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criança pequena tende a ser descoberta no limite daquilo que as palavras podem ser chama-
das a contar, ou a dizer – um limite que, por seu turno, dá origem à questão de como tradu-
zir a experiência da criança em linguagem, ou daquilo que nessa experiência, ou na imagem,
fica fora do alcance do mundo das palavras e por isso lhe resiste” (Lebeau 2008: 16). [Nota:
as traduções dos textos citados, excepto quando indicado, são da minha autoria.]
1.
2 “HARRIET: Ten minutes ago she wasn’t born. And tomorrow we’ll be used to her.
And yesterday we... / VALERIE: Bother yesterday. / MELANIE: This is today. / HARRIET:
And today, here is the baby, the baby and us, the big river, the whole world and everything.”
coincide, assim, com a perda de efeito de uma escrita que viaja para
trazer de volta a perturbação do passado. Se num momento anterior,
também de dificuldades de escrita, o filme explicitamente questio-
nava a distinção entre “fim” e “conclusão”, fazendo de uma criança
que nasce, na história de Krishna e Rada, a marca de um eterno
recomeço (e por isso não um fim), agora abraça a figura que lançou,
fazendo deste tempo presente simultaneamente uma conclusão e a
recusa do tempo linear que a carta parece representar.
É possível ler este final à luz de um tropo recorrente na
representação da carta no cinema. Se, como sugere Serge Chauvin,
a carta no cinema ficciona, apenas, “quando não funciona, quando
põe em causa e em crise um ou mais elementos da situação de
comunicação” (2007:73), é certo que os seus modos de falência não
são os mesmos da literatura (cartas roubadas, extraviadas, atrasadas).
Uma encenação insistente no cinema de matriz clássica ou narrativa
que representa a escrita no interior do seu universo ficcional é pre-
cisamente a negação de um efeito epistolar pela recusa da sua pre-
missa (a comunicação na ausência), através ou da co-presença de
remetente e destinatário durante a cena de leitura (pense-se na pri-
meira carta de Vertigo [A Mulher que Viveu duas Vezes, 1958], lida
por Scottie na presença de Madeleine, ou no final de Double Indem-
nity [Pagos a Dobrar, 1944]), ou daquilo a que, em termos muito
genéricos, podemos chamar a explicitação de efeitos de presença.
É o caso da despedida final de Addie Ross em A Letter to Three
Wives (Carta a Três Mulheres, 1949), da resposta de Fabienne
Tabard à carta de Doinel em Baisers Volés (Beijos Roubados, 1968),
ou da carta rasgada que, em The Red Shoes (Os Sapatos Vermelhos,
1948), activa o fundido encadeado que reunirá Vicky e Lermontov
na estação de Montecarlo. Também em The River, à convocação da
escrita (num acto de leitura que a todos absorve) responde uma
clivagem entre temporalidades (um suposto presente e um passado
recusado) que pode ser também imagem de uma tensão encenada
entre escrita e cinema – em que a ausência de Captain John, que a
carta materializa, tem no choro sem corpo da criança o seu inegável
contraponto. A representação da infância passa por esta clivagem,
na imediatez encenada de um olhar necessariamente outro sobre
ela – imediatez encenada que coloca, também, o problema da onto-
3 É uma estrutura recorrente para as personagens de Ray, que muitas vezes fazem
a que, enquanto figura, resiste. É disto que nos falam, quero sugerir,
as narrativas de interacção e contraste entre a escrita dos adultos e
a escrita das crianças que iremos ver.
2.
4 “Este medo [de que Victor fuja] subjaz à progressão dramática do filme (aquilo a que
aquele que lhe permitirá ver a escrita como legível. O seu colapso
acontece quando Itard, apagando as figuras, pretende que a criança
estabeleça uma relação sem apoio entre palavra escrita e objecto do
mundo: e é isso o que Victor, em rigor, nunca conseguirá fazer.
A palavra LAIT – a única que Victor dirá e escreverá no filme –
é pronunciada sempre na presença do leite que recebe; e repetida-
mente os exercícios que cumpre, como o próprio Victor aponta na
cena em que não consegue ver relação entre si próprio e a escrita
do seu nome, são feitos por associação, com o efeito de trazer para
o mesmo plano visível as palavras e as coisas que o professor levara
para longe da vista. Podemos então regressar à sugestão de Daney
de que o filme se constrói sobre um hiato a ultrapassar, sobre o
intervalo entre signo e coisa, e ensaiar uma redescrição do que se
passa neste filme sobre escrita e infância a partir dos exercícios que
formalmente o compõem. Enquanto a premissa do filme parece de
facto ser a reconstituição da ligação entre palavras e imagens, não
é tão certo que o movimento do filme corresponda à teleologia
substitutiva de Itard: é, de facto, no jogo nunca resolvido entre
Victor e Itard que essa premissa se inscreve enquanto hiato, a criança
aparecendo, na sucessão das cenas, como uma figura de contra-
ponto, reintegrando a co-presença que o professor insistentemente
corta por razões pedagógicas. É a isso, de várias formas, que o espec-
tador assiste, na figura do exercício repetido até à exaustão. E é, de
certa forma, o que Truffaut já encontrava acentuado no relatório
de Itard que lhe serviu de material: segundo o médico, as crises de
Victor deviam-se ao desgosto por tarefas “de que, na verdade, não
conseguia perceber a finalidade” (Itard apud Malson 1964: 179).
O movimento da criança no filme, de cena para cena, parece respon-
der à direcção do plano do educador com gestos de sinal contrário.
Ora, é possível que o exemplo mais claro deste movimento anta-
gónico esteja, como em The River, no fim do filme, e numa carta
que a chegada de uma criança interrompe. A sequência final abre
com um Itard resignado, que perante a fuga de Victor escreve às
autoridades uma carta de renúncia das suas funções de educador:
“acho que não voltaremos a ver Victor”. Nesse instante, a carta é
desmentida pela entrada súbita de Victor no plano, enquadrado
pela janela que marca, ao longo do filme, o doloroso limiar entre o
A cena final da carta pode então ser vista como o momento que
reorganiza a tensão que procurei até aqui descrever, porque repre-
senta como simultâneas as duas dimensões que, desde o início, o
filme está a contrapor. Pense-se na estrutura do começo: as imagens
de Victor na natureza (imagens de filme mudo, como tantas vezes
se sublinhou) e posteriormente da sua captura (aventurosa, ruidosa)
são interrompidas por cenas de escrita e leitura no espaço privado
de Itard. Depois dos 8 minutos iniciais em que a vida do selvagem
é literalmente inventada perante os nossos olhos (tudo ali é certo,
porque ninguém sabe ao certo como será uma criança selvagem),
Itard, no seu escritório, lê no jornal (em voz alta: entrada do discurso
no filme) o relato dos acontecimentos; depois da cena da primeira
fuga, Itard é retratado a escrever no seu diário (a escrita dobrada
pelo som: entrada da voz off no filme); depois das imagens do trans-
porte de Victor para Paris, Itard, também em Paris, e antes da che-
gada da criança, lê também em voz alta, para Pinel, o primeiro
relatório sobre o estado da criança. Ao espectáculo mudo (óptico)
do corpo do selvagem, a montagem sistematicamente responde com
um movimento de sinal contrário, reiterando verbalmente aquilo
que o filme mostrou, e atribuindo a Itard a dupla dimensão do
domínio da escrita e da palavra. É neste contraste que Victor, no
filme de Truffaut, começa a definir-se infans.
5 “É nessa passagem, nesse ecrã dentro do ecrã, que o filme se inscreve e se escreve.
Porque escrever, e filmar (para Truffaut-Itard, são uma e só coisa) é renunciar à presença
fascinante do mundo. É colocar uma distância – uma palavra, um ecrã – para filtrar as ima-
gens” (Collet 1985: 77).
6 Sobre a importância da relação entre Itard e a criança, no caso histórico, e a sua rea-
valiação contemporânea, cf. Benzaquén 2006: 185-212. O gesto decisivo de Truffaut, a este
respeito, é a acentuação da equivalência entre a dicotomia educador-criança e a relação
pai-filho, como é visível nos seus comentários sobre a importância da sua decisão de inter-
pretar “o adulto, o pai” no filme e sobre a dedicatória a Léaud (Truffaut 1985: 115-116).
Muito interessante é também a aproximação que o realizador faz entre Adèle H. e este filme:
“Aquela biografia comoveu-me muito, talvez porque representa o outro lado da moeda em
relação a L’Enfant Sauvage. Tal como a criança do Aveyron, Adèle tem um problema de
identidade, mas agora é o contrário, porque ela é a filha do homem mais famoso do mundo”
(apud Gillain 1991: 209).
3.
7 Aparajito (1956), o segundo momento da trilogia de Apu, inscreve esse desejo de forma
Bibliografia
Filmografia