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34/Duas
Cidades, 2000.
[1] “Dito isto, há dissonância aguda entre a elevação de propósitos — algo incômoda — do ensaio
sobre o “Instinto de nacionalidade” e o clima desabusado que dá nervo às Memórias póstumas. Ao
transpor para o estilo as relações sociais que observava, ou seja, ao interiorizar o país e o tempo,
Machado compunha uma expressão da sociedade real, sociedade horrendamente dividida, em
situação muito particular, em parte inconfessável, nos antípodas da pátria romântica. O “homem do
seu tempo e do seu país”, deixava de ser um ideal e fazia figura de problema” (p. 9).
[3] a notação da realidade contingente, própria ao romancecomo forma, não tem seqüência, ou
melhor, não frutifica. A todo momento a narrativa a interrompe e transforma em trampolim para um
movimento de satisfação subjetiva, que pode serdo narrador, das personagens ou do leitor, e se
realiza à custa do real. Por sua repetição regular, que facilmente se percebe na diversidade das
circunstâncias, sobre a qual prevalece, este movimento adquire visos de metafísica, em que o
pormenor realista vê desativado o seu vetorhistórico ou psicológico e serve como alegoria de uma
verdade superior, ou de uma abstraçãosurrada: transparece a figura universal do espírito humano,
eternamente incapaz de se ater a realidade e razão, sempre pronto a fugir para o imaginário (p. 35).
[4] “Note-se ainda, a despeito da heterogeneidade, que todas as situações de nossa amostra vêm
escudadas no sentimento familiar. Este lhes serve de atenuante e justificativa, naturalmente com
resultado cômico. Quando quebra a cabeça de uma escrava, o Brasinho é filho querido de sua mãe e
de seu pai; quando emite cinismos sobre a função social dos pobres, o jovem capitalista o faz como
protetor de uma agregada; quando foge à modesta Eugênia, único bom sentimento de sua vida, será
na qualidade de moço de família importante, com obrigações de carreira etc. Ao lado da norma
liberal e com presença tão sistematizada quanto a dela, há aqui uma ideologia familista, calcada na
parentela de tipo brasileiro, com seu sistema de obrigações filiais e paternais abarcando escravos,
dependentes, compadres, afilhados e aliados, além dos parentes. Esta ideologia empresta
familiaridade e decoro patriarcal ao conúbio difícil de relações escravistas, clientelistas e burguesas.
A condenação liberal da sociedade brasileira, estridente e inócua, soma-se a sua justificação pela
piedade do vínculo familiar, cuja hipocrisia é outra especialidade machadiana. Condenação e
justificação contribuem igualmente para o concerto de vozes inaceitáveis em que consiste este
romance” (p. 46).
[5] “A referência européia e moderna leva a gente de bem a torcer o nariz ante a indolência popular,
ao passo que o embasamento servil da economia permite, sempre que oportuno, desconsiderar o
serviço prestado pelas pessoas pobres. A situação destas define-se complementarmente, e o que é
margem de escolha para os ricos — os dois pesos e as duas medidas — para o indivíduo sem posse
é falta de garantia. Não tendo propriedade, e estando o principal da produção econômica a cargo do
escravo, os homens pobres pisam terreno escorregadio: se não trabalham são uns desclassificados, e
se trabalham só por muito favor serão pagos ou reconhecidos” (p. 67).