolvimento e em direção ao socialismo. Essas ten ¬
cinema, no teatro etc.). N ão existem os limites dos “ p ú blicos
dências se configuraram, fundamentalmente, através dos ritmos orgâ nicos” , fechados e restritos, do “ êxito competitivo” no mer ¬
da urbaniza ção (os dados indicam que a proporção da população cado, do “ n í vel cultural ” etc. O consumo é de massa, mas de
urbana passou de 52,10% para 61,96% de 1960 a 1975; e as proje ¬
uma massa que tem forma humana, presen ça humana, querer
ções mostram que esse crescimento continuará até o ano 2000 ); humano. Um professor, despojado de tantos recursos, poderá,
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° COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
241
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

no entanto, ter uma oportunidade pedagógica e uma perspecti¬ comanda e qualifica. Harnecker reconstrói situações fugazes de
va de auto - realização ou de “ transformação dos outros” que n ão convivência, nas quais ela dialoga com os entrevistados (traba¬
são concebíveis fora das circunstâncias tão difíceis de Cuba. O lhadores, dirigentes sindicais, membros do PCC etc.). Ela não
mesmo ocorre com os demais trabalhadores intelectuais. Eles comanda, mas coordena um “ retrato falado” e, por sua vez, fala
não se confinam ao universo da compensação profissional strictu através dele. S ó ela, porém, faz dos escritos um exercício de
sensu ou do êxito competitivo no “ ganhar a vida” . Na verdade, militâ ncia pol í tica. As interferê ncias de Zeitlin ficam no seu
eles n ão fazem nem uma nem outra coisa. Essas são condições próprio texto, 0 lugar que escolheu para falar. As interferências
externas da atividade inventiva e criadora dos intelectuais. Eles de Harnecker são mais complicadas. Na verdade, ela escolheu
se vêem diante de suas tarefas como elas deveriam ser sempre: dois lugares para falar. Dentro e através dos grupos entrevista¬
válidas e importantes por si mesmas ou pelo significado que dos, dos quais faz parte, ainda que episodicamente, por meio do
possuem para o aperfeiçoamento, a alegria ou o prazer dos ou ¬ texto global do livro: ao informar a história exterior aos sujei¬
tros. Nesse clima, o educador, se tiver chama, possui elementos tos, ela delimita os quadros do pensamento e os seus sentidos.
para corresponder ao apelo da revolução. Ele também poderá Os excertos podem ser retirados do contexto, no que diz respei¬
converter- se no novo homem e contribuir poderosamente para to ao ensaio de Zeitlin; o mesmo n ão ocorre com o livro de
a construção da nova sociedade. Harnecker: ao isolar os excertos, perde-se todo ou parte do sig¬
Os materiais sobre as percepções e as explicações do homem nificado que deriva do contexto, ou seja, esfarela-se a verdade da
comum sobre a situação do trabalhador em Cuba precisam ser autora.
explorados com cuidado. Na verdade, são descrições de percep ¬ A segunda questão diz respeito à natureza do testemunho.
ções e de explica ções, elaboradas intelectualmente de modo Pulverizados ou não, algo fica patente. São testemunhos con ¬
indeterminável. Portanto, a mediação e a reconstrução verbal vergentes. Ambos refletem a revolução cubana e suas conseqiiên-
estão presentes, embora todos os textos possuam cará ter docu ¬ cias a partir de uma perspectiva de conformidade (note-se: não
mental e, nas transcrições, possam ser aceitos como fontes pri¬ de conformismo). As pessoas ouvidas “ assumem a revolução”
márias. Isso não é muito relevante, pois o propósito desta parte (as outras não interessaram ). O que quer dizer que não temos
da exposição é restrito: focalizar um “ estado de espí rito” , ou um neste colecionamento as percepções e as explicações do homem
ethos ( no sentido de J. S. Mili), dos vá rios â ngulos possíveis. Não comum que poderiam ser consideradas como divergentes ou
pretendia, nem poderia, ser exaustivo ou fazer uma an álise de antagónicas. Elas n ão existem ? Devem existir, naturalmente.
profundidade completa. Penso que os materiais, sob esse aspec¬ Seria importante conhecê-las e marcar, com elas, as representa ¬
to, permitem isolar alguns casos claros, ou transparentes, sobre ções contrapostas. Se tal material chegou a ser coligido por
os quais aconselho vocês a refletirem com cuidado (indo além Zeitlin, não havia razão para que ele aparecesse no seu pequeno
do que se poderia, em um tratamento didá tico). ensaio de 1969. Quanto a Harnecker, sua técnica de coleta de
Há duas questões preliminares, dignas de nota. Primeiro, as dados pura e simplesmente excluía os divergentes (ou, se estes
duas obras-fonte são distintas. Zeitlin retalhou, e provavelmen ¬ estivessem presentes, silenciavam as divergências ). Mesmo nas
te condensou, os textos das entrevistas. Estes aparecem como conversações em grupo mais espontâneas não havia espaço psi¬
“ sinais” em uma reconstru ção anal ítica da realidade, que ele cológico para o discurso de oposição ou de discord â ncia. Che-
242 I 243
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBADA |

gam até nós frações de debates e todas com uma conexão de sen ¬ classe trabalhadora, maioria e povo se confundem, os trabalhado ¬

tido típica: a defesa da “ vitória da revolu ção” . res estão criando as condições do desaparecimento da classe, nes ¬

O pequeno mas rico ensaio de M. Zeitlin focaliza a revolu ¬ sa rotação construtiva, e também da expropriação socialista do
ção como uma realidade psicossocial. Os trabalhadores, em uma trabalho, tão forte nessa etapa. Zeitlin lida com as manifestações
situação de classe revolucionária potencial, sem provocar e lide ¬ da consciência revolucioná ria e, por isso, não se detém sobre o
rar a derrocada do antigo regime, convertem - se naturalmente substrato objetivo ou material e sobre as formas de sociabilidade,
em classe revolucionária real. O que é crucial, em seu ensaio - de socialização e de associação que este pressupõe, em sua altera ¬

como já o era em seu livro ( publicado em 1967; todavia, a pes ¬ ção mais ou menos rápida. Mesmo assim, os testemunhos dos tra ¬

quisa é de 1962) - é a contribuição empírica e teórica que traz balhadores refletem a nova sociedade cubana in status nascendi e,
para a comprovação de que a fase inicial da transição não pres ¬ mais que isso, atestam a confluência entre vanguarda e classe, re¬
supõe o desaparecimento dos trabalhadores como e enquanto velando o quanto eles se converteram no que se poderia chamar
classes. Ao contrário, estas persistem, em conexão com uma nova de “ soldados da revolução” .
forma de propriedade, de produ ção, de repartição, de organiza ¬ Selecionei alguns tópicos na contribuição de Zeitlin, os que
ção da personalidade, da cultura, da sociedade e do Estado. Suas são estratégicos para os fins desta discussão (e não estão dissol¬

potencialidades sociodinâ micas específicamente revolucioná rias vidos em sua própria análise; onde esta adquire maior relevâ n ¬
eclodem, por conseguinte, nas condições de constituição e de cia teórica, infelizmente, ela volatiliza a base empírica e a prova
florescimento da nova ordem social. Em suma, enquanto o regi¬ documentá ria). As privações e os sacrifícios drásticos, a que se
me de classes começa a desaparecer, as classes trabalhadoras per ¬ submetem cotidiana e rotineiramente os trabalhadores, mere¬
sistem, e delas ir á resultar o desdobramento propriamente cem evidente prioridade. A acumulação socialista lançou e ain ¬
societá rio da revolu ção, na desagregação da velha sociedade e na da lança sobre eles seus fundamentos reais e seus dinamismos
construção da nova. O que quer dizer que a existência das clas¬ mais fortes. A esposa de um carpinteiro, que possuía pouquíssi ¬

ses trabalhadoras irá regular os ritmos históricos e o crescimen ¬ mas coisas, disse: “Antes da revolução não tínhamos nada. Miguel
to da revolu çã o e, portanto, do socialismo. Suas análises da gastava o seu tempo na rua; ele tem trabalho certo; para nós n ão
aliena ção - desalienação (cf. esp. pp. 32-33) procuram esclarecer há escassez...” (p. 19). Um mineiro, por sua vez, declarou: “ As ¬

como a consciência revolucioná ria, depois da inserção do socia ¬ sim, a revolu ção veio e ela decidiu que os mineiros não devem
lismo, conduz o homem comum, coletivamente, à eliminação comer mais lá em baixo, que eles devem subir à superfície para
dos reflexos dos antagonismos de classes na apreensão da perso ¬ comer. E você tem leite, pão, ovo e carne, de graça...” (p. 15). Por
nalidade e da sociedade. fim, eis a opinião sobre a libreta e o racionamento de um cervejeiro
Poder-se ia dizer que essa fase inicial seria uma fase térmica,
- negro: “ Ninguém escapa da libreta. Todos têm sua cota, de acor ¬

uma fase de aquecimento da revolução como força social constru ¬ do com as necessidades de sua fam ília, nada mais nada menos.
tiva. O proletariado sobrevive graças às suas funções revolucionᬠIsso, pelo menos, é o que posso ver por mim mesmo. René [o
rias positivas (não se deve esquecer que o trabalho coletivo dos administrador] fica na fila como nós. Sua esposa e a minha com ¬

trabalhadores será, de fato, o esteio de uma acumulação socialista pram na mesma loja. Ninguém tem privilégios agora. O que existe
originá ria de longa duração). Ao realizar tais funções, nas quais é para todos” (p. 16). Outro aspecto importante diz respeito aos
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA
245
AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

salários, à valorização da estabilidade e à ausência de ressenti¬ preocupação era o que poderia acontecer com as crianças se ¬
fi
mentos por causa da mobilidade ocupacional. Um trabalhador cássemos doentes ou perdêssemos o emprego. (...) Pouco a pou¬
negro, que antes fora motorneiro, disse: “ Não seria próprio ter co, nem estamos mais pensando em termos de ganhos
o que os operários privilegiados ganham do que as empresas ca ¬ individuais” (p. 17).
pitalistas tiram deles; eles lutam por si mesmos, como eles têm Quanto à compulsão ao igualitarismo e à valorização da igual ¬
de fazer ” (p. 17). Outro operá rio, de uma fá brica de cimento, dade seria possível selecionar muito material. Um estatí
stico
declarou: “ O objetivo de cada trabalhador é conseguir um em ¬ disse: “ Olhe, eu sou um trabalhador de escritório. Isso significa
prego para seu filho aqui. Pais, filhos, irm ãos, sobrinhos aju ¬ qualquer coisa ? Não, eu sou um trabalhador como os
outros.
dam- se uns aos outros para entrar na empresa. Nós tí nhamos Antes, pensá vamos que éramos algo especial. Ví nhamos com
sindicato forte aqui. Você subia na escala somente por antigúi- nossas camisas engomadas e com gravatas, olhávamos do alto os
dade. Não existia algo como auto-aperfeiçoamento. Você não ti¬ trabalhadores da usina. Eles não podiam sequer atravessar nos ¬
nha oportunidade para estudar. Alguns caras na extração de sas portas sem permissão especial. Agora, tudo isso mudou. (...)
minério ganhavam 700 dólares por m ês com o trabalho extraor ¬
Eu sou um trabalhador como os outros trabalhadores. Se você
dinário. A maioria deles renunciou ao pagamento extraordiná ¬
quiser vê-lo, você o vê. Não é necessário ficar de fora,
murmurar
rio, embora alguns não, seria um grande sacrifício. Eu mesmo e ter a esperança de que em algum momento você verá algué
m
desisti. Os novos colegas que chegam à empresa sabem que irão que se incumbirá de sua queixa no escritório central.
Você en ¬
ganhar o mesmo que os trabalhadores em outros lugares com a tra, como um trabalhador que sabe que é o proprietá rio aqui,
e
mesma habilidade e perigo inerentes ao seu trabalho. É o que pede para ver o administrador. Naturalmente, ele
tem reuniões
conta. O fato é que o salário significa muito pouco agora” . Per ¬
e muito trabalho. Nem sempre ele pode falar com você quando
guntado se era porque não havia quase o que comprar, retrucou: você quer. Isso é justo. Mas você sabe que existe uma razão cor ¬
“ Naturalmente, para ser verdadeiro, porque não existe muito o reta para ele n ão vê-lo e entende. Usualmente, isso n ão
aconte ¬
que comprar. Mas principalmente porque tanta coisa é gratuita, ce. Você apenas pede para vê-lo e consegue, ou qualquer outro a
e minha esposa também está trabalhando. Todos têm trabalho quem queira ver. Não existem privilégios” (p. 21). Nesse
clima
agora, assim uma família que antes tinha só um ganhando agora igualitá rio, a autoridade na ind ústria e a disciplina
no trabalho
tem um filho, às vezes mesmo a esposa trabalhando. Minha es ¬
mudaram de cará ter. Em uma central de açú car, um trabalhador
posa deixa nossas crian ças no círculo infantil - ela sabe que elas negro (entrevistado em 1962) dissera : “ O sistema de
trabalho se
são bem cuidadas, e isso não custa nada” (p. 17-18). Seu colega alterou completamente, porque agora trabalhamos para nós
salientou: “ Agora temos roupa de trabalho, sapatos de trabalho, mesmos. Os trabalhadores, juntos, resolvem os problemas de
educaçã o para nós e os nossos filhos de graça, assistência à saúde produção, de acordo com a nossa experiência.
Desistimos do
e médica de graça, raios X e remédios de graça, férias a paga ¬
pagamento extraordin ário. A qualidade do nosso
trabalho mu ¬
mento; e se alguém não pode trabalhar, por doença ou acidente, dou muito. Nós garantimos que o equipamento seja mantido
recebe o pagamento total, pois estamos em uma empresa de van ¬ em boa condição, que os reparos sejam feitos quando necessá ¬
guarda, que possui a Bandeira dos Heróis de Moneada. Não te¬ rio, e que a produção continue. Ninguém precisa nos fiscalizar
mos que nos preocupar com o futuro. Antes, a nossa maior mais. O administrador possui boas relações com os oper
ários.
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCI A L I 5 MO A REVOLUÇÃ O CUBAHA |

Ele se preocupa com os interesses dos trabalhadores e em facili ¬


produção e da produtividade foram alterados, com o endosso
tar seu trabalho. O fato é que trabalhamos como o diabo, dando dos trabalhadores]. Nesse contexto, o significado do trabalho se
tudo de nós mesmos [ metiendo la manga y la cola] ” (p. 22). Um modificou. Já em 1962 um operário dissera a Zeitlin: “A princi ¬

administrador admitiu: “ O prestígio e a autoridade do adminis ¬


pal coisa que aconteceu depois da revolução é que eu estou tra ¬

trador estarão ligados aos laços reais que ele tenha com a massa balhando para a minha nação e para o benefício coletivo de todos.
de trabalhadores em sua unidade” (p. 28). As punições são to ¬
Eu não sou explorado como fui antes” (p. 295 ). Aliás, o pr óprio
madas ou sancionadas pelos trabalhadores. A transferência (com Zeitlin encerra seu livro com a frase de um trabalhador que fi ¬

o mesmo pagamento) dentro da empresa ou para outra empresa cou famosa: “Antes da revolução, um oper ário era um cubano
constitui a punição mais grave, como indicou um engenheiro: insignificante. Agora ele é um ser humano”.
“Ela é um golpe porque a maioria dos trabalhadores pelo me
- ¬
O livro de M. Harnecker (nesta parte da exposição será apro ¬

nos aqui - s ão amigos e parentes uns dos outros. Eles conhe ¬


veitado apenas o cap. 1, pois seria impraticável trabalhar com
cem- se uns aos outros e trabalham juntos há muito tempo” (p. todo o livro) focaliza as condições e os dinamismos da revolução
24). Um cervejeiro explicou o procedimento normal: “A admi ¬
em uma etapa na qual a transição para o socialismo constitui
nistração compreende os trabalhadores, e eu posso dizer isso uma realidade mais densa. Dada a forma pela qual vanguarda e
porque tive meus próprios problemas com eles. O administra ¬
classe trabalhadora se associaram na conquista do poder, 0 dile ¬

dor é carinhoso com os trabalhadores. Também 0 chefe do pes ¬


ma polí tico central da vanguarda foi, desde 0 início, o de sua
soal. Tudo é dito sem insulto, se é preciso conversar com você. absorção pela classe - ou seja, o da organização (institucional)
Eu tive uma discussão com uns caras aqui. Envolvi-me em uma do poder revolucionário da classe trabalhadora (ou poder popu ¬

luta. O chefe de pessoal acabou com tudo, eu estava quase louco lar). Este poder é intrínseco à classe trabalhadora - não é gerado
e ele me disse palavras duras; eu perdi o respeito e fui punido. fora dela. Todavia, 0 esforço de organizá-lo e torná-lo um poder
Fui transferido para outra secção. Fiz mal. Eles estavam certos” de classe capaz de atuar organicamente a partir de fora (ou me ¬

(pp. 24-25 ). Os administradores e outros funcionários estão su¬


lhor, de cima; mas como uma etapa mais avançada da “ revolu ¬

jeitos à retaliação. Ao resumir suas conclusões, Zeitlin mencio ¬


ção desde 0 poder ”, provavelmente a etapa na qual a coalescência
na que os trabalhadores sentem- se seguros de que poderiam entre vanguarda e classe se completa e, por conseguinte, a “ re ¬

expulsar “ qualquer hijo de puta que os moleste” (cf. p. 30). Um volução desde o poder ” se converte em revolução de todos os
oper ário de 64 anos afirmou: “Olhe, nó s trabalhamos mais li ¬
trabalhadores ou de todo o povo) é algo muito recente. Harnecker
vremente. Existe confianç a nos trabalhadores. Nos velhos tem ¬
projeta suas sondagens nos diferentes níveis em que esse pro ¬

pos, se fosse apanhado fumando estava frito. Era despedido. cesso está desabrochando, como resposta à iniciativa do topo. A
Agora temos um lugar para as refeições, para descansar, para potencialidade revolucionária do homem comum, bem como a
acender um cigarro e para conversar quando sentirmos necessi ¬
reserva de potencial revolucionário da classe trabalhadora como
dade. Alguém toma conta de sua máquina quando voc ê pára, e um todo sobem à tona com inusitada transpar ência.
você faz o mesmo para ele. Existe um certo companheirismo no A irradiação é, a um tempo, espontânea, acumulativa e ace ¬

trabalho” (p. 28) [note- se, depois do 13° Congresso da CUT, em lerada. Como s ó se tratava de “ despertar” formas de sociabilida ¬

1973, v ários aspectos da organização e controle do trabalho, da de e forç as societ árias existentes, de “ aguçá-las” e, em seguida,
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

“ orientá-las’, o que se vê é emocionante: como a revolução co¬ vemos que exista... digamos... esse mesmo fervor com que en ¬
meça a caminhar sobre os pés do protagonista principal. A mas ¬ frentamos o cumprimento de nossos deveres revolucionários para
sa já não se encontra “ adormecida” (lembram -se da referência fazer cotidianamente o trabalho para o qual nos pagam” (p. 44).
de Che Guevara ?). Ela está entrando na posse da revolução, e “ Eu vou te explicar como é 0 sistema. O controle de qualidade é
para comand á -la coletivamente (o que ocorrerá dentro em pou ¬ um problema estritamente do operá rio, para não nos equivocar ¬
co). Estamos, pois, em um limiar. O importante, nas descrições, mos. O controlador de qualidade, o que leva são estatísticas do
é que elas permitem reter a qualidade das orientações do com ¬ que sucede. A ele não se paga para que produza com mais quali ¬

portamento dos trabalhadores manuais e intelectuais como es ¬ dade.” (p. 45) “ A culpa principal e primordial de quem é? Do
tes as exteriorizam, revelando até que ponto eles plantaram a operário!” (p. 47) “ De todas as formas, era uma anormalidade,
revolução dentro de si próprios e se eles podem responder orga ¬ estamos de acordo? E há responsabilidades, estamos de acor¬
nicamente às tarefas concretas da classe trabalhadora no mo ¬ do ?” (p. 49) “ Olhe, para que me entenda, ou trocamos de méto¬
mento cr í tico em que devem lutar n ão pela “ vit ó ria da do, ou trocamos de gente.” (p. 51) A isto, a resposta foi geral:
revolução” , mas pela consolidação do socialismo. Os que acre ¬ “ Não, não é preciso trocar de gente, não, não, não” . Nas inter ¬
ditam que a via cubana se esgotara, caíra no vazio e está em venções dos trabalhadores o que chama a aten ção é o ego-
degenerescência burocrática precisam ler atentamente as trans ¬ envolvimento, todos se julgam afetados e se põem em questão.
crições feitas a seguir. Elas evidenciam que, como expressão his ¬ Alguns pontos de maior interesse sociológico: “ eu creio que a
tórica do comportamento da classe revolucion á ria, a revolução responsabilidade é do operá rio e da equipe.” (p. 46) (...) o me
“ ¬

cubana principia agora. lhor controlador de qualidade que existe, em qualquer oficina, é
Uma das discussões focalizadas por Harnecker permite ob ¬ 0 operário, junto com os componentes da equipe.
Esses são os
servar, em extensão e profundidade, como se desenrolam os ajus ¬ melhores controladores.” (p. 47) “ Sobre o problema da qualida ¬

tamentos entre trabalhadores e administradores. Ocorrera uma de, há uma coisa fundamental que se coloca por falta de pes ¬

falha na produção, e o administrador pedira explicações ao tra ¬ soal.” (p. 50) “ Deve-se ter mais cuidado, porque esse é 0 dinheiro
balhador responsável. Este mais justificou a falta do que escla ¬ de todos os trabalhadores (...) porque 0 que nós fazemos apro ¬
receu suas razões reais. O assunto atraiu a atenção de vários veitamos todos conjuntamente, não é coisa de um só. E é vergo ¬

trabalhadores e o administrador viu- se na contingência de en ¬ nhoso que depois de tantos anos de revolução nós estejamos ainda
frentar diversos papéis sucessivos (o de companheiro, o de com um problema como este. Devemos cuidar da revolução, que
pedagogo e o de chefe). O operá rio não cedeu terreno e seus co ¬ é muito grande e é de todos nós.” (p. 50. Referência: os trabalha¬

legas participaram do debate desfocalizando -o de sua pessoa, para dores aplaudiram este colega com entusiasmo.)
ressaltar a responsabilidade dos operários e da administra ção, Na reunião com um grupo de trabalhadores da mesma em ¬

as condições de produ ção na fábrica, as deficiências dos materiais presa, da qual participavam trabalhadores, dirigentes adminis¬
e a engrenagem económica etc. Eis alguns tópicos da argumen ¬ trativos e dirigentes do PCC, a conversa girou sobre a produ ção
tação do administrador: “ Por quê ? Quantas vezes se falou aqui e 0 PCC. A dinâ mica da subida e descida dos objetivos do plano,
destes problemas? É a primeira vez hoje? É a primeira vez que o segundo o esquema adotado a partir de 1970, é descrita pelo ad ¬
dizemos?” (p. 44). “ Não é a primeira vez, senhores. Então não ministrador: “ O que surge primeiro é uma proposta da base.
25
° |I C O L E Ç Ã O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO
251
SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA !

Essa se eleva à empresa, da empresa ao ministério correspon ¬


no que é direção coletiva. Porque antes, claro,
nós mesmos mo ¬
dente, em nosso caso o Ministério da Indústria Leve, e daí vai tivávamos os trabalhadores, para produzir, e produzir
, e não sa ¬
ao Juceplan. Este organismo confecciona as chamadas ‘cifras de bíamos naquela época se iríamos ter a mat
controle’. Essas cifras tornam a descer e são novamente discuti ¬
executar o que havíamos decidido. Não, agora
-
é ria prima para
não se discute. O
das pelos trabalhadores, os quais determinam, em último ter ¬
Estado vai lá, onde estão os trabalhadores ou os representant
es
mo, as cifras que acreditam poder produzir nas condições atuais deste movimento operário e se coloca uma análise
bem feita do
da fábrica. Os trabalhadores dizem, por exemplo, vamos fazer que se pode fazer e do que não se pode fazer,
as necessidades que
tal quantidade de papel parafinado... sabem que vem a assem- é preciso vencer. Então, começam a subir dos
trabalhadores es¬
bléia de discussão do plano e começam a tirar seus numerozinhos, sas coisas que você deve ter ouvido quando esteve
aqui, que se
suas contas...” , (p. 53) “ Antes de 70 se fazia, mas de outro modo, coloca, por exemplo ‘sim, a máquina nova pode
fazer’, podem te
de uma forma mais simples: havia a obrigação por parte da ad ¬
dizer ‘eu faço sim, mas olhe, vocês me garantem
que não me
ministração de informar aos trabalhadores mensalmente qual -
falha a matéria prima, porque aqui se deu o caso que
a matéria-
era seu plano, o que era que se necessitava que ele produzisse, prima estava no armazém e eu perdi
duas horas de trabalho,
que necessidades havia do produto, de cada coisa. Faziam-se você sabe o que é perder duas horas...?’. Te dizem
isso e muito
assembléias mas eram assembl éias simples, não deste tamanho, mais. Assim se vai desenvolvendo a discussão plano
do , então se
nem assembléias preparadas com todo tipo de análises. Eram estabelece um compromisso: a massa de trabalhadores
faz um
assembléias de departamentos, nas quais havia um compromis ¬ compromisso do que tem de produzir, mas
nada disso de Pá tria
so moral dos trabalhadores para com as necessidades do produ ¬ ou Morte!, mas analisando em todos os detalhes,
sabendo o que
to que fabricavam. E a administração tinha a responsabilidade vai poder realizar e com melhores condições,
porque vão pas
de informar, por meio de quadros negros, como ia o cumpri ¬
¬

sando os anos e nós vamos tendo maiores


recursos. Antes, não
mento do plano. Sempre houve participação, o que n ão havia t í nhamos nada, eram condições, que
seja... de Pátria ou Morte!,
eram estes tipos de discussões. Agora o trabalhador tem partici ¬ era preciso fazer na verdade de Pátria ou Morte!
Mas realizar as
pação na gestão econ ómica da fábrica. Agora busca- se, na ani ¬ coisas Pá tria ou Morte!, como dizem os companheiros
, implica¬
mação patriótica, a animação revolucioná ria para com uma cifra, va, de fato, de tratar de levar as coisas para a
frente só com o
busca-se que esse companheiro analise o que é que vai fazer e movimento de trabalhadores de vanguarda, aquele grupo
de tra¬
porquê. Nestes momentos n ã o h á mais, como naqueles outros balhadores que havia demonstrado condições exemplares
fren ¬
momentos, Pátria ou Morte!, como o chamávamos nós mesmos. te ao trabalho e à revolução. A grande
massa ficava para trás,
Agora, essa etapa de Pá tria ou Morte se vai superando com uma não se integrava às tarefas. Era preciso buscar
uma maneira de
boa gestão económica.” (p. 55) Nas interven ções, merecem saliên ¬ -
integrá la, de fazê-la participar, única forma
de fazê-la sentir-se
cia os seguintes excertos: o secretário do sindicato: “ Como ía ¬ responsável pelas tarefas que a revolução propunha
mos pensar no princípio da revolu çã o que se realizariam Um administrador, que está estudando economia
” (pp. 56-57).
: “ O estudo é
assembléias deste tipo! Inclusive tínhamos contra-revolucionᬠfundamental. Não se pode desenvolver o país com baixo
n ível
rios. Tudo isto é um processo. E nós chegamos a uma altura na cultural. Hoje, ter sexto grau neste país é ser um
analfabeto. É
qual já (...) os trabalhadores participam verdadeiramente, não ?, preciso ter um n ível médio como m í
nimo. Existem aulas para
252 253
COLE ÇÃ O ASSIM LUTA » OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A R E V O L U ÇÃ O CUBANA

diferentes níveis. Existem cursos secundá rios para trabalhado ¬ preciso fazer uma autobiografia. Eu cometi um erro ao fazê-la e
res, os quais possibilitam que eles passem para a Faculdade Ope¬ coloquei que havia sido militante de uma organiza ção bastante,
rária, para depois escolher uma carreira universitá ria. Aqui, o que seja... bastante funesta antes da revolução, quando na reali ¬
que n ão estuda é porque, de fato, tem um impedimento, e não dade eu só havia colaborado com ela até que me dei conta de seu
um impedimento de trabalho porque se d ão todas as facilidades. verdadeiro car á ter e me afastei. Posteriormente isso foi analisa ¬
Nos primeiros anos da revolução cometemos um erro nesse sen ¬
do e se considerou que uma pessoa que havia caído nessa debili ¬

tido; trabalh á vamos demais. N ão tiramos nada de trabalhar 16 dade não podia ingressar no partido.
horas e não nos superamos. Temos que trabalhar 14 horas diá rias - Esta não é, portanto, a primeira vez que você foi proposto
e superarmo -nos o resto do tempo” (pp. 58-59). Trecho de uma como trabalhador exemplar ?
conversa sobre a escolha do trabalhador exemplar na fábrica (con ¬ - N ão. Limitava - me esse dado, que aquela vez nã o foi escla ¬

dição para ser recrutado pelo PCC): recido suficientemente. Em troca, agora foi debatido tanto pelo
Neste grupo h á algum trabalhador exemplar? n ú cleo quanto pela massa.” ( p. 60.)
- Sim, Pastor Fundora, assinala Carlos, um trabalhador, re ¬ O secretário do PCC na fábrica esclareceu que o trabalhador,
ferindo -se ao chefe da oficina. eleito pelos colegas, pode recusar -se a pertencer ao PCC, embo ¬
- Poderiam vocês dizer - me por que razões foi eleito traba ¬ ra participe dos CDR, em outros organismos, no sindicato, preste
lhador exemplar? trabalho voluntá rio etc. “ Porque n ão quer assumir a responsa ¬
- Bem, olhe, ele e eu nos conhecemos faz 20 anos. Para mim bilidade de militante, porque n ão quer que se investigue sua
sua atitude tem sido correta depois do triunfo da revolu ção. Ti ¬ vida... Por isso é fundamental o princí pio da voluntariedade
vemos de lutar juntos contra a patronal. É um trabalhador de nessas coisas. ” (p. 61.)
vanguarda. Realiza trabalho voluntá rio, e uma sé rie de detalhes Um trabalhador esclareceu vivamente por que fora rejeitado
mais que o fazem sobressair em relação à massa. e o que pretendia fazer :
- Há quanto tempo propuseram você, companheiro Fundora ? Olhe, eu saí eleito duas vezes trabalhador exemplar - in ¬
- H á questão de 2 meses. terrompe L ázaro - mas não pude chegar a ser militante nas filei ¬
- E desde quando é chefe de oficina ? ras do partido, embora n ão perca as esperanças de que algum dia
- Desde h á um ano.” ( p. 59 ) o consiga e quero se n ão o conseguir que me atirem o carnet
Toda a discussão seguinte enumera o que é excepcional em [carteira de identificação] na cara” .
suas qualidades e em seu caráter, permitindo que ele seja indica ¬ Todos se riem da pitoresca expressão de Lázaro.
do pelos colegas como “ trabalhador exemplar ” e “ chegue a “ - Poderia explicar- nos por que não conseguiu ser militante
militar nas fileiras do partido” , como “ um companheiro revolu ¬ do partido ?
cioná rio a mais com que vai contar a revolu ção” ( cf. p. 60). O - Quando foi feita minha biografia, na ‘conjunta’ [reunião
pró prio Fundora explica como se dá o processo de seleçã o e um dos militantes do partido em que se analisa o caso] me disseram
obst áculo sobre o qual esbarrou. que eu tinha de começar a superar algumas coisas. O problema
Bom, ao ser eleito na assembléia como trabalhador exem ¬ n ú mero um era o problema do meu cará ter. Vocês me viram
plar, vem logo o processo para ingressar no partido, no qual é quando participei da assembléia, eu sou muito violento, me cus-
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D A G U E R R I L H A A O S O C I A L I S M O A R E V O L U Ç Ã O C U B A N A
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

ta controlar-me, embora me tenha dominado um pouco, conti ¬ Nesta ind ústria, em que estão 640 trabalhadores, quantos
nuo assim . E como isso, outras coisas. Sinceramente o que di ¬ militantes existem ?
zem a um é a verdade, a verdade maior que você pode ouvir. O - 19, responde o secret á rio do n úcleo.
que se tem de fazer é começar a superar isso.” (p. 61.)
- Quantos trabalhadores de vanguarda ?
Outro que se confrontou com a supera ção:
- Uns 140.
Há vezes que nós nos concentramos em um trabalho e - Como se premia o trabalhador de vanguarda?
nos afastamos de outro - começa a contar Lá zaro. E uma das - Dá-se um diploma mensal aos três trabalhadores mais des ¬
coisas que me colocaram é a baixa escolaridade que tinha. Quando tacados de cada oficina. Além disso, a CTC tem vá rios planos de
entrei para esta ind ústria, podia-se dizer que era quase analfabe ¬ fé rias, entrada para os teatros, os cabarés. Para todas essas coisas
to, tinha segundo prim á rio. Segui até o sexto, mas logo n ão con ¬ cada sindicato escolhe os melhores trabalhadores. E também ocor ¬
tinuei a superar- me. Fui dirigente sindical depois da revolução re que quando os companheiros acham um trabalhador muito
e me dediquei a isso abandonando os estudos. També m abando ¬
esgotado sugerem mandá-lo descansar por um m ês sem perder o
nei um pouco o que era o Comité de Defesa, e como tinha mui ¬ sal ário nem as férias, e sem ter que pagar nada aonde vai.
tas tarefas propus a necessidade de deixar o cargo. Essas foram - Às vezes há um trabalhador ou v ários que pedem que se
algumas das colocações que fizeram e sinceramente eu achava adote com eles essa medida - precisa ‘Robertico’. Sim, h á dez
que eram corretas. Tinha que superar essas coisas. Agora volto petições e só três lugares, antes escolhiam a administraçã o e o
às aulas de novo porque tenho de continuar estudando. Se n ão sindicato, mas, como podemos equivocar - nos, agora se leva à
estudo, fico para trás. Se tivesse continuado a estudar, já estaria assemblé ia de trabalhadores para que estes determinem quem
na Faculdade Oper á ria ou subindo pelos degraus da Universi ¬ merece esse descanso. São os trabalhadores que têm a ú ltima
dade como muitos companheiros que eram analfabetos antes do palavra.
triunfo da revolu ção e que hoje estão na Universidade. H á com ¬ - Se um militante começa a andar mal, o que pode fazer a
panheiros velhos que nunca haviam estudado antes, e que hoje massa ?
são doutores, com 50 e tantos anos. Ah! Mas se sacrificaram! O - Quando um militante perde seu prestígio diante da massa
companheiro que é escolhido trabalhador exemplar nesta fábri¬ é quando se começa a aplicar o código de san ções. Mas antes que
ca, você deve ter a completa segurança de que está analisado em a massa comece a dar - se conta de que o militante não reú ne as
sua atitude diante do trabalho, que é um companheiro que está condições, o n úcleo do partido já ter á dado cartas no assunto e
à frente de tudo... E por isso é que eu não fui eleito. Como se diz estará analisando com ele os pontos em que deve superar - se.
vulgarmente ‘al duro y sin guante’. Porque um não pode estar Quando não h á n ú cleo na ind ústria ou centro de trabalho, os
nas fileiras do partido se é muito ‘fraco das pernas’ ... Eu saí trabalhadores podem recorrer ao encarregado seccional do par ¬

contentíssimo esse dia. Me perguntaram, como te sentes? Res ¬ tido para propor-lhe as queixas que tenham sobre algum mili ¬
pondi: muito bem, agradeço -lhes que me tenham dito tudo isso.” tante.
( p. 62). - E você, companheiro, que é dirigente sindical, também é
A seguinte seq úê ncia de perguntas e respostas apanha vá rios militante do partido?
tó picos essenciais: - N ã o” ( p. 65).
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS n A GUERRIL AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

Outro questionamento análogo foi feito sobre o sindicato, da posteriormente pela assembléia. Assim se evita toda possibi¬
suas funções e relações com os trabalhadores. Eis o que seria lidade de se cometer injustiças na repartição” (pp. 66-67).
central para esta exposição: Em outra discussão, com um grupo de trabalhadores de Ha¬
Parece que ocorreu um salto muito grande nas tarefas do vana, entre os quais se encontravam dirigentes administrativos,
sindicato depois de 1970. O que pode dizer- me a respeito? sindicais e do PCC, foi amplamente discutida a questão dos re¬
- Bom, antes as funções eram muito mais limitadas que ago ¬ quisitos do trabalhador exemplar. Para não estender demais as
ra. Tudo se centrava no movimento dos trabalhadores de van¬ citações, irei mencionar somente o essencial. Quanto a trabalha ¬
guarda, nas mobilizações para várias coisas. Pouco tinha que ver dores eleitos pela assembléia e que, depois, tiveram a candidatura
o sindicato com a produção. Agora o sindicato joga um papel retirada: “ Sim, ocorreram dois casos, responde o secretário geral
fundamental na produção, na elaboração dos planos económi¬ do n úcleo do partido. Um porque não quis aceitar e o outro foi
cos da indústria. A administração nos proporciona uma série de Manuel. Tinha um nível escolar baixo e não estava fazendo esfor¬
antecedentes que nós levamos à discussão dos trabalhadores. ços para superar-se e logicamente isso o invalida, pois uma das
- Devem ter muito trabalho com tudo isso. Quando são elei¬ condições para ser trabalhador exemplar é a de estar superándo ¬

tos dirigentes sindicais deixam de trabalhar? se culturalmente, sobretudo neste processo que Fidel disse que
- Não. Trabalhamos sempre uma média de 5 horas diárias ter um sexto grau é ser um analfabeto... É necessário superar se
-
em nossos trabalhos habituais e o resto dedicamos a atender os tanto ideológica quanto culturalmente. Ter muita ‘cancha’ políti¬
problemas dos trabalhadores, da produção. Diariamente temos ca” (p. 67) .Também se esclareceu como o cancelamento pode par¬
um ‘conselhinho’ com os dirigentes administrativos e do parti¬ tir de dentro da própria assembléia: “ Se um trabalhador propõe a
do para discutir os problemas da produ ção. algum companheiro e algum trabalhador dos ali reunidos pensa
- Companheiros, e agora que se está discutindo a vinculação que esse companheiro não é exemplar entre os exemplares, pede a
do salário à norma, não ocorre que vocês, como dirigentes sindi ¬ palavra e expõe seu ponto de vista. Por exemplo, ocorreu o caso
de
cais, tenham que enfrentar reivindicações salariais por parte dos não considerar-se exemplar um companheiro que tendo uma noiva
trabalhadores? enfermeira, quando se casa com ela esta deixe de trabalhar por¬
- Não, ninguém reclama pelo salário básico. Só lhes preocu¬ que ele pede que ela se dedique à casa. Esse companheiro exerce o
pa que seu trabalho seja pago justamente, de acordo com seu machismo. Pensa que é ele o que trabalha e que ela deve ser a
rendimento. escrava da casa e dedicar-se só a ele. Estas são questões que a mas ¬
- Conte me, companheiro, e agora que há mais produtos à
- sa trabalhadora compreende. Não é correto que uma companhei¬
disposição, foi suprimida a distribuição dos produtos escassos ra deixe de trabalhar quando se casa. Se o companheiro supera
aos melhores trabalhadores da indústria, como se fazia antes? esta situação poderá ser proposto em uma nova assembléia [para
- Não. O sistema continua. Quando há mais produtos des¬ indicação] de trabalhadores exemplares. Todas as coisas podem
ses, vêm mais para as indústrias, mas prossegue a repartição por superar-se e os militantes do partido se preocupam especialmen¬
méritos. Existe uma comissão, eleita pelos próprios trabalhado ¬
te em ajudar a estes companheiros nesse sentido. O importante
é
res, da qual participa um representante do sindicato, que é a que assinalar os problemas em tempo. Alguém pode não saber uma
decide como fazer a distribuição, decisão que tem de ser aprova- coisa sobre o companheiro mas outro sim” (pp. 67-68). Um dos
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COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO REVOLUÇÃO CUBANA

trabalhadores deu a sua contribuição pessoal: “ Eu fui proposto zar a gestão económica, ela nos impossibilitava, em ocasiões, de
mas não aceitei porque chegar a ser militante implica uma série analisar nossa gestão com a veracidade que a analisa um simples
de responsabilidades que na ordem particular n ão posso cumprir. trabalhador. Mesmo que o dirigente administrativo seja um com ¬
Um boxeador não pode subir ao ringue se está com gripe. Essa é a panheiro que tenha uma grande compreensão revolucionária, é
situação particular na qual me encontro nestes momentos. Espe ¬ difícil que recolha à saciedade o sentimento vivo dos trabalhado ¬
ramos nos recuperar um pouco e ir à luta” (p. 68). Uma das per ¬ res e se dedique dessa mesma forma a buscar sua solução imedia ¬
guntas levou o dirigente sindical a dar vários esclarecimentos ta. À s vezes elas se atrasam pela posi çã o que ocupa esse
importantes: “ Companheiro, e você, que é dirigente sindical, não companheiro, sob o ponto de vista administrativo do aparato es ¬

é trabalhador exemplar ?” . “ Não, para ser dirigente sindical não é tatal. Embora minha gestão não esteja desligada dos trabalhado¬
necessário ser trabalhador exemplar. O dirigente sindical é eleito res pelas características próprias de minha pessoa, não é menos
por aclamação. Deve reunir uma série de condições: ser um bom certo que a gestão administrativa me rouba um tempo que, se
trabalhador, não ser absenteísta, ter uma boa conduta social den ¬ ficasse de fato na produ ção, poderia estar dedicado diretamente
tro da fábrica, que são exigências muito menores que as que se às inquietações dos trabalhadores. Essa é a razão por que a dire ¬
fazem para ser militante. No caso do dirigente sindical não há ção do partido e do governo decidiram eliminar no que for possí¬
seleção posterior. No caso do trabalhador exemplar, a massa o pro ¬ vel a dualidade político-administrativa para que a gestão do Estado
põe mas o partido investiga seus dados biográ ficos e pode chegar e a gestão do partido possam realizar-se com o cem por cento da
a convencer-se que não tem méritos para ser militante.” (p. 69.) O qualidade requerida.” (p. 70.) A questão da identidade entre o
debate levou o secretá rio geral do n úcleo a assinalar as alterações trabalhador, o sindicato e o Estado revolucion ário se colocou com
em andamento. “ No início, para consolidar a revolu ção, escolheu- agudeza, com defesa da convergência dos interesses dos trabalha ¬
se a vanguarda revolucionária para a alta direção da economia. dores em defender os interesses do Estado, “ porque nós somos
Por seus conhecimentos, por seu preparo, foi preciso levar os diri ¬ parte da economia de nosso país” . Nesse registro, um dirigente
gentes do partido aos postos administrativos. Agora, com a nova sindical de Matanzas, que defendeu este ponto de vista, comple¬
metodologia se trata de eliminar isto cem por cento. O dirigente tou: “ Temos que zelar para que nossa economia vá em ascensão.
do partido deve ser um trabalhador simples e a composição do A revolução propõe que isto, tudo, é nosso, e é correto. O que não
n úcleo na fábrica deve ter no mínimo um terço de trabalhadores quer dizer que isto é nosso e eu o vou levar para minha casa. Não,
diretamente ligados à produção. E você poderá comprovar que não. Isto é nosso para produzir para a coletividade. Por isso é que
em muitas partes um simples trabalhador é o secretário geral do precisamos ser cada vez mais produtivos para avançar mais ainda.
n ú cleo e o administrador um simples militante.” ( p. 69.) O O objetivo dos sindicatos é defender, como sempre, o interesse
questionamento foi aprofundado e a mesma pessoa indicou por ¬ dos trabalhadores. Coloca-se que nós somos a contrapartida da
que uma boa parte do n úcleo devia ser recrutada entre simples administração. Mas a nossa administração é revolucionária e a
trabalhadores. “ Isto tem uma base que é muito fundamental e eu função, em contrapartida, é zelar para que eles funcionem bem
próprio a experimentei na carne mais que ningu ém e creio que é também, que administrem bem um negócio que é de todos nós.
uma das melhores disposições baixadas pelo nosso partido. E penso Aqui não há nenhum trabalhador que não tenha a consciência
assim porque, por termos n ós a obrigação de levar a cabo e reali- real do que está fazendo e por que o está fazendo” (p. 71). Aqui os

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1 COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

planos económicos descem aos centros de produ ção. Os trabalha ¬ como o faz. Por isso há a explicação que já lhe dava. Sofremos, e
dores os discutem, os analisam, os aprovam. Se fazem sugestões, agora estamos construindo para nós mesmos” (p. 75). “ Depois
modifica- se algo que possa estar incorreto ou se esclarece algo que triunfou a revolução, incorporamo-nos em todas as tarefas.
que n ão fora entendido. Isso é o concreto. Isso é poder. As leis, Mas havia muitas coisas que desconhecíamos: o que era uma re¬
igualmente. Agora nós estamos discutindo a nova constituição volução socialista, 0 que isso significava... Continuamos traba ¬
socialista de nossa república. Discute-se aqui na fábrica, e os tra¬ lhando duro, porém ao mesmo tempo tratamos de seguir
balhadores dão contribuições. Imagine, os que fizeram o proje ¬ .
superando-nos ( ..) A nossa linha fundamental é a superação, por ¬
to... é a um nível elevado. No entanto, desce aos centros para que que assim podemos participar mais ainda.” (p. 75.)
os trabalhadores, o povo, dêem a sua contribuição à constituição. É óbvio que esta excursão deixou muitas perguntas sem
Aqui se discute tudo, todas as leis. Cada vez que a revolução dita respostas. Parece claro, não obstante, que a classe trabalhadora
uma lei, vem aqui aos centros. Se fazem as sugestões e inclusive enfrenta, de fato, as tarefas construtivas que resultam de sua
pode haver modificações. Apesar do nível que possuem nossos condição de classe revolucioná ria. Os trabalhadores n ão usam
companheiros da direção nacional, tornaram-se iguais e acolhem nem precisariam usar 0 conflito para defender- se, proteger se-
essas contribuições. Essa é a grande e rica experiência que nós e afirmar-se. Eles est ão empenhados em uma luta mais ampla,
temos como revolucionários. Sentimo -nos realmente como do ¬ na qual empregam todas as formas sociais construtivas de so ¬
nos de nosso destino.” (p. 72.) No que se refere às relações da ciabilidade, de cooperação e de solidariedade. Deste â ngulo, 0
administração com o sindicato, um administrador afirmou: “ Não homem novo e a sociedade nova passaram de marco utópico
existe nenhuma discrepâ ncia com o sindicato. Sempre nos reuni ¬ do “ idealismo revolucioná rio” a produtos e fatores interde ¬
mos, conversamos para ver todos os problemas de um ponto de pendentes de uma nova situaçã o hist ó rico- social. Exprimem e
vista administrativo, do ponto de vista do bom ou mau rendi¬ fazem parte de prá ticas coletivas concretas, que redefinem 0
mento. Nós temos um conselho com os dirigentes da fábrica uma significado humano da revolu çã o. Ou seja, na medida em que
vez por mês e se em algo falha a administração, aí se fazem as uma “ revolu ção para os trabalhadores” se transforma em uma
admoestações: como devemos atuar, como devemos tratar o tra ¬ revolu ção dos trabalhadores, pelos trabalhadores e para os tra ¬
balhador e recolhemos as sugestões, se há alguma. Por exemplo, o balhadores, o que era uma aspiração de chegar ao socialismo
sindicato é o poder que move os trabalhadores para toda a ativida ¬ passa a ser o socialismo em marcha e dele está brotando uma
de que há neste país, est á constantemente captando as preocupa ¬ nova Cuba, Cuba socialista .
ções dos trabalhadores e nos despachos com o administrador coloca
essas preocupações dos trabalhadores” (p. 74). Um administrador
negro, ao lado de reminiscências amargas, salientou: “ Sofri mui¬
to pessoalmente. E isso se passou com a maioria do povo. Não é
possível esquecer, está ainda fresco na memória. Por isso, a parti¬
cipa ção de todo o povo nas tarefas da revolução se dá em uma
forma tal que espanta aos demais países. Há países que duvidam
que, na verdade, este povo se mova para os trabalhos voluntários
ESTADO REVOLUCION Á RIO
E PODER POPULAR

A esfera na qual as origens históricas e políticas da revolu ¬


ção pesaram mais sobre os seus próprios ritmos, rendimento e
criatividade foi a do poder estatal. O aparato estatal da rep ú bli¬
ca- satélite não possu ía eficácia administrativa, pol ítica e legal,
era estruturalmente corrompido, não merecia confiança do povo
e, com a opção pelo socialismo, tornara-se completamente obso ¬
leto. Ele mal serviu para alguma coisa na fase inicial ( mesmo
sob o governo Urrutia). Ao converter- se em equivalente do par ¬
tido da revolu ção, o exército rebelde erigiu -se no “ Estado den ¬
tro do Estado” , servindo como catalizador das decisões políticas
de maior alcance e, também, como n ú cleo infra-estrutural das
funções governamentais.
Os especialistas costumam falar de “ ausência” ou de “ falta”
de institucionalização, com referência aos aspectos políticos da
revolução. Trata-se de uma abordagem mecanicista e confusa.
Qual é a institucionalização de que deve partir um governo re¬
volucionário que se declara socialista e tenta caminhar na dire ¬
ção do socialismo? As instituições básicas do Estado preexistente
têm de ser destru ídas. Qualquer que seja a posição teórica toma ¬
da diante da questão do Estado, uma coisa é óbvia: o Estado
democrático burguês precisa ser destru ído. Ora, o desmantela-
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA |

mento do aparato estatal herdado tinha de ir muito mais longe, nado como forma polí tica de dominação - dependia do próprio
na medida em que ele preservava estruturas coloniais ou avan ço do socialismo na sociedade cubana. Nesse sentido, 0 Es ¬
neocoloniais de caráter antinacional e antidemocrático. De ou ¬ tado socialista teria de ser gerado não pelo governo revolucioná¬
tro lado, a revolução tinha de gerar sua legalidade sem contar rio, mas pela capacidade do povo de pôr em prá tica 0 socialismo:
com os recursos típicos, que resultam de um longo movimento ele teria de nascer da consistência adquirida pela compulsão igua ¬

popular revolucioná rio e de um partido da revolu ção anteriores litá ria na massa do povo e pela correspondente universalização
à tomada do poder. Em outras palavras, para falar - se de da consciência revolucionária. Em outras palavras, um nível mais
institucionalização, em tal caso, é preciso concebê-la como um complexo de institucionalização política dependia da passagem
processo - e um processo de criação de institui ções novas. do “ socialismo desde o poder ” ao “ socialismo de baixo para
Ora, isso o governo revolucionário fez desde o início. Foi cima” . O governo revolucioná rio poderia abreviar essa passa ¬
montado, com relativa rapidez, todo o arcabou ço governamen ¬ gem, incentivá-la e fornecer, na medida em que ela se configu¬
tal, que permitiu a implantação dos planos, a reestruturação dos rasse, todo 0 apoio necessá rio para que ela produzisse uma
serviços públicos e o desempenho das funções governamentais, “ mudança qualitativa” do Estado. O que ele n ão podia fazer era
nas esferas político-legal, administrativa e militar. Esse arcabou ço secretar, como se fosse a sociedade cubana, as condições exter ¬
poderia ser propriamente designado como governo revolucio ¬ nas, as instituições e as estruturas prontas e acabadas de um Es ¬
ná rio e está para o Estado revolucionário na mesma relação que tado socialista.
o exército rebelde esteve para ele, a de embrião. Ele pressupu ¬ Essa possibilidade de contribuir para um salto da revolução
nha muitas instituições, aceitas pelos revolucionários e pelo povo constitui um produto histórico. O governo revolucioná rio acu ¬
cubano, e essas instituições, apesar da improvisação sistemá tica mulou forças e experiências ao longo da década de 1960. A socie ¬

e da excessiva tendência à estatização, demonstraram maior efi ¬ dade cubana, por sua vez, adaptou-se com enorme vitalidade
cácia que as instituições da república velha. Portanto, ocorreu aos requisitos econ ómicos e sociais de uma economia socialista,
uma ampla e criativa institucionalizaçã o, contida dentro dos da educação socialista ou do ideal socialista de solidariedade
marcos da transitoriedade, porque o próprio governo revolucio ¬ humana. Nos dois níveis apareceram sinais de que o governo
ná rio era transitório. Mesmo o excesso de centralização consti ¬ revolucionário preenchera sua tarefa histórica e deixara, por isso,
tu ía um processo revolucion á rio e de transição. E a principal de responder às exigências políticas da situação. Foi necessá ria
tarefa política do governo revolucioná rio, depois de garantir sua a crise vinculada ao “ malogro” da safra de 1970 para que o go ¬
legitimidade como emanação da vontade da maioria do povo verno entendesse aquelas exigências e procurasse despertar na
cubano e de assegurar a vitória da revolu ção, definia-se na son ¬ população um desejo profundo de mudan ça, de revolução den ¬
dagem e na descoberta das formas políticas que o poder da maio ¬ tro da revolução (agora, para formar as estruturas políticas de
ria deveria assumir posteriormente, em uma fase mais avançada um regime socialista). A revolu ção atinge, aqui, sua etapa mais
de transição para o socialismo. construtiva, na qual ela própria suscita 0 fim do governo revolu ¬
O aparecimento de condições externas, de instituições e de cionário, liga-se “ para baixo” a todos os estratos do povo e assu ¬

estruturas políticas estáveis - n ão definitivas, porque sob o socia


¬ me um cará ter democr á tico - popular, institucionalizando- se
lismo isso não existiria e porque o Estado é em si mesmo conde- como poder popular organizado. Portanto, esta é uma d écada de
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
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DA GU E AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ

colheita de frutos mas, também, de lançamento dos pilares do volu ção, estejam trabalhando mais regularmente depois da re ¬
Estado socialista e de conquista do futuro. volu ção ou não, [sejam] qualificados, semiqualificados ou n ão -
Como a ú ltima parte da unidade didá tica anterior já esclare¬ qualificados, [estejam] satisfeitos ou não com seu trabalho,
ceu como se operou, na sociedade cubana, a irradiação das idéias-
chave do pensamento revolucionário da vanguarda para a massa,
I [sejam] homem ou mulher, negro ou branco, e de qualquer gera ¬
ção, a maioria dos trabalhadores est á com a revolução ”
e qual é a consistência da consciência revolucionária no homem ( Revolutionary politics and the Cuban working class, citações extraí ¬
comum, aqui a discussão poderá ser limitada aos temas mais es¬ das das pp. 277 e 284). Todavia, há duas coisas a distinguir. O
pecíficos. Adotei um esquema expositivo simples, pelo qual será potencial de mobilização de Fidel Castro e da revolução; a for ¬
possível examinar, nas duas primeiras aulas: a trajetória percorri ¬ ma de articulação da classe revolucionária à atividade (e à pro ¬
da pela revolução para chegar à organização do poder popular; e du ção) política do governo revolucioná rio. Havia um abismo
os principais aspectos da distribuição do poder entre os organis¬ entre esses dois elementos. Em conseqúência, uma das tarefas
mos do Estado e outras entidades políticas ou sociais. Na última mais urgentes deste governo consistia em converter sua extraor ¬
aula será debatido o drama político da revolução cubana, quanto dinária capacidade de mobilização maci ça das massas em fator
à sua natureza e perspectivas. Em resumo, pretendo desenvolver de participação política efetiva dos trabalhadores.
0 seguinte esquema: Io revolução socialista e poder popular; 2° a
Essa articulação era politicamente essencial, porque a legiti ¬
rede do poder; 3o socialismo ou comunismo? midade do governo revolucioná rio n ão procedia da situação de
fato, de sua capacidade de subjugação de toda oposi ção real ou
1 - Revolução socialista e poder popular potencial. Ela emergia do apoio e do consenso da maioria, mais
As rela ções das classes trabalhadoras com a revolu ção já fo ¬ que isso, do engajamento dos trabalhadores à revolu ção e das
ram discutidas acima, nos v á rios momentos da trajetória desta relações de reciprocidade, daí resultantes, deles com 0 governo
ú ltima e sob seus diversos aspectos. Não é o caso, portanto, de revolucioná rio. Na prática, a revolu ção e o governo revolucio ¬
retomar o assunto. A tí tulo de recapitulação, gostaria de lem ¬
ná rio se afirmavam como uma appartenance coletiva dos traba ¬
brar o apanhado de sí ntese, feito por M. Zeitlin (aqui, note-se, lhadores e eles deviam traduzir em ações concretas 0 apoio,
refere-se aos materiais da pesquisa de 1962): “ A revolução em consentimento e engajamento (pela atividade nas organizações
Cuba é uma revolu ção das classes trabalhadoras; os trabalhado ¬ revolucioná rias de massas, como os Comités de Defesa da Revo ¬
res nas cidades, nos centrais açucareiros e no campo são sua base lu ção; pela responsabilidade no trabalho; pela aceitação de en ¬
social. (...) Quase independentemente dos controles realizados, cargos importantes para a coletividade, em papéis como os de
ou de que variáveis se considere, a maioria dos trabalhadores dirigente sindical, militante do PCC etc., ou em organizações
em cada subgrupo (em muitos casos uma maioria de dois terços sociais como a CTC, pela participação de com ícios de significa ¬
ou mais) são revolucioná rios. Seja nas pequenas empresas e co ¬ do político local ou nacional etc.). Tal padrão de legitimidade
munidades, seja nas grandes, seja os filhos de trabalhadores ur ¬ exigia a mobiliza ção estruturada e a participação consciente, um
banos ou de trabalhadores em centrais a ç ucareiros, de Estado de solidariedade ativo e permanente da classe revolucio ¬
camponeses e proletá rios agrícolas ou das famílias de ‘classes
ná ria em face da revolu ção e do governo revolucioná rio (ou vice¬
médias’, sejam eles empregados ou desempregados antes da re- versa). Portanto, nesse contexto político o próprio castrismo
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desaparecera, apesar de sua importâ ncia subliminar, molecular democrá tica e bastante rica, no período pr é- revolucion á rio, e a
e histórica; e a necessidade de estruturar a mobiliza çã o e de ausência de um partido da revolução com laços orgânicos nas
conscientizar a participação correspondia à emergê ncia de uma classes trabalhadoras antes da conquista do poder constituíam
forma política socialista de legimitidade. Os trabalhadores pre ¬ I um fator limitativo insuperável. Não havia um ponto de partida
cisavam avançar juntos com a vanguarda revolucion á ria e esta, “ sólido” na estrutura política da situação histórica. Era preciso
por sua vez, não podia falhar. Por isso, a qualidade da mobilização extrair da “ crista política” desta situação uma solu ção política
e da participação da massa se impôs em primeiro plano e exigiu adaptativa, que fosse suficientemente elástica para integrar pelo
que a mobilização espontâ nea e a participação t ácita fossem lar ¬ I menos as correntes revolucion á rias consagradas e bastante ex¬
gamente substitu ídas ou suplementadas pela mobiliza çã o e pela clusiva para eliminar riscos de dispersão, de oportunismo ou de
participa ção orgânicas. Superados o antigo regime, o capitalis ¬ consolidação reformista. A solução natural (e, por conseguinte,
mo reformado e a fase heroica do combate à contra-revolu çã o, a mais fácil) consistia em unificar as várias organizações revolu ¬
nã o havia o mesmo lugar para as duas primeiras modalidades de cionárias provadas na luta contra Batista e propensas a defender
manifestação das massas. É preciso insistir sobre isto, para ter ¬ o cará ter socialista da revolu çã o. Assim se constitu íram as Orga ¬
minar com certas confusões sobre o castrismo ou a natureza do nizações Revolucion á rias Integradas ( ORI ), compostas pelo
regime político existente em Cuba. Não h á mais condições polí ¬ Movimento 26 de Julho, Partido Social Popular (o antigo parti ¬
ticas para a eclosão de um populismo ( mesmo í ntegro e genui ¬ do comunista de Cuba ) e Diretório Revolucioná rio (ex-Diretório
namente democr á tico ). Nem para que Fidel Castro atue em Estudantil Revolucion á rio). Ao que parece, Fidel Castro falou
fun ção de algum tipo de paternalismo ou de caudilhismo (os pela primeira vez dessas organiza ções (em 26 de julho de 1961)
analistas que procedem a descrições orientadas neste sentido depois que elas se achavam em plena atividade. Sua constitui ¬
talvez não entendam o que est á ocorrendo graças à implantação ção só foi divulgada em 8 de mar ço de 1962; sua direção nacio ¬
do socialismo ). O que tem realidade é um poder real da maioria, nal era composta de 13 membros do 26 de Julho, 10 do PSP e 2
o qual pode ser identificado com Fidel Castro, representado por do DR. Em termos tá ticos, a absorção do PSP respondia à ne ¬
ele etc.; e esse poder real é um poder da maioria, pela maioria e cessidade urgente de aumentar os quadros administrativos, as
para a maioria, que só pode objetivar - se em uma pessoa em ter ¬ alternativas pol íticas e as potencialidades de mobilização orgâ ¬

mos condicionais e institucionais. Ou isso, com as exigê ncias nica dos trabalhadores pelo governo revolucion á rio ( com esse
hist ó ricas de conscientização, organização e institucionalização
( por enquanto a nível partidário) das manifestações coletivas da
I espí rito, a proposta partira de Che Guevara). Em termos estraté¬
gicos, a solu ção visava a dois objetivos (claramente delineados
maioria. Ou a ditadura do proletariado como um sucedâ neo das por Fidel Castro). Primeiro, produzir uma unificação t ã o rápida
outras formas tradicionais de ditadura (com o ditador e sua claque quanto possível das for ças pol í ticas da revolu ção. J á que era im -
concentrando todo o poder estatal em suas mãos). Por aí se evi ¬ j praticável acelerar a histó ria “ por baixo” , por falta de liames
denciam as confusões que precisam ser evitadas e que a presente institucionais entre a classe revolucion á ria e a vanguarda revo ¬

descrição põe de lado. lucioná ria no poder, cumpria avan çar depressa na articulação
Esses problemas se colocaram agudamente em 1961 e 1962. das for ças revolucioná rias que podiam agir, construtivamente,
A inexistência de uma atividade político-partidá ria realmente através do governo e das ORI, de cima para baixo. Segundo,
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I COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

abrir caminho, com apoio nas ORI, para a constituição do Parti ¬ revolucioná rios, mas um exército de revolucioná rios domesti ¬
do Unido da Revolução Socialista (PURS), o partido da revolu ¬ .
cados e amestrados.” ( Fidel Castro, apuá M Harnecker, Cuba,
ção. Embora anunciado em discurso de Fidel Castro de 2 de p. 17.) Não se avançava na direção da “ ligação com as massas” e
dezembro de 1962, sua atividade marcante se deu de 1963 em do “ centralismo democrá tico” : “ As ORI perdem sua fun ção de
diante. Ele devia suprir a carência polí tica básica da revolução motor ideológico e de controle de todo aparato produtivo atra ¬

nesse período, institucionalizando as atividades políticas revo¬ vés desta fun ção e passam a ser um aparato administrativo; nes ¬

lucioná rias no plano partidário e engendrando as relações orgâ ¬ tas condi ções, os chamados de alerta que deviam vir das
nicas entre a base social, os vários organismos do governo províncias, explicando a série de problemas que aí existiam, per¬
revolucionário e a direção global do processo revolucioná rio. -
diam se, porque aqueles que deviam analisar o trabalho dos fun ¬

Essa tentativa de “ ultrapassar ” a história acabou sendo frus ¬ cionários administrativos eram precisamente os dirigentes do
trada, em decorrência dos fatos. Mas, ela teve uma importância n úcleo que cumpriam uma dupla fun ção de partido e de admi ¬

marcante e, por assim dizer, estrutural na sedimentação dos prin ¬ nistra çã o p ú blica ” ( E . Che Guevara, “ O partido marxista -
cípios políticos da revolução. Como antes, em que esta excluiu a leninista” , Obra revolucionária, p. 568).
hegemonia burguesa, agora ela se voltou contra uma hegemonia A questão do recrutamento dos militantes, 0 problema-chave
“ micro-facciosista” ou o sectarismo do principal dirigente do nesse momento, se repunha em toda a sua gravidade. Além da per¬
PSP (An íbal Escalante). Os fatos são bem conhecidos (veja- se, gunta - em quem confiar ? - torna-se transparente que o governo
principalmente, J. O’Connor, The origins of socialism in Cuba, pp. revolucioná rio devia romper limitações decorrentes de práticas
289- 292, e K. S. Karol, Guerrillas in power, pp. 233-249). A velha políticas que perderam significado revolucionário no novo contex¬
guarda do PSP tentou monopolizar gradualmente o controle de to histórico. “ As demais organizações [o 26 de Julho e 0 DR] o que
organiza ções revolucioná rias de massas (como os Comités de eram ? Eram organizações com uma velha militância vertebrada?
Defesa da Revolu ção, os Jovens Rebeldes, a Federação de Mu ¬ Não, eram organizações com grandes simpatias de massas, eram
lheres Cubanas etc.), de sindicatos, de entidades estatais (como uma torrente desbordando de massas. Isso era 0 26, isso eram as
o JUCEI ou o INRA; mas também outros órgãos de administra¬ demais organizações. Se nós íamos fazer uma organização, uma
ção local e regional); e das ORI em seus vá rios níveis. Fidel Cas ¬ integração, e não integramos as massas, não estaremos fazendo ne¬
tro denunciou a tentativa (discursos de 13 e 26 de março de 1962) nhuma integração, estaremos caindo em um sectarismo como aquele
e adotou medidas que conduziram a um processo de expurgo. em que caímos.” ( Fidel Castro, apud M. Harnecker, idem, p. 18.) O
Os fatos demonstraram, pois, a inviabilidade do projeto e as ORI saldo positivo: a experiência falhara, mas mostrara que a mobilização
foram dissolvidas. A penosa lição que ficou: um partido da re ¬
orgânica das massas e o recrutamento de militantes eram realida ¬

volução, por mais necessário que seja, n ão pode ser improvisa ¬ des que precisavam ser enfrentadas com critérios específicos (em
do. A democracia proletá ria exige algo mais que a unificação termos históricos, da revolução e de Cuba). Impunha-se caminhar
pela cú pula de movimentos revolucion á rios e, apressada demais, para as soluções mais complexas e dif íceis, também as ú nicas ver
¬

esta fomenta riscos de deterioração burocrá tica. “ Est ávamos or ¬ dadeiramente revolucionárias.
ganizando ou criando uma camisa- de-força, um jugo, compa¬ O PURS aproveita as duas lições. Ele foi estruturado como
nheiros. Não estávamos promovendo uma organização livre de um típico partido revolucioná rio de vanguarda, que recruta nas
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA |

bases ( no caso, os trabalhadores) e seleciona ou promove de acor ¬


tre os trabalhadores e pelos trabalhadores. De outro, organizava
do com os méritos. As duas citações seguintes, tomadas de dis ¬ um processo de cefalização, pela qual a revolução estabelecia um
cursos de Fidel Castro, de 1962, e de Che Guevara, de 1963, circuito normal de peneiramento, mobilidade e circulação dos
esclarecem o assunto (ambas extraídas de M. Harnecker, op. cit., I recursos humanos que a classe revolucion á ria estava em condi¬
pp. 18 e 20, respectivamente): “ agrupar dentro do partido o me ¬ ções de proporcionar, de imediato e a m édio prazo. Em termos
lhor do povo, o melhor da classe trabalhadora (...). Isto é, o pri ¬ da dinâ mica da ditadura do proletariado e da correspondente
meiro requisito para ser do n úcleo é ser um ‘trabalhador exemplar’. democracia da maioria, o PURS aprofundava o n ível histó rico e
Além disso, deve aceitar a revolução e ter uma ‘vida limpa’ politi ¬ 1 o significado pol ítico da revolu ção.
camente” . O Che põe em relevo a amplitude com que o critério N ão obstante, o PURS não conseguira ir além do umbral da
foi empregado. “ Como vocês já comprovaram [ele falava para um unificação ideológica, o que traduzia, de fato, um limite da re ¬
auditório de trabalhadores], mais ainda, como vocês já aprova¬ volu ção. Nessas condições, sua contribuição sofria a interferên ¬
ram, os membros do Partido Unido da Revolução Socialista que cia de duas debilidades. Ele era demasiado seletivo, de um lado,
saem deste centro de trabalho são homens que contam com o apoio não por motivos intrínsecos ou por causa dos crité rios de recru ¬
unâ nime dos companheiros de trabalho. Os n úcleos que se for ¬ tamento e promo çã o . Em virtude do modo pelo qual o
mam neste momento, as organizações do partido, contam desde “ vanguardismo ” se manifestava naquela ocasião, ele apertava
agora com todo o apoio necessário, e abandonam o trabalho sub ¬ demais as malhas pelas quais deviam atravessar os “ melhores
terrâneo, quase conspirativo, que durante um bom tempo foi o entre os melhores” . Aliás, M. Harnecker dá uma informação
que deu a tônica ao trabalho de nosso partido dirigente. (...) De ilustrativa : em uma fábrica têxtil, de 4 mil trabalhadores, só 197
toda essa penumbra em que se vivia, desses n úcleos clandestinos, i foram eleitos trabalhadores exemplares. O PURS “ n ã o cresce,
eleitos de forma mecâ nica, considerando sem an á lise suficiente depura-se” ( idem, p. 19). Ele n ão concorria, por outro lado, para
as qualidades dos companheiros, passa-se a uma nova forma es ¬
a elimina ção e a supera ção das contradições ideológicas que sub ¬
trutural, na qual são as massas que decidem no primeiro escalã o sistiam dentro da revolução. Servia-lhes, ao contrário, como caixa
quais devem ser os trabalhadores exemplares propostos como j de resson â ncia e veículo de propaga ção, animando -as ou forta ¬
membros do partido. (...) Quem aspire a ser dirigente tem que lecendo-as. Fidel Castro mencionava esse aspecto, no discurso
-
poder confrontar se, ou melhor dito, expor - se ao verídico das que marca a fundação do Partido Comunista de Cuba (3 de ou ¬
massas e ter confiança de que foi eleito dirigente ou proposto como tubro de 1965): “ Mas outra batalha não menos difícil era preci ¬

dirigente porque é melhor entre os bons, por seu trabalho, seu so travar ainda: a batalha contra os preconceitos; a batalha contra
espírito de sacrifí cio, sua constante atividade de vanguarda em o anticomunismo, semeado durante dezenas de anos por todos
todas as lutas que o proletariado deve realizar cotidianamente para os meios possí veis. E essa batalha final (...) a demos juntos os
a construção do socialismo.” revolucioná rios de todas as procedências! Coordenados primei ¬
No conjunto, dava- se um considerável salto qualitativo. A ro e unidos depois; mas unidos nos princí pios do marxismo -
antiga vanguarda revolucionária aceitava e incentivava o seu leninismo” ( apud M. Harnecker, op. cit., pp. 21-22).
enquadramento num partido da revolução no qual lutaria om ¬ Em boa linguagem dialética, isso quer dizer que a revolu ção,
bro a ombro com novos dirigentes, recrutados diretamente en- que transcendera à sua ó rbita histórica ao optar pelo socialismo,
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS 275
DA GUERRILHA A SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

6 anos depois forçará a m ão de modo estritamente político para


com a solu ção dos problemas da vinculação do ensino com o
impor a primazia da consciência comunista e da simultaneida ¬
trabalho). O Estado revolucionário, como formação política, é
de dos dois estágios. Ainda é uma aceleração da hist ória no me¬ perigosamente negligenciado. A presunção tácita dominante é a
lhor estilo da “ revolu ção desde o poder ” . Só que, agora, com
de que a revolução conta com tempo para resolver os seus pro ¬
base na retaguarda política de um governo revolucion á rio con ¬
blemas nessa frente. Sabia-se que havia uma cirurgia penosa a
solidado, e, acima de tudo, com vistas a organizar o partido da
ser feita. Mas acreditava-se, também, que o melhor seria deixá-
revolução em moldes estritamente marxistas -leninistas. O PCC
la para mais tarde, quando existiriam condições econ ómicas mais
surge, no contexto histó rico, ainda como uma tentativa de re¬
vantajosas para desatá-la. Ora, o Estado revolucionário n ão era
solver, para sempre, os dilemas postos pela mobilização e parti ¬
mais que um conglomerado. Isso iria tornar-se transparente, de
cipação das massas de uma forma orgânica na constru ção do
maneira dram á tica, pela crise da safra de 1970, que não foi uma
socialismo. Como a solução anterior, esta também se limitava ao
crise agrícola, mas pol ítica e administrativa. Ela pôs a nu que o
â mbito restrito de uma institucionaliza ção segmentada: a que
Estado revolucion á rio não existia como tal e que a tarefa mais
vem de um partido socialista que corta, não obstante, horizontal
urgente da revolução consistia em trabalhar na construção des¬
e verticalmente a sociedade cubana. Como as soluções anterio ¬
se Estado. Ainda aqui, apesar da farta contribuição que dera para
res (das ORI e do PURS), também se tinha em mente os proble¬
que a crise se tornasse tão devastadora, foi Fidel Castro que teve
mas da “ ligação com as massas” e do “ centralismo democrá tico” .
a honestidade e o desassombro de levar o desmascaramento da
Só que, em 1965, o governo revolucionário pensava ter reunido crise para o plano do discurso político revolucioná rio ( não como
todas as condições necessá rias para que a experiência com o PCC
simples autocrítica, como implica o t í tulo dado a um dos dis ¬
transcorresse em um patamar mais frutífero, ao mesmo tempo
cursos, publicado em português). Então se desencadeia o pri ¬
de aceleração da revolução e de aceleração da história. Cuba já
meiro grande esforço global para erigir em Cuba um Estado
-
criara muitas das pré condições da existência de um partido da
socialista. O que quer dizer que a revoluçã o demorou quase 15
revolu ção marxista-leninista e este, contando com semelhante
anos para passar da problem á tica da organização do partido para
ponto de partida, poderia muito bem criar as outras. Com isso,
a problemá tica da organização do Estado. Essa demora só não
as relações entre o PCC, o governo revolucionário e a sociedade
lhe foi fatal porque ela contou com uma vanguarda invulgar, um
cubana poderiam responder às exigê ncias fermentativas do
bom desempenho do governo revolucionário, o apoio decidido
centralismo democrá tico e do comunismo como o objetivo his ¬
do povo, os efeitos autoprotetores do isolamento imposto pelos
tórico de uma verdadeira revolução socialista.
estadunidenses e uma segurança económica relativa graças ao
Os últimos 5 anos da década de 1960 encontram Cuba aper ¬
comércio com a Uni ã o Soviética e outros países socialistas.
tada, simultaneamente, por dois lados. A aceleração do desen ¬
O relatório de Fidel Castro ao Io Congresso do Partido Comu ¬
volvimento económico prevê o seu pico mais alto, na preparação
nista de Cuba contém uma condensação das principais críticas
da safra de 1970. A aceleração da revolução, por sua vez, des ¬
que ele endereçou às “ tendências negativas” que se cristalizaram
prende- se do solo histórico e gravita no terreno da ideologia
de 1965 em diante. Como ela é suficiente para localizar os proble
¬

pura ou da doutrinação política (resvalando daí para a a ção re ¬


mas que interessam ao presente debate, irei limitar-me a esta lon
¬

volucioná ria de forma concreta, como se poderia exemplificar


ga transcrição. “ Desde 1965 começam a manifestar-se certas
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTA OVOS DA GUERRILHA AO SOCIALI5MO A REVOLUÇÃ O CUBANA | I 277
confusões entre as funções do partido e o Estado. Entre 1967 e década de 1960 se reformulou, aparecem no início da década de
1970 o partido traslada seu centro de atenção para a administra¬ 1970 e, especialmente, no grande experimento pol ítico de
ção e muitas vezes a substitui. Os sindicatos deixam de represen ¬ Matanzas, em 1974, sobre a organização do poder popular. Em
tar seu papel e, especialmente, a partir de XII Congresso de 1966 seguida, em 1976, o que fora um teste político agora é aplicado
-
desenvolve se o Movimento de Vanguarda, que na prática substi ¬ em escala nacional (sobre o assunto, v. Sobre los órganos del poder
tui o movimento sindical. O papel das organizações de massas em popular, resolu çã o do Comit é Central do PCC, passim, M.
geral se debilita. (...) No desenvolvimento destes problemas teve Harnecker, Cuba, pp. 24-40 e C. Bengelsdorf, “ A large school of
influência o fato de que nosso partido, ainda que contasse com government” , pp. 3-18). O Estado revolucionário afinal se es¬
uma militância combativa e entusiasta, que crescera desde sua trutura, assentando- se sobre uma imensa base popular organi ¬
fundação das três organizações que uniram suas forças, e no qual zada e exprimindo o poder do povo condensado no vértice. O
fora criado em 1965 o comité central, adoecia de faltas em seus critério do melhor entre os melhores reaparece, porém, na esco ¬
n íveis de direção. Depois da crítica ao sectarismo, grande parte lha direta dos candidatos à representação popular e à eleição; o
das energias foram consagradas à estruturação e ao crescimento poder de representação, contudo, não d á origem a um mandato
da base, mas o aparato do comité central virtualmente não existia. pleno; mas faculta ao delegado do povo que proceda à escolha e
(...) Durante anos as atividades do partido foram atendidas pela à elei ção dos delegados ou deputados aos demais níveis do po ¬

secretaria da organização. De fato, o bureau político funcionava der popular. Assim, desdobra- se uma pirâ mide sob controle po ¬

como a máxima autoridade do partido sem que na prática o comi ¬ pular direto no nível municipal e indireto aos níveis provincial
té central exercesse as fun ções que lhe correspondiam. Além dis ¬ e nacional [o assunto voltará a ser considerado na próxima aula].
so, este bureau , integrado por companheiros sobre os quais recaíam O PCC e as organizações revolucioná rias de massa entram em
m últiplas obrigações estatais, atendia somente as questões políti ¬ rela ção flexível com a constituição do poder popular em todos
cas da maior importância e não existia um trabalho rigorosamen ¬ os níveis, mas o risco de uma monopolização automática do po ¬

te sistemá tico para a direção do partido e do Estado.” (“ El desarrolo der real pelo vértice, bem como a prática de uma delegação do
ecónomico de Cuba” , p. 97.) O diagnóstico é conclusivo. Na me ¬
poder popular sem consentimento ficam eliminadas formalmen ¬
dida em que o governo revolucionário concentrou em si todas as te (o que não impede que eles ocorram, de fato). O que importa
funções do Estado e em que o PCC não suplantou a sobrecarga ressaltar, no momento, é a forma piramidal do Estado revolucio ¬

política resultante sobreveio uma pane no motor da revolução. nário e a canalização do poder da maioria de baixo para cima, de
Raul Castro colocou a questão em termos da necessidade de uma modo que a condensação desse poder se processe no último pa ¬
passagem do “ centralismo burocrá tico” para o “ centralismo de ¬ tamar, no qual a Assembléia Nacional se entronca diretamente e
mocrático” , o que revela como foi pequeno o terreno real, ganho de modo permanente com a constituição e o funcionamento dos
entre 1965 e 1970 através da reorganização partid ária, e explica órgãos centrais do governo.
por que o poder popular se repôs em função de uma ótica polí tica O que se deve destacar é que a revolução superou sua relutâ n ¬

mais audaciosa e inclusiva.


Os primeiros resultados dessa efervescência, pela qual a re¬
-
cia em moldar um novo Estado. Passa se da institucionalização
mediante o partido da revolução para a própria organização do
volução voltou às suas origens e o idealismo revolucionário da poder popular dissociada das funções orgânicas diretas do parti-
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

do da revolu ção) e a institucionalização mediante o Estado revo¬ nados com o desenvolvimento económico, a defesa militar e as con ¬
lucionário (concebido literalmente como a maioria no poder). Não dições subjetivas da solidariedade revolucionária dos trabalhado¬
se sabe até que ponto essa forma política da democracia popular res. Em suma, antes teria sido cedo. Isso não responde a nada. A
tenta corresponder revolucionariamente à concepção socialista da tarefa essencial de qualquer governo socialista, depois da conquista
passagem gradual à “ administração das coisas” e à “ extinção fi¬ do poder, consiste na organização de um Estado revolucionário so¬
nal” do Estado. Todavia, em cada um dos níveis do poder popular cialista. Em Cuba, essa tarefa foi subestimada e adiada por uma
este possui uma capacidade autêntica de “ administração das coi¬ razão evidente. Os revolucionários custaram para entender que a
sas” e de controle coletivo dos vários problemas da comunidade. “ institucionalização da revolução” não teria de decorrer, apenas, da
Na exposição que fez em Matanzas, em 22 de agosto de 1974, Raul organização da força revolucioná ria de vanguarda. Não houve ne ¬

Castro definiu os contornos do Estado democrá tico popular em nhum erro em dar tanta importância ao problema do partido da
que se converteu o Estado cubano gerado pela revolu ção: “ As ins ¬ revolução. O erro veio do fato de que esse problema não tenha im ¬
tâncias inferiores estão subordinadas às superiores mas atuam com plicado uma atenção mais cuidadosa e mais ampla da relação entre
autonomia dentro dos marcos legais e normativos que se estabe ¬ partido e Estado, nas condições existentes e em termos dos princí¬
leçam e n ão devem estar submetidas à tutelagem constante e pios socialistas das funções do Estado no período de transição. De
limitante das instâncias superiores. Este mecanismo, além de tor ¬ outro lado, parece claro que o problema do Estado ganhou priori ¬

nar mais ágeis, operativas e conformes às exigências de momento dade porque a crise de 1970 ergueu redondamente a questão da
e de lugar as decisões a tomar, libera as instâncias superiores e, legitimidade do regime. Nesses 20 anos, a revolução avançara tan ¬

sobretudo, os organismos nacionais de uma pesada e volumosa to, dentro do povo e da massa dos trabalhadores, que não era mais
carga de tarefas administrativas e correntes que, na prá tica, não possível segregar no topo a responsabilidade da vanguarda e, por
-
podem realizar devidamente, vendo se obrigados a não atendê- conseguinte, do governo. Desse ângulo, essa crise revelou que Cuba
las em grande medida, e que, por outro lado, os impedem de já reunia todas as condições para a forma política ditadura do pro ¬
desenvolver tarefas de responsabilidade de sua verdadeira com ¬ letariado e democracia da maioria ou popular.*
petência no que se refere à normativização, controle e inspeção
das atividades que atendem. (...) Nosso Estado tem sido e é, por ¬ É preciso ciitcnder-se, claramente, que a ditadura do proletariado constitui-
tanto, um Estado essencialmente democrá tico, um Estado dos se, de modo imediato e direto, a partir da opção pelo socialismo (então, a
democracia armada sofre uma transformação política, convertcndo-se a
humildes, pelos humildes e para os humildes; um Estado de to ¬
dos e para todos os trabalhadores. Do que se trata, pois, é de aper
-
ditadura guerrilheiro popular em expressão da hegemonia das classes
¬ trabalhadoras e das massas destitu ídas sobre o poder revolucion á rio, conforme
feiçoar o nosso Estado, de dar -lhe uma estrutura completa e já foi visto antes). Não estamos, pois, diante de um caso no qual “ um govemo
definitiva, de aperfeiçoar a nossa democracia” ( apud M . Harnecker, popular atua em favor dos trabalhadores c de suas reivindicações” . Poré m , de
um caso de “ detenção revolucionária do poder do Estado” . Sobre esta questão,
op. cit., p. 29 e 35). -
dc evidente importância analítica e política, veja sc E. Balibar Sobre la dictadura
Por enquanto, irei limitar-me à questão: por que a revolução del proletariado, trad , de Ma Josefa Cordero e G. Albiac, México, Siglo Veintiuno
demorou tanto para começar a construir o Estado revolucionário? -
Editores, 1977, esp. pp. 64 65). Porque estou convencido disso, limitei-me a
descrever a trajetó ria percorrida pela instauraçã o da ditadura do proletariado
Muitos insistem numa resposta óbvia, mas que não esclarece nada. cm Cuba e a caracterizar a forma pol ítica que ela assumiu sob poder do Estado
A revolução tinha de resolver, antes, problemas prioritários, relacio- organizado como democracia popular (matéria da aula seguinte).
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COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBAN

2 - A rede de poder dores” e o seu sucedâneo mais definido só aparece em 1965, sem
Os autores que focalizam a emergência da ditadura do prole ¬
conseguir as condi ções que, colocando-o acima das massas e do
tariado da perspectiva da “ ciência política” tendem a ficar con ¬ Estado, o convertessem no fio condutor do processo revolucio ¬
finados à autodefesa da democracia burguesa . Por isso, nário nos dois níveis, unidos por seu intermédio e nas suas mãos.
-
concentram se na questão da arregimentação e deixam de lado a A situação impõe, por isso mesmo, a indagação: como se proces ¬
problem á tica da desagrega çã o do regime de classes e sua sa a coordenação e a condensação das forças revolucion á rias pro ¬

imbricação com o aparecimento e consolidação da democracia duzidas pela desagregação do antigo regime de classes e que
popular como forma política (isto é, com a persistência do Esta¬ entidade orienta a aplicação do elemento político daí resultante
do). Lembremo -nos do que ensina Marx: “ A condição de liber ¬
na constru ção da sociedade nova? Note-se: a desagrega ção do
tação da classe trabalhadora é a abolição de todas as classes, do regime de classes conduz tanto ao abafamento gradativo e à eli ¬
mesmo modo como a condição de libertação do Terceiro-Esta- minação final do antagonismo, pelo qual surgia naturalmente a
do, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os Estados e de relação política dos trabalhadores com a ordem existente, quan ¬
todas as ordens. (...) A classe trabalhadora substituirá, no curso to ao fortalecimento de compulsões igualitárias, de responsabi ¬
do seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma asso ¬ lidade coletiva e de solidariedade humana, por meio das quais a
ciação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá sociedade nova secreta sua própria ordem social. De uma pers ¬
mais poder político propriamente dito, pois que o poder políti¬ pectiva sociológica e do â ngulo socialista, nessa passagem o ele ¬
co é precisamente o resumo social do antagonismo na sociedade mento pol í tico não desaparece: ele muda de cará ter. O que
civil” ( Miséria da filosofia, p. 156). Ora, ainda na fase quente da desaparece é o elemento político associado ao antagonismo de
contra-revolu ção e de criação de muitas condições econ ómicas e classe ou ao conflito antagó nico. A constituição da sociedade
sociais da sociedade nova, que deve substituir o antigo regime, a nova se faz em um marco de autodefesa coletiva, por vezes vio ¬
“ classe trabalhadora” deve manter todo o poder revolucionário lenta e armada (é preciso lembrar a contra-revolução, o cerco
concentrado de que dispõe, ainda que não precise usá-lo para militarizado e a “ guerra santa” imperialista ?). Porém, mesmo
deslocar a classe antagónica, mas, direta e positivamente, neces ¬ que isso não ocorresse a democracia do proletariado, da maioria
site dele para assegurar-se a construção de uma sociedade sem ou do povo, é um ponto de partida. Depois da implantação do
classes. Minha intenção é proceder à descrição que me parece socialismo, na fase de transição imediata, as soluções que sur ¬
correta, apanhar o sistema político que se configura no aqui e no gem valem como arranjos iniciais e na medida em que as desi¬
agora de Cuba em seus principais aspectos, de modo a conside ¬
gualdades subsistentes n ã o engendrem condições externas e
rar: 1. a manifestação do poder como forma de dominação da forças intrínsecas bastante fortes para se converterem em fato¬
maioria; 2. a organização e as funções do governo da sociedade; res de estabilização do “ período de transição” . O que importa
3. controles reativos na transição para o socialismo. ressaltar é que existe um elemento político típico desta fase e o
A primeira questão possui interesse anal í tico preliminar. Ela seu peso estrutural ou dinâ mico - e, portanto, a sua potencia¬
nos põe diretamente diante do dilema político da revolu ção cuba ¬ lidade histórica - constitui uma função do modo pelo qual a
na. Como já vimos de passagem, vá rias vezes, esta não gerou o própria revolu ção lida com esse elemento pol ítico. Ele é, por sua
seu “ grande partido revolucioná rio da vanguarda dos trabalha- forma e por sua essência, construtivo. Mas, ele pode encurtar ou
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

ampliar a duração do referido período, inclusive permitindo que ses elementos,portanto,possui o seu nicho e, de quebra,um modo
o quantum de socialismo alcançado se eleve em crit ério de avalia ¬ de relacionamento recíproco entre si relativamente estruturado.
ção do socialismo e de repúdio aos sacrifícios exigidos pela ace ¬ O que, se a atenção for concentrada no partido da revolução,pos ¬

leração crescente da revolução em busca do comunismo. No caso .


sibilitará uma apreciação óbvia Ele não é, certamente, um parti ¬

cubano aparecem, lado a lado, os dois elementos políticos men¬ .


do da revolução “ conquistador ” ou “ triunfante” Inclusive, a
cionados, pois ainda se enfrenta a desagregação do regime de revolução reserva espaços históricos distintos para cada um des ¬

classes simultaneamente com a construção da sociedade nova. ses agentes históricos e ele conta com um espaço próprio demasia ¬

Tudo isso exige que se proceda a uma análise ampla, que permi ¬ do estreito para as funções que deverá preencher na medida em
ta responder aos problemas teóricos fundamentais (e não ignorá- que a transição para o socialismo se adensar e se intensificar.
los), e que se supere a tendência a atribuir à natureza do Esse esboço é meramente aproximativo. Não obstante, ele
socialismo de acumulação, que é uma abstração, efeitos que re ¬ oferece um quadro de referências estimulante para quem pre ¬

sultam do modo pelo qual os revolucionários - no topo e nas tenda entender a revolução cubana, em seu desenrolar atual e
massas - se acomodam aos dois elementos políticos ou tentam em seu futuro, dentro do seu solo histórico. Nada poder á modi ¬

submetê-los a um controle socialista revolucionário. ficar as conseqiiências recorrentes de evoluções transcorridas .


O que salta à vista, na revolução cubana, são as três experiên
¬ A revolução cubana possui, a esta altura, um perfil definido e,
cias históricas ou evoluções interdependentes que a cercam. Pri ¬ mesmo que certas transformações alterem parte desse esboço,
meiro, a vanguarda revolucionária conquistou o poder, elas não poderão suprimir 0 “ custo político” das mencionadas
monopolizou o governo revolucionário e dirigiu com autonomia evoluções. A par de tudo que não logrou e não poderia lograr, a
total a marcha batida na direção do socialismo, só depois disso revolução ganhou uma intensidade histórica e uma essência
tudo decidiu organizar- se como um forte partido da revolução. humana que fazem parte do património político de Cuba, da
Segundo, as classes trabalhadoras e as populações pobres lança- América Latina e da humanidade. Não penso que ela esteja à
ram- se com entusiasmo ao apoio direto da revolução, defende- mercê das previsões pessimistas e cataclí smicas dos seus adver ¬

ram-na ativamente com o trabalho, a solidariedade política e o .


sários Por ém, mesmo nesse limite, tudo o que venha a ocorrer
risco militar, só depois disso tudo (e inclusive da socialização po
¬ não poderá ir contra essas duas características, que marcam cul ¬

lítica produzida pelas organizações sociais e de massas criadas pelo turalmente (seria melhor dizer: etologicamente) a qualidade da
governo revolucionário) encontraram abertas as portas que con ¬ democracia proletária, da maioria ou popular que a revolução
duziam à incorporação ultra-seletiva no partido da revolução. não desentranhou do presente mas de uma existência multissecu ¬

Terceiro, este partido, em si mesmo, não é um “produto tardio” lar. A reflexão que se impõe: 0 colonialismo e o neocolonialismo
da revolução, mas, ainda assim, ele tem de absorver e coordenar .
alimentaram os seus contrários Estes eram os “ universais” re ¬

duas vanguardas - uma histórica e “ heroica”, que “ fez a revolu ¬ primidos, que se libertaram graças à e pela revolução, refluíram
ção”; outra que, certamente, levará “ a revolução para a frente”, sobre ela e mostraram, assim, a bela face de Cuba ao negar para
proletarizando-a a fundo,porém ainda está em adestramento po ¬ sempre todo o seu passado.
lítico -, precisa vencer mitos e utopias e, em particular, sair da E com fundamento nesta concepção totalizadora, que nos
órbita da história feita para a das fronteiras novas. Cada um des- põe diante dos três conjuntos relativizando - os no todo e salien-
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS A GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CU

ta a especificidade histórica de cada um como força social revo ¬ Bem ponderadas as coisas, isso significa que a revolução ca ¬
lucion ária, que se deveria retomar o velho debate sobre “ quem minhou muito depressa no plano ideológico-utópico e político
controla (ou deveria controlar) o que” na revolução cubana. Pa¬ e que, agora, precisa de tempo para realizar duas coisas. Primei ¬

rece ó bvio que a consolidação da transição para o socialismo ro, gerar um partido da revolu ção capaz de herdar e carregar
exige um partido da revolu ção muito forte. Mas, também é ób ¬ suas bandeiras, servindo de elo entre as pulsações da sociedade
vio que os revolucioná rios históricos ainda constituem a princi ¬ cubana, a dinamizaçã o do emergente Estado democrá tico-po ¬
pal garantia de que nada desviará a revolu ção de suas origens e pular e a consolidação interna da transição para o socialismo.
de suas tarefas políticas. Além disso, é óbvio que os trabalhado¬ Segundo, universalizar uma socialização política socialista con ¬
res, como a classe revolucioná ria, malgrado todos os avanços, sistente no seio da classe revolucionária - 0 ú nico equivalente e
ainda não absorveram plenamente, em sua consciência social e substituto eficaz dos revolucioná rios históricos - e contar as ¬
em suas orientações de comportamento, os valores essenciais do sim, na base social da revolu ção, com os dinamismos e os con ¬
socialismo e do comunismo (o imenso material contido no livro troles pol í ticos que tornam a constru çã o do socialismo
de M. Harnecker sugere claros, aberrações e inconsistências que irreversível.
já deveriam ter sido eliminados: a revolu ção, sob esse aspecto, Ao que parece, a geração dos revolucionários no poder não
incorporou- se à sua natureza humana e humanizou -os politica¬ conta com esse tempo. O que os impele a ter de aceitar uma
mente, conquistou a sua lealdade, mas o socialismo revolucio ¬ derradeira prova de altruísmo esclarecido e de auto - superação,
n ário, em sua variedade marxista-leninista, ainda não conta como na busca das soluções possíveis. A tentativa de institucionalizar
fator básico de socialização pol ítica). 0 poder popular procedeu, aparentemente, dessa compulsão po ¬
Esse arrolamento mostra, nada mais nada menos, que o par ¬ lítica. N ão obstante, ela repõe, em um contexto político novo, as
tido da revolu ção desponta como uma espécie de carê ncia polí ¬
contradições intrínsecas à superposição e à coexistência de dois
tica. Hoje não há como ignorar essa realidade e o que ela impõe centros de decisão e de comando (o partido da revolu ção e os
ao ato de enfrentar as duas faces políticas deste período - a desa
¬ revolucioná rios no poder). E, 0 que é pior, ao institucionalizar o
gregação final do regime de classes e a constru ção da sociedade poder popular como a fonte de todo poder real, a solução prefe¬
nova, igualitária; a técnica de usar o Estado revolucioná rio para rida também institucionalizou o distanciamento e a dissociação
conseguir os dois objetivos; e, principalmente, a importâ ncia -
entre a formação desse poder e a sua aplicação. Trata se de uma
do partido para superá-los. O mesmo quadro indica, não obstante, experiê ncia, que mal começou. Ela só poderá ser avaliada, por ¬
que os revolucionários tinham razão em moderar a influência tanto, com fundamento em fatos concretos. Mas, tomando-a por
do partido da revolução e em limitar o seu crescimento, dando si mesma: é evidente que a revolução titubeou e que procurou
prioridade às suas próprias relações diretas com as massas e à conciliar, como se estivesse diante de três Césares e devesse ser
mudança revolucioná ria espontâ nea. O que evitavam não era eqüitativa, dando a cada um o que lhe seria devido. Ora, nesta
tanto uma burocratização precoce da revolu ção, algo que sem ¬ fase perigosa, de consolidação da transição, a persistência de ele¬
pre esteve presente em seus temores, quanto o que se poderia mentos pol í ticos contraditórios do socialismo é muito forte e
chamar de ritualização da política revolucionária e de domes ¬ precisa ser enfrentada com mão de ferro. O gigantismo ou vai
ticação redentora das massas. para o partido da revolu ção ou vai para o Estado; e para
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA
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GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

compensá -lo ( de imediato ), neutralizá-lo ( a médio prazo ) e disso, ele não é, por si mesmo, tão inovador quanto parece. Pri¬
absorvê-lo e eliminá-lo (no futuro) só há um caminho - o que meiro, porque ele não nasce de um processo bem -sucedido de
passa pelo controle direto das massas de todas as instâ ncias de maturação interna: resulta de um visível esforço de conciliação
manifestação do poder real, ainda que este seja, por sua origem, ou de harmonização de grupos de forças revolucioná rias diver ¬
por sua forma e por seu conteúdo um poder popular. Esta seria a gentes (embora a composição leve a uma maior tensão constru ¬
maneira marxista-leninista de levantar e resolver a questão. tiva entre o elemento centralização e 0 elemento democratização
A segunda questão comporta dois tipos de abordagem. A mais no âmbito específico da transição para o socialismo). Segundo,
rica seria a que tomasse o governo revolucionário como objeto porque ele apenas formaliza, por assim dizer, princípios revolu ¬

de descrição e de análise de uma perspectiva gen ética. O que se cion á rios que permanecem intocáveis em sua substâ ncia (como,
fez, em matéria de inovação institucional, antes e depois da op¬ por exemplo: 0 poder real reside no povo; liberdade de discus ¬

ção pelo socialismo, é algo espantoso. Serviços públicos e órgãos são com unidade de comando; controle democrá tico da admi ¬
governamentais de grande envergadura foram criados, revistos nistração e das decisões governamentais em todos os níveis e
e reformulados ao longo dos últimos 20 anos, um fecundo corpo esferas etc.). Contudo, ele assenta a maquinaria governamental
de leis ad hoc foi elaborado, todo um aparato governamental foi inventada e gerida pela revolução em um sistema de poder esta ¬

montado, o que explica por que a “ pérola do império” se conver ¬ tal, engendrando um regime político caracteristicamente socia ¬
teu tão depressa numa rep ú blica socialista florescente. Aí está o lista. Por si só, este passo constitui o mais ambicioso e elevado
que de melhor produziu Cuba revolucionária, embora nem tudo
,
salto qualitativo da revolu ção e marca o seu deslanche político
esteja isento de falhas, de limitações ou dos males da improvisa ¬ pelo que se poderia descrever como consolidação da transição
ção. Acresce que esse complexo institucional cresceu como uma para o socialismo. E isso em um duplo sentido. De superação da
tecnologia administrativa altamente centralizada e se defronta, “ etapa destrutiva” , de liquidação da sociedade de classes; e de
agora, com a politizaçã o propriamente dita (imposta pela orga ¬ início da “ fase construtiva” , diretamente vinculada à dissolução
nização do poder popular), uma fascinante contraprova para os da classe revolucionária e à emergência concomitante da forma
que têm interesse pelo estudo sociológico das crises do Estado política democracia popular (por onde começa a substituição da
na transi ção para o socialismo. Infelizmente, não disponho nem revolução política pela evolu ção social, empregando -se concei ¬
de materiais nem de tempo para explorar de modo razoável essa tos de Marx). Há razões, pois, para colocar esta abordagem à
abordagem . A mais provocativa seria a que tomasse como n ú ¬ frente da outra, mesmo que não se ultrapasse uma consideração
cleo do debate o emergente Estado democrático-popular. Por estritamente morfológica do assunto.
seu significado, seja em termos do que representa como germi ¬ As grandes transformações políticas desta década foram aber¬
nação de 20 anos de experiência socialista, seja em termos de tas com a criação do Comité Executivo do Conselho de Ministros
uma nova etapa que se inaugura na história da revolu ção, ele se (em 24 de novembro de 1972) e com a subseqüente reorganização
propõe como assunto central e obrigatório. É certo que as infor¬ e ampliação do Conselho de Ministros (cf. H. L. Matthews,
mações dispon íveis ainda são limitadas e que não houve tempo Revolution in Cuba, pp. 374-376). Daí em diante, o governo revo¬
para que esse emergente Estado democrá tico-popular demons ¬ lucionário empenha- se em um intenso trabalho criativo. As for¬
trasse todo o seu potencial de desempenho revolucion á rio. Além ças armadas são reorganizadas, profissionalizadas e reduzidas. O
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REVOLUÇÃ O CUBABA |
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS P ovos BA GUERRILHA AO SOCIALISMO A

PCC sofre algumas alterações e realiza-se o seu primeiro congres ¬ O governo revolucioná rio fizera - desde o início, mas prin ¬
so, em 1975. Ocorre o experimento de Matanzas, em 1974. A base cipalmente depois de 1962 - sucessivas tentativas de articulação
legal e política de toda a sociedade é finalmente refeita: 1. com o orgâ nica com o poder local. A que ficou mais famosa, como se
preparo, discussão pública e implementação dos novos códigos; sabe, atinge seu ápice de 1966 a 1970. Mas, elas não produziram
2. com a elaboração do anteprojeto da nova Constituição, sua dis¬ os resultados esperados por duas razões conhecidas. De um lado,
cussão (processo que envolve mais de 6 milhões de pessoas), apro¬ elas não contavam com as condições institucionais necessárias à
vação pelo referendo nacional de 15 de fevereiro de 1976 e transformação do poder local em poder político especificamen -
proclamação no dia 24 do mesmo mês. Com a Constituição, en¬ te revolucionário. Ao ser ativado e multiplicado, ele por assim
trou em vigor, aperfeiçoada e reformulada, toda a estruturação do dizer se fragmentava e evaporava, deixando um saldo político
poder popular testada pelo experimento de Matanzas. Ela precei¬ relativamente pobre. De outro lado, o aparato centralizado do
tua que Cuba é “ um Estado socialista de operários e camponeses e governo revolucioná rio tinha uma baixa capacidade de cami ¬
demais trabalhadores manuais e intelectuais” (art. 1), no qual “ todo nhar em duas direções simultâ neas. O centralismo democrá tico
o poder pertence ao povo trabalhador que o exerce por meio das era uma regra de ouro, cultivada com lealdade. Na prá tica, po ¬
assembléias do Poder Popular e demais órgãos do Estado que de¬ rém, a relação entre “ unidade de comando” e “ liberdade de dis¬
rivam dela, ou então diretamente” (art. 4). O cap. VII da Consti¬ cussão” reduzia-se a uma função de esclarecimento pedagógico,
tuição (“ Os órgãos supremos do poder popular” ), em seu art. 67, pela qual o segundo fator se diluía no primeiro. Para superar
estabelece: “ A Assembléia Nacional do Poder Popular é o órgão esse impasse impunha-se suscitar o aparecimento daquelas con ¬

supremo do poder do Estado. Representa e expressa a vontade dições institucionais, às custas do aparato de tomada de deci ¬

soberana de todo o povo trabalhador ” . O ú nico ó rgão com sões e de controle político, ou seja, de centralização, do governo
potestade constituinte e legislativa do país; nele se insere e dele revolucioná rio. Este tinha de ser substituído por um organismo
promana, por sua vez, o poder executivo. Se não de imediato, pelo político que não fosse só funcionalmente igualitá rio e democrá ¬

menos no futuro a vanguarda será filtrada pelos mecanismos sele¬ tico, mas que se estruturasse, funcionasse e crescesse de modo
tivos do poder popular e do PCC, apoiados nos organismos sociais igualitá rio e democrático.
e revolucionários de massas. Por enquanto, o antigo governo re¬ Tudo isso aconselha que se encare a organização do poder
volucionário forneceu a cúpula de todo esse sistema de poder, con¬ popular de um ângulo preciso. Apesar do que possa haver de
vertendo-se no governo da república. Todavia, isso é, em si mesmo, estático no acoplamento da antiga superestrutura governamen ¬
menos importante que o fato dessa cúpula tornar-se constitucio¬ tal ao órgão executivo da Assembléia Nacional do Poder Popu ¬
nalmente responsável perante o “ órgão executivo e colegiado per ¬ lar, aquela organização requer e está gerando um Estado socialista
manente” da Assembléia Nacional de Poder Popular, o Conselho moldado pelo e para a efetivação do centralismo democrático.
de Estado, e naturalmente diante desta. A cúpula n ão efetuou, Daí o amplo movimento preparatório ou concomitante: a reor ¬
portanto, uma “ barganha política” . Os tempos heroicos termina ¬ ganização territorial de Cuba (passa-se de 6 para 14 províncias);
ram e ela se superpôs às manifestações do poder popular porque o redimensionamento dos municípios, com o aumento de sua
ela ainda representa, em última instâ ncia, uma garantia de conti¬ á rea e a diminuição do seu n ú mero (passa- se de 410 para 169
nuidade da revolução. municípios) e o favorecimento de um maior equilíbrio dinâ mi-
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I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

co nas relações das províncias dentro da nação; a eliminação do represamento, redistribuição e adensamento das forças polí ti¬
nível regional da administração, a transferência maciça de uni ¬ co-sociais revolucioná rias. As assembléias municipal, provincial
dades de produ ção e serviços para o nível municipal, bem como e nacional do poder popular exprimem esse elemento; pelo qual
a realocação de recursos e o deslocamento de prioridades cruciais aquelas forças produzem as condições de existência, de “ repro ¬

para este nível de base; a estratégia de associar a racionalização du ção ampliada” e de transformaçã o do Estado democrá tico -
de órgãos, estruturas e funções administrativas a esse nível, com popular. Segundo, ele abrange um n ú cleo central, que opera no
a correção dos fatores e efeitos da pobreza e do subdesenvolvi ¬ nível de condensação das forças político-sociais revolucionárias
mento ( tanto em áreas rurais quanto em á reas urbanas); por fim, que são vitais para a ordem, o equilíbrio, 0 crescimento e a trans¬
o mais importante, o engolfamento direto do cidadão comum formação nã o só desse Estado mas do sistema político global
na rede de poder, por meio da açã o pol ítica consciente, da como um todo. O Conselho de Estado, 0 Conselho de Ministros
mobilização coordenada e da participação política orgâ nica. Por e o Chefe de Governo compõem esse elemento, pelo qual o po ¬
mais que se discorde do conceito ‘‘o povo na gestão estatal” , der popular, em sua forma mais densa, tópica e eficaz, afirma- se
empregado por Marta Harnecker, é evidente que, ao ser absorvi ¬
do, o governo revolucionário deixa em seu lugar um Estado sur ¬
-
e, quando necessário, nega- se e transcende se. Por fim, o siste¬
ma pol ítico absorve formas do poder popular previamente orga ¬
preendentemente adaptado às tarefas revolucioná rias do “ povo nizadas revolucionariamente fora e acima desse circuito. O PCC,
trabalhador ” nas difíceis condições concretas de Cuba e segun ¬ de um lado, e as organizações revolucionárias de massas ou sociais
do os complexos requisitos do centralismo democrá tico. como as CDR, a AN AP, a UJC, a CTC, a FMC etc., de outro,
O novo sistema político gerado pela revolu ção transcende configuram esse elemento. O PCC, é claro, aparece em todas as
ao poder popular propriamente dito e ao que se poderia chamar, esferas e níveis de objetivação, condensação e irradiação do po ¬
strictu sensu, de sistema do poder popular. Isso era fatal, na medi¬ der popular, da base ao topo. Opera nas duas direções simultâ ¬
da em que o poder popular tinha de inscrever-se em uma reali¬ neas - de baixo para cima e de cima para baixo - e infunde ao
dade histórica, na qual desempenham tarefas políticas decisivas poder popular seus conteú dos, formas e dinamismos socialistas.
um grupo revolucionário portador de uma tradição própria, um As demais organizações revolucioná rias atuam como fatores de
PCC em expansão e outras entidades de extração popular mas reforço ( não importa se “ deveria” ser assim ou não) e contribuem
institucionalizadas em torno de interesses sociais ou revolucio ¬ para consolidar, fortalecer e intensificar as tendências de auto-
n ários específicos. Entretanto, o elemento estrutural e dinâ mi¬ afirmação intrínsecas ao poder popular.
co desse sistema político está na imensa base, que constitui a sua Como se vê, o novo sistema político capta todas as formas de
fundação e, ao mesmo tempo, o manancial das forças político- objetivação e de sublimação do poder popular, as que nascem
sociais revolucion á rias in flux. Não obstante, o sistema como um espontaneamente das atividades políticas diretas do “ povo tra ¬
todo compreende outros elementos, que procedem da organiza ¬ balhador ” e que são organizadas pelo sistema do poder popular
ção e atividade do poder popular ou lhe são extrínsecos, sem os propriamente dito, tanto quanto as que são absorvidas já orga ¬
quais o sistema como um todo se entorpeceria, a revolu ção po ¬
nizadas e transfiguradas. Ele coordena a transformação do po¬
deria periclitar e o socialismo acabaria tornando-se algo remoto der popular em força político-social revolucionária e viva (por
ou congelando- se. Primeiro, ele cont ém níveis internos de processos intrínsecos ou pela fusão das duas formas de poder
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COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

popular); distribui o poder popular nesta forma específica de poder popular a um sobrepoder revolucionário, que se justifica
força político-social revolucionária pelos vá rios níveis de orga ¬ por si próprio e se legitima por meio de sua articulação com o
nizaçã o da sociedade; e a concentra nos vá rios centros de deci ¬ outro. Portanto, aí estão duas modalidades de interferência po ¬
são e de controle, nesses n íveis ou no topo. Por fim, ele converte lítica, cujo significado e conseqiiências não podem, ainda, ser
a forma política democracia popular em realidade histórica e, avaliados corretamente. Uma coisa é clara: os riscos de um
provavelmente, poderá promover sua dissolução e conversão em “ dirigismo partidário” ou de um “ despotismo revolucionário”
comunidade socialista, destitu ída de componentes políticos e são inevitáveis neste per íodo e, sob vá rios aspectos, constituem
da existência do Estado. o preço político da efetiva transição para o socialismo em Cuba.
Ao que parece, esse sistema político possui, também, pelo Entregue a si mesmo o poder popular certamente enfrentaria 0
menos duas brechas. A mais geral relaciona-se com a capta ção risco alternativo de estabilização na forma pol í tica democracia
de formas revolucioná rias já organizadas do poder popular, ou, popular, com a transformação automá tica do Estado democrá ti ¬
melhor, com as influ ências estruturais e dinâ micas que elas exer ¬ co - popular em uma ditadura permanente da maioria. Extinguir
cem nos vá rios níveis e circuitos ( o livro de M. Harnecker for ¬ essas brechas antes de uma consolidação suficiente do poder
nece material conclusivo a esse respeito, embora a experiência popular, por sua vez, seria pior, pois isso implicaria deixar a re ¬
de Matanzas tenha originado correções e aperfeiçoamentos an ¬ volu ção indefesa ou provocar o colapso prematuro do emergen ¬
tes da generalização do modelo). O PCC, em particular, está em te Estado democrático- popular.
uma posição estratégica e pode passar, rápida e definitivamente, Em termos operativos, a organização do poder popular de¬
da condição de d ínamo universal para a de fator de conformação sencadeou um amplo processo de estatização em Cuba. Sem pôr
inexorável das forças político-sociais revolucioná rias produzi¬ em d ú vida o cará ter socialista dessa experiência, é preciso reco ¬
das pelo poder popular.* A mais confinada relaciona- se com o nhecer que ela envolve um socialismo de forte mediação estatal
órgão executivo central. Esse órgão deveria ser um terminal e (como já ocorreu quando a revolu ção atingiu a economia, agora
um ponto de partida no processo de vaivém, pelo qual a socieda¬ que ela afeta 0 governo da sociedade, não é aos indivíduos e à
de como um todo converte o poder popular em força político- sociedade que se recorre, mas ao Estado). Não se trata, neste
social revolucionária. Contudo, ainda não foi atingido esse ponto momento, de um artifício de exposição. Com a coletivização da
evolutivo, que requer a plena autodeterminação do poder popu ¬ propriedade, também o Estado foi coletivizado, tornando-se não
lar. O acoplamento do grupo revolucioná rio com tradição pró¬ só uma appartenance da coletividade, mas um instrumento de
pria apresenta, aqui, uma das possibilidades de superposição do poder coletivo (ou seja, o meio por excelência para que os pro ¬

blemas de todos, a pobreza e o subdesenvolvimento, sejam en ¬


frentados, resolvidos e superados em comum, pela colaboração
Essa função se configura c realiza-se independentemente de normas que
visam impedir a deformação pela base. O cuidado tomado a este respeito é
orgâ nica de todos). Em suma, temos aí as duas faces de um mes ¬
patente: “ Cada reunião de vizinhos nomeará um candidato . Os militantes mo movimento dialético. O povo trabalhador, graças à organi ¬
do Partido e da UJC , presentes como vizinhos, devem formular suas zação do poder popular, entrou na posse do emergente Estado
proposições a título pessoal e nunca como representantes dc suas respectivas socialista; este, pela mesma via, entrou na posse do cidadão co ¬
organiza ções” ( Sobre los órganos del poder popular, p. 14). mum, da vida cotidiana e das energias coletivas mais íntimas.
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I COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBAIIA|

Essa reciprocidade e sua conseqiiência pedagógica foram postas do poder popular; 31 de outubro, as assembléias municipais do
em evidência, com muita clareza, no discurso que Fidel Castro poder popular se constituem formalmente e procedem à eleição
pronunciou em Matanzas, em 26 de julho de 1974. “ Eu espero dos delegados às assembléias provinciais do poder popular e dos
que vocês compreendam perfeitamente o critério do qual se tra ¬ deputados à Assembléia Nacional do Poder Popular; 7 de no ¬

ta. O Estado é uno. O Estado revolucionário tem que adminis¬ vembro, reúne-se a Assembléia Nacional do Poder Popular e
trar tudo, porque desapareceram os proprietários privados. O procede à eleição do presidente do Conselho e dos membros do
povo é o dono, e o Estado do povo tem que administrar tudo Conselho de Estado da Rep ú blica. [Temos uma configuração de
agora. (...) Que fazer agora ? Quais são as responsabilidades de poder que lembra uma pirâ mide, da base ao topo, ou que pode
vocês ? Adquiriram as responsabilidades da administração de ser representada como três semicírculos, cujos raios se estrei ¬
todos estes centros e unidades.” ( apud M. Harnecker, Cuba, pp. tam de fora para dentro ( ver os gráficos 1 e 2, extraídos do artigo
158 el 76.) “ Encaramos isso como uma grande escola de gover ¬ de C. Bengelsdorf ).] Os colégios eleitorais funcionam nas cir ¬

no, pois todos devem participar na organização, direção e con ¬ cunscrições eleitorais em que est á dividido o país e sua ativida ¬
trole de todas as atividades.” ( apud C. Bengelsdorf, “ A large school de vai das 7 às 22 horas. Nas eleições para as assembléias
of government” , p. 6.) O que entrava em jogo não era “ aprender municipais do poder popular há um segundo turno, ao qual con ¬

para saber votar ou para governar os outros” , mas “ aprender para correm os candidatos mais votados, uma semana após a primei ¬
saber viver e para bem nos governarmos” . Embora essa ampla ra votação. Salvo as exceções previstas na lei (ver M. Harnecker,
estatiza ção mal esteja começando, seus quadros externos são Cuba, pp. 137-138), podem votar e ser eleitos todos os cidadãos
conhecidos e podem ser descritos pelo menos nos traços princi ¬ de 16 anos e mais (esse m ínimo é elevado para 18 anos, com
pais. É o que tentarei fazer em seguida. No fim, retornarei à referência à eleição para a Assembléia Nacional do Poder Popu ¬

questão da posição do PCC nesse processo. lar ). Além do experimento na Província de Matanzas, em 1974,
As assembléias constituem a principal instituição do poder o poder popular foi exercido, em 1976, nas eleições que ocorre¬
popular. No entanto, seu advento trouxe todo um conjunto de ram em todo o país.
prá ticas eleitorais e de padrões de relação entre eleitores, dele ¬ A república está dividida em circunscrições eleitorais e os
gados municipais e assembléias, que n ão podem ser ignorados. moradores de cada circunscrição, com qualifica ção eleitoral, ele ¬
O resumo feito a seguir procura dar uma idéia dessa totalidade, gem um delegado. As CDR, nas áreas urbanas, e a ANAP ou
pela qual o “ povo trabalhador ” emergiu na cena pol í tica outras organizações de base, nas á reas rurais, servem como n ú ¬
encarnando, de fato e de direito, as possibilidades da cidadania cleo de organização eleitoral e de seleção dos candidatos. Estes
igualitária. Com ele, e através dele, o poder local encontrou es ¬ não precisam ser membros do PCC para terem suas candidatu ¬

paço histórico para manifestar-se, crescer e converter-se no ful ¬ ras homologadas. A proclamação dos candidatos precisa ser fei ¬
cro de uma futura hegemonia da base na administração e no ta seis semanas antes das elei ções. A candidatura nasce e é
governo da sociedade. aprovada pelo povo, de modo direto. Um dos moradores, eleito
O calend á rio eleitoral é preciso: 10 de setembro, postar as presidente, dirige a assembléia, na qual são apresentadas, exa ¬
fotos com biografias dos candidatos; 10 de outubro, eleições em minadas, discutidas e aprovadas as candidaturas, por iniciativa
todo o pa ís para eleger os delegados às assembléias municipais dos presentes. O presidente estimula e coordena todo o proces-
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Conselho de Ministros. large das
scho l iasasembl
DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS Os comit és executivos são
COMITE EXECUTIVO eleitos pelas assembleias
T
* municipais e provinciais,
2 JJ dentre seus pró prios
membros. Eles supervi¬ é
ÜJ
sionam dra - a - dia os de ¬ of
3
.

governmt
ASSEMBLEIAS MUNICIPAIS ( 169 ) partamentos administra ¬
tivos subordinados às as¬
sembleias. á
Gr
DEPARTAMENTOS ADMINISTRATIVOS
As assembleias munici ¬
pais elegem delegados
fico
Sisií

beamsedo
( um para cada 10.000 ci ¬

.”
dadã os) às assembleias ,
COMITE EXECUTIVO provinciais , e deputados p

m ( um para cada 20.000 ci ¬


dad ã os ) à AssembiEia
Nacional .
15
O povo elege um delega
do municipal cm cada
¬
.C

Benglsdorf
POVO distrito eleitoral . Os dis ¬

tritos consistem dc várias


associações dc áreas rurais
ou dc blocos residenciais
urbanos (CDRs).
.
W

298 299
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBABA |

so de apreciação e seleção, porque todos se empenham em esco ¬ Municipal do Poder Popular e, reciprocamente, esta na comuni ¬
lher, entre os próprios moradores, os “ melhores entre os melho ¬ dade. A ligação é estabelecida de modo efetivo. Ele leva para o
res” . O n ú mero de candidatos aprovados depende do consenso poder local o relatório da Assembléia e o discute com os mora ¬
dos moradores, podendo oscilar de 4 a 6 ou a 9 e até mais. O dores. A prestação de contas é fundamental, porque ela indica
critério de maioria simples é suficiente para garantir a escolha por que certas reclama ções, pedidos ou necessidades foram aten ¬

( um candidato que n ã o possa exercer o mandato, por estar com didos - e outros n ão; e quais são as previsões vinculadas a pro -
mudança prevista ou por outros motivos, pode declinar do en ¬ f gramações imediatas. Um dos membros do comité executivo da
cargo; este, por é m, constitui uma honra máxima, pois cria uma Assembléia assiste a essas reuniões, feitas nos n ú cleos de base
oportunidade de “ servir à revolu çã o” ). Nesse passo, a composi ¬ de tr ês em três meses, o que confere a elas um sentido maior de
ção contendo a fotografia e a biografia de cada candidato é afixa ¬ responsabilidade executiva e de formalidade. O delegado apre ¬
da em lugares de maior aflu ência ( como armazé ns ou barbearias) senta, de volta, um relató rio à Assembléia Municipal do Poder
e distribu í da pelos n ú cleos de base, com o objetivo de familiari ¬ Popular a que pertence, indicando igualmente os problemas e
zar todos com os diversos candidatos. As eleições se realizam soluções em aberto e porquê. H á, portanto, um duplo mecanis¬
em clima festivo e a compulsão coletiva mais generalizada indi¬ mo de controle nas relações entre o poder local e sua expressã o
ca o que se espera de cada um : “ As massas eleger ão entre os me ¬ materializada no poder popular de nível municipal e os delega ¬
lhores” ( inscrição num dos murais de propaganda). dos ficam entre esses dois fogos, duplamente incentivados a dar
Eleito, o delegado n ão se afasta da sua rotina anterior. Os o melhor de si mesmos à coletividade. O mandato n ão é do elei ¬
delegados e també m os deputados mantêm seus trabalhos regu ¬ to, mas do povo ou dos moradores. Estes podem remover a dele ¬
lares. Quanto a estes, por exemplo, a Constituição Nacional es ¬ ga ção eleitoral de poderes (o que é uma terrível puniçã o ) ou ela
tabelece que devem combinar “ suas atividades como e enquanto pode ser feita, em nome do povo, pela pr ópria assembléia (em
tais com seus deveres e suas tarefas regulares diários” . Ambos geral, por proposta do comité executivo e por votação favorá vel
n ã o percebem qualquer pagamento ou retribui çã o e, quando à revogação do mandato da metade mais um pelo menos). A
precisam ausentar - se do trabalho, recebem umperdiem, equiva ¬ punição tem cará ter autom á tico, sempre que se comprove que o
lente ao seu salá rio mais os gastos adicionais. Na verdade, é es ¬ delegado n ão cumpre efetivamente, de modo responsá vel e efi ¬

sencial que o delegado continue preso à vida da comunidade e ciente, os deveres inerentes ao seu papel ou que se exceda sobre
às suas atividades normais, para não desligar-se do conhecimento os demais. Há também casos de perda de mandato por motivos
concreto da situa çã o. O delegado també m fica obrigado a aten ¬ rotineiros ( como mudan ça de localidade, doen ça, atribuições que
der regularmente aos moradores, mantendo dias de despacho conflitem com o exercício normal do mandato etc. ). Em todos
(por exemplo, sexta -feira, das 20 horas em diante). Isso n ã o im ¬ os casos, procedem - se a eleições para prover as vagas.
pede que os moradores o procurem fora desse horá rio; que seja São eleitos 10.743 delegados para as assembléias municipais
abordado na rua ou no trabalho; e que tenha de prestar enorme de poder popular de todo o país, distribuídos entre os 169 muni ¬
aten çã o às queixas, sugest ões ou pedidos de orienta çã o de seus cí pios. Cada municí pio deve ter nã o menos de 30 e n ão mais de
constituintes. O delegado municipal é concebido em função de 200 circunscrições eleitorais. O termo de representa çã o dos de-
dois mandatos : ele representa a comunidade na Assembl é ia j legados municipais é de dois anos e meio. Uma das principais
300 301
COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ CUBANA

responsabilidades dos delegados municipais consiste em eleger por causa das fun ções executivas que desempenham, precisa
os delegados das 14 assembléias provinciais do poder popular contar com um mínimo de membros em condições de enfrentar
(na proporção de 1 delegado para cada 10 mil habitantes, e fra ¬ os pesados encargos decorrentes da supervisão dos departamen ¬

ção maior de 2 mil, do município); e em eleger os deputados da tos e da realiza ção de outras atividades de rotina. Assim, o presi ¬
Assembléia Nacional do Poder Popular (na proporção de 1 de ¬ dente, o vice - presidente e o secretá rio do comit é percebem o
putado para cada 20 mil habitantes, e fração maior de 4 mil, do equivalente de seus salá rios e gastos adicionais; os demais atuam
município): ao todo, 1.084 delegados provinciais e 455 deputa ¬ como vogais. Os vá rios departamentos que funcionam sob a ges ¬
dos nacionais. As listas de delegados provinciais e de deputados tão das assembléias municipais e provinciais subordinam-se à
nacionais são elaboradas por comissões compostas por repre¬ supervisão e à direção desses 3 delegados, que repartem entre si
sentantes de várias entidades (como o PCC, as CDR, a ANAP, a o volume de obrigações (cada um fica com 3 ou 4 departamentos
UJC, a CTC, a FMC etc.), que conhecem melhor os candidatos mais outros deveres). Todavia, cada departamento tem seu pes ¬
potenciais mais qualificados para aqueles mandatos. As listas soal técnico e administrativo próprio e organiza-se de modo in ¬
são discutidas, revistas e emendadas pelos delegados munici¬ dependente, de acordo com normas racionais de eficácia,
pais, que procedem às eleições segundo os seus próprios critérios. rendimento e diminui ção de custos. Todos os membros do co ¬
O que importa assinalar é que, assim, o poder popular se abre mit é sã o responsáveis diante de suas assembléias, municipais
para toda a sociedade, sem ficar espremido num corredor estrei ¬ ou provinciais, e podem ser removidos em qualquer momento e
to, que acabaria fechando as seleções aos que entrassem na com ¬ substitu ídos por decisão destas.
petição (ou na promoção). No plano provincial e, especialmente, Todas as assembléias do poder popular ficaram com a atri¬
no n ível nacional os critérios de recrutamento exigem qualifica ¬ bui ção de gerir as unidades de produção e de serviços de suas
ções crescentemente mais complexas e torna- se crucial escolher respectivas jurisdições. Os vários departamentos foram criados
os “ melhores entre os melhores” dentro da reserva de talento para atender às fun ções administrativas, de direção e de super ¬
nacional. visão decorrentes. Sob um aspecto estritamente de controle,
As assembléias do poder popular possuem, em seus respecti¬ houve mais desburocratização que descentralização, embora esta
vos níveis, plena capacidade executiva e constituem, portanto, a tenha sido intensa por causa da eliminação do setor administra ¬
“ máxima autoridade estatal” em suas jurisdições. Por isso, elas tivo intermediário, que poderia gerar um poder popular regio ¬
são dotadas de um comité executivo próprio. Esse comité execu ¬ nal (o qual chegou a ser previsto mas foi posto de lado). Uma
tivo, no caso da Assembléia Nacional do Poder Popular, é mais boa parte da concentração burocrá tica era devida a este setor,
complexo, pois abrange o presidente do Conselho do Estado (e pois de 250 mil funcion á rios administrativos, 38% se concen ¬

também chefe do governo), o Conselho do Estado da Rep ú blica travam no n ível regional e apenas 16% eram alocados no n ível
e o Conselho de Ministros (ver os gráficos 2 e 3, acima). Os co¬ municipal. Sob a nova estrutura, essa massa de recursos materiais
mités executivos municipais e provinciais compõem- se de 5 a e humanos foi deslocada, na quase totalidade, para o setor mu ¬
15 membros (o n ú mero é variável, em fun ção de necessidades nicipal e de base. Isso d á grande vitalidade ao setor munici ¬
que não são idênticas em todas as partes). Esse comité é eleito pal e ao poder local. Ao mesmo tempo permite, ao lado da
entre os membros das assembléias municipais e provinciais e, eliminação de maus hábitos burocrá ticos e da rotação de pes-
303
302 DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBAKA |
COLEçãO ASSIM LUTAM OS POVOS

soai, um amplo processo de racionalização no uso de recursos


Gráfico 3 - A administração. Baseado em C. Bengelsdorf.
“ A large school of government” , p. 15
materiais e humanos que podem ser mobilizados (com vistas à
redução do pessoal, maior eficácia e rendimento, diminuição de
custos, contacto direto com as instâ ncias do poder popular e com
os usuários de todos os serviços etc.). Sob esse aspecto, o “ ho ¬
mem do povo” deixou de ser uma figura abstrata. Ele precisa ser
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atendido e ouvido dentro das possibilidades. Quando estas n ão
permitem fazer nada ou só permitem fazer muito pouco, as ex¬
plicações precisam ser claras e o entendimento m ú tuo. Ninguém
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busca “ consenso” , pois não há prémios eleitorais implícitos nem
corrupção do poder. No ú ltimo degrau da escada a pressão é mais
direta e mais severa, 0 que não quer dizer que ela não suba até o
topo, pois ela caminha de baixo para cima e faz-se sentir univer ¬
5é '

salmente.
!!!_ ill Na divisão das responsabilidades e da autoridade a linha se¬
guida foi realmente simples. O governo central passou para as
a assembléias municipais e provinciais todas as unidades de pro ¬
dução e de serviços vinculadas às suas respectivas teias da vida,
preservando no nível da Assembléia Nacional aquelas que pos ¬
At su íam essa escala. Por conseguinte, o poder popular no nível
S5 municipal possui autoridade direta sobre escolas, hospitais, clí¬

*-
nicas, lojas, centros de cultura, livrarias, cinemas, teatros, cen ¬
Si ::: tros esportivos, restaurantes, hot éis, oficinas de consertos,
S3
garagens, transportes municipais etc.; o poder popular no nível
: provincial detém a autoridade direta sobre todas as unidades de
¿ :
produ ção e de serviços de porte provincial, como o transporte
SI intermunicipal, as indústrias e 0 sistema hospitalar de escala
provincial, o comércio interno da província etc.; o poder popu ¬
¡ÉS lar no nível nacional exerce autoridade suprema sobre todas as

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II --
unidades de produção e de serviços de escala nacional, como as
ind ústrias básicas, o açúcar, a pesca, o transporte e o sistema
ferroviário interprovinciais etc. Além disso, no nível municipal
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fica a seleção dos 3 juízes leigos e dos 2 juízes profissionais a
serviço do respectivo nível da Corte do Povo; no nível provincial
304 305
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILH SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBA

fica a seleção dos ju ízes do respectivo n ível da Corte do Povo; e metodológicas ditadas pelo MINED e, além disso, as questões
no n í vel nacional do poder nacional ficam a autoridade para operativas, como o cumprimento de suas fun ções pelos alunos e
editar todas as leis, as diretrizes concernentes à política externa professores, reparações e manuten ção das edificações e móveis
e interna, a seleçã o dos ju ízes que servem na Corte Suprema do escolares etc.” ( M. Harnecker, Cuba, p. 166.) Outro refere-se ao
Povo. car á ter específico dos papé is dos delegados municipais, que pre
¬

A esse rol seria conveniente agregar outras informações. O cisa ser entendido com precisão. Essa autora sublinha algo que
mandato dos delegados provinciais é de 2 anos e meio e também merece ser repetido: “ Os delegados n ão são somente correias de
pode ser revogado pelo respectivo corpo eleitoral (as assembléias transmissão das inquietações do povo, devem trabalhar nos ór ¬

municipais do poder popular). Os delegados municipais eleitos gãos do poder popular em busca de solu ções para os problemas
para os outros níveis do poder popular devem desempenhar si ¬ que as massas colocam” ( idem, p. 178). Por fim, é claro que o
multaneamente os dois mandatos, nas condições indicadas aci¬ segredo do impacto criador da revolu çã o causada pela organiza ¬

ma. O mandato dos deputados nacionais é de 5 anos e também ção do poder popular está no fato de que ele acabou (ou reduziu
pode ser revogado pelo respectivo corpo eleitoral ( idem ). Na cons¬ drasticamente) com a marginalização e a enorme distâ ncia cul ¬
tituição do que equivale ao seu comité executivo, a Assembléia tural que existia entre a comunidade local, o homem do povo e
Nacional do Poder Popular elege o presidente e o Conselho de os serviços de administração p ú blica ( mesmo depois de 1959).
Estado (escolhido entre seus membros): ouvido o presidente, pro¬ Questões aparentemente prosaicas, que antes atormentavam os
move a indicação do Conselho de Ministros: o presidente do Con ¬ moradores, puderam ser equacionadas com clareza, discutidas
selho ( Fidel Castro foi eleito para esses postos em 3 de dezembro na base e aos n í veis respectivos do poder popular e ter as solu ¬
de 1976). Além do presidente, o Conselho do Estado abrange um ções eficientes encaminhadas ( ou, em caso contrário: contar com
primeiro vice-presidente, 5 vice-presidentes e 24 membros. Du ¬ explica ções concretas quanto a por que elas n ão são possí veis ou
rante a inatividade da Assembléia Nacional do Poder Popular o irão demorar mais ou menos). O poder popular, principalmente
Conselho do Estado preenche suas funções. em n ível municipal, demonstrou um formidá vel potencial de
Antes de dar por encerrado este assunto, seria ú til retomar mobilização de recursos materiais e humanos, a serviço da co ¬

alguns pontos. Um deles diz respeito à superposição de autori ¬ munidade. Por exemplo, juntando os recursos dispon íveis nas
dades. Tome-se a educação como exemplo. “ Em todos os muni ¬ agências municipais e a capacidade de entreajuda dos morado ¬
cípios existe uma direção de educação. Esta direção está sujeita res ou a colaboração das esquadras de construção, a repara çã o e
ao sistema de dupla subordinaçã o. Em parte a realiza o MINED a construção de casas ficaram muito mais acessíveis e muitos
(minist é rio da educa çã o ), no que se refere à metodologia do en ¬ projetos difíceis puderam ser postos em prá tica. O que isso sig¬
sino, programas, bibliografias, textos, sistema de avaliação de nifica, para o combate sistem á tico aos efeitos paralizadores da
alunos e professores etc. Em outra parte, subordina - se ao órgão pobreza e do subdesenvolvimento, especialmente nas á reas ur ¬

do poder popular, que zela para que aquela direção cumpra suas banas menos favorecidas e nas zonas rurais mais afastadas, é
tarefas, seja as emanadas do MINED, seja as geradas no próprio óbvio. O livro de M. Harnecker contém, ao tratar da experiên ¬
município. É responsabilidade do poder popular velar para que cia do poder popular na província de Matanzas, um material
a direção de educa ção do munic í pio cumpra as orienta ções riquíssimo. O mesmo livro capta muitas percepções maravilha-
3<J 6 307
[ COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO 5 0 C L IS MO A REVOLU ÇÃ O CUBANA I

das das conseqiiências da instauração do poder popular. O Zé- so da crise de 1970 e converter-se no herdeiro da toumant provocada
povinho n ão é convencido pela propaganda de que certas coisas pela institucionalização do poder popular.
poder ã o acontecer. Ele se surpreende fazendo coisas novas e vê A terceira questão, os controles reativos na transição para o
o esforço concentrado posto na solu ção de velhos problemas: socialismo, foi longamente abordada, de modo impl ícito e ex ¬

compreende por aí o que é socialismo, que nem tudo pode ser pl ícito, através da discussão do poder popular. Convinha destacá-
solucionado tão depressa, e que, com o tempo, o subdesenvolvi ¬ la, no entanto, porque os controles reativos são os controles que
mento será vencido e haver á uma sociedade de maior abundân ¬ se formam e se manifestam espontaneamente, pela atividade de
cia ( ver, esp., M. Harnecker, op. cit., pp. 142, 144 e 172). '
indivíduos, grupos de indivíduos e de instituições sociais que
Volto, agora, à posição do PCC nessa ampla revolu ção polí ti ¬ n ã o possuem a função formal de exercer controle. A import â n ¬
ca. É evidente que a organização do poder popular fortaleceu o cia relativa dos controles reativos pode crescer ou diminuir. E
partido, sua influência direta ou indireta e seu potencial de cres ¬ essa varia ção é fundamental para a avaliação sociológica do grau
cimento. ( Note-se: em 1965 ele contava 50 mil membros e candi ¬ intrí nseco de democratizaçã o das relações humanas. Uma das
datos; em 1970, pouco mais de 100 mil; em 30 de setembro de teses pluralistas dos estudiosos da cultura cí vica nas ciências
1975, 202.807 membros e candidatos, cf. L. Casal, “ Cuban sociais enfatiza que a transição para o socialismo (e, mais tarde,
Communist Party: the best among the good ” , pp. 24 e 26. O que a consolidação deste) leva à arregimentação, ao dirigismo, ao
isso indica senão que o PCC preparava- se para enfrentar as causas autoritarismo e ao totalitarismo, como uma espécie de fatalida ¬

da crise de 1970 e os efeitos da instauração do poder popular?) De de. O erro desta perspectiva de interpretação é patente. Defí ne ¬

um lado, o poder popular est á absorvendo em quantidade, nos se a matriz de avaliação de atitudes, comportamentos e valores
seus vários níveis, os melhores quadros e dirigentes do PCC. (Pela t í picos de uma sociedade individualista, competitiva e capita ¬

eleição direta e mais ainda, pelo que se pode inferir, pela elei ção lista como a matriz normal do que deveria ocorrer em todas as
indireta. O seu controle da composição dos comités executivos é sociedades humanas, inclusive em uma sociedade socialista em
quase completo. Quanto ao plano provincial do poder popular, elaboração. Ora, com o socialismo, a pró pria matriz das atitu ¬

um informante de Matanzas declarou a M. Harnecker que a pro ¬ des, comportamentos e valores altera- se estruturalmente - o que
porçã o de militantes entre os delegados era de 65,3% quanto ao era básico, torna- se obsoleto e indesejá vel, e 0 que emerge é o
PCC e de 12% da UJC; e que, para os cargos do comité executivo, seu avesso ou oposto. A propriedade coletiva, por exemplo, mo ¬
nesse n í vel, elegeram -se todos os militantes do PCC. Cf. op. cit., p. difica a compreensão da produção, da produtividade, do contro ¬
155.) De outro lado, com o poder popular a estratégia política da le do trabalho, da economia de materiais, de “ remuneração” , de
revolu ção adaptou- se à concepção do per íodo de transição que solidariedade etc. dos trabalhadores. Pretender avaliar coisas t ã o
prevalecia h á tempo, oficialmente, no PCC. Este sempre temeu a distintas e distantes por uma “ perspectiva unificada” não passa
“ utopia româ ntica” e o “ idealismo revolucioná rio” , que vinham de contra-senso.
dos tempos heroicos e refletiam a essência dos “ métodos guerri ¬ Em Cuba, havia uma forte tradição do recurso às associações
lheiros” . Se o PCC demonstrar capacidade para ajustar-se flexi ¬
de vá rios tipos, inclusive as de solidariedade de classes. Essa
velmente ao inexorá vel toque fermentativo que as condições tradição se desenvolveu em extensão e profundidade tanto en ¬
cubanas imprimiram à revolução, ele poderá ser o grande vitorio- tre os empresários quanto entre os trabalhadores rurais e urba -
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I COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRIL AO SOCIALIS REVOLU ÇÃ O C

nos ( como já foi assinalado acima, essa tradição vem do fim do sui uma forma democrática intrí nseca (na verdade, ela assegura
século 19, no que respeita ao trabalho livre, mas cresceu com a democracia popular ou da maioria). Todavia, o período de tran ¬
impetuosidade depois da década de 1930). A revolução não su ¬ sição exige medidas mais ou menos prolongadas de violência,
focou essa tradição. Ao contrá rio, incentivou-a, pois ali achava de coação externa e de uniformização, que podem “ cristalizar ¬
um aliado natural. Os guerrilheiros, por sua vez, presumivel¬ se” ou converter-se em “ desvios burocráticos” e em riscos po ¬
mente por serem revolucion á rios amadores interessavam - se pe ¬ tenciais de estagnação ditatorial.
los papéis que podiam ter como reformadores sociais (seria As condições cubanas favoreceram de maneira evidente a
preciso lembrar como essa preocupa ção aparece em Guerrilla exacerbação de alguns aspectos potencialmente perigosos do
warfare, de Che Guevara?). As circunst â ncias favoreceram essa período de transição. A importância dos controles reativos das
tendência, que cresceu sem interrupçã o nos ú ltimos 20 anos. organizações de massas consiste em que elas operam como um
Vá rias organizações de massas “ revolucion á rias” ou “ sociais” contrapeso e, mesmo, como um fator de reversão a médio e lar ¬
alcançaram enorme expressão quantitativa e tiveram funções go prazos. Elas alcançaram um volume de participação incrível
decisivas na defesa, avanço e consolidação da revolu ção. Vá rias (as CDR arrolavam, por exemplo, mais de 4,750 milhões de mem ¬
siglas tornaram-se famosas, como as CDR, a CTC, a FMC, a bros em 1977). E elas não são meras correias de transmissão de
ANAP, a UJC, a FEU, a FEEM, a UPC, entre tantas outras. Elas pressões centralizadoras ou arregimentadoras. Ao contrá rio, são
foram inseridas na autodefesa militar e política da revolu ção. centros vivos de debate curioso, alegre, fecundo. Elas consoli ¬
Mas, também ligaram -se à obtenção de apoio de base ao gover ¬
dam 0 regime, porém o fazem salientando as exigências demo¬
no revolucionário na implementação de importantes programas, cráticas do socialismo, fortalecendo as pressões das bases e dando
ao combate ao analfabetismo, às campanhas de imunização e certa organicidade às expectativas de democratização do estilo
vacinação, ao controle do racionamento etc., ou vincularam-se a de vida de todo 0 povo ( note-se, não especificamente proletá rias,
tarefas mais complexas e de grande envergadura, como a discus ¬ muitos socialistas passaram por cima dessa diferença e fizeram
são do projeto de Constituição Nacional ou a criação de uma cr íticas ao governo revolucion á rio inteiramente descabidas).
infra-estrutura para a implantação do poder popular. (Seria ocioso Onde muitos se reú nem para discutir, opinar e decidir, o socia ¬
levantar uma bibliografia de referência. Apenas como reitera ¬
lismo conta com uma impulsão democrá tica inexaur ível e
ção: P Siegelbaum, “ CDRs: security and service” , pp. 19-25; M. indestrut ível. Os excessos de centralização, que não podiam ser
Harnecker, Cuba, esp. caps. 3 e 4; C. Mesa- Lago. Cuba in the evitados e que ainda são necessá rios, encontram aí um fator de
1970s, p. 81 e segs., onde trata do 13° Congresso da CTC, em correção e, previsivelmente, de superação. Os que temem tanto
1973, e do conteú do das teses aprovadas.) o “ destino da revolu ção proletá ria” devem concentrar sua aten ¬
O que pode interessar, nesta parte da exposição, é assinalar o ção nesse â ngulo do quadro, que reforça as tendências à demo ¬
significado dessas organizações para a distribui ção do poder e cratização que se desencadeiam de cima para baixo. O socialismo,
sua democratização. Elas constituem, em Cuba, um fator histó ¬
em Cuba, teria de ser uma expressão dos sentimentos e dos
rico- cultural muito importante para o que se poderia chamar anseios mais fundos dos próprios cubanos. No presente, como
conten ção da ditadura do proletariado ou da maioria dentro de no passado mais remoto, os seres humanos se caracterizam como
suas funções normais e transitórias. Esse tipo de ditadura pos- criadores de civilizações. Estas refletem o grau de generosidade,
310 311
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA |

de inquietação fermentativa e de solidariedade que existe entre como uma fatalidade ou como um produto automático das trans¬
os seres humanos. Por que deveria ser diferente em Cuba, quan ¬
formações históricas. Ele é uma complicada e difícil criação do
do o “ povo trabalhador ” tem a oportunidade de criar uma ver ¬
homem . Os sacrifícios de Sierra Maestra são nada quando com ¬
são própria da civilização socialista ? parados com os sacrifícios que vieram depois - e que afetaram
todo um povo. Eles são vistos friamente, como se fossem ocorrên ¬
3 - Socialismo ou comunismo? cias de uma história natural, às vezes com olhos muito críticos.
Gostaria de aproveitar esta ú ltima aula para travar um deba ¬ Ninguém se pergunta o que se faz em Cuba para que o socialismo
te mais geral, que permitisse retomar livremente os fios da mea ¬ cresça e vença, qual é o sentido de uma obstinação que não encon ¬
da e tentar ver a revolução cubana em conjunto, em sua situação tra paralelo em outras experiências históricas análogas.
e perspectiva políticas atuais. Um debate desses é arriscado, mas Esta digressão explica o conteúdo desta aula. Queria que vocês
necessá rio. Por meio dele poderemos ir mais longe em nosso penetrassem comigo nessa á rea delicada da reflexão histórico-
trabalho didático, mesmo que vocês discordem, no todo ou em sociológica e do pensamento socialista. A revolução cubana pos ¬
parte, das idéias que irei apresentar. Além disso, é preciso remo ¬ sui uma grandeza histó rica intrí nseca, que exige de nós essa
ver duas limitações constantes no estudo dessa revolução, que atitude de seriedade intelectual e de militâ ncia política. Ao lon ¬
são perturbadoras e espantosas. go do curso, foi fácil localizar o quão vibrá til e móvel ela é: osci ¬
A primeira: uma revolu ção de tal magnitude histórica não é lou muito, assumiu vá rias formas e enfrentou m últiplos desafios.
questionada ou, como gostam de falar os historiadores, não é Uma revolu ção, em suma, que tem vida, vibra, avança e recua, e
interrogada. Todas as chamadas grandes revoluções, da inglesa impõe-se. Acima de tudo, uma revolu ção que tem por trás um
e francesa à estadunidense, ou da russa à chinesa, e mesmo as povo que sofre e não cede, que aceita a verdade que ela se atribui
que n ão são grandes, mas reproduzem com variações as matri ¬ e procura corresponder a todas as conseqiiências resultantes -
zes estruturais (como acontece com a alemã ou a japonesa e com todas, não algumas. Vamos dialogar com ela, nesse plano mais
as democracias populares) receberam, e ainda recebem, esse tra ¬ amplo e profundo, embora estejamos aquém de sua grandeza e
tamento. Por que isso não é feito com a revolu ção cubana? Os corramos o risco do mal-entendido.
autores que vão mais longe trabalham, na verdade, ou com o Devo reconhecer que na apresentação de materiais, ao longo
desapontamento (“ de direita” e “ de esquerda” ) ou com a euforia do curso, sempre procedi a um corte unilateral. N ão tinha uma
militante. Ora, ela não foi uma simples “ substituição de guarda intenção apologética, contudo não dei acolhida a muitas infor ¬
no poder ” ; e, de uma perspectiva latino-americana, constitui mações e a certos dados que sublinham os efeitos disnômicos da
uma ruptura histórica decisiva. A cadeia foi quebrada no elo revolu ção ou a persistência e agravamento de determinados as ¬
mais forte: o colosso imperial não foi capaz de deter a irrupção pectos sociopá ticos da realidade. Por quê? N ão tinha - e acho
da ilha na história. que seria dispensável dizê-lo! - o intuito de “ mostrar Cuba bo-
A segunda: o dilema político dessa revolu ção, que salta aos nitinha” , como diria o saudoso Roger Bastide. Dados e informa ¬
olhos de modo tão cristalino e tocante, escapa mesmo às discus ¬ ções dessa natureza são delicados e, para elaborá-los com rigor
sões mais severas e argutas. Seria tão fácil fazer uma revolução descritivo ou interpretativo, teria de imprimir uma orientação
socialista em Cuba ? Ora, o socialismo em nenhuma parte brota bem diferente a toda a exposição. Mesmo quando os autores já
312 ]
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA
313

davam a explicação pronta e acabada (por exemplo: o desalento tes de uma evolução histórica, como acontece com Karol; ¬
ou
e o descontentamento que se ligaram à crise da safra, apontados tras vezes, elas são tão veementes que, por isso mesmo, n ão po¬
por C. Mesa-Lago; ou, em uma elaboração interpretativa mais dem ser ignoradas, como é 0 caso de Dumont (uma den úncia é
complexa e crítica, a relação que J. Valier estabelece entre a de ¬
um fato: um regime socialista não pode comportar certas críti ¬
terioração económica e social do início da década de 1970 e a cas). Levá-las a sério não seria o mesmo que colocá-las no centro
ausência de uma participação democrática das massas de traba ¬
das minhas preocupações de análise: elas funcionaram, para mim,
-
lhadores nas estruturas do Estado), deixei a deliberadamente (e como sinais vermelhos na rota da revolução. Qual é o significa ¬
não prudentemente) de lado. Como diriam os sociólogos da “ es ¬
do sociológico e político dessas críticas e temores ? Em particu ¬
cola de Chicago” : a história natural de uma revolução está re ¬ lar, elas assinalam a existência, dentro de Cuba, de forças sociais
cheada de ocorr ê ncias desse tipo. Seria muito importante revolucionárias que se degradaram ou mudaram de rumo ? Além
privilegiá-las se elas permitissem marcar onde e quando elas as ¬
disso, nas condições cubanas de uma pré- transição tão difícil
sinalariam um desvio da revolu ção em sua rota ou uma inflexão aqueles sinais vermelhos indicam que a revolução foi traída,
está
que estabeleceria uma modificação de padrão estrutural. Ora, a sendo ou será traída ? Ou, ao contrá rio, eles são menos numero ¬
revolução cubana possui uma peculiaridade. As condições de sos do que deveriam ser (na hipótese de que outros dirigentes
extrema priva ção permanente, os sacrifícios generalizados e sis ¬ pudessem fazer as coisas andarem melhor ) ? Há, ainda, a consp ¬
í
temáticos, o altruísmo universal são os fatos comuns e banais: cua análise pseudocomparativa: Cuba antes e depois (algo que
eles se incorporaram como uma dimensão histó rica t ípica, os revolucion ários reforçam, com uma mania de fazer cotejos
repetitiva, essencial. Isolar certo n ú mero desses aspectos, em um sem qualquer sentido positivo). O típico “ diagn óstico objetivo ,
dado momento, e montar sobre eles toda uma descrição ou in ”
¬
como o que resulta das descrições de L. Nelson. O que é, numa
terpretação da evolução, ritmos ou dificuldades da revolu ção n ão sociedade em transformação revolucion ária, produto de seu cres ¬
constitui obviamente um bom mé todo. O absenteísmo, verbi cimento ou produto da revolução? Pode um sociólogo trabalhar
gratia, tem sido um cavalo de batalha. O que sabemos sobre esse com um esquema de observação e de análise tão precário e, ape¬
assunto no contexto da pré- transição, quando se aceleram si ¬ sar disso, tido como positivo? Temos, por acaso, o direito de
multaneamente o desenvolvimento económico e a revolução ? afirmar “ juízos de fato” como se operássemos com uma balan ça
Em outros países as coisas teriam sido diferentes ? E não é nor ¬ e num prato puséssemos os êxitos e noutro os malogros? O que
mal - e até necessá rio - que uma í nfima porcentagem da força são esses juízos, na substâ ncia, senão uma forma conservadora
de trabalho se desorbite? Em Cuba, a passagem de uma privação de contestar a revolução cubana (como pode ser, na linguagem
absoluta, ao mesmo tempo secular e estrutural, para uma priva ¬ dos revolucion á rios, uma manifestação apologé tica ingénua)?
ção relativa deveria produzir certos efeitos. As coisas chegaram Procurei, dentro de limitações que n ão consegui vencer como
a ser postas nestes termos e analisadas deste â ngulo? As críticas pretendia, chegar à revolução cubana como uma totalidade
his¬
à revolução, que nascem de um vinco ideol ógico e político, me ¬ tó rica e pol ítica em devir, na qual me projeto e a qual
defendo
receram minha atenção. Elas também são fatos históricos e de ¬ (na dupla qualidade de investigador e de militante). N
ão dispo ¬
vem ser tomadas na situação global, ainda que os autores sejam nho da fórmula “ como deveria ser a revolução” ; e tampouco te¬
externos à cena histó rica. Às vezes, elas coroam análises exigen- nho em mente fórmulas alternativas, do que dever á ser a
314 315
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

revolução no futuro próximo e remoto. Mas, apanhando-a à luz Essa contradição, no que ela tem de geral e de elementar, não é
das forças sociais e políticas revolucioná rias que a conformaram exclusiva de Cuba. O que é específico de Cuba é a modalidade
e que a estão alterando, nesse n ível queria discutir com vocês o da combinação, a tentativa de vincular a acumulação socialista
seu imenso, grave e criador drama político. origin ária a duas funções simult â neas: a superação da pobreza
Entre os analistas de Cuba, só Gutelman pôs o dedo na ferida crónica e do subdesenvolvimento extremo em conjunto com a
que é o drama político da revolução cubana, porque só ele fez uma implantação de uma sociedade socialista. Enquanto uma das
análise marxista concreta das contradições que operam na socie ¬ funções se realiza, a outra ou se esvazia, fica mera forma sem
dade cubana por causa do socialismo. E ele próprio não elaborou conteú do dinamizador, ou cresce de modo muito d ébil. Seria
a discussão do assunto, talvez prematura enquanto a revolução possível imaginar uma saída diferente, se todos os trabalhado¬
ainda não resolvera institucionalizar-se como uma forma socia ¬ res (ou a grande maioria dos trabalhadores) estivessem direta ¬
lista de democracia. O assunto, hoje, impõe-se francamente, pois mente engolfados na conquista do poder e a “ revolução a partir
a organização do poder popular deveria ter levado o PCC, pelo de cima” não fosse uma revolu ção socialista decidida por uma
menos, a um debate em profundidade e sem evasivas. Sabemos o vanguarda, que dirigia o governo revolucionário. Essa possibili ¬
quanto os cubanos temem - e com razão! - os debates teóricos. dade é imaginativa e n ão adianta especular sobre ela. Na reali¬
Todavia, não há exemplo de uma alteração tão substancial na li ¬
dade, temos contradições inevit á veis que opõem entre si a
nha política revolucioná ria de um governo socialista, como a ado ¬
aceleração do desenvolvimento económico e a aceleração da re ¬

tada em Cuba com a organização do poder popular (ou seja, com a volução. Quando um dos pólos salta sobre os gonzos do proces¬
opção pela forma política democracia popular como etapa inicial so histórico, toda a sociedade sofre um forte golpe ou um choque
da fase de transição para o socialismo), que possa ficar sem uma só repará vel a duras penas. Portanto, um movimento revolucio¬
sólida demonstração da teoria correspondente. O que Raul Cas ¬ nário dramá tico, de vaivéns, ziguezagues, oscilações, no qual as
tro e Fidel Castro disseram, sobre o assunto, é sem dú vida impor¬ transformações qualitativas procedem menos de uma acumula ¬
tante. Todavia, não é suficiente. Uma coisa é esclarecer as massas ção orgâ nica de forças revolucioná rias que de saltos bruscos,
com referência à estratégia da revolução. Outra, definir essa estra¬ determinados de cima para baixo. O que importa ficar claro e
tégia como política revolucionária, a partir da qual se irá consti¬ que delimita a grandeza da revolu ção: 1. os dirigentes tiveram a
tuir o próprio Estado socialista de transição em Cuba. coragem revolucioná ria de dar esses saltos sempre que percebe¬
O drama político da revolução cubana pode ser resumido ram que eles se impunham, mesmo que não pudessem prever
em poucas palavras. Ele surge das contradições existentes entre todas as suas consequências; 2. 0 grosso dos trabalhadores avan ¬
duas ordens de necessidades interdependentes. Pobreza crónica çou sempre na mesma direção, não por puro conformismo ma ¬
e subdesenvolvimento extremo enfrentados através do socialis ¬ nipulado, apatia ou indiferença, mas porque pressentia que não
mo. O que significa: mobilização organizada dos trabalhadores, existia alternativa e que os saltos bruscos eram o melhor que
como classe revolucionária, para implantar a propriedade cole¬ todos tinham a fazer. Penso que tudo isso ficou claro ao longo
tiva, formas socialistas de produção e de repartição, de organi¬ do curso e lembro, como típicas, as oscilações vinculadas à op ¬
zação da consciência social, da personalidade, da sociedade e do ção pelo socialismo, à implementa ção dos planos, à simultanei¬
Estado; e, por aí, eliminar a pobreza e o subdesenvolvimento. dade dos est ágios e à implantação do poder popular.
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I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

Isso posto, é preciso reconhecer que os debates teóricos, em reconversão da economia. O que muitos descrevem como a crise
Cuba, foram apenas... debates teóricos. Somente nesta década económica ou, em linguagem mais dogmá tica, a deterioração
será possível suplantar semelhante barreira, nascida da nature¬ económica do fim da década de 1960 e 0 início da década de
za da revolu ção. Esta avançou tanto na linha das oportunidades 1970, não é outra coisa senão uma expressão estrutural das ten ¬
que se criou um prolongado divórcio entre a forma política, os sões mais complexas e profundas que surgiram no auge dessa
conteú dos político -ideológicos e os alvos políticos concretos por passagem, agravadas, naturalmente, por dificuldades internas e
ela adquiridos. externas da conjuntura. A “ safra” , que aparecera em 1964 como
Estes puderam ser postos com clareza, os outros dois oscila ¬ a solu ção miraculosa, completou 0 quadro e, com seu malogro,
ram, sendo que, na esfera da ideologia, a revolu ção correu solta forçou o governo revolucioná rio a enfrentar em conjunto, como
( tanto no célebre “ debate económico” quanto na doutrina da nunca o fizera antes, os problemas económicos, tecnológicos,
simultaneidade dos dois estágios). A forma política, porém, só demográficos, de organização do espaço, administrativos, sociais
avançou concretamente nas medidas prá ticas, intrínsecas à e políticos decorrentes do impacto do padrão de desenvolvimento
coletivização, às nacionalizações, à ação direta do governo revo ¬ socialista.
lucioná rio sobre a estruturação da economia, à redução do con ¬ O que importa assinalar é que n ão ocorreu um esforço criati ¬

sumo e à expansão dos serviços fornecidos à população. Na vo para engendrar uma teoria revolucionária adaptada a essas
verdade, Cuba ficou presa ao dilema de gerar um excedente eco ¬ condições de eclosão histórica do período de transição, que pro¬
n ómico que financiasse sua sobrevivência e permitisse conver ¬ pusesse as contradições emergentes e a política para enfrent á-
ter o sistema de produção capitalista neocolonial em um sistema las [compare-se essa evolução com a que se d á na União Soviética,
de produ ção socialista (um dilema que encontrou a mais viva desde a volta de Lenin e as “ Teses de Abril” em diante]. De fato,
descrição no discurso de Fidel Castro de 26 de julho de 1970). a liberdade de opção revolucionária real era tão estreita que a
Por isso, não se pode dizer, com sentido estrito e específico, que prá tica revolucionária foi em uma direção e o discurso revolucio ¬

houve uma aceleração do desenvolvimento socialista. Foram ná rio em outra [comparem-se as idéias - chave da revolu ção, ex¬
criadas ou instituídas as bases da montagem de um padrão de postas na unidade did á tica precedente, com a realidade do
desenvolvimento socialista. Assim que este comece a render seus planejamento cubano e a crítica que dele fez Fidel Castro, em
dividendos mais altos, os atritos entre os elementos econ ómicos 1975, já indicada acima]. Enquanto as questões cruciais mais
e os elementos polí ticos poderão ser absorvidos de modo gradual elementares permaneciam sem equacionamento ou eram solu ¬
e, presumivelmente, r ápido. Certamente surgirão condições ma ¬ cionadas de maneira precá ria, provisória e semi- socialista, as
teriais mais propícias ao deslanchamento da repartição socia¬ questões mais candentes encontravam solu ção definitiva na re ¬
lista e ao aparecimento de formas socialistas de participação social presentação ideológica (e utópica).
e polí tica. Esse paradoxo, dadas as peculiaridades de firmeza revolucio ¬
Não se trata, é claro, de defender um estreito “ determinismo nária e de responsabilidade política de toda a vanguarda no po ¬
económico” (ou de volatilizar as “ conquistas económicas” da der, exige uma reflexão crítica atenta. Penso que se deve indagar,
revolução). Esta ficou bloqueada entre o volume e o crescimen ¬ lukacsianamente, qual era a função revolucionária do extremis ¬
to da população, a massa das necessidades vitais e os custos da mo ideológico que floresceu em Cuba, aparentemente desligado
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( COLE ÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

da situação concreta e em evidente conflito com ela. Para enten ¬ Acredito que essa abordagem permite situar e esclarecer as três
der- se o paradoxo, é preciso apanhar sociológicamente o quadro questões fundamentais que uma interpretação atual da revolução
todo, com as tendências de contrapeso do governo revolucioná ¬ cubana suscita inevitavelmente: 1. a que diz respeito à baixa densi ¬

rio, pondo no primeiro plano outras figuras da revolução, como dade da socialização política propriamente socialista; 2. a que se
Raul Castro e Carlos Rafael Rodriguez, por exemplo. Fazendo- relaciona com a escolha da forma política democracia popular como
se essa rotação, percebe- se que a revolução avançava por baixo, etapa inicial de implantação do socialismo; 3. a que se refere à forte
pela “ base objetiva” (graças à reconversão da economia e à im ¬ consistência da opção socialista, malgrado outras debilidades. Com
plantação sem vacilações de um processo extremamente duro uma excursão por esses três tópicos poderemos dar por encerrada a
de acumulação socialista originária de longa duração). O dis ¬ discussão da presente unidade de trabalho didático.
curso ideoló gico puro, radical e extremista preenchia duas tare ¬ A baixa densidade da socialização política propriamente socia ¬

fas. Uma, que podemos negligenciar, de imantar a revolução lista transparece em diversos níveis. Um dos mais notáveis vem a
cubana ao marxismo-leninismo, separando -a de outras revolu ¬ ser o do pr óprio discurso revolucionário “ oficial” . Entre os dois
ções proletárias do século 20 e fixando-a entre as grandes revo ¬ expoentes desse discurso, só Che Guevara tocou, de passagem, no
luções comunistas da história. Outra, que é a que nos interessa j problema da proletarização da consciência revolucionária da van ¬

no momento, que consistia em conquistar as mentes e os cora ¬ guarda. O que atrai mais a atenção é que Fidel Castro, cuja perso ¬

ções, em transformar toda Cuba em um novo e formidável exér ¬ nalidade se converteu em fator histórico do desencadeamento e
cito rebelde. Não se tratava de “ militarizar” Cuba e os cubanos, i estabilização da revolução, raramente se identifica com o proletá-
como tantos intérpretes superficiais entendem. Mas de mobili ¬
I rio e com o proletariado (ao contrário dos grandes revolucionários
zar e de engajar o povo cubano, com todo o vigor possí vel e de \ comunistas, que assumem esse simbolismo livremente).Fidel Cas ¬

modo persistente, nas duas batalhas em curso: a sobrevivência tro dirige- se, de preferência, aos “ humildes”, ao povo” e, com

de Cuba e a reconversão da economia e a implantação de um 1 menor freqiiência, aos “ trabalhadores”. E guarda uma decorosa
padrão de desenvolvimento socialista. j reserva psicomoral, que inibe sua projeção política no eu do pro-
Essa interpretação explicita o significado histórico- socioló¬
i letário e no nós do proletariado. Ainda não tive oportunidade de
gico do discurso ideológico da revolução. Ele não se vincula, ler o famoso livro de Blas Roca, Los fundamentos del socialismo en
nem no ponto de partida nem no ponto de chegada, à criação de Cuba (La Habana, Ediciones Populares, 1960). Mesmo assim, é
um espaço histórico de expansão do socialismo como forma eco ¬ possível acompanhar- se, pelas crí ticas sinceras e explosivas de
nómica, social e polí tica. Ele nascia e se esgotava em algo pré ¬ Fidel Castro, o grau de limitação teórica dos dirigentes [ confor ¬

vio: o grau de liberdade da ação revolucionária “ a partir de cima”. me transcrições feitas acima, no primeiro e no último tópico da
Por seu intermédio, o governo revolucionário pretendia alcan ¬ unidade de trabalho didático n° 4] e, também, dos próprios qua ¬

çar uma quase total autonomia de decisão e um crédito de con ¬ dros. A este respeito seria interessante considerar as seguintes afir-
fiança sem limites. A dialética da utopia,em suma,articulava- se { mações: “Na Universidade desaparecem em 1967 os estudos de
à dialética do real, só que a vanguarda revolucionária e o gover ¬
j economia política do socialismo” (0 que se corrigiu, nas transfor -
no que ela constituía se antecipavam aos movimentos concre ¬ j mações da década de 1970). “ Decai o estudo do marxismo-
tos, muito mais lentos, da história. leninismo a partir de 1966.” (“El desarrollo económico de Cuba”,
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COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA |

p. 97.) O livro de M. Harnecker é um rico manancial para quem trata-se de uma variação semântica e ela se explica politicamente
deseje estudar o horizonte cultural médio dos militantes de base e pela ênfase posta anteriormente pelo governo revolucioná rio na
do homem comum. É impressionante, ao lado de uma candura dinamização do poder local. O que deve ser ressaltado, como inega¬
política que já deveria ter desaparecido ou ser muito mais atenua ¬
velmente positivo, é que a saída pela democracia popular foi busca ¬
da, de uma arraigada confiança rudimentar no socialismo, a de¬ da a “ partir de cima” e com vistas a tirar a revolução do impasse
senvoltura com que certas “ técnicas de manipulação” das fórmulas político em que ela se viu exposta de maneira crónica.
oficiais são empregadas pelos quadros do PCC e alguns dirigentes Reconhecer tudo isso não implica ignorar as debilidades e os
administrativos ou sindicais. Para dizer o mínimo, isso só pode perigos potenciais dessa passagem. E, aqui, é necessário pensar
evidenciar a debilidade ou a inexistência de uma doutrinação mais em termos do futuro que do presente e de requisitos essenciais
marxista-leninista formal (através do PCC ou por outras vias). Ou do socialismo revolucion ário que em termos das contingências
seja, que a educação socialista revolucioná ria do proletariado ain ¬ históricas de Cuba. Reduzir tudo à dinâ mica da luta pelo poder
da se acha esmagada pelas célebres “ correias de transmissão” em de uma “ clique de revolucionários” ou à “ ortodoxia do PCC” se¬
que ela chega a inserir-se. Por fim, o PCC só realizou o seu pri¬ ria funesto à compreensão das exigências da situação. O que ga ¬
meiro congresso em 1975 e não se sabe: 1. se sua plataforma polí¬ nha caráter perturbador e requer uma reflexão crí tica objetiva
tica foi previamente discutida, de forma democrá tica e crítica, possui suficiente densidade para que se apanhe o problema desse
pelas bases e nas organizações revolucionárias de massas, que al¬ â ngulo. De um lado, o poder popular surge como uma solução
can çam uma parte extensa do proletariado rural e urbano; 2. se típica do topo ou da vanguarda. Buscou- se apoio nas bases, espe¬
essa discussão continua a ser feita e de que maneira, nesses dois cialmente através dos esclarecimentos e movimentos de forças
níveis, e com que conseqiiências. A defesa do caráter socialista da desencadeados pelo debate do projeto de Constituição Nacional,
revolução terá de vir do “ povo trabalhador ” e a socialização polí ¬
do referendo em que esta foi aprovada etc. Mas a solução não com ¬

tica indireta é insuficiente para produzir esse resultado. portou uma efetiva indagação prévia das bases (fundindo-se aqui
A organização do poder popular representa, como foi indicado, todos os organismos políticos e de massas da revolução). De outro
um promissor “ passo para a frente” . Os críticos do socialismo bu ¬ lado, o que é mais grave, a forma política democracia popular con-
rocrá tico provavelmente ficaram alarmados. Todavia, nas condi¬ cretizou-se de modo visivelmente incompleto e imperfeito. Pode-
-
ções concretas de Cuba é difícil imaginar se como consolidar a se raciocinar nestes termos porque, se a “ revolução a partir de
revolução em termos socialistas para acelerá-la em seguida (e com cima” ainda é uma realidade histórica, ela se antecipa e abre os
uma nova relação entre as “ massas” e a “ vanguarda” ). A “ revolução caminhos da democracia socialista. Quando se diz “ mais grave” ,
a partir de cima” , antes de dissolver- se, pode engendrar um proces¬ pois, o que se quer dizer é que, mesmo sem encarnar uma forma
so específico de proletarização do Estado e de constituição de um essencialmente democrá tica de decisão, a solução preferida pode¬
Estado democrático-popular, pelo qual o controle da revolução passe, ria ser mais ou menos coerente com os princípios do marxismo-
de fato, para o “ povo trabalhador” . Uma visão extremamente idea ¬ leninismo ( este mais ou menos significa n ão flutuação nos
lizada de Cuba e de sua revolução não nos deve impedir de reco ¬ princípios, mas adaptação deles às condições reais imperantes).
nhecer essa realidade. Talvez pareça exagerado converter o “ controle Ela é incompleta porque os mecanismos da eleição direta se
popular” do padrão soviético no altissonante poder popular. Mas, esgotam na base, no n ível municipal do poder popular ( no qual
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I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃO CUBANA

ele se confunde com o poder local). O que significa que o impul ¬ nacional entra em jogo tanto na defesa do socialismo quanto na
so dinâmico da democratização plena foi contido a esse nível, ambição reativa de fazer da revolução cubana uma manifestação
como se ele só tivesse de ser recebido e absorvido pelo poder exemplar do socialismo. É desse ângulo que se deve entender a
local. E é imperfeita porque aceita e consagra modalidades de serenidade com que são aceitos os prolongados sacrifícios que a
representação, que são avessas à própria essência da democracia implantação do socialismo vem exigindo e a esperança de que se
socialista, e porque acolhe interferências políticas que se tor ¬ possa acelerar o salto final, em direção ao comunismo.
nam potencialmente negativas, na medida em que elas podem H á, pois, uma raiz histórica na posição tomada por Fidel
associar- se à representação e enrijecê-la. O poder popular, que Castro com referência à simultaneidade dos dois estágios ( a ne¬
deveria impedir a cristalização de qualquer modalidade de do ¬ gação utópica está arraigada no “ povo trabalhador ” , embora ela
minação, converte-se, assim, na fonte de uma dominação que se não seja sofisticada, e se manifesta contra o passado, que a revo ¬
organiza e se institucionaliza mediante a forma política assumi ¬ lução já destruiu, e pela superação do presente, que a revolução
da pelo poder popular. Basta que se leve em conta como são in ¬ está construindo). Se se toma a questão desta perspectiva, o ful ¬
dicados, selecionados e confirmados os membros dos comités cro do debate teórico vem a ser 0 que representa um partido
executivos das assembléias municipais e provinciais; a consa ¬ comunista em confronto com a socialdemocracia. Voltamos, pois,
gração da eleição indireta para as assembléias provinciais e para à formulação clássica de Lenin e valeria a pena lembrar, de pas ¬
a assembléia nacional; e o que descrevi como acoplamento do sagem, o que ele escreveu a respeito. “ A denomina ção de
governo revolucioná rio sobre as estruturas do poder popular - ‘socialdemocracia’ é cientificamente inexata, como Marx o de ¬
para ter-se uma imagem concreta do alcance e da gravidade dos monstrou na Cr ítica do programa de Gotha ,em 1875, e como Engels
riscos potenciais de deturpa ção do poder popular (por uma 0 repetiu em uma exposição mais popular, em 1894. Do capita ¬

burocratização por dentro da democracia popular e de um Esta¬ lismo a humanidade só pode passar diretamente ao socialismo,
do democrá tico popular que deveria ser transitório). A exposi ¬ isto é, à propriedade coletiva dos meios de produção e à reparti ¬
ção anterior revela que toda a evolução foi entendida e justificada ção dos produtos segundo o trabalho de cada um. Nosso partido
à luz do solo histórico da revolução. Mesmo assim, não se pode vê mais longe: o socialismo deve inevitavelmente transformar¬
ignorar esses dois aspectos se se pensa que a forma política de¬ se pouco a pouco em comunismo, sobre a bandeira do qual está
mocracia popular deve ser absorvida e eliminada com a brevida ¬ escrito: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um se ¬
de poss í vel, em uma etapa subseq üente de consolida ção do gundo suas necessidades” ’. (“ Les tâches du proletariat dans notre
socialismo e de passagem para o comunismo. revolution” , 1917; Oeuvres , Volume 24, pp. 77-78.) Trata-se de
A opção pelo socialismo fixou-se, em Cuba, como parte da um enunciado claro e completo. Ele exclui a possibilidade de
síndrome anticolonialista e antiimperialista. Mesmo a tentativa uma passagem direta mas propõe a necessidade de uma trans ¬
de fortalecer o topo governamental no â mbito da atual fase de formação cont ínua do socialismo em comunismo (aliás, a fron ¬
organização do poder popular prende-se a essa síndrome. O povo teira que separa a reforma do capitalismo e o socialismo
cubano converteu a revolução numa forma suprema de afirma ¬ oportunista do marxismo).
ção nacional, o que contribuiu para tornar o socialismo uma rea ¬ É evidentemente importante refletir sobre as implicações
lidade histórica irreversível. Em conseqti ê ncia, o orgulho dessa posição teórica à luz da revolução cubana. Por suas difi-
324
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

culdades e contradições talvez ela seja a mais difícil entre as “ re¬ ANEXO 1
volu ções socialistas difíceis” de nossa época. Não obstante, ela
se obriga à nega çã o ut ó pica , aplicando - se as normas de
exemplaridade e de superação que são sua marca peculiar. Ela
não procura ser tão somente socialista, mas socialista em busca
do comunismo, isto é, ela relativiza os fins imediatos e absolutiza
os fins mais ou menos longínquos, de larga duração. Para mui¬
tos, essa seria uma dimensão irrealista da revolu ção cubana, 0
preço que ela paga ao “ idealismo” de revolucionários amadores.
Todavia, a América Latina ficou tão presa ao imobilismo das
revoluções burguesas em atraso e ao bloqueio imperialista do
atual capitalismo monopolista que seria melhor enxergar nesse
extremismo maduro o ímpeto indomável da eclosão proletária. REVOLUÇÃO CUBANA: SIGNIFICADO E CAMINHOS *

Alfredo Bosi - ( ...) há uma experiência que eu acho muito impor ¬

tante e que agora começa a ser assimilada pelo público, que é 0 seu
conhecimento da Revolução Cubana. Em que medida 0 seu co¬
nhecimento, que foi mais íntimo com a Revolução Cubana e so¬
bretudo a Cuba posterior à revolução, em que medida isso lhe deu
uma nova perspectiva para estudar a relação entre Estado, educa¬
ção e desenvolvimento? Temos aí um esboço de prática socialista,
da relação do Estado com a educação. Essa experiência 0 senhor
estudou topicamente, em Cuba, ou isso abriu alguma perspectiva
para 0 estudo dos países latino-americanos em transformação?
Nessa questão particular de relação da educação com 0 Estado.

Para responder essa pergunta, que é muito boa, eu tenho de


voltar um pouco. Porque, na verdade, todo o problema da dinâ ¬
mica da sociedade de periferia, eu acabei levantando teorica-

FERNANDES, Florestan. Publicado na Folha de S . Paulo cm 171/1984 e


reproduzido em A força do argumento, coletâ nea organizada por ão Roberto
Jo
Martins Filho, editada pela EdUFSCar cm 1998.
326
[ COLE ç ãO ASSIM LUTAM OS POVOS 327
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBANA

mente nos trabalhos que se iniciam no fim da década de 1950, pitalismo de vá rias maneiras. Marx era muito rigoroso, capital
início da de 1960 em alguns ensaios. Mas realmente a investiga ¬ mercantil, capital industrial, a classe como formação social es ¬
ção empírica e o trabalho de interpretação rigorosa começam pecífica, não como categoria geral. No Manifesto e em outros
apenas com o estudo do negro. Há uma tendência de chamar o escritos, eles falam de luta de classes no sentido geral, mas eles
estudo do negro de um estudo de relação racial. Ele não é bem est ão pensando classe independentemente da sua especificidade.
isso. É um estudo de relação racial, mas não feito para esgotar a Eles estão pensando é numa formação social que se vincula ao
problemá tica nos termos em que os estadunidenses converte ¬
aparecimento do capital industrial. Na relação que se dá graças
ram a relação racial, numa análise que não questiona a socieda ¬ à e através da mais-valia, a dinâ mica da acumulação capitalista.
de, nem as classes, nem o capitalismo. O ú nico trabalho de lá Ent ão, eu fico colocando diante da hist ória brasileira este
feito dessa perspectiva é o do [Gunnar] Myrdal, que foi feito questionamento: quando realmente desaparece o estamento e
com colaboradores. O Myrdal é socialista, moderado mas é socia ¬ surge a classe? Por que Marx e Engels têm coragem de usar o
lista, e ele questiona as classes, a ideologia das classes. E surgi¬ conceito de estamentos, mas nossos marxistas têm medo? O con ¬
ram alguns trabalhos posteriormente quanto a educação, quanto ceito de casta, talvez eu tenha usado de maneira um pouco livre.
a relações raciais, aprofundando e radicalizando essa temá tica. Mas para distinguir o escravo do pró prio negro e do mulato que
Aqui a investigação sobre o negro me permitiu ir al ém das fron ¬
eram membros de estamentos eu tinha que ter uma outra cate¬
teiras da extin ção do indígena, dos povos livres. Eu pude apa ¬ goria e já houve esse uso livre do conceito de casta, então vamos
nhar toda a dinâmica da sociedade escravista e toda a passagem lá. Eu comecei esse questionamento e pude fazer através desta
do escravismo para o trabalho livre e as limitações que isso so ¬ investigação. As primeiras an álises surgem em Negros e brancos
fre. E com isso a minha inteligência da revolução burguesa na em São Paulo.1 O primeiro e 0 segundo capítulos são uma refle¬
periferia ganha uma outra dimensão. No Brasil, se falava muito xão concentrada sobre o desenvolvimento económico e o desen ¬
sobre a revolução burguesa numa perspectiva, por assim dizer, volvimento social de São Paulo, apanhando 0 negro e o branco
da revolução que ocorreu na Fran ça e na Inglaterra, e de outra como ponto de referência para explicar, através da estratificação
maneira na Alemanha, e de outra nos Estados Unidos, e que social e da transformação das estruturas sociais, essa história.
fatalmente vai ocorrer aqui. Como se fosse intrínseca ao capita ¬ Depois da Integração do negro2 a í realmente eu pude inclusive
lismo. É como uma doença venérea, o sujeito acaba adquirindo fazer o retrato aproximado da revolução burguesa, como ela se
uma vez na vida pelo menos. A revolução burguesa vai acabar equaciona historicamente em termos débeis, através do fazen ¬
sucedendo aqui. deiro, do imigrante. Todo esse ponto de referência me levou a
Eu fui levado a fazer um questionamento mais profundo das
classes e do seu â mbito porque é realmente classe no sentido
1
rigoroso, quando você pensa como o Marx. Porque se você não Negros e brancos em São Paulo. Em colaboração com Roger Bastide. Publicação
prévia: Revista Anhembi , 1953; edição original, Sã o Paulo, Editora Anhcmbi ,
quer pensar que o capitalismo surge já com a escravidão, se você
1955
não adota conceitos fluidos, Marx nunca fala capitalismo co ¬ 2
A integração do negro na sociedade de classes. Primeira edição, São Paulo, FFLCH-
mercial, ele fala capital mercantil, isso quer dizer alguma coisa. USP, 1964; segunda edição, em dois volumes, São Paulo, Dominus-Editora
Weber era mais livre no uso de conceitos, podia qualificar o ca- da USP, 1965; terceira ediçã o, cm dois volumes. Sã o Paulo , Á tica, 1978.
328 329
COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS A GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLU ÇÃ O CUBA

conhecer a dinâ mica de uma sociedade colonial. Eu fui levado a dos alienam a independê ncia que os cubanos ganharam na fren ¬

uma distinção entre o que é colonial e o que é neocolonial, o que te militar. E, através de processos econó micos, culturais, pol í ¬
é dependente. Você tem isso no ensaio que eu elaborei em To ¬ ticos e diplom á ticos, criam uma situa ção neocolonial de grande
ronto,3 saiu em 1969, sobre dominaçã o externa na América La ¬ vitalidade, de grande envergadura. Lá eu pude estudar como,
tina, a separação precisamente entre esses momentos, eles são afinal de contas, se repete em Cuba a histó ria comum da Am é¬
hist ó ricos mas são também estruturais e às vezes o estrutural vai rica Latina, quer dizer, as tais revoluções que n ão se concluem,
al é m do hist órico. H á pa íses que ainda estão numa situa ção que se paralisam porque a burguesia nã o é uma burguesia de
neocolonial até hoje : é o caso do Haiti, do Peru, do Paraguai e de pa ís com desenvolvimento capitalista autó nomo, ela est á su ¬

muitos países. Outros conseguiram passar para uma situa ção de jeita a uma domina çã o externa .
dependência que se caracteriza pela absor çã o de estruturas de Isso nos leva a Gramsci de novo : para ele foi muito impor ¬
produ çã o diferentes. Essa problemá tica eu monto empí rica e tante interpretar a situa ção dif ícil da Itália na relação com ou ¬

teoricamente através do estudo do negro, e pude com ela refletir tras na çõ es que exerciam hegemonia econ ó mica, pol í tica e
comparativamente sobre a Am é rica Latina. Em Toronto, eu tive cultural dentro da It á lia. Aqui a presença das nações n ã o se
oportunidade de dar cursos trabalhando com essas idéias, um dava em termos de hostes militares, mas se dava de outra for ¬

pouco precariamente de in ício, mas eu já tinha escrito a pri ¬ ma . E a pr ópria burguesia vive a mesma inseguran ça, ent ão,
meira parte e a segunda não acabada da Revolução burguesa no sã o revolu ções que n ão se completam. E 0 que é peculiar a Cuba?
Brasil 4 que eu escrevi em 1975; ent ã o, eu j á tinha um amadure ¬ Por causa da situação neocolonial se tornar extremamente viva,
cimento muito grande desse arsenal. Com isso, em Toronto, a luta contra a ditadura, a luta contra a rep ú blica t í tere, a luta
quando eu me vi na obriga ção de tomar uma perspectiva mais contra o imperialismo, que assumia proporções dram á ticas,
ampla, premido por um movimento pol ítico mais aguçado, com acaba gerando um nacionalismo libertá rio que desata num pro ¬
maior liberdade, eu n ão só me informei sobre uma literatura cesso diferente do resto da Am érica Latina . No resto da Am é ¬
que n ã o era exeq üí vel aqui, como també m acabei dando cursos rica Latina, as revoluções de independência ocorreram no in ício
sobre pol ítica no Terceiro Mundo, em colaboraçã o com um do século, ou até o meio do século; em Cuba, ela surge em 1868,
professor australiano. Nesse curso, me cabia dar a parte da ressurge em 1893-95 e reflui. N ã o surge, ent ã o, uma burguesia
Am érica Latina : 10 exposições, das quais eu reservei 3 ou 4 capaz de tomar conta do Estado e usar o Estado como um ele ¬
para Cuba . Eu pude ver como em Cuba aconteceu a mesma mento de autodefesa e preserva çã o das estruturas coloniais,
coisa que no resto da América Latina, só sucedeu de uma ma ¬ neocoloniais e de dependência. Em Cuba, os Estados Unidos,
neira pior, porque l á a situação neocolonial se restabelece com através de uma dominação indireta de tipo específica, saturam
uma grande vitalidade, graças ao fato de que os Estados Uni ¬ de tal maneira os espaços que a luta contra a ditadura, contra a
dominação externa, contra a ausência de independência nacio ¬


Trata-se provavelmente de The Latin American in residence lectures. Toronto:
nal acaba evoluindo num sentido que poderia ser contido den ¬
University of Toronto, 1969-1970.
tro do capitalismo, mas se os diferentes setores da burguesia
4
Revolução burguesa no Brasil . Ensaio de interpretação sociológica . Rio dejaneiro, cubana e os Estados Unidos revelassem flexibilidade. Houve
Zahar Editores, 1975; 2a edi ção, 1976; 3a edição, 1981 . todo o problema da socialização pol ítica dos guerrilheiros, 0
330 331
COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃ O CUBANA

fato de eles saberem o que nã o queriam, o fato de eles aceita ¬


Por aí eu tive um pouco a reflexão que não repete o que disse
rem os n íveis histó ricos da revolução. O fato é que em seguida Fidel Castro em Sierra Maestra, que o paradigma da revoluçã o
eles conquistam o poder, v ão ao poder com um governo de com ¬ ali era um parâ metro de conciliação com a burguesia; nem o que
posição nacional, mas dão oportunidade para provar que nem diz o Che num dos ensaios, discutindo a questão de se a Repú ¬
os setores mais fortes da burguesia cubana nem os Estados blica Cubana se repetir á, ele diz que se repete porque ele acredi¬
Unidos aceitariam uma reforma do capitalismo. Realmente n ão tava na forma guerrilheira. Eu não acredito na forma guerrilheira.
se trata de uma debilidade da burguesia cubana, trata - se de A minha formação política anterior inclusive não me levava a
uma impossibilidade. O que a burguesia intenta ? A partir do pensar que a guerrilha seria 0 caminho, embora como sociólogo
governo, expulsar os guerrilheiros. Os guerrilheiros, com o at é antes eu já tivesse dito que, se houvesse uma revolução, a
controle do exé rcito, da policia e com o apoio da popula ção, massa da população não tem na América Latina nenhum moti ¬

deslocaram a burguesia . A pressão dos Estados Unidos foi se vo para ser leal a um regime que n ão lhe d á nada senã o oprobio,
intensificando e o que aconteceu ? A Revolu çã o Cubana foi parar exclusão e miséria. Havendo oportunidade vai haver 0 que hou ¬

no n ível hist ó rico dela, quer dizer, é a ú nica revolu ção na Am é ¬ ve em Cuba : uma eclosão. Mas é que os guerrilheiros viam que
rica Latina que entra na corrente da hist ória moderna, por causa poderiam apanhar o apoio da massa. Mas 0 que os guerrilheiros
dessas circunstâ ncias. Eles foram bastante sagazes e l úcidos n ão viam é que a situação revolucion á ria n ão foi criada por eles,
para avan çar. Na verdade, a Uniã o Soviética cobriu a retaguar ¬ ela foi produto de uma longa evolu ção, que n ão começa sequer
da e Cuba entra no processo da hist ó ria moderna. Ent ã o, o que em nosso século, começa com o desenvolvimento do sistema
eu penso a partir da í ? Eu n ão estou pensando apenas como colonial, na maneira pela qual a dominação dura até o fim do
socialista que gostaria da revolução, eu estou pensando como século e é substitu ída não pelo regime representativo da bur ¬
sociólogo, quer dizer, uma revolução que se tornou possí vel guesia, mas por um regime títere, governos sucessivamente di ¬
em Cuba e que é necess á ria para o resto da Am é rica Latina tatoriais de articulaçã o de interesses burgueses internos e
provavelmente é a revolu ção que responde à contra- revolu çã o externos, principalmente estadunidenses. Eles não viram que
da burguesia, que responde aos regimes ditatoriais de seguran ¬ essa situa ção revolucionária não é a guerrilha que cria, ela é pro ¬
ça nacional que eu chamei de autocracias burguesas. Quer di ¬ duto da hist ória; o que eles tiveram foi a inteligê ncia de se loca ¬
zer, a saída n ã o se d á mais pela burguesia, que é uma burguesia lizar dentro dessa situação revolucion á ria e de ver que aquela
internacionalizada agora, com economia internacionalizada ditadura poderia ser removida com o poder militar e de levar a
aliada a um imperialismo de uma maneira tal que ela est á para ¬ revolu çã o até o fim.
lisada, ela n ão pode avançar mais do que através do desenvol ¬
Para concluir, eu queria dizer o seguinte: qual é o significado
vimento acelerado . A ú nica coisa que ela sabe fazer é da Revolução Cubana. É que a América Latina tem uma alterna ¬

modernizar e incorporar as economias capitalistas internacio ¬ tiva histórica, essa alternativa não está no capitalismo, ela n ão é
nais, absorver padrões de capitalismo avançado, que na verda ¬ aberta pela democracia burguesa, não é aberta pelo imperialismo,
de jogam fora do sistema de trabalho uma grande parte da não é aberta pela internacionalização da economia capitalista, ela
sociedade brasileira e ao mesmo tempo uma parte maior ainda é aberta exatamente pelo socialismo. A via pela qual Cuba chegou
na misé ria permanente. ao socialismo é muito peculiar. Eu não diria, como Che, que nesse
332 I 333
I COLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA

sentido a experiência de Cuba vai ser paradigmática, vai se repe ¬ Desse ângulo, qual é a importâ ncia dessa revolu ção? É para
tir. Agora, essa revolução sim, porque esses povos não tê m alter ¬ tudo, não é só para a educação, não é só para a saú de pública, não
nativa, o capitalismo cria situações na América Latina convertendo é só para a liberdade da pessoa, embora aí as coisas num país de
países como Brasil, México e Venezuela em plataformas do siste ¬ transição precisem ser postas concretamente. Não se trata de re ¬
ma de produção mundial. E com isso toda uma parte da América petir os sonhos falsos da burguesia, é preciso um sacrifício terrí ¬

Latina é condenada a uma dependência que consigo preserva es¬ vel, uma disciplina tenaz, e as pessoas estão se sacrificando não
truturas coloniais e neocoloniais e cria estruturas novas de rela ¬ por um futuro melhor delas mesmas, mas pelos filhos e pelos des¬
ção dependente que são permanentes. E dentro delas o capitalismo cendentes. Nesse plano a revolução discute os problemas. Pela
não resolve os problemas que tecnicamente ele poderia resolver. primeira vez, indo a Cuba, por exemplo, eu saio do Brasil e só vejo
Ele resolveu problemas que nós enfrentamos na América Latina, favelas; por sorte os aeroportos são estratégicos para a gente ver as
que não originariam uma revolução e que seriam resolvidos numa favelas. Agora, no Rio, está mais camuflado. Vou para o Peru e
escala de riqueza estadunidense, francesa, inglesa, alemã. Na tenho essa visão na escala mais dramática possível, as barriadas no
América Latina isso não é possível porque o excedente económi¬ Peru abrangem quilómetros e quilómetros, num terreno árido, de
co é apropriado, como eu chamo, dualmente: uma parcela fica pó, de extrema miséria, sem plantas. Chegando em Cuba, a gente
nos países nas mãos das classes privilegiadas e outra parcela vai vê que n ão é a pobreza que cria isso, é a exploração capitalista, a
para o exterior, vai para os grandes bancos, para as grandes dominação externa do imperialismo, porque aquele pa ís também
multinacionais, para as nações poderosas, tanto a superpotência é pobre, aquele país gasta uma grande parte do seu excedente eco¬
quanto outras nações hegemónicas. O que fica na América Lati ¬ nómico para se armar, para se defender dos Estados Unidos. E, no
na, em termos de potencial para que o capitalismo resolva proble¬ entanto, a gente vê como funcionam as escolas, a assistência que
mas técnicos de cará ter humano, é tão pouco que não dá sequer se dá às crianças sem privação de nenhum tipo, na alimentação,
para enfrentar os problemas dos estratos mais pobres da pequena na roupa, a assistência que se dá aos doentes, aos velhos e, ao mes ¬

burguesia. Com isso, então, nós temos uma equação líquida : a mo tempo, um esforço concentrado no sentido de suplantar as
saída é a revolução. Agora, como chegar pela via cubana, aí o pro¬ dificuldades de um país que está tentando fazer revolução socia ¬
blema é outro, a história é outra. A maneira pela qual Cuba fez a lista com base na agricultura e na exportação de produtos de ori ¬

revolução não se repete porque os países centrais estão natural¬ gem agrícola, como o açúcar. Então, por aí nós vemos que Cuba
mente alertas e, em conseqiiência, quando a experiência se repete não permite resolver todos os problemas de educação, saú de pú ¬
nós temos o que está acontecendo na Nicarágua, em EI Salvador: blica, socialização política do poder, porque ainda estamos numa
a revolução não tem como defender o seu ritmo, a sua integrida¬ fase de consolidação do poder, o Estado sobrevive, não alcança¬
de, avan çar, ter conexão com a história mundial do socialismo mos a fase de destruição do Estado, infelizmente. Mas há uma
que é a via pela qual as coisas terão que se desatar. Sem uma evo¬ tentativa de organizar o poder popular, de avançar numa direção
lução mais profunda, sem que os países socialistas se fortaleçam e nova e principalmente de tirar o desenvolvimento dessa função
tenham coragem de enfrentar as nações capitalistas mundialmente, unilateral que ele adquiriu desde o período colonial, porque ele
essas revoluções são naturalmente condenadas a um fracasso par ¬ sempre foi um elemento de exploração dos povos na América
cial. Latina, isso termina com socialismo.
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

Nesse plano, Cuba não só mostra o caminho que est á aberto ANEXO 2
historicamente, o problema agora é de oportunidade histó rica,
que vai depender do confronto entre as na ções capitalistas e as
na ções socialistas; as na ções socialistas crescendo, ele vai au¬

mentar. Cuba ganhou a oportunidade de palmilhar o caminho,


graças ao fato de que a Uniã o Soviética ficou com a cota do açú ¬
car que os Estados Unidos deixaram de absorver, e ao mesmo
tempo dispensou a Cuba uma coopera çã o intensa e contí nua.
Agora, os outros pa íses precisam de um espa ço maior, precisam
que as nações socialistas cresçam até um ponto no qual elas pos ¬
sam paralisar o esfor ço que as nações capitalistas fazem para
impedir essa segunda revolução. Basta ver o que acontece na
Nicarágua, em EI Salvador, quer dizer, qual é a fonte de paralisa¬ 25 ANOS DE CASTRISMO - A VITÓ RIA DA REVOLU ÇÃO CUBANA’
ção dessas duas revoluções ? Elas não são internas, elas sã o ex¬
ternas, e n ã o h á uma na çã o socialista capaz de impedir esse O capitalismo foi incapaz de introduzir na América Latina
processo, de solapamento, de impedimento do desate da revolu ¬ o ciclo de suas revolu ções típicas. Para garantir o seu desenvol ¬

çã o socialista na Am érica Latina. vimento, 0 capital teve de recorrer, com freqiiência, a ditaduras
crué is. Oscilou sempre entre o conservantismo, a revolu ção po ¬
l ítica (pela cú pula) e reformas de superf ície, de alcance social
restrito, culminando na consagra ção da contra- revolu çã o pre ¬
ventiva como ú ltimo recurso de autodefesa. É em confronto com
esse quadro que se deve avaliar a revolução cubana. Ela retira a
América Latina da constante das “ revolu ções interrompidas” e
da retó rica ideol ógica “ liberal” , que proclama 0 reformismo e 0
nacionalismo democr á tico, enquanto o capital se vale da for ça
bruta dos militares e da opressão como um estilo de vida. A
internacionaliza çã o das economias somente beneficia os inte-

Nota do editor : parte referente a Cuba c à revolu çã o na Am é rica Latina do


longo depoimento de Florcstan Fernandes a Alfredo Bosi, Carlos Guilherme
Mota c Gabriel Cohn , realizado no Museu da Imagem e do Som ( MIS ) , em
S ã o Paulo , em 26 de junho de 1981 , publicado na ediçã o 42 da revista Novos
Estudos , de 1995, editada pelo Centro Brasileiro de An á lise c Planejamento
( Gcbrap ) .
336
IcOLEÇÃO ASSIM LUTAM OS POVOS DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A REVOLUÇÃO CUBANA
337

resses financeiros, nacionais e estrangeiros. Os trabalhadores A guerrilha, que conquistou o poder, não gerou por si mes¬
assistem atónitos ao espraiar de uma “ abundância” que não os ma essa situação histórica revolucioná ria. Ela própria foi causa ¬
alcan ça e que multiplica sem cessar os í ndices de miséria, de da por tal situação, que iria exigir ainda, mais tarde, a aplica
ção
migrações dos miseráveis, de violência contra os desvalidos, de de práticas guerrilheiras na condução do Estado revolucion
ário
exclusão, espoliação e marginaliza ção dos mais humildes. e em todas as esferas da vida. A guerrilha e o Exército rebelde,
A revolução cubana n ão só rompeu com esse paradigma, ela que a substituiu, se constitu í ram no braço armado da
revolução,
forjou uma realidade histórica oposta. Ela comprovou que a po ¬ primeiro para bater a ditadura de Batista, em seguida para
der ¬
breza, a “ apatia das massas ” e o subdesenvolvimento n ão sã o rotar o despotismo arrogante dos Estados Unidos, reduzir
a es ¬
obstáculos intranspon íveis à mudança social revolucionária. combros o antigo regime e lan çar os alicerces de Cuba
Ficou patente que qualquer país latino-americano tinha ao al¬ revolucionária. A revoluçã o cubana encerrava uma época histó¬
cance das mãos uma saída revolucionária para os seus dilemas, rica e, o que é mais importante, abria a época histórica
nova,
insolú veis dentro do capitalismo. A ilha possui pequeno porte impregnada de nacionalismo libertá rio, de antiimperialismo
, de
geográfico e demográfico; fora reduzida à condição de produtor socialismo e de comunismo revolucion á rios. Uma conflu ência
de um único artigo (o açúcar) e de um ú nico mercado importa ¬ de ideais e de valores contraditórios, que se unificavam na práti¬
dor e exportador (os Estados Unidos); sofrera intensa devasta ¬ ca porque eram sustentados por forças sociais nativas
e
ção, seja por seu poderoso vizinho, seja por classes dirigentes centr ípetas e porque correspondiam à ascensão do povo
ao cen ¬
totalmente corruptas; conhecera, ao longo do tempo, o egoísmo tro da cena histórica. A autonomia da nação se configurava
como
frio de governos coloniais, de ditaduras mais ou menos expressão da vontade coletiva dos trabalhadores e a
continuida¬
impiedosas, de regimes democráticos de fachada e descobrira de da revolução repousava em seus ombros, como a única
classe
que nada poderia esperar de um Estado títere, um meio para revolucion ária que aparecera como tal na história de Cuba.
Os
outros fins das oligarquias internas, das plutocracias estrangei ¬
esquecidos e excluídos se convertiam, assim, na
verdadeira ga ¬
ras e do governo dos Estados Unidos. Os males do ciclo de tra ¬ rantia de que poderiam ocorrer ziguezagues e até oscila
ções
balho da cana, a miséria crónica da maior parte dos menores, o perturbadoras e retrocessos, mas eles n ão reduziriam
a revolu ¬
desamparo dos velhos, o inferno em que se transformara a vida ção cubana a uma “ revolução interrompida .

cotidiana das classes subalternas, a ruína irreparável da maioria Isso não quer dizer que a revolução cubana tenha cumprido
das famílias pobres não entravam em linha de conta na esfera todas as suas tarefas no quadro histórico da pré- transição.
É ób ¬
política. Esta só cuidava do desenvolvimento caucionando pe ¬ vio que não. A pobreza e o subdesenvolvimento continuam
lá,
los interesses da matriz e das classes privilegiadas locais. Tal si ¬ embora tenham deixado de ser um fator de desigualdade cres¬
tuação não comportava alternativa e o grosso da população ou se cente, de dominação, de iniq üidades sociais e polí
ticas, de ex¬
submetia passivamente a uma ordem social perversa ou teria de plora çã o do homem pelo homem , de cruel hegemonia
recorrer a uma insurreição cruenta contra ela. A revolução social estrangeira. A diferenciação do sistema de produção
enfrenta
brotava, portanto, como um “ produto natural” , o fruto maduro barreiras que nascem de condições naturais, com freqúência
de uma ordem social que caminhava cegamente na direção de agravadas pela praga estadunidense. As bases
materiais da ins ¬
um desmoronamento explosivo. tauração do socialismo são comprimidas naturalmente, exigem
338
I COLEÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS
DA GUERRILHA AO SOCIALISMO A
339
REVOLUÇÃO CUBANA

enormes e permanentes sacrifícios, impõem técnicas drásticas terna, oscilações nos mercados de preços etc., interferiram
de acumulação e de centralização do planejamento, o que afeta nas
previsões e no rendimento das programações. A década de
negativamente e por vezes impede uma consolidação mais rápi ¬
1980
herdou problemas que deveriam estar resolvidos ou, pelo me ¬
da da democracia proletária. Essas coisas não são ignoradas nem nos, atenuados. Não obstante, os programas de experimentação
escamoteadas ideologicamente. Elas comparecem com objetivi ¬
e de implantação do poder popular foram cumpridos à risca.
dade nos discursos e escritos de Fidel Castro, nos relatórios do Depois dos tateios iniciais da década de 1960 e de várias tentati ¬
Partido Comunista Cubano e em outros documentos oficiais. vas ulteriores de encetar a institucionalização do poder popular,
De outro lado, elas são de conhecimento comum e fazem parte finalmente emergia um salto qualitativo decisivo (com vistas à
da reeducação pelos fatos duros da vida. Da crian ça ao velho, situação de Cuba). Subsistem muitas arestas e contradições, que
todos sabem o que custa o que consomem (como objetivação do não vem ao caso debater aqui. Em si mesmo o avanço é impor¬
trabalho humano produtivo), o que representa e qual é o destino .
tantíssimo Ele ajusta certos requisitos de organização do poder
do que deixam de consumir (como condição da igualdade e do popular às bases materiais e aos ritmos históricos efetivos
desenvolvimento socialista) e por que o carro não pode ser posto da
revolução. Além disso, permite estabelecer um mínimo de con ¬
adiante dos bois em todos os n íveis (como ocorre com a instru ¬
troles democráticos institucionalizados sobre o planejamento,
ção pública, a assistência médica e hospitalar, o amparo à velhi¬
as tendências à burocratização e as atividades de um poderoso
ce, a garantia de emprego e a defesa militar ). Prevalece uma partido único. Não consigna nenhum passe de mágica com
grande ansiedade por novas conquistas e pela superação das li ¬
refe¬
rência à autogestão operá ria ou traz manifestações da forma po ¬
mitações e contradições imperantes - inclusive as que dizem lítica de democracia socialista. Mas confere corpo e fluidez à
respeito ao controle democrático do Estado revolucionário. Mas influência organizada do poder popular. E, ao fazê-lo, recupera
ninguém se dispõe a arriscar tudo o que se obteve em uma carta ¬
e refunde os ideais tidos por guevarianos (embora sejam, na ver ¬
da afoita e infantil. Os “ milagres” fazem parte da tradição capi
¬
dade, profundamente cubanos) de não permitir a preponderâ n ¬
talista, especialmente na periferia, porque as promessas nada cia do “ desenvolvimento económico” sobre a “ revolução social .
valem. ”
Guevara se batia por uma interdependência, que faria socialis¬
O teste polí tico da revolução cubana só se delineia efetiva ¬ mo e comunismo correrem parelhas em todas as transformações
mente na d écada de 1970. As metas mais ambiciosas de essenciais. A institucionalização do poder popular restabelece,
redimensionamento da produ ção e de aceleração concentrada portanto, o sentido histó rico da revolu ção cubana. O
do desenvolvimento económico são concebidas em fun ção da
socialismo
não vem para ficar, mas ele precisa ser consolidado como condi ¬
famosa crise da safra, uma crise que parecia económica, mas era ção para o advento do comunismo em uma etapa mais distante.
global e punha em questão a eficácia do governo e de todo o A revolu ção cubana, dessa perspectiva, desvenda o futuro da
regime, o que Fidel Castro percebeu e aproveitou corajosamen ¬ América Latina. Uma nova civilização já começou a ser criada,
te. Parecia que essa década permitira dar um grande salto eco ¬ em uma sociedade nova e por homens novos, libertos das servi¬
nómico, administrativo e político, encerrando a fase preparatória dões do colonialismo e do neocolonialismo. O que está em jogo
à transição socialista propriamente dita. Contudo, perdas de sa¬ não é mais o que se imaginou, na década de 1960, ser a “ via
fras, ocasionadas por fatores naturais, sabotagens de origem ex- cubana” para a revolução e o socialismo - a guerrilha. Após 25
340
I COLE ÇÃ O ASSIM LUTAM OS POVOS

anos de vitória e aprofundamento da revolução, Cuba dá uma


BIBLIOG RAFIA SELECIO NADA
lição de humildade, de firmeza e de hombridade, inclusive, que
a revolução possui vários caminhos na América Latina. Em um
plano mais amplo, ela realiza uma síntese que torna o socialis ¬
mo e o comunismo realidades nativas. Portanto, Cuba não ex¬
porta, como se disse com maldade, o “ socialismo da miséria” .
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1976, pp. 38-42.
PUBLICAÇÕES EXPRESSÃO POPULAR

1 . REALIDADE BRASILEIRA
História das idéias socialistas no Brasil - Leandro Konder
Belo Monte - uma história da guerra de Canudos - José Rivair Macedo e
Mário Maestri
Mato, palhoça e pilã o - o quilombo, da escravidão às comunidades
remanescentes (1532-2004) - Adelmir Fiabani
A linguagem escravizada - língua, história, poder e luta de classes - Florence
Carboni e Mário Maestri
Tiradentes, um presídio da ditadura - memórias de presos políticos - Alípio
Freire, Izalas Almada, J. A. de Granville Ponce (orgs.)
Dossiê Tim Lopes - Fantástico Ibope - Mário Augusto Jakobskind
O capital e a devasta çã o da Amazônia - Fiorelo Picoli

2 . CLÁ SSICOS
Clássicos sobre a revolução brasileira - Caio Prado Júnior e Florestan
Fernandes
Reforma ou revoluçã o ? - Rosa Luxemburgo
Sobre a prática e sobre a contradição - Mao Tse-tung
Fundamentos da escola do trabalho - M . M . Pistrak
O papel do indivíduo na História - G. V Plekhanov
A nova mulher e a moral sexual - Alexandra Kolontai
Lenin -
cora ção e mente - Tarso F. Genro e Adelmo Genro Filho
A hora obscura - testemunhos da repressão política - Julius Fucik, Henri Alleg
e Victor Serge
Estratégia e tá tica - Marta Harnecker
Marx e o socialismo - César Benjamin (org. )
Florestan Fernandes - sociologia critica e militante - Octavio lanni (org.)
Che Guevara - política - Eder Sader (org.)
Gramsci - poder, política e partido - Emir Sader (org. )
Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro - Karl Marx
Teoria da organização política I - escritos de Engels, Marx, Lenin, Rosa e Mao
- Ademar Bogo (org.)
Teoria da organização política II - Escritos de Mariátegui, Gramsci, Prestes, 5 . IMPERIALISMO
Che, Ho Chi- minh, Marighella, Álvaro Cunhal, Agostinho Neto, Florestan Imperialismo & resistência - Tariq Ali e David Barsamian
Fernandes - Ademar Bogo (org.)
Marti e as duas Américas - Pedro Pablo Rodrigues
6. AM ÉRICA LATINA
As metamorfoses da consciência de classe: o PT entre a negação e o
Políticas agrárias na Bolívia (1952-1979) - reforma ou revolução? - Canrobert
consentimento - Mauro lasi
Costa Neto
Rebelde - testemunho de um combatente - Femado Vecino Alegret
3 . VIDA E OBRA
Rosa Luxemburgo - Vida e obra - Isabel Maria Loureiro
7. LITERATURA
Paulo Freire - Vida e obra - Ana inês Souza (org. )
A m ãe - Máximo Gorki
O pensamento de Che Guevara - Michael Lõwy
Contos - Jack London
Anton Makarenko - Vida e obra - a pedagogia na revolu ção - Cecília da
Assim foi temperado o aço - Nikolai Ostrovski
Silveira Luedemann
Os mortos permanecem jovens - Anna Seghers
Florestan Fernandes - Vida e obra - Laurez Cerqueira
Week-end na Guatemala - Miguel Ángel Astúrias
Ruy Mauro Marini - Vida e obra - Roberta Traspadini e João Pedro Stedile
(orgs. ) Aqui as areias sã o mais limpas - Luis Adrián Betancourt
Mariátegui - Vida e obra - Leila Escorsim Poesia insubmissa afrobrasileira - Roberto Pontes

4. VIVA O POVO BRASILEIRO 8. ESTUDOS AGR ÁRIOS


Gregorio Bezerra - um lutador do povo - Aider Júlio Ferreira Calado A história da luta pela terra e o MST - Mitsue Morissawa
Abreu e Lima - general das massas - Angelo Diogo Mazin e Miguel Enrique Pedagogia do Movimento Sem Terra - Roseli Sálete Caldart
Stedile MST ESCOLA - Documentos e estudos 1990-2001 - Setor de Educação do
Lima Barreto - o rebelde imprescindível - Luiz Ricardo Leitão MST
Luiz Gama - o libertador de escravos e sua mãe libertária, Luiza Mahin - A QUESTÃ O AGR ÁRIA NO BRASIL - João Pedro Stedile (org. )
Mouzar Benedito - Volume I - O debate tradicional: 1500-1960
João Amazonas - um comunista brasileiro - Augusto Buonicore - Volume II - O debate na esquerda : 1960-1980
Luiz Carlos Prestes - patriota, revolucionário, comunista - Anita Leocadia - Volume III - Programas de reforma agrária: 1946-2003
Prestes - Volume IV - História e natureza das Ligas Camponesas: 1954-1964
Mar çal Guarani - a voz que nã o pode ser esquecida - Benedito Prezia - Volume V - A classe dominante agr ária - natureza e comportamento: 1964-
Roberto Morena - o militante - Lincoln de Abreu Penna 1980
Capturando a terra - Banco Mundial, políticas fundiárias neoliberais e reforma
agrária de mercado - Sérgio Sauer e João Mendes Pereira (orgs. )
9. DEBATES & PERSPECTIVAS 13. CADERNOS DE EXPRESS ÃO POPULAR
Á rvores geneticamente modificadas - Chris Lang As tarefas revolucionárias da juventude - Lenin, Fidel e Frei Betto
As três fontes - Vladimir Lenin
10. TRABALHO E EMANCIPA ÇÃO A História me absolver á -
Fidel Castro Ruz
A dialética do trabalho - escritos de Marx e Engels - Ricardo Antunes (org.) Sobre a evoluçã o do conceito de campesinato - Eduardo Sevilla Guzmán e
Toyotismo no Brasil - desencantamento da f ábrica, envolvimento e resistência Manuel González de Molina
-
Eurenice de Oliveira
Marx e a t écnica - um estudo dos Manuscritos de 1861 -1863 - Daniel
Romero
A liberdade desfigurada - a trajetória do sindicalismo no setor p ú blico
brasileiro - Arnaldo José França Mazzei Nogueira
O trabalho atípico e a precariedade - Luciano Vasapollo
Trabalho e trabalhadores do calçado - Vera Lucia Navarro
O olho da barbá rie -
Marildo Menegat
O trabalho duplicado a divisã o sexual no trabalho e na reprodu ção: um
-

estudo das trabalhadoras do telemarketing Claudia Mazzei Nogueira


-

O debate sobre a centfalidade do trabalho - José Henrique Carvalho


Organista
O trabalho no espa ço da f á brica - um estudo da General Motors em S ã o José
dos Campos - Gilberto Cunha Franca
Privatlza çã o da CSN - da luta de classes à parceria -
Edilson José Graciolli

11. REVOLTAS MILITARES


A esquerda militar no Brasil -
João Quartim de Moraes
A rebelião dos marinheiros - Avelino Bioen Capitani

12. ASSIM LUTAM OS POVOS


História do socialismo e das lutas sociais - Max Beer
Imagens da revolu çã o - documentos políticos das organiza ções clandestinas
de esquerda dos anos 1961-1971 - Daniel Aarão Reis Filho eJair Ferreira de

Da guerrilha ao socialismo -
A revolução cubana -
Florestan Fernandes

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