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PSICO Ψ

v. 37, n. 1, pp. 23-29, jan./abr. 2006

Poder, saber e práticas sociais


Marisa Faermann Eizirik
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar a problematização sobre saber e poder realizada por Michel Foucault,
que abriu novos caminhos para o pensamento, preocupado com a questão já proposta por Kant há duzentos
anos: quem somos nós na atualidade? Ao descortinar as íntimas relações deste binômio – saber e poder – e
as práticas sociais de que se revestem e produzem, extraiu teses fundamentais e revolucionárias, ao mostrar
como estes operam juntos, como matrizes de razão prática, constituindo-se em poderosos dispositivos de
produção de subjetividade. Seus estudos impulsionam a investigar e a combater todas a verdades prontas e
acabadas, todas as formas de opressão, dos discursos às práticas, às teorias totalizantes, às tecnologias pro-
dutoras de subjetividade.
Palavras-chave: Poder; saber; subjetividade; práticas sociais.

ABSTRACT
Power, knowledge and social practices
This article aims to present Michel Foucault’s problematization about power and knowledge, whose studies
opened new ways of thinking, since he worries about the question proposed by Kant, two hundred ears ago:
who are we in the actuality? When he enters in the intimate relations between knowledge and power, and the
social practices they produce, he develops revolutionary and fundamental thesis, showing how they perform
together, as practical reason matrix, making themselves powerful dispositions in production of subjectivity.
His studies move to investigate and fight against all finally truths, all forms of oppression, from discourses
to practices, from total theories to technologies producing subjectivity.
Key words: Power; knowledge; subjectivity; social practices.

INTRODUÇÃO revolucionárias, entre as quais vale destacar uma: as


instituições produzem, constróem e alimentam siste-
Passados 20 anos de sua morte, Michel Foucault mas definidos de saberes.
segue sendo um pensador que marcou, e marca ainda, Michel Foucault nasceu em 1926, em Poitiers
profundamente, nossa visão de mundo, nosso olhar (França). Lecionou nas Universidades de Clermont-
com relação à loucura, à exclusão, ao poder e aos mo- Ferrand e Vincennes, entremeando com períodos em
dos de subjetivação. que foi adido cultural em Uppsala (Suécia) e Varsóvia
O diálogo com ele continua, pois que é um pensa- (Polônia). Em 1970, ingressou no Collège de France,
dor do presente, preocupado com a questão já propos- ocupando a cadeira de História dos Sistemas de Pen-
ta por Kant há 200 anos: quem somos nós na atualida- samento. Foi um dos mais importantes pensadores
de? (Kriegel, 2004). A ele devemos a abertura de no- contemporâneos e, talvez, um dos mais influentes fi-
vos caminhos do pensamento, sobre o saber, o poder e lósofos franceses do século passado, com uma obra
a ética. Suas teses sobre o saber e o poder produziram que transita por várias áreas: Filosofia, História, Psi-
deslocamentos e rupturas nas formas de compreendê- cologia, Medicina, Estudos de Gênero, Crítica Literá-
los, e constituem o foco do presente trabalho. ria, Direito. Morreu em 1984, em Paris.
O objetivo deste artigo é apresentar a proble- Considerava três os elementos fundamentais de
matização do campo estratégico que articula saber e toda a experiência: “um jogo de verdade, as relações
poder na obra de Michel Foucault que descortinou as de poder e as formas de relação consigo e com os ou-
íntimas relações deste binômio e as práticas sociais de tros”. Ao seu ver, uma história do pensamento, e o tra-
que se revestem. Daí extraiu teses fundamentais e balho específico do pensamento, se articula em terno
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das problematizações, ou seja, o que tornou possível dentro de uma corrente, colocando-se como refratário
determinadas atitudes e práticas? “O pensamento é li- a qualquer forma de síntese. Não criou uma doutrina,
berdade em relação ao que se faz, ao movimento pelo nem aceitava a vulgarização de suas idéias. Julgava-se
qual nos soltamos, constituindo-o como objeto e re- no direito de questionar o presente, e habitá-lo, com
fletindo-o como problema” (Foucault, 1994, p. 591). invenções jamais programadas, construídas e
Como um saber pode se constituir? Como e por que reconstruídas, assumindo os riscos de suas escolhas.
pensamos uma coisa e não outra? Historiador, ou filósofo? Utiliza técnicas da histó-
O debate teórico dominante à época da formação ria, porém a inventa, a revoluciona, como bem salien-
deste autor, no início dos anos 50, girava em torno de ta Veyne (1998). Realiza uma prática filosófica que
Hegel e da fenomenologia: um hegelianismo forte- não se reconhecia dentro da filosofia universitária, se-
mente penetrado de fenomenologia e de existencia- ria uma filosofia em ato. Inventa seu objeto de estudo
lismo, centrado no tema da consciência sofredora. e o método para persegui-lo. Foi um professor, um
Nietzsche, Blanchot e Batailhe são os autores que o pensador, um “maître a penser”. Seus materiais prefe-
inspiram e fundamentam a buscar qualquer coisa dife- ridos são os textos. O que lhe interessa não é contar a
rente do existencialismo e da fenomenologia. Ques- evolução de uma prática ou de um pensamento, mas
tionava a categoria do sujeito, sua supremacia, sua fun- sim, o descrever o campo cultural no qual um novo
ção fundadora. saber se instaura.
De acordo com Raulet (1983, P. 195) ao se colocar
no interior de uma tradição da filosofia francesa do O SABER E O PODER:
conhecimento, da racionalidade, do conceito, ligada à PERCURSO METODOLÓGICO
história, à filosofia da ciência, à biologia articulada por
Cavaillés, Koyré, Bachelard e Canguillem, Foucault Arqueologia do saber
realiza um deslocamento, das ciências da vida, da ma- Foucault usava a palavra “arqueologia”, ao invés
temática, da epistemologia, aos saberes e às ciências de “história”, para designar um tipo de análise que es-
humanas. Ao realizar uma ruptura deveras singular tava fazendo, desde o início dos anos 60, em que se
mostra claramente a divisão existente, depois da Se- preocupava com a dissincronia entre uma idéia e a
gunda Guerra Mundial, desta corrente com a filosofia constituição dessa idéia em objeto de conhecimento.
da experiência, a filosofia do significado, amalgama- A arqueologia se funda na prática histórica; é um método
das à fenomenologia existencial de Sartre e Merleau- forjado pragmaticamente para lidar com problemas
Ponty. específicos colocados pela história do pensamento.
Importa saber, comenta Eizirik (2002), que na O método se origina primariamente das lutas con-
França, na década de 60, Sartre pontificava como o cretas para a compreensão histórica. Foucault rejeita-
mais famoso intelectual, e um pensador cujos estudos va o objetivo fundamental da verdade última e cons-
abrangiam uma ampla variedade de assuntos. Sua fa- truiu um instrumento para realizar objetivos concretos
mosa frase: “a existência precede a essência” estabe- e locais na luta pela liberação humana. Seu objetivo
lecia a idéia de que a essência, ou o sentido das coisas, era a problematização do conjunto das práticas que faz
não era predeterminado por nenhuma força externa. qualquer coisa entrar no jogo do verdadeiro e do falso,
Ao contrário, o sentido era construído por cada um. ou seja, trabalhava com o discurso erudito (teórico) e
Foucault trabalhou na desconstrução dessa afirma- o saber desqualificado, aquele conhecimento que fa-
ção, bem como na noção de liberdade existencial de zia parte do cotidiano, da pessoa comum.
Sartre, que partindo da idéia da não existência da A arqueologia é uma técnica para revelar como as
predeterminação do sentido, cada pessoa seria livre diversas disciplinas desenvolveram normas de valida-
para criar o seu, através de suas próprias ações e esco- de e de objetividade, “é como um cuidadoso escrutí-
lhas. Muitos criticavam a idéia da liberdade individual nio das exigências epistêmicas de uma disciplina, não
do existencialismo de Sartre, tornando-se uma verda- como um instrumento prévio para rejeitar essas exi-
deira polêmica na França, com a atuação apaixonada gências” (Gutting, 1993, p. xi).
dos intelectuais e o desenvolvimento de várias corren- Não se trata de uma história, mas da reconstituição
tes e movimentos. de um campo histórico, jogando com diferentes dimen-
A obra de Foucault se constrói nesse “caldo cultu- sões (filosóficas, econômicas, científicas, políticas,
ral”, nas discussões e alianças que se dão entre psica- estéticas) a fim de obter as condições de emergências
nálise, fenomenologia, marxismo e estruturalismo. dos discursos de uma determinada época.
Buscou fugir do dogmatismo, pois para ele o desafio Para este autor a arqueologia é a análise do con-
estava no processo de desenvolver uma posição e não junto de performances verbais, ao nível dos enuncia-
unicamente em defendê-la. Não aceitava ser rotulado dos e da forma de positividades de um discurso. O que
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ele chama de arquivo é o conjunto das práticas dis- crescente entre loucura e civilização, Foucault abre um
cursivas, que constituem sistemas instauradores de campo fecundo de pesquisas em várias áreas do co-
enunciados como acontecimentos (tendo suas condi- nhecimento – desde a política e a história, até à medi-
ções e seu domínio de aparecimento) e de coisas (com- cina e à psicologia.
preendendo sua possibilidade e seu campo de utiliza- O estudo dos saberes, suas semelhanças e conti-
ção). nuidades, seus pontos de irrupção, vão marcar a
A arqueologia do saber marca um estágio impor- metodologia arqueológica, que disseca e desconstrói
tante na obra de Foucault; nela, o autor descreve de as dissociações entre ciência e saber, entre poder e co-
forma conceitual a formação dos saberes – sejam eles nhecimento.
científicos ou não – buscando estabelecer as condições Em As Palavras e as Coisas Foucault (1990b) pro-
de sua existência – e não de validade – considerando a curou construir um corpo de conhecimento moderno
verdade como uma produção histórica, cuja análise positivo dos seres humanos. Estudou a constituição
remete às suas regras de aparecimento, organização e das ciências humanas a partir do estabelecimento de
transformação ao nível do saber. A arqueologia pre- uma rede conceitual de saberes que lhe servem de con-
tende dar conta da regularidade intrínseca dos sabe- dição de possibilidade e de transformação. Buscando
res, estabelecer compatibilidades e incompatibilidades sempre a descontinuidade histórica, reafirma sua aten-
e individualizar formações discursivas. ção às diferenças, e ao sistema que as possibilita, con-
Para este autor, a episteme é o conjunto das rela- tra a história das idéias que tem, na busca das conti-
ções que podem ser descobertas, para uma época dada, nuidades, uma constante.
entre as ciências, quando estas são analisadas ao nível Queria ver como conhecemos, como construímos
das regularidades discursivas, compreendendo forma- categorias e como estas eram diferentes em tempos
ções discursivas como fragmentos de discursos e frag- antigos. Examina, portanto, três grandes áreas de co-
mentos de uma realidade da qual estes fazem parte. nhecimento das ciências humanas: a lingüística, a bio-
Anuncia, assim, a episteme como um campo de possi- logia e a economia – o modo como foram organizadas
bilidades históricas de um saber. antes da existência das ciência humanas, examinando
Tomemos um atalho para visualizar de forma mais o desenvolvimento dos campos conhecidos nos sécu-
concreta esses conceitos. Foucault focalizava ao lon- los XVII e XVIII como gramática geral, história natu-
go de seu trabalho um mecanismo central das ciências ral e análise das riquezas. O que marcava a mudança
sociais: a categorização das pessoas em normal e anor- para o mundo moderno? A grande mudança estava na
mal. Seus livros estudaram as diferentes formas de ausência do homem dentro do conhecimento científi-
anormalidade: a loucura, a criminalidade e a doença co – e sua inserção a partir daí: o homem aparece como
(Foucault, 1987b; 1980; 1994). Analisando uma am- objeto e sujeito de investigação.
pla documentação histórica o autor desafia as simpli- A arqueologia procura estabelecer a constituição
ficações das separações correntes entre essas duas ca- dos saberes. Privilegia inter-relações discursivas e sua
tegorias, mostrando que elas variaram amplamente no articulação com as instituições; respondia a como os
tempo – comportamentos glorificados numa época saberes apareciam e se transformavam. Enquanto a ar-
eram banidos em outra. As sociedades, as relações en- queologia busca o como, sendo um método próprio à
tre poder esaber e as ciências humanas definiram , cui- análise da discursividade local, a genealogia busca o
dadosamente, desde o século XVIII, as diferenças en- porque, na medida em que “ativa os saberes libertos
tre normal e anormal e usaram essas definições para da sujeição que emergem dessa discursividade”
regular o comportamento das pessoas. (Foucault, 1990b, pp.172).
Nossa sociedade, de forma crescente, encarcerou, Fortemente influenciado pelas idéias de Nietzsche,
excluiu e escondeu pessoas anormais, enquanto mais que rejeitava a noção de sujeito fundante e de verdade
do que nunca as observava, examinava e questionava absoluta, Foucault trabalhou com a diversidade e a dis-
cuidadosamente. persão, desenvolvendo o que chamou de genealogia,
Nos tempos antigos o louco era aceito como parte concebida como um instrumento metodológico para
da comunidade; as pessoas doentes eram tratadas em analisar séries de ramificações, de acidentes, de erros,
casa. Ninguém esperava que figuras deformadas fos- de rupturas, que não visam uma lógica progressiva em
sem tiradas do convívio social. O estudo da anormali- direção à perfeição, mas sim restituir aos acontecimen-
dade (seus pontos de separação e diferença com a nor- tos a sua singularidade.
malidade) é uma das mais importantes formas em que Encarando a intangível problemática do poder,
as relações de poder se estabelecem na sociedade. procurando coordenar e sistematizar diferentes análi-
Ao mostrar os grandes dispositivos de poder e de ses e enfoques a ela relacionados, pensava o autor que
saber que estavam embutidos na separação gradual e era preciso explicar o poder, tema que sempre se colo-
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cava quando estava frente à experiências vividas nas do corpo, e também o exercício do poder sobre o cor-
sociedades contemporâneas. Perguntava-se: “como po. O que é, porém, a genealogia? A genealogia é o
poderíamos formular um enunciado geral das relações conjunto de pesquisas que busca redescobrir as lutas,
entre a constituição de um saber e um exercício de um e as memórias brutas dos combates, no acoplamento
poder”? (Foucault, 2003, pp.34). entre o saber erudito e o saber desqualificado. É a bus-
ca do saber histórico da luta (Foucault, 1986, pp.171).
Genealogia do poder O projeto de uma genealogia do poder comple-
O final da década de 60 foi marcado por muitas menta o exercício de uma arqueologia do saber. Esta
transformações, mas é possível dizer que os aconteci- se endereça ao porquê – explicar o aparecimento dos
mentos de maio de 68, na França, que se espalharam saberes a partir de condições de possibilidades exter-
pela Europa e pelos Estados Unidos, tiveram ressonân- nas aos próprios saberes, ou melhor imanente a eles,
cias que implicaram em profundas rupturas, sacu- – pois não se trata de considerá-los como efeito ou re-
dindo os anos 70 – as revoltas dos estudantes, as gre- sultante – mas como elementos de um dispositivo de
ves que paralisaram as fábricas, os movimentos da natureza essencialmente estratégica (memória bruta
contracultura (hyppies), o início da “revolução” femi- dos combates).
nista, a luta contra o autoritarismo do Estado e das uni- Com o estudo da questão do poder, Foucault in-
versidades. A fermentação, a complexidade e a ampli- ventou um instrumento de análise capaz de explicar a
tude desses acontecimentos atingiram os costumes, as produção dos saberes, como peças nas relações que
artes, as diferentes formas de expressão, as ciências, constituem os dispositivos. estabelecendo uma ligação
as instituições, os governos. profunda e fundamental entre saber e poder. Não se
As análises sobre esse período e suas implicações trata de uma analítica geral do poder, mas do poder
nas ordens econômica, política, social e cultural são como uma prática social constituída historicamente.
complexas, e não podemos correr o risco de fazer sim- Tanto a arqueologia como a genealogia fazem aná-
plificações redutoras. lises fragmentárias e transformáveis. Aceitam seus li-
Em relação aos estudos sobre poder, cabe salientar mites, lidam com o inacabado, parcial. Fazem desvios,
o movimento que se desencadeou, nesta época, sobre reformulam, levantam alternativas e implicações.
o funcionamento das prisões na França, a partir do pro-
testo dos prisioneiros sobre suas condições em 71/72.
Nesse período, Foucault, Domenach e Vidal-Naquet O PODER DISCIPLINAR
fundaram o GIP (Grupo de Informações sobre as Pri- Ao estudar a ciência da disciplina, Foucault
sões), que ajudava os prisioneiros com a publicação (1988) mostra seus princípios básicos:
de detalhes sobre as penosas condições em que viviam
– a espacialização: um lugar para cada um e cada
(Eribon, 1990).
um em seu lugar;
A primeira sistematização dos estudos sobre a pri-
– o controle minucioso da atividade: hora para
são aparece numa publicação coletiva, coordenada por
estudar, hora para comer, hora para o recreio;
Foucault (1977) e realizada junto com seus alunos,
tempo para produzir tal peça; hora para iniciar
sobre um crime ocorrido em 1835. A análise desses
ou terminar uma atividade
documentos coloca a questão da loucura: seria Pierre
– a vigilância hierárquica: uma complexa rede de
Rivière louco? e com isso, se faz a ponte entre os tra-
autoridade e treinamento;
balhos anteriores do autor sobre a loucura e os
subsequentes, com ênfase nos mecanismos sociais e – a sanção normalizadora: a análise contínua das
institucionais do poder. condições de disciplinamento e seus possíveis
A sistematização maior se dá com o lançamento desvios;
em 1975 de “Vigiar e Punir: história da violência nas – o exame: combina as técnicas de hierarquia que
prisões” que conta a história das relações entre poder vigia e as da sanção que normaliza. É um con-
e opressão, as origens da prisão e as formas de puni- trole normalizante, uma vigilância que permite
ção. qualificar, classificar e punir, selecionar, apro-
Através da genealogia, assinala os mecanismos var, reprovar.
que marcam uma ciência aplicada ao disciplinamento O exame tem caráter fundamental – está no cora-
dos corpos, e que se desenvolve de forma abrangente ção da disciplina – pois é ele, e através dele, como
para além das prisões, atingindo exércitos, escolas, conhecimento e como poder, que se amarram e se
hospitais, fábricas, asilos. articulam os demais componentes do poder discipli-
A palavra genealogia foi introduzida por Foucault nar, na medida em que vigilância e normalização se
em “Vigiar e Punir”, ao colocar o problema do poder e complementam, se reforçam, se justificam.
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O poder disciplinar não pune, somente; ele tam- O EXERCÍCIO DO PODER


bém recompensa. Seu objetivo é produzir corpos dó-
ceis; corpo que se manipula, se modela, se treina e obe- Quais são as características do poder e como se
dece; corpo cujas forças se multiplicam, se torna há- exerce?
bil; corpo útil. Compreendendo o poder como uma relação de for-
O que há de novo nessas investigações é a apre- ças, constituindo ações sobre ações, suas característi-
sentação do detalhamento do investimento que é feito cas são: incitar, induzir, desviar, tornar fácil ou difícil,
sobre o corpo, a partir do século XVIII, com o limitar e ampliar, tornar mais ou menos provável.”...
descortinamento dos métodos e estratégias que permi- Não existe no princípio das relações de poder e como
tem o controle minucioso das operações do corpo e matriz geral uma oposição binária e global entre
que permitem sua sujeição. É o registro do nascimento dominadores e os dominados, refletindo-se essa
de uma arte das distribuições sobre o corpo humano, dualidade de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais
de uma “anatomia política” e de uma “mecânica do restritos até as profundezas do corpo social. Antes,
poder”. deve-se supor que as correlações de força múltiplas
Essa arte não é nova, e nem teve uma descoberta que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas
súbita. É muito mais “uma multiplicidade de proces- famílias, nos grupos restritos, nas instituições, servem
sos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de de suporte para grandes efeitos de clivagem que per-
localizações esparsas, que se recordam, se repetem, ou correm o conjunto do corpo social” (Foucault, 1988a,
se imitam, apoiam-se uns sobre os outros, distinguem- p. 12).
se segundo seu campo de aplicação, entram em con- Como se exerce o poder? O exercício de poder
vergência e esboçam aos poucos a fachada de um aparece como um afeto, pelo seu poder de afetar ou-
método geral” (Foucault, 1988, p. 127). tras forças e de ser por elas afetado. Articulando sa-
Ao apresentar suas pesquisas sobre o poder, beres e poderes, Foucault chega ao conceito de dispo-
Foucault está desmontando o conceito estabelecido e sitivo.
aceito, no qual alguns tem o poder e outros estão des- O que é um dispositivo? Citando Deleuze (1988) o
tituídos dele. Defende a idéia de que o poder ocorre dispositivo é ma máquina invisível, quase muda e
numa relação de forças. cega, porém é ela que faz ver e falar. O dispositivo se
É ainda em Vigiar e Punir que encontramos as mostra no encontro com o poder, no que este diz ou
grandes teses de Foucault sobre o poder, que se desen- faz dizer, dos seus cruzamentos, da provocação de suas
volvem em três rubricas, como assinala Deleuze forças, no confronto e na resistência, na luta e no
(1988, p. 79): “O poder não é essencialmente repressi- desafio, nos jogos políticos que o manipulam e nos
vo, já que incita, suscita, produz; ele se exerce, antes efeitos produzidos por ele produzidos.
de se possuir (já que se possui sob uma forma A filosofia de Foucault se apresenta, a partir de
determinável – classe – e determinada – Estado); pas- então, como uma análise de “dispositivos”. Trabalhan-
sa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (já do com grandes instâncias, o autor distingue suces-
que passa por todas as forças em relação)”. sivamente saber, poder e chega às formas de subje-
Ao introduzir a força como dimensão histórica da tivação. Dá ênfase aos dispositivos do saber, feito de
luta, do combate, no exercício das diferentes formas formas e do poder, constituído por forças. Esses dis-
de relação entre sujeitos e instituições, Foucault está positivos operam como matrizes de razão prática, ou
fazendo uma modificação metodológica e epistemo- seja, o princípio de conhecimento é o princípio de
lógica de extrema importância. Está mostrando que o ação.
poder não é uma forma (como a forma-estado, p.ex.), Ao desenvolver estas idéias, o autor mostra como
que a relação de poder não se estabelece entre duas esses dispositivos se constituem em tecnologias que,
formas, como saber, que se estabelece entre as formas como matrizes de razão prática, se dividem em quatro
discursivas, que a força não está nunca no singular... tipos principais:
ela está em relação com outras forças. Foucault está 1. tecnologias de produção que nos permitem pro-
dizendo que a força tem como objeto outras forças... duzir, transformar ou manipular coisas;
“uma ação sobre a ação dos outros, sobre ações atuais 2. tecnologias de sistemas de sinais, que nos per-
e eventuais, futuras ou presentes... é um conjunto de mitem utilizar signos, sentidos, símbolos ou sig-
ações sobre ações possíveis... tendo o pressuposto nificações – trabalha com jogos de linguagem.
inalienável da liberdade” (Foucault, 1995, pp. 243). 3. tecnologias de poder, que determinam a condu-
Liberdade compreendida como o infindável ques- ta dos indivíduos, os submetem a certo tipo de
tionamento da experiência, que se dá através das ações fins ou dominação, e consistem em uma obje-
e opções dentro de um campo de possibilidades. tivação do sujeito;
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4. tecnologias de si, que permitem aos indivíduos continua, ainda hoje, produzindo efeitos em seus lei-
efetuar, por conta própria ou com a ajuda de tores, como uma corrente elétrica que impulsiona a
outros, certo número de operações sobre seu perguntar, a problematizar, a investigar, a combater
corpo e sua alma, pensamentos, conduta, ou todas a verdades prontas e acabadas, todas as formas
qualquer forma de ser, obtendo assim uma trans- de opressão – dos discursos às práticas, às teorias
formação de si mesmo, com o fim de alcançar totalizantes, às tecnologias produtoras de subjetivi-
certo estado de felicidade, pureza, sabedoria. dade.
Estas quatro tecnologias funcionam de forma in- Foucault designa não apenas um sujeito, mas um
terligada, mesmo que cada uma delas esteja associada efeito, um zigzag, qualquer coisa que se passa como
com algum tipo particular de dominação. Não é difícil um foco luminoso, um choque elétrico, nos encontros
observar o impacto dessas tecnologias sobre os modos que produz, nos impactos que provoca.
de subjetivação, na medida em que olhamos para as Retomando as considerações feitas até aqui e rela-
instituições, em suas múltiplas formas, e as práticas cionando com os objetivos do presente trabalho, foi
sociais daí decorrentes. possível abordar as contribuições de Foucault aos es-
Na escola, por exemplo, identificamos: um lugar tudos sobre a constituição de um saber e o exercício
para cada pessoa, cada papel, cada função: o profes- do poder, e de como estes são instrumentos de práticas
sor, o aluno, a direção, com os respectivos sinais e sociais.
instrumentos de poder: avaliação, controles, regras, Como sistematização, podemos destacar:
normas, estratégias (Eizirik, M. e Comerlato, D., – a minuciosa e detalhada investigação que fez
2005). sobre as formas de saber e as forças que consti-
Se lançamos um olhar para outras instituições, tuem o poder, e que atuam articuladas, forman-
também podemos ver o controle das atividades, dos do uma malha fina, microfísica, que percorre
corpos, dos tempos, dos resultados, dos ditos e dos não todo o tecido social. Para dar conta dessa arti-
ditos, dos possíveis e dos impossíveis, com dispositi- culação, inventa o conceito de dispositivo.
vos determinando possibilidades, e interditos. – a operação de desmonte e deslocamento que
Para além das instituições, ou mesmo através de- operou sobre o conceito de poder, ao afirmar
las, encontramos dispositivos regendo relações entre que ele não é detido por alguns e despossuídos
pessoas, atitudes, comportamentos, e também de si por outros, e nem atua somente como uma força
para consigo. Encontramos aí, também, ressonâncias que diz “não”; ao contrário, produz saber, gera
e a implicações dessas diferentes “tecnologias”. discursos e práticas, constitui formas de subje-
A evolução dessa investigação conduz Foucault tivação.
aos estudos sobre a ética, ou seja, como o saber e o – o descortinamento de uma “analítica do poder”
poder contribuem para a compreensão da constituição que apresentou, ao mostrar a organização histó-
do sujeito contemporâneo. Como um processo sempre rica da mecânica do poder, seus pontos de rup-
provisório, “a subjetividade é a relação consigo, que tura, suas transformações históricas, cartogra-
se estabelece através de uma série de procedimentos fando as formas de constituição do sujeito con-
que são propostos e prescritos aos indivíduos, em to- temporâneo.
das as civilizações, para fixar sua identidade, mantê-la – a demonstração de um pensamento em perma-
ou transformá-la, em função de um certo número de nente evolução que mostrou , ao passar por di-
fins” (Eizirik, 1997). ferentes movimentos, sempre conduzido pela
curiosidade, pela vontade de saber – não apenas
CONCLUSÃO sobre o saber e o poder, mas sobretudo pelas re-
Por que razão podemos convocar Foucault para lações entre sujeito e verdade.
esse tempo? Por que considerar um ‘efeito’ Foucault? – os avanços teóricos que provocou estiveram
Porque ele é co-presente e coextensivo aos efeitos que sempre profundamente ancorados em práticas
produz, inseparável mesmo. Conhecido, especialmen- sociais, e nas lutas que atravessam essas práti-
te, por suas teses sobre o poder, encontramos alguns cas, nos diversos âmbitos institucionais.
conceitos seus por toda a parte, atravessando os cam- Não podemos dizer que vivemos hoje o poder dis-
pos da política, da filosofia, da história, da educação, ciplinar tal e qual Foucault o descreveu, com rigor e
da psicologia, da medicina, da sociologia, dos estudos minúcia, a respeito das instituições e das formas com
de gênero, do direito. Popular e ao mesmo tempo den- que coloriram o panorama dos século XVIII, XIX e
so, curioso privilégio deste autor que constituiu um XX, uma vez que já ingressamos no século XXI, mas
verdadeiro reservatório teórico/metodológico e que será que não nos reconhecemos em muitas das nuances
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desse poderoso motor de formas de pensar e de agir e, Foucault, M. (1988). El sujeto y el poder. Revista Mexicana de
Sociologia, 2, 3, 3-20.
assim, de produzir modos de subjetivação? Até que
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Endereço para correspondência:
Foucault, M. (1987b). A história da loucura na Idade Clássica. MARISA FAERMANN EIZIRIK
São Paulo: Perspectiva. Rua Visconde do Rio Branco, 708
CEP 90220-230, Porto Alegre, RS, Brasil
Foucault, M. (1988). Vigiar e punir; história da violência nas pri- Fone: (51-55)3222-1871 – Fax: (51-55)3222-0840
sões. Petrópolis: Vozes. E-mail: meizirik.ez@terra.com.br

PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 1, pp. 23-29, jan./abr. 2006

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