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Arlindo Carlos Pimenta

As desventuras de um vovô pós-moderno


Arlindo Carlos Pimenta

Resumo
A partir do caso clínico de um sujeito idoso, o autor traça um desenvolvimento histórico da fa-
mília patriarcal e suas transformações até a contemporaneidade. Acentua as alterações nos laços
sociais caudados pela prevalência do discurso do capitalismo e pelo funcionamento em rede. Tece
algumas considerações sobre essas alterações, suas consequências e o processo contemporâneo
do envelhecer.

Palavras-chave
Família patriarcal, Discurso e laços sociais, Discurso do capitalismo, Funcionamento em rede,
Família pós-moderna, Envelhecimento.

O valioso tempo dos maduros

Mário de Andrade

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente
do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas...
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.
Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias
que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafectos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
‘As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência,
minha alma tem pressa…
Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos,
não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade,
Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial!
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As desventuras de um vovô pós-moderno

Giovani, hoje com 78 anos, procura muito estranho. Seu companheiro não
a análise pela segunda vez. Sua primeira tem um trabalho certo, tem dois filhos
demanda aconteceu há trinta anos, moti- de outros relacionamentos dos quais não
vada por uma crise conjugal, que acabou cuida e atualmente mora com a mãe.
desembocando no divórcio solicitado por Minha filha deixou escapar en passant que
sua mulher. ele é usuário de cocaína.
Naquela época ele se mostrava mui-
to angustiado e deprimido, sentindo-se Voltando a meus netos, de 8 e 11 anos,
culpado pelo término do relacionamento. tenho a maior dificuldade em me rela-
Dizia-se sem rumo, solto no tempo e no cionar com eles, pois praticamente não
espaço. Permaneceu casado por doze anos conversam, permanecendo o tempo
e teve três filhos (dois homens e uma todo no celular. Não têm paciência para
mulher). escutar um caso ou me contar o que se
Há cerca de um ano fui novamente passa com eles, o que faz com que eu me
procurado por Giovani. Fez um relato sinta um maçante saca-rolhas. Tentei
sucinto desses trinta anos. Nesse período comprar um baralho do tipo “mico pre-
teve dois relacionamentos com altos e bai- to” para jogarmos juntos, mas o olhar de
xos. Mas a demanda atual é outra. Agora, desdém por parte deles me fez recuar. Não
com 78 anos, aposentado, com problemas entendo de jogos eletrônicos. Tentei jogar
de audição (labirintite) e dificuldade de lo- com meu neto e fiquei abismado com sua
comoção, se viu acometido por um quadro facilidade em manejar o jogo. Resultado:
depressivo grave em que prevalecia, além perdi para ele de 17x0. A minha sensação
de profunda tristeza, perda de interesse é de grande estranheza e distanciamento.
pela vida, pelas leituras, que eram o seu Estamos em culturas muito diferentes.
forte, e principalmente por um retorno de Sou um estranho para meus netos e eles
lembranças de vivências de sua juventude, também o são para mim.
eivadas de um forte remorso.
Praticamente nada do que me esforcei para
Ouço de Giovani o seguinte relato: transmitir para meus filhos persiste ainda.
Em se tratando de valores familiares ou
Sou hoje um ser solitário. Tenho três políticos, somos absolutamente diferentes.
filhos que trabalham muito e não têm Minimizam os horrores da ditadura militar
tempo para nada. Um mora fora. Tenho no Brasil e acham que os norte-americanos
um contato maior com o mais velho, não tiveram nada a ver com isso. Fazer o
que demorou a se casar e tem dois filhos quê? São belos coxinhas de direita. Os
pequenos, com quem gosto de brincar. filhos do meu mais velho moram fora e
Minha filha é separada e tem um casal de me acham um retrógrado e preconcei-
filhos. Um menino de 8 e uma menina de tuoso porque não gosto de veados. Fre-
11. Tento me aproximar de meus netos, quentam boates GLS e vão à parada Gay.
mas encontro dois obstáculos principais.
Primeiramente, ao contrário de mim, que Minhas refeições são sempre solitárias.
tenho todo o tempo do mundo, eles não Normalmente não janto. No almoço ape-
têm tempo nenhum. Sempre têm deveres lo para o self-service e às vezes vou à casa
de casa em excesso, tais como aulas de de um dos filhos. Aos domingos é pior.
inglês, a menina faz balé duas vezes por Fico me lembrando dos ajantarados onde
semana, e o garoto joga futebol. Minha se reunia toda a família. Era uma festa.
filha está sempre atarefada e impaciente Às vezes discutíamos e brigávamos por
com o novo relacionamento, o qual acho questões familiares ou políticas. O mesmo

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acontecia nos aniversários e festas de final que, após o recalque orgânico, nossos
de ano. Hoje as comemorações aconte- ancestrais perceberam que a necessidade
cem em restaurantes e pizzarias e me dão de satisfação genital não apareceria mais
a impressão de eventos comerciais, faltan- como um hóspede que surge repentina-
do o calor afetivo da intimidade familiar. mente e do qual, após a partida, não se
ouve mais falar por longo tempo; pelo
Há cerca de 5 anos fui operado de prósta- contrário, se alojou como um inquilino
ta. O diagnóstico foi precoce e a cirurgia permanente. Quando isso aconteceu,
correu bem. Tenho feito controle regular continua, o macho adquiriu um motivo
com meu urologista. Entretanto, faz um para manter a fêmea junto de si ou, em
ano e meio que meu exame de PSA pas- termos mais gerais, seus objetos sexuais
sou a oscilar. Às vezes aumenta, às vezes ao seu lado. Já a fêmea, não querendo se
diminui. Meu urologista não é de muita separar de seus rebentos indefesos, se viu
conversa e não esclarece suficientemente obrigada, no interesse deles, a permanecer
minha situação clínica. Diz apenas que ao lado do macho mais forte.
o PSA não pode passar de certo limite. Estariam, então, estabelecidas as bases
Recentemente encaminhou-me para um da família patriarcal, ou da horda primeva,
radioterapeuta. “Este me informou que, cujo crime praticado pelos filhos levaria ao
se o PSA ultrapassar o limite, deverei estabelecimento do pai morto como lugar
me submeter à radioterapia, associada à vazio a ser ocupado pela lei, derivando daí
hormonioterapia.” a emergência da cultura, fruto da ambiva-
lência com relação ao pai, bem como do
Essa afirmativa trouxe a Giovani uma sentimento de culpa pelo ato criminoso.
profunda angústia diante da perspectiva Lévi-Strauss (apud R oudinesco ,
de cair a barba e afinar a voz. Começou a 2003), ao enfatizar a passagem do estado
fantasiar como seria sua vida caso se tor- de natureza ao de cultura, afirma que o
nasse inválido. Teria o auxílio dos filhos? que realmente diferencia o animal (na-
Passou, então, a pesquisar hotéis ge- tureza) do ser falante (simbólico) é que
riátricos e cursos de cuidadores de idosos, na humanidade uma família não seria
sempre muito depressivo e angustiado. capaz de existir sem sociedade, entendida
Disse-me ainda que um amigo seu foi como uma pluralidade familiar, pronta a
internado às pressas em função de um pro- reconhecer que existem outros laços além
blema coronariano e de hipertensão. Já re- dos de consanguinidade (clãs totêmicos
cebeu alta e está em casa. Foi visitá-lo num de Freud) e que o processo natural de
fim de semana. Ele estava sozinho, ou me- filiação somente pode prosseguir através
lhor, com um cuidador. O amigo lhe con- do processo social da aliança.
tou que os filhos não aparecem para vê-lo. Com o passar dos séculos, a família foi
Trabalham muito a semana inteira e nos fi- se reduzindo e passou a designar o núcleo
nais de semana vão para o clube descansar. composto por pai, mãe e filhos, como
Vejamos, então, a que conclusões nos família nuclear. Lacan, em Os complexos
levam uma reflexão e articulação dos da- familiares ([1938] 1998), atribui essa redu-
dos apresentados por esta vinheta clínica. ção à influência do casamento, razão pela
qual a denomina família conjugal.
Evolução histórica da família Elisabeth Roudinesco, em seu livro A
Freud, no capítulo VIII de Psicologia de família em desordem (2003), faz um estudo
grupo e a análise do ego ([1921] 1996) e histórico da evolução da família ocidental
principalmente no capítulo IV de O mal e distingue três grandes períodos da evo-
-estar na civilização ([1930] 1996), afirma lução da família:
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As desventuras de um vovô pós-moderno

1. Na primeira fase, a família dita abstrata, depois da maternalização da


‘tradicional’ serve, acima de tudo, para família, que surgiu, em toda sua força,
assegurar a transmissão de um patrimônio. a sexualidade das mulheres [...] Com a
2. Na segunda fase, a família dita conquista definitiva de todos os processos
‘moderna’, fundada no amor romântico, da procriação pelas mulheres, um temível
torna-se receptáculo de uma lógica afe- poder lhes foi reservado no final do século
tiva cujo modelo se impõe entre o final XX. Elas adquiriram então a possibilidade
do século XVIII e meados do século XX. de se tornar mulheres prescindindo da
3. A partir dos anos 1960 se impõe a vontade dos homens.
família dita “contemporânea“ ou “pós-mo-
derna” que une, ao longo de uma duração O feminino se desvencilha do ma-
relativa, dois sujeitos em busca de relações ternal.
íntimas ou sexuais. Sabemos que, mesmo em Freud (1933
[1932] 1976), a questão do feminino se
A família patriarcal mostra complicada, tendo levado o mestre
É centrada na autoridade do pai, muitas a considerá-lo como um continente negro.
vezes tirano e déspota, e na submissão dos Para Freud, o feminino ainda estava muito
demais. O pai é aquele que toma posse preso ao maternal, embora não exclusiva-
do filho. Em Roma, pater é aquele que, ao mente.
elevar a criança em seus braços, designa a Coube a Lacan ([1972-1973] 1985),
si mesmo como pai. A filiação biológica é através da elaboração das tábuas da se-
totalmente desconsiderada nessa cultura. xuação, diferenciar o feminino como não
Na família patriarcal o pai transmite todo fálico, descrevendo o “Outro Gozo”
ao filho um duplo patrimônio: o de sangue, como próprio do mesmo. Afirmou que,
que imprime a semelhança, e o nome, que diferentemente dos homens, as mulheres
lhe confere uma identidade. Daí derivam não formam um conjunto fechado sendo,
as duas funções da paternidade: genitor portanto, impossível definir A mulher
e pater. (Lacan, [1972-1973] 1985). A mulher
Com a evolução histórica e com as não existe, e sim as mulheres, uma a uma.
revoluções francesa e industrial, o pater Bernard Nominé (1997) cria um inte-
familias se mantém autocrata porém ressante matema para diferenciar a função
desprovido de atributos divinos como materna da mulher. Diante da impossível
anteriormente. A ordem familiar econômi- resposta sobre “o que quer uma mulher?”,
co-burguesa passou a ser, então, fundada ele afirma que é possível saber o que quer
em três pontos principais: autoridade do uma mãe, isto é, um filho.
marido, subordinação da mulher e depen- Podemos, então, escrever: , isto é, um
dência dos filhos. homem é aquele que coloca uma mulher
A substituição do poder de Deus pai como causa de seu desejo. Consequen-
pelo poder do pater familias abre, no en- temente, a mulher é aquela que pode
tanto, o caminho da emancipação, primei- ocupar o lugar de causa de desejo para
ramente das mulheres e posteriormente um homem.
das crianças. Também o mesmo matema serve
Roudinesco (2003, p. 118) assinala para definir a mãe , ou seja, a mãe é
ainda: aquela que coloca o filho na posição de
causa de desejo, ocupando, portanto, nes-
Foi primeiramente do declínio do poder sa função, uma posição masculina.
divino do pai, e de sua transferência Antonio Quinet (2015) afirma que,
para uma ordem simbólica cada vez mais mesmo em casais homoeróticos, sempre
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um parceiro ocupa a posição fálica, e o de, que determina o modo de existência


outro, a posição não toda. Nesse sentido, atual, é assim composto:
não existe a homossexualidade, ou seja, o 1. Pelo discurso do capitalismo;
desejo entre dois iguais. 2. Pela sociedade escópica;
Todas essas condições contribuíram 3. Pelo funcionamento em rede.
para o aparecimento da dita família pós- O conecto é uma constatação, um
moderna como definimos acima, caracte- fato, além de um imperativo, ou seja: Co-
rizada por laços temporários e não garan- necte-se! Senão você não existe.
tidos, seja pela religião, seja pelo Estado. O logos da linguagem se materializa
Esse laço é sustentado apenas pelo vínculo na rede. A própria estrutura psíquica entra
amoroso e pela atração erótica. nisso, determinando formas de laço. Existe
Fazemos aqui uma pausa e uma vira- o sujeito conectado. A rede não tem limi-
gem para enfatizar as mudanças ocorridas tes. É o que Castells (apud Quinet, 2015)
na pós-modernidade, sua influência nos chama “a galáxia da internet”.
laços sociais como um todo, especialmente No discurso do capitalismo não há
no que diz respeito aos laços familiares, barreira ao gozo, ao contrário dos outros
bem como suas consequências. discursos. Observamos, então, que o
Primeiro enfatizamos o fato de que, discurso do capitalismo destrói os laços
já em Freud, não é feita uma divisão nem sociais – feudais, patriarcais e idílicos –, ou
uma distinção entre o que ele chama de seja, a relação do sujeito com seus ideais,
psicologia individual e psicologia grupal. o que é reforçado pelo funcionamento
Porém, é Lacan que, ao criar a ca- em rede.
tegoria do grande Outro, abole comple- Observamos, então, que o discurso
tamente essa distinção. Ao que Freud do mestre e o discurso do universitário,
chama de civilização ou cultura, Lacan denominados por Lacan de discursos da
chamará de discursos. Nestes, a partir dominação, necessitam de sujeitos para
das profissões impossíveis mencionadas encarnar o comando.
por Freud (governar, educar e tratar ou No discurso do capitalismo só há um
analisar), Lacan acrescenta o fazer-se laço entre o sujeito e o objeto (merca-
desejar da histeria e postula os quatros doria). O lugar da verdade no discurso
discursos: do mestre, do universitário, da capitalista é ocupado pelo sujeito como
histérica e do analista. investidor (até que ponto é capitalizado
Posteriormente, nos anos 1970, ao ou não?) ou consumidor. Para o discurso
abordar o campo do gozo, Lacan propõe capitalista não existe sociedade; o que
também o discurso do capitalista, que seria existe é o mercado.
uma mutação do discurso do mestre: Lacan afirma que no discurso capi-
talista há a foraclusão da castração, o
que promove sujeitos insaciáveis (falta a
Discurso do capitalista gozar). O discurso capitalista é, portanto,
↓ $ ↖ ↗ S2 ↓ irregulável; além disso, é um discurso que
↓ S1 ↗ // ↖ a ↓ corrompe os laços principalmente os polí-
ticos. E dessa corrupção não escapam nem
mesmo a psicanálise e suas instituições.
Antonio Quinet (2015) – em confe- Trata-se de um discurso paradoxal,
rência proferida na última jornada do Cír- pois, ao contrário dos outros, é um discur-
culo Psicanalítico de Minas Gerais, a qual so fechado, que não faz laço. Podemos lê-lo
denominou Conecto logos ex-isto – afirmou assim: o S1 (capital) induz o S2 (ciência/
que o mundo virtual da contemporaneida- tecnologia) a produzir objetos mercadorias
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(gadgets) para o sujeito na posição de con- tífico ao grau de grande Outro salvador e
sumidor. Este, por outro lado, demanda ao teve seu debacle na Primeira Guerra Mun-
capital a produção de novos objetos que dial (1914-1918), quando ficou patente
comandam o sujeito, e assim por diante. que apenas a ciência não era suficiente
Colette Soler (2005) analisa a mu- para solucionar as questões da huma-
dança proposta por Lacan sobre o tema. nidade; pelo contrário, contribuía para
Segundo a autora, a angústia que não é agravá-las, produzindo tanques de guerra,
sem objeto estava amarrada a um grande aviões de bombardeios, submarinos, etc.
outro. Portanto, quanto mais o grande Ou- Lembramos aqui a propósito da derre-
tro é consistente, menos há conjunturas lição, que Freud ([1939] 1976), no final do
de angústia. O grande Outro é consistente seu texto Moisés e o monoteísmo, ao abor-
em uma cultura em que o discurso sutura o dar a nostalgia do pai, nos assegura que a
Ⱥ, ou seja, o discurso preenche ou amarra situação de desamparo é tão contundente
a questão do enigma e da ameaça do de- para o ser humano que é preferível ser
sejo do Outro. A cultura constrói outro tiranizado a se sentir abandonado.
de quem praticamente se sabe o que quer. Pensamos que o fracasso do Iluminis-
Talvez seja essa a razão das sociedades mo, ao colocar a ciência como salvadora,
denominadas por Lévi-Strauss de “socie- funcionou como a gota d’água que, junto
dades frias”, em que prevalece o grupal so- com outros fatores já citados, contribuiu
bre o individual, por isso essas sociedades para a prevalência do discurso do capita-
mudam muito pouco. O grande Outro aí lismo, que caracteriza a nossa contempo-
é consistente. raneidade. As consequências são várias
Soler cita o exemplo do penitente da e têm a ver com sua influência nos laços
Idade Média, em que o pecador e o castigo sociais, como frisamos anteriormente.
eram precisamente definidos e nomeados. Detalhamos tais consequências no
O grande Outro podia ser ameaçador, mas nível dos laços familiares e, com isso,
era, em última instância, prometido como procuramos compreender as queixas e
o Outro do amor. as angústias trazidas pelo nosso paciente.
Ao contrário do penitente, que parti- A derrelição do grande Outro e sua
cipava mais do pavor e da culpa, o sujeito ocupação pelo mestre pós-moderno, o
pós-moderno perdeu há muito esse Outro. capital, tem, portanto, como consequência
“Derrelição” é como Colette Soler designa o enfraquecimento dos laços familiares
a atual relação sujeito-Outro. Derrelição desde que a ênfase seja dada ao consu-
designa, então, a sorte da criatura perdi- mo. Assim, para consumir mais, temos de
da no mundo sem criador e sem Outro, trabalhar mais. E como tempo é dinheiro,
tendo como consequência o desamparo e o tempo destinado aos laços sociais, em
o abandono. geral e em especial aos familiares, é muito
Chama-nos a atenção o romance pequeno.
Frankenstein - o moderno Prometeu, escrito Freud ([1913] 1976), em Totem e tabu,
em 1818 por Mary Shelley, em que a ques- sublinha a ênfase dada ao reforço dos laços
tão da ciência, mesmo tendo possibilidade sociais e familiares através da função sim-
de criar a vida sem a função paterna, gera bólica da refeição em comum. A refeição
monstruosidade, violência e destruição entre familiares é praticamente abolida
na busca da filiação. Voltando a Soler, ela pela necessidade de ganhar tempo e pela
liga o início do processo de derrelição à instituição do self-service.
emergência da ciência. Outra consequência da derrelição do
Acrescentaríamos que o movimento Outro faz com que a estrutura histérica,
do Iluminismo ou Ilustração elevou o cien- presente ainda maciçamente em nossos
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consultórios, se apresente não mais como laços e não exerce suas funções. Nessas
somatizações (simbolizações no corpo), condições, muitas vezes, é disso que Gio-
mas como depressões, indicando aí uma vani se queixa: a figura do vovô é a de um
condição de perda dos ideais. retrógrado esquecido acolhido pela direto-
Nesse nível, podemos citar também ria da empresa, com a conivência familiar.
a síndrome do pânico. Ao contrário do Por outro lado, a sociedade regida
pânico descrito por Freud ([1921] 1976) pelo discurso capitalista, segundo Quinet
em Psicologia de grupo, ligado ao desapare- (2015), como frisamos anteriormente, se
cimento do líder, do chefe, o pânico atual, nutre da fabricação da falta de gozo e pro-
produzido pelo individualismo capitalista, duz sujeitos insaciáveis em sua demanda
leva os clientes à afirmação de que se trata de consumo. Consumo de gadgets que ela
de pânicos incompreensíveis. oferece como objetos de desejo promoven-
Na realidade, ainda com Colette Soler do uma nova economia libidinal. Produz,
(2005), podemos afirmar que se trata de assim, uma ‘lei’ de querer obter vantagem
crises de derrelição em que o sujeito é em tudo. Vantagem para consumir e nos
repentinamente tomado pelo fato de se consumirmos mais.
reduzir a um corpo. Constata-se que essas Nesse contexto abordamos, ainda
crises aparecem com mais frequência em que brevemente, a questão do envelheci-
executivos, ou em sujeitos cuja inserção mento, bem como as consequências que o
profissional e afetiva é precária ou inexis- discurso da contemporaneidade tem sobre
tente. Observa-se neles, verdadeiramente, esse processo.
o afeto de desligamento. Ângela Mucida (2004, p. 39), ao tra-
Quanto à falta de presença dos fami- balhar de forma magistral a tese de que o
liares e à solidão social de que se queixa sujeito não envelhece, afirma que “[...]
Giovani, para um sujeito nascido nos cada um envelhece apenas de seu próprio
anos 1940/1950, essas alterações sociais e modo” e que a velhice como destino se
familiares foram significativas. mede pelos atos. Assim, são esses atos
Já não se conta mais com os pontos de que permitirão a passagem de um destino,
encontro: bailes, festas folclóricas, horas nem sempre divertido, que é prescrito pelo
dançantes e mesmo o almoço de domingo real do corpo e leva cada um a um modo
na casa da vovó. Os famosos ajantarados particular de conduzir sua velhice.
não acontecem mais. Se o sujeito não envelhece, é certo
Os laços sociais são substituídos pelos que o corpo envelhece e, com o desen-
laços com as máquinas, tais como note- volvimento maior da clínica geriátrica,
books, Ipods, smartphones e com as redes a expectativa de vida tem aumentado, o
sociais em geral. que necessariamente não coincide com
É comum que os aniversários sejam sua qualidade.
mais comemorados não em casa, mas em Alguns autores atribuem a Freud uma
bares e restaurantes e que os presentes posição pessimista com relação à vida em
estejam ligados ao celular, teclando inin- geral e ao envelhecimento como uma
terruptamente, no que podemos chamar aproximação face a face com a morte.
de autismo induzido. Outros atribuem a ele uma postura mais
Nesse sentido, as funções familiares realista.
definidas em termos de discurso e possuin- De qualquer forma, em Além do prin-
do uma série de funções, entre as quais a cípio do prazer, o mestre nos adverte:
transmissão de um nome, da língua ma-
terna (lalangue), de um desejo, de ideais, Se temos de morrer, e primeiro perder
além de outros, sofre uma ruptura em seus para a morte aqueles que nos são mais

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caros, é mais fácil submeter-se a uma lei redes sociais? São questionamentos ainda
impiedosa da natureza, à sublime ananké enigmáticos, e não uma postura saudosista
[necessidade], do que a um caso de que tal- e romântica.
vez pudéssemos ter fugido (Freud, [1920] Nessa perspectiva, podemos ver com
1996, p. 55-56). um pouco mais de clareza as queixas
depressivas de Giovani. O que não falta
E com as transformações da pós-mo- é uma diversidade de perdas, como nos
dernidade, a prevalência do discurso do adverte Freud, no nível da natureza, do
capitalismo tem influído no envelhecer e corpo e dos laços sociais.
na velhice. São várias as consequências, Se é verdade, como assinala ainda
como salienta nosso cliente. Como acen- Mucida (2004), que o desamparo presen-
tua Mucida (2004), não há uma velhice te de forma por vezes muito gritante na
natural; ela é atravessada pela linguagem velhice se relaciona intimamente com a
que habita o sujeito e seus traços. E como maneira como o sujeito pode conduzi-lo
um dos nomes do real, a velhice é par- em sua vida, não é menos verdade que
ticularmente propícia ao surgimento do o enfraquecimento dos laços sociais não
desamparo. deixa de ser um fator de agravamento do
Vemos, então, com o aparecimento desamparo.
da estrutura familiar contemporânea, Se uma das possibilidades de lidar
onde os laços são diversos e temporários, com o discurso do capitalista é através da
e sob a ação do discurso capitalista, que psicanálise, na medida em que ela acentua
o tempo e o consumo prevalecem sobre a posição do sujeito do desejo, a economia
o convívio familiar, que vai se tornando do gozo e a ética, talvez essa possa ser a
escasso e rarefeito. saída de Giovani, em sua derrelição frente
Nesse sentido, o espaço e o respeito ao Outro, mormente na versão do Outro
antes concedido ao ancião, sua sabedoria social e familiar. j
e sua experiência perdem todo poder e
valor. O conhecimento cibernético e o
funcionamento em rede se sobrepõem The
completamente ao saber da vivência e da misadventures
experiência. of a postmodern
O conflito de gerações, que sempre grandpa
existiu, se torna bastante ampliado.
O que vale são os gadgets consumidos Abstract
avidamente, levando sempre à busca do From the clinical case of an elderly subject,
novo e do mais sofisticado. Talvez isso the author draws a historical development of
não tivesse grande importância se não the patriarchal family and its transformations
ocorresse à custa do grave comprometi- to contemporary times. Accentuates social
mento dos laços sociais e, principalmente, changes caused by the prevalence of capital-
dos familiares. ist discourse and the networking. Presents
Às vezes me pergunto como vai se dar some considerations about these changes,
a transmissão, a herança arcaica, já que se their consequences and the contemporary
faz principalmente pela via do simbólico, process of aging.
pelo Outro, continente dos traços de su-
jeitos importantes de sua história. Como Keywords
isso será feito se em seu lugar, desde cedo, Patriarchal family, Discourse and Social Ties,
estão a babá eletrônica, o ipod, o Facebook, Capitalist Discourse, Networking, Postmod-
e as demais invenções da tecnologia e as ern Family, Aging.
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Arlindo Carlos Pimenta

Referências Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman;


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ANDRADE, M. O valioso tempo dos maduros.
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Reverso • Belo Horizonte • ano 38 • n. 72 • p. 23 – 32 • dez. 2016 31

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