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APRENDER A ESCREVER NO CINEMA:

JEAN RENOIR, FRANÇOIS TRUFFAUT, SATYAJIT RAY


Clara Rowland

Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo


a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da
finíssima linha de extrema atualidade em que ele vive. Um dia o
domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo.

Clarice Lispector, “Menino a bico de pena”

Ao longo de Les Quatre Cents Coups (Os Quatrocentos Golpes,


1959), de Truffaut, repetem-se situações em que as crianças são
confrontadas com a escrita adulta. Desde a divertida cena do ditado
inicial, em que uma das crianças da turma vai sujando com tinta,
uma a uma, as páginas do caderno em que deveria escrever, ficando
apenas com uma capa sem papel, até ao roubo da máquina de escre-
ver do escritório do pai, o filme de Truffaut poderia ser descrito
como uma sucessão de encontros malogrados com o universo da
escrita. Particularmente significativo (e menos comentado) é o
momento, na primeira parte do filme, em que Doinel se esforça por
falsificar uma carta de justificação do ardiloso René, e cai no erro
do plagiário: copiando a carta na íntegra, esquece-se de substituir
o nome do amigo pelo seu. “Peço-lhe que justifique a ausência do
meu filho René...” Doinel antecipa, deste modo, o seu plágio maior
aos olhos da escola, quando traduz, sem saber traduzir, o pedido

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de uma composição sobre um acontecimento importante da sua


vida pelo acontecimento da leitura de Balzac. Incapazes de repro-
duzir a escrita adulta que recebem de fora, e sobretudo de a fazer
sua, estas crianças são provavelmente das mais claras representa-
ções, no cinema, da infância como o estado que não domina a
escrita, e que por isso dela expõe o funcionamento.

1 – Les Quatre Cent Coups (1959), François Truffaut

São personagens privilegiadas do cinema de Truffaut, como é


sabido e veremos; mas trata-se, também, de um modo muito parti-
cular pelo qual a criança interessa ao cinema e que tentarei interrogar
neste artigo. Pense-se por exemplo na insistência com que, em Les
Quatre Cents Coups, a escrita das crianças é assimilada a um borrão
que os adultos obrigam a limpar ou reprimir: esta representação da
escrita como excesso e não transparência, irredutível à significação,
abre caminho para uma interrogação do cinema do ponto de vista
figural, ou material, precisamente no momento em que encena (nos
casos que estamos a ver) encontros com a linguagem. Como figura
que testa os limites da palavra (infans, o que não sabe falar), através
dela o cinema confronta-se com a sua resistência ao discurso,1 por
um lado, e com a sua materialidade e ontologia, por outro.

1 “Mais próxima do estado de infância, ou infans (literalmente, sem linguagem), a

criança pequena tende a ser descoberta no limite daquilo que as palavras podem ser chama-
das a contar, ou a dizer – um limite que, por seu turno, dá origem à questão de como tradu-
zir a experiência da criança em linguagem, ou daquilo que nessa experiência, ou na imagem,
fica fora do alcance do mundo das palavras e por isso lhe resiste” (Lebeau 2008: 16). [Nota:
as traduções dos textos citados, excepto quando indicado, são da minha autoria.]

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A criança que não sabe escrever interessa ao cinema, também,


pelo seu percurso de aprendizagem, em muitos destes casos condu-
cente ao nascimento de um escritor (Doinel, Harriet, Apu). Não se
trata, porém, da reflexividade inerente ao Künstlerroman, que faz
da personagem em formação o autor virtual do texto que o narra;
porque é muitas vezes contra uma possível narrativa, ou mesmo
contra si própria, que a escrita se reconfigura a partir da difícil
aprendizagem destas crianças. A escrita no cinema (neste cinema)
apresenta-se mais como duplo dissonante do que como espelho: daí
que muitas destas representações alegóricas sejam também agóni-
cas, resultando em movimentos tensionais de aproximação e recusa
entre a escrita no cinema e o cinema como imagem. Se muito já foi
dito sobre a identificação entre o olhar da criança e o olhar no
cinema, o que me proponho explorar aqui, concentrando a atenção
em algumas cenas (quase todas finais) de filmes que tomam a rela-
ção entre infância e escrita como eixo e problema, é o modo como
a personagem infantil pode ser figura de um confronto entre ideias
de escrita e ideias de cinema, que tem na dupla natureza – visível e
legível – da palavra escrita o seu ponto de choque, e na identificação
entre criança e cinema (“movies are like kids, kids are like movies”,
é a conclusão de A Story of Children and Film de Mark Cousins) a
sua força figurativa.

1.

Regardez-moi bien, Antoine.


Vous m’avez écrit hier, et la réponse c’est moi.

F. Truffaut, Baisers Volés

No final de The River (O Rio Sagrado, 1951), de Renoir, a leitura


de uma carta é interrompida pelo nascimento de uma criança.
A alternativa entre infância e escrita – a carta, na sua temporalidade
e trânsito, é invalidada pela chegada de um bebé, assinalada apenas
pelo seu choro – é construída cuidadosamente no final de um filme
que tem a sua forma na tensão entre a percepção infantil das per-

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sonagens e a sua releitura a partir de uma idade adulta, condição


para a escrita, que é também o tempo da narrativa e do romance (a
voz off que conduz o filme). Gostaria então de começar por aqui:
pelo modo como a escrita é convocada e questionada neste filme
sobre a infância, revelando a não-sobreponibilidade das duas
dimensões.
A sequência a que me refiro abre com o trânsito de um carteiro.
Atravessando com dificuldade a festa da nova estação, atrasado
pelas brincadeiras das crianças que o rodeiam e cobrem de tinta
vermelha, consegue por fim entregar as cartas na Casa Grande. São
três cartas, mas é na verdade uma carta a três mulheres, de um só
remetente, Captain John, para cada uma das jovens protagonistas:
Harriet, Melanie e Valerie. Enquanto as três as lêem, avidamente,
e o pai de Harriet disserta com ironia sobre a iniciação amorosa e
a entrada na idade adulta, ouve-se subitamente o choro de um bebé.
A criança por que todos esperavam nasce, dentro de casa, e as três
jovens levantam-se e correm para a porta fechada do quarto onde
terá acontecido o parto. Nesse gesto, as três deixam cair, esquecidas,
as cartas que liam. A câmara demora-se um momento sobre as folhas
abandonadas, o plano preenchido pelo choro.
No diálogo final entre as três protagonistas, o jogo de oposições
que a conclusão constrói é tornado explícito:

HARRIET: Há dez minutos ela não tinha nascido. E amanhã estare-


mos habituados a ela. E ontem nós...
VALERIE: Esquece ontem.
MELANIE: Agora é hoje.
HARRIET: E hoje, aqui está o bebé, o bebé e nós, o grande rio,
o mundo inteiro e tudo.2

Neste momento do filme, a afirmação do presente é uma resposta


à temporalidade da carta, que condensa em si todos os acontecimen-
tos que marcaram a iniciação através de Captain John. O nascimento
da criança bloqueia o circuito epistolar com que a cena começou e

2 “HARRIET: Ten minutes ago she wasn’t born. And tomorrow we’ll be used to her.

And yesterday we... / VALERIE: Bother yesterday. / MELANIE: This is today. / HARRIET:
And today, here is the baby, the baby and us, the big river, the whole world and everything.”

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2 – The River (1951), Jean Renoir

3 – The River (1951), Jean Renoir

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coincide, assim, com a perda de efeito de uma escrita que viaja para
trazer de volta a perturbação do passado. Se num momento anterior,
também de dificuldades de escrita, o filme explicitamente questio-
nava a distinção entre “fim” e “conclusão”, fazendo de uma criança
que nasce, na história de Krishna e Rada, a marca de um eterno
recomeço (e por isso não um fim), agora abraça a figura que lançou,
fazendo deste tempo presente simultaneamente uma conclusão e a
recusa do tempo linear que a carta parece representar.
É possível ler este final à luz de um tropo recorrente na
representação da carta no cinema. Se, como sugere Serge Chauvin,
a carta no cinema ficciona, apenas, “quando não funciona, quando
põe em causa e em crise um ou mais elementos da situação de
comunicação” (2007:73), é certo que os seus modos de falência não
são os mesmos da literatura (cartas roubadas, extraviadas, atrasadas).
Uma encenação insistente no cinema de matriz clássica ou narrativa
que representa a escrita no interior do seu universo ficcional é pre-
cisamente a negação de um efeito epistolar pela recusa da sua pre-
missa (a comunicação na ausência), através ou da co-presença de
remetente e destinatário durante a cena de leitura (pense-se na pri-
meira carta de Vertigo [A Mulher que Viveu duas Vezes, 1958], lida
por Scottie na presença de Madeleine, ou no final de Double Indem-
nity [Pagos a Dobrar, 1944]), ou daquilo a que, em termos muito
genéricos, podemos chamar a explicitação de efeitos de presença.
É o caso da despedida final de Addie Ross em A Letter to Three
Wives (Carta a Três Mulheres, 1949), da resposta de Fabienne
Tabard à carta de Doinel em Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968),
ou da carta rasgada que, em The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos,
1948), activa o fundido encadeado que reunirá Vicky e Lermontov
na estação de Montecarlo. Também em The River, à convocação da
escrita (num acto de leitura que a todos absorve) responde uma
clivagem entre temporalidades (um suposto presente e um passado
recusado) que pode ser também imagem de uma tensão encenada
entre escrita e cinema – em que a ausência de Captain John, que a
carta materializa, tem no choro sem corpo da criança o seu inegável
contraponto. A representação da infância passa por esta clivagem,
na imediatez encenada de um olhar necessariamente outro sobre
ela – imediatez encenada que coloca, também, o problema da onto-

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logia e estatuto da imagem cinematográfica (presença ou fantasma?).


A criança que reestabelece a circularidade do tempo no final de The
River é o que pede que as personagens se afastem – ao mesmo tempo
– das duas condições necessárias à sua representação: as implicações
da escrita e do fim do seu estado de infância.
A mesma estrutura – a criança como aquilo que interrompe o acto
de escrita – pode ser vista no final da trilogia de Apu, de Satyajit Ray.
Na conclusão de Apur Sansar (O Mundo de Apu, 1959), o protagonista
é confrontado pelo amigo Pulu com uma alternativa: quando Apu
lhe diz que deitou fora o romance que quis escrever desde criança,
Pulu pergunta se se desfez também da ideia de paternidade – não do
romance, e sim de Kajal, o filho que Apu não conseguiu reconhecer
até este momento. A relação é explícita: o nascimento de Apu como
autor não corresponde, ao contrário do que se poderia pensar, ao
reconhecimento do seu papel de pai – o movimento do filme é inverso.
Será desfazendo-se do seu projecto de escrita (que vinha sendo cons-
truído desde Pather Panchali [O Lamento da Vereda, 1955], na relação
com o pai e com o teatro) que Apu recomeçará a viver. Ora, a alter-
nativa entre o romance e a criança3 – que Apu, na cena a que refiro,
começa pela primeira vez a perceber – já tinha sido estabelecida
visualmente, quando vemos Apu lançando as páginas do seu manus-
crito do alto de uma montanha, numa sequência de campo-
-contracampo que estabelece, como sugere Tesson, a destruição do
seu projecto de escrita como passo necessário para que a imagem de
Kajal se apresente aos nossos olhos (e aos de Apu):

A cena termina com um faux raccord em campo-contracampo.


O ritmo dos planos habituou-nos a uma alternância entre Apu lan-
çando as folhas e a sua dispersão na natureza. Vemos a montanha,
depois Apu, e, de repente, no lugar onde esperávamos ver a paisagem,
a imagem da casa onde mora Kajal, filho de Apu. Seria difícil ser-se
mais claro para nos mostrar o que são, para Apu, aquelas páginas
sujas de tinta: um livro-ecrã entre ele e o mundo. (Tesson 1992: 182)

3 É uma estrutura recorrente para as personagens de Ray, que muitas vezes fazem

declarações de amor precisamente através da afirmação de uma competição entre pessoas e


escrita: pense-se, por exemplo, ainda no mesmo filme, na conversa final entre Apu e Aparna,
em que o primeiro afirma que não ter avançado no romance é a prova mais forte da impor-
tância de Aparna na sua vida; ou na competição entre o jornal e a esposa, claramente formu-
lada por Bhupati, em Charulata (1964).

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Depois da imagem da casa, a criança aparecerá, prometendo a


reconciliação final entre pai e filho e trazendo de volta, para o espec-
tador, a imagem de Apu criança de Pather Panchali. Também aqui,
como no final de The River, a reunião da infância e da idade adulta
reestabelece a circularidade do tempo.

4 – Apur Sansar (1959), Satyajit Ray

A descrição que fiz do final de The River, porém, estará incom-


pleta se não referir aquela que é, de facto, a conclusão do filme.
Enquanto as três figuras femininas olham para o interior da casa,
a câmara move-se e encontra, por detrás delas, a imagem do rio,
com o regresso da voz off de Harriet adulta a repetir o poema da
jovem Harriet, que já tinha sido dito anteriormente sobre imagens
semelhantes. O dia acaba, o fim começa: e este filme, que abriu com
a inscrição de uma figura de boas-vindas, desenhada a tinta, pode
enfim terminar numa voz que tem como única ancoragem a escrita,
e a sugestão de uma passagem da jovem Harriet, que viveu estes
acontecimentos, à escritora adulta, que os narra. Se há continui-
dade entre a descoberta das três jovens e a conclusão circular da
narradora, é também porque o filme encontra, com a repetição da

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infância, o fim da infância. Pense-se mais uma vez na diferença


entre o choro da criança – que, como acontecimento, tem efeito
oposto ao de uma voz acusmática – e a voz desta instância autoral
que situa todo o filme no passado. É o paradoxo da representação
da infância, que o pai de Melanie cristaliza, depois da morte de
Bogey, no seu comentário emocionado sobre as crianças que se
salvam porque morrem ainda crianças – antes que as obriguemos
a deixar de o ser.
É por isso interessante ter em conta que esta instância autoral
foi, de facto, decidida por Renoir num momento tardio da preparação
do filme, e apenas perante a dificuldade que os primeiros
espectadores mostravam na compreensão de uma história contada
do ponto de vista da criança. De facto, a tensão entre uma perspectiva
infantil e a narração retrospectiva, e autoral, de Harriett, parece ter
sido um dos pontos decisivos da elaboração de The River, de acordo
com Prakash Younger:

Ao ficar a saber desta mudança drástica, que efectivamente faz com


que a Harriet mais velha pareça ser a autora do filme inteiro, uma
Godden ansiosa escreveu a Renoir, dizendo estar preocupada com a
possibilidade de todo o “mistério” da infância que se tinham esfor-
çado tanto por recriar tivesse desaparecido; Renoir respondeu para
lhe garantir que ainda lá estava. O mistério da infância, efectiva-
mente, está ainda em The River, mas a preocupação de Godden de
que se perdesse também não está errada. O tema novo que este
obstáculo final permitiu a Renoir descobrir foi o modo como a infân-
cia, e tudo o mais, se perdeu. (Younger 2013: 170)

O nascimento da criança, no final de The River, é assim balizado


por uma dupla moldura, assente nos efeitos da escrita: as cartas de
Captain John e a voz que narra (ou seja o romance – de Harriet ou
de Godden). Nisto, a representação do nascimento assinala a sua
posição impossível: bloqueando e parecendo recusar a instância (a
escrita, a narrativa) que lhe dá acesso, o choro é signo de um pre-
sente que só pode ser afirmado, porém, narrativamente. A criança
que bloqueia a escrita é assim inscrita no tempo que supostamente
suspende, poderíamos dizer; o que nela é a recusa do efeito ausente
de uma voz off que sonoriza a escrita volta a ser contido por aquilo

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a que, enquanto figura, resiste. É disto que nos falam, quero sugerir,
as narrativas de interacção e contraste entre a escrita dos adultos e
a escrita das crianças que iremos ver.

2.

O que caracteriza a linguagem humana não é a sua per-


tença à esfera exossomática ou à esfera endossomática,
e sim o modo como está, digamos, a cavalo entre as duas,
sendo por isso articulada sobre a sua diferença e, ao
mesmo tempo, sobre a sua ressonância.

G. Agamben, Infanzia e Storia

Numa recensão publicada nos Cahiers (“Amphisbetesis”), Serge


Daney comenta a estrutura de L’Enfant Sauvage (O Menino Selva-
gem, 1970) para analisar aquela que lhe parece ser a questão central
da obra de Truffaut: a tensão entre uma falta temporária de refe-
rência e a dolorosa reconstituição do vínculo entre “palavras” e
“imagens”:

De que se trata, afinal? Qual é o objectivo perseguido por Itard no


filme, objectivo tão essencial que nada se diz do seu malogro final:
forçar a criança a estabelecer uma relação de equivalência entre a
palavra (escrita e falada) e a coisa (mostrada), forçá-la também a
preencher um intervalo, enorme quando o filme começa, menor
quando termina. (...) O que cada filme [de Truffaut] põe em cena é
a falta temporária do referente, o eclipse momentâneo de qualquer
garantia, e a sua lenta reinscrição no filme, à medida que avança.
(Daney 2001: 116)

Em L’Enfant Sauvage, Itard esforça-se para levar a criança a


ultrapassar este hiato; e Victor enquanto criança parece ser uma
figura de resistência a esse desenho, como transparece na famosa
(e terrível) cena em que a criança colapsa perante um quadro negro
marcado por palavras de que foram apagadas as imagens corres-
pondentes. O exercício é simples: ver na representação alfabética
dos objectos o equivalente da sua figura. Porém, como sublinhará

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Itard, o intervalo entre escrita e figura é, para Victor, uma distância


imensa, que a criança não sabe e não pode, naquele momento, ultra-
passar. Perante “o eclipse momentâneo de qualquer garantia” que
a escrita enquanto escrita representa para a criança, Victor só saberá
reagir com a violência do corpo.

5 – L’Enfant Sauvage (1970), François Truffaut

Numa cena como esta percebe-se que, de todos os filmes de


Truffaut, é provavelmente este aquele em que se leva mais longe a
interrogação da relação entre escrita e cinema, por um lado – tão
importante para Fahrenheit 451 (Grau de Destruição, 1966), L’His-
toire d’Adèle H. (A História de Adèle H., 1975) ou L’Homme qui
Aimait les Femmes (O Homem que Gostava de Mulheres, 1977) –,
e entre cinema e infância, por outro. E em que essa dupla relação é
transportada, abertamente, para um plano teórico, que na constru-
ção rarefeita do filme (cuidadosamente recortado em torno de um
processo) assumirá também forma agónica e alegórica. A relação
entre a criança selvagem (radicalização extrema da privação da
esfera discursiva) e o pedagogo, reforçado enquanto figura da
escrita pela complexa temporalidade, permanentemente cindida
entre acção e comentário, que o filme lhe atribui, será o terreno em
que o tema do filme (a educação da criança como projecto, limite

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e relação) e a interrogação teórica do meio de representação


(o cinema e a sua articulação entre imagem e som, entre visibilidade
e legibilidade, entre efeitos de presença e marcas de ausência) se
irão sobrepor de forma indestrinçável.
Jean Collet sugere indirectamente que, neste filme, progresso
da criança e progressão narrativa parecem coincidir.4 Gostaria de
levar mais longe esta afirmação, chamando a atenção para o modo
como o filme se organiza, formalmente, a partir da teleologia do
plano pedagógico de Itard. Nesta cena de escrita, tal como nos
exercícios sucessivos que Itard prepara para a criança, que lenta-
mente a aproximam da representação alfabética, o seu funciona-
mento é claro: os exercícios obedecem a uma lógica da substituição,
a palavra representando, por fim, aquilo que já não é visível, fun-
cionando de forma abstracta e autónoma. O acesso à linguagem,
para Itard, é o acesso ao objecto em ausência. Como sugere Blan-
chot em “Parler ce n’est pas voir”, a partir da etimologia da palavra
stylet – cortar, escrever –, a natureza da escrita é a de um corte: ela
toma a coisa por onde ela não se toma, não se vê, nunca se verá (Blan-
chot 1969: 40). São muitos, aliás, os momentos em que o filme o
sugere visualmente, quer com raccords explícitos entre instrumentos
de escrita e instrumentos de corte, quer associando abertamente o
acto de escrita e acções como cortar, separar, cegar ou, muito sim-
plesmente, não ver a criança que partilha o plano, dividindo-o inter-
namente. É o que acontece, por exemplo, na cena em que Itard
atravessa diagonalmente o pátio, de olhos postos na carta que rece-
beu sobre o destino de Victor, sem erguer o olhar para a criança
que está a cortar lenha; ou nos inúmeros planos em que Itard, escre-
vendo no seu caderno, parece ocupar, no espaço do escritório que
partilha com Victor, um lugar tão afastado como a voz off que o
caracteriza.
No episódio do quadro negro, os objectos são postos em relação
com figuras que são postas em relação com palavras. Victor conse-
guirá ir do primeiro ao segundo grupo, e chegará a ver na represen-
tação alfabética outra figura, mas nunca dará o derradeiro passo,

4 “Este medo [de que Victor fuja] subjaz à progressão dramática do filme (aquilo a que

Itard chamará os progressos da criança)” (Collet 1977: 177).

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aquele que lhe permitirá ver a escrita como legível. O seu colapso
acontece quando Itard, apagando as figuras, pretende que a criança
estabeleça uma relação sem apoio entre palavra escrita e objecto do
mundo: e é isso o que Victor, em rigor, nunca conseguirá fazer.
A palavra LAIT – a única que Victor dirá e escreverá no filme –
é pronunciada sempre na presença do leite que recebe; e repetida-
mente os exercícios que cumpre, como o próprio Victor aponta na
cena em que não consegue ver relação entre si próprio e a escrita
do seu nome, são feitos por associação, com o efeito de trazer para
o mesmo plano visível as palavras e as coisas que o professor levara
para longe da vista. Podemos então regressar à sugestão de Daney
de que o filme se constrói sobre um hiato a ultrapassar, sobre o
intervalo entre signo e coisa, e ensaiar uma redescrição do que se
passa neste filme sobre escrita e infância a partir dos exercícios que
formalmente o compõem. Enquanto a premissa do filme parece de
facto ser a reconstituição da ligação entre palavras e imagens, não
é tão certo que o movimento do filme corresponda à teleologia
substitutiva de Itard: é, de facto, no jogo nunca resolvido entre
Victor e Itard que essa premissa se inscreve enquanto hiato, a criança
aparecendo, na sucessão das cenas, como uma figura de contra-
ponto, reintegrando a co-presença que o professor insistentemente
corta por razões pedagógicas. É a isso, de várias formas, que o espec-
tador assiste, na figura do exercício repetido até à exaustão. E é, de
certa forma, o que Truffaut já encontrava acentuado no relatório
de Itard que lhe serviu de material: segundo o médico, as crises de
Victor deviam-se ao desgosto por tarefas “de que, na verdade, não
conseguia perceber a finalidade” (Itard apud Malson 1964: 179).
O movimento da criança no filme, de cena para cena, parece respon-
der à direcção do plano do educador com gestos de sinal contrário.
Ora, é possível que o exemplo mais claro deste movimento anta-
gónico esteja, como em The River, no fim do filme, e numa carta
que a chegada de uma criança interrompe. A sequência final abre
com um Itard resignado, que perante a fuga de Victor escreve às
autoridades uma carta de renúncia das suas funções de educador:
“acho que não voltaremos a ver Victor”. Nesse instante, a carta é
desmentida pela entrada súbita de Victor no plano, enquadrado
pela janela que marca, ao longo do filme, o doloroso limiar entre o

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espaço doméstico e o espaço natural. O contraste é reforçado, ainda,


pela representação complexa da cena, em que a carta se constrói no
jogo entre texto e voz off, de um lado, e Victor que irrompe com o
seu mutismo, que carregará até ao enigmático plano final, reminis-
cente do olhar de Doinel no final de Les Quatre Cents Coups. Sobre
esse plano, dirá Vicky Lebeau:

Não sendo, ou não sendo apenas, o objecto de um conhecimento


humanista, a imagem de Victor em L’Enfant Sauvage transforma o
seu mutismo, o seu rosto, na imagem de uma cena outra – um além
da linguagem, da fala, e mesmo do chamado. Retirando-se da conti-
nuação da história de Victor, Truffaut abre o cinema a essa cena,
levando o seu público até ao limite do que pode ser conhecido e
mostrado da criança – ou, mais precisamente, até à criança, ao rosto
da criança, como a imagem desse limite. (Lebeau 2008: 83)

A cena final da carta pode então ser vista como o momento que
reorganiza a tensão que procurei até aqui descrever, porque repre-
senta como simultâneas as duas dimensões que, desde o início, o
filme está a contrapor. Pense-se na estrutura do começo: as imagens
de Victor na natureza (imagens de filme mudo, como tantas vezes
se sublinhou) e posteriormente da sua captura (aventurosa, ruidosa)
são interrompidas por cenas de escrita e leitura no espaço privado
de Itard. Depois dos 8 minutos iniciais em que a vida do selvagem
é literalmente inventada perante os nossos olhos (tudo ali é certo,
porque ninguém sabe ao certo como será uma criança selvagem),
Itard, no seu escritório, lê no jornal (em voz alta: entrada do discurso
no filme) o relato dos acontecimentos; depois da cena da primeira
fuga, Itard é retratado a escrever no seu diário (a escrita dobrada
pelo som: entrada da voz off no filme); depois das imagens do trans-
porte de Victor para Paris, Itard, também em Paris, e antes da che-
gada da criança, lê também em voz alta, para Pinel, o primeiro
relatório sobre o estado da criança. Ao espectáculo mudo (óptico)
do corpo do selvagem, a montagem sistematicamente responde com
um movimento de sinal contrário, reiterando verbalmente aquilo
que o filme mostrou, e atribuindo a Itard a dupla dimensão do
domínio da escrita e da palavra. É neste contraste que Victor, no
filme de Truffaut, começa a definir-se infans.

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Esta alternância só se interrompe com a chegada de Victor à


casa de Itard, e com o início do processo de aprendizagem que fará
com que a forma do filme – estranhíssima, como vimos – coincida
totalmente com a figura do exercício, com toda a sua ambivalência,
até à fuga final. Nesse longo intervalo, o filme é atravessado pelo
acto de escrita de Itard numa temporalidade mais complexa, porque
contínua e tecida na unidade de acção: descrevendo e comentando
os seus actos num tempo impossível (muitas vezes Itard afasta-se
de Victor, literalmente a meio da cena, para se recolher nesse duplo
mundo da palavra escrita e dita), cortado do código de representa-
ção pela voz off, Itard move-se continuamente para dentro e para
fora do espaço da acção, fazendo da sua voz, paradoxalmente, uma
voz over, porque exterior à acção, mesmo sem sair do plano. Se
Victor é um corpo, Itard é sem dúvida um texto – o texto do filme,
aliás, que se debruça assim sobre a sua matéria, apenas para a com-
prometer com aquilo que a contraria. Se pensarmos como um efeito
semelhante – em chave cómica ou grotesca – marca Jeder für sich
und Gott gegen alle (O Enigma de Kaspar Hauser, 1974), de Herzog,
através da figura do relator, vemos como parece ser a figura da
criança excluída da linguagem a activar este contraste entre excesso
e recusa do discurso.

6 – L’Enfant Sauvage (1970), François Truffaut

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É por isso mais significativo que a cena da carta retome a con-


traposição inicial entre o acontecimento da presença de Victor e um
regime de descrição verbal e escrita, mas de forma invertida: neste
final, é a chegada de Victor que vem interromper o movimento da
escrita, levando Itard para o exterior da casa e para o enquadra-
mento da janela que fora até então, ao mesmo tempo, privilégio do
selvagem (o seu espaço de fuga, e de sonho) e a forma do olhar que
sobre ele o filme debruçou. Aquilo que a escrita descreve como
ausente, o filme representa com a presença da criança, mais uma
vez. Se, como sugere Collet, a janela do escritório de Itard é o espaço
simbólico do filme, no qual o filme se escreve, ou seja através do
qual coloca “uma distância – uma palavra, um ecrã – para filtrar as
imagens”, renunciando, em nome da linguagem e do espaço humano,
à natureza,5 é importante que, neste momento final, Victor e Itard,
criança e educador, estejam, por uma vez, do mesmo lado: Itard
abandonando a escrita para encontrar Victor lá fora. Só por um
momento, porém: levado para dentro de casa, Victor é imediatamente
prometido à continuação dos exercícios, no plano final das escadas
que opõe, de novo, o discurso de Itard ao mutismo de Victor, agora
com a figura afectiva de Madame Guérin como eixo. A conclusão
de um filme tão centrado sobre espaços de transição (janelas, portas)
será, precisamente, um momento suspenso num processo em aberto,
inteiramente dependente da relação e da co-presença6 entre educa-
dor e criança (no fundo, aquilo a que Victor regressa), e na manu-
tenção da educação no interior desse círculo pedagógico e afectivo.
A infância de Victor, no duplo sentido de estar fora da linguagem

5 “É nessa passagem, nesse ecrã dentro do ecrã, que o filme se inscreve e se escreve.

Porque escrever, e filmar (para Truffaut-Itard, são uma e só coisa) é renunciar à presença
fascinante do mundo. É colocar uma distância – uma palavra, um ecrã – para filtrar as ima-
gens” (Collet 1985: 77).
6 Sobre a importância da relação entre Itard e a criança, no caso histórico, e a sua rea-

valiação contemporânea, cf. Benzaquén 2006: 185-212. O gesto decisivo de Truffaut, a este
respeito, é a acentuação da equivalência entre a dicotomia educador-criança e a relação
pai-filho, como é visível nos seus comentários sobre a importância da sua decisão de inter-
pretar “o adulto, o pai” no filme e sobre a dedicatória a Léaud (Truffaut 1985: 115-116).
Muito interessante é também a aproximação que o realizador faz entre Adèle H. e este filme:
“Aquela biografia comoveu-me muito, talvez porque representa o outro lado da moeda em
relação a L’Enfant Sauvage. Tal como a criança do Aveyron, Adèle tem um problema de
identidade, mas agora é o contrário, porque ela é a filha do homem mais famoso do mundo”
(apud Gillain 1991: 209).

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APRENDER A ESCREVER NO CINEMA 57

(infans) e estar na posição da criança, é mantida como intervalo


permanente ou suspensão irresolúvel entre as forças da sua posição
(natureza, cultura, etc.). Não estamos longe, na verdade, da carac-
terização intervalar que Agamben faz, em Infazia e Storia, da aqui-
sição da linguagem: uma ressonância fundada sobre a diferença
interdependente das suas esferas (Agamben 2001: 61).
Neste gesto, L’Enfant Sauvage revela-se o filme central de Truf-
faut sobre as relações entre escrita e cinema, materializando nos
desafios da representação da criança o valor ambíguo ou dual da
escrita nos seus filmes – paixão e destruição, criação e morte. Desta
ambiguidade, as figuras divergentes e complementares das book
people, no final de Fahrenheit 451 (nas quais o corpo é o livro
ausente), e do livro como caixão no final de O Homem que Amava
as Mulheres (onde a publicação só pode equivaler a um funeral)
serão talvez os extremos. Aqui, a criança parece situar o filme no
coração desse intervalo, tensional e irresolúvel, em que aprender a
escrever é também – dolorosamente – uma forma de aprender a ver
a escrita.

3.

P.S. Diz a Charu que não deixe de escrever.


S. Ray, Charulata

Nos filmes de Satyajit Ray, escrita, infância e correspondência


são muitas vezes postos em relação, quer directamente (como em
Postmaster, 1961) quer indirectamente (como em Charulata, 1964).
Gostaria de concluir esta proposta de leitura com alguns breves
apontamentos sobre estes dois casos, pelo modo como se oferecem
ao mesmo tempo como contraponto e clarificação do que me parece
estar em causa na conclusão suspensa de L’Enfant Sauvage.
Primeiro momento de Teen Kanya (Três Mulheres, 1961), tríptico
composto por três episódios adaptados de contos de Tagore, Post-
master é particularmente interessante para o que até aqui se disse, e
sobretudo para uma leitura das implicações do regresso de Victor
ao círculo de Itard. Nessa história sobre um jovem da cidade que

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aceita um emprego como carteiro numa aldeia do interior apenas


para se descobrir incompatível com a vida no campo e abandonar o
posto à primeira contrariedade, Ray condensa uma pequena narra-
tiva sobre a aprendizagem da escrita. Na cena central – que é uma
cena de viragem – do filme, o protagonista é interrompido na leitura
de uma carta que recebeu da mãe pela chegada de Ratan, a criança
que trabalha para ele. A rapariga pergunta-lhe de quem é a carta,
e vai depois a correr apontar a imagem da mãe na fotografia de
família: é o primeiro gesto a sugerir que estamos próximos das preo-
cupações teóricas de L’Enfant Sauvage, que aqui nos são apresenta-
das de forma invertida. Aí, Itard tentava levar Victor a perceber que
a palavra escrita por Victor no quadro era o seu nome, quando Vic-
tor apenas via nela a relação com outra palavra; aqui, Ratan reconduz
a carta a uma imagem de família, associando palavras e imagens,
imagens e pessoas. Essa passagem será determinante para a relação
que se estabelece entre os dois protagonistas, pois o projecto de
aprendizagem da escrita que se instala imediatamente depois tem
como finalidade, para Ratan, a entrada de direito naquele conjunto
familiar: se a irmã do carteiro, além de cantar, como Ratan, sabe
também ler e escrever, será esse o desejo da personagem infantil.
Assim, a vontade de aprender a escrever vem aqui da criança;7
e o momento em que o acto de escrita é activado é também o
momento em que o filme se põe em movimento (em contaste aberto
com o ritmo interrompido do início, contando a difícil chegada do
carteiro à aldeia indiana; e do final, brusca interrupção determinada
pela doença e pela partida definitiva do protagonista). A figura
desse movimento é a circulação do correio, que agora aparece, na
montagem, ao ritmo dos progressos de Ratan. Como acontece fre-
quentemente nos filmes de Ray, a relação pedagógica inverte-se:
é através da criança que o carteiro relutante finalmente cumpre o
seu papel, e o movimento da escrita, pautado pela música, é repre-
sentado em articulação com o progresso da escrita dela, da letra à
palavra, e da relação afectiva com o carteiro à capacidade de escre-
ver o seu nome.

7 Aparajito (1956), o segundo momento da trilogia de Apu, inscreve esse desejo de forma

explícita na construção do percurso da personagem infantil, e em particular na cena em que


Apu observa, de longe, as crianças a entrarem na escola.

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APRENDER A ESCREVER NO CINEMA 59

7 – The Postmaster [Teen Kanya] (1961), Satyajit Ray

Mas este movimento é imediatamente bloqueado, como sugeri,


pela doença do carteiro, e pelo seu acto final de cobardia – um traço
tão típico dos protagonistas masculinos de Ray. É aqui que se per-
cebe que, apesar de o movimento do filme parecer o oposto do que
sugeri para o filme de Truffaut (a criança, aqui, parece estar do lado
da escrita), na verdade estamos perante situações muito próximas.
Porque, ao renunciar ao emprego, o carteiro separa-se, com a
mesma displicência, de Ratan e da condição improvisada de pro-
fessor, revelando, com esse gesto, que o que estava em causa eram
duas concepções de escrita radicalmente diferentes. Para o adulto,
outros podem substituí-lo na educação da criança, um fim em si
mesmo, tal como nas suas outras funções: ao deixar a casa, pede ao
novo carteiro que complete a tarefa interrompida, a de ensinar a
Ratan a formar palavras. Para Ratan, aprender a escrever é um acto
não desvinculável de uma relação de destinação (daí a aproximação
entre aprender a formar palavras e aprender a nomear) – uma cor-
respondência, poderíamos apropriadamente dizer, que revela a
fundamental coerência temática e teórica deste filme que junta
correios e alfabetização. Como em Truffaut, onde os educadores

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60 FALSO MOVIMENTO

operam por corte e substituição, são as crianças a reafirmar insis-


tentemente o círculo da relação.
Não é aliás outra a tensão final da outra grande adaptação de
Tagore, Charulata, provavelmente a meditação mais sofisticada de
Ray sobre esta ligação recorrente entre escrita e traição e, indirecta-
mente, também sobre uma passagem à idade adulta. Aí, a aprendi-
zagem da escrita (literária, neste caso) é reiteradamente representada
como um processo violento, que não pode ser separado, em momento
algum, da paixão amorosa. Como sugere Tesson, o drama de Cha-
rulata é que “não pode escrever sem amar e amar sem querer logo
escrever” (1992: 186).
A traição de Amal, professor renitente, como a do carteiro do
filme anterior, está toda condensada num post scriptum a uma carta
de despedida: “Diz a Charu que não deixe de escrever”. A escrita,
para a personagem masculina, é também aqui uma finalidade em si,
sujeita ao regime de substituição dos seus catalizadores; enquanto
para Charulata, como para Ratan, a escrita é, de facto, um acto
epistolar – mas um acto epistolar em circuito fechado, em que reme-
tente e destinatário têm de estar presentes um ao outro, como nas
representações cinematográficas da carta que referi no início deste
texto. Só o círculo afectivo da correspondência responde, para elas,
à pedagogia. Não há, no fundo, representação ou substituição para
estas personagens infantis, como aliás a relação de Doinel com o
plágio também parecia indicar. Khane-ye Doust Kodjast (Onde Fica
a Casa do Meu Amigo?, 1987), de Kiarostami, onde a possibilidade
de fazer os trabalhos de casa pelo outro só é conquistada no termo
da viagem de iniciação e alterização da criança, poderia ser visto
como um longo comentário ao que aqui se sugere.
No final de Charulata, a escrita assume, por fim, o desapareci-
mento e a ausência como sua forma, na carta que domina a sequên-
cia final, trazendo Amal, de novo e fora de tempo, para o espaço da
casa, mas apenas como voz over distanciada e já sem corpo (o vento
e a tempestade que invade o quarto assinalam-no). Quando é
finalmente possível, para a escrita, absorver o corpo ausente, o jogo
da infância encontra o seu termo – já o tínhamos visto na voz over
de The River. Tal como em Postmaster, a ligação entre corpos e
palavras foi violentamente cortada. E se L’Enfant Sauvage se fechava

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APRENDER A ESCREVER NO CINEMA 61

sobre uma figura da suspensão – a tarefa infinita de ultrapassar a


distância representada pela diferença e interdependência de criança
e educador a ser relançada como limite do filme –, no cinema de
Ray, quando a escrita finalmente impõe o seu funcionamento fan-
tasmático (um corte sobre o corpo, que a voz over assume e repre-
senta), o filme responde-lhe com a destruição da escrita (a carta
rasgada por Charu). Também aqui, porém, a ressonância diferencial
entre escrita e cinema regressa, nos famosos paralíticos finais que
congelam o filme de Ray, quando à escrita se renuncia, no limiar
entre as esferas que o punham em movimento.

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Bibliografia

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della storia. Turim: Einaudi.
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Disappointment in the Study of Human Nature. Montreal, Kingston: McGill-
-Queen’s University Press.
Blanchot, Maurice (1969), L’Entretien Infini. Paris: Gallimard.
Chauvin, Serge (2007), “Lettres en souffrance: stratégies épistolaires dans quelques
mélodrames hollywoodiens”, in [Cloarec, Nicole (ed.)], Lettres de Cinéma.
De la Missive au Film-Lettre. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 73-80.
Collet, Jean (1977), Le Cinéma de François Truffaut. Paris: Lherminier.
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Gillain, Anne (1991), François Truffaut: le secret perdu. Paris: Hatier.
Lebeau, Vicky (2008), Childhood and Cinema. Londres: Reaktion Books.
Malson, Lucien (1964), Les enfants sauvages. Mythe et réalité. Suivi de Mémoire et
rapport sur Victor de l’Aveyron par Jean Itard. Paris: 10/18.
Tesson, Charles (1992), Satyajit Ray. Paris: Cahiers du cinéma.
Truffaut, François (1985), Truffaut par Truffaut, org. D. Rabourdin. Paris: Chêne.
Younger, Prakash (2013), “The River: Beneath the Surface with André Bazin”, in
Alastair Phillips e Ginette Vincendeau (eds.). Malden, MA: Wiley Blackwell,
166-175.

Filmografia

The River (1951). Real. Jean Renoir.


Les Quatre Cents Coups (1959). Real. François Truffaut.
Apur Sansar (1959). Real. Satyajit Ray.
Postmaster (1961). Real. Satyajit Ray.
Charulata (1964). Real. Satyajit Ray.
L’Enfant Sauvage (1959). Real. François Truffaut.

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