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Odilon Roble

Escola e Sociedade

Escola e Sociedade
Escola e Sociedade

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-2954-9

9 788538 729549

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Odilon Roble

Escola e Sociedade

Edição revisada

IESDE Brasil S.A.


Curitiba
2012
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© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
__________________________________________________________________________________
R557e

Roble, Odilon
Escola e sociedade / Odilon Roble. - 1.ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2012.
88p. : 28 cm

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-2954-9

1. Educação - Aspectos sociais. I. Título.

12-4931. CDD: 370.9


CDU: 37

12.07.12 27.07.12 037414


__________________________________________________________________________________

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Shutterstock.

Todos os direitos reservados.

IESDE Brasil S.A.


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Sumário
Introdução ao conceito de sociedade e de vida coletiva.......................................................7
Estabelecimento da vida social.................................................................................................................7
Redes de sociabilidade..............................................................................................................................8
Teorias sobre a sociedade: breve mapeamento.........................................................................................9

Escola e pensamento social...................................................................................................17


Educação grega: paideia...........................................................................................................................17
Idade Média: educação cristianizada........................................................................................................19
Renascimento e educação: todos somos iguais........................................................................................19
Modernidade e discurso............................................................................................................................21

Teorias educacionais, sociedade e escola..............................................................................29


Teorias sociais X teorias educacionais.....................................................................................................29
Teorias educacionais críticas....................................................................................................................33
Passos para uma teoria crítica da educação..............................................................................................36

O conhecimento e suas relações sociais................................................................................39


Educação e autonomia..............................................................................................................................39

Educação e temas sociais contemporâneos...........................................................................49


Meio ambiente..........................................................................................................................................49
Drogas.......................................................................................................................................................50
Sexualidade...............................................................................................................................................52
Saúde.........................................................................................................................................................53
Trabalho....................................................................................................................................................54

A escola e seu entorno...........................................................................................................59


Administração escolar..............................................................................................................................59
Relações entre a escola e a comunidade...................................................................................................62

Violência e educação.............................................................................................................67
Violência social e violência escolar: o contrato social de Hobbes...........................................................67
Estabelecendo um contrato social na sala de aula....................................................................................70

Indisciplina e educação.........................................................................................................77
Reflexão primeira......................................................................................................................................77
Concepção do erro pela escola.................................................................................................................78
Erro e indisciplina.....................................................................................................................................78
Empowerment...........................................................................................................................................80
Arquitetura escolar e indisciplina.............................................................................................................81

Referências . .........................................................................................................................87

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Apresentação

N
o meu bairro existe uma escola. É bem possível que no seu também exista uma. Estamos
acostumados a passar em frente a elas, a sabermos que muitos de nossos vizinhos estudam
lá e que até mesmo alguns de seus funcionários e professores são moradores próximos. Mas,
para além dessas constatações óbvias, podemos ainda pensar: qual é o contato real que existe entre
essa escola e esse bairro? Como é que a vida social das pessoas interfere e é interferida pela institui-
ção escolar? Quais são, enfim, as relações que podemos traçar entre escola e sociedade?
Para respondermos isso temos de pensar na educação. Isso porque tal instância não é um produ-
to mecânico de métodos e fórmulas de ensino. Ela tem um processo, uma razão de ser, ou seja, uma
história. Essa história, como veremos, está profundamente ligada ao que se passa na sociedade. De
fato, educação e sociedade são parceiras de um conjunto de significados em comum. Isso nos mostra
como é impossível pensar a sociedade sem levarmos em consideração a educação e vice-versa.
É com essa certeza que estudaremos aqui a escola e a sociedade partindo de uma constatação
primordial: a natureza do homem é viver coletivamente. Essa vida coletiva é algo, por um lado, difícil
e, por outro, recompensador. Na escola, também vivemos coletivamente e sabemos que isso nos ofe-
rece muitas alegrias e também dificuldades. Temas como a violência, as drogas, a sexualidade, o tra-
balho, a indisciplina, entre outros, emergem dessa convivência e, por isso, devem ser objeto de estudo
e capacitação docente. Refletiremos sobre esses temas e pensaremos em algumas linhas de atuação.
Quando pensamos nessa relação entre escola e sociedade também devemos nos perguntar por
que estamos preocupados com isso, ou seja: qual é a nossa participação nesse contexto. Talvez, muitos
de vocês que lerão este texto trabalham ou trabalharão em escolas. Paralelamente, todos nós somos
pessoas que vivem em comunidades, cidades, bairros. Como é que vamos conciliar nossos saberes e
nossas experiências nesses dois espaços diferentes de nossas vidas? Há integração entre essas esferas
de nossa experiência? Podemos transpor saberes de um local para outro? Tais perguntas exigem que
nós saibamos articular os conhecimentos sociais e os pedagógicos. Mais que isso, assim como nós, os
alunos também possuem experiências sociais complementares às escolares e, certamente, as carrega-
rão para a vida na escola, exigindo de nós a capacidade de lidar com esse trânsito de expectativas, de-
sejos, conhecimentos e personalidades. Precisamos conhecer o entorno da escola e construir diálogos.
Precisamos compreender a vida social que nos cerca e que de fato faz parte daquilo que somos.
Essas são tarefas importantes e amplas que não serão esgotadas nos textos que se seguem, mas
os temas apresentados, certamente, são atuais e necessários para refletirmos sobre essa relação entre a
escola e a sociedade. Após tais reflexões é até mesmo possível que, ao passarmos por aquela escola do
nosso bairro, a vejamos de um modo novo, integrada à vida social e parte importante de nossa forma
de viver coletivamente.

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Introdução ao conceito
de sociedade e de
vida coletiva
Odilon Roble*

S
e observarmos os seres que vivem em nosso planeta, notaremos que ma-
cho e fêmea de algumas espécies vivem isoladamente, unindo-se apenas no
período de acasalamento. No entanto, sabemos que a maioria dos animais
busca a vida em conjunto.

Quais são as vantagens das associações entre os indivíduos? Que com-


portamentos e regras emanam dessa convivência? O homem também faz esse
tipo de associação? Quais são as características peculiares da vida coletiva
estabelecida entre os seres humanos?

Estabelecimento da vida social


Essas e outras perguntas são objeto de estudo da ciência e, quando dizem res-
peito ao homem em especial, fazem parte das chamadas Ciências Humanas. Entre
elas, a área que mais se dedica ao estudo do homem em sociedade é a Sociologia.
Entretanto, compreender o comportamento humano a partir de suas relações sociais,
entender o funcionamento das instituições e refletir sobre o regulamento da vida co-
letiva são tarefas que interessam a todos aqueles que trabalham com pessoas.
A escola, por exemplo, além de ser o espaço da teoria e da prática pedagó-
gica é, antes, um local de convivência coletiva. Assim, até mesmo essas teorias
e práticas pedagógicas precisam compreender as bases das relações entre os ho-
mens para poder melhor orientar as ações referentes ao cotidiano escolar.
É verdade que nem sempre o homem formou sociedades ou, ao menos, elas
não eram estruturadas da forma como são estruturadas as sociedades atuais. Nossos
ancestrais mais distantes comportavam-se como animais coletores, ou seja: eram
nômades, não fixando território para viver e se alimentavam de vegetais e animais Doutor e Mestre em Edu-
que encontravam por onde passavam. Mas ao longo do desenvolvimento da espécie cação pela Faculdade de
Educação da Universidade
humana, duas grandes mudanças levaram a humanidade a um patamar inigualável Estadual de Campinas (Uni-
camp). Bacharel em Filosofia
com relação às demais espécies. Vejamos quais foram essas duas mudanças. pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC). É mem-
A primeira mudança refere-se ao fato de abandonarmos uma posição bro pesquisador do Violar
– grupo de estudos sobre o
quadrúpede para assumir uma postura bípede e ereta, passamos a ter um campo de imaginário, práticas cultu-
rais, violência e educação da
visão ampliado, o que nos possibilitou enxergar alimentos, água ou ameaças muito Unicamp.

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Introdução ao conceito de sociedade e de vida coletiva

mais distantes que outrora. Além disso, a postura bípede liberou as mãos que
serviam de apoio, permitindo que o homem explorasse toda sua motricidade fina
e, assim, construísse instrumentos e armas.

Domínio público.

Divulgação.
Homem primitivo, com Associados em grupos, os homens dividiam as tarefas,
seus instrumentos de caça otimizando o tempo e melhorando a qualidade de vida
e proteção. Observe que por meio das relações sociais.
tais instrumentos não são
produzidos, mas encon-
trados pelo caminho.

A segunda grande mudança deu-se à medida que o homem começou a


constituir grupos socialmente estáveis e passou a viver em coletividade. Nesses
agrupamentos, homens e mulheres procriavam, dividiam as tarefas, revezavam-se
na proteção uns dos outros e trabalhavam em conjunto para manter vivos e sadios
todos os indivíduos participantes dessa comunidade. Com o tempo, os grupos
passaram a viver em territórios fixos e terem uma forma simples, porém efetiva
de divisão social.

Redes de sociabilidade
Notemos que o trabalho passou a ter um papel fundamental na estruturação
social. Quanto mais as sociedades tornaram-se complexas, maior e mais especia-
lizada tornou-se a divisão do trabalho. Cada elemento do grupo social passou a ter
funções específicas de modo a otimizar as ações, o que contribuiu muito para di-
ferenciar os papéis sociais assumidos pelos indivíduos de um mesmo grupo. Com
o tempo, não só o trabalho mas muitas outras atividades foram compartilhadas.
Com isso, podemos perceber como o trabalho influenciou fortemente a formação
de condutas e comportamentos.
Essas condutas são de grande importância para a estruturação da vida co-
letiva, pois elas indicam como o indivíduo deve se comportar no interior de cada
agrupamento. Aqueles que não se comportam de acordo com o esperado não re-
cebem a contrapartida dos demais, ou seja, são evitados ou até mesmo banidos,
dependendo do local em que buscam se inserir. Isso indica que conhecer os di-
ferentes modos de vida de uma sociedade é fundamental para orientar as nossas
ações, pois são esses modos os responsáveis por caracterizar e diferenciar as di-
versas sociabilidades humanas. Elas podem constituir-se em associações, tribos,
comunidades, civilizações e diversos outros tipos de sociabilidades.
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O importante é destacar que os indivíduos possuem certos motivos que os


levam a se unirem entre si. Uma comunidade pode ser formada devido a uma
proximidade de interesses e gostos de seus participantes.
Um exemplo que nos permite entender como as possibilidades de associação
entre indivíduos tornaram-se múltiplas é o das comunidades da internet. A grande
rede mundial de computadores estabelece sites de relacionamento, de aficionados
por filmes e músicas ou qualquer outro aspecto que estabeleça uma identificação
entre as pessoas.
As sociedades são grandes redes por meio das quais as pessoas se relacio-
nam e, assim, estruturam o próprio modo de vida. As regras, leis e normas surgem
dessa vida estruturada em coletividade com o intuito de orientar a conduta huma-
na em favor do bem-estar de todos.
Ao optar por ser conduzido por essas normas sociais, o indivíduo tem a
garantia de proteção contra os interesses de outros indivíduos que possam vir a
prejudicá-lo. De um modo geral, viver coletivamente consiste no estabelecimento
de um grande acordo entre as diversas partes, acordo que sustenta os interesses
comuns e mantém unida a coletividade.

O fim último da norma social, portanto, é o da manutenção do estado de paz,


do respeito mútuo e da boa convivência entre os indivíduos que vivem juntos.

Teorias sobre a sociedade:


breve mapeamento
Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII, con-
Domínio público.

cluiu que o estado natural dos indivíduos não é o de paz,


mas sim o de guerra. Entregues puramente aos interesses
individuais e agindo de acordo com os próprios impulsos,
os homens viveriam num estado de “guerra de todos con-
tra todos” (HOBBES, 2003). No entanto, essa situação não
ocorre porque os indivíduos estabelecem um contrato por Thomas Hobbes, John
Locke e Jean-Jaques
meio do qual estão comprometidos a agir de acordo com Rousseau são os pensa-
a lei, formulada, discutida e aprovada pelos homens, que dores que deram funda-
também são os responsáveis por aplicá-la em seu dia a dia. mento ao Estado Mo-
derno, este que é a base
A partir do pensamento de Thomas Hobbes, a socie- política da maior parte
das sociedades de hoje.
dade é uma necessidade humana, posto que o indivíduo
não vive sozinho. Se entregue a sua sorte individual, esse homem só encontrará
dificuldades e a morte. Mas se optar pela vida coletiva, haverá a necessidade de se
ter leis, um contrato social e a normalização dos costumes.
É evidente que a aplicação dessas normas e leis deverá ser policiada de
modo que se faça valer o direito de julgar e de punir aqueles que não se compor-
tam de acordo com o esperado. Essa tarefa é de responsabilidade das autoridades,
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ou melhor, das pessoas encarregadas de policiar e julgar as condutas para que elas
se encaixem de modo “justo” nos comportamentos desejados. A “justeza” desse
encaixe dá origem à palavra justiça, que se refere à obrigação do indivíduo de se
comportar de acordo com o contrato social, com as leis e sob o respeito das auto-
ridades que governam.
Desse modo, podemos afirmar que há uma estrutura social que predetermi-
na quais as leis a serem cumpridas, quem são os responsáveis por se fazê-las cum-
prir e quais serão as penas aplicadas aos infratores. Se levarmos em consideração
tal premissa, não poderíamos imaginar que essa estrutura social dá margem para
que exista o abuso do poder por parte de algumas autoridades? Claro que sim,
conforme nos mostra a própria história da civilização ocidental.
Em quantas aulas de História já ouvimos a palavra autoritarismo?
Fosse referente à figura de Stalin, de Pinochet, de Napoleão Bonaparte ou
de tantos outros, a história dos homens conta com muitos episódios de grandes
estadistas e outras figuras políticas que concentraram os poderes de uma nação
(de julgar, de elaborar e de aplicar as leis) unicamente em suas mãos.
Por mais que pensemos quão longe estão esses episódios históricos de nos-
sos dias atuais, devemos ter a consciência de que exemplos de autoritarismo po-
dem ser encontrados em nosso cotidiano e em qualquer situação que apresente
uma relação de poder.
Na sala de aula, entre professor e aluno, pode haver abuso de autoridade.
Outro exemplo pode ser encontrado em uma relação familiar, entre pai e filho,
entre marido e esposa ou, até mesmo, entre irmãos.
Onde quer que exista, o abuso de poder trata-se de uma degeneração do
contrato social, pois o poder que foi concedido a um indivíduo ou a um pequeno
grupo – com o propósito de representação de uma coletividade maior – torna-se
o mecanismo de imposição de interesses pessoais desses representantes. Vejamos
no quadro a seguir os tipos de poder em diferentes sociedades, sua breve descri-
ção e suas formas de degeneração.
Tipo de Governo Característica Degeneração
Sociedade governada por um rei ou Tirania: é a usurpação do direito
uma rainha. É o governo de “um só”. soberano para fins pessoais ou em
Monarquia O poder real pode agir para o bem desacordo com a vontade popular.
do povo, mas sua decisão é sempre
soberana.
É a sociedade na qual uma classe Oligarquia: é a sociedade dirigida
social tem privilégios sociais em por pequenos grupos privilegiados
Aristocracia relação às demais, por exemplo, e orientada para seus interesses
o privilégio do poder econômico particulares.
(plutocracia).
Sociedade democrática é aquela na Corrupção: quando os membros
qual o povo exerce o poder por meios eleitos para representar os
Democracia de seus representantes eleitos de interesses comuns passam a usar o
modo legítimo. poder em benefício próprio.

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Como vimos no quadro anterior, toda forma de contrato social, bem como
todo tipo de governo, pode ser corrompido. Mesmo a democracia que – se com-
parada à monarquia ou à aristocracia parece ser a mais justa – também pode se
degenerar em corrupção. Dessa forma, é preciso que aprendamos desde cedo a
viver coletivamente para fazer valer nossos direitos e deveres.
A escola é um espaço de convivência pública. Nossas lembranças do colégio
não se restringem aos conteúdos aprendidos. Aliás, é muito comum que boa parte
de nossas recordações da infância tenha alguma relação com a escola. Isso porque
é nela que travamos o primeiro contato com a vida em sociedade, longe da proteção
da família. No ambiente familiar, também vivemos de acordo com leis e normas
sociais, no entanto, ali estamos em uma esfera privada da existência. No seio da fa-
mília sabemos que estamos protegidos e temos a constante sensação de sermos acei-
tos. Já na esfera pública, logo percebemos que não podemos contar com a aceitação
e com a proteção de todos indistintamente. Temos de conquistar espaços para isso.
Ao ir para a escola, a criança percebe tais necessidades e vai aprendendo realmente
a viver em conjunto. Também é lá que ela vai ser exposta, pela primeira vez, a uma
autoridade que não se relaciona com ela por vínculo afetivo. Mesmo que o professor
tenha um grande carinho por seus alunos, sua relação com eles está fundamentada
na pedagogia e não nos laços familiares. A criança tem, na escola, o protótipo do
modelo social a que será exposta dali por diante.
Resta observar, no entanto, que muito embora o vetor de adaptação mais
evidente seja o do indivíduo conformando-se aos modelos sociais, o julgamento
que ele realiza acerca desses modelos pode levá-lo a ações capazes de mudar al-
guns padrões preestabelecidos da sociedade. Acreditar que é inexorável a adapta-
ção dos indivíduos às normas da sociedade e que os padrões sociais são imutáveis
corresponde a crer também que a sociedade em que vivemos é estática e imutável,
o que não é verdade. Embora o mais comum seja o indivíduo ser influenciado pelo
seu meio e se adaptar a ele, também não podemos desconsiderar as possibilidades
de uma pessoa questionar os padrões já exis-
Domínio público.

tentes de sua sociedade e de instaurar algumas


mudanças.
Uma escola que propague a ideia que
o aluno deve sempre se adaptar ao meio, re-
cusando-se a aceitar suas ideias e sugestões,
estará agindo de modo coercitivo e centraliza-
dor. Essa será uma escola autoritária ou aco-
modada. Muitos indivíduos ousaram desafiar
modelos sociais estabelecidos e tidos como
imutáveis, tendo como resultado de sua luta a
mudança desses padrões ou ao menos a sen-
sibilização da opinião pública, o que, em um Martin Luther King, ativista político nor-
regime democrático, culmina, mais cedo ou te-americano, lutou pela igualdade de di-
reitos, especialmente dos negros e das mu-
mais tarde, na mudança de comportamentos. lheres. Foi prêmio Nobel da Paz em 1964.

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Domínio público.

Domínio público.
Antônio Conselheiro, líder popular bra- Mahatma Gandhi foi um dos idealizadores
sileiro, levou o pequeno arraial de Canu- e fundadores do moderno Estado indiano,
dos a uma verdadeira revolução social no por meio de sua revolução pela não violên-
século XIX, a Guerra de Canudos. Essa cia, contra os colonizadores britânicos, na
guerra é o tema de uma das mais famosas primeira metade do século XX.
obras da literatura brasileira, Os Sertões,
de Euclides da Cunha.

Nesta seção vamos ver alguns casos de crianças que, por razões diversas, foram criadas apartadas
da sociedade. Tais histórias nos mostram a importância da vida social e o quanto ela interfere no desen-
volvimento das habilidades humanas, muitas das quais nos diferenciam do restante dos outros animais.
Essas pequenas histórias, embora sejam verídicas, receberam muitos acréscimos ficcionais
como podemos pressupor. No entanto, as três nos levam a concluir que, para possuirmos uma con-
duta considerada “humana”, não basta que sejamos homens no sentido físico e biológico do termo. A
convivência em sociedade, ensinando-nos a linguagem, as normas de conduta e os costumes é o que
acaba por tornar o homem efetivamente humano.
Mesmo algumas características biológicas dessas crianças criadas isoladamente não se desen-
volveram de forma semelhante a de um indivíduo inserido em uma sociedade humana, como iremos
ver a seguir.
O ser humano se completa na sociedade. A cultura é a verdadeira responsável pela nossa natu-
reza. Ela, evidentemente, não substitui a força dos fatores biológicos na constituição da vida humana.
Sabemos, por exemplo, que o fator genético possui grande influência sobre o indivíduo, mas, como
afirma Geertz (1989), “nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acaba-
mos por meio da cultura”.
A vida em sociedade é uma das tarefas mais importantes que se apresentam em nossa condição
humana. O universo da escola, seja pelas características intrínsecas de vida social que apresenta, seja
por ser uma antecipação da dinâmica social da vida adulta, é um dos modelos mais concretos e im-
portantes da sociabilidade. Nesta aula, vimos a base do que é esse viver em comum, suas principais
características, o desenvolvimento do homem como ser social e as formas de poder que estabelece em
sua sociedade.
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O Menino Selvagem de Aveyron


Em setembro de 1799 um menino, de 12 anos de idade aproximadamente, foi encontrado
perto da floresta de Aveyron, sul da França. Estava sozinho, sem roupa, andava de quatro e não
falava uma palavra. Aparentemente fora abandonado pelos pais e cresceu sozinho na floresta. O
menino, a quem deram o nome de Victor, foi levado para Paris, onde ficou aos cuidados do médico
Jean-Marc-Gaspar Itard.
Durante cinco anos o Dr. Itard dedicou-se a ensinar Victor a falar, a ler, a se comportar como
um ser humano, mas seus esforços foram em vão. Pouco progresso foi conseguido durante esse
tempo. Victor nunca falou e aprendeu a ler somente uma palavra (leite). Não era mais o menino
selvagem de quando fora encontrado, mas, também, não se tornou propriamente “humano”.
(O Menino Selvagem de Aveyron. Disponível em: <www.forumnow.com.br/vip/
mensagens.asp?forum=15836&grupo=238648&topico=1791657&pag=1>. Acesso em: 10 jan. 2008.)

O Enigma de Kaspar Hauser


Kaspar Hauser apareceu para a sociedade em 1828, numa praça do centro de Nuremberg.
Tinha aproximadamente 16 anos de idade e falava de modo confuso; suas palavras eram pouco in-
teligíveis. Sua vida passada era um mistério, porém tudo indica que ele vivera preso em um celeiro
desde seu nascimento. Teve pouco contato (ou talvez nenhum) com outros homens.
Da mesma forma que Victor, Kaspar foi educado por seu tutor e, ao contrário de Victor,
aprendeu a ler e escrever, pelo menos num certo nível em que era possível a comunicação com
outras pessoas. Seu raciocínio, contudo, não foi muito adiante. Continuava a ser a mesma criança
do dia em que fora encontrado. Sua visão não enxergava em perspectiva e também não conseguia
apreender conceitos abstratos, como Deus e religião, apesar dos esforços de padres e educadores.
Morreu 5 anos depois, assassinado, e seu passado misterioso nunca foi desvelado.
(O Enigma de Kaspar Hauser. Disponível em: <www.forumnow.com.br/vip/
mensagens.asp?forum=15836&grupo=238648&topico=1791657&pag=1>. Acesso em: 10 jan. 2008.)

As Meninas-Lobo da Índia
Em 1920, o reverendo Singh encontrou, em uma caverna, duas crianças que viviam entre lo-
bos. Suas idades presumíveis eram de 2 e 8 anos. Deram-lhes os nomes de Amala e Kamala, respec-
tivamente. Após encontrá-las, o reverendo Singh levou-as para o orfanato que mantinha na cidade
de Midnapore. Foi lá que ele iniciou o penoso processo de socialização das duas meninas-lobo.
Elas não falavam, não sorriam, andavam de quatro, uivavam para a lua e sua visão era melhor
à noite do que de dia. Amala, a mais jovem, morreu um ano após ser encontrada. Kamala viveu
por mais oito anos sem, contudo, aprender a falar, ler, usar o banheiro ou a ter qualquer comporta-
mento que pudesse ser considerado específico de seres humanos. A única emoção que demonstrou
em todos esses anos foi algumas lágrimas que derramou, no dia em que Amala morreu.
(As Meninas-Lobo da Índia. Disponível em: <www.forumnow.com.br/vip/
mensagens.asp?forum=15836&grupo=238648&topico=1791657&pag=1>. Acesso em: 10 jan. 2008.)

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1. Com base no texto da aula argumente qual é a importância da vida em sociedade.

2. Elabore um exemplo para cada uma das formas de degeneração do poder, a saber: a tirania, a
oligarquia e a corrupção.

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Introdução ao conceito de sociedade e de vida coletiva

Livros:
LUCKMANN, T.; BERGER, P. L. A Construção Social da Realidade. Petrópolis: Vozes,
2006.
Trata-se de um livro clássico sobre a realidade social que aborda os fundamentos da vida
cotidiana, a sociedade como realidade subjetiva e a sociologia do conhecimento. Em alusão
aos temas trabalhados nesta aula, sugiro a leitura do capítulo I, item 2: A interação social na
vida cotidiana.
GEERTZ, C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989.
Obra também clássica, só que mais estudada pela Antropologia e por aqueles que se dedicam
a estudos culturais. Seu tema principal é a questão do significado cultural e o método etno-
gráfico para pesquisa em ciências humanas. A parte II, item 2, “O impacto do conceito de
cultura sobre o conceito de homem”, ilustra muito do que foi trabalhado na parte final desse
texto e aprofunda a discussão.
Filmes:
O Enigma de Kaspar Hauser. Diretor Werner Herzog.
História sobre um misterioso menino de 16 anos que, sem nunca ter tido contato com a cul-
tura humana, aparece repentinamente em um vilarejo. Filmagem do grande diretor alemão
Werner Herzog. Filme vencedor do festival de Cannes é uma obra-prima do cinema e traz
reflexões muito interessantes sobre a vida em sociedade, sobre a educação e sobre o processo
civilizatório.
A Guerra do Fogo
Filme de Jean-Jaques Arnaud que mostra o início do desenvolvimento da civilização hu-
mana, ilustrando o modo como se deu a evolução de nossas formas de organização, divisão
social e luta pela sobrevivência em tribos sociais.
Links:
Eu Tenho um Sonho (I Have A Dream), de Martin Luther King. Disponível em: <www.
history.com>; <www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/ihavedreamr.htm>.
O discurso do norte-americano Martin Luther King é um bom exemplo de como é possível
lutar contra as injustiças sociais e mudar padrões de comportamento tidos como inflexíveis.
Esse mesmo tema pode ser facilmente encontrado em diferentes links na internet, como o
site estrangeiro <www.history.com>, ou nacional, como <www.dhnet.org.br/desejos/sonhos/
ihavedreamr.htm>.

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Introdução ao conceito de sociedade e de vida coletiva

1. Espera-se aqui que o aluno seja capaz de argumentar sobre os principais tópicos da aula: a
importância da vida coletiva em razão da divisão do trabalho, da segurança, da liberdade e do
progresso.

2. Ao apresentar um exemplo (imaginário ou real) sobre as formas de degeneração do poder, o


aluno acaba por compreender melhor a natureza do tipo de poder em questão (monarquia, aris-
tocracia ou democracia) como também sua forma de usurpação. Esperam-se exemplos descri-
tivos como: a aristocracia pode se degenerar em oligarquia quando, por exemplo, um grupo de
cidadãos que, por serem os mais cultos de determinada comunidade, são escolhidos como rep-
resentantes. No entanto, com o passar do tempo, todas as suas ações têm a intenção de valorizar
aqueles que possuam alguma instrução, com isso, beneficiando sempre e novamente o próprio
grupo do qual fazem parte.

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Escola e pensamento social

Educação grega: paideia

A
s relações entre o pensamento social e a escola sempre estiveram presentes nos diversos mo-
mentos da história. A escola, como uma das instituições mais importantes do contexto social,
carrega importantes funções entre as quais podemos destacar a política, organizacional e
formativa, pois cabe a essa instituição o papel de educar os cidadãos. Isso significa dizer que o projeto
educacional de uma escola deve visar, entre outros objetivos, transmitir o conjunto de valores de uma
determinada cultura. Isso possibilita uma coesão e sincronia entre os indivíduos de uma sociedade de
modo a haver um consenso no julgamento moral das ações cotidianas. Por essas razões, encontramos
no pensamento dos mais diversos filósofos e cientistas sociais grande preocupação com a educação de
seus contextos. O aspecto educacional das ideias desses pensadores geralmente é dado de modo direto
– quando elegem a escola como foco de suas palavras – ou indireto – quando abordam a questão dos
valores sociais, dos significados culturais e das condutas públicas.

Paideia
Paideia é o termo para o qual damos o nome de educação. Essa é uma tradução correta, mas
não tem em si um entendimento abrangente. Para compreendermos de fato esse conceito, temos
de perceber que, para o grego, havia um conjunto mais amplo de ações ligadas à noção de Pai-
deia. Ela era a formação do povo de um modo total e alcance profundo, ou seja, todos os valores,
a moral, a ética, as condutas e até mesmo o gosto eram fenômenos abarcados pela Paideia. Todos
esses fenômenos apareciam nos momentos mais variados da vida grega. Na educação propriamen-
te dita, como a familiar ou dos mestres e seus discípulos, mas também a encontramos na praça
pública (chamada de ágora), nos espetáculos de teatro, na prática da ginástica e do esporte, enfim,
nos variados momentos da vida grega. Dessa forma, podemos dizer, de modo simplificado, que a
Paideia era o aprendizado do “jeito de ser” do grego.

Desde o princípio das civilizações que reconhecemos como berços de nossa cultura, a educação
ocupou um papel central na construção da vida coletiva. A Grécia Antiga que, como sabemos, foi
uma das principais precursoras do modelo de sociedade ocidental, apresenta a nós exemplos mui-
to significativos da importância da educação para seu povo e da variedade de suas formas na vida
cotidiana. O primeiro grande exemplo vem antes mesmo da constituição de uma ideia de educação
formal, ou seja, antes mesmo da existência de escolas, professores e alunos. A tradição oral, baseada
especialmente naquilo que hoje chamamos de mitologia grega, era a principal responsável por edu-
car os valores sociais, transmitidos de geração em geração. As histórias sobre deuses e heróis, mais
do que fragmentos poéticos na cultura grega, eram as direções para a vida nas cidades-Estado. Os
valores expressos nos mitos orientavam o Ethos, ou seja, a conduta que regulava a vida social da dita
sociedade, valores que, em conjunto, deram origem à Ética.

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1 Narciso, personagem da
mitologia grega, ficou
Pensemos um pouco sobre esse modo de educação social expresso pelo mito.
conhecido pela sua enor- A já conhecida narrativa sobre Narciso1, por exemplo, servia para mostrar que
me vaidade. Certa vez, ao
agachar-se junto a um lago aquele que se ocupasse demais com a própria vaidade, poderia ser vítima da sua
bastante limpo para servir-se
de um pouco de água, viu seu egolatria. Quase todas as histórias dos heróis gregos mostravam que havia uma
próprio reflexo no lago e, em
razão de seu exagerado amor-
medida certa para a coragem, ou seja: ela não poderia ser maior que a prudência
-próprio acabou apaixona-
do pela própria imagem. De
ou que o limite de cada homem (métis). Aqueles que se atrevessem a ir além desse
tanto contemplar-se no refle- limite, invariavelmente cairiam nos braços do destino (moira). Mnemósime era a
xo distraiu-se e caiu no lago,
morrendo afogado. deusa da memória e, como castigo aos que cometessem esquecimentos, ela en-
viava um de seus auxiliares, chamado Olvido. Não é por acaso que seu nome deu
origem ao nome do órgão de audição humana e ao verbo esquecer no espanhol
(olvidar). Olvido castigava os esquecidos, puxando-lhes a orelha para que, por
certo tempo, sentissem-na latejar. A lição, segundo a mitologia, visava mostrar
que se deve ouvir mais em vez de falar. Enfim, essas e muitas outras histórias en-
sinavam ao povo grego sobre quais eram os perigos da vida, as melhores condutas
frente a cada situação e que valores faziam parte daquela sociedade. Educar, nesse
tempo, correspondia, basicamente, a seguir tais histórias e transmiti-las para as
gerações seguintes.
Com o tempo, esse modelo foi se mostrando insuficiente para a crescente
racionalidade grega. Os deuses pareciam-se muito com os humanos e a educa-
ção que provinha da mitologia lentamente foi cedendo espaço para uma forma
de pensar que atendesse às novas necessidades das cidades gregas. Necessidades
como a circulação de capital, o desenvolvimento das artes e dos esportes, o con-
tato com novos povos a partir da expansão grega, enfim, fatores que mostraram
ao grego que, para conhecer o mundo mais amplamente, apenas as narrativas de
seus deuses não bastavam; foi necessário, então, o desenvolvimento de uma nova
educação, mais racional e experimental.
É assim que os primeiros

Domínio público.
grandes filósofos gregos passa-
ram a constituir modos de en-
sino sistematizados, em locais
específicos para a prática educa-
tiva visando uma cultura eleva-
da. Platão, por exemplo, criou o
Liceu, local em que seus discípu-
los eram educados. Já o seu mais
nobre aluno, Aristóteles, seguiu
o mesmo caminho, instituindo Ânfora Ática (tipo de vaso) ilustrando a vitória de Teseu
sobre o Minotauro (cerca de 550 a.C.). Na arte, o grego
a Academia, na qual eram de- contava suas narrativas e constituía uma poderosa forma
senvolvidos seus estudos junto a de educação de seu povo.
seus alunos. O mais importante,
no entanto, é percebermos que o pensamento que se desenvolve nesses locais está,
cada vez mais afinado às necessidades sociais de seu contexto sócio-histórico.
A vida do homem na cidade passou a ser o objeto central das preocupações dos
grandes pensadores. A virtude, os valores e a conduta tornaram-se objetos de es-
tudo, discussão e pesquisa. Essa é a forma de educação grega que ficou conhecida
como Paideia.
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Idade Média: educação cristianizada


A influência do tipo de educação dos gregos foi bastante vasta e pode ser
sentida até os dias de hoje. No entanto, no período que conhecemos como Idade
Média, alguns dos valores advindos do modelo de educação grega foram repensa-
dos e modificados de acordo com a doutrina cristã, responsável por dominar a cena
religiosa do período (sécs. V a XV). Dessa forma, os valores cristãos passaram a
fazer parte da educação e dos modelos de vida social para as cidades. A humildade,
o sacrifício e a solidariedade, por exemplo, passaram a fazer parte da formação do
cidadão e, por isso, passaram a fazer parte da educação dos mais jovens.
Os pensadores dessa época associavam razão à fé. A educação, dessa forma,
tinha a tarefa de ensinar a viver entre os homens, mas também de prepará-los para
a vida com Deus. Na visão de Santo Agostinho – um dos maiores pensadores do
cristianismo e um dos pilares do pensamento medieval – a convivência terrena,
com suas limitações e pecados, correspondia àquilo que ele chamou de “Cidade
dos Homens”. Toda educação tinha que preparar o fiel para superar as limitações
dessa vida terrena, encontrando paz e plenitude na “Cidade de Deus”.
Sem nos enveredarmos por discussões teológicas, concentremo-nos no foco
de nossa temática, ou seja, percebamos como essa forma de pensamento social
conduz a uma educação que se desprende de valores como os do corpo, dos praze-
res ou das riquezas. A educação afinada com os propósitos cristãos concentrava-se
na disciplina e na ascese, ou seja, na prática da norma moral. Muito da tradição do
que conhecemos por educação moral, ainda hoje, deve certa herança aos preceitos
preconizados pelo ensino medieval. No entanto, diferentemente da época medie-
val, nos dias de hoje consideramos que a educação deve ser laica, ou seja, indepen-
dente do direito à crença de qualquer aluno, pois entende-se que as orientações que
fundamentam o ensino devem ter um caráter eminentemente pedagógico.

Renascimento e educação:
todos somos iguais
O Renascimento, período posterior à Idade Média (sécs. XV e XVI), tem como
principal característica a retomada dos valores gregos e romanos nas artes, na cultura
e no conhecimento em geral. Além de promulgar reavivamento de muitos aspectos da
cultura greco-romana clássica, durante esse período também houve muitas mudanças
no que diz respeito à relação entre o pensamento social e a educação. O período foi
designado como o do renascer, porque nessa época a sociedade ocidental, que durante
um século e meio esteve guiada pelo pensamento católico, voltou-se para as preocupa-
ções ligadas propriamente ao homem e seu mundo humano.
O peso da religião na Idade Média fez com que toda a cultura e a educação
estivessem voltadas para Deus, por isso dizemos que a visão de mundo nesse
período era teocêntrica, ou seja, tinha Deus como centro do universo. No Renas-
cimento, a grande mudança na visão de mundo consistiu em colocar o próprio
homem no centro do universo. Lentamente, o teocentrismo foi sendo substituído
pelo antropocentrismo (anthropos = homem).
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2 Um exemplo de obras reali- Em todos os campos da vida social foi possível

Domínio público.
zadas nessa época de tran-
sição cultural é a pintura do teto sentir esta mudança. Os artistas do Renascimento Ita-
da Capela Sistina, pintada por
Michelangelo, ou a Santa Ceia, liano que em suas pinturas e obras expressaram a temá-
de Leonardo da Vinci.
tica religiosa foram, com o passar do tempo, adotando
o caráter antropocêntrico em suas criações2.
Note, por exemplo, o São Jorge, de Donatello (figura
ao lado). Trata-se de um santo, portanto, a escultura é
de um tema religioso. No entanto, sua aparência, frágil
e mundana, é a de um homem como outro qualquer.
Vemos nisso que mesmo os personagens religiosos
passaram, na visão renascentista, a atender ao desejo
da época de colocar o ser humano em evidência.
A mudança de perspectiva presenciada no pe-
ríodo do Renascimento se dá com tanto ímpeto que
mesmo personagens não pertencentes nem à realeza
nem ao clero, passam a ser objetos de retratos e obras
de arte, como é o caso da famosíssima Mona Lisa de São Jorge de Donatello
(1416-1917).
Leonardo da Vinci. Todo esse novo panorama se fez
sentir na vida social e, evidentemente, projetou-se na educação da época. Conhe-
cer passou a ser sinônimo de pesquisar, investigar, refletir sobre o papel do homem
no próprio mundo. Percebemos, assim, que a ciência e as técnicas como a geome-
tria, por exemplo, passaram a ser muito importantes nesse contexto. Voltando ao
exemplo de Leonardo da Vinci, homem que representa muito bem o espírito dessa
época, podemos lembrar que, além de pintor, ele também era inventor, geômetra,
astrônomo e anatomista. O que une todas essas capacidades de Leonardo é o de-
sejo constante de entender o homem e o mundo.
A educação, com isso, passa a ter um caráter sensivelmente menos elitista.
É verdade que essa época ainda estava muito distante de uma real popularização
do ensino, concretizada parcialmente apenas em fins do século XIX.
No entanto, ao estudar o homem pelas suas características naturais, uma di-
ferença menor (ou, de fato, inexistente) começa a aparecer entre o homem nobre e
o homem do povo. Todos nós, ricos ou pobres, temos características comuns como
seres humanos, ideia inadmissível em tempos anteriores aos do Renascimento.
Lentamente, a noção do homem como um ser biológico e o mundo como uma
realidade material, ambos atendendo a leis físicas, foram constituindo-se como
fatos inegáveis. No entanto, mudanças tão profundas no pensamento social e na
educação costumam gerar controvérsias e, nesse caso, não foi diferente.
No entanto, a mudança de perspectiva com relação à figura humana trouxe
algumas rupturas ao pensamento educacional da época. O estudo da anatomia
por exemplo, levou as pessoas a constatarem que boa parte das diferenças entre
os homens não eram propriamente físicas ou biológicas. Elas não são um desígnio
divino e só existem porque o próprio homem possui a necessidade de estratificar
sua sociedade de forma a organizá-la de acordo com sua visão de mundo. Vale
notar que a ideia de que todos – ricos ou pobres – são biologicamente iguais foi

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durante muito tempo inadmissível. Com o Renascimento, a educação e a busca


pelo conhecimento do homem em todos os seus aspectos fizeram emergir uma
nova verdade entre a população: o homem é um ser biológico e vive em uma rea-
lidade material que, invariavelmente, atende a leis físicas imutáveis.
Uma das maiores polêmicas do fim da Idade Média, protagonizada primeiro
por Nicolau Copérnico (1473-1543) e, posteriormente, por Galileu Galilei (1564-
-1642), ilustra bem os novos rumos do pensamento nascente. Trata-se da teoria
heliocêntrica, a qual sustenta que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário,
como se pensava. Hoje sabemos que eles estavam certos, mas na época uma pro-
posta de mudança tão grande das concepções vigentes rendeu, para Copérnico, a
fogueira e, para Galilei, graças à sua proximidade com o Papa, apenas a prisão.
Notemos, então, que o pensamento social costuma não aceitar grandes mu-
danças em pouco tempo. A educação também costuma ser assim. A pedagogia
não abandona suas práticas a qualquer momento e é preciso que haja um grande
movimento nas formas do conhecimento para que novos saberes sejam incorpo-
rados à prática educativa. Isso nos ajuda a compreender a força da tradição oral
e dos saberes que passam de pais para filhos. Uma escola que queira romper pa-
drões ou implantar novos saberes precisará, sempre, de argumentos favoráveis e
bastante convincentes para que fórmulas antigas cedam às novidades.

Modernidade e discurso
No plano do conhecimento, além das mudanças anteriormente apresenta-
das, o Renascimento também foi responsável por abrir terreno para a investigação
3 Dizer que havia uma ver-
dade teológica é compre-
ender que a noção de verdade,
ou seja, do bom senso e da ra-
da realidade que seria definitiva na substituição da verdade teológica3 vigente até zão, eram guiadas pela orien-
o final da Idade Média. Essa verdade sofre um abalo com o desenvolvimento do tação religiosa, como de fato
já vimos.
pensamento humanista-renascentista. Esse pensamento, por sua vez, foi respon-
sável por dar visibilidade a um outro tipo de conhecimento, o racional-científico,
baseado na investigação, no método e na empiria (experiência).
A partir da modernidade (séc. XVII), não era mais a religião a responsável
por explicar o mundo, mas sim, as ciências que, com seus métodos e observações
afirmaram ser o seu discurso científico a única verdade legítima e verificável. Os
estudos empíricos, ou seja, aqueles realizados em laboratórios ou diretamente
no meio ambiente, ofereceram dados para o conhecimento humano que jamais
haviam sido explorados anteriormente.
Com isso, a educação também passou por transformações. A filosofia de
Descartes, por exemplo, inaugurou uma verdadeira revolução no modo de pensar
ao instituir a “dúvida metódica”. Essa dúvida é originada pela aplicação de um
método rigoroso de pensamento que parte da premissa de que devemos duvidar
de tudo aquilo que não pode ser suficientemente comprovado por dados claros e
distintos. Você já deve ter percebido que isso é a base da ciência atual e até da
construção do conhecimento de uma maneira geral. Ninguém, no campo cientí-
fico ou acadêmico, ousa afirmar qualquer coisa que não seja passível de compro-
vação. Sem tais dados, sua posição, mesmo que aparentemente bem apresentada
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e fruto de um raciocínio elaborado, pode ser tomada como mera especulação. Po-
demos dizer que a educação absorveu completamente o modo de pensar moderno,
que é o da verdade científica e da dúvida metódica.
Outra obra responsável por causar profundas revoluções no modo de ver o
homem e o mundo foi o estudo de Charles Darwin sobre a origem das espécies.
Tal estudo ratificou uma das mais tradicionais verdades teológicas, a da criação
do mundo e do homem representada pela história bíblica de Adão e Eva. Darwin
nos apresenta um modelo de evolução da nossa espécie, a partir do qual o ho-
mem descenderia de ancestrais bem primitivos, semelhantes aos primatas. Isso
causou grande desconforto na época e violentas reações por parte dos defensores
das verdades bíblicas. No entanto, os estudos de Darwin estavam amplamente
baseados em dados, amparados por anos e anos de pesquisa científica. A teoria
desse pesquisador se encarregou de separar a verdade teológica da científica. E,
por isso, hoje em dia é socialmente aceitável que os indivíduos tenham sua crença
e sigam os preceitos que ela determina. Hoje, já existem aqueles que idealizam
uma união dessas duas formas de verdades, vendo possíveis elos nos quais elas
não se negariam. No entanto, para a educação moderna isso foi uma tarefa difícil
e houve muitos choques. Como já dito anteriormente, uma discussão teológica
não é nosso objetivo aqui, mas temos de perceber religião e ciência como formas
do pensamento social e como grandes pilares para educação através dos tempos.
Até o Renascimento, predominava a religião como explicação da vida; da Idade
Moderna aos dias de hoje, prevalece a ciência.
Ainda que a ciência seja uma tônica da modernidade, devemos perceber que
muitas teorias diferentes abordaram a questão do homem em sociedade e, muitas
delas, conferiram importante relação com o fenômeno da educação. Existem vá-
rios teóricos dos séculos XIX e XX que se destacaram nesse enfoque, mas para
que possamos visualizar um pouco dessa pluralidade de abordagens, típicas da
modernidade, foquemos ao menos três desses pensadores, em especial no que eles
têm a nos apresentar sobre a relação da sociedade com a educação.

Durkheim e a educação moral


O primeiro deles é Émile Durkheim4. Considerado um dos pilares do Po-
4 Émile Durkheim (1858-
-1917) é um dos pais da
sociologia moderna, conferindo sitivismo5, Durkheim acredita que o ser humano, ao nascer, é uma espécie de
grande ênfase aos fatos sociais
e à questão da moralidade. tábula rasa, ou seja, um elemento vazio, uma espécie de recipiente que devemos
completar para que a criança seja, de fato, um homem. Justamente aí está o pa-
5 Corrente sociológica cujo
precursor foi Augusto
Comte (1789-1857) e que recu-
pel da educação na concepção do autor. No entanto, notemos que, por essa via,
sa conhecimentos teológicos Durkheim acredita que o indivíduo não cria nada de novo em sua própria educa-
ou metafísicos, apegando-se
a valores radicalmente huma-
ção, ou seja, a sociedade lhe impõe o que ele deve saber. Não há como educar um
nos em uma herança intelec-
tual do Iluminismo.
filho, por exemplo, do modo que queremos. Temos que agregar a ele os valores
vigentes da sociedade em que estamos, pois estes são os únicos verdadeiramente
válidos. Chamamos isso de determinismo social. Embora haja lógica no pensa-
mento de Durkheim e pareça tentadora a sua visão sobre educação, temos de
notar que a extensão desse determinismo social acaba por justificar ideologias
e formas de pensamento que agem de modo conservador. Se a sociedade impõe
tudo ao indivíduo, é legítimo que aceitemos, por exemplo, as divisões sociais, as
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injustiças e as separações. Mesmo em um regime democrático, a sociedade teria


de impor essas diferenças para sua própria sobrevivência, e a educação, nesse
contexto, teria de assumir o papel de conformar os indivíduos a essa realidade.
Muitas vezes, encontramos uma educação elitista que apregoa valores diferentes
para ricos e pobres, que supõe que a escola para os mais favorecidos deve tratar
da alta cultura enquanto a escola para os menos favorecidos deve limitar-se a sa-
beres práticos, enfim, o determinismo social consequente das ideias de Durkheim
pode nos levar a uma educação a serviço das diferenças sociais. É por isso que
a educação, em Durkheim, deve ser entendida como uma educação moral. De
fato, há uma obra de Durkheim chamada Educação Moral, na qual ele aplica em
termos pedagógicos sua concepção sociológica de que o homem deve adaptar-se
aos valores vigentes.

Karl Marx e a luta de classes


Um ponto de vista contrário a esse de Durkheim foi apresentado por Karl 6 Filósofo alemão do sécu-
lo XIX (1818-1883), outro
Marx . Para ele, não há um determinismo social. Na verdade, o que encontramos é
6 pilar fundamental da sociolo-
gia e precursor dos ideais que
uma luta de classes, ou seja, a imposição das ideias de alguns sobre outros. Nossa sustentam tanto o socialismo
como o comunismo.
sociedade é dominada pelas relações de trabalho, ou seja, pelas formas de produ-
ção. Há uma diferença abrupta entre aqueles que detêm os meios de produção, ou
seja, aqueles que são os donos da terra, da fábrica etc. e aqueles que vendem sua
força de trabalho em troca de salários, tais como os empregados da fazenda ou da
fábrica. Como os que detêm os meios de produção se valem do lucro do trabalho
executado pelos que vendem sua força de trabalho, os detentores dos meios de
produção são membros de uma classe que enriquece enquanto os trabalhadores
permanecem como que escravos de suas ocupações. A classe dos donos dos meios
de produção, portanto, acaba por impor suas vontades, uma vez que ela determina
as relações de trabalho e domina os que estão sob seu controle. Por essa razão, tal
classe é chamada por Karl Marx de classe dominante, ao passo que a outra classe,
que vende sua força de trabalho, é chamada de classe dominada.
Em todas as esferas da vida social acaba por haver uma imposição de va-
lores da classe dominante. Então vejamos que o determinismo a que se referia
Durkheim não é de fato algo natural e inevitável, mas corresponde a uma certa
visão de mundo, fruto da imposição de um conjunto de valores. A educação, nesse
contexto, tem o risco de se vergar a essa visão de mundo e representar as ideias
da classe dominante como sendo a verdade. Na proposta de Marx, há de se tentar
superar esses valores dominantes e se instituir novas formas de interpretação, vin-
das também da classe dominada que, de fato, representa a maioria das pessoas. De
qualquer forma, a crítica de Marx colabora para que percebamos que os valores
da sociedade não são naturais ou imutáveis. Representam uma visão de mundo,
oriunda de uma classe social definida e com interesses bastante particulares. Essa
percepção nos ajuda muito a pensar sobre o papel da educação na sociedade,
alertando para que não nos inclinemos sem reflexão a tais valores e que sejamos
capazes de propiciar um ensino amplo, que contemple as várias visões de mundo
que são próprias da realidade social em sua diversidade e pluralidade.

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Nietzsche e a educação
para celebrar a existência
Uma outra posição interessante e marcante do pensamento moderno sobre
7 Um dos maiores filósofos
do século XIX (1844-
a relação do homem com o seu meio vem de Friedrich Nietzsche7. Para ele, somos
-1889), chamado, ao lado de
Freud e Marx, como um dos
vergados a um peso da moral desde tempos muito antigos. Mais especificamen-
“Mestres da Suspeita”. Cons- te, podemos dizer que a cultura ocidental, desde que deixou de lado aspectos do
truiu uma severa crítica da
cultura ocidental, em espe- mundo grego que valorizavam a vida e a existência, passou a assumir um caráter
cial em relação aos valores
judaico-cristãos. racional e desapegado do mundo. O advento do cristianismo colaborou para esse
desapego, pois ao prometer uma vida eterna, não terrena, acabava por desprezar a
existência nessa vida. Já discutimos suficientemente esse ponto ao observarmos a
Idade Média, no entanto, Nietzsche vai além em sua observação e nos demonstra
que houve uma genealogia da moral, ou seja, uma formação de valores oriunda
desses aspectos, de tal modo profunda, que hoje, mesmo em um panorama social
diferente, acabamos por considerar o certo e o errado, o bem e o mal a partir dessa
visão de mundo moralizada.
Para Nietzsche, uma educação verdadeira deve almejar um homem forte. Isso
corresponde a um indivíduo que não se vergue a essa tábua de valores que despre-
za a vida. A educação deve valorizar a existência e fazer com que o indivíduo se
recuse a aceitar os valores daquilo que Nietzsche chama de “moral de rebanho”.
Nesse “rebanho”, o que impera é o ressentimento, a fraqueza e a submissão. O es-
pírito que a educação deve oferecer ao homem, para Nietzsche, é o espírito forte,
aquele que é capaz de assumir sua própria vida como projeto maior e que percebe
na cultura elevada não um código para a polidez social, mas antes, uma forma de
assumir o projeto humano como meta para si mesmo. Por muitas vezes, a filosofia
de Nietzsche foi acusada de irracionalista, mas isso não passa de um engano, pois
o que Nietzsche propunha era uma elevação das potencialidades humanas, inclusi-
ve da potencialidade da razão, mas sem que, para isso, tenhamos de assumir uma
carga moral que nos impeça de experimentar a vida de modo mais amplo e intenso.
Percebemos, assim, como a educação tem um papel fundamental no pensamento
moderno de Nietzsche, pois cabe sobretudo a ela o desenvolvimento desse espírito
forte e uma reflexão crítica sobre os valores morais vigentes.
Uma boa educação, atualmente, deve ser capaz de oferecer ao aluno con-
dições de analisar o conhecimento pelas mais diversas formas e estimular sua
reflexão e senso crítico de modo que ele seja capaz de formular sua própria opinião
sobre o assunto.
O que pudemos perceber neste breve retrospecto da educação é que há uma
profunda e inseparável união entre o pensamento social e a educação. As formas
e os conteúdos educativos tendem a estar em sincronia com o pensamento de sua
época. Ao mesmo tempo, é justamente uma boa educação que pode propiciar no-
vos pensadores que formulem novas ideias para a sociedade. Podemos concluir,
portanto, que o pensamento social e a educação caminham juntos, um alimentan-
do o outro, no objetivo que o homem sempre se colocou, que é o de compreender,
o quanto mais possível, o mundo e a existência.

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Paideia: a formação do povo grego


(JAEGER, 2003, p. 13-14)

A posição específica do helenismo na história da educação humana depende da mesma parti-


cularidade da sua organização íntima – aspiração à forma que domina tanto os empreendimentos
artísticos como todas as coisas da vida – e, além disso, do seu sentido filosófico do universal, da
percepção das leis profundas que governam a natureza humana e das quais derivam as normas que
regem a vida individual e a estrutura da sociedade. Na profunda intuição de Heráclito, o universal,
o logos, é o comum na essência do espírito, como a lei é o comum na cidade. No que se refere ao
problema da educação, a consciência clara dos princípios naturais da vida humana e das leis ima-
nentes que regem suas forças corporais e espirituais tinha de adquirir a mais alta importância.
Colocar esses conhecimentos como força formativa a serviço da educação e formar por meio
deles verdadeiros homens, como o oleiro modela a sua argila e o escultor as suas pedras, é uma
ideia ousada e criadora que só podia amadurecer no espírito daquele povo artista e pensador. A
mais alta obra de arte que seu anelo se propôs foi a criação do homem vivo. Os gregos viram pela
primeira vez que a educação tem de ser também um processo de produção consciente.
“Constituído de modo correto e sem falha, nas mãos, nos pés e no espírito”, tais são as pala-
vras pelas quais um poeta grego dos tempos de Maratona e Salamina descreve a essência da virtu-
de humana mais difícil de adquirir. Só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a
palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em sentido metafórico, aplicando-a à
ação educadora. A palavra alemã Bildung (formação, configuração) é a que designa de modo mais
intuitivo a essência da educação no sentido grego e platônico. Contém ao mesmo tempo a configu-
ração artística e plástica, e a imagem, a “ideia”, ou “tipo” normativo que se descobre na intimidade
do artista. Em todo lugar onde essa ideia reaparece mais tarde na História, ela é uma herança dos
Gregos, e aparece sempre que o espírito humano abandona a ideia de um adestramento em função
de fins exteriores e reflete na essência própria da educação. O fato de os gregos terem sentido essa
tarefa como algo grandioso e difícil e se terem consagrado a ela com ímpeto sem igual não se
explica nem pela sua visão artística nem pelo seu espírito “teórico”. Desde as primeiras notícias
que temos deles, encontramos o homem no centro de seu pensamento. A forma humana dos seus
deuses, o predomínio evidente do problema da forma humana na sua escultura e na sua pintura, o
movimento consequente da filosofia desde o problema do cosmos até o problema do homem, que
culmina em Sócrates, Platão e Aristóteles; a sua poesia, cujo tema inesgotável desde Homero até
os últimos séculos é o homem e o seu duro destino no sentido pleno da palavra; e finalmente, o
Estado grego cuja essência só pode ser compreendida sob o ponto de vista da formação do homem
e de sua vida inteira: tudo são raios de uma única e mesma luz, expressões de um sentimento vital
antropocêntrico que não pode ser explicado nem derivado de nenhuma outra coisa e que penetra
todas as formas do espírito grego. Assim, entre os povos, o grego é o antropoplástico.

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1. Com base no que foi estudado, argumente qual é a relação entre o pensamento social e a educa-
ção na época estudada nesta aula.

2. Discuta qual a diferença para a educação de uma visão de mundo centrada em Deus (teocêntri-
ca) e outra centrada no homem (antropocêntrica).

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Livros:
JAEGER, W. Paideia: a formação do povo grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Trata-se de um livro clássico sobre os primórdios da educação e sobre as estruturas sociais
do classicismo grego. Referência indispensável nos estudos helenistas nos aponta a origem
fundamental da educação na cultura ocidental.
ARANHA, M. L. A. História da Educação e da Pedagogia. São Paulo: Moderna, 2003.
A autora, que também escreve sobre filosofia, faz um retrospecto sobre a escola e a educação
em geral na cultura ocidental, mas sempre com grande ênfase na relação entre este movi-
mento e o do pensamento social.
DESCARTES, R. Discurso do Método. São Paulo: L&PM, 2005.
Essa é a obra do filósofo francês René Descartes que é considerada como o ponto inaugural
da filosofia moderna. A dúvida como método, tal qual explicada no texto, é formulada e
proposta por Descartes de modo a balizar de modo muito profundo o pensamento e a ciência
moderna.
Links:
Site da Sociedade Brasileira de História da Educação. Disponível em: <www.sbhe.org.br/>.
Esse site permite o acesso de profissionais de educação e estudantes à íntegra da revista eletrô-
nica da SBHE, com diversos artigos sobre história da educação, tanto geral como brasileira.

1. Para elaborar a resposta para essa atividade você deverá ser capaz de argumentar sobre os prin-
cipais tópicos desta aula: as diversas relações possíveis entre o pensamento social e o fenômeno
da educação, passando pelo tema da educação na época da Grécia Antiga; na época medieval e
na época moderna. Ressalte os pontos que você achou mais importante.

2. Ao apresentar as diferentes visões de mundo o aluno deve compreender que uma educação
fundamentada no homem volta-se para temas relacionados ao mundo, à existência terrena e à
ciência de um modo geral. A visão de mundo dita teocêntrica ficará ancorada em ideais religio-
sos que acabaram por servir a propósitos políticos de segregação e elitização. Uma educação
antropocêntrica deve partir da igualdade entre os homens, além de ter como objetivo central o
desenvolvimento das potencialidades humanas nos mais variados campos. Essa é uma distinção
importante que deve aparecer no padrão de resposta.

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Escola e pensamento social

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Teorias educacionais,
sociedade e escola

A
s relações entre a escola e seu meio social sempre foram efetuadas em dupla direção, ou seja:
tanto a sociedade já foi responsável por influenciar as teorias educacionais, como a escola já
determinou alguns aspectos que afetaram a vida da sociedade.

ESCOLA impacto SOCIEDADE

Ao longo da história da educação, podemos perceber que essa dinâmica recíproca entre escola
e sociedade se dá de maneiras diferentes, de acordo com o contexto. Algumas teorias educacionais
estão ou já estiveram intimamente relacionadas com a sociedade. Por outro lado, há outras que se
fecham unicamente no ambiente escolar. Ao percebermos as diferenças e características de cada uma
dessas vertentes, podemos construir um conhecimento mais sólido sobre o alcance destas no âmbito
social. Só assim é possível construir um saber capaz de relacionar a vida em sociedade com os proce-
dimentos concretos que acontecem no interior da escola.

Teorias sociais X teorias educacionais


Partindo do pressuposto filosófico de que o conceito de crítica é o de exame de um objeto de
modo racional, o mais isento possível de preconceitos, visando à construção de um novo conhecimen-
to – podemos considerar como teoria crítica, portanto, toda aquela que atenda a essa exigência de
um novo saber. Por outro lado, consideraremos como não críticas aquelas vertentes que não tenham o
mesmo objetivo ou até mesmo o recuse.

Notemos, então, que se uma teoria crítica preocupa-se sempre em enfocar a realidade social
em sua reflexão, uma abordagem não crítica pode mostrar-se distante de tal realidade.

Um exemplo de teoria crítica da educação encontra-se no livro de Dermeval Saviani, intitulado


Escola e Democracia (1997). Assumiremos aqui esta orientação tanto para a caracterização de uma
teoria crítica, como para apontar outros tipos de teorias.

Uma teoria crítica é, portanto, aquela que leva em conta os problemas sociais; e uma teoria
não crítica aquela que não se preocupa com eles, acreditando haver saberes universais que não
precisam de contextualização.

Ao contrário do que pode parecer, as teorias educacionais não críticas tiveram bastante visibi-
lidade, em especial até meados do século XX, e ainda gozam de certa credibilidade nos dias de hoje.
Se nos parece óbvio que uma teoria em educação deva ser crítica e observadora da realidade social é
por termos, atualmente, uma discussão pedagógica desenvolvida ao longo das décadas nessa direção.
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Teorias educacionais, sociedade e escola

No entanto, como veremos a seguir, há muitos aspectos aparentemente vantajosos


nas abordagens não críticas, o que faz com que, muitas vezes, elas sejam franca-
mente assumidas.
Comecemos, então, por apontar e analisar as principais teorias educacionais
classificadas como não críticas. Como já dito, o que as caracteriza é a crença de
que os saberes preconizados pela escola são conhecimentos universais e que, sendo
assim, não precisam de contextualização com a realidade, pois serão válidos em
qualquer tempo e local.
Apenas para exemplificar, notemos o caso da disciplina escolar de Matemá-
tica. Há um risco de tomarmos a Matemática como algo abstrato, sem conexão
com a realidade. Muitos supõem que a realidade social não está ligada à Mate-
mática e que, para aprendê-la, temos de seguir os passos sugeridos na escola. No
entanto, um olhar mais cuidadoso da realidade nos mostra que existem pessoas
que aprendem certos raciocínios matemáticos de modo prático, valendo-se de ca-
minhos totalmente diferentes daqueles que são ensinados no ambiente escolar.
Isso não indica que há uma forma melhor de se aprender Matemática ou
qualquer outro saber. Demonstra, no entanto, que há muitos caminhos para a ob-
tenção do conhecimento e a escola não é a única detentora dos saberes.
Hoje já é uma preocupação corrente nas ciências matemáticas a relação en-
tre seu saber específico e a vida social cotidiana. Essa preocupação advém de
uma abordagem crítica da dita disciplina. Já as teorias não críticas, pelo contrário,
supõem que o aluno deve receber da escola todas as informações necessárias para
sua formação intelectual e moral. Segundo essa vertente, o que acontece fora dos
muros da escola não se configura como conteúdo para a prática educativa – e a
preocupação com a realidade social, quando aparece, é meramente ilustrativa, ou
seja, não orienta nenhuma forma de conhecimento, apresenta apenas exemplos de
conceitos previamente trabalhados. Ironicamente, os dois modelos mais conhe-
cidos de teorias educacionais não críticas são quase o avesso um do outro, mas,
como veremos, há uma razão na contradição existente entre eles. Estamos falando
da Pedagogia Tradicional e da Pedagogia Nova. Além desses dois, há mais uma
vertente que é conhecida como Pedagogia Tecnicista.

Teorias educacionais não críticas


Pedagogia Tradicional
Comecemos por entender as características da Pedagogia Tradicional. Este
modelo de ensino, como o próprio nome já diz, tem seu fundamento na tradição.
Tradição moral, tradição intelectual e tradição de ensino. As escolas representan-
tes do ensino tradicional são aquelas nas quais os fundamentos da disciplina (da
conduta) são levadas ao mais alto grau. Todo o saber está nas mãos do professor,
que o transmite aos alunos como se eles fossem elementos passivos na relação de
ensino e aprendizado.
Para o professor que segue essa vertente, o bom aluno é aquele que obedece
às regras e que tira boas notas. Para que esse estudante obtenha seu êxito escolar
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Teorias educacionais, sociedade e escola

é preciso que conheça muito sobre tudo o que foi apresentado pelo professor. O
estudo, nesse caso, tem um critério quantitativo e o conteúdo a ser reproduzido
pelo aluno em suas avaliações deve ser sempre o mais semelhante possível à ex-
plicação do mestre, à dos livros e à dos materiais de referência. A criatividade e a
espontaneidade dentro desse processo assumem possibilidades muito limitadas.
No imaginário de nossa sociedade, a Pedagogia Tradicional é responsável
por dotar o processo de ensino-aprendizagem de um caráter “forte” e disciplina-
do, sem espaço para distrações e individualidades. A partir de todo esse cerce-
amento da liberdade individual, advinda da pedagogia tradicional, resta pouco
espaço para uma crítica social, o que exigiria flexibilidade nas opiniões e troca
de ideias. Essa vertente pedagógica já conta com ideias preestabelecidas e, assim,
não há nada para o aluno acrescentar. Por essas razões é que a Pedagogia Tradi-
cional deve ser considerada uma teoria não crítica da educação.
Até a primeira metade do século XX este era o modelo pedagógico mais
difundido, inclusive nas escolas públicas de todo o país.
Hoje, ainda existem muitos focos desse tipo de educação, com evidentes
mudanças disciplinares. Essas escolas que visam estritamente à transmissão de
conteúdos e à disciplinarização de seus alunos podem ser classificadas como se-
guidoras de uma teoria educacional não crítica.

Pedagogia Nova
Como o modelo da Pedagogia Tradicional foi se desgastando, houve um
anseio cada vez maior por alguma forma de educação que não fosse tão represso-
ra e disciplinarizadora. A partir de meados do século XX surge um movimento
educacional caracterizado por ser o contraponto da Pedagogia Tradicional. Esse
movimento ficou conhecido como Pedagogia Nova. São representantes desse mo-
vimento a chamada Escola Nova, o Construtivismo, o método Montessori, entre
outros. A tônica principal desses métodos foi a de tentar inverter os pressupostos
da até então hegemônica Pedagogia Tradicional. Assim, no lugar do ensino em
quantidade, preconizava-se a qualidade; no lugar da disciplina, foi defendida a
liberdade; no lugar do professor como senhor do saber, o aluno como descobridor
do conhecimento. O interesse passou a ser a palavra de ordem na prática pedagó-
gica e o professor o estimulador do descobrimento do mundo.
É evidente que quando temos um descontentamento, temos a necessidade
de modificar aquilo que está nos incomodando. Assim ocorreu com a Pedagogia
Nova. Todos os seus principais fundamentos estão ligados a uma simples inver-
são dos valores da Pedagogia Tradicional.

Dessa forma, a Pedagogia Nova não foi capaz de tocar na questão da


crítica educacional porque não questionava os antigos pressupostos pedagó-
gicos à luz da realidade social. Com isso, a Pedagogia Nova também deve ser
entendida como uma teoria não crítica.

De fato, se notarmos as propostas que essa “nova” vertente pedagógica pre-


coniza, perceberemos que não houve a criação de nenhuma estratégia para que
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Teorias educacionais, sociedade e escola

a realidade social passasse a fazer parte do conteúdo educativo. Ao flexibilizar a


disciplina e centrar o foco no interesse do aluno, a educação da Pedagogia Nova
continuou alheia à sociedade, enfatizando o comportamento do aluno exclusiva-
mente dentro dos muros da escola. Por exemplo, se há uma diferença social entre
os alunos, tal diferença não será objeto de trabalho pedagógico, mas simplesmente
será respeitada a forma como cada indivíduo se manifesta.
De acordo com a Pedagogia Tradicional, essas diferenças sociais dadas entre
os estudantes não poderiam existir; e o que essa vertente propunha era a equaliza-
ção de seus alunos. Já na Pedagogia Nova, as diferenças são respeitadas, mas tanto
em uma como em outra vertente, essas diferenças não serviram para demonstrar
realidades diversas, para propor discussões sobre tais diferenças, enfim, para cons-
truírem um cenário crítico no qual o aluno fosse capaz de interpretar sua própria
realidade social e também a dos seus colegas. A escola da Pedagogia Nova conti-
nuou, portanto, apartada da realidade social, vivendo em um mundo próprio.

Pedagogia Tecnicista
O terceiro tipo de teoria educacional representante das teorias não críticas
é a Pedagogia Tecnicista. Como nem o modelo da Pedagogia Tradicional nem o
da Pedagogia Nova foram capazes de produzir certos resultados – por exemplo, o
de garantir ao aluno formação suficiente para o trabalho ­– surgiu uma pedagogia
com objetivos extremamente pragmáticos, voltada para a qualificação profissional
do aluno. A Pedagogia Tecnicista deixou de lado tanto os conteúdos tradicionais,
tão valorizados pela Pedagogia Tradicional, como as estratégias de interesse e
criatividade do aluno, focos da Pedagogia Nova. Com isso lançou-se a um objetivo
pragmático e direto: capacitar o aluno para tarefas práticas, no sentido técnico e
operacional. Baseada em pressupostos mecânicos da ciência, esse tipo de educa-
ção não se preocupou com a autonomia do aluno, tampouco com sua cultura geral
ou capacidade de reflexão. Essas são virtudes desejáveis, mas não necessárias à
formação do homem técnico. Segundo esse mesmo pressuposto, esse homem téc-
nico é aquele que realiza tarefas, operacionaliza ações, reduz os custos, aumenta
a produtividade, maximiza os lucros, tudo sem muita abstração ou envolvimento
pessoal, que podem distanciá-lo do modo prático de entender a vida.
A escola, como um todo, absorveu muito desse espírito técnico, em espe-
cial nas décadas finais do século XX, quando já a Pedagogia Nova se encontrava
desacreditada. Há alguns exemplos bastante expressivos desse tipo de educação,
que são as chamadas escolas técnicas ou escolas de ensino profissionalizante. Era
comum no final do século XX, e ainda é nesse começo de século XXI, alunos que
não logram êxito na escola optarem pelo ensino profissionalizante. Torna-se claro
como esse modelo educativo está distante de qualquer possibilidade crítica, pois
antes de proporcionar qualquer reflexão do aluno e da sua realidade social, limita-
-se a inserir o indivíduo no mundo do trabalho. A escola, nesse caso, aparece como
mero trampolim para a inclusão social, sem formar o indivíduo para o exercício da

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Teorias educacionais, sociedade e escola

cidadania consciente. É evidente que nem toda escola de ensino profissionalizante


pode ser enquadrada nesse modelo pedagógico, mas também é claro que existem
variáveis nas escolas de ensino tradicional ou da Pedagogia Nova. O que estamos
abordando aqui são as características gerais de cada uma dessas vertentes da teo-
ria pedagógica e a convergência das três em torno da questão da não criticidade.
Quadro comparativo das teorias não críticas
Pedagogia Tradicional Pedagogia Nova Pedagogia Tecnicista
Centrada no professor Centrada no aluno Centrada no trabalho
Disciplina Liberdade Técnica
Deseja o aluno culto Deseja o aluno criativo Deseja o aluno habilidoso
Aprender a conhecer Aprender a aprender Aprender a fazer

Teorias educacionais críticas


À medida que as ciências humanas foram se desenvolvendo, acentuava-se
uma crítica a esses modelos de escolas, tidos como anacrônicos e alienados quan-
to ao panorama político e social vigentes. Dessa forma, surgem novos modelos
teóricos para abordar a questão educacional e o papel da escola. São teorias que,
embasadas em estudos de natureza social, política ou econômica, propõem uma
reflexão dos diferentes aspectos próprios do âmbito escolar, como a relação de
autoridade existente entre professor e aluno.
Essas novas teorias possuem um caráter crítico por tecerem análises e re-
flexões sobre a instituição educacional e sobre o papel da escola na sociedade. No
entanto, a forma como as teorias das ciências sociais abordaram o fenômeno edu-
cativo não levou em conta a singularidade da escola, apenas reproduzindo as mes-
mas ideias que se tinha sobre as instituições em geral para o particular da escola.
Por essa razão, tais teorias são caracterizadas como teorias crítico-reprodutivistas.
São consideradas críticas, pois se relacionam com a sociedade; mas também são
reprodutivistas porque consideram a escola como um simples reflexo da sociedade
e que mantém com essa instância uma relação de profunda dependência.

Como sabemos, a escola faz parte da sociedade e traz marcas do social


em seus comportamentos. No entanto, também é preciso notar que há singu-
laridades nos fenômenos escolares. A escola não é uma “sociedade em minia-
tura”, contendo características que aparecem com maior ou menor ênfase no
ambiente escolar do que em outros lugares.

Há ainda situações e papéis que só são vivenciados nos anos escolares. É


aí que essas teorias tornam-se passíveis de contestação. Vejamos quais são os re-
presentantes principais dessas teorias crítico-reprodutivistas e suas características
fundamentais.

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Teorias educacionais, sociedade e escola

Teorias crítico-reprodutivistas
Escola como espelho da sociedade
A primeira teoria desse grupo entende a escola como uma espécie de vio-
lência simbólica permanente e consentida. Ela parte do pressuposto que a socie-
dade é estruturada em classes sociais e toda a vida coletiva desenvolve-se pelo
jogo de forças entre essas classes. A escola, por sua vez, acaba por reproduzir esse
jogo de forças segundo a dita teoria. Então, vejamos: na sociedade há uma classe
que tem mais poder que outra e que deseja manter-se no poder. Se isso é verdade,
parece óbvio aos defensores desta teoria que a escola, como instituição social, vai
defender valores que mantenham a posição dos mais fortes. Por isso fala-se da
existência de uma violência simbólica na escola, já que essa instituição acaba por
forçar os menos favorecidos socialmente a aceitarem a dominação dos mais fortes.
Existem exemplos que dão razão a esses argumentos. Por exemplo, em um livro
chamado As Belas Mentiras, de Maria de Lourdes C. D. Nosella (1981), há uma
análise da ideologia subjacente aos textos didáticos utilizados por muitas escolas.
A autora nos mostra que, sem que percebamos, valores e preconceitos morais
estão presentes em simples contos infantojuvenis ou em explicações da matéria,
fazendo com que certas desigualdades sociais sejam perpetuadas. A autora men-
ciona, além desse, muitos outros exemplos comuns ao cotidiano escolar de muitas
décadas os quais atuam de acordo com este tipo de violência, a simbólica.
Outro exemplo de violência simbólica: um aluno vê uma ilustração de uma
cena familiar em que aparece o pai encaminhando-se para o trabalho, os filhos
para a escola e, por fim, a mãe que se mantém em casa, ocupando-se dos afazeres
domésticos. Isso já nos parece algo “normal”, isento de preconceitos, adequado.
No entanto, por mais trivial que possa parecer, a figura já traz consigo um grande
preconceito sobre o papel social da mulher, preconceito esse que vai sendo perpe-
tuado pela escola nos moldes de uma violência simbólica. Também nos remete a
valores como o trabalho, a educação, o matrimônio e a família nuclear moderna.
De acordo com a vertente crítico-reprodutivista, espera-se que a escola re-
produza o jogo de forças da sociedade, mas não se supõe que essa mesma institui-
ção tenha seu próprio jogo de forças, tampouco que ela seja capaz de desencadear
alguma mudança no panorama social.
Uma teoria crítica mais completa deve subentender essa dialética, compre-
endendo que tanto a sociedade influencia a escola como a escola influencia a
sociedade.

Escola a serviço do Estado


O segundo tipo de vertente educacional crítico-reprodutivista vê a escola
como aparelho ideológico do Estado. Muito parecida com a teoria da escola como
violência simbólica, esta também supõe que a educação escolar dissemina os valo-
res sociais dominantes; só que, nesse caso, tais valores são aqueles que interessam

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Teorias educacionais, sociedade e escola

à dominação do governo, ou melhor, do Estado. Em um modelo de educação


no qual a grande maioria das crianças estuda em escolas públicas – tal qual o
modelo brasileiro – é evidente que certas determinações que o Estado impuser
às escolas podem ter um impacto muito grande na educação, devido ao enorme
número de indivíduos que irá atingir de forma direta (alunos) e indireta (famílias,
comunidades).
Um exemplo conhecido e polêmico de uma medida governamental social-
mente impactante é o da exclusão das disciplinas de Sociologia e Filosofia do
currículo; ou ainda a substituição delas pela “Educação Moral e Cívica” ou pelos
“Estudos Sociais”. Como se sabe, essas exclusões e substituições acarretam em
um empobrecimento da capacidade crítica dos alunos, o que se pressupõe ser um
objetivo de um governo totalitário que deseja manter apaziguada sua população.
No entanto, esta teoria também tem a marca reprodutivista quando se esquece
que os atores sociais da escola, ou seja, os alunos, os professores e outros profissionais
envolvidos com a instituição, não precisam estar sempre vergados às orientações
do Estado. A capacidade crítica desses sujeitos lhes permite contestar, alterar e até
mesmo recusar aquilo que lhes pareça incorreto ou manipulador. Ao supor que a
escola será apenas um instrumento para a dominação do Estado, esta teoria não
avança para a possibilidade de uma posição educacional realmente crítica.

Escola dualista
Por fim, a última das teorias crítico-reprodutivistas é a da escola dualista.
Nela, acredita-se que a escola tem uma dupla tarefa determinada pela divisão
social do poder. Por um lado, a escola ensina quais são os valores da camada
social dominante e, assim, reforça sua ideologia. Por outro, indica que aqueles
que não são detentores do poder devem trabalhar e se esforçar para terem uma
vida honesta e feliz. De um modo geral, o que este modelo de escola preconiza
é a continuidade das desigualdades sociais e, justamente por isso, é chamada de
vertente dualista, ou seja, trata-se de um saber diferenciado para cada estrato
social. O mais favorecido deve aprender a mandar, a exercer o poder e a per-
petuar sua dominação; já o menos favorecido, por meio de seu trabalho, deve
saber obedecer, conformar-se com a realidade e sonhar que um dia poderá ser
rico, seja por meio da sorte, seja por meio do trabalho – o que do ponto de vista
das diferenças sociais é praticamente impossível. Mais uma vez, notamos que,
embora essa teoria nos alerte para um perigo que de fato se encontra em muitas
realidades educativas, escapa-lhe a possibilidade de a escola construir um saber
superador das desigualdades sociais. É claro que uma mudança profunda nas ba-
ses econômicas do país não depende apenas de uma boa educação, mas também
é certo que a escola faz parte desse projeto de erradicação das diferenças entre
seus indivíduos. Pior que a desigualdade social é a desigualdade cultural, pois ela
impede que o cidadão consiga analisar sua própria condição e reivindicar, para si
e para os outros, meios dignos de existência. Ao não considerar essa importante
possibilidade de ação social da educação, a teoria da escola dualista caracteriza-se
como reprodutivista.

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Quadro comparativo das teorias crítico-reprodutivistas


Violência Simbólica Aparelho Ideológico do Estado Escola Dualista
Reproduz as desigualdades sociais Reproduz a desigualdades sociais Reproduz as desigualdades sociais
Predomina a vontade do grupo Dominantes e dominados têm
Predomina a vontade do estado
dominante vontades diferentes
O dominante se impõe sobre o O dominado sonha em ser
O estado se impõe sobre todos
dominado dominante

Como vimos, nem as teorias não críticas, tampouco as crítico-reprodutivis-


tas foram capazes de construir uma relação positiva entre a escola e a sociedade,
de modo a possibilitar a escola absorver a realidade social e também de propor
formas de interpretação e transformação dessa mesma realidade. Para nos man-
termos na mesma referência proposta neste texto, ou seja, na abordagem ofere-
cida por Dermeval Saviani em Escola e Democracia, vejamos quais seriam os
principais passos para a superação dessas limitações, ou seja, como poderíamos
arquitetar uma teoria crítica que não incorra nos erros das teorias não críticas ou
nos das teorias crítico-reprodutivistas. Para isso, o autor nos oferece cinco passos
inspirados na pedagogia de Herbart e Dewey, que serão apresentados a seguir,
com uma adaptação voltada para os objetivos deste texto.

Passos para uma teoria crítica da educação


1.o passo – prática social
Trata-se de partir da realidade social dos alunos para construir o conheci-
mento. Como vimos, de acordo com a Pedagogia Tradicional, o professor
oferece o conteúdo sem se importar com a realidade social dos alunos. Já
na Pedagogia Nova a realidade do aluno também é indiferente à prática
pedagógica, pois o foco está no interesse de transformação dessa reali-
dade. Na educação que possui um caráter crítico, a realidade do discente
seria o ponto de partida para uma prática pedagógica social, pois con-
textualiza as experiências vividas pelos alunos no âmbito do processo
de ensino-aprendizagem. A partir daí, essa educação crítica diagnostica
o contexto do aluno para aplicar os conteúdos e métodos mais coerentes
com ele.
2.º passo – problematização
Nesta etapa, espera-se que os conhecimentos propostos pela educação
sejam capazes de serem relacionados com a realidade social, de modo a
formarem problemas a serem trabalhados. Portanto, nessa fase não são
apresentadas soluções práticas, como é o caso da vertente educacional
tecnicista, mas é construído um panorama amplo em torno das relações
entre os conhecimentos trabalhados pela escola e as possibilidades de
modificação da vida social que tais saberes podem propiciar.

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3.o e 4.o passos – instrumentalização e catarse


Para os fins desse texto, evitando compor um referencial muito detalha-
do, propomos uma abordagem do terceiro e do quarto passos em conjun-
to. Ambos referem-se, basicamente, à autonomia que o conhecimento
pode trazer ao aluno. A problematização dos conhecimentos à luz de seu
contexto realizada no passo anterior deve ser incorporada pelos alunos
de modo que eles possam, efetivamente, levar o aprendizado para além
dos muros da escola e aplicar seus saberes para obtenção de uma melhor
qualidade de vida.
5.o passo – prática social
Como percebemos, o último passo volta ao ponto de partida, que é a prá-
tica social. No entanto, nesta fase – com a herança dos ganhos dos passos
anteriores – o que se espera é que o aluno seja capaz de voltar à práti-
ca social com conhecimentos suficientes para capacitá-lo a interpretar e
transformar esta prática. Sua relação com o meio social agora deve ser au-
tônoma e consciente. A escola dotou o indivíduo da capacidade de refletir
por meio de uma educação crítica. Essa educação não se limitou a saberes
sem relação com o mundo em que ele vive – como fazem as pedagogias
não críticas – tampouco tentou inculcar-lhe uma visão de mundo confor-
mada e imóvel como preconizam as teorias crítico-reprodutivistas.
É evidente que esses passos propostos não se configuram como uma receita
infalível de sucesso educacional, nem mesmo como uma certeza da relação entre
escola e sociedade, mas certamente apontam um caminho inteligente, até mesmo
por analisarem com cuidado os erros de teorias anteriores que se mostraram insu-
ficientes nesses mesmos propósitos. Manter constante a interação entre a escola e
a prática social é um objetivo central em qualquer prática educativa e o profissio-
nal da educação deve estar sempre atento para quais possibilidades podem melhor
atender a essas necessidades.

1. Com base no que foi estudado, argumente quais seriam as vantagens e as desvantagens dos três ti-
pos de educação não crítica: a Pedagogia Tradicional, a Pedagogia Nova e a Pedagogia Tecnicista.

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2. Seguindo os passos propostos por Dermeval Saviani para uma teoria crítica em educação, apre-
sentados e adaptados por este texto, proponha um tema simples de aula e descreva brevemente
como esse tema seria tratado em cada um dos cinco passos de uma educação crítica.

Livros:
SAVIANI, D. Escola e Democracia. Campinas: Autores Associados, 1997.
Essa obra foi a base deste capítulo. Tanto as classificações das teorias como os passos para
uma teoria crítica basearam-se na terminologia proposta pelo autor. No entanto, este capítulo
fluiu para os seus próprios objetivos e explorou a temática de acordo com os interesses mais
específicos da disciplina em questão. Portanto, é bastante interessante que o aluno entre em
contato com essa obra para saber mais sobre cada uma das teorias pedagógicas apresentadas,
bem como as questões sociais a elas ligadas. No mais, a obra traz ainda dois outros ensaios
do autor de grande pertinência ao universo da educação brasileira.
LIBÂNEO, J. C. Didática. São Paulo: Cortez, 1994.
O livro é uma referência básica nacional em Didática. Embora seu conteúdo dedique-se espe-
cialmente à relação entre os objetivos, os conteúdos e os métodos de ensino – a relação entre
a prática social e a escola aparece com ênfase. Em relação ao que foi trabalhado neste texto,
uma sugestão interessante é a leitura do capítulo 2, “Didática e democratização do ensino”.

1. Esta atividade tem dois propósitos. Primeiro que você identifique as principais características de
cada uma dessas três teorias apresentadas. Segundo que, ao elaborar a atividade, perceba-se que
todas as três formas, embora divergentes entre si, apresentam qualidades e também problemas.

2. Espera-se que o aluno seja capaz de transpor o que compreendeu sobre a possibilidade de uma
pedagogia crítica para um exemplo prático à sua escolha. O fundamental nessa atividade é que
haja coerência entre os passos e, evidentemente, uma postura crítica, relacionando sempre a
prática educativa e a prática social.
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O conhecimento
e suas relações sociais

Educação e autonomia

N
os princípios da atividade docente, em tempos nos quais somente os mais privilegiados ti-
nham acesso à educação, era comum que os alunos fossem assistidos individualmente, por
um único professor. Esse profissional era conhecido como preceptor e cabia a ele ensinar ao
seu “discípulo” os mais diversos saberes. Alexandre Magno, por exemplo, foi aluno de Aristóteles
durante um longo tempo e muito de sua grande habilidade estratégica foi fruto de sua educação junto
ao filósofo grego.
No entanto, nos dias de hoje, não é mais comum encontrarmos esse tipo de educação indivi-
dualizada. Mesmo quando notamos a presença de professores particulares – na maior parte das ve-
zes – seu papel é o de reforçar, individualmente, os conteúdos trabalhados coletivamente na escola.
Podemos assim concluir que a educação formal atual se desenvolve em um palco coletivo, fruto de
processos de conhecimento que estão focados no desenvolvimento social do aluno como cidadão.
Nesta relação coletiva, entretanto, é imprescindível que a educação possibilite ao aluno condições
para que ele, por capacidade própria, construa seu saber e sua conduta. A palavra adequada, nesse
caso, é a autonomia.
Autonomia é uma palavra que se origina do grego, tendo como raízes, auto (próprio, por si) e
nomus (lei). Um indivíduo autônomo, então, é aquele capaz de criar para si uma lei, uma conduta.
Nesse caso, ele não desconsidera a norma social, mas a lei que esse indivíduo cria permite-lhe respei-
tar a lei comum e, ao mesmo tempo, buscar caminhos pessoais de vida. Se a todo tempo estivéssemos
vergados à opinião pública, agindo de acordo com o pensamento dos outros e não o nosso próprio,
não teríamos autonomia e sim, heteronomia. Essa palavra, igualmente de origem grega, refere-se à
lei do outro ou, em outras palavras, refere-se à atitude passiva de um indivíduo em não ter opinião
própria e de não ser capaz de se posicionar frente ao coletivo de modo atuante.
A educação, em sua proposta de encaminhar o indivíduo para a autonomia, deve ser capaz de
construir saberes que ofereçam aos alunos possibilidades para a formação da opinião, dos conceitos e
dos discursos. Por meio desses posicionamentos, os alunos podem ser, de fato, atuantes na realidade
social, aspectos principais que uma boa formação do cidadão deve conter.
Para que o aluno seja autônomo frente à sociedade, é preciso que ele possua a capacidade de
criar opiniões, conceitos e discursos. Tais capacidades terão de ser fruto de uma reflexão cuidadosa
a ser desencadeada pelo processo educativo. Também é preciso que aquilo que o indivíduo assume
como convicção para sua vida seja fruto de um conhecimento elaborado, transmitido, em grande
parte, pela escola. Para tanto, vejamos como o conhecimento pode gerar possibilidades diferentes de
posicionamento do indivíduo frente a sua realidade. Vejamos cinco dessas possibilidades, observando
os discursos referentes a cada uma delas e como podemos associá-las à educação.

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O conhecimento e suas relações sociais

Dogmatismo
Um dogma é uma forma de conhecimento que se aceita como verdadeiro
e que se coloca acima de qualquer questionamento. Dessa forma, os dogmas têm
a função de orientar a conduta dos que neles creem e fazem parte de um saber
transmitido, herdado ou incorporado, ou seja: é uma forma de conhecimento não
produzido pelo indivíduo. Alguns sistemas de crença, tais como boa parte das
religiões, estão baseados em dogmas e o indivíduo que quiser segui-las deverá se
submeter a tais dogmas. Se o que está em questão é um fundamento de fé, pode-
mos entender as razões pelas quais a relação entre o indivíduo e a realidade será
intermediada pelos dogmas. Uma vez pertencentes a um sistema de dogmas, os
fiéis fazem parte de uma comunidade que busca uma coesão comportamental, e
suas leis são o fundamento que orienta sua ação.
No entanto, quando expandimos os domínios do dogma, alcançando, por exem-
plo, a educação, notaremos que a postura dogmática trará muitos problemas ao tentar
explicar a relação do indivíduo com o seu meio. Como podemos pronunciar uma
educação que, baseada em verdades sólidas e imutáveis, não permita o diálogo, a
diferença de opinião e a experimentação hipotética? É próprio da educação valer-se
do diálogo para construir o saber e, no que diz respeito à relação do indivíduo com
a realidade, é esperado que haja um movimento de mão dupla, ou seja: que tanto o
sujeito do conhecimento como o objeto a ser conhecido sejam ativos no processo de
conhecer. No dogma, há um anulamento do papel do sujeito que é obrigado a aceitar
certa verdade sobre o objeto sem poder colocá-la à prova ou questioná-la.
Muitas vezes, em educação, presenciamos um ensino que, mesmo dotado
de boas intenções, incorre no erro do dogmatismo. Trata-se do processo no qual
o professor acredita que os conhecimentos de que dispõe, ou mesmo as matérias
encontradas nos livros didáticos são verdades incontestáveis. Nessa postura, não
há abertura para intervenções dos alunos, evita-se abordar visões diferentes da-
quelas que são hegemônicas e, mesmo no que se refere às avaliações, espera-se
que o aluno reproduza de forma quase que idêntica os conhecimentos trabalha-
dos, pois se esses conhecimentos forem transmitidos de modo dogmático, não há
a possibilidade de variações em sua forma ou conteúdo.
Podemos notar o quanto o dogma representa um perigo em educação. Na ver-
dade, o dogmatismo é uma postura mais ampla que o processo escolar de ensino-
-aprendizado. É uma visão de mundo. Aquele que se vale de dogmas para sua
relação com a realidade, costuma assumir uma postura que, em todos os aspectos
da vida social, procura encaixar o mundo ao seu sistema de pensamento. É evi-
dente que essa postura pode levar ao preconceito, à intolerância ou, pelo menos,
ao empobrecimento das possibilidades de compreensão do mundo. Como já dito, o
dogma pode ser adequado em algumas situações específicas, como em um sistema
de crenças. Mas quando extrapola esses limites e se torna a única forma com que o
indivíduo vê o mundo, o dogmatismo pode empobrecer e até mesmo comprometer
o processo de conhecimento dessa pessoa e de suas relações sociais.

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O conhecimento e suas relações sociais

Ceticismo
Ao contrário do dogmatismo que parte de uma verdade dada como certa e in-
questionável, o ceticismo é uma postura que duvida de toda e qualquer verdade que
não esteja evidente. Para o cético, um conhecimento só é assumido como verdadeiro
quando há provas claras e suficientes para isso. O método de investigação científica,
por exemplo, vale-se muito dessa postura cética. Jamais uma pesquisa científica é
aceita como válida se ela não apresentar dados concretos que comprovem as afirma-
ções e conclusões que revela. No senso comum, o cético ficou sendo conhecido como
um indivíduo que duvida de tudo. Não é bem assim. De fato, o cético mantém-se em
desconfiança até que haja provas suficientes para uma afirmação. Por essa razão, o
ceticismo não é uma postura bem recebida em todas as esferas da sociedade.
Hoje, a sociedade recebe melhor a postura cética tendo em vista a importân-
cia assumida pelo discurso científico em nossos dias, cujas afirmações parecem
ser todas comprovadas com base em experimentos e pesquisas. Alguns veículos
de comunicação, para obterem uma maior credibilidade de seu público, ao trans-
mitirem uma informação, utilizam-se de expressões como uma pesquisa demons-
trou, segundo os dados levantados, foi comprovado cientificamente.
Se o ceticismo pode ser adequado para certas ocasiões, não podemos dizer
que seu modo de produção do conhecimento seja adequado para todas as esferas
da realidade social. Ao contrário do dogma, essa postura minimiza ao extremo
a possibilidade de verdade contida nos objetos. De forma simples, podemos di-
zer que se o dogmático acredita muito rapidamente na verdade, o cético demora
demais para se convencer. E essa demora do cético pode ser um entrave para o
entendimento da realidade.
Em educação, por exemplo, se toda e qualquer afirmação for submetida à dúvi-
da, ficará difícil de avançar em certos conhecimentos. O pensamento hipotético1, por 1 O pensamento hipotético
é a capacidade humana
exemplo, faz parte de várias áreas do saber, de modo que se supõem certas verdades, de elaborar suposições. Es-
sas suposições são úteis para
pelo menos enquanto possibilidade. A atitude de se arriscar ir além no raciocínio demonstrações ou experi-
mentos. Dessa forma, mesmo
pode propiciar uma educação mais abrangente. A Física é um bom exemplo para isso. quando não temos dados con-
cretos, podemos criar hipóte-
Muito embora seja uma disciplina exata, na qual a postura cética para a pesquisa seja ses que nos ajudem a supor
imprescindível, o ensino, como sabemos, precisa partir de certas aproximações para possíveis respostas.

poder se desenvolver. Caso contrário, ficaria emperrado em uma discussão sem fim
sobre a verdadeira noção de espaço ou sobre a existência ou não do tempo etc.
Embora pareça uma resposta ao dogmatismo, uma inversão de postura, o
ceticismo também não oferece uma relação adequada entre o conhecimento e a
realidade social, não levando a educação a uma postura sempre correta para cons-
truir uma visão de mundo e uma forma de se procurar a verdade.

Relativismo
O dogmatismo e o ceticismo são formas comuns de discursos e, de fato, os
encontramos em vários momentos da vida em sociedade. Mas, nos dias de hoje,

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O conhecimento e suas relações sociais

se pensarmos em identificar qual seria o mais comum dos discursos, certamente


encontraríamos o relativismo. Uma marca mesmo de nossa época é a propensão
em relativizar a relação dos indivíduos com a realidade e deles entre si. Trata-se da
tendência em se eleger como verdade orientadora a ideia de que “tudo é relativo”.
Falsamente baseada na teoria da relatividade de Einstein – que mostra o papel va-
riável da realidade em relação ao tempo – essa ideia bem mais generalizada e su-
perficial tende a supor que tudo depende dos sujeitos envolvidos e da situação em
questão. É evidente que cada sujeito tem sua singularidade, respondendo de modo
específico aos estímulos que recebe do meio. Também é verdade que situações
idênticas são fenômenos raros e que pequenas mudanças na realidade podem pro-
piciar desfechos bastante diferentes. No entanto, não podemos, com isso, perder a
referência de que há um entendimento possível entre as pessoas e que nossa inte-
ligência pode agrupar situações de modo a melhor compreendê-las. O relativismo,
quando levado ao extremo, elimina a possibilidade de pensar de modo mais cole-
tivo. Individualizando ao extremo a relação entre indivíduo e meio, o relativismo
cria uma sociedade de seres isolados e de situações eternamente singulares.
Mais uma vez temos de observar quão inadequada seria uma postura dessas
em educação. Como seria possível uma educação que se baseia amplamente na ex-
periência humana, se tal experiência é sempre relativa e individualizada? A educa-
ção parte do princípio de que existem conteúdos e procedimentos gerais tanto para
a escolha e tratamento de seus temas como para a expectativa de aprendizado em
relação aos alunos. Se cada aluno aprendesse de uma forma absolutamente singular,
nenhum ensino teria êxito e nenhuma teoria educacional seria possível. Didatica-
mente, a variação de métodos de ensino busca contemplar o maior número possível
de formas de aprendizagem, atendendo alunos com características infinitamente di-
versificadas. No entanto, ainda assim, tais métodos estão pedagogicamente ancora-
dos em conhecimentos gerais que fundamentam a prática educativa e se direcionam
para o ser humano em seu sentido coletivo e não para particularidades.
O que observamos no âmbito do discurso, muitas vezes, é o uso do relativis-
mo como uma forma de se escapar de um embate ou troca de argumentos. Qual-
quer que seja a base sobre a qual se discute um determinado assunto, é comum ou-
virmos jargões relativistas como “cada cabeça tem uma sentença” entre outros que
convergem sempre para o relativo, anulando a possibilidade de entendimento e de
se chegar a uma conclusão aceita em plano geral. O escapismo proporcionado por
argumentos relativistas como esse pode evitar as possíveis divergências de opinião.
No entanto, para isso leva as discussões à uma solução vazia que não aponta para
nada e não nos faz avançar em nenhuma direção sobre o tema discutido.
Devemos, no papel de professores, estar sempre atentos às diferenças sutis
presentes em cada um dos alunos e em cada situação em particular, pois podem
levar a um entendimento mais profundo daqueles que se busca ensinar. Mas isso
é uma tarefa pedagógica que não pode excluir a necessária formação de conceitos
e ideias a serem aplicadas de modo coletivo, pois, se vivemos em uma sociedade,
devemos aprender a entendê-la como fenômeno coletivo, o que é bastante diferente
de supor que ela é uma soma de muitas individualidades, cada qual com sua visão
de mundo em particular e suas próprias experiências.

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O conhecimento e suas relações sociais

Pragmatismo
Como já vimos, o dogmatismo, dependendo da situação em que se encaixa
pode ter certa utilidade. O mesmo podemos dizer do ceticismo e até mesmo do
relativismo. Assim, a questão pragmática é um critério que aproveita certos as-
pectos de cada um desses discursos e os torna até mesmo adequados em certas
situações, mesmo que saibamos que uma visão de mundo apresenta problemas,
como já visto. Esse princípio da utilidade, no pragmatismo, é o elemento central.
A postura pragmática é a que elege como verdade aquela que se mostra mais útil.
Quando estamos diante de uma situação na qual várias possibilidades se apresen-
tam, o pragmático escolhe aquela que é a mais útil para o momento. Mais uma
vez, estamos diante de uma opção tentadora. Parece mesmo que essa postura não
só é apropriada como até mesmo óbvia. Por que deixaríamos de escolher uma
verdade que pareça a mais útil? Vejamos que, mais uma vez, do ponto de vista da
educação, essa pode ser uma opção perigosa. A educação é um processo lento,
contínuo e complexo. Ao escolhermos certas opções, por serem úteis no momento
em que elas se apresentam, podemos deixar escapar entendimentos mais profun-
dos e completos. Nossa relação com a realidade e com os outros, quando reduzida
ao pragmatismo, tem o risco de reduzir tudo à utilidade, propiciando uma postura
interesseira, ou cínica, como nas palavras de Oscar Wilde, para quem o cínico
“nada mais é senão aquele que sabe o preço de tudo, mas não conhece o valor de
nada”. Conhecer o preço das coisas é submeter o custo à utilidade, mas o valor é
bem mais complexo que isso. Na relação humana, por exemplo, o valor deve ser
muito mais presente do que o custo ou a utilidade. Por isso, a educação precisa ter
muito cuidado quando se vê frente ao pragmatismo.
Nos dias atuais, em face de mercado de trabalho competitivo, muitos dis-
cursos sobre educação têm investido em um tom pragmático. Uma escola que
prepara para a aprovação nos mais difíceis vestibulares, uma universidade que ca-
pacita para o mercado de trabalho, uma pós-graduação que torna o indivíduo mais
competitivo – todas essas iniciativas são bastante importantes do ponto de vista
da vida cotidiana e pragmática em termos de mercado de trabalho. Mas, como
educadores, temos de nos questionar sobre os valores perenes de uma educação
que envolve a formação do homem, projeto de grande envergadura que vai além de
uma simples capacitação do indivíduo para ser útil ao mercado de trabalho.
No mais, vale novamente observar a relação entre esses discursos e a reali-
dade social. Se a educação elege o pragmatismo como sua preocupação central,
estaremos colaborando para a formação de uma sociedade voltada para utilidade,
na qual os valores que não se mostrarem imediatamente úteis serão discriminados.
Vejamos, por exemplo, que até há pouco tempo, o trabalhador que se aposentava
por algum problema de saúde era classificado como “inválido”; ou mesmo os pro-
dutos que usamos e queremos, mas que não são considerados de utilidade básica,
são taxados de supérfluos (desnecessários). A educação, como estamos observan-
do, é uma forma de construir uma postura da pessoa frente ao mundo e, assim, não
podemos deixar de escolher conteúdos éticos e sociais para nortear nossa prática,
sob o risco de produzirmos ou agravarmos um quadro social de derrocada dos
valores humanos.
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O conhecimento e suas relações sociais

Criticismo
Por fim, cabe observar um discurso que se diferencia de todos os demais,
justamente na forma como investiga a realidade e produz sua verdade. Trata-se
do criticismo, ou seja, do uso da crítica como método. Todas as formas de discur-
sos vistas até aqui possuem em comum o fato de terem uma direção única para
a produção da verdade. No dogmatismo essa direção vem de um saber tomado
como certo e inquestionável; no ceticismo, a dúvida é um vetor que não se abala;
no relativismo, a variabilidade das interpretações é sempre válida; e, por fim, no
pragmatismo, a direção é sempre no sentido do útil. O criticismo é o único que não
tem um ponto de referência imutável. Sua prática é fundamentalmente investiga-
tiva e sua maior característica é a de estabelecer uma reflexão tanto sobre o objeto
do conhecimento como sobre o sujeito que se quer conhecer. Dessa forma, quando
se pensa sobre a verdade de modo crítico, leva-se em consideração tanto o fato,
como os sujeitos envolvidos; tanto o efeito quanto a causa. Vejamos um exemplo
da história. O período no qual a Grécia Antiga ampliou seus limites, invadindo e
dominando territórios vizinhos sistematicamente, é conhecido por “expansão gre-
ga”. Quando aconteceu o inverso, ou seja, quando outros povos tentaram dominar
o território grego, deu-se o nome a esse período de “invasões bárbaras”. Por que
parece haver um nome mais ameno para o primeiro evento do que no segundo?
Isso se explica uma vez que a história que conhecemos é aquela que foi contada
pelos gregos, a partir do seu ponto de vista. Uma análise crítica dessa situação leva
em consideração essa realidade e, assim, compreende melhor a verdade presente
no fato e nas suas relações sociais. Mais um exemplo histórico temos na situação
envolvendo a chegada dos portugueses aqui no Brasil. A expressão consagrada
para esse acontecimento é descobrimento do Brasil. Posturas críticas atuais têm
evitado essa expressão, pois só há sentido em se falar de “descobrimento” se for-
mos europeus. O Brasil, embora não tivesse tal nome, já tinha, inclusive, pessoas
que nele residiam, que eram os índios de várias tribos. Enfim, o que esses exem-
plos nos mostram é que uma postura crítica, ao refletir sobre todos os lados de
uma mesma questão, pode nos ajudar a compreender de modo mais abrangente um
problema ou uma situação.
Frequentemente, encontra-se a palavra crítica associada ao hábito negativo de
se “falar mal” ou de ter uma opinião contrária. Na verdade, isso é um preconceito
oriundo do fato de que a postura crítica, por observar os vários lados da questão,
acaba por tocar em pontos que nem sempre são agradáveis. A crítica levanta ques-
tões que expõem posturas e atitudes mal elaboradas, mas que, por diversas razões,
encontraram espaço para se consolidarem. Não é preciso dizer que algumas pessoas
acabam por se beneficiar dessas atitudes consolidadas e, assim, reagem negativamen-
te frente às críticas. Mas nada disso pode impedir que a educação seja uma postura
crítica frente ao mundo. Essa postura é, por sinal, uma das maiores e mais centrais
tarefas da educação: desenvolver cidadãos críticos para que possam se relacionar
entre si e com o meio social de forma inteligente, respeitosa e transformadora.

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Conhecer é uma palavra que tem uma origem ligada ao latim, cum-nascere,
ou seja, nascer junto. A atitude compreensiva, dessa forma, é um trabalho coleti-
vo de dar significados, de fazer nascer verdades. A educação está na base desse
processo. Investigar e produzir verdades que orientem nossas ações e condutas é
uma de suas maiores funções e, como vimos, trata-se de uma tarefa que tem uma
relação imprescindível com o meio social. Os discursos que foram aqui apresen-
tados e suas formas de tratamento da verdade são pequenas partes desse amplo
fenômeno que une a escola e a sociedade no projeto humano de dar sentido à vida

e constituir as verdades que orientam a existência.

A atitude crítica
(CHAUÍ, 2002, p. 18-19)

A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não aos “pré-
-conceitos”, aos fatos e às ideias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao
estabelecido. Numa palavra, é colocar entre parênteses nossas crenças para poder interrogar quais
são suas causas e qual é o seu sentido.
A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que
são as coisas, as ideias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É tam-
bém uma interrogação sobre o porquê e o como disso tudo e de nós próprios. “O que é?”, “Por que
é?”, “Como é?”. Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica.
A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude
crítica. Por que “crítica”?
Em geral, julgamos que a palavra “crítica” significa ser do contra, dizer que tudo vai mal, que
tudo está errado, que tudo é feio ou desagradável. Crítica é mau humor, coisa de gente chata ou
pretensiosa que acha que sabe mais que os outros. Mas não é isso que essa palavra quer dizer.
A palavra “crítica” vem do grego e possui três sentidos principais: 1) capacidade para julgar, discer-
nir e decidir corretamente; 2) exame racional de todas as coisas sem pré-conceito e sem pré-julgamento;
3) atividade de examinar e avaliar detalhadamente uma ideia, um valor, um costume, um comporta-
mento, uma obra artística ou científica. A atitude filosófica é uma atitude crítica porque preenche esses
três significados da noção de crítica, a qual, como se observa, é inseparável da noção de racional.
A filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do dia a dia para que possam
ser avaliados racional e criticamente, admitindo que não sabemos o que imaginávamos saber. Ou,
como dizia Sócrates, começamos a buscar o conhecimento quando somos capazes de dizer: “só
sei que nada sei”.

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1. Preferencialmente em grupos, discutir e argumentar o que é a verdade, como ela faz parte da
educação e que relações ela estabelece entre a escola e a sociedade.

2. Apresente quatro frases, criadas por você mesmo ou transcritas de alguma fonte, sendo que a
primeira delas seja um exemplo de dogmatismo, a segunda de ceticismo, a terceira de relativis-
mo e a quarta de pragmatismo.

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O conhecimento e suas relações sociais

Livros:
HESSEN, J. Teoria do Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Esse livro trata das várias formas do conhecimento e de suas relações com a realidade. Seu
primeiro capítulo traz uma abordagem detalhada e muito bem elaborada de cada uma das
possibilidades do conhecimento vistas neste texto: o dogmatismo, o ceticismo, o relativismo,
o pragmatismo e o criticismo. Nas partes seguintes o autor ainda explora a questão da verda-
de e da aplicação do conhecimento.
MAFFESOLI, M. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 2005.
Além de um belo livro sobre formas contemporâneas da razão, necessariamente ligadas
à sensibilidade, nos capítulos V e VI há um ótimo ensaio sobre o conhecimento e sobre a
experiência, assuntos que são de grande interesse à educação, especialmente quando nos
concentramos na relação entre a escola e a sociedade.

1. O objetivo dessa atividade é o de que o aluno possa compreender a verdade como uma construção
humana; portanto, inevitavelmente presente no processo educativo e que estabelece forte vín-
culo com os valores e costumes da sociedade da qual faz parte. Para tanto, ao definir o conceito
de verdade, é necessário que se inclua em tal conceito a importância do consenso e do acordo
entre os que vivem conjuntamente. Não se trata, dessa forma, de uma noção de verdade imu-
tável, mas da formação de um entendimento entre as pessoas.

2. Ao escolher ou criar cada uma das frases pedidas no exercício, o aluno deve compreender o
conceito, a ideia geral que envolve esses discursos. Não se solicitou o quinto tipo de discurso,
ou seja, o crítico, uma vez que esse tipo envolve o desenvolvimento de uma reflexão mais
ampla e, por isso, pode ser difícil de ser encontrado em uma frase isolada.

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Educação e temas sociais
contemporâneos

O
s Parâmetros Curriculares Nacionais para a educação (PCN) propõem o trabalho com
alguns temas sociais de grande presença no cenário nacional. Tais temas, por serem contem-
porâneos e muito presentes no imaginário atual, tanto na mídia como na escola, propiciam
debates e geram interesse por parte dos alunos. A escola, como instituição responsável pela educação do
cidadão, não pode se furtar à tarefa de discutir tais temas e até mesmo de orientar para o tratamento
das questões a eles ligadas. Não que seja a função da escola produzir uma leitura da realidade com
o intuito de estabelecer julgamentos. Sabemos que temas sociais são complexos e permitem muitas
visões diferentes. No entanto, se a escola estimular o debate sobre esses temas, contribuirá de forma
importante para que o aluno receba uma formação reflexiva, com possibilidade de atuar na vida social
de modo ativo e transformador.
Os temas selecionados para serem objetos de discussão nesta aula são: meio ambiente, drogas,
sexualidade, saúde e trabalho. Todos esses cinco temas encontram-se extremamente presentes no
cenário social contemporâneo e nos permitem estabelecer uma relação entre a temática escola e a
sociedade.

Meio ambiente
Nos últimos anos, as discussões sobre o meio ambiente passaram a ocupar um lugar definitivo
nos grandes debates sobre as formas de vida em conjunto. Se em tempos anteriores a ecologia era uma
discussão presente especificamente no âmbito das chamadas ciências da vida, hoje são poucas as áreas
do conhecimento humano que não levam em conta os aspectos ambientais. Isso demonstra como a
vida do planeta deixou de ser uma preocupação apenas de certos grupos de cientistas para participar
das mais amplas formas de se pensar a vida. Na escola, por sua vez, toda essa preocupação com o
meio ambiente deve também estar presente, seja para formar cidadãos responsáveis pelos ecossiste-
mas do planeta, seja para capacitar os alunos para entenderem e acompanharem as discussões sobre a
temática ambiental. Aliás, tal temática, por estar assumindo uma importância crescente, encontra-se
cada vez mais atrelada a propósitos políticos, econômicos etc.
O desenvolvimento humano, aquilo a que damos o nome de progresso, ou seja, todo o conjun-
to de técnicas, de produtos e de comportamentos que se direcionam para novas formas do domínio
humano, carregam também sua carga negativa. Ou seja, parece que muitos dos nossos avanços são
acompanhados de problemas que podem afetar o equilíbrio natural do planeta. Se a indústria química,
por um lado, oferece novos produtos para o bem-estar e para a saúde do homem, por outro descarta no
ar, no solo e na água grandes cargas de poluentes. Se os combustíveis que movem os automóveis e as
máquinas são fundamentais para a nossa forma de existir; por outro lado, são os maiores responsáveis
pelo ataque à camada de ozônio, etapa inicial de uma série de possíveis eventos desencadeadores do
chamado “aquecimento global”. Esses e muitos outros exemplos apontam para um efeito perverso
do progresso: uma sobra ou descarte que nos faz pensar se os produtos que a indústria cria são tão

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Educação e temas sociais contemporâneos

necessários ao ponto de pagarmos um preço alto pela deterioração ambiental. Em


caso de não cooptarmos por esse “pagamento”, já não é possível simplesmente
voltarmos atrás no nosso caminho rumo ao desenvolvimento, devido a questões
que norteiam o cenário político, econômico e ecológico atual. Muitas empresas e,
mesmo países, têm a sua economia baseada na indústria e não admitem reverter
suas formas de produção. Por outro lado, alguns estragos no meio ambiente já são
bastante grandes e não se trata mais apenas de suspender os agentes agressores,
mas também de criar meios de descontaminação.
Por essas razões, percebemos que a temática do meio ambiente é ampla e
move todo o nosso projeto de existência social: no que diz respeito ao passado,
frente às ações que culminaram na devastação do planeta atual e, também, quanto
às medidas a serem tomadas futuramente para que tenhamos uma opção cons-
ciente e humana sobre que mundo entregaremos às próximas gerações.
É por constituir um ponto de discussão importante que o tema do meio
ambiente deve estar presente na escola como uma ação que vá além dos conhe-
cimentos das aulas de ciências ou biologia, pois, como já vimos, embora tais co-
nhecimentos sejam de grande importância, o aluno deve também compreender
que o tema do meio ambiente, atualmente, é de uma abrangência macroestrutural.
Por essa razão, a escola deve propiciar abordagens multidisciplinares. Temas tais
como a reciclagem, a produção de lixo e o uso racional da água são exemplos de
ações que a escola pode realizar de modo abrangente e extremamente prático, por
meio de campanhas, sensibilizações, trabalhos interdisciplinares e muitas outras
formas de evidenciar a importância e vastidão dos temas. Notemos que, se o in-
divíduo não tiver uma consciência formada sobre a sustentabilidade ambiental do
planeta, quando esse mesmo indivíduo estiver no ambiente do trabalho, outros
interesses, tais como os econômicos, concorrerão para a formação de opinião e
postura. Se o indivíduo não tiver obtido uma base sólida sobre a importância do
meio ambiente, no momento em que se deparar com outros tipos de interesses de
uma vida adulta, pode vir a desenvolver uma postura que lateralize a sobrevivên-
cia do planeta em detrimento dos seus interesses individuais. A conscientização
a respeito desse tema é muito mais bem-sucedida quando realizada cedo e bem
orientada nos anos de atividade escolar.

Drogas
A questão das drogas assume a proporção dos grandes problemas atuais,
em especial, por se fazer sentir em momentos muitos diversos da vida social. As
drogas têm relação com a violência social, com a família e, claro, com a educação.
Além do perigo da presença das drogas nas escolas, é preciso também que a edu-
cação assuma como responsabilidade a conscientização sobre tal questão.
Combater o tráfico de drogas que se instala próximo às escolas ou, até mesmo,
em seu interior é um problema social que, embora deva contar com a colaboração da
direção escolar, não pode ser considerado um problema pedagógico. Ou seja, cabe
às autoridades políticas e policiais uma atuação direta junto a esse problema.
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Educação e temas sociais contemporâneos

Qual é então o papel fundamental da escola em relação ao problema das


drogas? Certamente, está ligado à conscientização dos alunos quanto aos perigos
que elas podem oferecer ao indivíduo e à coletividade. Em relação ao âmbito in-
dividual, é possível indicar os problemas de saúde decorrentes do uso de drogas,
bem como a dependência psicoquímica que o uso de substâncias pode ocasionar,
submetendo o indivíduo a uma condição precária de existência. No âmbito da
coletividade, é preciso que se perceba toda estrutura de violência e de crime que
transita em torno da produção e distribuição das drogas.
Muitas vezes, o aluno não percebe a conexão que existe entre o consumo e
a produção dessas substâncias. Uma vez esclarecida essa relação, é possível per-
ceber como o mercado das drogas alimenta uma estrutura social profundamente
violenta e injusta, em que não há só pessoas ricas por detrás da produção, mas
muita miséria e marginalidade que recrutam adultos e crianças para manter ativa
a rede de produção, distribuição e autoproteção que circula em torno do tráfico de
substâncias ilegais.
A escola também precisa perceber o significado que as drogas podem assu-
mir no contexto da vida de um jovem, apresentando-se como uma possibilidade
tentadora, verdadeiro escape da realidade. As referências sociais e os ídolos des-
ses jovens são, muito frequentemente, associados ao consumo de drogas. Toda
uma mística do prazer e da elevação das potencialidades humanas circula em tor-
no do consumo das mais variadas substâncias. Assim, um combate ao consumo
de drogas de forma descontextualizada, ou seja, em tom proibitivo e autoritário,
está certamente fadado ao fracasso. Partir do ponto que as drogas podem, sim, ser
prazerosas e que, de fato, muita gente famosa e bem-sucedida já esteve envolvida
com elas é um bom começo e, de forma alguma, um estímulo ao vício. Isso por-
que, o passo seguinte dessa conscientização seria o do esclarecimento dos alunos
sobre as consequências acarretadas pelo consumo de drogas.
A educação também pode ir um pouco mais além e mostrar os resultados
obtidos com o uso de drogas.
Um sintoma dessa orientação já pôde ser sentido na mudança considerável
do comportamento dos jovens devido às campanhas antidrogas atuais. Anterior-
mente, o tom desse tipo de comunicação era conservador e considerava o jovem
que se envolvia com esse universo como uma espécie de deslocado. Hoje, as cam-
panhas preferem mostrar resultados por vezes até chocantes do uso regular de
drogas. Ao se expor realidades consequentes das drogas, elege-se a consciência
do jovem como sua capacidade de orientação própria. Como se sabe, uma tomada
de posição é muito mais consistente quando realizada pela consciência do próprio
sujeito do que quando imposta como conduta moral.
Por essas razões, a escola pode trabalhar com campanhas que partam
da experiência e opinião dos próprios alunos. Também pode exibir filmes que
enfoquem o assunto ou ainda, convidar ex-dependentes de drogas para falarem
sobre suas experiências e dificuldades. Tudo isso oferece a possibilidade de
construção de um consciência sobre o tema de forma efetiva e duradoura.
Antigamente, o enfoque dado ao assunto restringia-se a questões biológicas e

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químicas que forneciam informações técnicas sobre os entorpecentes e seus


efeitos no organismo, associadas a preleções morais sobre o consumo dos
mesmos. Hoje, estratégias desse tipo já perderam sua validade e funcionam até
mesmo, de modo indireto, para agravar o problema.

Sexualidade
A sexualidade é outro tema que, assim como o das drogas, enfrenta tabus
quando se pensa em abordá-lo em ambiente escolar. Há todo um receio de que, ao
tratar do assunto na escola, alunos e pais possam se sentir desconfortáveis ou que
certas convicções morais sejam feridas, provocando reações de descontentamento
ou recusa por parte da população ensinada. A inclusão dessa temática como um
tema social necessário ao debate em ambiente educacional deve-se a uma cons-
tatação até bastante óbvia em nossa atualidade: há uma profusão extremamente
grande de estímulos envolvendo a sexualidade na mídia, nas ruas e em toda forma
de comunicação e expressão. Isso é um fato absolutamente constatável e que nos
leva à conclusão de que, se a escola não abordar o assunto, outros meios o farão,
e não da forma considerada mais apropriada para uma educação sexual. Como
então pensarmos em estratégias para abordar o assunto em ambiente escolar?
Para responder a isso, talvez seja melhor começarmos por perceber o que
não deve fazer parte dessas estratégias. Muito frequentemente, quando se elege
o tema da sexualidade como foco, um ímpeto de se tratar a questão pelo enfoque
médico vem à tona. Nesse enfoque, trata-se de detalhar a anatomia dos órgãos
reprodutores masculino e feminino, sua fisiologia e a dinâmica da reprodução.
Nessa mesma perspectiva, também é tema certo o das doenças sexualmente trans-
missíveis, as chamadas DSTs. É evidente que todos esses assuntos são importantes e,
como sabemos, até mesmo já fazem parte dos conteúdos de ciências ou biologia em
muitos currículos. No entanto, é preciso cuidado com a abordagem da sexualidade
para que não fique restrita à uma posição que reflete pouco sobre a vida sexual tal
como ela se desenvolve com aqueles que estão começando a conhecê-la, sob os
mais diferentes aspectos.
Abordar o tema de forma estritamente moralizante, associando-o aos riscos
das doenças, pode fazer com que o jovem associe de forma direta sexualidade com
doença. Repetindo: esses temas, como o das DST, por exemplo, são muito impor-
tantes, mas o que estamos aqui apontando é que a escola não pode restringir-se a
eles, sob o risco de não esclarecer várias outras dúvidas de seus alunos. Para uma
abordagem que não se limite à essa visão medicalizada e assuma um papel de fato
orientador e educativo em várias faces da sexualidade, a escola precisa trazer para
seu âmbito a reflexão sobre as influências da sexualidade que se projetam sobre o
aluno em sua realidade social. Assim, a escola deve buscar discutir junto aos seus
alunos e professores temas como a censura, a gravidez, a fidelidade, o sexo por
prazer e por reprodução, a pedofilia, a pornografia, enfim, esses e muitos outros
temas que fazem parte do cotidiano atual com os quais o aluno certamente terá
algum tipo de contato em determinado ponto de sua vida.

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Claro que, para que os temas da sexualidade sejam objetos de reflexão em


sala de aula, não basta apenas disposição por parte do docente. Temos de ter
fundamentos para conduzirmos a ação pedagógica de modo consistente. Existe
hoje uma farta literatura sobre a temática e suas aplicações em sala de aula. Para
os propósitos introdutórios deste texto, vamos ver apenas um pequeno exemplo
contido na obra Pensar o Corpo, de Maria Michela Marzano-Parisolli (2004), que
pode bem orientar uma produtiva discussão sobre sexualidade em sala de aula. A
autora trata de elucidar e distinguir os conceitos de sensualidade, erotismo e por-
nografia. É sabido que a sensualidade pressupõe um apelo aos sentidos do corpo
(por isso sensus), que remete ao prazer sexual, mas essa ligação é sutil e, na maior
parte das vezes, implícita. No erotismo, há uma menção direta ao sexo, ou seja,
o foco é sexual, embora o tratamento desse foco ainda seja mais implícito do que
explícito. Por fim, na pornografia, há uma referência explícita ao sexo e o contexto
perde importância, sendo o único foco a sexualidade. Ao identificar esses três
tipos de tratamento do tema sexo o aluno pode compreender melhor o imaginário
da sexualidade e perceber que cada formato tem seu espaço específico.
Note como essa ação está distante das formas de moralização anteriormente
mencionadas. Não se trata de condenar qualquer um dos três tratamentos estéti-
cos da sexualidade, mas antes, de perceber que cada um deles tem seu espaço e
momento específico. Para uma finalidade educativa é importante o aluno perceber
essa distinção e, por extensão, saber optar por uma outra forma, ao se relacionar
com a sua sexualidade.
Essa mesma autora aborda outros temas nessa mesma direção. Além da
obra mencionada existem outras literaturas com a mesma orientação e que visam,
primordialmente, educar por meio da reflexão e da compreensão e não da mora-
lização dos costumes. A escola deve assumir essa importante tarefa entendendo
que as questões relativas ao sexo fazem parte da nossa realidade social e, portanto,
para compreendê-la é preciso refletir também sobre o tema discutido.

Saúde
Todos somos unânimes em compreender a importância absolutamente fun-
damental da saúde para nossa existência. No entanto, o conceito de saúde com-
preende ações e posicionamentos que nem sempre temos consciência e, para que
possamos desfrutar da saúde em sua plenitude, temos de agir positivamente na
busca dessas condições. A noção de saúde é algo tão óbvio em nossa existência,
tão ligado ao próprio viver que parece excêntrica a atitude de se propor uma re-
flexão sobre o conceito de saúde. No entanto, se nos ativermos por um momento
em torno desse conceito, iremos perceber que ele nos foi apresentado sob uma
“formulação negativa”. Diz-se que uma formulação negativa é aquela que, em vez
de elucidar, acaba por definir este algo por aquilo que ele não é. Evidentemente,
não é uma boa forma de se explicar alguma coisa e tratarmos o conceito de saúde
pelo viés negativo, implica considerá-la como sinônimo da ausência de doenças.
Toda vez que nos encontramos em uma situação na qual nenhuma doença grave

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nos aflige, dizemos que estamos com saúde. Do mesmo modo, quando estamos
em um estado doentio, desejamos pela volta do estado saudável e isso é o mesmo
que esperar que a doença desapareça.
Diante disso, pode-se afirmar que o conceito de saúde deve ser algo mais
concreto do que comumente parece ser. De fato, hoje entendemos saúde como
um bem-estar físico e psíquico que oferece condições plenas ao indivíduo para
desempenhar suas funções normais, de modo ativo, autônomo e equilibrado.
A partir desse conceito positivo de saúde, percebemos que é preciso muito
mais do que não estarmos doentes para que possamos, realmente, afirmarmos
nossa saúde. Trata-se de um tema que relaciona, novamente, indivíduo e socieda-
de de forma muito profunda. Todas as condições de vida do indivíduo influenciam
nesse bem-estar.
Digamos, por exemplo, que um cidadão, embora não estando doente, resi-
da em um local onde não há saneamento básico. Essa condição compromete seu
bem-estar e não nos permite afirmar que ele tem condições saudáveis de vida. O
mesmo podemos dizer de alguém submetido a doses regulares e excessivas de po-
luição. Mesmo que não haja ainda nenhuma patologia manifesta, sabemos que seu
bem-estar está comprometido e que, futuramente, várias doenças podem aparecer
ou serem agravadas devido a esse histórico de exposição a poluentes.
O que a escola pode então tomar como ponto de partida para suas orien-
tações sobre a temática da saúde é justamente o da construção e exemplificação
de seu conceito. Em seguida, pode-se refletir sobre o entorno da escola, sobre a
comunidade e as condições que ela oferece para a saúde dos moradores. Anti-
gamente, as orientações sobre saúde restringiam-se a direcionamentos sobre os
hábitos higiênicos. Hoje, uma posição em torno da promoção da saúde é bem mais
ampla que a repetição de hábitos. Trata-se de uma postura frente ao ambiente e a
si mesmo, de forma a potencializar seu bem-estar e respeitar a vida coletiva.

Trabalho
O mundo do trabalho, como se sabe, não é apenas mais uma das faces da
existência humana. Na maior parte das vezes, é a esfera mais significativa da vida
adulta. Aquela que ocupa a maior parte do nosso tempo, que nos identifica como
pessoa e nos dá as condições econômicas de existência. Por essa razão, a escola
não deve cair no erro de tratar o mundo do trabalho como uma mera continuação
da vida escolar ou como uma esfera não dialogável com a educativa. Primeira-
mente, é evidente que os mundos da escola e o do trabalho, embora possam apre-
sentar similaridades, não se apresentam como continuidade do outro. É tentador
supor que as atividades escolares são preparativos às exigências do trabalho, mas
na verdade, há uma natureza diferente nas ações. A educação deve ser importante
por si mesma e não apenas um trampolim para o mercado de trabalho. A escola
que se restringe a preparar o aluno para o mercado de trabalho ou para tarefas
específicas e localizadas é chamada de escola propedêutica. É aquela que não

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tem na educação um sentido amplo de formação da pessoa, mas apenas de capa-


citação para certas ocupações. Por outro lado, é justamente a formação ampla e
integral subsidiada pela escola que permitirá ao indivíduo refletir sobre o trabalho
de modo consciente e crítico.
Para o desenvolvimento de uma forma crítica de abordagem educativa so-
bre o trabalho, um bom começo é trazer à sala de aula a reflexão sobre a maneira
como nossa sociedade se baseia nas formas de produção e na dinâmica do traba-
lho. Como sabemos, nas sociedades capitalistas, a venda da força de trabalho em
troca de salários é a forma básica da economia. A partir desse modo de produção
constroem-se os conceitos de produtividade, lucro e mercado. O aluno que com-
preender o papel da atividade produtiva como o motor básico dessa economia per-
ceberá que o trabalho não é apenas uma opção individual, mas uma necessidade
social e, também, uma forma da realidade que torna as pessoas interdependentes
umas das outras. De nada vale nosso trabalho se, na estrutura social mais ampla,
não pudermos contar também com o trabalho de nossos semelhantes.
A escolha da profissão como mera busca do emprego, destituída das ca-
pacidades vocacionais, pode levar o cidadão à mediocridade da subsistência, ou
seja, à elevação do poder do dinheiro acima da realização profissional e dos ideais
de vida. A discussão sobre a vocação é bem mais ampla do que simplesmente a
identificação da vontade mais imediata do aluno sobre uma profissão a seguir. Ela
envolve toda a visão de mundo, a realidade social circundante e as perspectivas de
vida. Não há local mais adequado para tal discussão do que a escola. A troca de
experiências com as opiniões dos colegas, a possibilidade de conhecer profissões
seja por palestras de visitantes ou mesmo por documentários é uma forma de am-
pliar o leque de opções dos alunos e de capacitá-los para compreenderem melhor
a realidade do trabalho em nossa sociedade.
Por fim, seria ainda interessante nesse tema do trabalho que as relações de
lazer aparecessem. As discussões sobre o lazer, atualmente, estão muito ligadas
com a noção do que se chama “tempo livre”. O tempo livre é compreendido como
o tempo de que dispõe o trabalhador quando se subtrai o tempo de trabalho, de
locomoção para o trabalho e também de recuperação da força de trabalho, tais
como os intervalos para almoço ou lanche. Dessa forma, o tempo livre é aquele de
que dispõe o trabalhador para se ocupar de outras tarefas que completam seu bem-
-estar e sua vida em sociedade. Em um mundo que, cada vez mais, concentra-se
em longas jornadas de trabalho, é fundamental que formemos cidadãos atentos às
necessidades mais do que justas de preservarem tempo suficiente em sua jornada
semanal para ocuparem-se de tarefas diferentes que as do trabalho ou mesmo para
desfrutarem do ócio. Diferentemente do que se pode supor, o ócio não correspon-
de a uma mera perda de tempo, mas à importante ação humana de situar-se no
mundo, ao menos momentaneamente, sem obrigações que o façam agir compul-
sivamente, mas relativamente livre para refletir sobre a vida humana e praticar o
benefício da existência de modos variados. Vale lembrar que, entre os gregos an-
tigos, por exemplo, a prática do ócio era uma atividade muito valorizada e, como
sabemos, foi dessa forma de viver a realidade social que surgiram grandes pilares
da cultura ocidental tal como a filosofia, a arte e os esportes.

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Estes temas são apenas uma pequena amostra das profícuas relações que po-
demos estabelecer entre a escola e a sociedade. Os temas transversais propostos pe-
los PCN são em número maior do que os que foram objeto de análise neste capítulo,
mas de um modo geral, é possível perceber que todos têm em comum esse esforço
de se alinhar a escola à conjuntura social de modo crítico e reflexivo. Para que a es-
cola possa realmente formar cidadãos, os conteúdos tradicionais das disciplinas são
necessários, mas não suficientes. É preciso, também, que haja um esforço interdis-
ciplinar, uma reflexão de conjunto que ofereça ao aluno a possibilidade de discutir,
opinar e repensar a realidade que o cerca e sua posição frente a ela.

Temas transversais: como utilizá-los na prática educativa?


(BARBOSA, 2007, p. 9-10)

Os PCN foram criados com o foco na formação da cidadania, acreditando-se que o principal
aspecto da formação de uma pessoa é a sua capacidade de se humanizar e de participar efetiva-
mente da ação social. Nesse sentido, tanto a questão dos valores quanto a do conhecimento devem
ser abordadas em conjunto, para que sejam acessíveis à população.
Embora saibamos que a escola não é a única responsável por uma mudança estrutural na
questão do ensinar/aprender, acreditamos que ela precisa compor-se de mudanças verdadeiras,
que não se pronunciem somente em um discurso bonito.
A escola não muda a sociedade, mas pode, partilhando esse projeto com segmentos sociais que assumem
os princípios democráticos, articulando-se a eles, constituir-se não apenas como espaço de reprodução, mas
também como espaço de transformação [...] A eleição de conteúdos, por exemplo, ao incluir questões que
possibilitem a compreensão e a crítica da realidade, ao invés de tratá-los como dados abstratos a serem
aprendidos apenas para ‘passar de ano’, oferece aos alunos a oportunidade de se apropriarem deles como
instrumentos para refletir e mudar sua própria vida. (BRASIL, 2007)

Dessa forma, os PCN incluem questões sociais no currículo escolar que poderão ser con-
textualizadas segundo a realidade de cada localidade. Muitas dessas questões já vinham sendo
discutidas nas disciplinas ligadas às ciências sociais e naturais; porém, a caracterização como te-
mas transversais pôde ampliar a discussão para o trabalho didático com qualquer outra disciplina:
Língua Portuguesa, Matemática, Educação Física, Educação Artística e outras.
Como o Brasil é muito grande, com muitas culturas e problemáticas diferenciadas, os temas
escolhidos precisavam atender problemas reais surgidos em todas as regiões brasileiras, abran-
gendo as suas necessidades; garantir a possibilidade de serem ensinados e aprendidos ao mesmo
tempo em que favorecem o desenvolvimento de uma visão crítica do aprendiz a respeito do que
existe, do que vive e presencia, para que possa intervir na realidade em que vive. Além disso, seus
organizadores deixaram um espaço para que outros temas fossem escolhidos e pudessem atender
às necessidades específicas de cada localidade.
O uso de temas transversais é uma forma de garantir a interdisciplinaridade no ensino-apren-
dizagem e de possibilitar que o aprendiz torne significativo o que aprende.

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Educação e temas sociais contemporâneos

1. Em grupos, discutam e proponham uma atividade interdisciplinar que um professor possa tra-
balhar com seus alunos em sala de aula, escolhendo três temas, entre os que foram objeto de
estudo nesta aula. Deve-se propor uma atividade para cada um dos três temas escolhidos, a
partir de uma reportagem, um filme ou imagem que gere a possibilidade de discussão do tema
escolhido, por várias disciplinas.

2. Seguindo a mesma característica interdisciplinar e de relação entre a escola e a realidade social,


proponha outros dois temas (diferentes dos que foram tratados nesta aula) que posam ser, em
sua opinião, interessantes para o trabalho educativo. Justifique, em cada um deles, as razões que
o fazem pensar que tais temas sejam adequados para o trabalho pedagógico.

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Educação e temas sociais contemporâneos

Livros:
BARBOSA, L. M. S. Temas Transversais: como utilizá-los na prática educativa? Curitiba:
Ibpex, 2007.
Esse livro, que ofereceu a leitura complementar do capítulo, é uma interpretação atual e bas-
tante simples dos PCN e de suas possibilidades de uso na ação educativa. A autora oferece
exemplos e sugestões de trabalhos para os variados temas transversais além de fazer um
balanço dos anos de existência dos PCN na realidade educativa brasileira.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
Curriculares Nacionais. MEC/SEF: Brasília, 1997.
Uma vez que os temas escolhidos para análise neste capítulo foram baseados nos temas
transversais propostos pelos PCN, e como esses parâmetros são uma importante referência
no cenário pedagógico brasileiro, a leitura do volume que se direciona a tais temas é de gran-
de valia para a compreensão e ampliação do que foi tratado nesta aula.

1. Ao proporem uma atividade que contemple o tema escolhido, os alunos são lançados a pensar
na abordagem desse tema pelas várias disciplinas e na relação entre a escola e a realidade social.
Espera-se que essa reflexão apareça no padrão de respostas.

2. Os temas escolhidos devem apresentar relação com a realidade social e devem ser de uma am-
plitude considerável a ponto de sugerirem várias possibilidades de intervenção, tal como nos
demais temas explorados na aula. A justificativa da escolha de tais temas deve ser elucidativa
da relação entre a escola e a sociedade.

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A escola e seu entorno

A
escola é uma instituição que possui sua lógica interna, sua organização própria e sua reali-
dade específica. No entanto, por estar vinculada à sociedade, seu papel vai muito além de
“abrigar” alunos e lhes oferecer tarefas pedagógicas. A escola é uma espécie de referência da
comunidade em que está inserida. Seja no âmbito de um bairro, uma cidade ou mesmo um estado,
a comunidade tem uma forte relação com suas escolas posto que elas contribuem com a formação
da identidade do cidadão. Em outras palavras: se vemos escolas bem cuidadas e de ensino eficiente,
temos a tendência de nos orgulharmos disso pois, de um modo geral, acreditamos que esse símbolo
nos representa. É evidente que o inverso também é verdadeiro: uma crítica aos problemas nacionais
sempre passa pelas mazelas encontradas na realidade de muitas escolas. No mais, há de se observar
também que as famílias matriculam seus filhos nas escolas na esperança de que eles tenham uma
formação tanto mais sólida possível.
Mas, por vezes, estabelece-se um cenário caótico na relação entre a escola e o meio à sua volta.
Embora existam muitas causas desse cenário, podemos abordar a questão aqui a partir de um pano-
rama bastante frequente. Trata-se do isolamento da escola com relação à comunidade, ocasionado,
muitas vezes, pela burocracia interna da instituição escolar.
Vamos analisar um pequeno exemplo nesse sentido. Digamos que por um problema de loco-
moção ou de disponibilidade de transporte os alunos de uma certa comunidade só consigam chegar à
escola por volta das 7h45 da manhã. No entanto, o regimento da escola prevê que as aulas devam co-
meçar pontualmente às 7h30. Mesmo diante das evidências apresentadas pela comunidade, a direção
da escola se recusa a encontrar uma solução conciliatória e obriga os alunos que chegam atrasados a
esperarem até o sinal da segunda aula para então poderem entrar na escola.
Na visão dos moradores, a direção estará se colocando acima da comunidade, atitude que con-
tribuirá para o isolamento da escola em seu contexto social. É até mesmo possível que aquela insti-
tuição de ensino passe a ser encarada com desprezo ou mesmo raiva por parte dos moradores, que
podem passar a vê-la como uma intrusa em seu espaço de vida.
A escola precisa trabalhar ativamente para ser aceita pela comunidade, evitando o tipo de ce-
nário anteriormente descrito que, evidentemente, só trará prejuízo aos propósitos educacionais. A
instituição escolar deve manter seu papel hegemônico, mas também abrir possibilidades de diálogo
com a comunidade que se encontrar receptiva. Essa medida certamente trará vantagens para ambos
os lados, além de contribuir significativamente para o êxito escolar de seus alunos. Para que possamos
pensar nessa integração comunidade/escola com objetividade, comecemos então por entender a es-
trutura básica que compõe o quadro escolar, pois é com base nela que podemos traçar possibilidades
para essa integração.

Administração escolar
Observe, a seguir, um organograma da administração escolar organizado por Nelson Piletti
(2002) no seu livro Estrutura e Funcionamento do Ensino Fundamental.

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A escola e seu entorno

Direção

Associação de Pais
Conselho Escolar
e Mestres

Secretaria Orientação Professores Auxiliares

Alunos

Como pudemos observar, há na escola uma estrutura administrativa com-


plexa que oferece a possibilidade de compartilhamento do poder e das tarefas, bem
como a participação da comunidade nas ações escolares. A posição dos alunos na
parte baixa do organograma não quer dizer que estes não participem das decisões
escolares ou que não tenham poder algum. Essa posição indica, ao contrário, que
as ações de todos os outros setores situados acima devem convergir para o aluno.
A educação do aluno, em última análise, é o propósito central de toda atividade
escolar. Vejamos então, resumidamente, o papel de cada um dos elementos dessa
estrutura, mas com o foco básico deste texto, que é o de pensar as relações entre
a escola e a sociedade.
A direção, como autoridade maior da escola, tem funções fundamentais
em todo o andamento da rotina escolar e, no que tange à relação da escola com
a comunidade, o papel do diretor será fundamental para estabelecer as bases
dessa cooperação. O diretor que se limitar a funções técnicas e burocráticas
ficará, certamente, alheio às possibilidades de relacionamento entre a escola e a
comunidade. Cabe a esse agente estimular as práticas que estreitem os laços entre
a escola sob sua direção e a comunidade que a cerca. Para isso, muitas são as
possibilidades, desde as medidas mais conhecidas – como as festas que a escola
pode promover que acabam por trazer os familiares e a vizinhança para dentro
da escola e criar um clima amistoso e fraterno entre as partes – até ações mais
profundas – como a de sediar um espaço de reunião para os moradores discutirem
os problemas do bairro, entre outras ações sociais. A direção escolar é um ponto-
-chave de todo o processo administrativo da escola e da relação entre essa instituição
e a comunidade. Também é papel do diretor contribuir significativamente para
que os demais setores do organograma tenham espaço e representatividade na
estrutura administrativa. Como se vê no organograma, a associação de pais e
mestres e o conselho escolar podem funcionar como conselheiros da escola e do
próprio diretor. Mas isso depende, evidentemente, da abertura dada pela direção
que precisa conceber esse apoio não como uma interferência em seu trabalho, mas
como uma importante contribuição para a democratização das ações escolares.

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A escola e seu entorno

Como se vê, a associação de pais e mestres e o conselho escolar agre-


gam-se ao contexto diretivo da escola.

Cabe a essas duas instâncias colaborarem nas decisões sobre os processos


escolares, as formas de apoio ao estudante, além de contribuírem no planejamento
e execução de atividades envolvendo a comunidade e a escola.
A associação de pais e mestres é composta, basicamente, pela direção, pe-
los professores e pelos familiares ou responsáveis pelos alunos. Tem como uma
característica comum ser eleita anualmente e permanecer fixa por todo o período
letivo. Dessa forma, é possível estabelecer-se uma agenda de compromissos e
eventos com maior antecedência. Já o conselho escolar é composto, basicamente,
por professores da própria escola, mas pode contar, também, com membros exter-
nos que sejam representantes importantes na comunidade, como um representan-
te de alguma ONG local etc. São as atuações da associação de pais e mestres e do
conselho escolar que balizam as ações da direção, propõem novas possibilidades
à administração da escola e oferecem apoio aos seus projetos que precisam de
uma ampla participação.
Com relação aos setores de secretaria, orientação, professores e auxiliares
encontramos neles o núcleo central das ações diárias na escola. A secretaria recebe
todos os processos administrativos referentes à escola, sendo que sua atuação deve
ser competente e ágil para o bom andamento da vida escolar. O serviço de orienta-
ção pedagógica tem um papel-chave, em especial em relação à conduta dos alunos,
suas dificuldades e seus relacionamentos. Sendo o universo escolar uma realidade
coletiva, é preciso que se atente para as características de relacionamento surgi-
das nessa coletividade e que, também, se observe questões individuais, até mesmo
extraescolares que possam interferir no desempenho e conduta do estudante.
Para isso, o papel da orientação pedagógica é fundamental e não deve ser
confundido com um setor exclusivamente direcionado para repreender o aluno.
Se assim for, o aluno terá objeção ao trabalho de orientação, ao passo que o mais
interessante, para todos, é que o aluno perceba a orientação como um espaço de
apoio à sua vida escolar.
Quanto aos professores, não há dúvida: formam com os alunos o par mais
importante da realidade escolar. Cabe a eles o estabelecimento de relações intrín-
secas e extrínsecas da escola com a comunidade, sendo mentores de possibilida-
des. O professor deve mostrar aos alunos que tanto suas experiências são úteis
para o processo educativo, como a escola pode, também, oferecer novas experi-
ências aos alunos, além de capacitá-los para interpretar a realidade que os cerca
de modo diferente. O papel desse docente, embora pareça um exercício teórico,
localizado no interior da sala de aula, tem projeções extremamente práticas na
vida do aluno, pois seu objetivo último é o de propiciar novos olhares sobre a vida
e sobre a sociedade. Além desse papel, os professores ainda podem participar de
ações que promovam o estreitamento dos laços entre a escola e seu entorno: seja

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A escola e seu entorno

por meio de palestras, ações sociais, campanhas – enfim – modos de atuação a


partir dos quais o professor faz uso de seus conhecimentos em prol da comunida-
de ao redor da escola, além de acolher as formas de cultura sediadas em torno da
dita instituição.
Por fim, o pessoal auxiliar tem também uma função importante nesse con-
texto de relações entre a escola e a comunidade. De um modo direto, é esse pessoal
que cuida da manutenção da escola, contribuindo para a dignidade da vida escolar
e a respeitabilidade dos seus alunos. Muitas vezes também, os auxiliares são mo-
radores do próprio bairro em que está localizada a escola, fato que contribui muito
para a aproximação da instituição com a comunidade, visto que essas pessoas fun-
cionam como disseminadores das informações e anseios de ambas as esferas.

Relações entre a escola e a comunidade


Uma vez que compreendemos a estrutura interna da escola, seu pessoal e
seu funcionamento, resta-nos ainda classificar as ações mais específicas da rela-
ção extrínseca da escola, ou seja, aquelas que são estabelecidas a partir da escola
e direcionadas à comunidade e vice-versa. Elas não estão necessariamente ligadas
ao ensino das disciplinas, e sim à educação de um modo amplo. Essas relações
são as responsáveis por contextualizar a escola à luz de sua realidade social e por
colaborar para uma visão de conjunto sobre o que se aprende e como se aplica o
aprendido.
Um primeiro passo para que a escola possa estar ligada à comunidade é o
conhecimento, por parte dessa instituição, da localidade na qual está inserida.
Isso implica em saber alguns aspectos de sua demografia, tais como a quantida-
de, origem e a etnia de seus habitantes, por exemplo. Esse dado fornece pistas da
“personalidade” da região, aponta alguns de seus problemas e permite uma análi-
se contextualizada. No entanto, é evidente que só esses dados não são capazes de
revelar tudo sobre a comunidade; é preciso um segundo passo por parte da escola:
de sua aproximação prática com a realidade social dessa comunidade que recebe
a educação.
É preciso que se estabeleçam canais de comunicação entre essas duas esfe-
ras sociais, os quais podem ser das mais variadas formas e não cabem exemplos
aqui, pois cada situação particular estabelece suas próprias vias de comunicação.

Mas, de um modo geral, o que importa, é que a voz dos moradores possa
ser ouvida pela escola e, ao mesmo tempo, que a escola consiga divulgar efi-
cientemente suas ações.

Por fim, um terceiro e último passo seria o da troca de serviços, ou seja,


existe uma série de benefícios que a escola pode oferecer à comunidade: desde a
sua infraestrutura até projetos educativos de amplo alcance. Por outro lado, exis-
tem muitas pessoas na comunidade que podem ajudar a escola, seja por meio de
suas habilidades profissionais, seja emprestando sua experiência como forma de
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A escola e seu entorno

relato para fins educativos. Podemos perceber que as possibilidades são muitas
e, como já dito, os exemplos aqui apresentados são até mesmo insuficientes, pois
cada escola tem uma realidade social ao seu redor que precisa ser identificada e
problematizada, como já apontado.
Outra preocupação que devemos ter nesse relacionamento entre a escola e o
seu entorno está relacionada ao fato de que podem ocorrer fatores de impacto que
tragam grandes mudanças no comportamento local. Por exemplo, se uma praça
de esportes é construída no entorno da escola, é bastante provável que os alunos
passem a ser os principais frequentadores desse novo espaço.
O que parece ser uma simples novidade, na verdade deve ser incorporado
pela escola de modo ativo. Como já dissemos, a escola não deve se isolar com
relação ao que acontece no tempo não escolar dos alunos. Se um grande grupo
está participando de atividades esportivas a partir do implemento da praça de
esportes, o mais interessante é que haja uma convergência de forças sociais para
que essa nova atividade na vida dos alunos faça parte do conjunto mais amplo de
preocupações pedagógicas.
Uma escola que não se importa com o que acontece na vida do aluno é
aquela para a qual o estudante é apenas um número, criando um ambiente em que
a educação é vista unicamente como uma obrigação a cumprir. No entanto, sabe-
mos que a educação deve ser o grande projeto da vida das crianças e jovens, uma
espécie de aglutinador de suas vivências, para que variadas experiências possam
ser objetos de reflexão e diálogo. Essa é uma importante dimensão da educação
em seu sentido mais amplo e uma tarefa importante para a escola.

Para que a educação possa viabilizar o trânsito entre o conhecimento


produzido pela escola e também aquele oriundo do cotidiano de uma comu-
nidade, deve-se ter em mente – portanto – que a prática educativa é capaz de
alimentar a sociedade assim como a própria sociedade é capaz de transformar
a prática educativa.

Vejamos essa relação nas considerações didáticas de José Carlos Libâneo,


em nossa leitura complementar.

Prática educativa e sociedade


(LIBÂNEO, 1994, p. 16-18)
O trabalho docente é parte integrante do processo educativo mais global pelo qual os mem-
bros da sociedade são preparados para a participação na vida social. A educação – ou seja, a
prática educativa – é um fenômeno social e universal, sendo uma atividade humana necessária à

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existência e funcionamento de todas as sociedades. Cada sociedade precisa cuidar da formação


dos indivíduos, auxiliar no desenvolvimento de suas capacidades físicas e espirituais, prepará-los
para a participação ativa e transformadora nas várias instâncias da vida social. Não há sociedade
sem prática educativa nem prática educativa sem sociedade. A prática educativa não é apenas uma
exigência da vida em sociedade, mas também o processo de prover os indivíduos dos conheci-
mentos e experiências culturais que os tornam aptos a atuar no meio social e a transformá-los em
função de necessidades econômicas, sociais e políticas da coletividade.
Através da ação educativa o meio social exerce influências sobre os indivíduos e estes, ao assi-
milarem e recriarem essas influências, tornam-se capazes de estabelecer uma relação ativa e trans-
formadora em relação ao meio social. Tais influências se manifestam através de conhecimentos,
experiências, valores, crenças, modos de agir, técnicas e costumes acumulados por muitas gera-
ções de indivíduos e grupos, transmitidos, assimilados e recriados por novas gerações. Em sentido
amplo, a educação compreende os processos formativos que ocorrem no meio social, nos quais
os indivíduos estão envolvidos de modo necessário e inevitável pelo simples fato de existirem
socialmente; nesse sentido, a prática educativa existe numa grande variedade de instituições e
atividades sociais decorrentes da organização econômica, política e legal de uma sociedade, da
religião, dos costumes, das formas de convivência humana. Em sentido estrito, a educação ocorre
em instituições específicas, escolares ou não, com finalidades explícitas de instrução e ensino me-
diante uma ação consciente, deliberada e planificada, embora sem separar-se daqueles processos
formativos gerais.
Os estudos que tratam das diversas modalidades de educação costumam caracterizar as in-
fluências educativas como não intencionais e intencionais. A educação não intencional refere-se às
influências do contexto social e do meio ambiente sobre os indivíduos. Tais influências, também
denominadas de educação informal, correspondem a processos de aquisição de conhecimentos,
experiências, ideias, valores, práticas, que não estão ligados especificamente a uma instituição e
nem são intencionais e conscientes. São situações e experiências, por assim dizer, casuais, espon-
tâneas, não organizadas, embora influam na educação humana. É o caso, por exemplo, das formas
econômicas e políticas de organização da sociedade, das relações humanas na família, no traba-
lho, na comunidade, dos grupos de convivência humana, do clima sociocultural da sociedade.
A educação intencional refere-se a influências em que há intenções e objetivos definidos
conscientemente, como é o caso da educação escolar e extraescolar. Há uma intencionalidade,
uma consciência por parte do educador quanto aos objetivos e tarefas que deve cumprir, seja ele
o pai, o professor, ou os adultos em geral – estes, muitas vezes, invisíveis atrás de uma canal de
televisão, do rádio, do cartaz de propaganda, do computador etc. Há métodos, técnicas, lugares e
condições específicas prévias criadas deliberadamente para suscitar ideias, conhecimentos, valo-
res, atitudes, comportamentos. [...]
As formas que assume a prática educativa, sejam não intencionais ou intencionais, formais ou
não formais, escolares ou extraescolares, se interpenetram. O processo educativo, onde quer que
se dê, é sempre contextualizado social e politicamente; há uma subordinação à sociedade que lhe
faz exigências, determina objetivos e lhe provê condições e meios de ação. Vejamos mais de perto
como se estabelecem os vínculos entre sociedade e educação.
Conforme dissemos, a educação é um fenômeno social. Isso significa que ela é parte inte-
grante das relações sociais, econômicas, políticas e culturais de uma determinada sociedade. Na
sociedade brasileira atual, a estrutura social se apresenta dividida em classes e grupos sociais com
interesses distintos e antagônicos; esse fato repercute tanto na organização econômica e política

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quanto na prática educativa. Assim, as finalidades e meios da educação subordinam-se à estrutura


e dinâmica das relações entre as classes sociais, ou seja, são socialmente determinados.
Que significa a expressão “a educação é socialmente determinada”? Significa que a prática
educativa, e especialmente os objetivos e conteúdos de ensino e o trabalho docente, estão deter-
minados por fins e exigências sociais, políticas e ideológicas. Com efeito, a prática educativa que
ocorre em várias instâncias da sociedade – assim como os acontecimentos da vida cotidiana, os
fatos políticos e econômicos etc. – é determinada por valores, normas e particularidades da estru-
tura social a que está subordinada. A estrutura social e as formas sociais pelas quais a sociedade
se organiza são uma decorrência do fato de que, desde o início da sua existência, os homens vivem
em grupos; sua vida está na dependência da vida de outros membros do grupo social, ou seja, a
história humana, a história da sua vida e a história da sociedade se constituem e se desenvolvem
na dinâmica das relações sociais. Esse fato é fundamental para se compreender que a organização
da sociedade, a existência das classes sociais, o papel da educação estão implicados nas formas
que as relações sociais vão assumindo pela ação prática concreta dos homens.

1. Suponha uma escola situada em um bairro no qual se registram altos índices de criminalidade,
inclusive entre crianças e jovens. No entanto, nesse mesmo bairro, há alguns movimentos so-
ciais constituídos, por exemplo, o de grafiteiros ou aficionados por hip-hop. O que você poderia
propor para que a escola pudesse se relacionar melhor com a comunidade e até mesmo contri-
buir para amenizar o quadro de volência descrito?

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2. Refletindo acerca da integração entre a escola, seus alunos e a comunidade da qual eles fazem
parte, imagine e descreva qual o perfil de diretor que você considera adequado para representar
um elo de união verdadeiro entre a escola e o seu entorno?

Livros:
PILETTI, N. Estrutura e Funcionamento do Ensino Médio. São Paulo: Ática, 2002.
Ao elucidar a estrutura administrativa da escola e esclarecer as funções dos diversos agentes
educacionais presentes nesse contexto, esse livro defende a união entre a escola e seu entor-
no, pois dá clareza às formas possíveis desse relacionamento.
AQUINO, J. G. Do Cotidiano Escolar. São Paulo: Summus, 2000.
Esse livro, composto por vários ensaios abordando especialmente a ética nas relações esco-
lares, não discute diretamente a relação da escola e a comunidade que há envolta dela. No
entanto, o enfoque dado às questões éticas e ao tratamento dos alunos no ambiente escolar
demonstra preocupação constante com a consideração das experiências dos estudantes. Por
essa razão, é uma ótima ilustração, até mesmo prática, do pensamento que foi aqui desenvol-
vido, aplicado às questões do cotidiano escolar.

1. Sua resposta estará adequada se for desenvolvida no sentido de propor estratégias que instiguem
os movimentos constituídos naquela comunidade a participar de ações também no interior da
escola, proporcionando, com isso, um processo de identificação entre alunos, comunidade e
escola e, também, um acolhimento da instituição por parte daquela comunidade que a cerca.

2. O diretor apontado deve se caracterizar por um perfil participativo, aberto e que deseje trabalhar
em conjunto, não só com o pessoal interno da escola, mas também com elementos participa-
tivos da comunidade. O perfil de diretor que deve ser evitado, nesse caso, é aquele restrito às
questões burocráticas e centralizador da autoridade.
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Violência e educação

Violência social e violência escolar:


o contrato social de Hobbes

L
evando em consideração que a escola é um microcosmo social, ainda que ela
possua suas próprias especificidades, também apresenta situações e papéis
vividos no cotidiano de qualquer sociedade atual.
Se observarmos algumas considerações gerais sobre o fenômeno da convi-
vência humana e suas formas de expressão do poder, teremos algumas pistas que
nos ajudam a interpretar esses mesmos fenômenos no interior da escola.
A violência, por exemplo, é um fator que, muito embora possa ser produzido
no íntimo do ambiente escolar, com características particulares, também atende
a uma dinâmica que é, antes de tudo, um paralelo das formas de expressão que
encontramos na sociedade. Isso porque as relações de poder entre os homens são
formas profundas de sua existência e, assim, acabam por estar presentes nas mais
variadas manifestações humanas, nos diversos espaços. Para que, neste capítulo,
possamos compreender a base que orienta as ações humanas fundadas na relação
mútua entre as pessoas, bem como suas formas de convivência e de poder, vejamos
o pensamento de Thomas Hobbes, quando este filósofo nos apresenta a natureza
da conduta humana em coletividade, atentando para o jogo de poder, autoridade e
contrato social. Façamos, também, nesse percurso, um paralelo entre essa dinâmi-
ca do poder e da violência no macrocosmo social e no microcosmo escolar.
Pensador do século XVII, Thomas Hobbes (1588-1679) tem seu nome muito
ligado à sua obra-prima, o Leviatã1 (1651), no qual se reconhecem as doutrinas
do mecanicismo científico2 e do absolutismo político por ele defendidas. Além da
pertinência dessas ideias, o filósofo é reconhecido e apontado hoje como um pai
da noção moderna de Estado, que afirma a existência de uma autoridade própria 1 Nesta obra de 1651, Tho-
mas Hobbes defende a
necessidade de um contrato
e de regras definidas para a convivência de seus membros. social, fundado na autoridade,
para que o egoísmo natural do
homem seja evitado e, assim,
Também é conhecida a visão de Hobbes sobre a natureza humana, afirman- mantenha-se a paz.
do que o homem não é um ser naturalmente sociável como se admitira, ou ainda
mais, que, na verdade, os homens estão em contínua discórdia, como muitos filó- 2 No mecanicismo cien-
tífico espera-se que a
natureza, os eventos e mesmo
sofos chegaram afirmar. o homem reajam de modo
previsível e determinado. Tal
Segundo a concepção do dito pensador, os homens estão em contínua dis- determinação tem fundamento
na ciência ou, mais especifica-
córdia causada, principalmente, por três razões: a competição, a desconfiança e a mente, na natureza físico-quí-
mica de todas as coisas. Em ter-
glória (HOBBES, 2003, p. 108). Assim, os homens farão de tudo para consegui- mos políticos, que é o que mais
rem essas três coisas e se beneficiarem com o que elas lhes oferecem. Na sua con- interessa a Hobbes, trata-se de
considerar as pessoas como
dição pré-social, ou mais especificamente, em seu “estado de natureza” no qual peças de uma máquina de fun-
cionamento contínuo que é, em
ainda não há a submissão a um poder de Estado capaz de organizar a vida pública, suma, o Estado.

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Violência e educação

“o homem é o lobo do homem”, ou seja, está mergulhado na inevitável condição


de guerra de todos contra todos.
No entanto, segundo Hobbes, há no homem um desejo de paz. Verdade é
que tal desejo se dá, essencialmente, por medo mútuo, dada a nossa condição
natural e de vida conjunta, como Hobbes (2004, p. 32) explica:
A origem do medo mútuo, em parte consiste na igualdade entre os homens por natureza,
em parte pela mútua vontade de se ferirem; decorrendo assim que não podemos esperar
dos outros, e nem garantir a nós mesmos o mínimo de segurança.

Dessa forma, a paz aparece como uma proteção contra a inevitabilidade do con-
flito entre os homens. Ao tomarmos consciência de que somos todos iguais e de que
não podemos vencer todos os conflitos, a paz mútua torna-se uma atitude inteligente.
A paz, de acordo com a premissa de Hobbes, é desejada pelo temor do homem
ao estado contínuo de guerra. Por isso, dizemos que esse é um conceito negativo de
paz. Permanecer em guerra não é adequado, portanto, para a própria conservação
do homem o desejo de paz é, assim, inevitável e até mesmo estratégico. Ele poupa
a si mesmo do sofrimento, une-se aos que possam somar-lhe forças contra guerras
futuras, foge do medo da morte e deseja as coisas que lhe proporcionam uma vida
confortável. Para pôr fim a esse estado de guerra e almejar a paz benéfica, ainda
que esta seja transitória, o homem recorre ao pacto com os demais.

A reunião dos homens em sociedade se dá, então, a partir desse pacto, o


contrato social, que Hobbes defende veementemente como a única forma de se
obter a estabilidade política e social.

O contrato social no contexto escolar


Muitas análises já se detiveram em considerar a escola como uma pequena
amostra social, formando, de fato, um microcosmo, no qual podemos observar
diversas manifestações análogas às que vemos no panorama macrocósmico da
sociedade. Assim, podemos notar na socialidade de uma sala de aula, por exem-
plo, as disputas de poder e todo um conjunto de manifestações a partir do qual
podemos inferir uma lógica do comportamento humano – não individual ou psi-
cológica – mas social. É exatamente aí que existem pontos de intersecção que
permitem paralelos entre o pensamento de Hobbes com o cotidiano da escola.
Que paralelos encontraríamos entre as reflexões sobre o homem em socie-
dade e as paixões expressas em uma sala de aula?
Tal pergunta só faz sentido quando optarmos por observar não somente as
individualidades, mas a lógica do comportamento coletivo que as regem e que
reúne estudantes sob um mesmo projeto – no caso, o de uma classe – o qual, em
muitos casos, pode gerar a discórdia.
Como dito mais anteriormente, de acordo com Hobbes, as três causas da
discórdia entre as pessoas seriam a competição, a desconfiança e a glória. Tente-
mos, então, entender como essas causas podem se manifestar no ambiente esco-
lar, gerando violência, indisciplina e outras formas comuns de conflito.
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Violência e educação

A competição na sala de aula


Como precondição da formação da estrutura social de uma “sala de aula”
podemos supor que as pessoas que a constituem, ou seja, os alunos e professores
são – em suas esferas individuais – constituintes de outros tipos de socialidade,
tais como a familiar, comunitária etc. Na medida em que esses indivíduos se en-
contram no tempo e espaço delimitado pela classe, fazem-se participantes de uma
nova relação social. Essa relação traz consigo, evidentemente, fortes traços da
presença dos indivíduos em suas outras socialidades, em outras palavras: cada um
traz para “dentro da sala” suas crenças, ideologias e visões de mundo. No entanto,
é licito afirmar que a constituição daquele espaço de convivência representa o
estabelecimento de uma nova realidade que se forma a partir da convivência em
comum entre os alunos e professores que não se conheciam anteriormente e os
quais irão dividir o mesmo espaço, defendendo ideias, realizando atividades e,
claro, competindo entre si.
A própria estrutura sobre a qual estão montados os procedimentos escolares
pode ser interpretada como estimulante desta competição, a partir de sua meri-
tocracia (notas avaliativas, chamadas, manifestações de apoio e valorização dos
“bons alunos” etc.). O título de “melhor aluno da sala” sempre esteve em disputa
de modo tácito, senão francamente explícito.
Não menos importantes são as disputas entre os alunos em torno da constru-
ção de uma imagem de si próprios a qual, inevitavelmente, entra em competição
com a imagem do outro. Por fim, lembrando ainda Hobbes quanto à igualdade
natural dos homens – a qual nos impinge à competição – notemos que se essa
igualdade não parece tão explícita na sociedade como um todo – em uma sala de
aula ela aparece claramente. Pois, pelo raciocínio de Hobbes, o desejo de compe-
tição é tão mais evidente quanto mais clara for a constatação de igualdade entre
os indivíduos. Dessa forma, já que a escola busca organizar seus alunos de forma
a igualá-los – seja pela faixa etária, pelo nível de escolaridade etc. – eles, por sua
vez, competem entre si para se distinguirem um dos outros.

A desconfiança na sala de aula


Para compreendermos a segunda razão da discórdia entre os homens, que
é a desconfiança, partamos da seguinte análise: notemos que, se os indivíduos
competem entre si para garantir individualmente certas vantagens ou destaque,
eles desconfiam uns dos outros para preservarem tais vantagens já garantidas,
evitando que alguém possa destruí-las ou miná-las a qualquer momento.
Portanto, o aluno que se une a outro que possui um bom desempenho escolar
para realizar um trabalho em duplas, por exemplo, pode sofrer a desconfiança do
segundo por poder estar “se aproveitando” da inteligência do aluno considerado
bom. Outro aluno que ri de alguma atitude ou fala de seu colega pode estar igual-
mente tentando sobressair-se à imagem deste. O aluno que demonstra demasiado
apego ao professor pode estar buscando, apenas, certo ganho com isso (ou evitar
alguma perda). Enfim, inúmeros são os exemplos que ilustram essas ocasiões em
que pode surgir a atitude de desconfiança.

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A glória e a sala de aula


A terceira razão da discórdia entre os homens, por fim, é ainda mais facilmen-
te extraída da primeira. A competição concede, ela própria, a glória como prêmio
aos seus vencedores, e, aos perdedores, a humilhação. Entre as lembranças mais
constrangedoras da maior parte das pessoas, invariavelmente habitam episódios vi-
vidos no ambiente escolar. Também as glórias parecem mais explícitas e sensíveis
quando conquistadas no palco social de uma sala de aula. O melhor aluno da sala é
um destaque e tem seus momentos de glória. Para ele, a escola é um veículo impor-
tante para a sua valorização e ele se identifica com o rótulo que lhe é oferecido de
inteligente, culto etc. No entanto, notemos que o líder da algazarra, o bagunceiro,
aquele que mais vezes foi alvo de problemas e sanções disciplinares, também – em
muitos casos – é um personagem valorizado pelos alunos. A glória desse aluno “lí-
der”, nesse caso, advém do fato de ele desafiar os limites das regras impostas, de
lutar contra as autoridades e de ser o herói dos que se sentem rejeitados pela escola.
Temos de perceber que, em última análise, é a própria estrutura escolar que
está propiciando a glória a esse aluno. Em um ambiente de não rivalidade, esse perso-
nagem não teria sentido. Muitas vezes, ao punir o aluno, a escola acaba por aumentar
o poder desse estudante. Essa questão é mais profundamente discutida quando consi-
derarmos a temática da indisciplina. Mas, mesmo aqui, em que estamos pensando na
relação de poder nos âmbitos social e escolar, cabe comentar que, o contrato, como
estamos vendo, é uma forma de não se estabelecer lados tão antagônicos e, assim,
evitar que alguns vejam nas rivalidades contra a escola um ganho para si. Em outras
palavras, o fato de estabelecermos um pacto de convivência entre os vários persona-
gens participantes do ambiente escolar oferece uma pequena garantia de que o obje-
tivo da escola é ser parceira dos alunos e não sua fonte de opressão.

Estabelecendo um
contrato social na sala de aula
Não tomemos o quadro de competição estabelecido em ambiente escolar
como algo cruel e desumano, que pinta uma imagem de escola fundada na ideia
de vencedores e perdedores. Quando pensamos em todos os exemplos vistos nes-
ta aula e notamos as semelhanças entre a dinâmica da sala de aula e a realidade
social, somos obrigados a perceber que há fatores da convivência social que são
realmente duros em qualquer microcosmo. Mas isso não quer dizer, de modo al-
gum, que a escola não possa trabalhar com valores mais cooperativos e positivos.
No entanto, para isso, o trabalho com esse enfoque tem mais chances de sucesso
se identificar a tendência natural de discórdia que pode haver no âmbito das reali-
dades coletivas, como o pensamento social de Hobbes nos aponta.

Para que possamos superar esse estado de discórdia, temos de estabelecer


um “contrato”, ou seja, uma forma de convivência pacífica que traga vantagens
a todos, mesmo percebendo-se que, para isso, as vantagens individuais podem
parecer diminuídas em um primeiro momento.
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Comecemos por entender uma característica fundamental relativa ao con-


trato que é, também, essencial na formulação do contrato escolar: a voluntarieda-
de. É preciso encontrar nos atores sociais, no nosso caso, nos alunos, professores
e demais personagens do universo escolar, manifestações de vontade, formas do
querer. Nem que em um primeiro momento pareça que os desejos dos alunos, por
exemplo, são destrutivos e inconvenientes. Em verdade, eles são a força neces-
sária para o estabelecimento de um contrato. Dito de outro modo: se não houver
vontade de ninguém, fica impossível o estabelecimento de um contrato, pois nada
pode ser negociado. Mas o que comumente encontramos são alunos que expres-
sam, sim, sua vontade – mesmo que elas sejam muito distantes das regras escola-
res e que, pelo menos em um primeiro momento, pareçam não colaborar para uma
relação positiva. Notemos que, o desinteresse e o descaso dos alunos, por vezes,
não representam a falta de vontade, mas uma forma de expressão, um modo de se
dizer que “esse modo ou esse assunto não me interessa”.

O que seria então o contrato que poderia colaborar para uma educação
menos conflituosa em um ambiente escolar, com menos descaso, mais interes-
se e menos indisciplina por parte dos alunos?

Talvez este contrato deva estar fundamentado na possibilidade de expressão


desses estudantes, ou mais especificamente, naquilo a que o sociólogo francês
Michel Maffesoli (1985, p. 21-25) chamou de querer-viver. Essa expressão refere-se
à possibilidade de expressão das vontades e desejos humanos compartilhando-os
na ordem do ético. O querer-viver se opõe ao dever-ser que, por sua vez, está re-
lacionado à obediência das regras com exatidão e se relaciona com a ordem moral
imposta.
Pensar em um contrato que permita o querer-viver é supor a multiplicação
de espaços de atuação do aluno nos quais seja possível a sua expressão, a mani-
festação de sua rivalidade e a transposição didática de conhecimentos para esferas
cotidianas de sua vida.
Em termos práticos, trata-se de incluir os alunos em decisões que afetarão
seu ambiente, respeitar suas lideranças, ouvir suas reivindicações e abrir espaço
para suas possibilidades de expressão. Muitas vezes, a escola se mostra ao aluno
como um local de anulamento de sua possibilidade expressiva, como um espaço
meramente obrigatório. À medida que esse aluno perceber que suas potencialida-
des podem ser úteis e valorizadas no ambiente escolar, é evidente que ele poderá
enxergar a escola como um local diferente e, de certa forma, já se alinhar com as
necessidades do contrato de que estamos falando aqui. Ou seja: o fato de manter
viva a possibilidade de expressão do aluno o leva a proteger a própria escola. Esse
é um dos contratos sociais possíveis a serem estabelecidos no meio escolar.
Mesmo que o estudante seja colocado diante de obrigações a cumprir e um
papel a desempenhar no meio escolar, também lhe serão oferecidas vantagens
próprias nesse contrato, fazendo com que as chances da cooperação aumentem
significativamente. O querer-viver é justamente esse desejo que o indivíduo tem
de expressar suas ideias, de encontrar um espaço em que seja respeitado e identi-
ficado como membro ativo de um grupo.
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Em suma, trata-se de compreender que há uma força irreprimível do que-


rer-viver e, por isso, torna-se necessária a criação de espaços para expressão desse
sentimento de modo a contrabalançar a inevitável ideia de obrigatoriedade que a
escola oferece. O educador George Snyders (2001, p. 104-106) nos fala sobre o
peso da obrigação na escola, mas também nos aponta que o obrigatório pode ser
contratual, de modo a oferecer benefícios a todas as partes envolvidas:
Todos sabem que o obrigatório é objeto das mais violentas imprecações por parte dos
alunos, e é considerado o que mais se opõe à alegria. Para a maioria, alegria é sinônimo
de opção. Como esperar alegria de um lugar onde não existe opção?
[...] pode-se amar esses medos nascidos do obrigatório na medida em que, simultaneamen-
te, nos sentimos protegidos pelo obrigatório, que passa a ser a garantia, alívio e alegria de
sentir-se protegido. Todos devem submeter-se, logo todos devem ser tratados da mesma
maneira e, portanto, todos devem ter seus direitos estabelecidos.

Trata-se, portanto, de sermos capazes de propor o obrigatório em plano con-


tratual, ou ainda, de propiciarmos situações nas quais o contrato se faça necessário.
Vale notar que ainda há muito medo por parte dos docentes em se pensar em alter-
nativas como essas, pois parecem ser elas o caminho para a desordem e a perda de
controle. Muitas vezes, o docente pensa que dividir o poder com os alunos, escutar
suas propostas e discutir estratégias são atitudes perigosas que vão diminuir a auto-
ridade do professor e da escola. No entanto, esse é um medo infundado. Não se trata
de pensar em desregramento ou autonomia exagerada por parte dos alunos, mas de
se compreender que a suposição de um contrato não traz consigo a perda de poder,
ao contrário: pode ajudar para que, voluntariamente, o poder se institua em torno
do obrigatório e do pedagógico. Sem isso, a ação escolar patina e sofre demais com
indisciplina e revoltas, esvaziando-se em combates estéreis e descaso.
Ao fazermos um paralelo entre certos princípios da filosofia de Hobbes e o as-
pecto cotidiano de uma sala de aula, elaboramos um modelo que pode ser aplicado
como estopim de certas reflexões e situar as relações escolares na ordem do político.
Além das reflexões, poucas alternativas práticas foram pensadas, pois cada sala de
aula possui suas características sociais, culturais e políticas próprias que merecem
uma compreensão singular. No entanto, possibilitam que reflitamos sobre tais reali-
dades a partir dos modelos que aqui pensamos inspirados nas ideias hobbesianas.
Vale notar ainda que tais modelos são apenas uma forma, entre outras várias, de
se pensar o trabalho pedagógico. É evidente que outros modelos podem ser enumera-
dos e seguidos com êxito. No entanto, a característica inclusiva e participativa do alu-
no no processo político e ideológico da escola é uma necessidade inescapável quando
temos o objetivo de construir um ambiente menos sujeito às expressões de discórdia
e de violência. Dificilmente teremos um ambiente totalmente isento de manifestações
violentas ou discordantes. Essa é uma ilusão utópica que não leva em conta a natureza
conflituosa do homem e sua eterna busca pelo poder como já exploramos.
O que a escola, como ambiente crítico e reflexivo, pode então assumir e
incorporar em sua prática pedagógica é, justamente, a expressão desse desejo de
poder, as formas de atuação que buscam um posicionamento coletivo. Se assumir
esse papel, a escola estará muito mais próxima do sucesso e de um ambiente posi-
tivo do que se optar por uma posição repressora o que, em última análise, só fará
por intensificar as diferenças, os conflitos e as discórdias.
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Violência na escola
(COLOMBIER, 1989, p. 17-18)

Violência nos colégios... Quem já não ouviu contar sobre as atribulações de certos professores
sequestrados, espancados ou violentados, as brigas com faca na hora do recreio, as extorsões, as
drogas? O rumor público, amplificado pela mídia, não se cansa de repetir que a violência aumenta
nos colégios. Cada fato é incansavelmente comentado, até se tornar um símbolo. E o medo vai
aumentando.
No entanto, ao contrário do que se diz, a violência diminui fortemente se a considerarmos
com um certo recuo histórico e se levarmos em consideração também as noções definidas pelo
Direito: criminalidade, atentado à integridade física das pessoas.
Mas novas formas de violência aparecem no colégio, inexistentes há apenas 15 anos atrás.
As agressões cotidianas, os atos de “pequena” delinquência se multiplicam. Como localizar com
precisão todas as formas de transgressão? Não é mais fácil isolar as múltiplas causas sociológicas,
políticas ou psicológicas?
A violência que as crianças e os adolescentes exercem, é antes de tudo, a que o seu meio
exerce sobre eles.
Podemos ver que durante um ano, as situações ficam bloqueadas, aparecem atos de vingança,
como se alguma coisa não chegasse a ser dita. Sabemos muito bem como a escola-caserna é vivida
como um lugar trancado, que impõe aos corpos uma ordem uniforme, hierarquizada, à qual não
há meio de fugir: regras, controles, punições, dominação, são os meios habituais de disciplina.
Professores, educadores em contato diariamente com todas as formas de violência, gostaría-
mos de dizer aqui como tentamos enfrentar, como resistimos a estas forças de morte. Palavras au-
torizadas não por um saber universitário sobre a questão, que se satisfaria com a elegância de seu
ponto de vista sobre o conjunto da situação ou com a pertinência de suas análises, mas palavras
que sustentam com as práticas sempre em questão, com as hesitações e esforços de teorização.
“Não dizer nada que não tenhamos feito ou vivido”, dizemos nós. Não negamos a violência
nos colégios. E, mesmo, não a evitamos. Não a consideramos como o mal absoluto que seria
preciso conter por meio de sanções. “Mais disciplina, autoridade, punição, severidade, cuidado,
repressão...”
Quem não conhece esse refrão de todos os reacionários? Agir assim seria acreditar que se
pode eliminar o problema e logo se expor ao retorno do que foi recalcado. É o círculo vicioso da
revolta e da repressão.
A violência é para nós, em princípio, uma questão que não se deve ser afastada. É vital pergun-
tarmos: o que é que se está dizendo com isso? Que discurso da recusa não encontra outra maneira de
ser dito? O que fazer dessa força que com frequência destrói? A violência não é estranha ao desejo.
Em vez de deixá-la nas margens, ou de nos desviarmos dela confusamente, convém tratá-la.

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1. Supondo-se uma escola na qual há um histórico de violência, quais seriam as vantagens de se


propor a formação, por exemplo, de um Grêmio Estudantil?

2. De acordo com Hobbes, quais são os principais fatores constituintes da “discórdia” entre os
homens e como eles podem ser associados ao ambiente escolar?

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Livros:
GUIMARÃES, A. M. A Dinâmica da Violência Escolar: conflito e ambiguidade. Campi-
nas: Autores Associados, 2005.
Esse livro caminha exatamente no sentido que abordamos em nossa aula, ou seja, tenta com-
preender a violência como um fenômeno complexo e inevitável. Por um lado, a autora per-
cebe todo o conjunto da estrutura social que fomenta certas formas de violência e, por outro,
mergulha na produção da violência própria da escola. Ao construir um panorama aberto e
abrangente da violência, permite-nos um olhar mais preparado para as questões presentes na
realidade escolar.
SNYDERS, G. Alunos Felizes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
Esse livro é considerado um clássico da pedagogia. Em especial no que diz respeito a uma
nova forma de se imaginar as relações sociais na educação, a presença do obrigatório e as
formas de se estimular a alegria e o prazer de se estar na escola.
Filmes:
A Guerra dos Botões (War of the Buttons). Direção de John Roberts, 90 min., Warner.
Nesse clássico do cinema europeu, há um mergulho nas relações que se estabelecem entre
os próprios alunos, seus desejo, anseios e disputas de poder. A escola também aparece como
elemento marcante na vida dos personagens.
The Wall. Direção de Alan Parker, 67 min., MGM.
Outro clássico, com marcante música do grupo de rock inglês, Pink Floyd, esse musical faz
duras críticas à massificação presente nos métodos de ensino. Em sua cena mais famosa,
ocorrida no interior de uma escola, pede-se que os alunos não sejam tratados como se fossem
“apenas mais um tijolo na parede”.

1. Conforme o que foi discutido na aula, a formação de um grêmio pode representar uma forma
de atribuir poderes e participação política dos alunos no contexto social da escola. Além dessa,
outras vantagens trazidas pela iniciativa do grêmio podem ser apresentadas tais como exemplos
de participação e dos poderes que esse tipo de instituição confere aos alunos.

2. Espera-se aqui que você aponte a competição, a desconfiança e a glória como as principais
causas da discórdia entre os homens. Você deve também mostrar exemplos desses elementos na
prática educativa e do ambiente escolar, tal como foi abordado no texto referente a esta aula.

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Violência e educação

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Indisciplina e educação

Reflexão primeira

S
em dúvida a educação é uma das mais belas tarefas da vida humana. Não há quem não admita o
prazer em se perceber que uma criança ou jovem passou a ter conhecimentos e autonomias em
âmbitos que antes não possuía. Aprender a ler e a escrever, a realizar operações conceituais, a
conhecer o mundo que o rodeia, seu corpo, sua forma de pensar, a arte, a cultura, enfim: a educação
é um modo de se apropriar da vida.
No entanto, por vezes, estamos tão encantados com a formação intelectual humana que não nos
percebemos que a educação, assim como outros processos, também não está isenta de possíveis erros
e fracassos. Nem sempre um processo educativo resulta em sucesso.
Existem alunos que apresentam grandes dificuldades de aprendizagem; há salas inteiras que se
recusam a cooperar com a própria aprendizagem; encontramos manifestações sérias de descaso edu-
cacional e de indisciplina em inúmeras instituições de ensino. Muitos educadores, ao se depararem
com situações como essas, acreditam que tudo está perdido. Culpam o tempo atual, supostamente
desregrado e libertário, culpam a origem social dos alunos, sua família ou até mesmo se supõem in-
capazes de lidar com a “dura realidade”. É evidente que os casos de indisciplina e de fracasso escolar
são muitos e que ninguém fica feliz com eles.
Mas, resta a nós pensarmos:

Até que ponto esses casos representam somente um desvio individual de comportamento dos
alunos ou são parte constituinte da própria realidade educacional (tendo em vista sua recorrência)?
Não deveríamos nós, no papel de educadores, enfrentarmos essa “dura realidade”, fruto de uma
cultura diversificada como a brasileira?

Para isso, temos de começar por nos despirmos dos preconceitos estabelecidos em torno da
ideia de fracasso, ou mais especificamente, dos estereótipos do bom e do mau aluno.
Ser “bom aluno” no imaginário mais comum dos educadores é, basicamente, respeitar as regras
e obter êxito nas tarefas escolares. Por consequência, “mau aluno” é aquele que questiona as regras
e/ou não se sai bem nas tarefas.
Mas, questionar não deveria ser uma atitude valorizada na educação?
É que os alunos críticos acabam por se comportarem de um modo que, muitas vezes, parece
incomodar ou atrapalhar o bom andamento das aulas. Talvez o problema seja então o de que nós,
educadores, estejamos na maioria das vezes mais preocupados com o rendimento de nossos alunos
do que com a formação de sua atitude crítica. Não se trata de assumir que toda contestação seja uma
forma crítica e inteligente de posicionamento. É verdade que, muitas vezes, certas posturas contesta-
doras, questionam pelo simples fato de questionar destrutivamente. Em suma, mesmo que saibamos
que o descaso e o desinteresse existem, devemos tentar ver, nas atitudes dos alunos, quais os subsídios
que eles oferecem para a reflexão pedagógica e para a prática educativa.
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Concepção do erro pela escola


Consideraremos como erro a atitude ou resposta do aluno que não corres-
ponda à solução esperada para certo problema de uma atividade escolar. A ten-
dência da escola, muitas vezes, é de se isentar da culpa de um fracasso escolar
e passá-la para a ação pedagógica. Na verdade, isso seria um processo de em-
pobrecimento educativo, pois vejamos: se aquele problema oferecido aos alunos
é suficientemente complexo, evidentemente que propiciará erros. Não devemos,
portanto, entender o erro do aluno como um desvio ou deterioração da solução
para o fracasso escolar, mas como parte mesmo de tal solução.
Quantos problemas não foram solucionados na história da humanidade de-
pois de inúmeras tentativas errôneas?
O erro pode ser encarado como uma etapa do acerto. Como disse o filósofo
italiano Benedetto Croce (2001, p. 34), o erro absoluto simplesmente não existe.
Isso porque quando se erra, há a intenção do acerto e, dessa forma, ao menos a in-
tenção é correta, fato que invalida a possibilidade de um erro absoluto. Se alguém
ainda duvidar e pensar “mas e se mesmo a intenção for a de errar?” Bom, nesse
caso, se a intenção era a de errar, e, houve de fato o erro, trata-se de um acerto.
Tal pensamento é até mesmo engraçado, mas o que o filósofo nos ajudou a pen-
sar é que o erro não é um fracasso absoluto. É uma etapa importante do processo de
busca de uma solução. O problema é que a escola e seus métodos, muitas vezes, con-
denam o erro, punindo-o e classificando pejorativamente aqueles que o cometem.

Erro e indisciplina
São muitas as implicações didáticas que circulam em torno dessa problemá-
tica do erro escolar, mas vamos nos concentrar no foco de nossa aula que é o da
relação entre a escola e sociedade no que tange às questões da indisciplina e fra-
casso escolar. Nesse contexto, o que percebemos é que o erro, no ambiente escolar,
acaba por determinar papéis. Aqueles que acertam com frequência são considera-
dos bons alunos e aqueles que erram são os ruins. Os bons terão boas notas, serão
valorizados e assumem para si a missão – muitas vezes delegada por pais e profes-
sores – de serem “alguém na vida”. Os alunos ruins, por sua vez, serão reprovados,
não serão orgulho para a escola. Aos primeiros erros desses últimos, pode-se notar
professores e familiares sentenciando que “ele não leva jeito para o estudo”.
Esse hábito de associar os erros de um aluno ao estereótipo a que eles já foram
enquadrados anteriormente – por antigos professores, colegas e familiares – acaba
por deixar imprecisa a fronteira entre o que é causa e efeito. Em outras palavras:
será que o aluno de fato tem dificuldades com o estudo ou, justamente por ter sido
taxado de problemático precocemente, desenvolveu insegurança e desinteresse?
Na escola, assim como na vida social, há toda uma configuração de papéis, uma
espécie de teatralidade cotidiana. No palco em que se desenvolve essa teatralidade,
somos reconhecidos por características marcantes que atribuímos a nós mesmos ou,
na maior parte das vezes, que nos são atribuídas pelos outros. Um exemplo bastante
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claro disso são os apelidos que recebemos. Dado

Odilon Roble.
a alguma característica física ou comportamental
expressas constantemente, por exemplo, ganha-
mos um apelido que pode durar a vida toda. Na
escola, isso é extremamente comum.
No entanto, em verdade sabemos que um
pequeno erro, quando exposto publicamente,
pode ter consequências bem mais duradouras do
que se pode imaginar.
Claro que é improvável que os professores
tenham conhecimento de todos os aspectos das
relações estabelecidas entre os próprios alunos,
Nesse caso, a simples pintura da cor
do modo como se tratam e como se autoconfe- dos banheiros contribui para uma
rem apelidos e papéis. Mas como educadores, forma de conduzir o gosto, os pa-
temos a função de refletir sobre configuração péis masculino e feminino e, assim,
a personalidade. A educação estética
dessa teatralidade e formação de papéis no am- é uma das formas de domesticação
biente escolar. A forma como a escola lida com o que a escola acaba por impor sobre
os alunos. Apenas como mais um
erro, com as diferenças e com as personalidades exemplo, imagine o que aconteceria
de seus alunos tem influência direta na formação se um menino, talvez recém-chegado
das expectativas e dos papéis sociais no futuro à escola, estivesse em dúvida em
qual cor deveria ir e, azaradamente,
de seus alunos. Já é conhecido o exemplo daque- na frente dos seus colegas, escolhes-
le professor que humilha publicamente o aluno se a rosa (porta da direita)?
que não foi capaz de realizar as tarefas a con-
tento. Ainda que hoje, felizmente, não seja mais tão comum esse tipo de prática,
é preciso que ainda estejamos atentos às nossas atitudes, pois mesmo quando se
pune o aluno visando educá-lo é preciso que haja muita clareza em tal objetivo
para que os alunos não interpretem o ato como mera rivalização e, com isso, ape-
nas seja agravado o problema de relacionamento entre as partes.
Por vezes, algo que pode nos parecer uma atitude trivial e despropositada
pode causar grande desconforto psicológico no aluno, com resultantes sociais di-
versas e até graves.
Desde os estudos de Michel Foucault (2007) sabemos que as escolas, assim
como outras instituições disciplinares tais como os presídios, possuem um ímpe-
to de domesticação e controle. Isso significa dizer que, para que o sistema possa
impor suas vontades, que podem ser até bem intencionadas, como é de fato o caso
da educação, tem-se a impressão de que tudo será mais adequado se os indivíduos
envolvidos estiverem sob estrito controle. As manifestações individuais devem
ser banidas e as vontades domesticadas para que todos pensem do mesmo modo,
reajam da mesma forma e aceitem o mesmo tratamento. É evidente que nem todas
as instituições agem, sempre, com a intenção da domesticação dos costumes, mas
se Foucault nos aponta isso é para que estejamos atentos a esse perigo e tendência,
em especial em nossas tarefas educativas.
No entanto, nem todos aceitam essa forma de domesticação e acabam por re-
agirem de modo violento a esse controle. Para o sistema continuar a funcionar pelo
controle, sem enfraquecer as estruturas de seu modo operante, esses indivíduos
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Indisciplina e educação

são considerados desviantes, desajustados ou loucos. Para eles, destina-se o bani-


mento. Eles devem ser afastados do convívio social para que não “contaminem”
com suas ideias e comportamentos os membros sadios da sociedade.
Na escola, esse processo é representado pelas sanções disciplinares e pelos
rótulos que os alunos se atribuem mutuamente. Os alunos que não se mostram dó-
ceis, aqueles que revelam comportamentos extravagantes ou contestadores devem
ser punidos e isolados. Essa ainda é uma forma de pensar que, muitas vezes, faz
parte do imaginário pedagógico quando se pensa nas questões da indisciplina e
do fracasso escolar.
Mas e se a indisciplina for um movimento de reação ao sistema, uma recusa
ao controle que o aluno supõe recair sobre si? Nesse caso, o aluno indisciplinado
não é aquele que quer o fim da escola, mas sua transformação; não é aquele que
rivaliza com professores e a direção escolar, mas com as ações que é obrigado
a seguir e para as quais não vê sentido. Evidentemente, não se trata de se supor
que o comportamento do aluno transgressor é o mais adequado e que toda forma
de indisciplina deve ser aceita e aplaudida. Mas também o caminho rápido da
punição para esse tipo de comportamento deve ser visto menos como uma forma
corajosa de bani-lo e antes como um simples escape ao problema da indisciplina.
Comecemos por inverter essa problemática desde suas bases. É um lugar-comum
entre os exemplos de indisciplina citar os alunos do fundo da sala. Diz-se, com
bastante convicção, que os alunos que vão para o “fundão” são aqueles que não
querem prestar atenção na aula. E isso, de fato, parece ser verdade. Mas vamos
pensar também no seguinte aspecto: uma vez que eles se colocam no fundo da
sala, o professor os esquece por lá? Será que esse fundo seria tão negativo se o
professor mostrasse interesse também por ele?
Mais uma vez notemos: não se trata de supor que a solução para todos os
problemas está nas mãos do professor, mas se estamos nesse papel profissional
temos de assumir certas responsabilidades e lutarmos com o que nos é possível
para a construção de um ambiente de conforto, respeito e participação interessada.
Certamente, o descaso e os estereótipos não são as formas mais eficientes de se
combater o desinteresse e a indisciplina.

Empowerment
Um conceito que vem se consagrando na educação nos últimos anos é o
termo em inglês empowerment. Por essa palavra, entende-se o acréscimo da força
espiritual, política e social do indivíduo, grupo ou comunidade. Isso significa que
um indivíduo ou grupo marginalizado pode passar a reunir condições para uma
participação mais ativa na sociedade em que está inserido.
Em termo da realidade escolar, o empowerment consiste em mobilizar ações
para que os indivíduos marginalizados e indisciplinados sintam-se encorajados a
participarem de modo construtivo no ambiente da escola. Se há nesses indivíduos
energia suficiente para mobilizar ações indisciplinadas – que muitas vezes podem
ser criativas, trabalhosas e inteligentes – é possível que possamos canalizar essas
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mesmas energias para ações mais educativas que beneficiem o próprio aluno e de-
monstrem que escola e aluno não são rivais, mas parceiros de um mesmo projeto.
Mas para isso, é preciso que o poder seja compartilhado. Com isso, a autoridade
escolar não fica abalada ou diminuída, mas redimensionada. Existe a necessidade
do diálogo, da troca de experiências, da construção coletiva. O papel de um profes-
sor centralizador, de um diretor carrasco, de uma escola repressiva e punitiva não
são fábricas de alunos amedrontados e pacatos, mas de indivíduos revoltados.
Em um país em que se exibem muitas injustiças sociais, uma escola que
assuma um papel repressor como esse tende a receber em troca não só uma opo-
sição contra as suas ações. Frequentemente entendida como um representante do
Estado, esse tipo de escola recebe também toda uma carga de revolta muito maior
do que os limites de suas ações. Esse é o caso das depredações, pichações e van-
dalismos que o patrimônio público escolar costuma sofrer. É como se as revoltas
contra as injustiças sociais se materializassem contra a escola, pelo fato de a co-
munidade concebê-la como uma forma de controle social, um local de imposição
de normas do Estado. É preciso que nós, educadores, sejamos capazes de mudar
essa percepção dos alunos e da comunidade em geral com relação à instituição
escolar. Há programas em algumas secretarias estaduais que registraram números
bastante significativos de redução nas depredações das escolas e, até mesmo, na
indisciplina escolar a partir do momento em que a comunidade foi convidada a
participar da vida daquela instituição. Por meio de atividades artísticas e culturais
aos finais de semana, por exemplo, algumas escolas conseguiram mudar sua ima-
gem frente à população: antes a ideia era de que a escola representava os interesses
do Estado; atualmente, é um espaço de convivência e educação da própria população.

Arquitetura escolar e indisciplina


A própria arquitetura da escola é um fator que tem relação direta com as
questões de indisciplina. Muitas vezes, vemos uma escola de muros altos, portões
cerrados, grades nas janelas. Qual é a diferença estética entre essa instituição e
uma prisão? Para o banho de sol os detentos têm o pátio e seus horários são con-
trolados por sirenes. Para o recreio ao ar livre a criança tem o pátio e sua entrada
e saída é controlada por sinal. Não estamos imaginando que tudo isso deveria ser
banido e que o modelo de escola tal como existe hoje é um desastre. Mas temos
de prever que, frente a esse tipo de arquitetura e de organização do espaço esco-
lar, a escola receberá movimentos de revolta, de indisciplina e de contestação. Se
imaginarmos que crianças e jovens simplesmente não se importam com as gra-
des, portões e controles ao redor da escola, nós estaremos sendo incoerentes com
a própria tarefa da educação que é a de formar cidadãos críticos e conscientes.
No entanto, ainda que possamos pensar em modelos de escola mais livres, menos
repressoras e controladas, também podemos minimizar essa opressão das grades
e muros. Se a comunidade ao redor da escola se conscientizar de sua importância,
não a depredará e a tratará com respeito de modo que não haja a necessidade de
tantas grades e proteções. Também podemos ter cores mais alegres nas paredes.
Podemos substituir as pichações dos muros por grafites elaborados pelos próprios
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alunos; o sinal do intervalo pode ser substituído por uma música. Nada disso é
uma solução mágica para os problemas, mas muitas escolas que vêm aplicando
esse tipo de recurso estão recebendo resultados sutis mas bastante positivos. Au-
mento da participação dos alunos, diminuição da evasão escolar e, claro, decrés-
cimo do mau comportamento dos alunos.
A indisciplina, certamente, é um dos grandes desafios educacionais. Engana-
-se quem pensa que é um problema atual ou que estamos em vias de solucioná-lo
para sempre. A face contestadora e insatisfeita do homem sempre estará a postos
para não aceitar regras e normas. Como vimos, há até certo valor nessa atitude.
Mas também concordamos que é preciso razoável união de esforços para alcan-
çarmos êxito em nossa empreitada educativa. Desse modo, o papel do educador
é o de compreender que, lidando com pessoas, está exposto a essa face contes-
tadora do ser humano. Como organizador de procedimentos e ações, deve notar
que compartilhar é muito mais satisfatório do que monopolizar as ações. Por fim,
como profissional da educação, deve evitar os rótulos e os julgamentos apressados
com relação às pessoas que lida em seu cotidiano, deve entender seus erros como
parte do processo de êxito e não condenar ao fracasso aqueles que escolherem
caminhos que nos mostrem outras formas de se alcançar o mesmo destino.

A indisciplina em sala de aula


(LA TAILLE, 1996, p. 19-22)

Toda moral pede disciplina, mas toda disciplina não é moral. O que há de moral em permane-
cer em silêncio horas a fio, ou em fazer fila? Nada, evidentemente. Portanto, ao abordar a questão
da disciplina pela questão da moralidade, não estou pensando que toda indisciplina seja condenável
moralmente falando, nem que o aluno que segue as normas escolares de comportamento seja neces-
sariamente um amante das virtudes (pode ser simplesmente movido pelo medo de castigo ou achar
ser mais “lucrativo” não enfrentar os professores e bedéis). Mais ainda, certos atos de indisciplina
podem ser genuinamente morais: por exemplo, quando um aluno é humilhado, injustiçado e se re-
volta contra as autoridades que o vitimizam. Portanto, tenhamos cuidado em condenar a indisciplina
sem ter examinado a razão de ser das normas impostas e dos comportamentos esperados (e sem,
também, termos pensado na idade dos alunos: não se pode exigir as mesmas condutas e compreensão
de crianças de 8 anos e de adolescentes de 13 ou 14).
Feitas essas ressalvas, é claro que existe um vínculo entre disciplina em sala de aula e moral.
Primeiramente, porque tanto disciplina como moral colocam o problema da relação do indivíduo
com um conjunto de normas. E segundo, porque vários atos de indisciplina traduzem-se pelo
desrespeito, seja do colega, seja do professor, seja ainda da própria instituição escolar (depredação
das instalações, por exemplo). É certamente esse aspecto desrespeitoso de certos comportamentos
discentes que preocupa no mais alto grau os educadores. Muitos têm medo de entrar na sala de

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aula, não apenas por temerem não ter êxito na tarefa de ensinar, mas sobretudo por não saberem
se receberão tratamento digno por parte de seus alunos. A indisciplina é frequentemente sentida
como humilhante. Isso posto, vamos eleger alguns itens de reflexão [...]:
1) Se a análise feita do enfraquecimento da relação vergonha/moral for correta, explicam-se
facilmente certos comportamentos indisciplinados relacionados a valores morais. Pensemos de
forma extrema: se o essencial da imagem que os alunos têm de si (e querem que os outros tenham
deles) inclui poucos valores morais, se seu “orgulho” alimenta-se de outras características, é de
se esperar que sejam pouco inclinados a ver no respeito pela dignidade alheia um valor a ser re-
verenciado, e nem a considerar seus atos de desobediência como correspondentes a uma imagem
positiva de si (afirmação da própria dignidade, como o caso da revolta contra a autoridade). Não
sentirão nem vergonha, nem orgulho de suas balbúrdias. Não sentirão nada. O olhar reprovador
do professor não terá efeito: seus cenários são outros, suas plateias são outras.
É isso que se pode dizer de maneira extrema ou global. Uma sala de aula pode assemelhar-se
ao caos do trânsito nas ruas e estradas. Cada motorista deseja que os outros admirem seu carro,
mas não aceita que julguem sua maneira de guiar, cada vez mais desregrada. Cada aluno quer
ser admirado pessoalmente, mas não concebe que alguém possa condenar seus comportamentos
associais. Quem o fizer não passará de um “moralista”, supremo insulto!
O defeito do quadro antes esboçado é sua generalidade. Nos próximos itens, vamos pensar
algumas particularidades da instituição escolar; vamos também pensar a vergonha e a imagem
que os alunos têm de si (e que temos deles) de forma mais ampla.
2) Como vimos, algumas análises sociológicas mostram que o homem contemporâneo de-
sertou o espaço público: somente lhe interessa o que é privado, íntimo. Desse fato, identificam-se
duas decorrências. A primeira se traduz por um descaso pelo espaço em questão, bem ilustrado
pelo fato de jogar lixo nas ruas. A segunda: a vergonha moral tenderá a levar em conta essencial-
mente os olhares de sua esfera privada, o “olhar público” tornando-se ilegítimo. Evidentemente,
a escola padece diretamente dessa situação. Ou o professor impõe-se pessoalmente, por suas ca-
racterísticas próprias (íntimas, portanto), ou nada consegue, uma vez que os alunos desprezam
sua função (pública por definição). Aliás, algumas escolas particulares tendem a jogar esse jogo
com convicção, procurando “personalizar” seu ensino. O aluno se torna “cliente” a quem a escola
vende um “produto”. E, como se sabe, o cliente é rei, é ele quem manda. Inverte-se radicalmente
a legitimidade dos olhares: é o aluno quem olha e julga. A vergonha possível fica por conta da
escola e de seus professores. “Quem é a senhora para me dar ordens e me repreender? Eu estou
pagando a escola, e, portanto, o seu salário.” Eis o que alguns alunos já dizem a seus professores.
E estes, destituídos de autoridade e cujo olhar não tem poder de censurar, abandonam a tarefa de
disciplinar. A tarefa passa a ser outra: trata-se de “segurar” o aluno, vale dizer, de motivá-lo.
3) Uma das belas descobertas da psicologia foi o papel das motivações (conscientes e incons-
cientes) nas condutas humanas. Infelizmente, várias vezes tal descoberta acabou por legitimar
um novo despotismo do desejo. Nas escolas e nas universidades, esse fato é marcante. Os alunos
acham perfeitamente normal desertar aulas por eles consideradas “maçantes”, e isso a despeito da
qualidade intelectual da matéria dada e do professor. Portanto, não é mais em nome de uma norma
que se pode exigir certos comportamentos dos alunos, mas sim pela procura (no fundo impossível)
de contemplar suas motivações mais recônditas. Novamente, é a esfera privada e íntima que dá as
cartas.
4) A vergonha de ser velho, o orgulho de ser ou parecer jovem: tal é o espírito atual. “Nossa
época prefere as crianças aos sábios”, escreve Comte-Sponville. Novamente, um avanço ético da

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Indisciplina e educação

sociedade (bem traduzido pelos Direitos da Criança) tende a se transformar numa cilada na qual
são pegos os próprios jovens. A família, antes organizada em função dos adultos, passa a ser orga-
nizada em função das crianças. Ontem, sair de casa era ganhar a liberdade, hoje significa perdê-la.
Daí a atual queixa de falta de limites nas crianças. Os pais e professores têm medo de impô-los
porque significaria impor o registro adulto, no qual não acreditam mais. A criança é adulada por-
que é criança: sua autoestima já está dada pela própria idade que tem. A força do estuário dobra-se
perante a fragilidade da nascente. E a nascente acaba por não ganhar a força do rio, pela simples
razão de que nunca encontra um rio. Os pais engatinham na frente dos filhos, brincam de negar
as diferenças e de ser apenas “amigos” de suas progenituras, escondem seus valores por medo
de contaminá-las, aceitam seus desejos por medo de frustrá-las. E o fato acaba por se repetir na
escola. Troca-se Machado de Assis por histórias de Walt Disney, a Filosofia pelas discussões das
crises existenciais, as ordens pelas negociações, a autoridade pela sedução. A escola passa a ser o
templo da juventude, não mais o templo do saber.
5) “Nossa época cessou de reverenciar o estudo e a instrução. Seus ídolos estão em outros
lugares [...] e não existe quase mais nada da vergonha que assolava, há pouco tempo, o mau aluno,
o ignorante. Pelo contrário, ei-lo que reinam na mídia, novos reis preguiçosos, que, longe de se
enrubescerem de não saber nada, se orgulham disto. [...] Não satisfeitos em ridicularizar a escola
e a universidade, pretendem suplantá-las e provar que o sucesso e o dinheiro não passam mais por
esses templos de conhecimento” (BRUCKNER, 1995, p. 90). Tudo está dito nessa citação. Muitos
nem têm mais orgulho de ser alunos. Nem vergonha de nada saberem.

1. Se há em uma sala de aula um grupo de alunos que demonstra desinteresse e indisciplina, quais
estratégias de empowerment podemos usar para tais alunos, aproveitando a oportunidade da
comemoração do vigésimo aniversário de fundação da escola?

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Indisciplina e educação

2. Que relações podemos estabelecer entre erro X sucesso, fracasso X indisciplina?

Livros:
AQUINO, J. G. A Indisciplina na Escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus,
2005.
Trata-se de uma coletânea com ótimos e variados textos sobre a temática da indisciplina,
inclusive o texto de Ives de La Taille que foi aqui utilizado como leitura complementar em
sua versão original.
AQUINO, J. G. Erro e Fracasso na Escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus,
2005.
Também uma obra de organização do professor da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP), Júlio Groppa Aquino, agora explorando as questões ligadas ao erro e
fracasso no contexto educativo. As obras são da mesma coleção e se completam, pois ofe-
recem, a partir de referenciais semelhantes, que são advindos da aproximação entre escola e
sociedade, uma visão para problemas centrais do cotidiano escolar.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007.
Obra fundamental da sociologia contemporânea, é um tratado sobre a questão da disciplina
e do controle, fazendo menção direta a instituições como a escola e as prisões.
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Indisciplina e educação

1 Primeiramente, você deverá compreender que empowerment é o acréscimo de poder oferecido


a um determinado grupo de pessoas. No caso dos alunos desinteressados do exemplo desse
exercício, você pode sugerir estratégias que deleguem papéis importantes aos alunos para que
se sintam responsáveis e realizadores da festa exemplificada.

2. Nesta resposta encontra-se uma suma do que foi tratado na aula. O aluno deve estabelecer uma
relação entre o erro e o sucesso de modo que o primeiro seja entendido como uma possível
etapa do segundo. Já em relação ao papel do “fracassado”, você deve mostrar por meio de sua
resposta que esse deve ser um estereótipo evitado, pois pode gerar desinteresse e indisciplina.

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Referências
AQUINO, J. G. Do Cotidiano Escolar. São Paulo: Summus, 2000.
_____. Erro e Fracasso na Escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 2005.
ARANHA, M. L. A. História da Educação e da Pedagogia. São Paulo: Moderna, 2003.
BARBOSA, L.M.S. Temas Transversais: como utilizá-los na prática educativa? Curitiba: Ibpex, 2007.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares
Nacionais: Apresentação dos Temas Transversais – Ética. Brasília: MEC/SEF, 1997, v. 8.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2002.
COLOMBIER, C. A Violência na Escola. São Paulo: Summus, 1989.
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_____. Educação e Sociologia. São Paulo: Edições 70, 2007.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2007.
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Odilon Roble

Escola e Sociedade

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Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-2954-9

9 788538 729549

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