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ISSN 2177-1383
Diretoria de Editoração
Alice Raquel Neves Ortiz, UFRN, Brasil
Beatriz Lodônio Dantas, UFRN, Brasil
Beatriz Moura Barbosa, UFRN, Brasil
Brenda Borba dos Santos Neris, UFRN, Brasil
Elias Cândido da Nóbrega Neto, UFRN, Brasil
Graciele de Araújo Dantas Targino, UFRN, Brasil
Lílian Nicodemos Furtado Noca, UNI-RN, Brasil
Lorenna Medeiros Toscano de Brito, UNI-RN, Brasil
Mateus Rodrigues Soares, UFRN, Brasil
Vanessa Medeiros de Lira, UFRN, Brasil
Professores Orientadores
Anderson Souza da Silva Lanzillo, UFRN, Brasil
Fabiana Dantas Soares Alves da Mota, UFRN, Brasil
Zéu Palmeira Sobrinho, UFRN, Brasil
Edição da Capa:
Thaylson Djony Dantas Rodrigues
thaylsondjony0612a@hotmail.com
Diagramação:
Paulo André - www.pauloandrepa.com.br
contato@pauloandrepa.com.br
EDITORIAL:
ARTIGOS CIENTÍFICOS
LITERATURA E DIREITO
RESUMO
Desde o século XV se acirrou o debate entre o dogma e a razão em vais
de fortalecer as teorias democráticas em detrimento das absolutistas
justificadas no direito divino, deslocando o Homem para o centro do de-
bate. Liberdade e igualdade passaram a ser os valores supremos a serem
defendidos em sociedade. As formulações de Hobbes e Locke marcam
o discurso de garantias do indivíduo em sociedade civil com ênfase
num pacto social pendente a submissão por necessidade de se expungir
o medo do estado de guerra, ou por consentimento para proteção na
aquisição de bens para satisfação das necessidades.
Palavras-chave: Homem. Igualdade. Pacto. Garantia.
1 INTRODUÇÃO
1 Pós-Doutor em Direito (Portugal), Doutor em Ciências Jurídicas e Políticas (Argentina), Doutor em Ciência Política (Brasil), Professor
do Departamento de Direito da Universidade Autónoma de Libsoa (AUL/Portugal), Pesquisador/investigador do Centro de Investigação
e Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (CEDIS/FD/UNL/Portugal), e
Pesquisador/Investigador do Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas – Ratio Legis – da Universidade Autó-
noma de Lisboa (RL/UAL/Portugal).
2 De assento latino, “omnis potesta a Deo”.
8
afinal, poder-se-ia dar ao homem o que é do homem (bens civis) e a Deus o que é de Deus
(produtos de fé).
A refutação a dogmas seculares gerou uma insurgência que precisava ser combatida
por argumentos sólidos o bastante que afastassem a intangibilidade do absolutismo de direito
divino e as teorias patriarcalistas que o amparavam. Neste âmbito, surgia a necessidade de co-
locar o homem no centro do debate político.
Falar de homem e política numa mesma frase exige que se determine a hierarquia dos
valores (quem vem antes?); e, num mundo em expansão que tem na ciência a melhor resposta
aos desafios das novas fronteiras, cujo acúmulo de riquezas passa a ser a pauta do dia, melhor
que se conciliem em prol da satisfação de uma nova classe transnacional: a burguesia.
No ambiente burguês, quanto mais livre, melhor; a liberdade ganha os discursos
políticos e a disputa do poder altera o enfoque da legitimidade para a garantia; ser livre
pressupõe que todos possam fazer de tudo (o problema é a definição de todos e de tudo). Eis
o ponto nodal: encontrar a explicação para que todos, num tom de igualdade, estejam auto-
rizados a tudo fazer (liberdade), sem que haja o perecimento da sociedade civil e tampouco
prejuízos a burguesia.
Para a presente análise, a questão da igualdade na liberdade será analisada pelo
viés das teorias de Thomas Hobbes (Leviatã) e de John Locke (Segundo Tratado sobre o
Governo Civil), mormente quanto as construções da passagem do estado de natureza para
o de sociedade civil via concepção de um pacto social que justifique a releitura da liberdade
natural para a liberdade política. Assim, o panorama histórico-político de análise é a Ingla-
terra renascentista imersa em crise religiosa que se desdobrou em instabilidade política que
somente pode ser contornada com o reconhecimento dos interesses do parlamento liberal,
isso em torno do século XVII.
de exigência – uma nova construção: a) social (fortalecimento dos burgos); b) comercial (reno-
vação das práticas mercantis com a ascensão da burguesia); c) política (abertura do movimento
expansionista culminando com a colonização de além-mar); d) econômica (acúmulo de riquezas
pela burguesia – movimentação de divisas – e pelas Coroas - usurpação de fontes naturais das
novas colônias); e) militar (necessidade de proteção para o crescimento das cidades, controle de
fronteiras entre os Reinos, desenvolvimento para a armada e provimento bélico aos exércitos
de dominação); f) religiosa (aversão aos santos domínios eclesiásticos romano-germânicos que
culminou com a Reforma Protestante, entre outros movimentos); e, g) científica (afinal, as gran-
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des navegações “comprovaram” que o mundo era “redondo”).
Tais fatos puseram o Homem no centro do debate e, com ele, a razão, capaz de mo-
dificar a natureza em vias de dar respostas aos novos acontecimentos, sobretudo ao progresso
científico que garantisse o melhor resultado possível das novas práticas (vejam-se as técnicas de
navegação, os meios de extração de recursos naturais, os meios de produção de bens e serviços,
etc.). Em síntese, os valores e verdades foram postos em discussão; o conflito e a dúvida assu-
miam como palavras de ordem.
As constatações permitem inúmeras linhas de análise que podem se espraiar pela:
a) filosofia do conhecimento (releitura das Hipotiposes Pirrônicas escrita por Sexto Empí-
rico entre os séculos II e III a.C. com a cediça linha voltada a refutação dos dogmas como
verdades incontestáveis, mas carentes de comprovação como propuseram, à luz das inova-
ções trazidas pelo Renascimento, o alemão Agrippa de Nettesheim, o português Francisco
Sanchez e o francês Michel de Montaigne); b) filosofia científica (como variável do ceticismo
moderno, a virada cartesiana contida no cogito ergo sum que prestigia o pensamento como
produção da razão; e, mais adiante, as inovações de Francis Bacon com a proposta da Grande
Instauração voltada a releitura da relação entre o homem e a natureza); e, c) pelo humanis-
mo (desde Erasmo de Rotterdã até a proposta de uma sociedade voltada ao comunitarismo
de Thomas More), dentre outros.
A preferência, no entanto, envereda pela análise de filosofia política com repercussão
na estrutura equilibrada de gestão de poder político do Estado ante as funções públicas fun-
damentais; e, nesta, pela repercussão iniciada com as disputas temporais sobre o poder que se
assenta na gestão dos domínios eclesiásticos e na influência sobre a monarquia e sobre o parla-
mento inglês. Em apertada síntese: a reforma religiosa e a tensão na leitura do poder político na
Inglaterra dos séculos XV ao XVIII3 que serviram de panorama fático-histórico para a formu-
lação das teorias de Thomas Hobbes e John Locke acerca da liberdade tomada em igualdade na
passagem do estado de natureza para o civil.
Há que se dizer que a simples menção à ruptura com as estruturas tradicionais e a
inversão do paradigma, por si só, já conclama aos atos revolucionários que servirão, desde já,
como fundo histórico para compreensão dos pensamentos de Hobbes e Locke, sendo certo que
a Revolução Gloriosa se apresenta como a manifestação de resgate de uma monarquia que se
reportasse aos interesses do Parlamento.
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A Inglaterra renascentista estava entregue a dinastia dos Tudors (1485/1603), cuja habi-
lidade em conservar o absolutismo chamava a atenção, essencialmente por equilibrar a relação
entre o parlamento e a burguesia, ou seja, entre o apoio político e o financiamento econômico.
3 Por coerência metodológica, passa-se à margem da influência e da virada conceitual advindas das construções teóricas de Nicolau Ma-
quiavel e de Jean Bodin quanto a gestão do poder político, desde a aquisição até o exercício.
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No campo religioso, no entanto, a harmonia se perdeu desde que Henrique VIII pro-
pôs a ruptura com a Igreja Católica e a subseqüente criação da Igreja da Inglaterra [Anglicana]
para satisfação de seus interesses pessoais, de sorte que em 1531 declarou-se protetor da Igreja
Inglesa, cujo ato foi ratificado pelo Parlamento em 1534.
Com a morte de Elisabeth I chegou ao fim a dinastia dos Tudors e se iniciou, com
Jaime I, a primeira monarquia dos Stuarts (1603), que foi marcada pela campanha para jus-
tificar o “direito divino dos reis” com justificação no texto bíblico que fundamentaria o ab-
solutismo transcendente aos súditos (enquanto homens subordinados). Esta teoria lhe foi
tão própria que se desdobrou em conflito com o Parlamento, seja porque lhe desmerecia a
autoridade política conquistada até então, seja em função da ingerência administrativa que
fez sangrar os cofres da coroa, o que exigiu a imposição de nova política tributária sem a
autorização da casa legislativa.
Carlos I sucedeu a seu pai, Jaime I, em 1626, aumentando as tensões entre a Monarquia
e o Parlamento, uma vez que também era defensor do “direito divino dos reis”. Dentre seus atos
destacam-se a dissolução do parlamento com a implementação de uma ditadura que assustou
até seu seus partidários, e o recrudescimento das reformas religiosas para que dessem maior
lastro a teoria do absolutismo garantido por Deus4.
Neste panorama de instabilidade política e de pouca habilidade de Carlos I, o Parla-
mento se engajou em promover a deposição do rei, o que o fez com a instauração da Guerra
Civil que teve em Oliver Cromwell seu principal líder militar. Em meados de 1649 a revolução
quedou-se vitoriosa e Carlos I foi decapitado, o que decretou a abolição da monarquia levando
a Inglaterra à condição de República (Commonwealth of England) tendo Cromwell como seu
Lorde Protetor (chefe de Estado).
Com a morte de Cromwell (1658), a sucessão de seu filho e o estado caótico em que se
encontrava a República (crise político-econômica), consentiu o Parlamento com a restauração
da monarquia – segunda dos Stuarts – que se deu com a coroação de Carlos II, em 1660; e,
com a sua morte, em 1685, Jaime II foi coroado rei, sendo certo que herdou um reino dividido
pelas disputas entre católicos e anglicanos, no campo religioso; e, entre conservadores e libe-
rais, no campo político.
A desconfiança religiosa (pairava sobre si a desconfiança dos anglicanos desde que se
converteu ao catolicismo, em 1668/1669) não foi acompanhada da política, haja vista que, no
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início de seu reinado, Jaime II contava com o apoio do Parlamento. No entanto, após a Rebelião
de Monmouth ocorrida logo após a sua nomeação, passou a desconfiar de seus súditos e a pra-
ticar a política do temor por seus “juízes sangrentos”, ao mesmo tempo que aumentou sua força
militar com a composição de um exército que contava com católicos nos mais elevados posto, o
4 “No século XVII (...) A burguesia já estava suficientemente fortalecida e poderia prescindir de governos fortes para solidificar seu domí-
nio sobre a nação. (...) todo o século XVII ficou marcado pelos constantes conflitos entre a autoridade real e a autoridade do Parlamento.
Esses conflitos assumiam aspectos religiosos, envolvendo protestantes contra católicos, mas, sobretudo, eram expressão de interesses
econômicos divergentes. (...)” (Martins, 2005, p. 5).
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que gerou a desconfiança do Parlamento.
Por volta de 1688 com o Parlamento em recesso, a política católica de Jaime II (Decla-
ração de Indulgência assentada na ordem de perdão dos dissidentes religiosos, especialmente
os católicos) e a gravidez de sua esposa em vias de dar à luz a um varão, inspiraram a liderança
política inglesa a buscar socorro na sucessão ao trono.
A linha sucessória levava à Holanda, onde residia Maria II – filha de Jaime II e protes-
tante por opção – casada com Guilherme d’Orange. Após alguns ajustes políticos costurados
pelo Parlamento inglês que esmoreceram a relutância de Guilherme, o exército holandês entrou
em Londres sob a chancela política que, em função da fuga de Jaime II para a França, declarou
o trono em vacância e a sucessão por sua filha em comunhão com seu esposo. Tinha lugar a
Revolução Gloriosa que “assinalou o triunfo do liberalismo político sobre o absolutismo e, com
a aprovação do Bill of Rights em 1689, assegurou a supremacia legal do Parlamento sobre a rea-
leza e instituiu na Inglaterra uma monarquia limitada” (Mello, 1991, p.82).
Diante de tal manobra, o Parlamento deixava claro que o poder real derivava do seu e,
também, que esta Casa política deveria ser respeitada em sua autonomia como forma de con-
servar-lhe a “liberdade”.
sobre o embate entre os bens civis e os religiosos; a conduta dos magistrados e dos líderes religio-
sos; da política e da religião; e o faz pela distinção entre a sociedade civil e a instituição religiosa.
Neste âmbito, defende que a sociedade civil tem o dever de cuidar das coisas materiais
(bens civis), garantindo a segurança e a proteção da propriedade, além de elaborar, seguir e
5 Nas entrelinhas, Locke pretendia ver revogado o Edito de Nantes assinado pela Coroa inglesa em 1685, como lembra J. R. Milton: “A
Epistola de Tolerantia [Carta acerca da Tolerância] foi escrita durante o inverno de 1685-86, quando Locke voltou para Amsterdã e pas-
sou a viver discretamente na casa de Egbert Veen. Locke estava muito preocupado com o problema da tolerância no contexto da política
inglesa, mas o impulso imediato foi provavelmente dado pela revogação do Edito de Nantes, em outubro 1685” (Milton, 1994, p. 16).
6 Com o avançar de seu texto, Locke assenta uma questão interessante: “se permitimos aos judeus terem propriedades e casas próprias,
por que não lhes permitir que tenham sinagogas?” (Locke, 1973, p. 32).
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aplicar a lei humana, pelos olhos atentos do magistrado; enquanto a instituição religiosa tem o
dever de cuidar das coisas do espírito (bens espirituais), resguardando seus dogmas e perpe-
tuando seus ritos, sempre nos limites da lei divina e por intermediação direta dos eclesiásticos.
Assentada a diferenciação entre a sociedade civil e a religiosa, passa a esmiuçar os
deveres de tolerância como meio de garantir o convívio harmônico e pacífico entre as pessoas; e
o faz discorrendo sobre a Igreja, os indivíduos, os membros da Igreja e os magistrados. Em con-
vergência, antepõe dois fenômenos: o compromisso ante o poder em si, e a missão ante os pares.
Pela primeira linha, para a Igreja, defende o poder de expulsar o seu membro, inclusive
com a excomunhão, impedindo, por conseguinte, que participe da liturgia, mas, nunca, aplicar-
-lhe penas físicas ou expropriações (Locke, 1973, p. 14); enquanto para os indivíduos, sustenta
que ninguém pode atacar outrem por motivo de fé, inclusive quanto aos bens pessoais que de-
vem ser protegidos pelas leis que regem a sociedade civil – este comando é tão verdadeiro que
leva as Igrejas à condição de indivíduo nesta relação (Locke, 1973, p. 16).
Pela segunda linha, para os membros da Igreja, ensina que o poder deve ser exercido
nos limites de seus domínios, de sorte que se deve conservar o respeito às pessoas e aos seus
bens civis, sem ou a prática de violência, pilhagem perseguição, e devem, ainda, praticar o ofí-
cio de aconselhar os seus seguidores no sentido da caridade e da benevolência (Locke, 1973, p.
16); quanto aos magistrados, reconhece que devem se abster de cuidar das almas já que esta ta-
refa se refere a cada um individualmente, orientado pela sua crença em dogmas sustentados por
certa religião, e assim deve ser considerada na sociedade civil, de modo que o magistrado deve
criar e aplicar leis contra os outros (terceiros) que atentem contra a vida e as demais propriedade
dos indivíduos, e nunca para impor regras sobre a religião alheia ou que obrigue alguém a se
submeter a dogmas impostos (Locke, 1973, p. 17).
Percebe-se, enfim, que Locke defende a liberdade religiosa como meio de resguardar o
indivíduo (cada um é responsável e suficientemente racional para escolher qual a melhor crença
para si7); além de proteger-lhe a propriedade (cada um tem o direito de adquirir coisas, cons-
tituindo propriedade, e o direito de defendê-las contra quem as desaproprie injustamente, cujo
limite da justiça seria a lei humana dissociada da divina8). Eis a grande base do pensamento po-
lítico de Locke que melhor será trabalhada nos Tratados: a relação entre liberdade e individuali-
dade que garanta, em sociedade civil, a propriedade em sentido amplo e em estado de igualdade.
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7 “(...) a liberdade facultada aos homens em assuntos que dizem respeito à vida futura: cada um pode fazer o que acredita agradar a Deus,
em cuja vontade se baseia a salvação dos homens. Porque se deve, antes de tudo, obediência a Deus, em seguida às leis (...)” (Locke,
1973, p. 27).
8 Dentre tantas passagens: “(...) as pessoas são maltratadas e, portanto, não se pode suportá-las. Suprima-se a injustiça, a discriminação
legal contra elas, modifiquem-se as leis, cancelem-se as penalidades a que são submetidas, e tudo se tornará tranquilo e seguro (...)”
(Locke, 1973, p. 31).
13
Malmesbury, em 1588, de sorte que, nascido em família de poucas posses e em relativa proximi-
dade do mar, fê-lo cultivar o medo como principal característica pessoal9: seja pela ameaça de
invasão externa pela temida armada espanhola, seja pela defesa da legitimidade do absolutismo
recrudescida por sua simpatia ao rei Carlos I, e, mais tarde, como preceptor de Carlos II10.
Autor de obras de manifesta importância política das quais se destacam Do Cidadão11
(1642) e o Leviatã (1651); Hobbes faleceu, em 1679, antes de ter notícia da Revolução Gloriosa,
ou seja, alheio a vitória liberal que reformulou a monarquia inglesa. Pontualmente, o Leviatã foi
escrito em quatro partes (do homem, do Estado, do Estado cristão e do reino das trevas) tenden-
tes a justificar o absolutismo advindo de um pacto social (que se afasta da tendência da época de
teorizar pelo senso teológico – o direito divino) pelo qual os homens transfeririam seus direitos
ao Estado (dado em sociedade civil) que exerceria o poder em vias de afastar o temor, imposto
pela guerra de todos contra todos, instaurado no estado de natureza.
Percebe-se que o núcleo central para compreensão da teoria hobbesiana se assenta
em sua concepção de homem que, diferente do que se tentou impor12, é civilizado e atemporal,
nunca selvagem ou moldado por seu tempo, ou seja, é o mesmo homem que vive em sociedade
e dado em qualquer época histórica que se possa analisar13. Em síntese, o homem não muda da
natureza para a sociedade14; afinal, o homem perquire seus interesses, sendo certo que o inte-
9 “(...) A mãe deu-o à luz prematuramente, devido ao terror que lhe causou a notícia da chegada da ‘Armada Invencível’, de modo que, em
sua Autobiografia, brincando, ele afirma que sua mãe, junto com ele, havia dado à luz como seu irmão gêmeo o medo. Trata-se, porém,
de uma observação que, para além da brincadeira, constitui como que uma marca de sua psicologia: a sua teorização do absolutismo tem
suas raízes, sobretudo, no terror pelas guerras que ensanguentaram a sua época” (Reale, 1990, p. 485).
10 O absolutismo aqui proposto não é aquele fortalecido à época e de forte apego tradicional baseado nas teorias de direito divino dos reis
amplamente defendida pelos teóricos da monarquia absolutista, senão no pacto social de transferência de direitos. Em verdade, o poder
absoluto resultaria de uma “transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome desse contrato que deve ser exercido, e
não para a realização da vontade pessoal do soberano” (Marcondes, 2004, p. 198).
11 A obra Do Cidadão, originariamente escrita em latim de que recebeu o título De Cive, foi traduzida ao inglês pela longa e conclusi-
va epígrafe: Philosophical Rudiments Concerning Government and Society, de onde se abstrai a origem dos conceitos das categorias
hobbesianas, bem como a formulação de sua teoria sobre o poder. Para a presente proposta, basta analisar o capítulo inaugural que versa
sobre a Liberdade, cujos limites bem são assentados pelo próprio Hobbes em seu prefácio: “(...) quais são os ditados da razão, que podem
com propriedade ser denominados leis de natureza; e tudo isso está contido naquela parte do livro que intitulo Liberdade. Estas bases
assim depostas, mostro adiante o que é o governo civil, e nele o poder supremo e suas diversas espécies; por que meios ele se constitui,
e que direitos os particulares, que pretendem constituir esse governo civil, necessariamente têm de transferir ao poder supremo, quer
este esteja num homem, quer numa assembléia de homens; porque, se não o fizerem, evidentemente se notará que não há governo civil,
mas permanecerão os direitos que todos têm a todas as coisas, isto é, os direitos de guerra (...)” (Hobbes, 1998, p. 16). Ademais, é nesta
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obra que aparecem as duas frases mais citadas de Hobbes: “o homem é lobo do homem” (Hobbes, Do Cidadão, op. cit., p. 3) e “a guerra
de todos contra todos” (Hobbes, 1998, p. 16) que será objeto de divagação em todo o capítulo XIII do Leviatã.
12 Como se lê, por exemplo, em Henry Sumner Maine: “(...) por outro lado, a teoria de Hobbes sobre o mesmo tema [formação da socie-
dade] foi propositadamente concebida para repudiar a realidade do direito natural como idealizado pelos Romanos e seus discípulos.
Estas duas teorias [estende a crítica a Locke], que dividiram a reflexão política inglesa por muito tempo favorecendo a discussão hostil,
apegavam-se ao senso de uma concepção fundamental sobre condição racial ser não-histórica e não-verificável. Seus autores divergiam
quanto as características do estado pré-social e sobre a natureza da ação anormal em que os homens se lançam para fora dela no sentido
da organização social que estamos acostumados; mas eles concordam que um grande abismo separava o homem primitivo daquele posto
em sociedade, e esta noção, não se pode duvidar, foi emprestada, consciente ou inconscientemente, dos Romanos” (Maine, 1861, p. 114).
13 “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha
sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muitos lugares onde atualmente se vive assim. (...) muitos lugares da América (...)”
(Hobbes, 1983, p. 76).
14 “(...) o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem
não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social. (...) não existe a história entendida como transformando os homens. Estes
não mudam. (...)” (Ribeiro, 1991, p. 54).
14
resse público e o privado são duas faces de uma mesma moeda15.
Ademais, perquirindo sua vinculação, essencialmente contratualista, aplicada a esta
posição sobre a essência do homem, não deixa dúvida sobre a igualdade que se instaura entre
os indivíduos no estado de natureza16, quer proveniente da força, quer derivada do espírito, de
sorte que vê claramente que os homens são iguais tanto no que concerne a compleição física
(ainda que substituída por meios advindos da razão), quanto na sabedoria (o conhecimento
sobre todas as coisas).
Assevere-se que, no primeiro caso, o uso da força corporal é fruto da essência humana,
pouco importando a compleição física em si, uma vez que “o mais fraco tem força suficiente
para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se en-
contrem ameaçados pelo mesmo perigo” (Hobbes, 1983, p. 74); em contraponto ao uso da força
corporal, o homem nasceria com a convicção de ser mais sábio (ainda que viesse a adquirir seu
conhecimento pela experiência comum) do que seu semelhante17.
A princípio, pode parecer que esta igualdade seria convergente no sentido de funda-
mentar a constituição da sociedade. Porém, não o é: para Hobbes, a natureza do homem baseada
na igualdade leva a discórdia, principalmente pela necessária atitude de auto-proteção, fincada
no sentimento de conservação18 do indivíduo, sendo certo que o filósofo destaca três causas para
esta discórdia: “Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (Hobbes,
1983, p. 75), e complementa:
Dessa premissa, abstrai que o sentimento inato do homem o lança na árdua tarefa de FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
15 A simplicidade desta assertiva foi acrescida por identificar o ponto nodal a que se apega Hannah Arendt para creditar a Hobbes a pa-
ternidade da única “teoria política segundo a qual o Estado não se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural,
seja contrato social – que determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação à coisas públicas, mas sim nos próprios
interesses individuais, de modo que o ‘interesse privado e o interesse público são a mesma coisa’.” (Arendt, 2007, p. 168).
16 “A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito” (Hobbes, 1983, p. 74).
17 “(...) a natureza dos homens é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloqüência ou
maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios. Pois vêem sua própria sabedoria bem de perto e a dos
outros homens à distância. Isso prova que os homens são iguais quanto a esse ponto e não que sejam desiguais” (Hobbes, 1983, p. 74).
18 O sentimento de conservação deriva da própria desconfiança do homem de que será subjugado pelo outro e desapossado, ou de seus
bens (perda da propriedade), ou de sua vida (corre o risco de ser assassinado ou mutilado). Assim, para manter a conservação de seus
bens (propriedade e vida) deveria se antecipar e, ele mesmo, subjugar aos outros: “Contra esta desconfiança de uns em relação aos
outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação. Quer dizer, pela força ou pela astúcia, subjugar todos os
homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande
para ameaçá-lo. Isso não é mais do que sua própria conservação exige, conforme é geralmente admitido” (Hobbes, 1983, p. 75).
15
aniquilar o outro para se defender19, o que o leva a afirmar que a natureza do homem só é capaz
de lançá-lo em disputa, “uma guerra que é de todos contra todos os homens. A guerra não con-
siste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade
de travar a batalha é suficientemente conhecida” (Hobbes, 1983, p. 75).
Percebendo a evidente desordem que recai sobre os homens no estado de natureza
como fruto da guerra de todos contra todos é que Hobbes reconhece que não existe sociedade
até que os homens se subsumam a necessidade de se impor limites mutuamente20, o que somen-
te seria possível pela criação de leis derivadas da razão humana e, isto, sob a chancela de um
Estado que exerça a coerção.
Importante frisar que sua definição de lei se espraia pela vinculação com o Direito, e,
deste, para com a liberdade21; assim, “o direito consiste na liberdade de fazer ou de omitir, ao
passo que a lei determina ou obriga a uma dessas duas coisas” (Hobbes, 1983, p. 78). Portanto,
com a determinação da necessidade de se formularem leis, sustenta Hobbes que duas seriam
objeto da própria razão humana22, cuja retroatividade lhes outorgaria a condição de “leis da
natureza”, quais sejam: a procura pela paz (primeira lei da natureza) e a defesa própria baseada
numa concordância com os outros que derivaria de uma convergência de vontades – e porque
não dizer necessidade – no sentido de respeito mútuo acerca da convivência pacífica (segunda
lei da natureza)23.
Neste sentido, os homens seriam instados a ceder, direta e mutuamente, seus direitos
ditos naturais, em prol da própria existência pacífica – eis a noção de contrato para Hobbes24.
Ademais, da necessidade percebida pelos homens de afastar o medo que deriva da guerra ins-
taurada no estado de natureza vem a necessidade de se instituir um contrato que vise a paz, cujo
objeto seria a cessão mútua de direitos, Hobbes afirma que para o cumprimento é importante
que surjam leis legítimas dotadas de poder absoluto e unipessoal capaz de coatar o renegado a
cumprir o contrato social:
19 Tem-se, aqui, o ponto nevrálgico da teoria contratualista de Hobbes, em que se distancia do apego aristotélico do zoon politikon pelo
que os homens tenderiam naturalmente a constituição da polis como único meio de satisfazer suas necessidades racionais (é na política
– arte de bem viver na pólis – que o homem se realiza), isto é, o homem se associa a sociedade civil por ser um sentimento que já nasce
consigo; e, também, se afasta de Locke por conceber um homem anti-social que precisa da sociedade para se proteger e, não, para ma-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
16
resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência
do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas
paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança
e as coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força
para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis da natureza (que cada
um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança),
se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade,
como proteção contra todos os outros” (Hobbes, 1983, p. 128).
Leitor: (...) Tens aqui o início e o fim de um discurso que diz respeito ao governo; o
destino imposto pela fortuna às páginas que deveriam compor a parte central, mais
numerosas que todo o resto, não merece ser-te relatado. Espero que estas, as restantes,
sejam suficientes para consolidar o trono de nosso grande restaurador, o atual rei
Guilherme; para confirmar seu título no consentimento do povo, o único de todos os
governos legítimos, e o qual ele possui mais plena e claramente que qualquer príncipe
da Cristandade: e para justificar perante o mundo o povo da Inglaterra, cujo amor por
seus direitos justos e naturais e determinação em conservá-los salvou a Nação, quando
esta se encontrava na iminência da escravidão e da ruína (Locke, 2005, p. 197).
O prefácio de uma obra tem muito a dizer de seu espírito; e, neste que inaugura os Dois
Tratados sobre o Governo25, Locke deixa a dica de todo o teor e o desvelar de seu argumento:
para sustentar a legitimidade da sucessão por vias transversas ao trono da Inglaterra, garantir
a defesa dos interesses do parlamento liberal e apaziguar as intempéries religiosas, não restava
outra saída que empreender um discurso baseado na conservação da liberdade individual quan-
to à aquisição de bens indispensáveis a existência. Eis a gênese da defesa de seu contratualismo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
25 Conjuntamente com o Ensaio acerca do Entendimento Humano avocam a condição de suas obras de referência científica, uma vez que
versam sobre epistemologia (Ensaio) e sobre filosofia política (Tratados).
26 Catedrático por vocação (professor de Oxford por 32 anos – 1652 a 1684 – junto à Christ Church); médico por necessidade (graduou-se
em medicina para fugir da ordenação como padre); intelectual e literato por reconhecimento.
17
gico junto ao Conde de Shaftesbury27.
Diante da agitação política que pairou sobre a Inglaterra do século XVII e a nota-
da simpatia pelos interesses da burguesia que moldaram o pensamento liberal de Locke, não
restaria outro caminho que a perseguição política que o levou, derradeiramente, à Holanda em
idos de 1683, cujo regresso somente foi possível com a coroação de Guilherme d’Orange como
rei da Inglaterra (conjuntamente com sua esposa, Maria II).
Com o regresso vieram a Carta acerca da Tolerância (comentada linhas acima) e
os Dois Tratados sobre o Governo Civil (com divergência, datado de 1690). Este dividido em
duas partes bem distintas, em que o Primeiro Tratado preocupa-se em refutar o patriarcalismo
defendido principalmente por Robert Filmer em o Patriarca28; enquanto o Segundo Tratado se
preocupa em apresentar “a tese de que nem a tradição nem a força, mas apenas o consentimento
expresso dos governados é a única fonte do poder político legítimo” (Mello, 1991, p. 84).
Percebe-se que o homem natural (aquele analisado no estado de natureza) lockeano é
diametralmente oposto ao hobbesiano, haja vista que não padece com a conduta animal de ani-
quilamento ao semelhante; mas, ao contrário, vive em perfeito estado de harmonia amparado no
respeito ao poder e à jurisdição recíprocos em que perdura a evidente liberdade e igualdade29.
Assim, o estado de guerra30 em Locke é exceção ao estado de natureza – e, não, um estado
contingencial como o era em Hobbes –, sendo certo que, se a natureza nos congraça a paz, a
boa vontade, a assistência mútua e a preservação; a guerra inverte tais valores e faz aflorar a
inimizade, a malignidade, a violência e a destruição mútua.
Ademais, pontualmente por força do risco desta excepcionalidade de se instaurar o
estado de guerra no de natureza é que os homens decidiriam passar à sociedade civil criando
mecanismos de garantia via aposição de leis positivas que garantissem principalmente a conser-
vação da propriedade e a delegação do poder comum ao magistrado para que pudessem conser-
var a paz social nos estreitos limites das necessidades. Pois bem, como se dá esta passagem do
estado de natureza à sociedade civil?
No estado de natureza todos os homens seriam livres e iguais, conservando o direito
27 A relação com o Lorde Shaftesbury (um dos homens mais ricos e influentes da Inglaterra de Locke) iniciou-se casuisticamente, haja
vista que, em 1666, na condição de médico, cuidou de sua hidátide, de onde nasceu uma relação de amizade que transbordou da medici-
na para os diálogos políticos. Locke ganhou um patrono e Shaftesbury um confidente. Há indícios de que o Segundo Tratado floresceu
desta relação e que ganhou forma para satisfazer ao conde (Ver Laslett, 2005, p. 37), sendo certo que o Locke filósofo nasceu da relação
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
empírica e direta com os bastidores da política tendo Saftesbury como protagonista e, não, no mundo acadêmico (Laslett, 2005, p. 38).
28 Em síntese: vê no poder, hereditário e permanente, transmitido às linhas sucessórias do povo hebreu desde os descendentes de Adão
(supostamente o primeiro pai e o primeiro rei), uma legitimação divina, pela qual todos os demais são súditos sem liberdade por sujei-
ção. Inicia a obra afirmando: “A escravidão é uma condição humana tão vil e deplorável, tão diametralmente oposta ao temperamento
generoso e à coragem de nossa Nação, que é difícil conceber que um inglês, muito menos um fidalgo, tomasse a sua defesa. E, na verda-
de, eu consideraria o Patriarca, do sr. Robert Filmer, bem como qualquer outro tratado que pretendesse persuadir todos os homens de
que eles são escravos” (Locke, 2005, p. 203).
29 A mera definição de estado de natureza permite esta certeza: “(...) é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de
suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade
de qualquer outro homem. (...) Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais
que outro qualquer (...)” (Locke, 2005, p. 382).
30 “é um estado de inimizade e destruição; portanto, aquele que declara, por palavra ou ação, um desígnio firme e sereno, e não apaixo-
nado ou intempestivo, contra a vida de outrem, coloca-se em estado de guerra com aquele contra quem declarou tal intenção e, assim,
expõe sua própria vida ao poder dos outros, para ser tirada por aquele ou por qualquer um que a ele se junte em sua defesa ou adira a
seu embate. Pois é razoável e justo que eu tenha o direito de destruir aquilo que me ameaça de destruição (...)” (Locke, 2005, p. 395).
18
natural à vida, à saúde, à liberdade e às posses, que constituem o núcleo básico da proprieda-
de, sendo certo que se se tem o direito natural individual, nascem dois deveres: um pessoal,
respeitar o direito natural alheio; e, outro coletivo, conservar e cuidar para que outros também
observem os direitos naturais.
Falar de propriedade no pensamento lockeano requer o dever de distingui-la do uso
ordinário, principalmente pela importância fundante de todo o sistema, como destaca Richard
Ashcraft (1994, p. 235):
Ademais, em Locke, a propriedade assume dois tratamentos: um, dito amplo, repousa
nos bens naturais de fácil e universal percepção (direito à vida, liberdade, saúde e posses); e ou-
tro, dito restrito, que versa sobre um direito natural nascido sobre bens móveis e imóveis sempre
que o homem o modifique ou se relacione com o fruto de seu trabalho.
Neste segundo, abstraem-se dois traços marcantes: a) é um direito natural, em que
Locke, diferentemente de Hobbes, reconhecia a propriedade como pré-existente a sociedade ci-
vil, isto é, presente no estado de natureza (p. ex., o homem possuía a sua vida, saúde, liberdade e
trabalho); e, b) o trabalho vem como fundamento originário da propriedade, ou seja, “o trabalho
de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que
ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-se a ele com o seu tra-
balho e junta-lhe algo que é seu, transformando-se em sua propriedade” (Locke, 2005, p. 409).
Assentadas as bases da propriedade lockeana como pré-existente a sociedade civil e,
portanto, de preservação como direito natural, passa a enfrentar a questão dos direitos e deveres
individuais, de sorte que a violação ao dever individual gera o direito, a um só tempo, próprio e
coletivo, de punir o infrator na proporção de sua ofensa, como indicado pela razão e na medida
da retribuição (manifestação do poder executivo da lei da natureza). Assim é que, concebendo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
que o direito de punição exige a retribuição proporcional a lesão, reconhece-se, também, uma
variável a esta medida que nasce da injúria e exige uma reparação proporcional ao ato.
Ocorre que a punição pessoal ou coletiva advinda de seus pares tende a ser parcial e
desproporcional como intuída pela vingança; ao mesmo tempo em que se concebe que, consi-
derando a igualdade entre todos, aquele que pune pode ser o ofensor, tal qual aquele que ofende
pode ser, em outra ocasião, executor da medida.
Tal inconveniência exige um remédio que deriva do consentimento dos homens, livre
e incontroversamente, em delegarem o poder de punir a terceiro (idéia de corpo único) que o
19
exercerá a título coletivo e em interesse público (magistrado). Este consentimento31 pressupõe a
passagem da liberdade natural para a liberdade em sociedade32 que exige a regulamentação das
leis naturais para que sejam postas nos exatos limites dos anseios daquele grupo social em vias
de resguardar-lhes a propriedade contra outrem.
Assim, a comunidade constituída passa a ser considerada em sua unidade (corpo úni-
co), cujo exercício da força se reporta a vontade e a determinação da maioria. Este pacto coletivo
que institui a sociedade civil33 confere-lhe o poder legislativo e transfere-lhe o poder executivo.
31 O consentimento em Locke (tema central de sua teoria contratual): “sendo todos os homens (...) naturalmente livres, iguais e indepen-
dentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A
única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concor-
dando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os
outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte” (Locke, 2005, p. 468).
32 Duas faces de uma mesma Liberdade: a natural (não estar sujeito a nenhum poder superior sobre a Terra, seja de homens ou de leis po-
sitivas, senão apenas das leis naturais) e do homem em sociedade (não estar sujeito a nenhum poder que não seja o legislativo consentido
para a formação da sociedade civil, de onde se está livre de qualquer vontade ou lei que não seja expedida por tal poder).
33 Sociedade política ou sociedade civil indica a renúncia ao poder executivo da natureza, em comunhão com a reunião consensual de
pessoas para formar um corpo único sob um só governo – povo – (Locke, 2005, p. 460), em vias de proteger a propriedade (Locke, 2005,
p. 456) combinada com a criação de leis gerais e iguais que fixem as condutas daquela sociedade e pela submissão a uma judicatura hábil
em desvelar os conflitos nos limites da lei (Locke, 2005, p. 458/459).
34 “(...) Em Hobbes, os homens firmam entre si um pacto de submissão pelo qual, visando a preservação de suas vidas, transferem a um
terceiro (homem ou assembléia) a força coercitiva da comunidade, trocando voluntariamente sua liberdade pela segurança do Estado-
-Leviatã” (Mello, 1991, p. 86).
20
O homem lockeano é bom em sua essência, uma vez que busca a paz, a harmonia e a
conservação da propriedade do que lhe é comum (vida, saúde, liberdade, trabalho, etc.) e do que
lhe é legitimamente passível de aquisição (as coisas modificadas pelo trabalho próprio), sendo
certo que o estado de guerra constitui exceção ao estado de natureza e ganha corpo quando
alguém inadvertidamente atenta contra a propriedade alheia (desde o atentado contra a vida
até a desapropriação das coisas diminutas). Reconhecendo que todos têm o direito natural de
adquirir e de defender tal propriedade é que se percebe a igualdade.
Para perpetuar e expandir as benesses construídas sobre os direitos naturais, os ho-
mens concordam em trocar a liberdade ampla e irrestrita, bem como o direito pessoal de pro-
teger diretamente a sua propriedade, pela garantia da lei, a proteção do magistrado e a força do
corpo único. Daí porque se diz que a natureza deste pacto social é de consentimento35.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O texto que se encerra foi dividido em quatro partes que convergiram para uma visão
geral sobre as teorias de Thomas Hobbes e John Locke acerca do pacto social para passagem do
estado de natureza para a sociedade civil tendo o homem como centro do debate e a liberdade e
a igualdade como filtros de análise.
O início foi dedicado ao contexto histórico da Inglaterra dos séculos XV ao XVII (dos
Tudors à imposição liberal sobre a casa dos Stuarts, passando pela Guerra Civil e pela Revolu-
ção Gloriosa) em que se abordou a crise político-religiosa instaurada na relação social entre a
monarquia e o parlamento que, indubitavelmente, teve influência nos pensamentos de Hobbes
(o medo trazido pelas guerras sangrentas, em especial o perigo de invasão pela Armada Espa-
nhola) e de Locke (necessidade de se frear a política católica de enfraquecimento dos valores
anglicanos – Carta acerca da Tolerância – e de garantias aos interesses liberais do Parlamento
em detrimento do absolutismo de direito divino sustentado pela coroa – Dois Tratados sobre o
Governo Civil).
Firmadas as bases históricas, adentrou-se ao pensamento de Hobbes com fundamento
em sua obra de vulto: o Leviatã. O sentimento inato do homem de perquirir o aniquilamento
dos outros (o homem é lobo do homem) que leva o estado de natureza a uma perpétua guerra
de todos contra todos, conclama o indivíduo ao uso da razão pela qual conclui que somente a
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
35 “Em Locke, o contrato social é um pacto de consentimento em que os homens concordam livremente em formar a sociedade civil para
preservar e consolidar ainda mais os direitos que possuíam originalmente no estado de natureza. No estado civil os direitos naturais
inalienáveis do ser humano à vida, à liberdade e aos bens estão melhor protegidos sob o amparo da lei, do árbitro e da força comum de
um corpo político unitário” (Mello, 1991, p. 86).
21
vida pelo Estado por dever de cumprimento das leis e dos deveres.
Do pensamento hobbesiano vem o lockeano. Locke, no Segundo Tratado sobre o Go-
verno Civil, vê um estado de natureza diferente do de Hobbes, sendo certo que o estado de
guerra é exceção, haja vista que os indivíduos viveriam em perfeita paz e harmonia, de forma
que os direitos naturais evidentes (vida, liberdade, saúde e trabalho) estariam preservados e
bem distribuídos. Assim, a guerra somente ocorreria quando alguém, inadvertidamente, aten-
tasse contra a propriedade alheia invertendo os valores de igualdade, mas admitindo o direito
de defesa para garantia das posses; e, como esta defesa individual carece de bases sólidas (seja
pela falta de força necessária, seja pelo sentimento de vingança que macula a presteza do direito
esvaziando-lhe a finalidade), haveria um pacto consensual para transferência deste direito de
punir à totalidade dos membros da comunidade que o exerceria coletivamente (idéia de corpo
único) resguardando, em última análise, a propriedade pelas vias coletivas. Eis a justificativa
para a formação da sociedade civil: aumentar as garantias para o exercício dos direitos naturais
sobre a propriedade individual para todos, em tom de igualdade.
A síntese das teorias permitiu a convergência para determinação da natureza dos pac-
tos sociais pela óptica da igualdade, o que se fez tomando o indivíduo (o homem como ser único
da espécie) como cerne da questão, isto é, como a igualdade orienta a passagem do indivíduo do
estado de natureza para a sociedade civil. Em tom concreto, para Hobbes trata-se de um pacto
de submissão; enquanto que para Locke seria um pacto de consentimento.
As últimas palavras impõem o dever de retorno à epígrafe para renovar a intenção da
presente proposta que não foi outra, senão a de garantir o debate vivo sobre a igualdade no medo e
na propriedade como extratos das teorias de Hobbes e Locke, mormente pela contemporaneidade
dos temas e as inusitadas soluções que se demonstram lógicas até a atualidade.
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______. Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3 ed. São
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22
LASLETT, Peter. Locke: Dois Tratados sobre o Governo. In: LOCKE, John. Dois Tratados
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LOCKE, John. Carta acerca da Tolerância. In: Locke - Os Pensadores [col.].Trad. de Anoar
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_______. Dois Tratados Sobre o Governo. Trad. de Julio Fischer. São Paulo: Martins
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MELLO, Leonel Itaussu Almeida. John Locke e o individualismo liberal. In: WEFFORT,
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MILTON, J. R. Locke’s Life and Times. In: The Cambridge Companion to Locke.
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RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco C. [org.].
Os Clássicos da Política. vol 1. 3 ed. São Paulo: Editora ática, 1991, pp. 51-78.
ABSTRACT
Since the fifteenth century the debate between dogma and reason has
intensified, in order to strengthen democratic theories to the detriment
of the absolutists justified in divine law, shifting man to the center of
the debate. Freedom and equality have become the supreme values to
be defended in society. The propositions of Hobbes and Locke mark the
discourse of guarantees of the individual in civil society with emphasis
23
on a social pact the submission by necessity of expunging the fear of the
state of war, or by consent for protection in the acquisition of goods to
satisfy the needs.
Keywords: Man. Equality. Pact. Guarantees.
24
AMATYA SEN SOBRE A GÊNESE, O DESENVOLVIMENTO E AS
CARACTERÍSTICAS DAS TEORIAS DE JUSTIÇA FOCADAS EM ARRANJOS
RESUMO
Este artigo apresenta de forma perspectiva e sistemática a categoria Teo-
ria de Justiça Focadas em Arranjos proposta pelo economista Amartya
Sen. A sua estrutura busca favorecer a compreensão do desenvolvimen-
to do conceito. Os três primeiros tópicos delimitam o enfoque pelo qual
o debate sobre o conceito de justiça deve ser compreendido e ressalta
elementos relevantes na construção da categoria Teoria de Justiça Fo-
cadas em Arranjos, como a discussão pública racional e a influência
recebida do Iluminismo. O quarto e o quinto tópico dizem respeito à ca-
racterização da tradição contratualista e da perspectiva institucionalista
transcendental, que funcionam como fundamentos e condicionantes das
Teorias de Justiça Focadas em Arranjos. O sexto e o sétimo tópico sin-
tetizam o próprio conceito de Teorias de Justiça Focadas em Arranjos
e suas características. Como conclusão, o texto apresenta uma série de
considerações que pode ser tomada como ponto de partida para novos
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Doutorando em Direito pela UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Graduado em Direito pela FADISA. Pesquisador do grupo de
pesquisa Fundamentos e Dimensões dos Direitos Humanos (IMED). Membro do grupo de pesquisa NECODI – Núcleo de Estudos Co-
nhecer Direito (IMED/UFSC). Membro do grupo de pesquisa Centro de Estudos Jurídico-Econômicos e de Gestão do Desenvolvimento
(UFSC). Bolsista CNPq. danchristiano@gmail.com.
2 Doutor em Direito (Filosofia do Direito e da Política) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito (Institui-
ções Jurídico-Políticas) pela UFSC. Realizou Estágios de Pós-Doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNI-
SINOS) e em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação
em Direito (PPG Direito) da Faculdade Meridional (IMED/RS). Professor Titular de Teoria do Processo do Departamento de Direito e
Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Direito da UFSC, de 1991 a 2016. Coordenador do Mestrado Profissional em Di-
reito em Direito da UFSC, de 2015 a 2016. Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI)
e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Pesquisador
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação Meridional. Presidente da Comissão de
Educação Jurídica da OAB/SC. Publicou diversos livros e uma centena de artigos em coletâneas e revistas especializadas, em especial
sobre Ensino e Pesquisa em Direito, Direitos Humanos e Teoria do Processo. horaciowr@gmail.com.
25
estudos, indicando os flancos que Amartya Sen aparentemente deixou
abertos à críticas e potenciais de desenvolvimento dessa proposta.
Palavras-chave: Amartya Sen. Teorias de Justiça Focadas em Arran-
jos. Teoria do Direito.
1 INTRODUÇÃO
26
rentemente deixou abertos à críticas e potenciais de desenvolvimento dessa proposta.
Amartya Sen inicia o seu livro A Ideia de Justiça chamando a atenção para a impor-
tância das emoções estimuladas por circunstâncias percebidas como injustas. Para ele, são essas
percepções de injustiças que estimulam as reflexões sobre a justiça avançarem de um plano
eminentemente teórico para um plano de concretizações. É esse o tipo de debate que interessa à
Sen: reflexões sobre a justiça com fins à formulação de soluções para problemas práticos. Toda-
via, explica o autor, essas emoções precisam ser assimiladas através de uma ponderação racio-
nal, pois o senso de injustiça “demanda um exame crítico, e deve haver um exame cuidadoso da
validade de uma conclusão baseada principalmente em sinais” (SEN, 2011, p. 8).
Não se trata, porém, de excluir as impressões de caráter emocional das avaliações
racionais sobre a justiça, como afirmam alguns, e nem de afastar as emoções da argumentação
racional, como dizem outros3. Para Sen (2011, p. 18), não é “plausível considerar as emoções, a
psicologia ou os instintos como fontes independentes de valoração, sem uma avaliação arrazoa-
da. Contudo, os impulsos e as atitudes mentais continuam sendo importantes, visto que temos
boas razões para levá-los em conta na nossa avaliação da justiça e da injustiça no mundo”.
Por tais motivos, Amartya Sen conclui ser imprescindível que qualquer debate sobre
a ideia de justiça, para ser relevante, deve começar por um caminho já sedimentado por John
Rawls, para quem a interpretação da justiça estaria necessariamente vinculada com o uso da
razão pública, ou, mais precisamente, uma “estrutura pública de pensamento” que proporcione
“uma noção de acordo nos juízos entre agentes razoáveis”4.
Como Amartya Sem (2011, p. 42) observa, “ainda que a justiça social tenha sido discutida
por séculos, a disciplina recebeu um impulso especialmente forte durante o Iluminismo europeu
nos séculos XVIII e XIX, encorajado pelo clima político de mudança e também pela transformação
social e econômica em curso na Europa e nos Estados Unidos”. Por conseguinte, o apelo ao uso da
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
razão pública, pelo qual seria possível construir acordos entre os indivíduos para o enfrentamento
das questões ligadas à justiça, leva Amartya Sen delimitar o marco temporal inicial das discussões
sobre a justiça que interessam à sua análise. Essas discussões, como percebido, teriam início apenas
3 SEN, 2011, p. 39. A esse respeito, é também interessante notar a resposta que o economista indiano dá em seu livro Desenvolvimento
como liberdade, de 2010, a Carl Manger e Friedrich Hayek sobre a conclusão que eles chegam a respeito do caráter impremeditado das
mudanças e realizações sociais. Ver SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2010. p. 324-332.
4 SEN, Amartya. O que queremos de uma teoria da justiça? Trad. Mário Nogueira de Oliveira. FUNDAMENTO – Revista de Pesquisa
em Filosofia, Ouro Preto, n. 5, jul–dez – 2012, p. 23.
27
no “período de descontentamento intelectual durante o Iluminismo europeu” (SEN, 2011, p. 14).
De fato, esse recorte parece ser justificado. As novas exigências decorrentes dos parâ-
metros de racionalidade introduzidos pelas ciências naturais daquele momento histórico logo
alcançaram as demais áreas do conhecimento. O pensamento e a cultura daquela época produ-
ziram alterações em toda a dinâmica social5. O que se teve, em síntese, “não foi apenas a pro-
fanação da cultura ocidental, mas, sobretudo, o desenvolvimento das sociedades modernas”6.
Por um lado, “o sucesso das ciências experimentais alimentou a ideia de que o mesmo método
leva a um progresso concreto em todas as áreas da cultura e da vida”7. Por outro lado, diversas
instituições sociais perderam seus respectivos pilares de sustentação. Algumas simplesmente
deixaram de existir. Outras, por ainda serem necessárias, demandavam por explicações que as
justificassem de acordo com o pensamento racionalista da época.
Nesse contexto, isto é, no caso das instituições sociais que demandavam uma susten-
tação racional que justificasse sua existência após o abandono das concepções pré-modernas,
encontrava-se a questão da legitimidade da autoridade dos governantes e dos princípios morais
que regiam a vida em sociedade. Immanuel Kant, um dos mais conhecidos representantes do
Iluminismo, definiu esse momento de um modo particularmente útil para compreender a essa
questão. Para ele, o Iluminismo significava “a saída do homem de sua menoridade”, isto é, da
“incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (KANT,
1985, p. 100). Era preciso criar hipóteses explicativas para a vida em sociedade mais adequadas,
posto ser inviável sustentá-la na vontade divina e ou na mera submissão à força. Era preciso
criar hipóteses explicativas para a legitimação dos governos e do dever de obediência às leis a
partir da afirmação da própria razão dos indivíduos.
recíprocas, responsáveis pela viabilização dessa nova forma de vida, materializavam-se na for-
ma de leis. Para que essas leis fossem observadas por todos e para que a proteção dos indiví-
duos em face dos seus iguais e dos estrangeiros fosse efetiva, completa Hobbes, era necessária
5 BRISTOW, William. Enlightenment. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível
em <http://plato.stanford.edu/archives/fall2010/entries/enlightenment/>. Acessado em 16 de junho de 2015..
6 HABERMAS, Jürgen. (1985) O Discurso Filosófico da Modernidade: doze lições. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São
Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 4.
7 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Trad. de Carmen C, Varriale et ai.; coord.
trad. João Ferreira; rev. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11a ed., 1998, p. 606.
28
a criação de um poder que lhes fosse comum e superior. Era preciso que todos os indivíduos
designassem um homem ou uma assembleia de homens como seus representantes e a eles trans-
ferissem o direito que cada um tem de governar a si próprio. É da união da multidão na figura
de uma só pessoa ou assembleia que veio a ideia do grande Leviatã, ou o Deus mortal, e é nele
que consiste a própria ideia de Estado (HOBBES, 1651, p. 87-8).
Fica claro que a consistência racional da resposta hobbesiana repousa na pressuposição
de um acordo entre os indivíduos que buscam satisfazer seus próprios interesses. É justamente
esse acordo pressuposto que possibilita a aceitabilidade das noções de convergência de vontades
dos indivíduos em busca da autoconservação e da promoção do próprio bem-estar e a outorga do
poder ao soberano serem explicadas a partir de critérios adequados ao espírito daquele período.
Não foi por outro motivo que Hobbes (1651, p. 88.) definiu o Estado como “uma pessoa
de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída
por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira
que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum”. Essa ideia de acordo entre
os indivíduos em busca de um bem comum foi largamente utilizada e dela se originou a teoria
que hoje se conhece como Teoria do Contrato Social.
modernos imediatos (SEN, 2011, p. 17). Cada um a seu modo ofereceu versões em alguma me-
dida diferenciadas. Todavia, a presença de alguns elementos nucleares nessas diversas aborda-
gens justifica uma identidade contratualista comum. Os principais são a caracterização de uma
situação inicial e a caracterização das partes do contrato (CUDD, 2013).
A situação inicial, também chamada de estado de natureza, posição original ou po-
8 CUDD, Ann. Contractarianism. (2013) The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Winter 2013 Edition. Edward N. Zalta (ed.). Dis-
ponível em: <http://plato.stanford.edu/archives/win2013/entries/contractarianism/>. Acesso em: 1 abr. 2014.
29
sição de negociação inicial, é a situação na qual se encontram as partes do contrato antes de
firmá-lo ou ao não aceitar os termos negociados. É uma situação que apresenta um caráter de
hostilidade e sociabilidade que varia de acordo com a ideia que o respectivo teórico faz de uma
sociedade sem regras morais e sem uma autoridade central.
A caracterização das partes do contrato diz respeito à racionalidade e à motivação que
os contratantes têm para chegar a um acordo em relação aos termos do contrato. O fundamental
nas teorias contratualistas é a escassez ou a motivação para a competição sem regras entre os
indivíduos na situação inicial e a possibilidade de ganhos a partir da interação social e da coo-
peração facilitada pelo contrato social.
Como observa Amartya Sen (2011, p. 36), a ideia de um contrato social hipoteticamen-
te escolhido foi uma alternativa explicativa particularmente adequada ao “caos que de outra
forma caracterizaria uma sociedade”. Todavia, o seu desenvolvimento não ficou confinado à
perspectiva explicativa inicial, isto é, à explicação racionalmente adequada sobre a vida em so-
ciedade, os governos, suas leis e seus preceitos morais. Como os aspectos mais discutidos pelos
contratualistas diziam respeito à identificação das instituições mais elementares que influencia-
vam a caracterização de uma sociedade, logo se abriu espaço para a especulação a respeito das
instituições necessárias para sociedades ideais.
A explicação da vida em sociedade a partir do modelo contratualista, na verdade, já
vinha acompanhada desde o início em maior ou menor medida dos elementos que o respectivo
teórico identificava como termos contratuais mais adequados à concepção de uma sociedade
justa e ao mesmo tempo desejável por todas as partes contratantes. A diferença entre o contrato
enquanto hipótese explicativa e enquanto idealização é, por conseguinte, muito tênue. Essa ati-
tude é verificada, inclusive, desde Hobbes. Obviamente, a pretensão de alcançar uma sociedade
ideal tem suas raízes em períodos mais remotos, mas no contratualismo ela aparece como uma
possibilidade de escolha racional a partir da identificação dos princípios que orientariam a cria-
ção e o funcionamento das instituições dessa sociedade.
Como resultado desse esforço se teve “o desenvolvimento de teorias da justiça que
enfocavam a identificação transcendental das instituições ideais” (SEN, 2011, p. 36). Em outras
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
palavras, o que se também tentava era buscar a identificação das leis e arranjos sociais que, trans-
cendentalmente, produziam a sociedade justa. A essa postura das teorias derivadas do contra-
tualismo o economista indiano Amartya Sen deu o nome de Institucionalismo Transcendental.
30
dental como uma linha de argumentação racional sobre a justiça social derivada das teorias
contratualistas que surgiram no período do Esclarecimento, impulsionadas pelo clima político
de mudanças sociais e econômicas em curso na Europa e nos Estados Unidos. Todavia, é preci-
so avançar para a apreciação das suas duas características distintivas herdadas diretamente da
tradição contratualista e a influência desse tipo de abordagem na criação da categoria Teorias
de Justiça Focadas em Arranjos.
A primeira característica é que o Institucionalismo Transcendental “concentra a sua
atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e
injustiça. Ela apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendidas
com relação à justiça; logo, seu foco não é a comparação entre sociedades viáveis, todas não
podendo alcançar os ideais de perfeição”. Assim, a sua linha de investigação se dá no plano da
natureza do justo e não no da identificação de critérios que possibilitem a afirmação sobre que
uma alternativa é menos injusta que outra (SEN, 2011, p. 36).
A segunda característica corresponde ao fato de o Institucionalismo Transcendental se
preocupar principalmente em acertar as instituições justas. Com efeito, o termo Instituciona-
lismo Transcendental decorre justamente da vinculação que as teorias de justiça pertencentes a
essa tradição fazem entre a ideia de realização da justiça e o caráter de justiça das instituições.
Para Amartya Sem (2011, p. 40), não haveria nessas teorias problematização ou reflexão poste-
rior a respeito dos tipos reais de sociedade que poderiam emergir das instituições idealizadas.
Alguns autores simplesmente estabeleceriam que o limite de se pensar a justiça se encontra no
nível institucional, não importando o que desse arranjo possa surgir.
Além disso, é necessário perceber uma consideração que o economista indiano fez a
respeito da abordagem institucionalista transcendental que aponta a possibilidade de teorias
de justiça apresentarem características transcendentais sem estar acompanhadas do foco em
instituições. Nela, explica-se o motivo pelo qual ele escolheu o termo arranjos, e não institui-
ções, para designar o conceito específico de teorias de justiça aqui estudado. Nas palavras de
Amartya Sen (2011, p. 68),
ter uma teoria transcendental que focalize as realizações sociais em vez das instituições
(a procura do mundo utilitarista perfeito, povoado de pessoas maravilhosamente felizes,
seria um exemplo simples de busca da “transcendência baseada em realizações”). Ou
podemos enfocar avaliações institucionais usando perspectivas comparativas em lugar
de empreender uma busca transcendental do pacote perfeito de instituições sociais
(a preferência por um papel maior — ou mesmo menor — para o livre mercado seria
um exemplo de institucionalismo comparativo).
31
análises “dos imperativos morais e políticos para o comportamento socialmente apropriado” e,
por tal motivo, elas “podem ser vistas, de forma mais ampla, como abordagens da justiça foca-
das em arranjos, em que arranjo se refere tanto ao comportamento certo como às instituições
certas” (SEN, 2011, p. 42-43). De qualquer modo, tal arranjo seria objetivado também pela es-
colha racional de um ou mais princípios orientadores a partir de um contrato social hipotético.
das como pressupostas de uma maneira perfeitamente adequada ao que se espera como resultado
das instituições (SEN, 2011, p. 36). Uma vez escolhidos os princípios que orientariam a criação e o
funcionamento da instituição, a tarefa de se pensar a justiça se conclui. Por conseguinte, também
tomariam como certo o caráter justo das sociedades que podem surgir (SEN, 2011, p. 37).
Sobre a segunda questão, isto é, sobre a identificação das próprias teorias contempo-
râneas de justiça que Amartya Sen tem em mente quando fala em Teorias de Justiça Focadas
em Arranjos, um dado preliminar precisa ser considerado. De certa forma, não parece haver
muito debate sobre quais teóricos contemporâneos se filiam à tradição contratualista. É comum
32
identificar as propostas de Robert Nozick, John Rawls, David Gauthier, Jan Narveson, James
Buchanan e Thomas Scanlon, por exemplo, como propostas contratualistas (CUDD, 2013). To-
davia, Amartya Sen não parece suficientemente seguro em classificar todos os contratualistas
contemporâneos como filiados às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos.
Ele apresenta uma modesta lista de nomes que, além de John Rawls, se completa ape-
nas com “Ronald Dworkin, David Gauthier, Robert Nozick, entre outros” (SEN, 2011, p. 44)
como representantes dessa tradição. Não fica claro quem ele inclui nesse “entre outros”. Em
certas passagens, ele parece sugerir que a concepção de justiça de Jürgen Habermas, especial-
mente ao que se refere à deliberação pública como critério de objetividade e ao uso da razão,
não estaria muito distante da concepção rawlsiana (SEN, 2011, p.86-87). Em outras, indica que a
perspectiva contratualista de Thomas Scanlon estaria bem mais aberta, completa e comparativa
em relação ao hermetismo contratualista visto, por exemplo, no próprio exercício deliberativo
da Justiça como equidade de John Rawls (SEN, 2011, p.304-307). Até mesmo a concepção de
justiça de Ronald Dworkin parece ser revisitada apenas para que a crítica à abordagem de capa-
cidades da sua teoria de justiça seja respondida, ainda que para isso ele faça breves comentários
sobre o experimento mental do hipotético mercado de seguros que, na teoria de Dworkin, ocor-
re numa posição original sob o véu da ignorância rawlsiana (SEN, 2011, p.392-397).
Em todos esses casos, porém, ficam expressas diversas ressalvas que podem ser inter-
pretadas ou como um relativo caráter de acessoriedade que essas teorias apresentam na obra de
Amartya Sen ou como reticências que, por alguma razão, interrompem a demonstração de que
a abordagem da justiça focada em arranjos e suas respectivas características se apresenta como
exercício central das contemporâneas teorias de justiça fica fragilizada.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
apresentam como a corrente majoritária parece inconsistente. O autor não demonstrou esse
caráter majoritário, mas se limitou a mencionar poucos casos pontuais. Isso parece indicar a ne-
cessidade de uma verificação mais consistente de exemplares específicos de teorias da justiça,
especialmente aqueles que se autodeclaram contratualistas.
Em segundo lugar, é interessante notar que a caracterização que Amartya Sen preten-
deu atribuir às Teorias de Justiça Focadas em Arranjos pode não ser tão inovadora como se pre-
tende. Críticas aos modelos ideais de sociedades justas construídas a partir da escolha de insti-
tuições justas existem, talvez, desde a primeira proposição nesse sentido. As considerações que
33
Karl Popper (1974. p.173-175) fez ao que denomina de mecânica social utópica, por exemplo, é
uma abordagem muito semelhante, embora concebida com outros propósitos e metodologias.
Neste ponto, também é possível e desejável que outros estudos coloquem em questão o caráter
inovador das conclusões de Sen.
Em terceiro lugar, um dado não mencionado no desenvolvimento do conceito de Teo-
rias de Justiça Focadas em Arranjos e que precisa ser considerado é a ausência de diálogo entre
Amartya Sen e autores clássicos da Teoria do Direito. A citação aos estudos de John Rawls,
Dworkin e outros contemporâneos não esgota tudo o que já foi escrito sobre os assuntos rela-
cionados à sua proposta. Obviamente, não se trata de uma exigência inexequível de considerar
minuciosamente todas as obras de Teoria do Direito. O que se coloca em questão aqui é apenas
o fato de se ter ignorado reflexões já consagradas no campo, como O Problema da Justiça, de
Hans Kelsen, e Ética e Direito, de Chaïm Perelman.
De qualquer modo, tais ressalvas não indicam a inviabilidade da proposta em seu
conjunto. Até os pontos aparentemente deficientes são relevantes ao ponto de encorajar novas
pesquisas e estudos. São trabalhos que ainda estão em aberto e que, caso concluídos, podem
contribuir significativamente para a compreensão de um dos temas mais delicados da Teoria do
Direito e para a tradução dessa compreensão em termos de estratégias práticas.
REFERÊNCIAS
HOBBES, Thomas. (1651) Leviathan: or the metter, forme, and power of a common-wealth
ecclesiasticall and civill.
34
KELSEN, Hans (1960). O problema da justiça. Trad. João Baptista Machado. 3ª ed. São
Paulo: Martins Fontes. 1998.
PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. -São Paulo:
Martins Fontes, 1996
POPPER, Karl (1957). A sociedade aberta e seus inimigos. v. 1. Trad. Milton Amado. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 1974.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p. 324-332.
SEN, Amartya. O que queremos de uma teoria da justiça? Trad. Mário Nogueira de Oliveira.
FUNDAMENTO – Revista de Pesquisa em Filosofia, Ouro Preto, n. 5, jul–dez, 2012.
ABSTRACT
This article presents the category Arrangements-Focused Theories of
Justice on proposed by the economist Amartya Sen in a perspective and
systematic way. Its structure seeks to promote understanding of the de-
velopment of the concept. The first three topics delimit the approach by
which the debate about the concept of justice should be understood and
highlights relevant elements in the construction of the category Arrange-
ments-Focused Theories of Justice, such as rational public discussion and
the influence received from the Enlightenment. The fourth and fifth top-
ics concern the characterization of the contractualist tradition and the
transcendental institutionalist perspective, which function as foundations
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
35
A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS NO DIREITO BRASILEIRO
CONTEMPORÂNEO
RESUMO
Da interlocução entre a Constituição e o Direito Civil, examinou-se o
valor filosófico da dignidade humana e seu reconhecimento jurídico
como princípio, com plena aplicabilidade no pensamento pós-positi-
vista. Objetivando o reconhecimento de sua máxima eficácia, pôs-se
em aproximação a dignidade humana perante os direitos de personali-
dade e direitos fundamentais, enquanto suas decorrências normativas,
enfrentando-se, com relação a estes últimos, o regramento da direta
aplicação do direito à igualdade às relações jurídicas entre particulares.
Reconhecidos tais limites, estudou-se detidamente o instituto da res-
ponsabilidade civil por danos morais, mediante o levantamento de seus
pressupostos e das diversas correntes que regulam sua aplicação.
1 Belmiro Fernandes é advogado integrante de MB Poças e Albuquerque, atuando nas esferas criminal, processual civil (especial na atua-
ção em processos de execução e recursos para instância superior e Tribunais Superiores), crimes tributários, direito tributário e eleitoral.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Possui graduação em Bacharelado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (2003) e mestrado em Direito pela Universidade
Federal da Bahia (2006). Atualmente é professor do CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO DA BAHIA – ESTÁCIO/FIB e professor
da UNIVERSO – Universidade Salgado de Oliveira. Também é Colunista da Revista A Barriguda. Contato: belmirofernandes@gmail.
com e www.professorbelmiro.com.
2 Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, Università degli Studi di Roma
“Tor Vergata” e Università del Salento. Doutor em Direito pela Università del Salento. Doutor e Mestre em
Direito pela Universidade Federal da Bahia. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito
da Universidade Federal da Bahia (Especialização/Mestrado/Doutorado). Professor da Faculdade Baiana de
Direito e da Faculdade Ruy Barbosa. Professor visitante em diversas instituições: Università degli Studi di
Roma “La Sapienza”, Università degli Studi di Roma “Tor Vergata”, Università degli Studi “Roma Tre”, Uni-
versità degli Studi di Milano, Università di Genova, Università di Pisa, Universidade Autônoma de Lisboa,
Universidade de Algarve, Universidad de Burgos e Martin-Luther-Universität. Membro do Instituto dos Ad-
vogados Brasileiros e do Instituto dos Advogados da Bahia. Membro do Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia. Palestrante e Autor de diversas obras jurídicas pela Editora Saraiva. E-mail: ric.mauricio@ig.com.br
36
Palavras–chave: Danos morais. Reponsabilidade civil. Dignidade.
1 INTRODUÇÃO
3 Sobre a diferença entre responsabilidade civil e penal, Dias (1995, p. 7-10), citando Mazeaud et Mazeaud, afirma que é a mesma que
existe entre o direito penal e direito civil. Assim, explica que enquanto a reparação civil reintegra, realmente, ao prejudicado na situação
patrimonial anterior, a sanção penal não oferece nenhuma possibilidade de recuperação ao prejudicado, pois sua finalidade é restituir
a ordem social ao estado anterior à turbação.
4 Explica Pereira (2004, v. 1, p. 655-656) que na estrutura explicitada, são cabíveis todas as espécies de ilícitos, sejam civis, sejam penais.
Em suas palavras: “Não se aponta, em verdade, uma diferença ontológica entre um e outro. Há em ambos o mesmo fundamento ético:
a infração de um dever preexistente e a imputação do resultado à consciência do agente. [...] Mesmo no caso de um ilícito ser reprimido
simultaneamente no cível e no criminal, há diferenciação, pois enquanto este tem em vista a pessoa do agente para impor-lhe sanção,
aquele se preocupa com o resultado e cogita da recomposição patrimonial da vítima. Enquanto o direito penal vê no ilícito a razão de
punir o agente, o direito civil nele enxerga o fundamento da reparação do dano. Por isto mesmo, a responsabilidade civil é independente
da criminal, ainda que haja a superposição das duas áreas.” O ponto sobre responsabilidade civil e penal será retomado mais adiante,
quando se tratar sobre a figura do dano punitivo.
37
de culpa5 do agente, em sentido amplo, abrangendo o dolo e a culpa em sentido estrito. Vale
ressaltar que o direito civil brasileiro abandonou tal distinção, porque de difícil aplicação nos
casos concretos, permanecendo, todavia, no campo penal6. (PEREIRA, 2004, v. 1, 657).
Na opinião de Cavalieri (2006, pp. 28-29), a violação de um dever jurídico é que con-
figura o ilícito, pois acarreta um dano para outrem, gerando, portanto, um novo dever jurídico7.
Assim, existe um dever jurídico originário, que, uma vez violado, gera um dever jurídico suces-
sivo, que é o de indenizar o prejuízo.
O referido autor acrescenta que o ato ilícito pode ser analisado sob duas perspectivas.
Num sentido estrito, é considerado como o conjunto de pressupostos da responsabilidade, ao
passo em que no sentido amplo, refere-se apenas a uma conduta humana voluntária e contrária
à ordem jurídica. (CAVALIERI, 2006, pp. 33-34)8. Conclui que:
Convém assinalar que a velha noção de ato ilícito vem sendo superada, na responsabi-
lidade civil, em decorrência da primazia de que goza o princípio da dignidade da pessoa huma-
na, sobre as relações jurídicas no direito brasileiro. Tal reformulação é sensível, pois, segundo
Bodin de Morais (2003, p. 174) a adoção do critério do dano injusto, é mais eficaz para a prote-
ção da dignidade da pessoa, pois objetiva não apenas reparar “prejuízos”, mas preveni-los. Isso
ocorreu em razão da mudança do paradigma interpretativo - puramente patrimonialista – outro-
ra vigente no direito brasileiro da época do Código Civil brasileiro de 1916, em especial no pe-
5 Seguindo as lições de Pereira, sobre o nascimento da teoria do risco, que é o pressuposto da responsabilidade civil (2004, v. 1, p. 663),
diz-se que: “Em verdade, a culpa, como fundamento responsabilidade civil, é insuficiente, pois deixa sem reparação danos sofridos por
pessoas que não conseguem provar a falta do agente. O que importa é a causalidade entre o mal sofrido e o fato causador, por influxo do
princípio segundo o qual toda pessoa que cause a outra um dano está sujeito a sua reparação, sem necessidade de se cogitar do problema
da imputabilidade do evento à culpa. [...] Ante uma perda econômica, pergunta-se qual dos dois patrimônios deve responder, se o da
vítima ou o do causador do prejuízo. E, na resposta à indagação, deve o direito inclinar-se em favor daquela, porque dos dois é quem não
tem o poder de evitá-lo, enquanto o segundo estava em condições de retirar um proveito, sacar uma utilidade ou auferir um benefício da
atividade que originou o prejuízo. O fundamento da teoria é mais humano que o da culpa, e mais profundamente ligado ao sentimento
de solidariedade social”. Em razão dessa teoria se referir apenas à responsabilidade objetiva, sua análise extrapola o presente estudo,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
que versa exclusivamente os danos morais provocados pelos particulares, cuja teoria aplicável é a da culpa.
6 Nas palavras de Dias (1995, p. 120), “Nem mesmo a classificação dos atos ilícitos em dolosos ou culposos apresenta interesse para o
civilista brasileiro, que só cogita do gênero ato ilícito, que é o fato, não autorizado pelo direito, causador de dano a outrem [...]. Vale
ressaltar que o fato do Código Civil de 1917 ter utilizado, em seu artigo 159 as expressões “imprudência” e “negligência” – institutos
típicos da conduta culposa em sentido estrito – isso não significa que fosse necessária a sua consideração para a aplicação – ou não – da
responsabilidade civil a agentes infratores.
7 Por dever jurídico, entende ser “a conduta externa de uma pessoa imposta pelo Direito Positivo por exigência da convivência social”
(p. 28). Acrescenta ainda que o dever jurídico não se refere apenas a um aconselhamento ou recomendação, mas comandos aptos a
se tornarem obrigações de indenizar. Sobre estas últimas, é importante ressaltar que se trata de uma modalidade obrigacional inse-
rida no art. 927 do Código Civil, contradizendo com a teoria clássica do direito civil, na qual a responsabilidade é a consequência do
descumprimento de uma obrigação. Então, sua natureza jurídica é de obrigação-sanção, opondo-se àquela surgida voluntariamente a
partir da criação de negócios jurídicos (op. cit. p 26).
8 Cavalieri expõe que o conceito tradicional de ato ilícito tornou-se insuficiente para a configuração da responsabilidade subjetiva, pois é
impossível enfeixar em sua teoria todos os fatos da vida que possam causar danos. No campo da responsabilidade objetiva, a deficiência
é ainda maior, só se pode compatibilizar a noção de ato ilícito em seu sentido objetivo (p. 33).
38
ríodo anterior à promulgação da Constituição para um modelo humanista, baseado na proteção
da pessoa humana. Seguindo o mesmo entendimento, Perlingieri (2002, p. 156) complementa:
sendo dividido entre danos patrimoniais e danos morais (DIAS, 1995, p. 716).
Apesar disso, assevera Dias (1995, p. 737), que nem sempre se reconheceu o fato de
que o dano moral poderia ser indenizado. Os argumentos que a doutrina coleciona são os se-
guintes: a) falta de efeito penoso durável; b) incerteza do direito violado; c) dificuldades em
descobrir a existência do dano moral; d) indeterminação do número das pessoas lesadas; e)
impossibilidade de rigorosa avaliação em dinheiro; f) imoralidade da compensação da dor com
dinheiro; g) extensão do arbítrio concedido ao juiz.
Esta antiga tendência teve como reflexo a prevalência, durante muito tempo, da tese
39
da irreparabilidade (mais precisamente da não indenização) do dano moral, o que hoje já se
encontra superado. Se a existência do direito à indenização por dano moral é, atualmente, in-
questionável, o mesmo não se pode dizer quanto ao seu conceito e à sua amplitude ou dimensão,
porque ainda não houve um assentamento da doutrina quanto ao seu conceito. Em consequên-
cia, a jurisprudência mostra-se vacilante no reconhecimento das situações em que se configura
essa espécie de dano. Por conta disso, alguns critérios são utilizados, objetivando-se viabilizar
a sua aplicação.
A doutrina comumente definia o dano moral sob a forma negativa, como exclusão ao
dano patrimonial ou material. Dias (1995, p. 852) afirma que: “Quando ao dano não correspon-
dem às características do dano patrimonial, dizemos que estamos em presença do dano moral.”
Esse modo de conceituar o dano moral nada esclarece a respeito de seu conteúdo e não
permite uma precisa compreensão do fenômeno. Define-se essa espécie de dano com uma ideia
negativa, algumas vezes acompanhada de uma fórmula redundante, usando expressões que fa-
zem alusão ao aspecto moral do dano, sem, verdadeiramente, explicá-lo.
Atualmente, outras categorias de danos não-patrimoniais têm sido reconhecidas pelo
direito civil brasileiro, como o dano estético e à imagem. Dessa maneira, a fórmula em que
se exclui da esfera patrimonial aquilo que se entende por moral implica caracterizar situações
diferentes de maneira idêntica. Uma pessoa que perde a mobilidade de um dos seus braços em
razão de uma agressão física sofre, simultaneamente, um dano patrimonial (pelo necessário
pagamento de despesas médicas e com fisioterapia, além de eventual incapacidade para certos
tipos de trabalho), um dano estético (a desarmonia gerada em seu corpo) e um dano moral (pelo
abalo psíquico que lhe fora e sempre lhe será causado, em saber sofrera uma tão cruel dor).
Portanto, deve ser abandonada, desde já, a concepção negativista do dano moral, tendo em vista
que tal definição, conquanto afaste a classe mais distante (dano patrimonial), não esclarece as
características do fenômeno deste estudo.
A insuficiência da concepção negativa levou à busca de um objeto para o dano moral.
Procurando adentrar o próprio conteúdo dessa espécie de dano, parte da doutrina apresenta
definições que têm, em comum, a referência ao estado anímico, psicológico ou espiritual da
pessoa.
Cavalieri (2006, pp. 101-102) tece duras críticas a essa teoria. Ensina que pode existir
dano moral sem que haja dor, vexame, sofrimento, como também pode existir dor, vexame,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
sofrimento sem que exista dano moral, sendo tais estados anímicos, em geral, consequências, e
não causas. Assim, em se admitindo reparação por danos morais apenas em caso de sofrimento,
crianças, doentes em estado anímico ou doentes mentais não estariam fora da órbita de proteção
do instituto. Conclui que:
Por mais pobre e humilde que seja uma pessoa, ainda que completamente destituída
de formação cultural e bens materiais, por mais deplorável que seja seu estado
biopsicológico, ainda que destituída de consciência, enquanto ser humano será
detentora de um conjunto de bens integrantes de sua personalidade, mais precioso
40
que o patrimônio. É a dignidade humana, que não é privilégio apenas dos ricos, cultos
ou poderosos, que deve ser por todos respeitada.
Dias (1995, p. 852) observa que para caracterizar o dano moral, impõe-se compreen-
dê-lo em seu conteúdo, que:
[...] não é o dinheiro nem coisa comercialmente reduzida a dinheiro, mas a dor, o
espanto, a emoção, a vergonha, a injúria física ou moral, em geral, uma dolorosa
sensação experimentada pela pessoa, atribuída à palavra dor o mais largo significado.
O indivíduo que termina seu relacionamento com outrem pode, em consequência, so-
frer angústia e tristeza. O empreiteiro que não entrega a obra no prazo pode provocar grande
irritação ao contratante do serviço. O condômino que litiga com o condomínio ou com o vizi-
nho em razão de infiltrações existentes em seu imóvel passa por grandes constrangimentos e
aborrecimentos. Em nenhum desses casos, no entanto, é possível vislumbrar a existência de um
dano moral - pelo menos não de acordo com o senso médio. As dores, as angústias, aflições,
humilhações e padecimentos que atingem a vítima de um evento danoso não constituem, de or-
dinário, mais do que a consequência ou repercussão do dano (seja ele moral ou material). A dor
sentida em razão da morte do cônjuge, a humilhação experimentada por quem foi atingido em
sua honra, a vergonha daquele que ficou marcado por um dano estético, a tensão ou a violência
experimentadas por quem tenha sido vítima de um ataque à sua vida privada são estados de
espírito contingentes e variáveis em cada caso, e que os indivíduos os sentem ou experimentam
ao seu modo. (ANDRADE, 2006, p. 40)
Modernamente, uma das teorias mais aceitas é a de que o dano moral decorre da le-
são a direito da personalidade. Cavalieri (2006, p. 74) afirma: “o dano moral é lesão de bem
integrante da personalidade, tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica,
causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima”.
Por sua vez, Morais (2003, p. 132-133) assevera que:
O dano moral tem como causa a injusta violação a uma situação jurídica subjetiva
extrapatrimonial, protegida pelo ordenamento jurídico através da cláusula geral de
tutela da personalidade que foi instituída e tem sua fonte na Constituição Federal, em
particular e diretamente decorrente do princípio (fundante) da dignidade da pessoa
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
41
o direito à honra, ao nome, à intimidade, à privacidade e à liberdade estão englobados no núcleo
da dignidade humana, merecendo, por isso, igual proteção.9 Em razão disso, foi o instituto do
dano moral elevado a categoria constitucional, conforme redação dos incisos V e X do art. 5º
do texto constitucional.
Conforme asseverado no capítulo um deste estudo, a dignidade é um valor intrínseco
do ser humano e, em sendo assim, não lhe pode ser tirado. Quando um indivíduo sofre um dano
moral, o que ocorre, na verdade, é uma pretensão violadora de sua dignidade, pois alguém – o
agente do ilícito – atua como se desconhecesse ou pretendesse simplesmente ignorar a digni-
dade de outrem. Assim, é mais prudente falar em direito subjetivo-constitucional à punição de
pretensões violadoras da dignidade humana.
Segundo Bodin de Morais (2003, pp. 295-296), em razão do direito brasileiro não
apresentar um tabelamento ou indicativo prévio do valor a ser pago a título de indenizações por
danos morais, a aplicação do estudo à luz dos casos concretos, deverá seguir alguns indicativos:
a) o grau de culpa e a intensidade do dolo do ofensor; b) a situação econômica do ofensor; c) a
natureza, a gravidade e a repercussão da ofensa (amplitude do dano); d) as condições pessoais
da vítima (posição social, política, econômica; e) a intensidade do seu sofrimento.
Maria Helena Diniz (2003, p. 99) afirma que o ressarcimento do dano moral, às vezes,
ante a impossibilidade de reparação natural, isto é, da reconstituição natural, na restituitio in
integrum (sem tradução equivalente no português) procurar-se-á [...] atingir uma “situação ma-
terial correspondente”.
Por seu turno, Bernardo (2005, p. 165) entende que apenas deva ser levada em conside-
ração a extensão do dano, afirmando serem mutuamente excludentes este requisito com o grau
da culpa do ofensor.
Dias (1995, p. 730 e ss.), apesar de não apresentar critérios para a reparação do dano
moral, adverte que a maior dificuldade para sua reparação é justamente o fato de não existirem
parâmetros valorativos, diferentemente do que ocorre com o dano patrimonial, em que se pauta
na noção de prejuízo. Ao tempo em que este nunca é irreparável, no tocante aos danos morais,
todas as dificuldades se acumulam, diante das diversas lesões que este causa, que só têm em
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
9 É importante assinalar que CAVALIERI fala de “direito à dignidade” ou “direito subjetivo constitucional à dignidade”. Discordamos
desse posicionamento, porque o ser humano não pode ter direito àquilo que ele simplesmente é, pois a dignidade é seu valor intrínseco.
Nessa perspectiva, portanto, não se pode exigir que o Estado lhe conceda dignidade, porque esta não se encontra em seu poder. Preferi-
mos dizer que os cidadãos possuem um “direito à não pretensão violadora de sua dignidade”, porque a dignidade não é um bem que se
concede ou se retira de alguém, não podendo, por meio do dano moral, alguém perder a sua dignidade.
42
Da análise dos dispositivos legais10, verifica-se, no Brasil, o principal aspecto que fixa
o valor indenizatório é a extensão do dano. A culpa também é considerada, mas apenas de for-
ma subsidiária, se ocorrer uma das seguintes hipóteses: a) dano desproporcional com a culpa do
agente; b) concurso de culpas entre agente e vítima.
Sobre esse assunto, Bernardo (2005, p. 171) empreende uma severa crítica acerca do
pensamento do legislador:
contra outrem recebe o nome de tort, sendo estudado pela tort law ou law of torts (direito do ato
ilícito extracontratual). Uma grande diferença entre os dois é que a reparação de danos decor-
43
rentes de inadimplemento contratual (damage law) apenas tem caráter reparatório. Entretanto,
é intrínseco ao tort law (direito do ato ilícito extracontratual), além da reparação específica, a
prevenção de danos futuros.
Com a proliferação dos códigos e atos legislativos uniformes que têm crescido re-
centemente nos países de direito common law (Direito Comum), o law of torts (direito do ato
ilícito extracontratual) ainda se apresenta como uma medida jurídica não sistematizada, sendo
estudado à luz da casuística. Nas palavras de Kionka: “O tort law é, talvez, o último bastião do
common law. Mesmo nesta era de legislação, com a proliferação de códigos e atos uniformes,
o tort law permanece não codificado e em grande parte não afetado pela lei.” (citado por AN-
DRADE, op. cit. p. 183)12.
Os danos punitivos13 se inserem nesta última categoria, sendo definidos como “Indeni-
zação outorgada em adição à indenização compensatória, quando o ofensor agiu com negligên-
cia, malícia ou dolo”14. (BLACK citado por ANDRADE, 2006, p. 194). Constituem:
Segundo Andrade (op. cit. p. 186), os estudiosos do instituto dos danos punitivos (ou
punitive damages, no original) localizam sua estrutura nos textos da Antiguidade, como o Có-
digo de Hamurabi (2000 a.C.), o Código Hiita (Séc. XV a.C), Lei das XII Tábuas (450 a.C.) e o
Código de Manu (200 a.C.). Entretanto, foi na Inglaterra que o instituto ganhou a sua moldura
atual15, tendo sido disseminada, alguns anos depois, nos Estados Unidos da América16.
12 A expressão “dano moral” não aparece no common law (Direito Comum) como uma categoria específica, pois seu exame ocorre a
partir de categorias esparsas. Como exemplo, podem ser citados os “danos não-pecuniários” (nonpecuniary loss), os general damages
(conhecidos também como direct damages ou necessary damages), personal torts, personal injury (em oposição ao property tort), emo-
tional harm, emotional distress, mental distress, mental suffering e mental anguish. Há, também, figuras que se referem a danos morais
mais específicos, como a defamation, intrusion (invasão de privacidade), bodily harm (dano à integridade física), impairment of social
life (dano às relações sociais), dentre outros. cf. ANDRADE (op. ct., p. 184)
13 Segundo ANDRADE (op. cit. p. 195), muitas são as denominações dos danos punitivos, presentes nos países anglo-saxões que os
adotam. Encontram-se, ao lado de punitive damages (danos punitivos), as expressões vindictive damages, punitory damages, specu-
lative damages, imaginary damages, presumptive damages, added damages, penal damages e punies. Há ainda uma outra expressão,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
denominada smart-money, que não faria menção à gíria estadunidense traduzida como “esperto”, “inteligente” ou “sabido”, mas indica-
tiva da soma em dinheiro estabelecida para compensação das dores da pessoa lesada.
14 No original: Damages awarded in addition to actual damages when the defendant acted with reckless, malice, or deceit.
15 Segundo Andrade (2006, p. 187), a primeira articulação explícita da doutrina dos punitive damages (danos punitivos) ocorreu em
1763, no julgamento Wilkes v. Wood. Wilkes foi um jornalista, que escrevera um artigo inflamado, ofensivo à reputação do Rei George
III e seus ministros. Em contrapartida, o Rei ordenou que seus mensageiros invadissem e revirassem sua casa, apreendendo livros e
papéis privados. Diante disso, Wilkes ajuizou uma ação denominada action of trespass (ação de trasnsgressão) contra o senhor Wood,
subscretário de Estado que havia pessoalmente supervisionado a execução da ordem do Rei, objetivando a aplicação de danos punitivos.
O juiz considerou a demanda procedente e condenou Wood a pagar-lhe a significativa soma (para a época) de £1000 (mil libras). O refe-
rido episódio serviu de precedente ao caso Huckle v. Money. Huckle teria sido detido com base numa ordem arbitrária de um oficial da
Inglaterra. Embora não tivesse ficado confinado por mais do que seis horas, o juiz condenou Money a pagar-lhe £300 (trezentas libras),
valor igual a quase trezentas vezes o salário que Huckle recebia de seu empregador semanalmente.
16 Em 1784, Genay ingressou com uma ação contra Norris, porque este colocou uma substância em sua bebida, causando-lhe grande dor,
num drinque de reconciliação, pois ambos iriam disputar um duelo com pistolas. A Corte considerou que Genay tinha direito a danos
punitivos.
44
Algumas teorias tentam explicar a origem dos danos punitivos. Por uma, de enfoque
histórico-sociológico, os danos punitivos teriam surgido a partir da própria estrutura do sistema
judicial inglês, que se baseia no julgamento popular pelo júri. Inicialmente, os jurados eram
cidadãos locais, com grande familiaridade com os fatos e, a partir daí, formando seu convenci-
mento para a resolução do conflito, não sendo possível, nesta época, que os juízes revisassem
suas condenações indenizatórias. Posteriormente, com a composição dos júris ser elaborada por
pessoas que não tinham prévio conhecimento dos fatos, tornou-se possível, segundo o entendi-
mento das cortes inglesas, revisar os valores atribuídos nas condenações, embora não o façam
com frequência, talvez em nome da tradição, bem característica do sistema jurídico inglês, do
tipo common law (Direito Comum)17
Outra corrente afirma que os danos punitivos foram desenvolvidos como meio repa-
ratório especificamente para danos morais, já que a jurisprudência inglesa até o século XIX
apenas reconhecia o direito à indenização aos prejuízos estimáveis pecuniariamente. Assim,
o dano que fosse puramente moral não daria ensejo à indenização.18 Nesse sentido, embora se
utilizasse a expressão punitive damages (danos punitivos), pelos quais os agressores eram con-
denados, esses danos não eram absolutamente excessivos, revelando, na verdade, um caráter
muito mais compensatório do que punitivo das indenizações por danos morais.
Finalmente, consagrou-se o posicionamento da aplicação da indenização punitiva para
compensar as vítimas que tivessem sofrido uma ofensa intangível (moral), quando presentes
circunstâncias agravantes19.
A indenização punitiva ganhou destaque internacional a partir dos julgamentos reali-
zados nos Estados Unidos da América. Lá, o instituto tem sido aplicado comumente em casos
como responsabilidade pelo fato do produto (direito do consumidor), difamação, erro médi-
co, acidentes de trânsito, responsabilidade profissional, invasão de privacidade, assédio sexual,
17 Segundo lição de David (1998, p. 340-344), no direito das famílias romano-germânica, a jurisprudência apenas é utilizada para de-
sempenhar um papel, normalmente, secundário, não sendo criadoras – salvo casos excepcionais – de regras de direito. Na Inglaterra,
o direito tem uma tradição basicamente jurisprudencial, em que esta destaca as regras de direito, tendo, as decisões das cortes (stare
decisis), servido de precedentes (rule of precedent) para outras decisões.
18 Andrade (2006, p. 190) adverte que, excepcionalmente, admitia a fixação de um montante em dinheiro para danos não mensuráveis
pecuniariamente para determinadas categorias de atos ilícitos, como o dano à honra (defamation), abuso processual (malicious prosecu-
tion), agressão física (assault), prisão legal ( false imprisonment), sedução (seduction) e adultério (adultery).
19 Ainda existiam algumas outras teorias, como a que entendia que os danos punitivos serviam para a correção de injustiças ocorridas
nos processos criminais (hipótese conhecida no Brasil como “indenização por erro judiciário”) ou para controlar o ímpeto de vingança
da vítima. Para mais detalhes, consultar Andrade (2006, p. 190-192).
45
dentre outros20. É comum que tais indenizações ultrapassem a casa das centenas de milhares
de dólares ou dos milhões, embora muito do que se divulgue seja exagero do que realmente é
aplicado na prática.
A Suprema Corte americana, em diversos momentos, fora convocada para decidir se
os danos punitivos constituiriam uma violação ao princípio do devido processo legal, tendo
ganhado projeção a partir da decisão sobre o caso BMW of North America, Inc v. Gore (KIRS-
CHER e WISEMAN, citado por ANDRADE, p. 210).
Explica Andrade (2006, pp. 210-211) que:
No ano de 1990, após comprar um automóvel BMW sports sedan novo de uma
revendedora autorizada, pelo preço de US$ 40.750,88, o autor Ira Gore, depois de
dirigir o veículo por aproximadamente nove meses, levou-o para um polimento.
Descobriu, então, que o carro havia sido repintado. Convencido de que fora enganado,
Gore ajuizou uma ação em face da BMW of North America [...] alegando fraude. A
ré, durante o julgamento, admitiu que havia adotado, em 1983, uma política nacional
acerca de automóveis novos danificados durante a fabricação ou o transporte: se o
custo do reparo excedesse 3% do preço sugerido de venda, o carro era vendido como
usado; se, todavia, o reparo não excedesse esses 3%, o carro era vendido como novo,
sem advertir o revendedor que algum reparo fora feito. Sustentando que o custo de
repintura do veículo do autor encontrava-se em torno de 1,5% do preço sugerido de
venda, a ré entendeu que não estava obrigada a revelar ao revendedor o reparo que
havia sido realizado. [...] Ao final, o júri condenou a ré ao pagamento de compensatory
damages de US$ 4,000 e punitive damages de US$ 4 milhões, por considerar que a
política de não-revelação de danos nos veículos configurou conduta maliciosa ou
fraudulenta. A Suprema Corte do Alabama, entendendo que o júri, no cálculo dos
punitive damages, computara impropriamente fatos semelhantes ocorridos em outra
jurisdição, reduziu o montante indenizatório para US$ 2 milhões.
20 Um caso famoso envolveu a rede de fastfood Mc Donald’s e uma senhora idosa. Afirma Andrade (2006, p. 228) que “em fevereiro de
1992, em Albuquerque, no Estado do Novo México, Stella Lieback ocupava o banco de passageiro do automóvel conduzido por seu neto
e segurava um copo de café quente que havia acabado de comprar em uma lanchonete McDonald’s pelo sistema drive-thru. Após ter
recebido o café, o neto da Sra. Lieback movimentou o veículo para a frente e o estacionou. Em seguida, ela colocou o copo descartável
de polietireno entre suas pernas e tentou remover a tampa de plástico para adicionar creme e açúcar. O café, então derramou em seu
colo. [...] O café derramado foi imediatamente absorvido pelo tecido da calça que a Sra. Lieback vestia, queimando-a severamente. Um
especialista em cirurgia vascular constatou que ela sofreu queimaduras de terceiro grau em mais de seis por cento do corpo, incluindo
a parte interna da coxa, o períneo, as nádegas e a região genital. Ficou hospitalizada por oito, durante os quais teve de se submeter a
debridamento na área atingida e a enxertos de pele. Depois, permaneceu sob cuidados em casa por cerca de três semanas. Ao final
desse período, havia perdido aproximadamente vinte por cento do seu peso corporal. Em consequência das queimaduras e da cirurgia
subsequentes, ficou com cicatrizes permanentes em mais de dezesseis por cento do seu corpo. [...] De acordo com as provas produzidas,
o McDonald’s servia o seu café a uma temperatura que variava de 180 a 190 graus fahrenheit (cerca de 82 a 87 graus centígrados), en-
quanto os outros estabelecimentos similares serviam café a uma temperatura média que variava de 135 a 140 graus fahrenheit (cerca de
57 a 60 graus centígrados). [...] O júri condenou a empresa a pagar à autora US$ 2,7 milhões ao McDonald’s no período de dois dias. [..] O
juiz, considerando excessivos os punitive damages fixados pelo júri, reduziu-os para US$ 480.000,00, valor somado aos compensatory
damages e iguais a três vezes estes.”
46
Com este caso, criou-se o precedente para orientação da condenação indenizatória,
que deverá obedecer aos seguintes critérios: a) o grau de reprovabilidade da conduta do réu; b)
a proporção entre o dano efetivo ou potencial e a indenização punitiva; c) a diferença entre a
indenização e penalidades civis e criminais previstas em casos similares. Com tais parâmetros
fixados, aumentou-se a segurança jurídica na aplicação da indenização punitiva, preservando-
-se o seu caráter de prevenção21.
Para Bodin de Morais (2003, p. 303), a valoração do dano moral só pode ser feita com
base no princípio da dignidade da pessoa humana como critério de sua proteção, sendo prove-
nientes da violação do dever de respeito aos indivíduos. A indenização deve ser eminentemente
reparatória, pautando-se no critério do Código Civil, que versa sobre a extensão do dano.
Por outro lado entende, para que se reconheça o caráter punitivo da reparação do dano
moral, devem ser levados em conta o grau da culpa e, do outro, o nível econômico do ofensor,
sendo uma punição não pelo o que se fez, mas por quem o praticou (MORAIS, 2003, p. 259).
Ainda de acordo com a doutrinadora, a aplicação da indenização punitiva ocorre exclusivamen-
te através do arbítrio do juiz, violando o princípio da legalidade penal. Explica que (MORAIS,
2003, p. 261):
mas, para isso, entende que será necessária a manifestação do legislador. Também reconhece
a utilidade dos danos punitivos na reparação de situações potencialmente lesivas a um grande
número de pessoas.
21 A título de informação, é importante falar do movimento de reforma do direito de indenizações, conhecido por tort reform, que tem
ganhado projeção nos Estados Unidos. a ATRA (American Tort Reform Association), entidade representada por associações de classe
e grandes corporações, tem apresentado argumentos que contestam a aplicabilidade do instituto dos danos punitivos, que podem ser
resumidos da seguinte maneira: a) a tarefa de punir o ofensor compete ao Direito Penal, não ao Direito Civil, este servindo apenas para
compensar o dano da vítima; b) as indenizações decorrentes dos danos punitivos vão para a vítima, causando-lhe um ganho inesperado;
c) a finalidade dissuatória nem sempre é alcançada, porque muitas das indenizações são suportadas não pelos agressores, mas por suas
empresas seguradoras. (ANDRADE, 2006, p. 208).
47
Corroborando a opinião de Bodin de Morais, Andrade (2006, p. 312) entende que a
indenização punitiva tem a sua utilidade social, pois:
[...] há situações nas quais os direitos da personalidade não têm como ser efetivamente
protegidos se não através da imposição de uma soma em dinheiro que constitua fator
de coerção sobre o causador do dano e terceiros. Assim [...] na ponderação entre o
princípio substancial do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal, que consagra a
dignidade da pessoa humana como fundamento da República e o princípio consagrado
no art. 5º, inciso XXXIX, que estabelece a garantia instrumental de que não deve haver
pena sem prévia cominação legal, a balança pesaria francamente a favor do primeiro.
Invocando Alexy, afirma Andrade (2006, p. 313) que a relação entre os princípios da
dignidade humana e anterioridade da pena existe uma “relação de precedência condicionada”,
na qual o princípio da anterioridade apenas existe em decorrência da dignidade. Tem-se, de um
lado, o interesse em não surpreender o lesante com a imposição de uma pena pecuniária não
prevista em lei e, do outro, o interesse de prevenir comportamentos lesivos à dignidade humana.
Entende Andrade (2006, p. 313) que a indenização punitiva atenderia a um interesse sensivel-
mente mais relevante.
Bernardo (2005, p. 177-178) sugere que os danos punitivos possam ser aplicados no
Brasil, desde que mediante: a) uma fixação legislativa das hipóteses de utilização do instituto;
b) parâmetros legais versando sobre os limites de atuação do juiz; c) obrigatoriedade da senten-
ça destacar a verba a título de danos punitivos; d) parte da verba paga em danos punitivos ser
revertida para algum fundo a ser criado por lei.
Retomando-se o objeto principal desta pesquisa, que é a discriminação por orientação
sexual, a indenização compensatória é mais adequada em situações menos gravosas, como uma
ofensa feita por um desconhecido, num ambiente reservado e com poucas pessoas presenciando
o fato. Como se verá adiante, tal situação viola a dignidade humana sob o âmbito da honra sub-
jetiva, que poderá ser reparada mediante o pagamento de uma módica indenização.
Por outro lado, a indenização punitiva ganha destaque em situações mais sérias, a
exemplo de uma humilhação pública e/ou contínua motivada por discriminação por orientação
sexual, ou ainda em casos de violência e agressões físicas. Pela repercussão e importância social
destes fatos, torna-se imperiosa a aplicação de uma indenização mais robusta, pois seu caráter
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
48
nal já decidiu: “22Em âmbito de recurso especial, é consenso nesta Corte - e principalmente na
3ª Turma - que só se pode alterar o valor originariamente fixado por dano moral, se o quantum
arbitrado for realmente exorbitante ou, ao contrário, tão insignificante que, em si, seja atentató-
rio à dignidade do ofendido” (Agravo Regimental sobre o Recurso Especial n.º 653.861).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral e indenização punitiva: os punitive
damages na experiência do common law e na perspectiva do Direito brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
BERNARDO, Wesley de Oliveira Louzada. Dano moral: critérios de fixação de valor. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005.
22 STJ. AGRAVO REGIMENTAL SOBRE RECURSO ESPECIAL 653.861. 3ª Turma. Rel. Min. Castro Filho. 21.03.2006. DJU
10.04.2006.
49
CAVALIERI, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros Editores,
2006.
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes,
1998.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. São Paulo:
Saraiva, 2003.
________. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003.
PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O dano moral na relação de emprego. São Paulo: LTr, 1999.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. São Paulo: Forense, 2004.
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Apontamentos sobre a aplicação das normas de direito
fundamental nas relações jurídicas entre particulares. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A
nova interpretação constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pp.119-192.
ABSTRACT
From the interlocution between the Constitution and the Civil law, the
philosophical value of human dignity and its legal recognition as a prin-
ciple were examined, as its applicability in the thought after-positivism.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Aiming for its maximum effectiveness, the dignity was seen alongside
with the personality’s and constitutional rights, as their normative re-
sult, searching for the immediately regulation for application of equality
to the legal relationships between individuals. Once these limits were
recognized, the institute of civil liability for moral damages was care-
fully studied, by means of the survey of its assumptions and the diverse
currents that regulate its application.
Keywords: Moral damages. Civil liability. Dignity.
50
A CONVENÇÃO DE ISTAMBUL E A “VIOLÊNCIA DE GÊNERO”: BREVES
APONTAMENTOS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL PORTUGUÊS
RESUMO
O presente texto analisa o âmbito de aplicação da Convenção do Conse-
lho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mu-
lheres e a Violência Doméstica, de 11 de Maio de 2011, conhecida por
Convenção de Istambul, que foi ratificada por Portugal a 21 de janeiro
de 2013 e que entrou em vigor a 1 de agosto de 2014, acentuando a sua
importância para a proteção da vítima, em especial da vítima mulher,
no contexto internacional. De uma forma perfunctória, dá-se conta, ain-
da, das implicações em sede de direito penal substantivo, refletindo em
torno da inexistência da perspetiva de gênero no ordenamento jurídico-
-penal português.
Palavras-chave: Convenção de Istambul. “Violência de gênero”. Prote-
ção da vítima mulher.Ordenamento jurídico-penal português. FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 INTRODUÇÃO
1 Investigadora na Universidade do Minho desde 2013; mestre em Direito na Universidade do Minho e Professora assistente na Univer-
sidade do Minho desde 2009.
51
Apesar da existência de vários instrumentos jurídicos (como, de resto, vem sintetizado
no próprio preâmbulo da Convenção de Istambul)2, ressalta-se a importância desta Convenção
na prevenção/combate da violência contra as mulheres e proteção destas, constituindo este o
primeiro instrumento vinculativo nesta matéria na Europa. Com efeito, este documento interna-
cional, adotando uma perspetiva holística e multidisciplinar, alcança diferentes planos, quer ao
nível da proteção e assistência das vítimas, quer ao nível da prevenção e repressão da violência3.
Neste contexto a Convenção abrange, desde logo, as “Políticas integradas e recolha de dados”
(Capítulo II: artigos 7.º a 11.º); a “Prevenção” (Capítulo III: artigos 12.º a 17.º); a “Proteção e
apoio” (Capítulo IV: artigos 18.º a 28.º); o“Direito material” (Capítulo V: artigos 29.º a 48.º); a
“Investigação, ação penal, direito processual e medidas de proteção” (Capítulo VI – artigos
49.º a 58.º); a “Migração e asilo” (Capítulo VII – artigos 59.º a 61.º), além dos Capítulos VIII a
XII, que se referem, respetivamente, à “Cooperação internacional”, ao “Mecanismo de moni-
torização”, à “Relação com outros instrumentos internacionais”, às “Emendas à Convenção” e
“Disposições finais”.
(...) mulheres e raparigas estão muitas vezes expostas a formas graves de violência,
tais como a violência doméstica, o assédio sexual, a violação, o casamento forçado, os
chamados ‘crimes de honra’ e a mutilação genital, os quais constituem uma violação
grave dos direitos humanos das mulheres e das raparigas e um obstáculo importante
à realização da igualdade entre mulheres homens e homens”.
Salienta-se igualmente que “(...) a realização de jure e de facto da igualdade entre mu-
lheres e homens é um elemento-chave na prevenção da violência contra as mulheres”.
Ressalta-se aí que “(...) a violência contra as mulheres é uma manifestação das relações
de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens que conduziram à dominação e
discriminação contra as mulheres pelos homens, o que as impediu de progredirem plenamente”.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
2 Cf. Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (STE n.º 5, 1950) e respetivos Protocolos, a
Carta Social Europeia (STE n.º 35, 1961, revista em 1996, STE n.º 163), a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Luta contra o
Tráfico de Seres Humanos (STE n.º 197, 2005) e a Convenção do Conselho da Europa Relativa à Proteção das Crianças contra a Explo-
ração Sexual e o Abuso Sexual (STE n.º 201, 2007); Recomendação Rec(2002)5 sobre a proteção das mulheres contra a violência, a Re-
comendação CM/Rec(2007)17 sobre normas e mecanismos para a igualdade de género, a Recomendação CM/Rec(2010)10 sobre o papel
das mulheres e dos homens na prevenção e resolução de conflitos e na construção da paz, e outras recomendações pertinentes; o Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966),
a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, 1979) e o seu
Protocolo Opcional (1999), bem como a Recomendação Geral n.º 19 do Comité CEDAW sobre a violência contra as mulheres, a Con-
venção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) e respetivos Protocolos Facultativos (2000) e a Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006); o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (2002); a Convenção
(IV) de Genebra Relativa à Proteção de Pessoas Civis em Tempo de Guerra (1949) e respetivos Protocolos Adicionais I e II (1977).
3 Ver artigo 1.º da Convenção (“Finalidade da Convenção”), onde, designadamente, no n.º 1, alínea c), se aponta para a construção o de
um quadro normativo global para a prevenção e proteção às vítimas de violência contra as mulheres. Esta abordagem holística afigura-se
essencial, no contexto de uma “estratégia eficaz e não numa ótica de remédios pontuais” – assim, ver o Parecer da APAV (2014), p. 5.
52
Neste contexto, o âmbito de aplicação da Convenção abrange todas as formas de vio-
lência contra asmulheres, incluindo a violência doméstica (artigo 2.º da Convenção). No âmbito
do artigo 3.º da Convenção definem-se os conceitos de “violência contra as mulheres”; “vio-
lência doméstica”; “Gênero”; “Violência de gênero exercida contra as mulheres”; “Vítima” e
“Mulheres”.
Desde logo, a“violência contra as mulheres” é entendida como:
uma violação dos direitos humanos e (...) [como] uma forma de discriminação contra as
mulheres, abrangendo todos os atos de violência que resultem, ou possam resultar, em
danos ou sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos para as mulheres,
incluindo a ameaça de tais atos, acoação ou a privação arbitrária da liberdade, tanto
na vida pública como na vida privada (artigo 3.º da Convenção).
Sendo que a “violência doméstica” inclui “todos os atos de violência física, sexual,
psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges
ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha
coabitado, ou não, com a vítima”; o “Gênero” atende “ aos papéis, aos comportamentos, às
atividades e aos atributos socialmente construídos que uma determinada sociedade considera
serem adequados para mulheres e homens”; a“violência de gênero exercida contra as mulheres”
designa “toda a violência dirigida contra a mulher por ser mulher ou que afeta desproporcional-
mente as mulheres”.
Ou seja, podemos encarar que a “a prioridade” é a eliminação da violência contra a
mulher, estando o conceito de violência de gênero numa “posição instrumental” relativamente
àquela violência (SOUSA, 2016, p. 267). Ainda assim:
“[d]o ponto de vista da vítima, toda a violência contra as mulheres , tal como está
definida na Convenção, é violência de gênero. Mas nem toda a vítima de violência
de gênero é mulher (...). Facto é que na Convenção (...) a violência de gênero[é]
exclusivamente considerada da perspetiva da violência contra as mulheres” (SOUSA,
2016, p. 267).
rem que os atos de violência aqui contemplados sejam tidos em conta nas decisões respeitantes
ao direito de guarda, direito de visita das crianças e sua segurança (artigo 31.º da Convenção);
de criminalização dos atos de violência psicológica, física, sexual, perseguição, de casamento
forçado, de mutilação genital feminina, aborto forçado e esterilização forçada e assédio sexual
(artigos 33.º a 40.º), devendo existir “sanções efetivas, proporcionais e dissuasoras, tendo em
conta a sua gravidade” (art.º 45.º, n.º 1).As partes obrigam-se, ainda, no artigo 48.º da Conven-
ção, a proibir os processos alternativos de resolução de conflitos obrigatórios relativamente aos
53
atos de violência aqui abrangidos4.
Neste sentido, a Convenção apoia-se em vários planos no âmbito da proteção da vítima
mulher contra os atos de violência, incluindo o criminal. Com efeito, embora o âmbito de aplica-
ção da Convenção diga respeito aos atos de violência contra as mulheres (art. 2.º da Convenção),
referindo-se ainda expressamente que “(...) as partes deverão dar particular atenção às mulheres
vítimas de violência de gênero” (n.º2, do artigo 2.º da Convenção), o certo é que a Convenção
não obriga, nesta sede, a elaboração de tipos legais que adotem a perspetiva de gênero.
foi em 2011. (...) Mas mais: (...) nunca como agora a vítima foi encarada como um desafio jurí-
dico-penal”. Este modo de intervir jurídico-penal, baseado, como nos diz o autor, num “outro
4 Efetivamente, o recurso a estes mecanismos não deve ter natureza obrigatória, devendo o acesso às práticas
de justiça restaurativa. As condições para recurso às práticas de Justiça Restaurativa deverão obedecer aos
critérios estabelecidos no artigo 12º da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de
outubro de 2012 que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da cri-
minalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho. A participação voluntária da vítima
deve ser conditio sine qua non, devendo o consentimento ser prestado de forma livre e informada e passível de
ser retirado em qualquer momento do processo – neste sentido, ver o Parecer da APAV, 2015, p. 5.
54
modo de olhar o problema criminal”, rompe com a tradição que “assenta sobretudo numa certa
perenidade dogmática que é resistente a intervenções ideológicas” (MONTE, 2016, p. 285-286).
Assim, vislumbra-se uma alteração de paradigma, que, como salienta Monte (2016, p.
277-278), “embora começando por um certo tipo de criminalidade (...) significa, para além de
outras implicações, a assunção de que a vítima nem sempre tem sido devidamente protegida
pelo direito penal. Nisto consiste o resgate jurídico-penal da vítima, em particular da mulher”.
Não obstante, refira-se que no arsenal jurídico-penal português não consta, efetiva-
mente, como noutros ordenamentos jurídicos5, a perspetiva de gênero, protegendo-se tanto o
homem como a mulher6.
Neste sentido, apesar da utilização em diferentes contextos da expressão “violência de
gênero”7, em termos internacionais8 e nacionais9, da mesma não resultam tout court (simples-
mente), repercussões penais (GRANGEIA; SANTOS, 2017) , na medida em que na legislação
penal portuguesa não há expressa consagração da perspetiva de gênero10. Desde logo, não se
opta por uma concessão de gênero na formulação do tipo legal de crime, assumindo-se, ao in-
vés, uma concessão neutra face ao gênero.
Assim, apesar de ser evidente, quer no cenário internacional, quer nacional, que as
mulheres são as principais vítimas de determinados crimes, pode a vítima ser igualmente um
homem na legislação portuguesa.
Ainda assim, na vertente político-criminal, refira-se que o legislador tem dado des-
taque à violência de gênero, alertando a comunidade para a gravidade da violência contra as
5 Neste contexto, tem-se sobretudo verificado nos ordenamentos jurídicos política e socialmente semelhantes ao português duas grandes
linhas político-criminais: quer uma comprometida com o sexo da vítima, quer outra gender-neutral (AGRA et al., 2015, p. 20). Apenas a
título de exemplo, o ordenamento jurídico espanhol optou, nomeadamente, por, em cada tipo legal - para os delitos de lesiones (artículo
36), malos tratos (artículo 37), amenazas (artículo 38), coacciones (artículo 39) e vejaciones leves (artículo 41) - prever uma qualificação
quando o crime for cometido contra mulher em contexto de violência relacional; do mesmo modo que existem regras específicas para
a substituição da pena de prisão (artículo 35) e para o incumprimento da “condena, medida de seguridad, prisión, medida cautelar,
conducción o custodia” (artículo 40); entre outras especificidades, refira-se, ainda, a criação de tribunais de competência especializada,
designados por Juzgados de Violencia sobre la Mujer (artículo 43 e ss.) - ver a Ley Orgánica n.º 1/2004, de 28 de dezembro – “Medidas de
Protección Integral contra la Violencia de Género”. Para uma perspetiva do ordenamento jurídico-penal espanhol, retratanto a limitada
intervenção penal relacionada com a “violência de género”, Cuesta Aguado, 2013, p. 57 e ss. O regime espanhol tem sido alvo de críticas.
Para uma análise desta problemática, ver, entre outros, Rodríguez Álvarez et al, 2013.
6 Na verdade, inexiste no Código Penal português a expressão “violência de género”, apenas constando a expressão “identidade de gé-
nero da vítima” em duas disposições: na al. f), do n.º 2, do art.º 132.º (Homicídio qualificado) e nas als. a), b) e c), do n.º 2 do art.º 240.º
(Discriminação racial, religiosa ou sexual).
7 Acentue-se, na senda de Álvarez García (2013, p. 90), que a violência de gênero é uma “figura criminológica más que delictiva”.
8 Para uma descrição de alguns dos principais instrumentos ao nível internacional e europeu, v. Torrado Tarrío, 2013, p. 68 e 69.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
9 Veja-se, apenas a título de exemplo, o II Plano Nacional de Ação para a Implementação da Resolução do Conselho de Segurança das Na-
ções Unidas 1325 (2000) sobre Mulheres, Paz e Segurança (2014-2018) - Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/2014: “A elaboração
de planos nacionais de ação é, por isso, uma obrigação dos Estados, independentemente da sua situação interna, pois visam assegurar
que a dimensão de género seja integrada nas atividades diplomáticas, militares, de segurança, da justiça e de desenvolvimento, quer
ao nível interno quer ao nível internacional. As exigências centrais da RCSNU 1325 são a plena participação das mulheres em todos os
níveis de tomada de decisões relativas à paz e segurança, a proteção de mulheres, raparigas e meninas contra a violência de género, e a
integração da perspetiva de género em todas as estratégias de implementação e construção da paz e nas ações realizadas pelas Nações
Unidas e pelos Estados -membros. (...) Importa, pois, que a integração da perspetiva de género seja tida em conta nas ações de coope-
ração internacional. Deve, por isso, ser favorecida e reforçada a formação sobre direitos humanos, direito internacional humanitário,
igualdade de género e violência contra as mulheres, raparigas e meninas, incluindo violência sexual e violência de género. Deve ainda
ser ministrada formação sobre as matérias que constam nas Resoluções do CSNU sobre mulheres, paz e segurança ao pessoal das for-
ças armadas e de segurança e aos civis destacados para missões de manutenção e construção da paz e segurança internacionais e para
cenários de emergência e gestão de crises”.
10 Efetivamente, inexiste no Código penal português a expressão “violência de género”, apenas constando a expressão “identidade de gé-
nero da vítima” em duas disposições: na al. f), do n.º 2, do art.º 132.º (Homicídio qualificado) e nas als. a), b) e c), do n.º 2 do art.º 240.º
(Discriminação racial, religiosa ou sexual).
55
mulheres. Assim, por exemplo, como se refere no V Plano Nacional de Prevenção e Combate à
Violência Doméstica e de Gênero 2014 -2017 (V PNPCVDG)11.
Ora, cumpre, por isso, indagar, ainda que de forma breve, se o direito penal deveria
adotar a perspetiva de gênero, tendo por base a premissa, desde logo, de que o estudo da cons-
trução jurídica das relações de Gênero, é ainda uma forma de promover a igualdade (Beleza,
2004), permitindo compreender a necessidade de ponderação quer a elaboração das decisões
jurisprudenciais como criação jurídica no caso concreto, como as restantes práticas dos contro-
los formais que circundam essa aplicação da lei (Beleza, 2004).
Ora, como sintetizam Agra e outros (2015, p. 21), a opção entre a expressão “violência
de gênero” e por exemplo a utilizada na nossa legislação assume-se, muitas das vezes, como
“uma questão mais ideológico-simbólica que político-criminalmente orientada em termos te-
leológicos”.
É certo que poderemos, em abstrato, apontar vantagens e desvantagens para a adoção
de uma concessão de gênero na formulação do arquétipo legal.
Como bem salienta Sousa (2016, p. 265), podemos acentuar, desconsiderando as des-
vantagens da categorização, que “(...) a relevância do conceito de Gênero se prende com a pos-
sibilidade de remeter para o quadro da violência originada na estrutura patriarcal, formas de
violência que de outro modo não lhe seriam reconduzíveis”. Ou seja, como induz a autora (p.
265-266), “[a] perspetiva de gênero faz, então, esta distinção entre a biologia e os papeis social-
mente adjudicados à mulher e ao homem, reconhecendo a posição de desvantagem das mulhe-
res em todas as sociedades”.
Ainda assim, alerta a autora (p. 268) que “(...) a dificuldade não deixará de estar em
classificar, com objetividade, num dado caso concreto, se a situação é de violência de Gênero
ou de violência contra as mulheres, ou se o não é”, havendo situações onde a fronteira se revela
difícil de alcançar. Além disso, devemos igualmente ter presente que a violência de gênero pode
ser exercida por mulheres e contra mulheres, sobretudo “(...) como meio de eliminar a competi-
ção e assegurar a afirmação pessoal e mesmo a própria sobrevivência em entornos sociais que
são determinados e dominados pelos homens” (SOUSA, 2016, p. 271).
Na verdade, no âmbito da violência contra as mulheres, e muito especificamente no
conceito de “violência doméstica”, inexiste uma rigorosa conceitualização, cruzando-se, por
vezes, “(...) noções infiltradas por ideologias, atitudes morais, mediatismo, movimentos…”, pelo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
que “[a]s formas de problematização ainda estão longe da exigência crítica, ponto de partida
para uma sistemática e metódica conceitualização e teorização próprias do pensamento cientí-
fico” (AGRA e outros, 2015, p. 22).
A este propósito Agra e outros (2015, p. 21) alertam que “(...) a designação de gender
11 Publicado no Diário da República, 1.ª Série – n.º 253, de 31 de dezembro de 2013, onde se lê, por exemplo que: “O V PNPCVDG as-
senta precisamente nos pressupostos da Convenção de Istambul, alargando o seu âmbito de aplicação, até aqui circunscrito à violência
doméstica, a outros tipos de violência de género. Esta mudança de paradigma faz com que o V PNPCVDG abranja outras formas de
violência de género, como a mutilação genital feminina e as agressões sexuais”.
56
violence (...) deixa vários factos da realidade social que mereceriam tutela jurídico-criminal sem
ela, não sendo exato que se vislumbre um fundamento para tal distinção”.
Ademais, refira-se que a opção pelo gênero pode assumir desvantagens na própria
proteção da mulher, na medida em que, dependendo da técnica legislativa utilizada, o preen-
chimento do objetivo e subjetivo pressupõe, como referem Agra e outros (2015, p. 21, 22) “(...)
a prova de que o ato ou omissão se devem a um desejo de repulsa, de diminuição, de rejeição
da figura feminina, da sua condição e de todo o universo que, de acordo com as convenções
sociais, se associa a uma mulher”. Ou seja, como apreendem os autores (p. 22):
“(...) não será difícil perceber que tal torna não somente o tipo objetivo, mas sobretudo
o subjetivo (dolo-do-tipo), de mais difícil preenchimento, o que acaba por redundar,
na prática, numa contradição nos termos: um Tatbestand apostado numa proteção
penal qualificada (em muitos casos) da situação prototípica de um arguido homem e
de uma ofendida mulher, pode, amiúde, não se cumprir em virtude de tais exigências
acrescidas”.
Propugnando que “[o] mesmo não sucede já se a abordagem for neutral do prisma do
chamado ‘objeto de ação’ do delito”.
No entanto, podemos adiantar, concordando com Monte (2016, p. 283), a propósito das
alterações introduzidas no art.º 154.º (coação), que apesar do tipo proteger tanto o homem como
a mulher, atendendo ao fato de as vítimas serem sobretudo mulheres, “(...) pode dizer-se que é a
vítima-mulher que, maioritariamente, está na mira desta proteção”.
Neste sentido, cremos que uma (eventual) introdução da perspetiva de gênero no direito
penal português teria de assentar numa profunda reflexão criminológica em torno das causas que
lhe estão subjacente e dos fatos da realidade social que merecem esta tutela jurídico-penal acres-
cida, de forma a compreender as implicações em sede de política criminal e dogmática penal12.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
nal assentes na proteção da vítima mulher contra os atos de violência abrangidos na Convenção.
A Convenção promove uma visão holísta e interdisciplinar, vertida em vários planos
no âmbito da proteção da vítima mulher contra os atos de violência, incluindo o criminal.
Não obstante, não obriga os Estados-partes à elaboração de tipos legais que adotem a pers-
12 Alertando para este problema na legislação espanhola, ver Rodríguez Álvarez et al., 2013, p. 791 e seg. Acentuando as problemáticas
(probatórias) em torno do preenchimento do tipo – objetivo e subjetivo – no âmbito das formulações legais que atendem à conceção do
género, relacionados com “…a prova de que o ato ou omissão se devem a um desejo de repulsa, de diminuição, de rejeição da figura
feminina, da sua condição e de todo o universo que, de acordo com as convenções sociais, se associa a uma mulher” – ver Âgra, 2015,
p. 21 e 22.
57
petiva de gênero.
Assim, apesar de ser evidente, quer no cenário internacional, quer nacional, que as
mulheres são as principais vítimas de determinados comportamentos abrangidos pela Conven-
ção, pode, no contexto português, a vítima ser igualmente um homem. Não obstante, refira-se
que no arsenal jurídico-penal português não consta, efetivamente, como noutros ordenamentos
jurídicos, a perspetiva de gênero, protegendo-se tanto o homem como a mulher.
Neste sentido, da expressão “violência de gênero” não resultam tout court (simples-
mente), repercussões penais, na medida em que na legislação penal portuguesa não há expressa
consagração da perspetiva de gênero. Desde logo, não se opta por uma concessão de gênero na
formulação do tipo legal de crime, assumindo-se, ao invés, uma conceção neutra face ao gênero.
É certo que poderemos, em abstrato, apontar vantagens e desvantagens para a adoção
de uma concssão de gênero na formulação do arquétipo legal.
Neste sentido, cremos que uma (eventual) introdução da perspetiva de gênero no direito
penal português teria de assentar numa profunda reflexão criminológica em torno das causas que
lhe estão subjacente e dos factos da realidade social que merecem esta tutela jurídico-penal acres-
cida, de forma a compreender as implicações em sede de política criminal e dogmática penal.
REFERÊNCIAS
ÁLVAREZ, Ana Rodríguez e outros. Actas del seminário de especialistas, ‘La violência de
Gênero sobre las mujeres: la mediación, una solución’: problemas y soluciones a la política
legislativa sobre violencia de género. In: MANZANARES, Raquel Castillejo, SALGADO,
Cristina Alonso. Violencia de Gênero y Justicia. Santiago de Compostela: Universidade de
Santiago de Compostela, 2013
BELEZA, Teresa Pizarro. Anjos e monstros – A construção das relações de Gênero no direito
penal. Revista Ex Aequo. Lisboa: 10, 2004, p. 29-40 .
58
Lisboa: CEDIS, 2017, disponível em: <http://cedis.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2017/04/
Conven%C3%A7%C3%A3o-de-Istambul-04.04.2017.pdf>. Acesso em: 11 de set. 2010.
TARRÍO, Cristina Torrado. Violência doméstica versus violência de Gênero. Transitando por
el universo psico-jurídico”, In: CASTILLEJO MANZANARES, Raquel, SALGADO, Cristina
Alonso. Violencia de Gênero y Justicia. Santiago de Compostela: Universidade de Santiago
de Compostela, 2013.
ABSTRACT
This text analyzes the scope of the Council of Europe Convention on
Prevention and Control of Violence against Women and Domestic Vio-
lence of 11th May, 2011, known as the Istanbul Convention, which was
ratified by Portugalon January 21th, 2013 and which came into force
on August 1st, 2014, emphasizing its importance for the protection of
the victim, especially the female victim, in the international context. In
a perfunctory way, it also takes into account the implications of sub-
59
stantive criminal law, reflecting the lack of a gender perspective in the
Portuguese legal system.
Keywords: Istanbul Convention. “Gender violence”. Protection of the
victim woman. Portuguese legal system.
60
DE HOBBES A PUFENDORF – A CONSTRUÇÃO DOS CARACTERES DO
CONCEITO JURÍDICO MODERNO DE SOBERANIA
RESUMO
Não obstante a tendência para a relativização do conceito de soberania,
o constitucionalismo continua a não dispensar o recurso ao tradicional
conceito tridimensional que retrata um Poder exercido sobre uma co-
munidade política numa dada circunscrição territorial. Nesse contexto,
se os investigadores associam o conceito jurídico de soberania ao tra-
balho de Bodin e Hobbes, mais difícil tem sido a compreensão do papel
que Samuel Pufendorf, partindo da sua distinção entre entes físicos e
morais, desempenhou nesse processo. Tal papel revelou-se decisivo para
o Estado Moderno; sem ele, a concetualização jurídica da soberania
não teria sido concluída nos termos que hoje conhecemos. Sobretudo,
dele se extraiu uma fórmula que, após adaptações posteriores (Sieyès),
superou o antagonismo entre os conceitos de soberania e de separação
de poderes, fazendo com que, atualmente, a sindicabilidade dos atos do
poder legislativo – poder não soberano e subordinado à Constituição –
conviva com a indisindicabilidade das normas constitucionais, enquan-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Doutor em Direito e Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Membro da Direção do Instituto de Ciências Ju-
rídico-Políticas. Investigador Principal do Centro de Investigação em Direito Público da mesma Faculdade. Advogado da Sérvulo &
Associados, Sociedade de Advogados.
61
1 INTRODUÇÃO
2 Embora concentrado no plano internacional, propondo a superação da dicotomia entre o sentido “político” e o sentido “jurídico” da
soberania, cfr. M artti Koskenniemi, From Apology to Utopia: The Structure of International Legal Argument, 2.ª ed., Cambridge:
Cambridge University Press, 2005, pp. 228 e segs..
3 Michel Troper, Sovereignty, in Michel Rosenfeld / A ndrás Sajó (org.), The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
62
nem na ordem externa (soberania externa)” (OTERO, 2008, p. 121).
Na atual democracia constitucional, que atribui ao poder constituinte o poder máximo
a exercer numa comunidade política que tem a capacidade de autogoverno e de autogestão dos
seus destinos coletivos, o “Estado que se define constitucionalmente como soberano” é o Estado
no qual “a soberania só pode resultar de uma decisão imputada [ao] povo através do exercício
do poder constituinte” (MORAIS, 2015, p. 148). Por isso, sob esta perspectiva tradicional, “sen-
do soberano, o poder constituinte não é passível de ser heterolimitado no plano jurídico, sem
prejuízo de, naturalmente, se poder auto-limitar, pelo que uma Constituição gerada por esse
mesmo poder só experimenta as formas de heterolimitação que tiverem sido ditadas pelo poder
constituinte ou por um poder de revisão constitucional não contrário aos limites de identidade
constitucional fixados por esse poder constituinte” (MORAIS, 2015, p. 148).
Ora, se não têm sido sentidas dificuldades pelos investigadores em reconstituir a clás-
sica associação do nascimento do conceito jurídico de soberania ao trabalho de Jean Bodine de
Thomas Hobbes (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 90), mais complexa tem sido a compreen-
são do papel que Samuel Pufendorf desempenhou nesse processo histórico – papel que se re-
velou decisivo para o Estado Moderno e sem o qual a concetualização jurídica da soberania não
teria sido concluída nos termos que servem hoje de alicerce para o labor dos constitucionalistas.
Num plano inicial, é sabido que Bodin e Hobbes partilhavam traumas paralelos como
resultado da situação anárquica que viram os seus países atravessar, ficando firmemente con-
vencidos acerca da necessidade de edificação de uma autoridade robusta para a obtenção de paz
e estabilidade para as suas comunidade políticas7. Se, por isso mesmo, Bodin afirmara desejar
construir um conceito de soberania “à imagem do Deus Todo-Poderoso” (BODIN, 1986, p. 179
e p. 295) – mas fazendo-o ainda de modo teoreticamente impreciso e carecendo de especifica-
ções adicionais –, também Hobbes fez notar que o Leviatã a quem confiava a satisfação das ne-
cessidades políticas era construído como “Deus mortal, a quem todos nós devemos, sob o Deus
imortal, a nossa paz e defesa” (HOBBES, 1839). Mais do que uma simples imagem, a escolha
do ser aterrador descrito no Cap. XLI do Livro de Jó (HOBBES, 1839) – “não há na Terra poder
que se lhe compare”, segundo a tradução literal da versão escolhida por Hobbes para ilustrar a
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
capa da primeira edição do Leviatã – assumia uma correspondência perfeita com os propósitos
do seu Autor8.
Por isso é que Hobbes afirmava que, “em virtude desta autoridade” atribuída ao “Deus
mortal”, a qual incluiria “o direito sobre a vida e sobre a morte, bem como sobre todas as ofen-
7 Para uma apreciação comparativa dos condicionamentos fácticos que rodearam Bodin e Hobbes, Preston K ing, The Ideology of Order
– A Comparative Analysis of Jean Bodin and Thomas Hobbes, 2.ª ed., London: Frank Class, 1999, pp. 47 e segs. e 56 e segs.
8 Sobre a escolha do “Leviathan” bíblico para imagem do soberano hobbesiano e sobre a sua caracterização de acordo com as caracterís-
ticas que lhe são apontadas em Jó, Freitas do A maral, História das Ideias Políticas, I, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 356-357.
63
sas corporais” (HOBBES, 1983), “ele dispõe e usa de um tal poder e de uma tal força que lhe
são concedidos que o terror que eles inspiram lhe permite conformar as vontades de todos, para
conseguir a paz no interior e o auxílio contra os inimigos do exterior” (HOBBES, 1839).
Hobbes tampouco deixou por esclarecer o sentido – bem mais preciso do que no caso
de Bodin – que atribuía à natureza “absoluta” da soberania:
Há em cada Cidade perfeita [...] um Poder Supremo atribuído a alguém que é maior do
que o poder que por direito poderia ser conferido pelo homem e maior do que qualquer
mortal pode ter sobre si próprio. A tal poder, maior do que o homem poderia transferir
para outro homem, chamamos de absoluto, pois quem quer que tenha submetido a sua
vontade à vontade da Cidade, permitindo-lhe que, impunemente, possa fazer qualquer
coisa, aprovar leis, julgar controvérsias, definir penas, fazer uso, a seu bel-prazer, da
força e da riqueza dos homens, e tudo isto por direito, verdadeiramente lhe ofereceu
o maior domínio que alguma vez poderia ser concedido a alguém (HOBBES, 1839).
9 Nas palavras de Goyard -Fabre, por esta via “Hobbes soube utilizar de modo soberbo o modelo epistemológico que lhe foi oferecido
pelos Seis Livros da República”, porquanto, “mais filósofo do que Bodin”, e aproveitando a sua paixão pela aplicação da infalibilidade
matemática ao terreno político, radicalizou aquele modelo ao recorrer ao contrato social para dar uma forma “geométrica” à soberania,
vendo no poder soberano “o resultado matemático do acto contratual que fez nascer a Commonwealth” – cfr. La Législation Civile
dans l’État-Leviathan, in M artin Bertman / Michel M alherbe (eds.), Thomas Hobbes: De la Métaphysique a la Politique, Paris:
Vrin,1989, p. 179.
10 Ao proceder a um estudo comparativo dos caracteres do Deus omnipotente descrito no Livro deJó e os caracteres apresentados pelo
Leviathan hobbesiano, H alliday, K enyon e R eeve puderam concluir que, ao pretender fazer coincidir ambos, Hobbes “demonstrava
acreditar que [o exercício] da arte da política consiste numa imitação dos comandos do Deus omnipotente”; “exactamente nos termos em
que o Livro de Jó revelara o irresistível poder de um Deus omnipotente, o Leviathan demonstrava o poder irresistível da personificação
de Deus, o soberano mortal” – cfr. Hobbes’s Belief in God, Political Studies, 31, 1983, pp. 418 e segs.. Numa perspectiva distinta, mas
reconhecendo ter Hobbes concedido ao Leviathan “propriedades similares às divinas”, tornando-o “num deus salvador que faz pelos
humanos aquilo que eles individualmente não podem fazer por si mesmos”, v. A loysius P. M artinich, Introduction, in A loysius P. M ar-
tinich / Brian Battiste ,Leviathan, Ontario: Broadview Press, 2011, p. 19.
64
constitucional.
E sem esta transferência – que Hobbes começou mas que, como seguidamente se nota-
rá, somente Pufendorf conseguiria concluir –, a concetualização do Estado moderno não teria
sido possível nos termos em que a conhecemos.
Em concreto, o exercício que Hobbes propôs consistiu numa reutilização de uma figura
que Francisco Suárez apresentara no quadro da herança tomista, quando ensinara que, para a
construção de uma verdadeira comunidade política, a mera “multidão” desordenada deveria ser
transfigurada num “corpo uno que, por conseguinte, necessita de uma só cabeça”, dando origem
a uma “persona ficta” ou “idealis” (SUÁREZ, 1967-1968).
Ora, se o pensador espanhol soubera distinguir este corpo coletivo em face dos indi-
víduos que o compõem, o que faltava seria distinguir ainda a personalidade jurídica estadual
em face daquele corpo colectivo – do próprio povo. E foi essa a tarefa de Hobbes. É certo que
este também seguiu Suárez quando sustentou que o resultado do acordo dos fundadores da
Comunidade das Nações consistiria na criação de “uma unidade real de todos os homens numa
só pessoa, construída por contrato de todos os homens com todos os homens”(HOBBES, 1839).
Mas para a artificialização da personalidade jurídica do Estado, o contributo decisivo foi traça-
do no Do Cidadão, ao apresentar a ideia de que a união empírica da vontade de todos os homens
daria origem a uma vontade jurídica própria e autônoma da Cidade, que se não confundiria
com a vontade de todos os seus membros – aliás, com isso abrindo um caminho sem o qual
dificilmente Rousseau teria podido alcançar a sua construção da “vontade geral”.
Com efeito, para Hobbes:
Esta união chamada de Cidade, ou de sociedade política, é também uma Pessoa; pois,
quando existe uma só vontade de todos os homens, esta deve ser considerada como
uma só Pessoa, e pela palavra «uma» se distingue de todos os homens particulares,
tendo os seus próprios direitos e propriedades, pelo que nenhum dos cidadãos, nem
sequer todos eles juntos (excepto aquele cidadão cuja vontade representa a de todos)
deve ser confundido com a Cidade. Portanto, uma Cidade é uma pessoa cuja vontade,
pela união de muitos homens, deve ser aceite como a vontade de todos eles, pelo que
pode usar todo o poder e as faculdades de cada pessoa individual para a manutenção
da paz e para a defesa comum” (1983).
Numa palavra: a juridificação de uma pessoa coletiva estatal permitia atribuir-lhe uma
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
vontade distinta e autónoma em face do próprio conjunto de cidadãos que formara a Cidade.
3 O CONTRIBUTO DE PUFENDORF
65
É que essa construção não teria sido exequível se o germânico, apenas duas décadas
depois do aparecimento do Leviatã, quando desejou conceber um sistema de direito natural
dotado das características da autonomia e auto-suficiência – por procurar extrair dedutivamente
toda uma noção de sistema de Direito a partir de um postulado inicial de matriz natural-antro-
pológica (e não natural-teológica)11 –, não tivesse decidido fundar a sua visão explicativa dos
fenómenos sociais e humanos na conhecida distinção entre entes físicos e entes morais (entia
physica e entia moralia).
Como é sabido, estes últimos entes foram concebidos, na sua visão, como as criações
que os seres inteligentes aditam às coisas naturais e aos movimentos físicos (os “modos” ou
“atributos” que lhes imprimem) para conformar a ordem social e dirigir a conduta humana12.
Qualquer fenômeno social ou político e qualquer instituição jurídica – como o Estado e a sobe-
rania em torno do qual este se organiza – seria reconduzido a um tal ente moral, intencional-
mente imposto13 por seres inteligentes para a viabilização de uma ordem social e para a direcção
dos actos voluntários dos seus membros14.
Todavia, por assumir a natureza de ente modal, e não de ente substancial – justamente
por consistir num “modo” inscrito nas coisas substanciais e “imposto” para a direcção destas
últimas –, nenhum ser moral poderia subsistir em si mesmo, apenas existindo enquanto integra-
do na coisa substancial que visasse disciplinar15.
Ora, é razoável admitir que esta premissa poderia ser utilizada por quem fosse inspi-
11 E isto porque, numa construção silogística do sistema jurídico, cada conclusão racionalmente extraída servia, por sua vez, de premissa
para a conclusão seguinte – pois que “demonstrar é deduzir silogisticamente uma conclusão necessária sobre qualquer matéria a partir
de princípios que constituem as suas causas, os quais devem ser reconhecidos além de qualquer dúvida ou disputa” (cfr. Samuel Pufen-
dorf, De Iure Naturae et Gentium Libri Octo, ed. bilíngue de Walter Simons, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford,
1934, Livro I, Cap. II, 2); SAMUEL PUFENDORF, De Officio Hominis et Civis Juxta Legem Naturalem Libri Duo, ed. bilíngue de
Walther Schücking, Oxford / New York: Oxford University Press, 1927, Livro I, Cap. III, 9; e, no mesmo exato sentido, Christian Wolff,
Institutiones Juris Naturae et Gentium, Halle: Officina Rengeriana, ed. de 1754, Parte I, Cap. III, 44.
12 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae…, cit., Livro I, Cap. I, 3: “podemos definir os entes morais como certos modos acrescentados por
seres inteligentes às coisas naturais e aos movimentos, especialmente com o fim de guiar e temperar a liberdade dos actos voluntários e
para alcançar uma regularidade aceitável na vida humana”. E, novamente, Samuel Pufendorf, De Iure Naturae…, cit., Livro I, Cap. I,
4: “estes são acrescentados, segundo a vontade das Criaturas inteligentes, aos seres já perfeitos num sentido natural”. Esboçando já esta
definição a propósito do tratamento do conceito de status como ente moral que cria um espaço de autodeterminação no qual os seres
físicos podem praticar as suas acções, em analogia com as substâncias físicas que corporizam o espaço onde aqueles podem realizam
os seus movimentos físicos, Samuel Pufendorf, Elementorum Iurisprudentiae Universalis Libri Duo, ed. bilíngue de William Old-
father, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford, 1931, Livro I, Definição III, 1; a partir daí se desenvolvia o tratamento
do conceito de “coisa moral”, destinada ao estudo da aquisição de direitos reais sobre as coisas (Samuel Pufendorf, Elementorum
Iurisprudentiae Universalis Libri Duo, ed. bilíngue de William Oldfather, Oxford / London: Clarendon Press / Humphrey Milford,
1931, Livro I,Definição V); do conceito de “título” como “atributo moral” (Definição VI); e dos conceitos de “autoridade” (Definição
VII) e de “direito” como “poderes morais activos” (Definição VIII).
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
13 Porque resultava de um acto de “imposição” [impositionis] e não de “criação”, “pois estes [entes morais] não procedem de princípios
incorporados na substância das coisas” da Natureza criada, antes sendo-lhes “aditados” –Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit.,
Livro I, Cap. I, 4 e 23.
14 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro VII, Cap. III, 1 e segs.. Eis a sua definição de Estado: “O Estado é uma pessoa moral
composta, cuja vontade, formada e unida a partir dos pactos previamente celebrados pela multidão, é considerada a vontade de todos,
devendo recorrer às suas forças e capacidades para prosseguir os fins da paz e da segurança comuns” –Samuel Pufendorf, De Iure Na-
turae..., cit., Livro VII, Cap. II, 13. Por sua vez, definindo também a “autoridade soberana como qualidade moral”,Samuel Pufendorf,
De Iure Naturae..., cit., Livro VII, Cap. III, 1.
15 Samuel Pufendorf, De Iure Naturae..., cit., Livro I, Cap. I, 6. Para compreender mais amplamente o significado da natureza modal
(não substancial) dos entes morais de Pufendorf, alguns comentadores já ilustraram a sua não-subsistência autónoma com as caracte-
rísticas que A ristóteles imprimira às formas, quando tentara extinguir a dualidade entre as ideias e as coisas sensíveis proposta por
Platão, sustentando que nenhuma ideia (forma) valeria por si e subsistiria em si, apenas existindo quando integrada no mundo físico de
que Platão a expulsara (cfr. Cabral de Moncada,Filosofia do Direito e do Estado, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1995 [reimpr.],
I, pp. 187-188). Assim ocorreria com os seres modais de Pufendorf: não teriam existência em si, valendo somente se incorporados nas
coisas físicas para cuja direcção o Homem os houvesse projectado.
66
rado por uma matriz humanista para concluir que o Estado e qualquer outro fenômeno político
não podem constituir fins em si mesmos nem extravasar a natureza de meros instrumentos de
prossecução dos fins antropológicos dos homens que lhes deram vida.
Porém, Pufendorf, que se movia noutro plano, procurando uma síntese dos jusna-
turalismos grociano (racionalista-dedutivista) e hobbesiano (naturalístico-materialista)16, não
hesitou em apelar à sua construção precisamente com o propósito de explicar que, na qualidade
de ente modal (não substancial), o Estado só é e só ganha vida jurídica (moral) quando os fun-
dadores da comunidade política concretizam o pactum subjectionis por constituir ex novo uma
soberania que não existe antes (isto é, no próprio povo fundador) e só nasce quando é alocada
ao soberano que exerce as funções de “alma que informa, anima e dirige o corpo público” (PU-
FENDORF, 1934).
Nesta construção, após criarem uma sociedade pela celebração do (primeiro) pacto
social destinado a pôr fim ao estado de natureza e determinarem através do (segundo) pacto
social a forma de governo a implementar, os Homens dariam origem ao Estado enquanto ente
moral somente quando concluíssem o (terceiro) pacto social (PUFENDORF, 1934), em cujos
termos “todos os membros do Estado, ao submeterem as suas vontades à Vontade de um único
comandante, também se obrigaram, ao mesmo tempo, a lhe não resistir” (PUFENDORF, 1934).
Sob pena de não poder exercer uma soberania efectiva, a “autoridade civil recebe um
poder natural, pelo qual, quando o súbdito recusa obedecer, pode ser aterrorizado para o cum-
primento dos seus deveres através do medo da punição” (PUFENDORF, 1934). E enquanto
tal não sucedesse e não fosse possível aglutinar o Estado em torno da autoridade centrípeta
do soberano, “nenhuma comunidade subsistiria” (PUFENDORF, 1934), pois que nenhum ente
físico ou coisa natural sustentaria o ente moral criado pelos homens e em si mesmo desprovi-
do de substância: reproduzindo expressamente as palavras de Hobbes, “o Estado é concebido
como um homem artificial, «no qual o soberano é a alma, dando vida e movimento a todo o
corpo»”(PUFENDORF, 1934).
Em suma, da juridificação do conceito de Estado como pessoa artificial (moral) nas-
cia a convicção de que seria inconcebível, dos pontos de vista jurídico, lógico e ontológico, a
organização de uma comunidade política que não assentasse na instituição de uma autoridade
investida do poder de soberania – a qual seria juridicamente insindicável e irresistível pelos
indivíduos integrados nessa comunidade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Assim, bem se vê que, se Bodin e Hobbes haviam dado o passo inicial para a sedi-
mentação deste dado fundamental na caracterização da matriz continental do Estado de tipo
europeu, por estabelecerem a premissa segundo a qual não há organização política (Estado)
sem soberania, Pufendorf completara-o por afirmar que, sem a incorporação da soberania (ente
16 Por todos, v. o estudo mais autorizado de Fiammetta Palladini, Samuel Pufendorf Discepolo di Hobbes. Per una Reinterpretazione
del Giusnaturalismo Moderno, Bologna: Il Mulino, 1990, passim; mais recentemente, embora preferencialmente centrado na questão
antropológica e na doutrina da sociabilidade,Fiammetta Palladini, Pufendorf Disciple of Hobbes: The Nature of Man and the State of
Nature: The Doctrine of Socialitas, History of European Ideas, 34 (2008), pp. 26 e segs..
67
moral) na pessoa do soberano, a quem seria reconhecido o poder de aprovação de atos jurí-
dicos incontroláveis e insindicáveis, a primeira só poderia ser pensada como autêntica “alma
sem corpo” (PUFENDORF, 1934), não podendo sequer obter reconhecimento ôntico nem ser
logicamente aceite nas categorias admitidas pela mente humana.
De resto, no caso de Pufendorf, a identificação teorética de sete partes potentiales
summi imperii – os poderes legislativo; de estabelecer penas; judicial; de fazer a guerra e a paz
e concluir tratados; de nomear os ministros e funcionários; de fixar e arrecadar impostos; e de
disciplinar o ensino público (PUFENDORF, 1934) – não podia ir além de um juízo de decom-
posição abstrata das manifestações da soberania. Para o germânico, o Estado não deixaria de
ficar desmembrado no momento em que essa decomposição se reflectisse num esquema compe-
tencial concreto de atribuição de partes da soberania a autoridades distintas.
4 ELEMENTOS EXTRAÍDOS PARA A TEORIA CONSTITUCIONAL CONTEM-
PORÂNEA
Quando aceitou o conceito de soberania como elemento estruturante do Estado mo-
derno, o constitucionalismo adotou como sua a ideia de que nenhuma comunidade política (co-
munidade num território delimitado e sujeita a um poder político) sobrevive e alcança os seus
fins se se não alicerçar em torno de uma autoridade concebida nos termos propostos por Bodin
e Hobbes – a saber: una, indivisível e impartilhável17.
Mas, obviamente, essa ideia-chave teria de vir a ser compatibilizada com a crença, já
previamente sugerida no pensamento europeu mas que só mais tarde se estabilizaria, de que
não há liberdade sem separação de poderes (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 106). Como é
compreensível, tais duas ideias contraditórias não podiam deixar de provocar graves dificulda-
des aos teóricos que assumiam – e, até hoje, nunca mais deixaram de assumir – a impossibilida-
de de conceber um sistema constitucional satisfatório sem a presença de ambas.
É que, longe de meramente suporem a sua inconveniência e de quererem evidenciar as
desvantagens da sua implementação, os proponentes do conceito de soberania haviam sublinha-
do, apresentando tal axioma como “verdade analítica” (FRANKLIN, 1993, p. 39), a absoluta
impossibilidade jurídica e lógica de proceder à divisão dos poderes nela integrados – sobretudo
tendo em vista o seu controlo mútuo e a sua fiscalização e sindicabilidade por contra-poderes.
Em vez de se limitarem a alegar os seus possíveis efeitos indesejáveis, haviam afirmado que
uma tal divisão seria, não desaconselhável (no sentido da perda da eficiência na prossecução
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
das atribuições do Estado), mas simplesmente insuscetível de implementação jurídica (no sen-
tido da pura implosão do Estado que a procurasse concretizar).
Foi essa incongruência que foi transportada até à atualidade: sendo certo que, na de-
mocracia constitucional, não seria possível renunciar à separação de poderes como princípio
estruturante da organização política, a verdade é que os centros de autoridade que têm exercido
17 Adoptou, por outras palavras, o entendimento que pôde ser resumido por Hobbes ao iniciar o Cap. XXXI do Leviathan: “um Estado
sem poder soberano é como um conceito sem substância e não pode subsistir”.
68
o poder constituinte – reclamando para si próprios a natureza soberana do poder que ostentam
– tampouco aceitaram abdicar do axioma básico de Hobbes, segundo o qual “não pode haver
governo quando existe mais do que um poder soberano” (HOBBES, 1969, p. 77).
A solução que – pela mão de Sieyès (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 151-152) –
vem sendo encontrada para coadunar essas duas ideias contraditórias consiste num curioso
fenómeno teorético-jurídico.
Logo que se verificou que seria impossível continuar a qualificar o legislador ordiná-
rio como “soberano” – visto que ele próprio ficaria subordinado a um outro poder do Estado
(poder constituinte), o que só por si implicaria justamente o seu caráter não soberano –, o
constituinte, sentindo ainda a necessidade de proclamar a subsistência de um qualquer poder
soberano, remeteu-o, desta vez, para o próprio “povo”, o qual, estranhamente, afirmando-se
“soberano”, aceitaria auto-submeter-se às directrizes constantes de um texto historicamente
situado (Constituição) sobre as formas e os termos em que a “soberania” seria exercida. E às
normas jurídicas constantes de tal texto seria assegurada a garantia de insindicabilidade por
qualquer autoridade constituída e, logo, não soberana.
Mas o que importa notar é que, quando concretizaram este fenômeno, os constituintes
contemporâneos não precisaram minimamente de inovar quando construíram uma ficção ju-
rídica, consistente na identificação de uma entidade artificial a quem deram o nome de “povo”
e em quem realocaram o poder de soberania, permitindo por essa via manter o dogma da sua
indivisibilidade e insindicabilidade por uma autoridade superior.
Com efeito, ainda que vindicassem a relevância de uma assembleia representativa de-
mocrática – colocando-se pois num plano divergente de Hobbes e Pufendorf –, os constituintes
não deixaram de aproveitar a poderosa construção que Hobbes apresentara no Do Cidadão,
censurando o equívoco daqueles que:
[…] não distinguem entre um Povo e uma Multidão. O Povo é algo que é único,
tendo uma só vontade, e a quem uma só acção pode ser atribuída; este não pode
ser chamado de Multidão. O Povo governa em todas as formas de governo, porque
mesmo nas Monarquias o povo governa, pois quer [wills] através da vontade [will] de
um só homem; já a Multidão são os Cidadãos, isto é, os Súbditos. Numa Democracia
e numa Aristocracia, os Cidadãos são a Multidão, mas o Conselho é o Povo. E numa
Monarquia, os Súbditos são a Multidão e (ainda que pareça um paradoxo) o Rei é o
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Se, com base nessas palavras, algumas leituras do pensamento hobbesiano, desperce-
bendo o ponto que o Autor pretendia sublinhar, se apressaram em inferir deste ponto a ideia de
que Hobbes não recusava em absoluto a “democracia”, parecendo até colocá-la no mesmo plano
da monarquia (TUCK, 2006, p. 183), o verdadeiro significado normativo daqui emergente con-
sistia antes na proposta, que o pensador inglês ofereceu ao pensamento moderno, no sentido de
aceitar sempre, e independentemente da forma de governo adoptada ou da identidade do res-
pectivo titular, que a soberania, como alicerce indispensável do fenômeno do Estado, residiria
69
numa pessoa artificial única – podendo pois manter sempre a sua indivisibilidade–, a qual não
poderia ser objeto de controlo por qualquer contra-poder do Estado, sob pena de negação da sua
qualidade soberana.
Para justificar essa insuscetibilidade de controle jurídico, podia pois alegar-se, com
base nas sugestões de Hobbes e Pufendorf, que, quando a maioria dos cidadãos componentes
da comunidade política aprovasse num momento pretérito um ato limitativo do exercício do
Poder – hoje, um ato com força constituinte –, o “Povo”, embora vinculado nas suas gerações
futuras por esse ato restritivo, nunca deixaria de governar – não havendo assim qualquer expro-
priação ilícita da sua autoridade –, pela simples razão de que a sua soberania já teria sido plas-
mada naquele ato supremo. E isso tornaria supérflua e até antijurídica a ulterior sindicabilidade
de um ato que fora reconhecido como soberano no seu momento constitutivo.
Daí que a sindicabilidade dos atos do poder legislativo – enquanto poder atualmente
não soberano e subordinado à Constituição – conviva hoje com a indisindicabilidade das nor-
mas constitucionais – enquanto expressão do poder soberano no Estado – nas nossas democra-
cias constitucionais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O divinizado “Povo”, titular absoluto do Poder, não surgiu pois, na construção de Bo-
din, Hobbes e Pufendorf, como o mero produto empírico da aglutinação dos indivíduos que
o compõem; em vez disso, surgiu como ficção jurídica que pretendeu resolver o problema de
encontrar um depositário da soberania pensada à imagem de Deus (indivisível e insindicável) e
de evitar precisamente aquela divisibilidade e sindicabilidade (logo, a sua destruição).
Uma vez sujeita ao posterior trabalho rousseauniano de normativização da respectiva
“vontade geral” (FERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2017, p. 119), tal ficção jurídica seria utilizada para
assegurar a sobrevivência da noção de soberania como centro aglutinador do Estado moderno,
ainda quando os constituintes iluministas e pós-iluministas viessem a reconhecer a impres-
cindibilidade de uma separação dos poderes – agora (somente) dos poderes constituídos pelo
soberano poder constituinte reconhecido ao “Povo”, esse sim, sempre indivisível e insindicável,
como Hobbes e Pufendorf ensinaram.
Em suma, se de Bodin e de Hobbes obteve-se a inversão das fórmulas de organiza-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
70
reconhecer no Estado a presença de um poder máximo que, fruto da sua qualidade soberana,
continua a ostentar a insuscetibilidade de sujeição a qualquer controlo jurídico por autoridades
constituídas.
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Wolff, Christian. Institutiones Juris Naturae et Gentium. Halle: Officina Rengeriana, 1754.
73
THE MODERN LEGAL CONCEPT OF SOVEREIGNTY
ABSTRACT
However the tendency towards the relativization of the concept of so-
vereignty, the constitutionalism keeps to does not dispense the recou-
rse to the traditional concepto f the three-dimensional that portrays a
Power exercised over a political community in a given territorial cir-
cumscription. In this context, if researchers associate the legal concept
of sovereignty with the work of Bodin and Hobbes, it has been more
difficult to understand the role that Samuel Pufendorf, from his dis-
tinction between physical and moral entities, played in this process.
This role proved decisive for the Modern State; without it, the juridical
realization of sovereignty would not have been completed in the terms
we now know. Above all, it derived a formula which, after subsequent
adaptations (Sieyès), overcame the antagonism between the concepts of
sovereignty and the separation of powers, making the acts of legislati-
ve power - non-sovereign power subordinate to Constitution - coexists
with the indiscernability of constitutional norms, as an expression of the
sovereign power that declares itself to be insusceptible to legal control
by constituted and non-sovereign authorities.
Keywords: Sovereign. Constitution. Bodin. Hobbes. Pufendorf.
74
A RACIONALIDADE COMUNICATIVA DE HABERMAS E O PARADIGMA
PROCEDIMENTAL JURÍDICO DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
Lauro Ericksen1
RESUMO
O artigo discute as possibilidades de uma compreensão comunicati-
va intersubjetiva sob a égide do pensamento de Habermas. Tem como
objetivo geral explorar os elementos metodológicos de uma nova ra-
cionalidade jurídica, calcada no agir prático e comunicativo. Objetiva,
especificamente, indicar o enquadramento da racionalidade haberma-
siana, no enquadramento dos modelos conflitivos. Tem como hipótese
de trabalho que, ainda que Habermas possua uma visão negativista do
conflito, seu desenvolvimento é sempre em prol de um consenso da
comunicação prática do agir. Resulta que o agir comunicativo haber-
masiano se convola em uma premissa procedimentalista do paradigma
resolutivo-jurídico.
Palavras-Chave: Filosofia do Direito. Teoria Geral dos Conflitos. Ra-
cionalidade Comunicativa. Paradigma Procedimental.
1 INTRODUÇÃO
1 Doutor, mestre e bacharel em Filosofia (UFRN), especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM-RJ), bacharel em Direito
(UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região. Possui livros e artigos publicados na
área do Direito e da Filosofia. Contato: lauroericksen@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8447713849678899 orcid.org/0000-
0002-4195-1799
75
em um problema de comunicação entre os indivíduos, que, sem atingir um consenso elementar
sobre o discurso, acabam divergindo.
Outrossim, o artigo possui, didaticamente, uma divisão quadripartida, em introdu-
ção, com duas seções dedicada ao desenvolvimento das principais ideias. Assim, na segunda
seção, aborda-se a questão da racionalidade comunicativa e como ela é posta como elemento
inarredável da construção e resolução do conflito. Na terceira seção, demarca-se o aspecto
metodológico da argumentação jurídica baseada no agir comunicativo, e como essa forma de
atuação é plausível no contexto da resolução procedimental dos conflitos. Derradeiramente,
há uma seção de fechamento, contendo as principais considerações finais acerca do conteúdo
abordado. Assim, espera-se fornecer uma contribuição singela, ainda que substancial, sob o
paradigma procedimental da resolução dos conflitos, sob a égide do pensamento habermasiano,
tão influente e importante para a filosofia contemporânea e também para a filosofia do direito
como um todo.
lidade das normas do direito é determinada pelo grau impositivo que elas conseguem impor à
sociedade que elas buscam reger, ou seja, a sua validade é aferida a partir de sua aceitação fática
no círculo “dos membros do direito”. Isso tudo ocorre em detrimento da legitimidade das regras
normativas, a qual é medida pela capacidade de resgate discursivo das pretensões de validade
normativa ocorrentes em processos de aplicação do Direito disciplinados pelas próprias regras
estatuídas (HABERMAS, 1997, p. 50). Essa premissa se foca nos elementos teórico-discursivos
de como ou de que modo a questão da validade do direito se presta à resolução dos conflitos
sociais, por isso a sua importância singular no estudo da teoria do conflito, em sua vertente
76
eminentemente jurídica.
Comentando os aspectos paradigmáticos levantados por Habermas, José Eduardo
Elias Romão (2003, p. 61) pontua que o filósofo da escola de Frankfurt sustenta que “a racio-
nalidade comunicativa só se tornou possível com a modernidade”. Outrossim, diferentemente
das sociedades ditas “tradicionais”, na pós-modernidade (ou hipermodernidade, como preferem
alguns teóricos) passa-se a ter um momento de difração das funções sociais, no qual as facetas
da faticidade, da normatividade jurídica e da subjetividade individual não mais se diferenciam
e já não são aspectos dominados por uma unidade “verdadeira total”2.
Nesse panorama, tanto a ação dos indivíduos quanto a ação dos grupos sociais passa
a ser acompanhada e coordenada em consentâneo com critérios de uma racionalidade co-
municativa (o elemento discursivo do direito, segundo Habermas, é um dos pontos de maior
destaque dentro da progressão social, tanto individual quanto coletivamente falando). Em re-
sumo, essa racionalidade própria do processo comunicativo social visa, em última instância, o
entendimento amplo3.
A partir desses breves delineamentos já há como perceber que a “nova racionalida-
de do direito” proposta por Habermas se atém a uma concepção negativista do conflito, tal
como os teóricos da linha clássica posicionam. A grande diferenciação do pensamento desse
filósofo alemão consiste na atribuição central dos processos discursivos, e não apenas em
um foco de poder, que ao ser desorganizado ou desestabilizado conduziria a um processo de
instabilidade conflitiva.
Assim sendo, a proposição habermasiana é, em algum sentido, dotada de uma forma
idealizada de compreender os fenômenos sociais que dão azo à formação conflitiva, haja vista
que os processos comunicativos racionais conduzem a uma forma de entendimento amplo. Não
obstante, caso o citado processo racionalizado do entendimento humano seja dinamizado4 a se
estabelecer plenamente, os conflitos tenderão a não existir (embora a concepção de existência
para ele seja algo diverso da simples ocorrência factual do conflito).
Ao se adentrar especificamente no referido processo racional-comunicativo, percebe-
2 Com essa argumentação Habermas tenta a um só tempo desbancar tanto os elementos lógicos-ontológicos de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel, que deposita na unidade lógica do devir o elemento metafísico essencial de sua dialética, quanto as acepções anti-metafísicas de
Martin Heidegger, afinal, se não unidade verdadeira total, não há sequer verdade a ser perquirida dentro desse sistema filosófico. Ainda
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
assim, há que se pontuar que a fundamentação proposta por Habermas é uma espécie de retomada neokantiana conservadora do estabe-
lecimento de condições de possibilidade para a existência do convívio social. Algo que não se diferencia muito das categorias propostas
por Kant (1987, p. 38) como necessárias e indispensáveis para que haja o estabelecimento de qualquer metafísica que se proponha a
descrever os processos filosóficos de uma sociedade estruturada. Assim, por mais que Habermas seja tido como um grande teórico da
pós-modernidade, vários de seus argumentos encontram espeque na fundamentação transcendental kantiana, uma vez que ainda tratam
de adequação e de condições de necessidade e universalidade.
3 O processo comunicativo para Jürgen Habermas (2002, p. 53) acontece quando os sujeitos, agindo comunicativamente, tratam-se lite-
ralmente como falantes e destinatários, nos papéis das primeira e segunda pessoas, no mesmo nível do olhar. Desta forma, eles contraem
uma relação interpessoal, na qual se entendem sobre algo no mundo objetivo e admitem os mesmos referentes mundanos (relações
objetivas-subjetivas em fluxo contínuo). Nessa posição performativa, diante do pano de fundo de um mundo da vida intersujetivamente
compartilhado, fazem simultaneamente, uns para os outros, experiências comunicativas entre si. Ou seja, o estabelecimento desse tipo
de comunicação racional é o único que possibilita o entendimento (ou o desentendimento) dos sujeitos partícipes.
4 Nesse ponto, ao se falar de dinamização de processos comunicativos, indubitavelmente as raízes aristotélicas de Habermas são ressalta-
das. Somente a partir desse processo de atualização (dinamização) da base material (causa material) humana, que é a própria inteligência
racional, é que se consegue alcançar um patamar mais elevado da própria natureza humana, um parâmetro “energético” – no próprio
sentido de Energeia (ἐνέργεια) definido pelo estagirita (Aristóteles) – de aferição do desenvolvimento humano.
77
-se que cada locutor possui uma função bem definida, de modo que cada agente participante
tem pretensões de validade em relação às suas próprias proposições. Tais proposições podem
estar intimamente direcionadas a cada uma das esferas de completude do sistema de comuni-
cação racional, tais como a objetividade material (as coisas), o espectro social (a própria nor-
matividade da sociedade) e o domínio da subjetividade (as vivências e experiências de cada
indivíduo ou de cada grupo social).
É justamente em torno dessas pretensões de validade que se pode desenrolar o conflito.
Isto é, desdobram-se em função dessas pretensões o consenso imediato (hipótese de inexistência
conflitiva) ou, ao contrário, um processo argumentativo (conflito propriamente dito) para,
mediatamente, obter-se um entendimento.
Como bem ressalta Miracy Barbosa de Souza Gustin (1999, p. 189), a racionalidade
nos moldes descritos por Habermas seria a capacidade dos locutores de galgarem um saber fa-
lível ou justificável, segundo as dimensões esféricas já colocadas (objetiva, social e subjetiva).
Isso porque, no processo argumentativo, deve haver a apresentação de provas e contraprovas
entre os interlocutores, na tentativa de um ajuste recíproco e, possível e finalmente, a obtenção
de um resultado consensual através da argumentação racional.
78
que a validade de suas pretensões seja aferida. Ou concluindo, se nenhuma fundamentação for
feita para a pretensão lançada, que ela deva ser tida como inválida, por não ser possível atribuir-
-lhe validade alguma.
Essa argumentação que se foca em sentenças com expressões deontológicas (as quais
usam os termos do “dever ser” para basear seu fundamento) são um sinal claro que os interlocu-
tores recorrem a um princípio de motivação e justificação das pretensões enunciadas por eles.
Isso é o que Robert Alexy (2001, p. 111) denomina de “regra geral de justificação”.
O jurista alemão define essa regra como sendo aquela que “todo locutor precisa dar
razões para o que afirma quando lhe pedirem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que
justifiquem uma recusa de dar uma justificação”. Segundo essa regra, ainda que os interlocuto-
res exijam uma justificação, não é imprescindível que todos tenham que dar explicações plausí-
veis para cada afirmação feita, a qualquer pessoa, a qualquer tempo.
Para esse nível de discussão conflitiva no âmbito jurídico é suficiente apenas que ra-
zões sejam dadas para atestar a incapacidade ou o não desejo de dar a justificação necessária
para uma situação específica, ou ainda os interlocutores delegam essa função a outrem.
Desta feita, essa regra não exige que haja uma justificação plena e individual por parte
do interlocutor para cada uma pretensão que deduza (ainda que haja resistência do outro in-
terlocutor), mas apenas ordena que todas as afirmações remanesçam susceptíveis à discussão.
Dizendo isso de uma melhor forma, as próprias razões das razões apresentadas pelos interlo-
cutores do processo de comunicação-conflito também ficam abertas à própria discussão em
torno do dissenso (GUSTIN, 1999, p. 190). Em última instância, do ponto de vista filosófico, há
uma fundamentação única para a discussão das pretensões deduzidas, pois, só assim é possível
analisar de maneira plena, não só as razões, mas as suas próprias justificativas (que podem ser
dissolvidas nas próprias razões das razões – daí o seu caráter reflexivo).
Esse critério é clarificado pelo próprio Habermas, que esclarece que a sua teoria da
ação comunicativa não é apenas uma meta-teoria, na qual não há um ponto de partida (Anfang)5
próprio. Ao comentar esse quesito, José Eduardo Elias Romão (2003, p. 61) coloca que a teoria
enunciada pelo filósofo de Frankfurt se vincula a uma “racionalidade comunicativa espontânea,
pré-reflexiva, que está efetivamente presente nas estruturas de um mundo de vida compartilha-
do pelas pessoas”.
Em síntese, essa teoria tenta se afastar da vacuidade de um posicionamento anti-meta-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
físico (no qual não haveria nenhum lastro teórico para sua fundamentação) e coloca como seu
ponto de partida (Anfang) uma teoria da sociedade que se esmera para justificar seus parâmetros
5 Esse esclarecimento também é uma crítica à dialética hegeliana, uma vez que, por rejeitar a circularidade dialética do sistema lógico
de Hegel, Habermas pontua que a estrutura lógica do devir hegeliano não possui uma fundamentação idônea para o início da filosofia
(e da própria lógica).
79
críticos, ainda que a abertura para tais razões deva sempre estar à disposição de seus locutores6.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
6 Nesse ponto, ao falar de abertura para a discussão dentro da sociedade, Habermas está a criticar as definições de Martin Heidegger
(2008, p. 124) acerca da “abertura do ser”. Na filosofia de Ser e Tempo de Heidegger, a questão da abertura (Erschlossenheit) é um termo
técnico tratado como um “des-fechar”, de modo que, abrir, jamais significa, portanto, concluir através de mediações. Somente através
dessa abertura de ser que ocorre o “acontecimento” (Ereignis), conceito fundamental da filosofia heideggeriana que trata da própria
verdade (imediata). Já na filosofia habermasiana, a mediação entre os sujeitos interlocutores é algo imprescindível, não há como haver
racionalidade comunicativa se não houver mediação entre os interlocutores e as demais esferas ou dimensões envolvidas nesse processo,
sejam elas objetivas, sociais ou subjetivas.
80
validade distintas) afigura-se apta a abarcar a pessoa humana em sua vasta diversidade de di-
mensões existenciais, objetiva, social e subjetiva (ROMÃO, 2003, p. 62). Isto porque essa nova
racionalidade comunicativa do direito é capaz de enquadrar de maneira mais flexível a realidade
dos sujeitos interlocutores, sem que haja um encerramento peremptório dos mesmos em catego-
rias ou classes predeterminadas. Em síntese, a teorização proposta por Habermas formaliza o
método adequado a ser utilizado na aplicação legítima de um Direito válido e capaz de dirimir
conflitos, fulminando-os com justiça, e, principalmente, não se depreendendo do exposto que
esses processos sejam apenas manejados pelos próprios entes estatais.
REFERÊNCIAS
GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de
sociologia e filosofia do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: Entre faticidade e validade. Trad. Flávio Beno
Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v.1.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3. ed., Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de
Janeiro: Vozes, 2008.
KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda a metafísica futura: que queira se apresentar como
ciência. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987.
KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 6.ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo:
Martins Fontes, 1998.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ROMÃO, José Eduardo Elias. O novo sistema de solução de controvérsias do Mercosul. In:
AZEVEDO, André Gomma de (Org). Estudos em arbitragem, mediação e negociação.
Brasília: Grupos de Pesquisa, 2003, v. 2, p. 49-68.
ABSTRACT
81
The paper discusses the possibilities of comprehension of intersubje-
tive communication on Habermas thinking of Law Philosophy. It aims,
in a broad way, to explore the methodological aspects of a new legal
racionality, based on practical and communicative acting. Its specific
objetive intends to indicate the framing of habermasian racionality, on
conflicts classifications and models. Its hypothesis is based on the prem-
isse that, even though, Habermas still has a negative vision on conflict,
its development points toward a consensus of communication and a col-
ective understanding of practical action. It, thus, results in knowing,
that communicative acting becomes a procedural premisse on resolu-
tive legal paradigm.
Key-Words: Law Philosophy. Theory of Conflict. Comunicative Racio-
nality. Procedural Paradigm.
82
DESAFIOS HERMENÊUTICOS DA JURIDICIDADE PÓS-MODERNA: ENTRE
TEXTO, NORMA E MÉTODO/ PARA LÁ DA INTERPRETAÇÃO NEGATIVA
RESUMO
Os séculos XX e XXI trouxeram consigo uma manifesta erosão dos
fundamentais pressupostos sobre os quais anteriormente se erigiam as
garantias e determinações do conhecimento e da verdade científicos.
Ressentindo-se dessa erosão, o edifício jurídico-normativo tem procu-
rado assimilar no seu seio as modulações em que, a esse nível, os desen-
volvimentos hermenêuticos se traduziram, trazendo à superfície irrecu-
sáveis tensões em cuja dinâmica o Direito se tem vindo a reconstituir.
A fragmentação e fluidez da condição pós-moderna projectam-se assim
na centralidade dos processos de construção jurídico-hermenêutica.
Palavras chave: Hermenêutica. Pós-modernidade. Método.
1 INTRODUÇÃO
Código Civil napoleónico, promulgado no ano anterior, diz-se que o próprio Napoleão terá rea-
gido exclamando: ‘mon code est perdu!2’.
O tema sobre o qual nos propomos reflectir prende-se de diversas maneiras com este
1 Licenciada em Direito pela Universidade de Coimbra; Mestre e Doutora em Direito pela Universidade do Minho; Áreas de interesse:
Metodologia, Filosofia e História do Direito; Direito e Literatura; Hermenêutica Jurídica.
2 Jacques de Maleville foi um dos juristas que integrou a comissão nomeada por Napoleão para, sob a direcção de Jean-Jacques-Régis de
Cambacérès, proceder à elaboração do Código Civil francês. Os outros membros eram Jean-Étienne Portalis, Félix Julien e Jean Bigot de
Préamenon. Entre 1804 (data da promulgação do Code) e 1806, Maleville foi dando à estampa os 4 volumes de que se compôs L’Analyse
raisonée de la discussion du Code Civil, obra que motivou o desabafo do próprio Napoleão, e que pretenderia disponibilizar ao jurista
prático aquelas que haveriam sido as intenções do legislador (e que constituíam elemento fundamental para determinar o sentido da lei).
83
imperial desabafo, que encontra igualmente paralelo nas conhecidas recomendações transmiti-
das por S. Francisco de Assis no seu Testamento (1226) aos monges da Ordem por si fundada,
segundo as quais estes se deveriam limitar a cumprir as regulae da Ordem sem as comentar ou
interpretar3.
Estes, com efeito, dois impressivos exemplos do fulgor e influência daquela que Vitto-
rio Frosini apelidou de interpretação negativa, e cuja expressão mais emblemática associamos
ao brocardo latino in claris non fit interpretatio. Uma regra que diríamos de ouro no enquadra-
mento da chamada doutrina do sens clair, ou doutrina do sentido claro, desenvolvida precisa-
mente no contexto do direito francês pós-revolucionário. Exemplos retirados daquelas que são,
talvez, como diz Garcia Amado, as duas disciplinas mais condenadas à interpretação: o direito
e a teologia.
Uma vez aceite o repto de nos debruçarmos sobre as alternativas pós-modernas à in-
terpretação negativa, mister se torna começar por esclarecer em que consiste esta e, sobretudo,
sondar os fundamentais pressupostos dogmáticos, conceptuais e ideológicos que lhe subjazem.
sofreu para permitir alcançar resultados que claramente excediam os de mera técnica aplicativa
das normas de direito positivo. Embora recorrentemente referido como característico princípio
da interpretatio iuris medieval, é inegavelmente com os alvores da Modernidade jurídica que
3 “Ordeno com toda a firmeza a todos os meus irmãos, clérigos ou laicos, que, por obediência, não acrescentem explicações à Regra ou
a estas palavras, afirmando que devem entender-se deste modo. Pelo contrário, com simplicidade e sem comentários, deveis compreen-
dê-las e observá-las santamente, até ao fim”. Cfr. Vittorio FROSINI, Teoría de la interpretación jurídica, Santa Fe de Bogotá, Editorial
Temis, 1991, p. 104. A aprovação papal das sucessivas versões da regra franciscana, como sabemos, esteve envolta em larga controvér-
sia, e deu azo a consideráveis contendas de natureza jurídica e teológica.
84
vem a encontrar um eco nunca antes alcançado4. Mais concretamente, o seu êxito vem-se a
consagrar pela mão das elaborações doutrinais levadas a cabo pelos exegetas do código civil na-
poleónico, e a estender-se a toda a metodologia jurídica implicada pelo movimento codificatório
oitocentista. A ideia é a da perfeição dos códigos, que em toda a sua completude lógica e no seio
de um rigoroso entendimento do princípio da separação de poderes, prometem a tão almejada
segurança e certeza jurídicas. Valores como os da imparcialidade e da igualdade jurídicas serão
alcançados com a identificação do direito com aquele que é o produto de um legislador racional,
clarividente, que actua em nome de todos no seio de um estado de assembleia representativa. Ao
judicial não caberá senão verter na prática os comandos textual e objectivamente consagrados
por aquele, numa lógica de perfeita autonomia das funções que a cada figura competem: ao
legislador a criação do direito, aos magistrados a sua aplicação.
É neste contexto que encontra razão de ser o princípio em causa, do in claris non fit
interpretatio. O objectivo último é, naturalmente, o de constituir um fundamental travão a
ímpetos discricionários por parte do julgador / aplicador do direito. E de assim preservar as
pretensas neutralidade e assepsia legislativas.
Ao mesmo tempo que a actividade interpretativa se vê assim identificada com uma
tarefa de mero reconhecimento e intelecção dos sentidos previamente oferecidos no texto da
disposição normativa (qual estátua no interior do bloco de mármore5), vai-se ainda mais longe
no intuito de preservar a vontade do legislador prescrevendo-se a não interpretação das mes-
mas disposições nas situações (tendencialmente normais) em que da literalidade do preceito o
sentido do mesmo seja clara e inequivocamente inferível. Naquelas situações em que, por defi-
ciência ou obscuridade da expressão linguística, esse sentido não for imediatamente apreendido
- situações anómalas, portanto -, prescreve-se então o cumprimento de um conjunto de pautas
hermenêuticas, legislativamente consagradas de modo preciso, que permitirão ao intérprete
alcançar o espírito da disposição subjacente à intenção do legislador, sem ferir a objectividade
do processo de atribuição de sentidos.
De acordo com alguns autores, a intenção seria a de preservar a todo o custo a inter-
pretação dita declarativa, em que se manifesta a coincidência entre o sentido literal e o espírito
imanente à norma6. O travão dirigir-se-ia, aí, a eventuais correcções extensivas e restritivas por
parte do intérprete. Na medida em que a interpretação declarativa mais não faria senão declarar,
repetir, reproduzir, o texto da disposição a interpretar, ela suporia uma opção pela não interpre-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
4 Período em que, caracteristicamente, o Direito se vê consubstanciado no império da lei, com a confusão subsequente entre interpretatio
iuris e interpretatio legis.
5 Defendendo a ideia segundo a qual o elemento volitivo, o “hunch”da sentença, vinha em primeiro lugar, Radbruch entendia que “o erro
de acreditar que a regra singular dormia já no texto, «como a estátua num bloco de mármore», só se (poderia) aceitar como um saudável
travão à arbitrariedade judicial”. Apud Josef ESSER, Grundsatz und Norm in der RichterlichenFortbildung des Privatrechts, 1956, trad.
esp. Eduardo ValentíFiol, Princípio y Norma en la elaboración jurisprudencial del Derecho Privado, Barcelona, Bosch, 1961, p. 327. A
inspiração para a imagem teria sido encontrada, para Fernando José Bronze, num poema de Miguel Ângelo: “Não tem o melhor artista
alguma ideia / Que o mármore só em si não circunscreva”. Cfr. Fernando José BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra,
Coimbra Editora, 2002, p. 821-822, n. 29.
6 Neste sentido, veja-se, entre outros, Giuseppe ZACCARIA, L’arte dell’interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contempo-
ranea, Padova, CEDAM, 1990, p. 47; Luis PRIETO SANCHÍS, Apuntes de teoría del Derecho, Madrid, Editorial Trotta, 2005, p. 235.
85
tação, em sentido, digamos, crítico7. Quer-nos parecer, no entanto, que o alcance do princípio
se pretendia mais abrangente, levando o aplicador a abdicar - pelo menos formalmente - das
suas competências de verdadeiro intérprete. A aplicação seria, digamos, directa e automática,
defendendo-se, no fundo, a possibilidade (e adequação) de uma leitura das disposições sem um
concomitante processo de interpretação (ainda que meramente declarativa).
Não terá sido exactamente este o sentido com que o princípio foi assimilado pelo pen-
samento jurídico medieval, que, pretendendo pôr freio às capacidades inventivas dos comen-
tadores, o entendeu sobretudo enquanto critério de hierarquia normativa através do qual se
expressava a prevalência dos clássicos e autoritários textos de direito romano e canónico8.
Não deixa de ser curioso que não se tenha conseguido até hoje determinar a origem do
aforismo latino em questão. Embora pareça reconduzir-se ao Digesto, onde essa mesma ideia
vai estando presente, ele não se encontra literalmente no seu texto, sendo que as referências
feitas ao princípio surgem em matéria de testamento. Esse, aliás, parece ter sido o domínio
por excelência em que os romanos recorreram à limitação da interpretação em caso de clareza
absoluta da disposição literal: o das declarações negociais9. Estendê-la à interpretação da lei
parece ter sido deformação hábil desse mecanismo ao serviço do processo de endeusamento do
legislador e do seu exclusivo enquanto criador de Direito10.
7 Como nos mostra PRIETO SANCHÍS, ”in claris non fit interpretatio supunha postular uma interpretação declarativa face a qualquer
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tentação de correcção extensiva ou restritiva. No fundo, continuava latente a ideia ilustrada de que a melhor lei é a que não precisa de
interpretação, ou de que a interpretação equivale à corrupção da lei”. Mais à frente, no entanto, não deixa o autor de sublinhar aquilo
que temos também bem presente para nós: “na verdade, esta classificação repousa sobre um pressuposto que muitos não podem aceitar,
e que é o de que as disposições têm sempre um significado objectivo e independente da própria interpretação, significado que umas
vezes seria respeitado (interpretação literal), mas que noutras poderia ser «ampliado» ou «restringido»”. Cfr. ibidem, pp. 228 e 235. Ver
ainda o ensaio de Laura MIRAUT MARTÍN, “Reflexiones en torno a la doctrina del sentido claro de los textos jurídicos”, in Anuario
de Filosofia del derecho, 2002, disponível em https://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/anuario.php?id=F_2002_ANUA-
RIO_DE_FILOSOF%C3%8DA_DEL_DERECHO, consultado em 31.01.2016.
8 Cfr. v.g. Luis PRIETO SANCHÍS, op. cit., pp. 227-228.
9 Os juristas medievais ter-se-iam inspirado, no entender de Castanheira Neves, numa proposição de Paulus - cum in verbis nulla
ambiguitas est, non debet admiti voluntatis quaestio (D.32, 25, 1) – que, referindo-se a matéria testamentária, estaria longe de com ela
exprimir “a verdadeira atitude do pensamento jurídico romano sobre o ponto em causa”. Cfr. António CASTANHEIRA NEVES, O
actual problema metodológico da interpretação jurídica – I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 14, n.13.
10 Neste sentido, ver também o interessante estudo de M. Aquilina SÁNCHEZ RUBIO,” La interpretación en el derecho: in claris non fit
interpretatio”, Anuario de la Facultad de Derecho, vol. XXII, 2004, 417-435, passim.
86
Esta, aliás, uma das notas características da chamada pós-modernidade jurídica, que,
se por algo se identifica, é precisamente pela reacção aos formalismos do modelo legalista e
estadual que caracterizou as ordens jurídicas, um pouco por todo o continente europeu, no res-
caldo da Revolução Francesa.
De sublinhar que, quando falamos em modernidade jurídica nos remetemos invaria-
velmente aos desenvolvimentos a que assistiu o Direito no período de oitocentos, com a fulgu-
rante ascensão da lei, e da lei codificada. Um período em que o Direito claramente se verteu
em formulações lógicas e sistemáticas, procurando chamar a si os critérios e modelos racionais
que dotavam de autoridade e legitimidade as ciências naturais. Pela mão de um nítido contro-
lo estadual, manifestação da imperante vontade popular, ao Direito caberia assegurar valores
fundamentais da vida do homem em sociedade, como a igualdade e a liberdade. No seio de
um discurso unificador e universalizante, e à imagem da própria ciência oitocentista, o Direito
assumir-se-ia como verdade, determinação e objectividade.
Se as porosidades deste modelo, e do paradigma que alimentou, se começaram a fazer
sentir já em finais do século XIX, elas tornaram-se mais flagrantes a partir de meados do século
XX. No específico domínio jurídico, o descrédito da lei enquanto exclusiva matriz de juridi-
cidade, dotada de autonomia, exaustividade e completude, implicou a recuperação de modos
de pensar antes abafados pelos consensos racionalistas da modernidade. A razão da ciência
moderna - jurídica incluída - deixa de ser considerada como fonte de verdades inquestionáveis,
passando a pretensão universalista da metodologia científica, a partir de certa altura, a suscitar
uma forte reserva.
Numa perspectiva mais ampla, a crença no progresso científico e civilizacional, a li-
nearidade histórica no sentido evolutivo, mediatizada pela racionalização e categorização da
vida pública e artística, vão perdendo credibilidade enquanto projecto/manifestação vital da
modernidade. O positivismo oitocentista vê-se questionado em toda a linha, sublinhando-se a
impossibilidade de dissociar os factos daquele que os observa, bem como da cultura que produ-
ziu as categorias em função das quais os factos são descritos11.
E é assim que a chamada pós-modernidade se vai instalando, configurando, nas pala-
vras de Ernst Gellner, um movimento contemporâneo poderoso e muito na moda. “Para além
disso”, continua Gellner, “ninguém sabe ao certo do que se trata”12. Se desde o início do século
XX, em domínios mais ou menos circunscritos, a expressão vai tendo algum curso, é maiorita-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
riamente a partir da década de 70, pela mão de Jean-François Lyotard, que “a condição pós-mo-
derna” emerge como reflexo de uma “mudança geral da circunstância humana”13. Se representa
verdadeiramente, como pretendem alguns, uma superação da modernidade e dos seus padrões
11 Cfr. Ernest GELLNER, Pós-Modernidade, razão e religião, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 43.
12 “É quase impossível fornecer uma definição ou uma descrição coerentes do pós-modernismo”, diz a dada altura o autor. Cfr. ibidem,
p. 39 e 48.
13 Cfr. Jean-François LYOTARD, The Postmodern Condition: a report on knowledge, Manchester, Manchester University Press, 1997,
trad. do francês La condition postmoderne: rapports sur le savoir, 1979; Perry Anderson, As origens da pós-modernidade, Lisboa,
Edições 70, 2005, p. 39.
87
epistemológicos, é contestável14, como controversas são as tentativas de com ela identificar al-
gum ou alguns projectos ou discursos mais concretos ou substanciais. Para Lyotard, a pós-mo-
dernidade representaria a perda de credibilidade das grandes narrativas que haviam sustentado
a sociedade, as suas formas de vida e de conhecimento, ao longo do século XIX. O que parece
ser característico daquilo que habitualmente se designa de pós-moderno é a desconfiança em
relação a qualquer discurso que se apresente como totalizante; é o desconforto face a um dis-
curso racional-científico que se pretenda garantia de compreensão e explicação categórica dos
mundos interior e exterior. Numa perspectiva pós-moderna, as realidades física e social têm-se
por fragmentadas, fluidas e multiformes, justificando a preferência de Zygmunt Bauman pela
expressão (crítica) modernidade líquida15. Justificando igualmente o entendimento de Gellner,
segundo o qual o conjunto de ideias que compõem a pós-modernidade, apesar de demasiado
etéreo e volátil para ser apreendido e absorvido de forma exacta, reflecte um denominador
comum: a relatividade. “O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, no
sentido em que é propenso à transparência e avesso à ideia de uma verdade única, exclusiva,
objectiva, externa ou transcendente. A verdade é evasiva, polimorfa, íntima, subjectiva… e algo
mais, talvez. Linear é que não”.16
Se o juspositivismo foi a face da modernidade jurídica, uma noção de direito pós-mo-
derno implicará um afastamento relativamente àquelas notas distintivas que antes referimos.
Os métodos lógico-sistemáticos de construção e aplicação do direito começam a ser insistente-
mente contestados sobretudo a partir do final da Segunda Grande Guerra, com a concomitante
ascensão / recuperação de movimentos anti-formalistas que, não deixando de atender ao valor
da lei e do seu enquadramento dogmático, reconhecem as indubitáveis virtualidades transfor-
mativas e criadoras que para a realidade jurídica no seu todo representa o contexto pragmático
da concretização judiciária.
Subjacente a estes movimentos está um lento mas inexorável processo de erosão da lei
nos moldes em que a concebeu a mentalidade e a cultura de oitocentos. A crise da lei é denun-
ciada pelo desenvolvimento manifesto das correntes anti-formalistas, na medida em que nestas
vão sublinhadas as fragilidades da lei enquanto exclusiva potência criadora de juridicidade e
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
14 À pergunta “o que é, afinal, o pós-moderno?”, o próprio Lyotard responde bastante elipticamente dizendo que “é indubitavelmente
uma parte do moderno”. Cfr. Jean-François LYOTARD, “Answering the question: what is postmodernism?” in op.cit., pp. 71-81, p. 79.
15 Para alguns o grande teórico da pós-modernidade, Bauman tem apontado o dedo às fragilidades éticas e morais de uma contempo-
raneidade entregue à lógica do imediatismo, do consumismo e da artificialidade. “Depois de terem desaparecido ou passado de moda
os princípios universais e as verdades absolutas, pouco importa doravante que princípios pessoais e que verdades privadas o indivíduo
adopta (tanto mais que o seu compromisso nunca é profundo) e segue (mas nunca com excessivo zelo ou dedicação, disso podemos
estar certos)”. Cfr. Zygmunt BAUMAN, A vida fragmentada. Ensaios sobre a moral pós-moderna, Lisboa, Relógio d’Água, 2007, p. 18;
Liquid modernity, Cambridge, Polity Press, 2004.
16 Cfr. Ernest GELLNER, op. cit., p. 41.
88
auge com o movimento codificador, com a sua vocação de regular as relações sociais de um
modo unitário e conclusivo, onde nada pudesse ser deixado ao arbítrio do intérprete, é agora
abertamente contestada17. Criação e aplicação do direito, que surgiam então como operações
autónomas, perfeitamente racionais, constituindo o código um monumento de geometria social
e jurídica e construindo-se a interpretação à imagem desse mesmo código, enquanto silogismo
perfeito e subsuntivo, são igualmente sujeitas a revisão.
Consequência daquele modelo era a vigência de um direito profundamente alheado
do dinamismo social, que conscientemente se recusava a servir a vida na medida em que pres-
crevia a submissão desta às suas próprias pautas formais e logicistas. A ilusão da segurança,
da certeza e da igualdade era mantida mediante o sacrifício recorrente da justeza normativa e
da adequação material das soluções encontradas ao mérito das situações em que esse mesmo
direito era chamado a verter-se. E isto acontecia, indubitavelmente, graças à igualmente ilusória
doutrina do sentido claro da literalidade das disposições normativas.
do fenómeno linguístico, vêm não só expor a natureza necessariamente contextual de toda a lin-
guagem, que nessa medida vê os sentidos que veicula condicionados ao respectivo contexto de
utilização, como vêm igualmente mostrar a natureza linguística de todo o acto de compreensão.
O meaning is use wittgensteiniano e os jogos de linguagem em que a determinação dos sentidos
literais se vêem mergulhados a partir deste momento de viragem linguística e interpretativa,
89
obrigam necessariamente a adoptar uma outra concepção do fenómeno da interpretação jurídi-
ca. Obrigam a ver o aplicador do direito, enquanto fundamental intérprete de uma ordem jurí-
dica complexa integrada numa complexa ordem cultural e dela dependente, mais como agente
interventivo e verdadeiramente criador de sentidos do que como mero espelho de um direito
pressuposto em todas as suas determinações19.
Não se trata de recusar à interpretação uma dimensão cognitiva, que ela indubitavel-
mente preserva. Até na medida em que é no enquadramento desse direito pressuposto que ela
encontra o fundamento da sua legitimidade e da sua autoridade. Mas patente se torna, agora, a
insuficiência de toda a solução jurídica baseada exclusivamente na lei. Se se parte da errónea e
ilusa ideia de que o juiz sempre aplica um direito já existente, com os seus significados pré-de-
terminados ao momento de verdadeira aplicação do mesmo - porque essa a sua vocação, emi-
nentemente prático-normativa, - não é possível entender adequadamente a função jurisdicional.
Não é possível ao aplicador-intérprete das normas jurídicas evitar a interpretação a
partir do momento em que entende estar em presença de uma norma de sentido claro, precisa-
mente porque a fronteira entre a clareza ou obscuridade da disposição normativa constitui já
de si um resultado interpretativo. A literalidade do texto não pode ser o elemento determinante
da sua clareza, que depende inequivocamente das circunstâncias em que é empregue esse tex-
to20. Já nem se trata de imputar a dificuldade em traçar essa linha à natural indeterminação ou
vagueza semântica da linguagem comum. Aquela que é maioritariamente empregue pelo legis-
lador quando consagra os textos legislativos que, nessa medida, vão partilhar dessa mesma plas-
ticidade significativa. Ou à constatação da textura aberta da linguagem, vincada por Waismann
em 1945 e desde então assimilada por largas franjas da doutrina e do pensamento jusfilosófico21.
Aquilo que, para além disso, se afirma, é a própria impossibilidade de reconhecer o
estatuto de clareza a uma qualquer disposição sem a mediação da operação hermenêutica. E isto
porque não é possível considerar em abstracto as situações de clareza ou dúvida de um texto, na
medida em que tal texto será claro ou duvidoso nas suas determinações semânticas – nos sen-
tidos que lhe deverão ser imputados e no âmbito de aplicação que se lhe reconhece – segundo
os concretos contextos do seu uso. A natureza convencional da linguagem e a necessidade de
adequar o sentido do enunciado jurídico às diferentes situações que possam cair dentro do seu
âmbito de regulamentação tornam indefensável a configuração da interpretação jurídica como
uma actividade meramente cognoscitiva.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Não existe uma coisa como o significado próprio das palavras, que têm apenas o signi-
19 Referindo-se ao que denomina mito da “interpretação negativa” como o espelhismo de que é possível prescindir do trabalho do intér-
prete, Vittorio Frosini considera a expressão in claris non fit interpretatio não só enganosa como mesmo hipócrita, uma vez que “essa
atribuição da «clareza» constitui, na realidade, um postulado interpretativo, sobre o qual se constrói a consequência da lei. A verdadeira
clareza, pelo contrário, é a que resulta da interpretação, nunca a que a precede”. Cfr. Vittorio FROSINI, op. cit., p. 2.
20 Sobre o tema se debruçou largamente António CASTANHEIRA NEVES, op.cit., passim. No mesmo sentido se pronuncia Prieto
Sanchís, quando sublinha que “decidir que um texto é claro ou obscuro é justamente uma conclusão que só se alcança depois e não antes
de interpretar o texto, e esta conclusão também não será universalmente partilhada por todos os intérpretes”. Cfr. Antonio PRIETO
SANCHÍS, op.cit., p. 229.
21 Cfr. Joana AGUIAR E SILVA, Para uma teoria hermenêutica da Justiça. Repercussões jusliterárias no eixo problemático das fontes
e da interpretação jurídicas, Coimbra, Almedina, 2011, max. cap. IV.3
90
ficado que lhes vem atribuído por quem as usa e por quem as interpreta, em contextos específi-
cos de exigência. Nessa medida, não só o significado e as decisões interpretativas são sempre,
em certa medida, variáveis, como inevitável será admitir que a actividade do jurista-intérprete
é sempre simultaneamente normativa e criativa. Para além de incontornável em qualquer mo-
mento de aplicação jurídica.
Isto que vimos de dizer, reconheçamo-lo, não retira um certo acerto à doutrina subja-
cente ao princípio in claris non fit interpretatio. Os problemas interpretativos mais relevantes
surgem precisamente nos casos duvidosos ou controvertidos. Simplesmente estes não se deter-
minam a partir dos enunciados legislativos em si mesmos considerados, senão a partir dos con-
textos concretos em que estes vêm a ser utilizados, ou nos chamados contextos de decisão (ou
de enunciação). Uma mesma disposição suscita dúvidas numas ocasiões e não noutras. O que é
ponto assente é que a atribuição de sentidos à disposição e a delimitação do respectivo âmbito
de aplicação comportam sempre uma interpretação. E que, em algumas situações, essa seja fácil
de adoptar não significa que deixe de ser uma interpretação. Isto mesmo justifica a afirmação de
um jurista como Enrico Pattaro que, na linha aliás das contemporâneas teorias literárias ditas
da recepção, e dos trabalhos de Iser, Jauss, ou, no concreto domínio jurídico, Stanley Fish, mos-
tra de que forma o significado dos termos que compõem as expressões linguísticas, não estando
completamente ínsito nas palavras, se mostra dependente dos processos de aprendizagem atra-
vés dos quais passou o receptor, o leitor, o intérprete. Um processo em que desempenham um
papel fundamental os usos linguísticos consolidados, verdadeiro instrumento da comunicação
linguística. A tendência para considerar que as palavras têm um significado imanente, e assim
potencialmente claro, advém do facto de no seio de cada comunidade linguística, que adoptou
processos de aprendizagem semelhantes, palavras iguais suscitarem imagens ou noções simi-
lares22. É este processo de aprendizagem comum a todos os membros de uma determinada
colectividade social que cria essa falsa imagem segundo a qual determinados enunciados têm
significados óbvios. Muito emblematicamente, uma das obras que Fish dedica à questão tem
como título Doing what comes naturally.
Mas isso não nos pode desviar daquela que é a realidade, e que é a de que a atribuição
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
22 Cfr. Enrico PATTARO, Introduzione al corso di filosofia del diritto, vol.II, apud Laura MIRAUT MARTÍN, op. cit., pp. 394 e 395.
Veja-se ainda, a este respeito, o magnífico texto de Hans-Georg GADAMER, “Hombre y lenguaje”, in Wahrheit und Methode, trad.esp.
Ana Agud Aparício y Rafael de Agapito, Verdad y Método, Salamanca, Sígueme, 1977, II vol., pp. 145-152.
91
de discricionariedade. O que Hart parece esquecer, no entender de autores como Castanheira
Neves, ou como Giuseppe Zaccaria, é que o facto de traçar fronteiras entre a facilidade ou
dificuldade de um caso, ou entre a clareza ou obscuridade de um texto normativo que se visa
aplicar, ainda que podendo parecer uma operação mecânica e imediata, é, com efeito, o resultado
de toda uma série de decisões interpretativas23.
preceitos normativos, do mesmo modo que esta se vai repercutir sobre aquela, num processo de
constante vaivém de que resultará a determinação dos sentidos normativos.
23 “Também nos casos ditos fáceis, ou seja, quando a inclusão de uma determinada fattispecie no campo aplicativo de uma certa norma
parece relativamente indiscutível, o pressuposto é sempre representado pela interpretação e pela decisão relativa ao significado mais
apropriado a atribuir ao texto. Quando se defende que in claris non fit interpretatio confunde-se o ponto de chegada com o ponto de
partida: longe de ser pré-condição garantida, a clareza é o resultado de um procedimento intelectual, que é precisamente o procedimento
interpretativo…. “. Cfr. Francesco VIOLA / Giuseppe ZACCARIA, Diritto e interpretazione. Lineamenti di teoria ermeneutica del di-
ritto, Roma, Editori Laterza, 2004, 5.ª ed., pp. 116-117; 177 e ss..; António CASTANHEIRA NEVES, op.cit., pp. 21-22; Joana AGUIAR
E SILVA, op.cit., pp. 303-314.
92
4 HERMENÊUTICA E HERMENÊUTICA JURÍDICA
intérprete, aquele que compreende -, a doutrina hermenêutica assimilada pela experiência jurí-
dica vem a revelar toda a sua dimensão ética e responsabilizante. Pois se, por um lado, toda a
hermenêutica parte de um impulso para compreender, e para compreender o que vem do outro,
24 Cfr. Giuseppe ZACCARIA, L’arte dell’interpretazione. Saggi sull’ermeneutica giuridica contemporanea,p. 58.
25 Para Gadamer, o potencial constitutivo que encerra a noção de applicatio, enquanto aditamento de sentido, encontra na hermenêutica
jurídica um lugar privilegiado. Cfr. Hans-Georg GADAMER,op. cit., I vol., pp. 378-414. Sobre a ideia de a partir da análise hermenêu-
tica instituir uma diferente noção de positividade jurídica, ver o nosso Para uma teoria hermenêutica da justiça, max. pp. 345 e ss., e
a bibliografia aí referida. Fundamental quanto à questão é a obra já citada de Giuseppe Zaccaria, L’arte dell’interpretazione, max. pp.
52-58. Cfr., igualmente, Arthur KAUFMANN, Filosofia do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 4.ª ed., 2010, pp. 67-70.
93
numa fundamental abertura e receptividade a esse outro, ela assume não apenas a complexi-
dade desse acto de compreensão, marcado por uma complexa rede de contextualidade e conse-
quente incerteza, como reconhece inequivocamente a construção de sentidos resultante como
função da natureza situada de quem compreende. De quem interpreta26.
Assim concebido, o acto de compreensão não se compagina nunca com uma mera re-
cepção passiva do objecto a interpretar, e questiona inclusivamente o valor objectivo de regras
que pretendam delimitar o próprio iter interpretativo. Isto vem, naturalmente, contender com
toda a tradição interpretativa do direito, consagrada pelos estados legisladores de oitocentos.
Não é apenas a possibilidade de considerar como objectivos e claros os textos legais a inter-
pretar a que se põe em causa. É o próprio relevo das pautas metodológicas que o legislador da
modernidade tão diligentemente procurou consagrar que passa a ser encarado com reservas,
lançando no espírito dos mais cépticos a semente da desconfiança pelo receio de novamente se
cair em inadmissíveis arbitrariedades ou na irracionalidade da experiência prática do direito.
Dissemos antes que a mentalidade jurídica dominante de oitocentos acolheu de braços
abertos a doutrina da interpretação negativa, numa clara manifestação de apreço pela supe-
rioridade do legislador enquanto representante da vontade colectiva, assim corporizada numa
racionalidade positiva incontestável e auto-suficiente. Nos casos em que a literalidade da dis-
posição legislativa não bastasse para alcançar a clareza do seu sentido, haveria ainda assim
mecanismos legislativamente cogentes que impediriam a arbitrariedade judicial, conduzindo o
intérprete à determinação do mais exacto e correcto sentido imanente à norma. É assim que ao
juiz competirá interpretar a norma de acordo com uns critérios hermenêuticos canonizados já
em princípios do século XIX, e para cuja doutrina contribuiu decisivamente a obra de Friedrich
Karl von Savigny27.
Ora, para a hermenêutica, e de sobremaneira para a hermenêutica de raiz gadameria-
na, que bebe indubitavelmente dos trabalhos de Heidegger sobre o círculo hermenêutico, uma
noção que se configura central a todo o processo de compreensão/interpretação, é a de pré-com-
preensão. É esta que condiciona todo o acto compreensivo, que o antecipa, que determina os
seus resultados concretos. Identifica-se com um conhecimento pré-predicativo que vai referido
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
26 Cfr. Francesco D’AGOSTINO, “Interpretación y hermenêutica”, in Persona y derecho, n.º 35, 1996, 39-56, pp. 45 e ss..
27 Desde logo a partir dos trabalhos consagrados em System des heutigen Römischen Rechts, v. I, 1840, trad. do alemão por M. Ch. Gue-
noux e vertido em esp. por Jacinto Mesía e Manuel Poley, Sistema del derecho romano actual, tomo I, Madrid, F. Góngora y Compañía
Editores, 1878, pp. 149 e ss..
28 A noção de pré-compreensão é por Gadamer reconduzida a Bultmann, quem a haveria adoptado para referir a relação vital do
intérprete com o texto, bem como a sua relação anterior com o tema do mesmo, que seriam ambas pressuposto de todo o acto de
compreensão. Cfr. Hans-Georg GADAMER, op. cit., p. 403.
94
dade ou do puro arbítrio, e isto na medida em que, embora ligada ao intérprete singular – aquele
que é chamado a aplicar a disposição abstracta a um caso concreto – a pré-compreensão não
configura um elemento de subjectivismo ou um acto individual, antes resultando da participa-
ção do intérprete num conjunto de ‘sentidos comuns’, fruto de uma socialização profissional
e de uma formação cívica e jurídica, de uma cadeia de interpretações que passam a constituir
uma tradição comum.
A subjectividade do jurista intérprete situa-se, pois, no interior de um contexto ob-
jectivo, no seio da “identidade estrutural da experiência jurídica no seu unitário sistema de
permanência”. Só a partir da radicação neste património comum de experiência e de conheci-
mento ganha significado o papel activo de quem a vai interpretar, receber e transmitir. Assim se
garante a própria racionalidade e coerência dos processos de interpretação jurídica29.
Ora, esta noção de pré-compreensão, aliada à fundamental dependência contextual
dos processos de interpretação e da determinação de sentidos das disposições normativas, tem
consequências inevitáveis ao nível da própria metodologia e do entendimento que se faz daque-
las consagradas pautas hermenêuticas. Poderíamos dizer que a hermenêutica filosófico-jurídica
torna transparentes as limitações das regras metodológicas da interpretação no direito, mos-
trando que aos resultados da compreensão é sempre imanente um momento criativo. A teoria
hermenêutica do direito torna mais nítido o facto de a compreensão se fundar na praxis da vida,
mostrando que as hipóteses apresentadas para a interpretação de um texto não são descobertas
através de um processo orientado por regras mas resultam do viver quotidiano, que se imprime
no texto que se procura compreender.
Esta uma crítica fundamental que atravessa Verdade e Método, apontando Gadamer
o erro que terá sido deixar que as regras a que obedece a procura da verdade nas ciências na-
turais do século XIX invadissem espaços que com elas não se compaginavam. Desde logo os
das ciências ditas do espírito, vertidas em formas de experiência em que se expressam verdades
que não podem ser verificadas com os meios ao dispor da metodologia científica oitocentista30.
E não se diga que esta reserva com que é encarado o recurso a pautas metódicas na
esfera da interpretação levada a cabo nas ciências do espírito, Direito incluído, se vem a tradu-
zir numa entrega ao relativismo ou ao subjectivismo. Os limites, os controles e a racionalidade
discursiva estão lá. E estão lá, distribuídos por vários patamares. O facto de se reconhecer a
insuficiência do objecto interpretado para justificar os resultados interpretativos não implica um
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
desprezo pelos limites representados por esse mesmo objecto. Como nos ensinou Umberto Eco,
29 Cfr. Giuseppe ZACCARIA, op.cit., p. xvi. A este propósito, e sobre o modo como a noção de pré-compreensão se entrelaça com o
conceito teológico da auto-compreensão, veja-se o texto de GADAMER intitulado “Hermenéutica y Historicismo”, in Verdad y Método,
I vol.pp. 599 e ss..Cfr., ainda, Benoît FRYDMAN, Le sens des lois, Bruxelles, Bruylant, 2.ª ed., 2007, max. pp. 636-639.
30 Esta ideia justifica o desabafo do filósofo alemão quando, em 1960, data da publicação da obra Verdade e Método, observa que “te-
remos que penosamente abrir o caminho até essa tradição (retórico-humanística), mostrando em primeiro lugar as dificuldades que
oferece para as ciências do espírito a aplicação do moderno conceito de método. Com vista a esse objectivo perseguiremos a questão
de saber como se chegou a atrofiar esta tradição e como as pretensões de verdade do conhecimento espiritual-científico caíram com
isso sob o padrão do pensamento metódico da ciência moderna, um padrão que lhes era essencialmente estranho”. Cfr. Hans-Georg
GADAMER, op. cit., vol.I, p. 54.
95
o texto permanece sempre parâmetro das suas próprias interpretações31. Da mesma forma, a
noção vital de pré-compreensão oferece garantias de fidelidade a uma comunidade de sentidos
históricos e de expectativas partilhadas que, se se imprimem na subjectividade do intérprete,
não deixam de constituir uma plataforma normativa de referência colectiva32.
Naquilo em que se traduz aquela doutrina jurídico-hermenêutica, é na desmistificação
da presumível objectividade da interpretação jurídica, e na desvalorização da crença dogmática
na superioridade do método jurídico, enquanto duas faces que são de uma mesma realidade.
Nisso, e num esforço diligente e inteligente de justificar de modo realista e razoavelmente mais
adequado aquela que é a realidade fenomenológica do direito e da jurisdição33.
não podem ser dotados de uma certeza absoluta. E não podem garantir essa certeza absoluta.
31 Cfr. Umberto ECO, Os limites da interpretação, Lisboa, Difel, 1990, p. 60.
32 A natureza potencialmente ideológica e, nessa medida contingente, desta pré-compreensão virá a suscitar vivo debate entre Gadamer
e Habermas, para quem o recurso a um ethos dominante (como o subjacente à noção de pré-compreensão), por via da interpretação,
não constituiria fundamento legítimo ou adequado da validade das decisões jurídicas. Cfr. Jürgen HABERMAS, Droit et Démocracie.
Entre faits et normes, Paris, Gallimard, 1997, p. 220; Benoît Frydman, op. cit., pp. 639 e ss..
33 Sobre o tendencial anti-metodologismo gadameriano, veja-se o que tivemos oportunidade de escrever em Para uma teoria hermenêu-
tica da justiça, max. pp. 371 a 373 e cap. V., ponto 7; no mesmo sentido, também Ulrich SCHROTH, “Hermenêutica filosófica e jurídica”,
in A. KAUFMANN / W. HASSEMER, op.cit., pp. 381 – 403, e ainda Francesco VIOLA / Giuseppe ZACCARIA, op.cit., p. 198.
34 Cfr. Michel VON DE KERCHOVE, “La doctrine du sens clair des textes et la jurisprudence de la Cour de cassation de Belgique”,
in Michel von de Kerchove, dir., L’Interprétation en droit. Approche pluridisciplinaire, Publications des Facultés universitaires Saint
Louis, Bruxelles, 1978, p. 49, apud Laura MIRAUT MARTÍN, op. cit., p. 398.
96
Em última análise, a pluralidade de cânones hermenêuticos não possui um carácter jurídico
cogente35. E este é um aspecto em que a hermenêutica jurídica se mostra particularmente sen-
sível ao impulso antimetódico de Gadamer e à crítica por este dirigida à intenção oitocentista
de reduzir qualquer verdade científica a uma verificabilidade metódica. Protagonizando uma
viva resistência à pretensão de universalidade da metodologia científica, aquilo que pretende o
filósofo germânico é estudar a experiência da verdade em domínios que ultrapassam aqueles
que se mostram mais sensíveis ao controle da metodologia científica36.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
35 Cfr. Giuseppe ZACCARIA / Francesco VIOLA, op.cit., pp. 211 e ss..
36 “À medida que os métodos da ciência se estendem a todo o existente”, diz-nos Gadamer, “torna-se mais duvidoso que os pressupostos
da ciência permitam colocar a questão da verdade em todo o seu alcance”. Cfr. Hans–Georg GADAMER, op.cit., pp. 52; pp. 23-27; 31-74.
37 Cfr. Jean-Louis BERGEL, Méthodologiejuridique, PUF, Paris, 2001, p. 29.
97
porventura um importante papel orientador.
Em larga medida, tem razão Zaccaria quando sublinha que, na senda do antigo ensina-
mento aristotélico, para Gadamer, e para a hermenêutica, o método se desenvolve e se verifica
apenas na medida em que se pratica: aquilo que ele é, mostra-se no seu uso. Ou, invocando as
palavras imortaisde Antonio Machado,o caminho faz-se ao andar38.
E isto, para terminar, traz-nos à memória um comentário proferido por um velho teólo-
go alemão, citado por Paulo Cunha nas suas meditações sobre o Código Civil: “deixemos a teo-
ria ser céu e a realidade ser terra”39. Poderíamos dizer que na teoria hermenêutica da interpre-
tação jurídica encontramos uma plataforma de integração que nos permite preservar o melhor
daqueles dois mundos pela sua recriação num terceiro: nem pura teoria nem mera praxis, mas
uma noção alternativa de direito que, superando as limitações de cada uma daquelas polarida-
des, as caldeie hermeneuticamente num verdadeiro constituendo de justiça jurídica.
REFERÊNCIAS
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FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
CUNHA, Paulo, “Do Código Civil (Meditações sobre a lei mais importante do País)”, O
Direito, anos 106.º-119.º, 1974/1987, reproduzido de O Direito, ano 98 (1966), pp. 313 e ss., e
38 Cfr. Giuseppe ZACCARIA / Francesco VIOLA, op. cit., p. 223; Joana AGUIAR E SILVA, op. cit., pp. 373 e ss..
39 Cfr. Paulo CUNHA, “Do Código Civil (Meditações sobre a lei mais importante do País)”, O Direito, anos 106.º-119.º, 1974/1987,
reproduzido de O Direito, ano 98 (1966), pp. 313 e ss., e ano 99 (1967), pp. 8 e ss..
98
ano 99 (1967), pp. 8 e ss..
FRYDMAN, Benoît, Le sens des lois, Bruxelles, Bruylant, 2.ª ed., 2007
GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode, trad.esp. Ana Agud Aparício y Rafael de
Agapito, Verdad y Método, Salamanca, Sígueme, 1977, vols. I e II.
HABERMAS, Jürgen, Droit et Démocracie. Entre faits et normes, Paris, Gallimard, 1997
KAUFMANN, Arthur, Filosofia do Direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 4.ª ed.,
2010
MIRAUT MARTÍN, Laura, “Reflexiones en torno a la doctrina del sentido claro de los
textos jurídicos”, in Anuario de Filosofia del derecho, 2002, disponível em: <https://
www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/anuario.php?id=F_2002_ANUARIO_DE_
FILOSOF%C3%8DA_DEL_DERECHO>. Acessado em: 31 jan. 2016.
PRIETO SANCHÍS, Luis , Apuntes de teoría del Derecho, Madrid, Editorial Trotta, 2005
99
ROSS, Alf, Teoría de las fuentes del derecho. Una contribución a la teoría del derecho
positivo sobre la base de investigaciones histórico-dogmáticas, trad. de José Luis Muñoz
de Baena Simón, Aurelio de Prada García y Páblo López Pietsch, Madrid, Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 1999
ABSTRACT
The twentieth and twenty-first centuries brought with it a manifest ero-
sion of the fundamental assumptions upon which the assurances and de-
terminations of scientific knowledge and truth were previously ground-
ed. Resulting from this erosion, the legal-normative body has sought to
assimilate within itself the modulations in which, at that level, the her-
meneutical developments have been translated, bringing to the surface
irrefutable tensions in whose dynamics the Law has been reconstituting
itself. The fragmentation and fluidity of the postmodern condition are
thus projected in the centrality of the legal-hermeneutic construction
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
processes.
Keywords: Hermeneutics. Postmodernity.Method.
100
DIREITO FRATERNO: A RACIOVITALIDADE NECESSÁRIA PARA A
CONSTITUIÇÃO DE UMA SOCIEDADE-MUNDO
RESUMO
Esse artigo destina-se a refletir os significados propostos pela Amizade
no pensamento de Sêneca e Elígio Resta como fundamento de se propor
um Direito Fraterno o qual se desvela por meio da Sociedade-Mundo.
O objetivo geral é investigar se a Amizade possibilita criar condições
sustentáveis para a disseminação da socialidade no mundo preservadas
pelo Direito e Fraternidade no ambiente da Sociedade-Mundo O méto-
do utilizado é o Indutivo. Ao final, conclui-se que sem a Amizade não é
possível constituir a Sociedade-Mundo. O Direito Fraterno surge como
vetor organizacional para esclarecer sobre a necessidade do exercício
permanente das virtudes humanas.
Palavras-chave: Amizade. Sustentabilidade. Direito Fraterno. Socie-
dade-Mundo. Raciovitalidade.
“[...] Quando as pessoas são amigas, não tem necessidade de justiça, enquanto
mesmo quando são justas elas necessitam de amizade; considera-se que a mais
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado – em Direito da Faculdade Meridional – IMED (Passo
Fundo-RS, Brasil). Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Pesquisador da Faculdade
Meridional. Membro do Grupo de Estudos Interdisciplinares em Ciências Humanas, Contingência e Técnica na linha de pesquisa
Norma, Sustentabilidade e Cidadania da Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Membro associado do Conselho Nacional de
Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Ética, Cidadania e Sustentabilidade no Programa de
Mestrado em Direito (PPGD) da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Direitos Culturais e Pluralismo
Jurídico da Faculdade Meridional - IMED. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Transnacionalismo e Circulação de Modelos Jurídicos
da Faculdade Meridional - IMED. Líder, em participação com o Professor Dr. Neuro José Zambam, no Centro Brasileiro de pesquisa
sobre a teoria da Justiça de Amartya Sen. Membro associado da Associação Brasileira de Ensino de Direito - ABEDi. Membro do Grupo
de Pesquisa em Direito Empresarial e Sustentabilidade, do Instituto Blumenauense de Ensino Superior.
101
1 INTRODUÇÃO
2 “[...] base lógica da dinâmica da Pesquisa Científica que consiste em pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las
de modo a ter uma percepção ou conclusão geral”. (PASOLD, 2011, p. 205)
3 “[...] os frutos da Investigação são os Dados Recolhidos, que no caso da Ciência Jurídica, são as formulações doutrinárias, os elemen-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tos legais e jurisprudenciais colecionados em função do Referente estabelecido; [...]”.(PASOLD, 2011, p. 83). Grifos originais da obra
em estudo.
4 “[...] base lógico-comportamental proposta por Descartes, [...], e que pode ser sintetizada em quatro regras: 1. duvidar; 2. decompor; 3.
ordenar; 4. classificar e revisar”. (PASOLD, 2011, p. 204).
5 “[...] Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais”. (PASOLD, 2011, p. 207).
6 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou expressão de uma idéia”. (PASOLD, 2011, p. 25). Grifos originais da obra
em estudo.
7 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que
expomos [...]”.(PASOLD, 2011, p. 37). Grifos originais da obra em estudo. Toda Categoria que aparece neste estudo será destacada com
letra maiúscula.
8 A categoria, para esse estudo, designa os modos de interação entre as pessoas, enquanto nessa relação existir o reconhecimento mútuo
como seres humanos. As Relações Humanas comportam os ires e vires sobre a certeza e incerteza de nossa humanidade perante o Outro.
Segundo Morin, na medida em que o ego não se abre para a diferença do Outro, esse se torna estranho para nós. Sob diferente ângulo,
a abertura altruísta frente ao semelhante o torna simpático. Não há interação humana se o Outro não é reconhecido como Pessoa, mas
tão somente objeto. (MORIN, 2007, p. 77).
102
partilhada como esse apelo à condição de humanidade a qual todos estão expostos: somos
precários, finitos, provisórios, incompletos. É necessário, sob esses argumentos, que o Outro
seja percebido pelo “Eu” a partir dessas características. A partir desse cenário, a Amizade surge
como fundamento para se estabelecer vínculos sustentáveis de Socialidade9 e Fraternidade em
todo o território terrestre.
O Direito precisa (re)conhecer a Amizade como modo de se preservar, indefinida-
mente, as relações humanas na Terra. Por esse motivo, o Direito não consegue cumprir com as
finalidades deste fundamento – o da Amizade – se esse não for esclarecido e perpetuado (Sus-
tentabilidade) no decorrer do tempo.
O Objetivo Geral deste estudo é investigar se a Amizade possibilita criar condições
sustentáveis para a disseminação da Socialidade no mundo preservadas pelo Direito e Fraterni-
dade no ambiente da Sociedade-Mundo. Os Objetivos Específicos podem ser descritos como: a)
Definir Amizade; b) Definir Sustentabilidade; c) Identificar as proposições teóricas para Amiza-
de; d) Avaliar as proposições de Amizade como fundamento para a constituição de um modelo
de Direito Fraterno na Sociedade-Mundo por meio da Sustentabilidade.
9 Essa categoria distingue-se de sociabilidade porque aquele exprime uma solidariedade de base na qual explana esse estar-junto. Aproxi-
ma-se da categoria societal vista em Durkheim, ultrapassa o sentido de solidariedade mecânica e é reenviado à solidariedade orgânica.
(MAFFESOLI, 2001, p. 26).
10 “Tanto por sua obra política, como por sua obra escrita, Sêneca pertence à Filosofia. É, com toda justiça, um dos representantes mais
célebres da ‘filosofia vivida’, característica do espírito romano. Situa-se, cronológica e espiritualmente, entre um Catão de Útica e o
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
imperador Marco Aurélio. Seu pensamento, filiado à tradição escolar helênica e romana, também foi marcado pelas experiências por que
passou. Sêneca é oriundo de uma família romana instalada na província de Bética, em Córdoba, uma cidade que conservara simpatias
pelo partido pompeano e tradições de rigor moral. O menino (nascido por volta de 2 a. C., mas isto é muito incerto) foi levado a Roma
muito cedo e foi lá que recebeu sua formação, tanto com o retórico como com os filósofos, dos quais foi um ouvinte assíduo e entusiasta.
Conheceu, também, durante a adolescência, o ensino de Átalo, um estóico, depois o do ‘pitagórico’ Sócion, um alexandrino místico, que
iniciou o rapaz numa vida ascética. Outro mestre, Papírio Fabiano – discípulo do estóico romano Q. Sexto Nigro,que escrevia e lecionava
em grego, mas cujas idéias eram totalmente romanas -, acentuava a possibilidade que o homem tem de conseguir uma vida feliz, à força
de coragem e energia. Tudo indica que Papírio Fabiano deu ao ensino de Sexto sobretudo uma forma eloqüente, que seduzia o jovem
Sêneca”. (HUISMAN, 2004, p. 912).
11 Segundo Störig: “A filosofia estóica, pelo menos em sua parte mais importante, a ética, está estreitamente ligada à escola socrática
dos cínicos. Mas ela ameniza os numerosos exageros do antigo cinismo, o que constituiu uma condição para que suas doutrinas fossem
mais amplamente aceitas, conferindo um lugar muito mais importante ao saber. As duas coisas, estar ligado aos cínicos assim como o
ultrapassá-los, já se manifestam na vida do próprio Zenão, que de início, em Atenas, ligou-se estreitamente ao cínico Crates [...], mas que
depois de algum tempo reconheceu que esta doutrina não podia, sozinha, fornecer um programa de vida válido para todos; por isso ele
começou a estudar entre os filósofos, terminando por funda a sua própria escola, na qual os ensinamentos cínicos estavam associados
aos de outros filósofos, por exemplo de Heráclito”. (STÖRIG, 2008, p. 161).
103
teles, pois a constituição da vida sadia não se distancia da Virtude12 e da Razão. Entretanto,
adverte esse autor que a tarefa de conseguir a Felicidade como Bem Supremo13 não é fácil.
Qualquer desvio desse caminho, promovido pelos prazeres efêmeros, dificulta a manutenção de
uma vida feliz no seu sentido duradouro.
A Felicidade não pode ser caracterizada pelas divergências, pelos rumores, pela dis-
córdia das multidões as quais não se guiam pelo discernimento14 sereno da Razão. Para Sêneca
(2009, p. 3): “[...] é o cuidado de não seguir os que nos precedem, à maneira do gado, em que os
de trás seguem os dianteiros, dirigindo-se não onde devem ir, mas aonde vão os da vanguarda”.
A busca pela vida feliz não concorda com a fugacidade das riquezas materiais, da adu-
lação àqueles que detêm o Poder15. A leitura da obra de Sêneca (2009, p. 7) revela que as pessoas
nas quais admiram essas qualidades (ou quem as exercita com habitualidade) se tornam poten-
ciais inimigos ou invejosos. O caminho desejado para a Felicidade é sadio, vigoroso. Pauta-se
em valores originários, autossuficientes, diferente da natureza efêmera de valores instrumentais
que não conseguem, no decorrer do tempo, satisfazer a necessidade humana de promover o bem
por meio de ações consideradas boas em si.
A partir desses argumentos, o que seria, para Sêneca, uma vida feliz? É aquela na
qual concorda com a natureza16. Os princípios enunciados pelo mundo natural são diferentes
da condição (e natureza) humana. Revelam-se como imutáveis, perfeitos, ataráxicos17. Por esse
motivo, devem ser observados pela Razão a fim de todas as pessoas buscarem (e promoverem)
o bem, a proximidade, o belo, o justo, o equilíbrio.
Trata-se de escolher bens os quais não se diluem, nem se esvaziam de significados – es-
pecialmente axiológicos - no decorrer do tempo. Esses são sólidos, permanentes, constantes, mas
precisam ser garimpados diante a multiplicidade de desejos e ambientes nos quais a vontade pre-
cisa conhecer, eleger e decidir para ser expressa por meio de nossas ações (SÊNECA, 2009, p. 8).
12 Nas palavras do citado filósofo: “[...] A virtude é algo elevado, excelso e régio, invencível, infatigável; o prazer é baixo, servil, fraco,
passageiro; seu lugar e morada são os bordéis e as tavernas. Encontrarás a virtude nos templos, no foro, na cúria, em pé diante das
muralhas, coberta de pó, tez queimada pelo sol, mãos calejadas; o prazer, pelo contrário, muitas vezes o verás escondido, em busca das
trevas, ao redor dos banhos, saunas, nos lugares temerosos da vigilância do edil, mole, desfibrado, gotejando vinho e perfumes,
descorado, maquilado, embalsamado como um cadáver”. (SÊNECA, 2009, p. 18).
13 “[...] o bem supremo é imortal, não sabe o que é perecer, não fica saciado nem se arrepende. Uma alma reta nunca se transforma nem
é odiosa em si mesma, em nada se afasta do melhor modo de viver; o prazer, porém, extingue-se justamente quando mais deleita, o seu
campo não é muito amplo e, por isso, logo sacia, causa tédio e definha depois do primeiro impulso”. (SÊNECA, 2009, p. 19).
14 “[...] devemos discernir tanto aquilo para que tendemos quanto o meio de conseguir o desejado, não sem escolher um perito, conhe-
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cedor profundo do caminho em que nos metemos, porque as condições dessa viagem não são as mesmas que as dos demais itinerários”.
(SÊNECA, 2009, p. 2).
15 “[...] o Poder é a encarnação dessa energia provocada no grupo pela idéia de uma ordem social desejável. É uma força nascida da cons-
ciência da consciência coletiva e destinada ao mesmo tempo a assegurar a perenidade do grupo, a conduzi-lo na busca do que ele consi-
dera seu bem e capaz, se necessário, de impor aos membros a atitude exigida por essa busca. [...] Portanto, não é verdade que a realidade
substancial do Poder seja o mando, o imperium; ela reside na idéia que o inspira. Não há duvida que essa idéia pode ser respeitável ou
suspeita; pode ser geradora de crimes bem como de iniciativas felizes. Mas, como toda política é ação finalizada, não se concebe como
um Poder, agente de uma política, poderia, em sua própria essência, não ser marcado pelo fim que a determina ou serve para legitimá-la”.
(BURDEAU, 2005, p. 5). Grifos originais da obra em estudo.
16 O filósofo esclarece: “[...] Ora, isso não poderá ocorrer se, em primeiro lugar, a mente não for sã e não estiver em perpétua posse da
própria saúde e, em seguida, corajosa, enérgica, nober, paciente e acomodada às várias situações. Ela deverá também cuidar sem ansie-
dade do corpo e que se refere a ele, das coisas que adornam a vida, sem se deixar deslumbrar por nenhuma, e estar pronta a utilizar os
dons da fortuna, sem ser escrava deles”. (SÊNECA, 2009, p. 9).
17 A Ataraxia, sob o ângulo da Filosofia Estóica, denota “[...] o ideal de imperturbalidade ou da serenidade da alma, em decorrência do
domínio das paixões ou da extirpação destas [...]”. (ABBAGNANO, 2003, p. 87).
104
O ser humano feliz18 é descrito pelo citado filósofo como aquele no qual não se permite
deslumbrar com a fugacidade dos prazeres, pratica o bem e se contenta com a Virtude. A vida
conduzida pela Felicidade se revela a partir de almas livres as quais conhecem o Bem Supre-
mo19. Dentre essas virtudes as quais conduz todos para a Felicidade, está a Amizade.
A categoria estudada nesse tópico, conforme as palavras de Sêneca, não ocorrerá sem
escolha prudente, sem discernimento promovido pela Razão. Caso contrário, a escolha dos ami-
gos torna-se uma atividade perigosa e caracteriza a palavra como banal20. A proximidade entre
o “Eu” e o (pretenso) amigo se desvela na medida em que o conheces como a ti próprio. É ideal
uma vida, rememora Sêneca, na qual se possa partilhar os segredos íntimos com todos, inclusi-
ve os inimigos. Entretanto, essa via nem sempre é possível. Esse é o fundamento necessário de
se ter (e confiar nos) amigos21.
Esse filósofo expõe, ainda, os benefícios da Amizade na partilha (e cumplicidade) da
Sabedoria22. O espaço fértil criado pela categoria estudada possibilita diversas metamorfoses23,
especialmente àquelas as quais revela (e torna viável reconhecer) a existência dos próprios defei-
tos. O vínculo amistoso forja a Sabedoria, reivindica a autocrítica e autorreflexão. É nesse ir e vir
dialogal24 que se produzem as mudanças desejadas a fim de se humanizar permanentemente25.
Se a Amizade produz a Sabedoria, indaga Sêneca, o sábio necessita de amigos ou se
torna autossuficiente pela produção do conhecimento26? Sob esse argumento, evidencia-se, num
primeiro momento, a desnecessidade da daquela primeira categoria citada no início desse pa-
rágrafo, pois a Razão é capaz se iluminar qualquer dúvida humana. Entretanto, o mencionado
filósofo descarta essa possibilidade. Não existe ser humano capaz de viver fora do espaço das
sensações. Segundo Sêneca (2002, p. 45): “[...] o nosso sábio vence todos os desagrados, mas
nem por isso os deixa de sentir”.
18 “[...] pode ser chamado de feliz quem não ambiciona nem teme, graças à razão, pois as pedras carecem de temor e tristeza, assim como
o gado. Contudo, ninguém as dirias felizes, já que não têm a compreensão da felicidade”. (SÊNECA, 2009, p. 14).
19 “[...] o conhecimento da verdade nos trará uma alegria imensa e imutável, a bondade a expansão da alma. Com isso a alma se deleitará,
não por serem bens, mas por provirem do seu próprio bem”. (SÊNECA, 2009, p. 13).
20 “[...] Se tu vês um homem como amigo sem teres nele tanta confiança quanto em ti mesmo, tu te enganas muito e só tens uma vaga
idéia do valor da verdadeira amizade”. (SÊNECA, 2002, p. 37).
21 “[...] é um erro não confiar em ninguém, bem como confiar em todos; direi que num caso nós agimos de maneira mais segura, e no
outro de maneira mais honesta”. (SÊNECA, 2002, p. 39).
22 “Não podes imaginar quantas mudanças sinto produzirem-se em mim a cada dia! ‘Faze com que eu me beneficie, tu me dirás, desse
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remédio tão eficaz!’ Claro que desejo fazer com que tu o absorvas por completo, pois se tenho prazer em aprender é para ensinar; nenhu-
ma descoberta poderia interessar-me, por mais útil e importante que fosse, se eu tivesse que ser o único a lucrar com ela. Se me derem a
sabedoria com a condição de que eu a guarde para mim sem poder transmiti-la, eu a recusarei. Não é agradável possuir um bem quando
não podemos dividi-lo”. (SÊNECA, 2002, p. 42).
23 “Eu sinto Lucílio, não apenas que me corrijo, mas que me torno outro! Não poderia afirmar, nem esperar que não houvesse mais nada
em mim que não fosse passível de mudança: ainda que tenho muitas qualidades a adquirir ou a reforçar e fraquezas a atenuar. Mas já é
uma melhora reconhecer os próprios defeitos que até então eram ignorados”. (SÊNECA, 2002, p. 41).
24 “[...] a conversa de viva voz te será mais útil do que a exposição escrita. Tu precisas ficar diante das coisas: primeiro, porque damos
mais confiança aos olhos do que aos ouvidos; depois, porque com as lições o caminho é longo, ao passo que com exemplos ele é curto
e seguro”. (SÊNECA, 2002, p. 42).
25 “[...] Enquanto aguardo, já que te devo a minha contribuição diária, eu te envio esta frase que hoje tive o prazer de ler em Hecatão: ‘Per-
gunta-me, escreve ele, que progresso eu fiz? Tornei-me meu amigo.’ Grande progresso! Nunca mais estará só”. (SÊNECA, 2002, p. 43).
26 “Tem Epicuro razão em censurar, numa de suas cartas, os que pretendem que o sábio basta a si mesmo, e que, portanto, não precisa
de amigos? Eis o que desejas saber. Tal censura é dirigida por Epicuro a Stilpon e àqueles que consideram a alma impassível como o
soberano bem”. (SÊNECA, 2002, p. 45).
105
O sábio, ainda que consiga vencer as paixões, esclarecer sobre si e os fenômenos por
meio da Razão, exercer a Virtude habitualmente, precisa de amigos27. A Amizade, conforme o
pensamento desse filósofo, precisa ser praticada não apenas nos casos de enfermidade, necessi-
dade ou quando sua Liberdade sofrer ameaça. Caso o(a) pretenso(a) amigo(a) aja conforme essas
características, não se trataria de Amizade, porém de “interesse circunstancial”28. Essa ação
não pode ser considerada virtuosa, tampouco conduzir para uma vida feliz.
Percebe-se que a condução para uma vida feliz, nas palavras desse filósofo, é a orienta-
ção conforme as regras do mundo natural: mente sadia, esclarecida por meio da Razão, na qual
exercita a Virtude e evita as adulações políticas, os exageros das riquezas materiais e a ilusão
forjada pelos desejos efêmeros. A busca pelo Bem Supremo consiste na caracterização de ações
equilibradas, cujo resultado é a Felicidade.
A Amizade, para Sêneca, não nasce, apenas, de uma escolha racional, mas se origina,
também, dos nossos instintos. As pessoas procuram conviver e não se isolarem. Na medida em
que estabelecem vínculos amistosos, cria-se um ambiente fértil para as relações humanas e a
produção do conhecimento. A vivência da Amizade esclarece como a proximidade não-circuns-
tancial do “Eu” com o “Tu” estabelece, na maior amplitude possível, a nossa humanidade com-
partilhada29. Esse é o início de uma Sociedade-Mundo que já se observa em Sêneca (2008, p. 44):
[...] Quando estou com meus amigos, não me distancio de mim mesmo. Não me
deixo ser tomado por pessoas as quais a obrigação social colocou-me em companhia:
pertenço apenas aos mais virtuosos. Seja onde for a sua pátria ou em que século tenham
vivido, é para eles que se volta o meu pensamento.
Entretanto, apesar dessa amplitude social, política e filosófica estudada nas ações
amistosas, é possível observar os seus efeitos, ainda, na formulação do Direito? O pensamento
de Elígio Resta apresenta a Amizade como fundamento de um fenômeno no qual ultrapassa os
interesses nacionais. Trata-se do Direito Fraterno.
Sob ângulo diverso aos argumentos apresentados por Sêneca, a Amizade, segundo o
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pensamento de Resta, não pode ser considerada como elemento nostálgico que representa uma
promessa esquecida. Ao se relembrar dessa palavra cujo conteúdo viabiliza condições de Frater-
27 “[...] O homem detesta a solidão e por natureza vai em direção ao próximo; nele também há o impulso que o leva a procurar a amizade”.
(SÊNECA, 2002, p. 50).
28 “[...] O amigo escolhido por interesse só agradará enquanto for útil”. (SÊNECA, 2002, p. 47/48).
29 Antes de se despedir de Lucílio, Sêneca rememora o significado amistoso do “Conhece-te”: “[...] Saibas que se tiveres semelhante
amigo, terás o gênero humano por amigo”. (SÊNECA, 2002, p. 43).
106
nidade30 no planeta, não se pode encerrá-la numa definição. As portas fechadas que constituem
a definição de “Amizade” podem gerar diferenciações, ressentimentos, segregações.
A expressão anteriormente mencionada é caracterizada pelos seus paradoxos que se
desvelam na vida de todos os dias. Trata-se de lugar no qual é possível criar as estratégias huma-
nas do Direito31 que pode vir a ser, do Direito desejável. A má compreensão desses paradoxos
produz a chamada “lei da amizade” e reforça o modelo amigo/inimigo (RESTA, 2004, p. 19/20).
Desconfigura-se a Fraternidade quando a Amizade perde seu caráter espontâneo. O
sedimento das relações humanas e jurídicas proporcionado pela amizade fraterna dilui-se para
constituir uma “proteção institucional às avessas”, ou seja, torna-se apenas uma descrição legal
vazia de significado. Exige-se a obediência ao Poder sem qualquer vínculo de proximidade e
reconhecimento. Essa é a garantia soberana de neutralização dos conflitos, das hostilidades e
controle da Paz.
Por que a Fraternidade tem como fundamento a Amizade? A leitura da obra de Resta
parece deixar claro essa resposta: a Amizade tem um efeito estético32 que integra as pessoas
reveladas pelas situações paradoxais as quais são sentidas em comum por todos (RESTA, 2004,
p. 20). A Amizade não é força que paralisa, quando desconfigurada da postura paternalista
do Estado-nação, mas representa a regeneração utópica33 daquilo no qual favorece a conti-
nuidade do conviver.
A Amizade anima a Fraternidade e ambas produzem a Estética da Convivência34 por
representarem, sob o ângulo da ação, uma obra de arte estritamente humana. A Humanidade é
descoberta nas esquinas e diálogos amistosos do dia a dia35. Eis o nascedouro de deveres36 junto
ao Outro expressos pela Amizade como fundamento do Fraterno.
Percebe-se, ainda, que os amigos estão em qualquer lugar do território terrestre, mas
são desconhecidos. Toda vida compartilhada se torna mais significativa pela proximidade de
sentimentos que se desdobra de significados junto com o Outro, porém não significa que na
30 “[...] forma intensa de solidariedade que une pessoas que, por se identificarem com algo profundo, sentem-se ‘irmãs’. [...] Por essa espe-
cificação, portanto, somos induzidos a considerar a fraternidade uma das facetas com as quais se manifesta o princípio da solidariedade,
de firme arraigamento jurídico, [...]”. (PIZZOLATO, 2008, p. 113).
31 Categoria multidisciplinar que se revela como “[...] compreensão [...] in acto, como efetividade de participação e de comportamentos,
sendo, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas da juridicidade ao sentir e querer,
ou às valorações da comunidade”. (REALE, 2010, p. 31). Grifos da obra original em estudo.
32 “[...] O Direito e a Política na transmodernidade poderão estimular as estratégias necessárias para a autonomia das pessoas e da socie-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
dade, a fim de que estas tenham possibilidades de ser criativas e de buscar razões mais profundas de viver. Falo de vida em que o respeito
ao outro e a beleza no exprimi-lo sejam suas marcas indeléveis e sua busca permanente”. (MELO, 1994, p. 19).
33 “A Política Jurídica, descomprometida com fórmulas e paradigmas em perecimento, estará engajada com esse novo pensar e partici-
pará da realização de novas utopias carregadas de esperanças”. (MELO, 1994, p. 19).
34 Sob o ângulo da Política Jurídica, a categoria denota sensação de “[...] harmonia e beleza que rescende dos atos de convívio social
que se apóiam na Ética e no respeito à dignidade humana. Assim, podemos considerar como um dos fins mediatos da Política Jurídica a
criação normativa de um ambiente de relações fundadas na Ética que venham a ensejar o belo na convivência social, em atendimento a
necessidades espirituais latentes em todo ser humano [...]”. (MELO, 2000, p. 37/38).
35 “[...] Nunca como neste caso, a atenção aos paradoxos, longe de paralisar, realiza uma forte conscientização e recoloca a questão aos
atores sociais em sua concretude, em sua dimensão da vida cotidiana, em sua inalienável responsabilidade de escolha”. (RESTA, 2004,
p. 20).
36 Nessa linha de pensamento, Diderot e D’Lambert rememoram: “os deveres da amizade se estendem para além do que se acredita. De-
ve-se à amizade na medida de seu grau e de seu tipo, que produz diferentes graúdas e tipos de deveres. Reflexão importante para acabar
com o sentimento de injusto daqueles que se queixam de terem sido abandonados, mal servidos ou pouco considerado pelos amigos”.
(DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, 2015, p. 35/36).
107
ausência da proximidade torna-se improvável o compartilhamento de alegrias, tristezas, angús-
tias, agonias, virtudes, entre outras manifestações. A Amizade possui, conforme as palavras
de Resta (2004, p. 21), essa particularidade: “[...] une independentemente de vínculos e liames
visíveis”.
A Amizade está presente em qualquer relação humana, mas a sua ocorrência não de-
pende de tempo e espaço. A sua manifestação é incerta. Não existe, rememora Resta, um “des-
tino” de Amizade, porém possibilidades conexas as quais possibilitem reconhecer um amigo no
mundo37. Pode-se sintetizar essa afirmação nas palavras do mencionado autor: “[...] a gênese da
amizade é ao mesmo tempo contingente e transcendente: depende do acaso e do evento, e jun-
tamente existe, como mundo de possibilidades, independente do jogo do seu manifestar-se”38.
O pensamento de Resta refere-se, ainda, a duas diferenças na constituição da Amizade:
reconhecimento e gratidão. A primeira expressão constitui um sentimento de filiação à família
humana, o que evita a segregação das relações intersubjetivas por meio de classes, estamen-
tos, castas, destaques acerca de desenvolvimento econômico (países desenvolvidos, emergentes
e subdesenvolvidos), entre outras manifestações individuais e sociais. Reconhece-se o Outro
como humano absolutamente diferente de meu Ego.
Entretanto, adverte Resta, o reconhecimento não é capaz de criar ou estimular novos
cenários mais fraternos porque a sua ação consiste tão somente em declarar uma situação na
qual já existe39. A referida postura não cria algo novo, mas torna público, torna visível essa
realidade que sempre esteve entre todos. Essa declaração não se direciona apenas ao momento
presente. É indiferente ao citado período de tempo. Qualquer que seja o tempo, a natureza da
declaração será de confirmar e repetir um cenário de Amizade comum a todos. A diferença está
na sua disseminação, o tornar público, porque esse cenário comum transfigura-se de invisível
para visível.
A leitura da obra de Resta indica que o reconhecimento não altera, não estimula o
surgimento de algo novo nas Relações Humanas. Nas palavras do citado autor, a declaração é
elaborada com a precisão de um tabelião40. O reconhecimento sugere, conforme essa descrição,
a imutabilidade das interações humanas, resguardando-se à função de declarar algo que existe
entre todos? A resposta parece negativa porque o reconhecimento precisa ser conjugado com
outra expressão capaz de modificar a geografia das mencionadas relações, qual seja, a gratidão.
O surgimento da gratidão cria o novo, permite outras perspectivas daquilo que já ha-
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via se tornado visível por meio do reconhecimento. A gratidão pelo reconhecimento é o húmus
37 “[...] os amigos podem não ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e é a este difícil evento do reconhe-
cimento que se remete sua visível concretude. [...] Ocorrerá alguma coisa talvez significativa que nos fará reconhecer um amigo, mas
exatamente isso pressupõe que o amigo já existisse em lugares indefinidos e em tempos incomensuráveis”. (RESTA, 2004, p. 21).
38 “[...] os amigos podem não ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e é a este difícil evento do reconhe-
cimento que se remete sua visível concretude. [...] Ocorrerá alguma coisa talvez significativa que nos fará reconhecer um amigo, mas
exatamente isso pressupõe que o amigo já existisse em lugares indefinidos e em tempos incomensuráveis”. (RESTA, 2004, p. 21/22).
39 Essa declaração, no pensamento de Resta, refere-se à mesma linguagem utilizada no universo jurídico (RESTA, 2004, p. 22).
40 “Não é por acaso que na linguagem das relações obrigacionais utiliza-se a expressão ‘reconhecimento de um débito’, que tem por
conseqüência a publicização de um débito existente e que não é contestado em sua validade; [...]”. (RESTA, 2004, p. 23).
108
capaz de tornar fecundas as Relações Humanas. Trata-se de sedimento que, quando vivenciado,
experimentado na vida de todos os dias conecta dois mundos distantes (ou sequer conhecidos).
Estabelece-se pela gratidão e reconhecimento vínculos fraternos que não se desfazem com o
tempo independentemente do território que se encontram41. É aqui que se contempla a imagem
de Humanidade, descrito no pensamento de Diderot e D’Lambert (2015, p. 72):
Essa gratidão não pode aparecer como simples promessas normativas, desprovidas
de significados entre os seres humanos. Sob semelhante argumento, para a Ciência Jurídica na
Pós-Modernidade42, a gratidão precisa ser compreendida como vetor de organização social cujo
exercício e exigência pode ser protegida por meio de Princípio proposto pela Constituição de
um Estado, mas que não se esgota, nem exime os seres humanos de a expressarem por ações
anódinas na vida cotidiana de todos os dias.
A referida expressão, junto ao reconhecimento, precisa convergir esforços que tornem
a Fraternidade viável como práxis estética43 do cotidiano. Não basta a previsão de uma (possí-
vel) solidariedade horizontal44 – as atitudes assistenciais45 – sem a compreensão de todos pela
integração que surge pela humanidade compartilhada. O citado autor sintetiza o significado de
Amizade:
A amizade, portanto, aguarda este reconhecimento, esta ali, pronta a reencontrar algo
que existia, mas ainda não tinha visibilidade; nela, não tanto a incapacidade de ver a
amizade onde ela já se encontra, mas sim o fato de que, existindo independentemente
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
41 “A verdadeira mudança na ‘consciência’ da pertença comum é devida, por conseguintes, ao reconhecimento que altera cada cons-
ciência precedente e constitui mundos. Na linguagem de Goodman, ela é o mais nítido way of worldmaking”. (RESTA, 2004, p. 22/23).
42 “[...] A palavra é usada, no continente americano, por sociólogos e críticos. Designa o estado da cultura após as transformações que
afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX”. (LYOTARD, 2006, p. XV).
43 Para se elaborar este estudo, compreende-se que a Estética não reside tão-somente na obra de arte, mas, sob igual critério, nas ações
humanas praticadas no cotidiano. Não se procura o que é “belo em si”, mas o belo como qualidade do agir humano. (MELO, 1994, p. 59).
44 Citam-se como exemplo os artigos 3º, 6º e 203 da Constituição Federal brasileira.
45 “Se tudo isso [...] não se constituir em apenas um mero jogo de palavras, fugaz retórica ou solerte demagogia, então podemos racioci-
nar que a República Federativa do Brasil tem o dever de construir uma sociedade solidária e de garantir assistência aos desamparados,
expressão que deve ser entendida em sentido amplo (econômico e moral), pois o texto constitucional não traz qualquer restrição. Na
prática, o que vimos historicamente foi a constante abstenção do Estado em atender a esses casos de necessidades morais. E as razões
são várias, entre elas a difícil identificação desse tipo de necessitado, absoluta falta de experiência socorrista oficial nesses casos e a
tradição de deixar tal assunto ao encargo da ação caritativa da iniciativa religiosa, mesmo sabendo-se que esta é voluntária, geralmente
condicionada e não exigível”. (MELO, 2009, p. 103). Grifo original da obra em estudo.
109
do gesto voluntarista e subjetivo de procurá-la, ela estabelece por si só os conteúdos
de um vínculo que vive de comunidade. (RESTA, 2004, p. 23)
46 “[...] O estar-junto moral ou político, tal como prevaleceu na modernidade, não é senão uma forma profana de religião. Ou, ainda, ele
exprime bem a história da salvação, de início cristã: espera da parusia, depois progressista: mito do desenvolvimento, particularmente
forte no século XIX. Mas a partir do momento em que o fundamento divino perde sua substância, do momento em que o progresso não
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
é mais considerado como um imperativo categórico, a existência social é, desde então, devolvida a si própria. Para ser mais preciso, a
divindade não é mais uma entidade tipificada e unificada, mas tende a se dissolver no conjunto coletivo para se tornar o ‘divino social’.
É quando o mundo é devolvido a si mesmo, quando vale por si mesmo, que vai acentuar o que me liga ao outro: o que se pode chamar
‘religação’”. (MAFFESOLI, 2005, p. 27).
47 “Só nesses termos poderemos tratar do desejado direito de solidariedade, incondicional, sem contraprestações, sem preço, sem trocas,
utopia até agora apenas pensada, mas que pode e deve ser realizada em nome da dignidade da pessoa humana”. (MELO, 2009, p. 102).
48 “[...] a política deve tratar da multidimensionalidade dos problemas humanos. Ao mesmo tempo, como o desenvolvimento se tornou
um objetivo político maior e a palavra desenvolvimento significa (certamente de forma pouco consciente e mutilada) a incumbência po-
lítica do devir humano, a política se incumbe, também de forma pouco consciente e mutilada, do devir dos homens no mundo. E o devir
do homem no mundo traz em si o problema filosófico, doravante politizado, do sentido da vida, das finalidades humanas, do destino
humano. A política, portanto, se vê de fato levada a assumir o destino e o devir do homem assim como do planeta”. (MORIN; KERN,
2005, p. 137). Grifos originais da obra em estudo.
49 “A ‘comunidade de apoio’ já perdeu o sentido universalista e se confinou às relações numericamente mensuráveis de uma amizade
definida: somos amigos porque existem inimigos, somos amigos porque não somos estranhos, somos amigos porque nos escolhemos
para nos contrapor a outras formas de relações impostas ou involuntárias”. (RESTA, 2004, . 25).
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ser determinada por obrigações, especialmente legais, mas precisa ser compreendida pelo
seu duplo (e ambíguo) caráter: trata-se de um princípio de inclusão e exclusão.
O mundo criado pela Modernidade, para Resta, é o lugar que tenta definir50 a Amizade,
embora reconheça o seu jogo inquietante de luzes e sombras, para se identificar quem será ca-
racterizado como inimigo comum. Enfatiza-se a inimizade. Nesse momento, cria-se a inclusão,
mas, ao mesmo tempo, exclui-se porque existe alguém no qual não pertence aos “iguais pré-de-
terminados pela lei” e precisa ser posto à margem ou, ainda, eliminado.
A obsessão por uma identidade nacional para se determinar o amigo e inimigo estimu-
la a inimizade, a incompreensão da Fraternidade como Princípio que anima a convivialidade,
aos critérios civilizacionais movidos pela Antropoética51 e Antopolítica. Aumenta-se a distância
de conexão entre indivíduo, sociedade e espécie. A solidão sobrepõe-se à Solidariedade. A pri-
meira expressão deforma52 a segunda porque ao se privar (ou ser privado) da comunhão viven-
cial com o Outro, determina-se, em termos econômicos e jurídicos, o seu reembolso, o consolo
que aparece, muitas vezes, pela remuneração dessa falta (RESTA, 2004, p. 27).
As palavras deste autor (RESTA, 2004, p. 27) descrevem, ainda, como esse caminho
que se afasta da integração à família humana produzida humanidade compartilhada: “[...] bus-
camos distâncias e diferenciações, mas as chamamos de volta, com prepotência, buscando e
prestando solidariedade, juntando as nossas solidões através de processos não apenas simbóli-
cos que ‘nos unem’ aos outros”.
Ao se determinar, de modo criativo, infelizmente, novas maneiras de segregar, obser-
va-se a formação de várias galáxias sociais, vários grupos que se unem pela sua “identidade
comum excludente” e não estabelecem qualquer ligação ou filiação à humanidade que se com-
partilha. Tornam-se galáxias, grupos isolados uns dos outros, destinados a não compreenderem
– e não instituírem – a unidade na qual se encontra na diversidade humana. O Direito criado
pelo Estado-nação promove a Paz “entre iguais” pela violência da exclusão53.
Nesse caso, o Direito Fraterno opõe-se a essas medidas nas quais privilegiam a força
ao diálogo, a determinação nacional de Fraternidade à improbabilidade – temporal e espacial -
de seu desafio inscrito na família humana espalhada pelo planeta. Por esse motivo, é necessário
50 “[...] Não é por acaso que o no mundo grego a amizade era representada simbolicamente como um daimon alado que esvoaçava entre
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uma pessoa e outra, assinalando linhas inesperadas, transversais, diríamos hoje, seguindo desenhos imprevisíveis”. (RESTA, 2004, p.
24).
51 Essa categoria “[...] deve ser considerada como a ética da cadeia de três termos indivíduo/sociedade/espécie, de onde emerge nossa
consciência e nosso espírito propriamente humano. A antropo-ética compreende, assim, a esperança na completude da humanidade,
como consciência e cidadania planetária. Compreende, por conseguinte, como toda ética, aspiração e vontade, mas também aposta no
incerto. Ela é a consciência individual além da individualidade”. (MORIN, 2001, p. 106).
52 “[...] usamos a expressão ‘estender a mão’ para indicar aproximações generosas e solidárias, mas freqüentemente o estender a mão
pode exceder-se e transformar-se em ‘alongar as mãos’, que é um gesto odioso, exatamente como quando, [...], o sorriso que avizinha e
torna amigáveis os rostos freqüentemente é o mesmo que arregaça dos dentes”. (RESTA, 2004, p. 26/27).
53 “[...] Destituindo o jogo do amigo-inimigo, o direito fraterno é não violento. Não incorpora a idéia do inimigo sob outra forma e, por
isso, é diferença em relação à guerra. É, se dizia, jurado conjuntamente, mas não produzido por aquela conjura que leva simbolicamente
à ‘decapitação do rei’ e que, é notório, leva consigo sentimentos de culpa que sobrevivem ao jogo ‘sacrifical’ de qualquer democracia.
Por isso, não se pode defender os direitos humanos enquanto os está violando; a possibilidade da sua existência está toda no evitar o
curto-circuito da ambivalência mimética (típica do pharmakon), que transforma o remédio em doença, de antídoto em veneno”. (RES-
TA, 2004, p. 135).
111
compreender a proposição de um Direito Fraterno nas palavras de Resta (2004, p. 133) como:
[...] direito jurado em conjunto por irmãos, homens e mulheres, com um pacto em
que se ‘decide compartilhar’ regras mínimas de convivência. Então, é convencional,
com olhar voltado para o futuro. O seu oposto é o ‘direito paterno’ que é o direito
imposto pelo ‘pai senhor da guerra’ sobre a qual se ‘deve’ somente jurar (iusiurandum).
A coniuratio dos irmãos não é contra o pai, ou contra um soberano, um tirano, um
inimigo, mas é para a convivência compartilhada de soberania e da inimizade. Esse
é um juramento conjunto, mas não é uma conjura.
Percebe-se que a Fraternidade retorna como Princípio político e jurídico para evitar
a acentuada erosão das formas de Estado e Direito autossuficientes. Ao criarem situações de
igualdade, excluem-se as pessoas da participação nas decisões públicas. O Direito Fraterno
surge como evidência dessa comunhão antropológica terrestre na qual se criam regras mínimas
para a convivência fundamentadas nessa perspectiva Antropoética e Antropolítica.
A Humanidade começa a ser descoberta pela sua fragilidade e finitude. Todos co-
mungam essa “natureza perdida”, ou seja, somos precários, provisórios, incompletos. O Di-
reito Fraterno é, conforme essa linha de pensamento, uma exigência histórica que reivindica
o reconhecimento, a cortesia, o amor, a compaixão, a diferença como “lugares comuns” dessa
constituição da nossa Comunidade de Destino.
Fraternidade implica dificuldades e complexidade para se criar os vínculos de proxi-
midade e Responsabilidade entre todos no âmbito local, regional, nacional, continental ou
planetário. Não basta ser humano, mas é preciso desenvolver o sentimento de filiação (e proxi-
midade) à Humanidade54 junto com todos os seres vivos nos quais habitam o território terres-
tre. Insiste-se: a referida categoria é uma sinfonia (sempre) inacabada cuja composição ressoa,
também, no Direito.
A Humanidade despoja-se daqueles conteúdos puramente metafísicos e enfrenta seus
paradoxos, aporias e outras dificuldades pela integração responsável a partir de sua fragilidade,
finitude, agonias, angústias e ameaças55. Esse é o primeiro passo para ações com fundamentos
antropolíticos e antropoéticos capazes de integrar todas as diversidades – humanas ou biológi-
cas – que habitam a Terra-Pátria.
A Fraternidade56 surge como princípio que anima o resgate e a compreensão histórica
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
54 “[...] Ser homem não garante que se possua aquele sentimento singular de humanidade. A linguagem, com as muitas sedimentações de
sentido que encerra, é um infinito observatório de paradoxos com os quais convivemos. Leva seus traços mesmo quando estes parecem
pálidos e apagados: muitas vezes o “apagamento” dos traços deixa marcas”. (RESTA, 2004, p. 13).
55 “[...] o humano não é mais idealizado, racionalizado, visto como uma consciência clara. É o humano de hoje, com suas grandezas, suas
verdadeiras misérias, suas experiências ligadas a certa época e que oferecem uma paleta inteiramente nova. Isso só é possível, aliás,
depois deste século de desconstrução que teve pelo menos o mérito de liberar dimensões até então inexploradas da existência humana
[...]”. (FERRY, 2015, p. 107)
56 “A Fraternidade como princípio do universalismo político propõe a articulação entre o ‘liberalismo selvagem’ e um ‘comunitarismo
ou um republicanismo fechado e intolerante’, evitando fazer com que a humanidade tenha que fazer a escolha impossível. Busca-se,
então, na Fraternidade, um precedente teórico de grande valor e, ainda, inédito para se reportar na atualidade [...]”. (SILVA, 2015, p. 113).
112
fenomenológica, coloca a referida categoria em suspensão e possibilita a indagação: E se não
houvesse a Fraternidade? Sob semelhante argumento: É possível obter Paz por meio do Direito
sem a Fraternidade na Pós-Modernidade? A resposta parece ser negativa.
O Direito Fraterno é uma manifestação da Pós-Modernidade57 porque não se trata de
considerar a integração humana, para fins desta pesquisa, como postura ingênua, mas de valo-
rizar possibilidades diferentes, alternativas que se manifestam em diferentes lugares do mundo
como próprias ao estar-junto global.
Por esse motivo, essa condição se constitui num convite de se refletir se esses mode-
los perpetrados pelo Direito criado na Modernidade e instigados pela sua obsessão política de
neutralização das hostilidades contra o inimigo capaz de abalar a estabilidade soberana no ter-
ritório nacional justificam como condições para se pensar e viver a Paz no mundo. Insiste-se: a
Fraternidade é uma aposta no improvável que, aos poucos, se torna realidade.
A leitura das obras de Sêneca e Resta indicam que a Amizade representa esse espaço
fértil, aberto, para se consolidar as relações humanas. Estabelece-se a concórdia porque se com-
partilha, habitualmente, a busca de valores e condições necessárias para torna a vida sustentável
no mundo. Essa ação inicia-se, microscopicamente, na presença com o Outro, na formação do
Estar-Junto. Nesse momento, surge uma epifania: a humanidade compartilhada que apela para
a Fraternidade58.
Por esse motivo, a proposição de Resta direciona a Amizade para além dos cenários
sociais e políticos. A referida categoria em estudo constitui outro paradigma no universo jurídi-
co: o Direito Fraterno. A elaboração desse Direito não pode ser criado pela Racionalidade Ins-
trumental da Idade Moderna porque se privilegia a exclusão do inimigo, a eliminação do fraco.
Nada caracterizado como inútil serve ao propósito de progresso jurídico. Não se trata de um
Direito paterno, imposto pelo “pai” (Estado), mas jurado entre iguais, entre homens e mulheres
os quais decidiram estabelecer um mínimo necessário para a sua convivência.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
57 Nas palavras de Bittar: “[...] A pós-modernidade é, por isso, como movimento intelectual, a crítica da modernidade, a consciência da
necessidade de emergência de uma outra visão de mundo, a consciência do fim das filosofias da história e da quebra das grandes meta-
narrativas, demandando novos arranjos que sejam capazes de ir além dos horizontes fixados pelo discurso da modernidade. Ao mesmo
tempo, como contexto histórico, a pós-modernidade é sintoma de um processo de transformações que estão profundamente imersas em
uma grande revolução cultural, que desenraiza paradigmas ancestralmente fixados”. (BITTAR, 2009, p. 146).
58 “o apelo da fraternidade não se encerra numa raça, numa classe, numa elite, numa nação. Procede daqueles que, onde estiverem, o
ouvem dentro de si mesmos, e dirige-se a todos e a cada um. Em toda parte, em todas as classes, em todas as nações, há seres de ‘boa
vontade’ que veiculam essa mensagem. Talvez eles sejam mais numerosos entre os inquietos, os curiosos, os abertos, os ternos, os mes-
tiços, os bastardos e outros intermediários. O apelo à fraternidade não deve apenas atravessar a viscosidade e a impermeabilidade da
indiferença. Deve superar a inimizade. A existência de um inimigo mantém ao mesmo tempo nossa barbárie e a dele. O inimigo é pro-
duzido por cegueira às vezes unilateral, mas que se torna recíproca quando respondemos com uma inimizade que nos torna igualmente
hostis. É verdade que os egoísmos e os etnocentrismos, que suscitaram e não cessam de suscitar inimigos, são estruturas inalteráveis da
individualidade e da subjetividade, mas, assim como essa estrutura comporta um princípio de exclusão no eu, ela comporta um princípio
de inclusão num nós, e o problema chave da realização da humanidade é ampliar o nós, na relação matri-patriótica terrestre, todo ego
alter e reconhecer nele um alter ego, isto é, um irmão humano”. (MORIN; KERN, 2005, p. 167/168).
113
A Amizade existe, mas não é visível nesse início de século XXI. Soma-se a esse ar-
gumento outra característica: essa categoria, além de invisível, não é compreendida. O prefixo
“com” do verbo “com-preender”, segundo a leitura da obra de Morin (2005, p. 113), tem esse
significado59 de envolver, enlaçar, tomar em conjunto.
O esclarecimento e vivência de um Direito Fraterno, o qual se dissemina pela Amiza-
de, precisa de uma compreensão complexa60, pois enlaça o sentido da subjetividade (a experiên-
cia emocional, afetual) e o da objetividade (explicar, desdobrar, reunir, articular informações
necessárias para se conhecer um fenômeno), conforme sugere Morin (2005, p. 112).
A Amizade se torna visível nas ações habituais, anódinas, de todos os dias. A sua ma-
nifestação, nas palavras de Resta, ocorre por meio da gratidão e reconhecimento. Entretanto,
é necessário somar uma terceira proposição a essa idéia, qual seja, o perdão. Não é possível
reconhecer o Outro como irmão, ser grato pelo seu existir o qual complementa o “Eu”, mas,
também, perdoar. A ausência do perdão revela a cegueira, a ignorância no agir (desmedido)
frente ao semelhante. Trata-se daquela expressão: “eles não sabem o que fazem”.
O perdão, nas palavras de Morin, é uma aposta. A primeira expressão denota com-
preensão de que o Ser humano não pode ser reduzido tão somente aos atos censurados, aos
crimes cometidos, às omissões – breves ou duradouras. O perdão aposta61 nesse enlace, nesse
tecido – complexo - o qual se compõe de vias comunicativas biológicas, antropológicas, afeti-
vas, culturais, entre outros, ou seja, compreende-se o Ser humano nesse ir e vir entre a certeza
e incerteza de seu pensar e agir.
O ato do perdão é altruísta, generoso e dissolve a animosidade da vingança, do ódio,
do ressentimento. Trata-se de um ato que liberta. Por esse motivo, os amigos disseminam gra-
tidão, reconhecimento e perdão62 nas suas ações. Esses instauram outro ambiente o qual a paz
se torna longeva. A concórdia se torna o solo fértil, cujas raízes procuram se alimentar a fim de
produzirem frutos doces.
O Direito Fraterno somente se torna viável na aposta da Amizade, a qual se manifesta
pela gratidão, reconhecimento e perdão. Essa é o fundamento – mínimo – para um espaço de
concórdia duradoura que não se circunscreve nos territórios nacionais, nas sociedades contra-
59 “O significado é essencial para os seres humanos. Temos a contínua necessidade de captar o sentido de nossos mundos exterior e
interior, de encontrar o significado do ambiente em que estamos e das nossas relações com outros seres humanos, e de agir de acordo
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com esse significado. Estamos falando aqui, em específico, da nossa necessidade de agir de acordo com uma determinada intenção ou
objetivo. Em virtude da nossa capacidade de projetar imagens mentais para o futuro, nós, quando agimos, temos a convicção – válida ou
não – de que nossas ações são voluntárias, intencionais e voltadas para um determinado objetivo”. (CAPRA, 2005, p. 96).
60 “O conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade. Complexus significa o que foi tecido junto; de fato, há complexidade
quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afeti-
vo, o mitológico) e, há um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo entre objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e
o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade. Os desenvolvimentos
próprios a nossa era planetária nos confrontam cada vez mais e de maneira cada vez mais inelutável com os desafios da complexidade”.
(MORIN, 2001, p. 38).
61 “Chego a este ponto capital: o perdão é uma aposta, um desafio ético; é uma aposta de regeneração daquele que fraquejou ou falhou;
é uma aposta na possibilidade de transformação e de conversão para o bem daquele que cometeu o mal. Pois o ser humano, vale repetir,
não é imutável: pode evoluir para melhor ou para o pior”. (MORIN, 2005, p. 127).
62 “O perdão é um ato de confiança. As relações humanas só são possíveis numa dialógica de confiança e desconfiança. Claro que se pode
enganar a confiança. Mas, a própria confiança pode vencer a desconfiança. Embora incerta, a confiança é necessária. Por isso o perdão,
ato de confiança na natureza humana, é uma aposta”. (MORIN, 2005, p. 129).
114
tualistas, mas se amplia no mundo pelo apelo à nossa humanidade compartilhada.
Por esse motivo, verifica-se que a Amizade é a razão seminal63 de um Direito Fraterno.
O raciovitalismo representa, para Maffesoli, essa sinergia entre razão e sensibilidade. Trata-se
de uma racionalidade aberta a qual difere do racionalismo64, em outras palavras, não se identi-
fica tão somente com as explicações (enlace objetivo)65, mas as complementa com as múltiplas
vivências (enlace subjetivo) no momento presente, no cotidiano. A ausência dessa compreensão
caracterizaria os fenômenos sociais66 como incompreensíveis.
A razão seminal67, no pensamento de Maffesoli, representa essa “razão interna”. Cons-
tata-se, a partir da leitura dos argumentos propostos pelo citado autor, que essa “razão interna”
é uma estrutura antropológica na qual somente se atualiza, se realiza, num momento particular.
É uma racionalidade “de fundo” a qual se expressa na clandestinidade – e no silêncio – da
vida cotidiana.
Percebe-se a necessidade de se encontrar o significado próprio, “de fundo”, dos fe-
nômenos os quais sintetizam esse ir e vir entre objetividade e subjetividade68. Não se trata de
uma clausura anterior, mas que se expressa, também, por um sentido afetual, amoroso69 o qual
somente a experiência das sensações na vida cotidiana podem esclarecer, tornar luminoso70 a
obscuridade e os limites impostos pelo racionalismo – busca-se, de modo complementar, um
sentido posterior. Novamente, indaga-se: Qual é o fundamento raciovital, a “razão interna”, de
um Direito Fraterno? A Amizade.
Não é possível pensar essa categoria sem cogitar que a Terra seja o nosso único habitat.
Segundo o pensamento de Morin, é a nossa genuína pátria. A Terra – por meio de sua biosfera
e humanidade – representa essa “espaçonave”, a qual está à deriva no espaço sem um piloto. É
63 As expressões raciovitalismo, razão seminal, razão interna ou razão sensível serão utilizadas nesta pesquisa como sinônimas.
64 O Racionalismo, fundado pela Lógica, difere da Razão. Segundo Maffesoli: “[...] se existe uma lei é a da coincidentia oppositorum,
que faz com que as coisas, seres, fenômenos, totalmente opostos, se combinem. Ao negligenciar isto, o racionalismo, especialmente
sob a forma moderna, empenha-se em sufocar, excluir porções inteiras da vida, até que estas por sua vez se vinguem, exacerbando-se e
subindo aos extremos [...]”. (MAFFESOLI, 2005, p. 30). Grifos originais da obra em estudo.
65 “[...] se monstros existem são aqueles que têm a pretensão de um saber absoluto. O saber do Universalismo. O saber da coisa em si. São
esses os verdadeiros paranóicos. São perigosos pois é em nome desse saber absoluto que se abriram os campos de concentração. Ou que
o justificaram. O universalismo sempre foi o berço do totalitarismo. O totalitarismo em questão pode ser o do racionalismo dogmático
ou do cientificismo sem horizontes, pode ser também aquele do republicanismo obtuso”. (MAFFESOLI, 2009, p. 40).
66 “É necessário que o ato de compreensão da vida social se justifique e se normatize pelo seu sentido amoroso. Quando a vivência de
uma realidade se torna uma abstração intelectual pura, essa se distancia, lamenta ou ignora as ações humanas. Deixa-se de perceber
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e/ou compreender um estar-junto que fomenta a organicidade social e tampouco visualiza como essa possibilidade vital se sustenta”.
(AQUINO, 2016, p. 34).
67 “[...] Já na filosofia medieval, retomando-se aí a noção de logos spermatico, cara aos gregos, falou se ‘razão seminal’, isto é, de um
germe do qual cada individuo recebeu uma parcela. Trata-se de algo que permanece, ou melhor, que preexiste no coração de todo homem
antes de qualquer construção intelectual”. (MAFFESOLI, 2005, p. 58).
68 “[...] Isso pode nos levar à seguinte proposição: forte de si mesma, segura de sua razão interna, uma cultura pode difundir-se, uma vez
que tenha sabido metabolizar os elementos que tomou emprestados”. (MAFFESOLI, 2005, p. 63).
69 “[...] o amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. Leva-nos à realização pela nossa união. Se o amor leva ao
paroxismo a aptidão integracionista do princípio altruísta de inclusão, corre o risco de ser apropriado pelo princípio egocêntrico da
exclusão, que monopoliza o ser amado e o encerra numa posse ciumenta. O verdadeiro amor considera o ser amado como igual e livre;
[...]”. (MORIN, 2005, p. 107/108).
70 “[...] Iluminação que nada tem de excepcional, que não deve inquietar ou ser, forçosamente, considerada como algo anormal, de
emanações anômicas ou obscurantistas, umas ‘iluminação’ que leva ao seu ponto último a lógica das luzes, isto é, que se empenha em
compreender, e não em julgar, todos os fenômenos, ações, representações humanas pelo que são e não em função daquilo que deveriam
ser”. (MAFFESOLI, 2005, p. 54).
115
no seu interior que se encontra todos os significados para uma vida que precisa de proteção e
preservação (Sustentabilidade)71, especialmente com a amplitude de atuação da Cidadania.
O apelo para uma Cidadania Mundial responsável é a epifania de uma Amizade a qual
expressa por uma humanidade compartilhada. A superação do Estado-nação, rememora Morin,
não está no seu aniquilamento, mas na instituição de associações72 mais amplas, na limitação
do poder sobre a vida e morte de etnias e pessoas, na manutenção de todas as competências as
quais essa entidade pode regular (princípio da subsidiariedade)73.
Nesse caso, a Sociedade-Mundo – ou Sociedade Civil Mundial – ainda não existe e
tampouco se esclareceu que a Terra é a nossa única Pátria. Têm-se os primeiros pilares – como
o Direito Fraterno o qual se manifesta pela Amizade-, mas não se constituiu, ainda, o edifício74.
A Sustentabilidade75 se torna esse novo Valor a ser depurado e constituído historica-
mente no século XXI. Sob semelhante argumento, a categoria anteriormente mencionada pre-
cisa ser estudada, ainda, a partir da Amizade no cenário da Sociedade-Mundo, para se difundir
essa práxis que acolhe, reconhece, protege e a importância dessa biodiversidade planetária.
A categoria anteriormente mencionada não pode ser definida, exaurida nos limites
epistemológicos de uma caracterização, porque sua natureza axiológica demanda a tarefa de,
continuamente, encontrar novas situações as quais favoreça uma interação maior entre “Indi-
víduo-Sociedade-Espécie” e a Terra para se criar e desenvolver meios de vida mais razoáveis e
fraternas para todos, indistintamente. Não se trata de uma postura cujo enfoque é exclusivo ao
universo do Meio Ambiente76, mas de consolidar os vínculos antropológicos, biológicos e ecoló-
gicos no tempo e espaço para que haja formas de vida e convivência sempre mais sustentáveis.
A partir desses argumentos, a Sustentabilidade, especialmente no seu sentido social,
assemelha-se a categorias como Justiça e Dignidade as quais seus conteúdos renovam-se no de-
correr do tempo, da interação e percepção humana. A clausura da definição de Sustentabilidade
provoca o desvio dos significados, dos devires que se deseja constituir na diversidade da biosfera
terrestre. A sua intenção está além dos interesses passageiros ou de ações caridosas promovidas
71 “[...] a Terra é o único lugar habitável e amável no cosmo; ela é nosso habitat, nossa Arché na imensidão cósmica, não apenas a nossa
Mátria, mas também a nossa Pátria”. (MORIN, 2011, p. 72).
72 Cita-se como exemplos dessas associações: Anistia Internacional, Greenpeace, Sobrevivência Internacional, Médicos sem Fronteiras,
Cidadãos do Mundo, entre outros. (MORIN, 2011, p. 70/71).
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
73 “A superação do Estado-nação rumo a associações mais amplas só pode ser vivida, portanto efetiva, [...] se cada um e todos reconhe-
cerem essa qualidade à Terra, ela própria mátria e pátria de todos os humanos”. (MORIN; KERN, 2005, p. 116).
74 “[...] se o planeta constitui um território que dispõe de um sistema de comunicações, de uma economia de uma civilização, de uma
cultura, de uma vanguarda de sociedade civil, falta-lhe certo número de disposições essenciais de organizações, de direito, de instância
de poder e de regulação para a economia, a política, a polícia, a biosfera, a governança, a cidadania”. (MORIN, 2011, p. 72).
75 Para fins desta pesquisa, adota-se o seguinte conceito operacional para Sustentabilidade elaborado pelo autor deste estudo: É a
compreensão ecosófica acerca da capacidade de resiliência entre os seres e o ambiente para se determinar - de modo sincrônico e/ou
diacrônico - quais são as atitudes que favorecem a sobrevivência, a prosperidade, a adaptação e a manutenção da vida equilibrada.
76 Rememora Ferrer: “[...] Sin embargo y como también hemos visto, las preocupaciones de la comunidad internacional han ido am-
pliando su espectro de lo puramente ambiental –nuestra relación con el medio natural- a aspectos que lo que tienen que ver es con
la relación con nuestros semejantes, con el modelo de sociedad que tenemos que construir. Una sociedad que no colapse los sistemas
naturales pero que, además, nos permita vivir en paz con nosotros mismos, más justa, más digna, más humana. Una sociedad que dé
un salto significativo en el progreso civilizatorio, que deje atrás o al menos aminore las grandes lacras de la Humanidad que a todos
nos deben avergonzar, como el hambre, la miseria, la ignorancia y la injusticia. El paradigma actual de la Humanidad es la sostenibi-
lidad”. (FERRER, 2013, p. 319).
116
por instituições econômicas – públicas ou privadas - presentes em todo o território mundial77.
A Amizade se torna critério de Sustentabilidade na Sociedade-Mundo na medida em
que estabelece vínculos de responsabilidade, de compreensão sobre todos os seres vivos que
habitam a Terra. A amplitude planetária da Amizade produz efeitos sociais, éticos, políticos e
jurídicos os quais permitem a presença indefinida do Ser humano em todo o território terrestre.
Contata-se, por meio desses argumentos, que o Direito Fraterno, segundo o contexto
da Sociedade-Mundo, preserva as formas de desenvolvimento das relações amistosas em todo
o território terrestre. É a Amizade, esse sumo bem, o qual possibilita os cenários de concórdia
e reivindica a importância do cuidado e responsabilidade por todos os seres vivos que habitam
a única Pátria na qual oferece condições de vida em plenitude: a Terra.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
77 “Hoje, devido a uma evolução que ainda vai demandar tempo para ser entendida, o substantivo – sustentabilidade – passou a servir a
gregos e troianos quando querem exprimir vagas ambições de continuidade, durabilidade ou perenidade. Todas remetendo ao futuro”.
(VEIGA, 2010, p. 12).
117
se criam condições e espaços para se ampliar e reconhecer esse estar-junto. A Sustentabilidade
da Sociedade-Mundo demanda a aposta e apelo de um Direito Fraterno cuja razão interna é a
Amizade.
É a partir desses argumentos que se necessita retornar à Introdução deste estudo e
verificar se a hipótese de pesquisa foi confirmar ou refutada pelo fundamento teórico apresentado
ao leitor ou leitora. Nesse caso, ratifica-se, como inicialmente mencionado, a resposta como
positiva, pois somente por meio da Amizade é possível pensar num Direito Fraterno que se
desenvolve, se aperfeiçoa no tempo por meio das relações humanas que ocorrem em diferentes
territórios e culturas. Essa é a imagem da Humanidade: a constituição de uma tessitura social
global que se manifesta pelas atitudes anódinas do cotidiano.
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ABSTRACT
This paper meditates about the purposes of Friendship by Seneca and
Elígio Resta as a basis for a Fraternal Law which is revealed through
120
World-Society. The objective is to investigate if Friendship makes it
possible to create sustainable conditions for the spread of sociality in the
world preserved by Law and Fraternity in the World-Society environ-
ment. The method used was the Inductive. As conclusion, it`s possible
to understand that without Friendship it is not possible to constitute the
World-Society. The Fraternal Law arises as an organizational instru-
ment to clarify the need for a permanent exercise of the human virtues.
Keywords: Friendship. Sustainability. Fraternal Law. World-Society.
Ratiovitality.
121
ENSINO JURÍDICO: É POSSÍVEL ENSINAR DIREITO?
RESUMO
A análise do artigo versa sobre as questões atinentes à crise do ensino
jurídico no Brasil, além das variáveis da crise e consequências no âm-
bito acadêmico. Aborda-se também questões atinentes à transdiscipli-
naridade, bem como os reflexos do ensino jurídico nos sistemas sociais,
cada vez mais complexos.
Palavras-chave: Ensino jurídico. Transdisciplinaridade. Transforma-
ção social.
1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1983), mestrado em Educação pela Pontifícia Uni-
versidade Católica do Rio Grande do Sul (1997), doutorado em Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti pela Università Degli
Studi di Lecce (2001), Pós-doutorado em Direito (Roma Tre, 2006) e Pós-doutorado em Políticas Públicas (Universidade de Salerno,
2010). Foi Professora titular da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, da Scuola Dottorale Internazionale Tullio Ascarelli e profes-
sora visitante da Universita Degli Studi Di Salerno. Foi diretora da Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (janeiro de 2007 a
fevereiro de 2011), foi membro (de janeiro de 2008 a dezembro de 2013) do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Atualmente é Pesquisadora Produtividade nível 2 CNPq, professora do Centro Universitário
Ritter dos Reis (Uniritter), professora-visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFRGS (PPGD). É avaliadora do Basis
do Ministério da Educação e Cultura e do Basis do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Parecerista
ad hoc CNPq e CAPES. Conferencista no Brasil e no exterior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em sociologia jurídica,
atuando principalmente nos seguintes temas: Saúde Pública, Políticas Públicas, Sociologia Jurídica e Sociedade e Direitos Humanos
2 Possui graduação em direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1998). Atualmente é professora do Centro de Ensino Superior do
Vale do Parnaíba e da Faculdade São José - Timon. É advogada e cursa pós-graduação strictu sensu em Direito Público na Universidade
do Rio dos Sinos - Unisinos. É graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Piauí. (2000).
122
A análise do ensino jurídico no Brasil, desde os seus primórdios3, implica no (re) co-
nhecimento deste como fator essencial à constituição do próprio Estado, uma vez que a conso-
lidação de um pensamento jurídico nacional se dá apenas com a chegada dos primeiros cursos
jurídicos, na primeira metade do século XIX.
Este artigo trata da importância do ensino jurídico e suas repercussões no âmbito das
sociedades modernas, complexas e repletas de paradoxos. Para atender a essa realidade impõe-
-se que professores e acadêmicos dos cursos jurídicos sejam capazes de pensar o Direito de
modo transdisciplinar de sorte que possam, ambos, enfrentar as contingências atuais de forma
reflexiva, uma vez que o modo atual de ensinar/estudar o Direito não atende às crescentes de-
mandas sociais
Também se investigou as origens da crise paradigmática por que passa o ensino jurídi-
co, em seus aspectos históricos, políticos e ideológicos. Analisar a crise4 é, portanto, condição
para a elaboração de novos referenciais para o ensino em debate, o que se fez, ao longo do tem-
po, através das inúmeras reformas educacionais promovidas pelos diversos órgãos competentes
para este fim.
Dessa abordagem, dois aspectos se apresentam como fundamentais: a função social
das Faculdades de Direito, e os efeitos do modo de pensar o Direito enquanto saber produzido
pelo ensino. Este pensar o Direito remete às raízes da história brasileira atrelada a Portugal,
sua metrópole, a quem o Brasil esteve subordinado, durante três longos séculos, deixando a
marca indelével da subordinação na formação do Direito brasileiro, e do pensar o Direito, como
ciência social. Essas relações deixaram consequências no imaginário social no que tange à
compreensão do Direito.
O debate sobre ensino jurídico, já tem lugar na tradição da história acadêmica no Brasil
e continua sendo retomado constantemente, sobretudo em tempos em que se percebe que os ca-
minhos por ele percorridos não se alinham a um ideal da formação comprometido com a ética
e a capacidade reflexiva dos formandos, como atualmente se verifica. Assim, tem razão Loussia
quando afirma que a atividade de docência continua sendo isolada, cada professor pensa fazer o
melhor, mas não reflete com os pares o “melhor, deste melhor”. As motivações para esta postura
individualista vão desde o medo do desemprego (sim, o professor é um empregado e não um
vocacionado, a professora não é a “tia” e nem a “profe”, formas carinhosas, mas carregadas de
significados e significantes), até a arrogância muito típica da profissão e em especial nos opera-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
dores do direito.
Em meio a esse descompasso entre o que se espera de uma formação jurídica superior
3 Sobre a revisão histórica de fatos ligados a origem do direito e seus imapctos, temos pesquisas consolidadas, que mostram como muitas
vezes utilizamos de forma equivocada a Historia. Recomendamos o texto de Gustavo Siqueira, em especial no texto “pequeno ensaio....”,
onde o autor resgata vários educadores jurídicos para demonstrar que a História não pode ser contata por um jurista como se fosse um
historiado. Aqui, temos já a importância de pensar a Transdisciplina como método de análise, a qual nos “permite” ir para outras ciên-
cias mas sempre “voltar” para o nosso foco de análise.
4 A crise, em especial no sistema da educação está sempre relacionada com a idéia de Reforma, mas paradoxalmente não se relaciona com
a necessidade de reformar os reformadores. Sobre isso ver: CORSI, Giancarlo. Sistemi Che aprrendono. Pensa: Lecce, 1998.
123
e o que se percebe no cotidiano da vida prática surgem acalorados debates sobre que caminhos
devem-se seguir para alcançar um melhor resultado nesse processo de aprendizado do direito.
Muito já foi dito acerca do tema, e muito há por dizer, uma vez que os diversos trabalhos, aná-
lises e pesquisas ainda não conseguiram uma resposta adequada para os problemas enfrentados
pelo ensino jurídico ou apontaram para caminhos que não foram seguidos.
É certo que o crescimento5 exponencial dos cursos de Direito no Brasil tem sido um
dos elementos de incremento das dificuldades, sendo imperioso aliar qualidade a quantidade, o
que tem se tornado pouco provável, já que são muitos os componentes que envolvem a questão,
como qualificação docente, critérios de ingresso nas instituições de ensino, infraestrutura. Se o
tema suscita muitas discussões, que encontram eco em grandes expoentes do mundo jurídico,
a exemplo de Rui Barbosa, cumpre especificar os passos trilhados na pesquisa e debater o(s)
problema(s) que envolvem o ensino jurídico.
2 DIREITO E TRANSDISCIPLINARIDADE
Como é sabido, há muito o Direito ocupa um papel fundamental nas diversas socie-
dades, que é servir como seu instrumento de controle e regulação. Todavia, essa condição vem
cada vez mais perdendo eficácia nesse papel de controle, não por haver recursos melhores, mas
porque o direito não tem respondido às necessidades sociais na medida das exigências, que
crescem em razão do incremento das comunicações, das fragilidades dos laços humanos e da
quantidade de direitos a ser abrigados nas legislações, impossibilitando-lhes, muitas vezes, a
efetividade.
O curso de Direito no Brasil veio para fortalecer o Estado nacional, mas sua função
foi-se modificando, aliada às novas demandas sociais. Hoje, o sistema do direito tem de oferecer
respostas que ultrapassam seus objetivos iniciais. Novas demandas sociojurídicas vão surgindo,
mas o direito fundamentado na perspectiva acima apresentada não responde às demandas da
sociedade. Esses problemas podem ser enfrentados através de uma análise da complexidade
típica da sociedade atual, onde cada vez mais o sistema do direito é chamado a responder ques-
tões que ultrapassam os limites do formalismo e do normativismo.
Percebem-se as dificuldades do Direito de lidar com as novas condições vividas pelo
mundo globalizado e repleto de novas exigências decorrentes dessas modificações do ritmo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
das sociedades, sendo possível fazer uma clara associação com o ensino jurídico. Que tipo de
direito está sendo ensinado nas instituições de ensino no Brasil? A quantas anda a condição
desse ensino? Como o ensino jurídico é o principal meio de difusão da cultura jurídica vigente
no Brasil, baseado em algumas situações práticas do cotidiano de trabalho da mestranda: o ma-
gistério e as angústias vivenciadas na formação jurídica.
124
Talvez nenhum espaço possa servir de melhor parâmetro para perceber as condições
do ensino jurídico que a própria sala de aula. Nesse contexto, falar em formação jurídica implica
reconhecer-lhe a importância para a consolidação de uma cultura jurídica nacional e mais ain-
da, significa a necessidade de refletir sobre o papel desempenhado pelas instituições de ensino
jurídico no Brasil, porque o curso de Direito não forma apenas advogados, mas também os
que ocupam, privativamente, os cargos com poder de decisão de uma das funções do Estado, a
jurisdicional.
Nesse sentido, convém observar a deficiência vivida nos cursos de formação jurídica
quanto aos aspectos pedagógicos, que se revelam atrelados ao saber exegético e sem as devidas
interações com os demais campos do saber, e até mesmo relações estabelecidas nas próprias
disciplinas que estruturam os cursos jurídicos.
Faltam, portanto, dentre outros, recursos didáticos, pedagógicos que possam contornar
uma parte do déficit desse ensino. Claro, sem assim isentar os demais problemas existentes na
formação acadêmica na grande maioria das instituições de ensino superior no Brasil. Não causa
espanto que o modelo didático-pedagógico em uso tenha a cara da visão normativista, cuja fi-
nalidade precípua é a busca teórica da validade da norma, o que gera verdadeiros vícios e defor-
mações no ensino do direito, o que os teóricos denominam de exegetismo, judicialismo praxista
ou diletantismo (RODRIGUES,1993,p.38-45), termos que, segundo Ferraz Junior (1980, p.90),
“representam distorções didáticas e epistemológicas sem que uma esteja isolada da outra”.
O exegetismo configura o intento de identificar o Direito com a lei e resumir a sua herme-
nêutica à busca do sentido da lei. Conforme Machado Neto (1984, p.23), a idolatria da lei reduz a
ciência jurídica a uma coletânea de glosadores, que se ocupam em entender o direito a partir de um
conhecimento filológico, apoiado na letra da lei.
Percebe-se quão reduzido está o saber jurídico a esses exatos pontos referidos, dema-
siado repetidos nos cursos de Direito disseminados pelo Brasil. Em síntese: direito é lei, que
emana do legislador, que o direciona conforme a sua vontade e, depois, se aplica via interpre-
tação judicial.
As dificuldades vividas pelo ensino jurídico encontram-se tão inter-relacionadas que
momentos há em que a diferenciação entre os vícios citados se torna complexa, como no caso do
judicialismo praxista, o segundo vício do modelo pedagógico vigente. Nessa perspectiva, o di-
reito só se concretiza depois de aplicado ao caso concreto pelo magistrado, de sorte que a ciên-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
cia do direito fica, mais uma vez, resumida a outro aspecto relevante, o da decisão, levando a
uma cultura cada vez maior do decisionismo jurídico e a consequente judicialização do direito.
Para além dessas situações, não se percebe de maneira difundida, na cultura do ensino
jurídico, os recursos de interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, entendendo-se estes como
estratégias que possibilitam a integração disciplinar para reunir as diversas possibilidades de
conhecimento, em oposição ao conhecimento monodisciplinar ou mesmo multidisciplinar, no
quais não se percebem as relações entre as várias disciplinas.
Nesse sentido ensina Nicolescu:
125
como o prefixo trans indica, a transdisciplinaridade diz respeito ao que está, ao mesmo
tempo, entre as disciplinas, através das diferentes e além de todas as disciplinas. Seu
objetivo é a compreensão do mundo presente, e um dos imperativos é a unidade do
conhecimento.
nossas, o que pode nos levar a frustração. Exige também esforço para a integração
do diferente, sem discriminação, sem juízo de valor e, portanto, sem exclusão. Esse
objetivo não é fácil de ser alcançado, pois exige uma articulação entre o dizer e o fazer
que não é simples (BLATYTA; RUBINSTEIN, 2005).
126
uma atitude transdisciplinar. Ele saía e voltava para a teoria, buscando o que cada área do co-
nhecimento tinha para contribuir para a solidificação desta nova teoria: saiu da sociologia para,
na verdade, torná-la mais “sociológica” e saiu do direito para mostrar a diferença entre o sistema
do direito e da moral, por exemplo.
Na educação, a postura transdisciplinar faz parte do cotidiano, mesmo que, muitas
vezes, isso seja imperceptível. Os alunos e professores trazem para o ambiente escolar toda
uma vivência, um contexto no qual não é possível se libertar e nem oportuno seria, pois sem
a educação, dificilmente se poderia assimilar comportamentos sofisticados ligados ao viver
cotidianamente. Por isso, educação é, sobretudo, intenção pedagógica. Ou seja, o professor
educa intencionalmente e o aluno deve reagir a tal intenção, o que reforça a necessidade da
perspectiva transdisciplinar, pois ela está estruturada na constante ousadia, na transgressão,
na saída e no retorno.
A relação entre a formação de operadores dos sistemas do direito e da saúde no Brasil
foi descrita de modo particular por Gilberto Freyre em 1953, inicialmente escrito para “Year
book of education” – Londres, traduzido para o português em 2003, ele observa:
Note-se que, no caso brasileiro, a relação entre saúde e direito está presente desde a
formação até a consolidação da própria democracia. A saúde pode ser considerada uma “ponte”
na efetivação dos mais diversos sistemas sociais e um dos fatores determinantes da própria saú-
de é a educação. Assim, a postura transdisciplinar está presente nos dois sistemas sociais, pois a
produção científica é fundamental para o desenvolvimento e transformação da atual sociedade,
na qual o conhecimento disciplinar perdeu o sentido. Nesta sociedade de mundo, a produção do
saber parte de múltiplas facetas.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
127
levado os docentes a uma prática de ensino insuficiente para uma compreensão significativa do
conhecimento, deixando muitas vezes os alunos vazios de respostas, como se verifica em ques-
tões do tipo: “por que tenho que aprender isso?”. No âmbito do ensino jurídico essa realidade se
verifica muito intensamente em questões atinentes à lei. Sem entender as razões da existência
de determinadas demandas ou exigências normativas, os alunos questionam: “mas por que é as-
sim?” e a resposta mais comum e óbvia por parte dos professores, que, provavelmente, tenham
ouvido a mesma retórica: “porque a lei diz assim. Por isso! Se você quiser que seja diferente,
terá que ser legislador, ou magistrado para ter o poder de dizer diferente”.
Assim, caminham as orientações acerca dos questionamentos pouco óbvios sobre a
construção do Direito. Tome-se como exemplo como o caso da Sociologia inserida nos currí-
culos acadêmicos dos cursos jurídicos. A interdisciplinaridade e a consequente transdiscipli-
naridade não deveriam ser meros discursos acadêmicos. Sabe-se que a relação entre ambas as
ciências leva ao estudante uma melhor capacidade de compreender a realidade social, e deveria
assim ser exigência de quem e por quem ministra o ensino jurídico a partir do pressuposto da
interação avançada dos saberes ali representados. De acordo com Pinto (2000, p. 97):
Certo é que inobstante exista ainda uma grande relutância na aceitação dos processos
128
transdisciplinares, sobretudo no ensino jurídico, já não se pode mais ignorar a penetração, na
vida acadêmica, da articulação dos pares binários e da conectividade dos saberes, como leciona
Morin (2001).
A transdisciplinaridade exige, por si, uma postura democrática no aprendizado, no
sentido de que os diversos saberes são igualmente importantes, superando assim a visão clássi-
ca da hierarquização dos saberes, que torna alguns, naturalmente maiores ou mais importantes
que outros. É possível observar, nessa perspectiva, que a ideia pré-concebida dessa hierarquiza-
ção, se reflete não apenas no mundo das ciências de modo geral, como encontra guarida dentro
das próprias instituições de ensino jurídico e são reproduzidas fielmente pelos ditos operadores
do direito, como se convencionou chamar os que militam na área jurídica.
A propósito não é apenas nas instituições de ensino de cursos jurídicos que se percebe
essa pouca inter-relação entre as diversas áreas do saber. Felix (2009, p.21) acentua essa reali-
dade ao expor sobre os problemas do ensino jurídico em seus diversos aspectos metodológicos:
de não mais se conceber o conhecimento como neutro, estático ou imutável, e sim de concebê-lo
como histórico, não-neutro, dinâmico e provisório (ARAGÃO,1993, p.15-17). O conhecimento
nunca é definitivo, mas um produto da humanidade, estando sempre ligado a circunstâncias
históricas, que são dinâmicas como o são os indivíduos que o vivenciam e o projetam.
A óptica da transdisciplinaridade traz ainda em grande desafio para o mundo do en-
sino jurídico, qual seja o de transitar de modo mais livre pela gama de conhecimentos que lhe
cercam e são, tantas vezes, distanciados, da realidade concebida como central do e pelo direito.
Essa imagem parece formar uma espécie de pódio, onde o direito ocupa o posto de primeiro
129
lugar, seguido de outras ciências e conhecimentos que se posicionariam em segundo, ou tercei-
ros lugares gradativamente em torno do primeiro, como ocorre com Antropologia, Sociologia,
Filosofia, Linguagem, que gravitam em torno do saber principal.
Por todos os aspectos suscitados, é comum se buscar a resposta a partir de um paradig-
ma que se consagrou no universo do ensino jurídico: o da crise.
A resposta ao questionamento que intitula este tópico não é simples, muito ao contrá-
rio, tem sido objeto de dúvidas e cada vez mais debates e discussões acerca tema. De modo que
ao que indicam os caminhos e pesquisas, um aspecto parece não estar dissociado do outro: a
crise do ensino e do direito enquanto instituição e fonte de legitimação do poder.
Em se tratando de crise do ensino muito se tem falado dos problemas que envolvem o
ensino jurídico no Brasil e não restam dúvidas da necessidade de reformas nos conteúdos e nos
métodos utilizados em seu aprendizado, partindo-se da premissa do elevado alcance político e
social que os cursos de formação jurídica representa(ra)m para o Brasil, como mostra a forma-
ção política, econômica e social do país.
Sobre a crise, Felix (2017) destaca: “me deparei com essa, não diria crise, mas tragédia
do ensino jurídico”, lembra-se. Havia em São Carlos um curso noturno de Direito, 160 alunos
por classe. Fiquei perplexa por aquilo ser chamado de faculdade”.
Que rumos tomaram o ensino jurídico ao longo do tempo? Que elementos respondem
pelas dificuldades de professores e alunos? A discussão é ampla e não há uma verdade acerca do
tema enfrentado. Este estudo parte da perspectiva de que o direito, como fenômeno jurídico, é
dinâmico e multifacetado, com dimensões não apenas normativas, mas também política, social,
econômica e cultural, de sorte que seu movimento não se dá apenas na e pela norma, mas como
resultado impulsionado pela própria sociedade.
Nesse sentido, é oportuno que se ressalte que inobstante esse olhar ampliado acerca
do fenômeno jurídico, ainda é bastante corrente percebê-lo como estático, reduzido à expressão
da norma. Um ou outro entendimento é captado pelo imaginário social sob a forma do ensino
e modo de transmissão do saber, gerando um tipo próprio de atuação do profissional, conforme
o modelo, por assim dizer, do que lhe foi repassado e assim será (re) produzido nos diversos
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
âmbitos de atuação dos profissionais da área, seja elaborando a norma e difundindo um fazer
político-ideológico, seja decidindo nas diversas esferas jurisdicionais.
Nessa esteira de pensamento, Perelman (1998, p.243) afirma que a argumentação dos
juristas depende da ideia que têm do Direito e do seu funcionamento na sociedade, sendo ne-
cessário admitir que ambos os vieses são utilizados como tônica de ensino e transmissão do
saber, ainda que a sociedade não mais se coadune com um modelo de Direito estanque, o que
parece ser um dos primeiros elementos desencadeadores da crise que de longas datas perpassa o
caminho do ensino jurídico no país: o descompasso entre sociedade e Direito. Aliás, o vocábulo
130
crise, tanto no sentido comum, quanto dicionarizado, remete direta e inevitavelmente a algo
que já esteve bem e deixou de sê-lo. Segundo o Aurélio, a palavra significa “ponto de transição
entre um período de prosperidade e outro de depressão”, “momento perigoso ou difícil de uma
evolução ou de um processo” ou “decadência, queda, enfraquecimento”.
Nessa perspectiva, só se pode rigorosamente falar em crise quando algo põe em risco
o que já funcionou a contento. Quando se diz, por exemplo, que um casamento está em crise,
pressupõe-se que o casal vivia em harmonia e um ou vários fatores afetaram essa estabilidade,
podendo isso servir para um avanço de uma dada situação ou por seu fim. Infelizmente, obser-
vando-se o histórico dos cursos jurídicos no Brasil, percebe-se que sempre estiveram relaciona-
dos a conflitos. Segundo Feitoza (2011),
[...] a primeira constatação [disso] é a de que os cursos de Direito no Brasil, desde sua
criação, sempre tiveram um padrão de qualidade de limites estreitos e acanhados,
apresentando no decorrer da história uma evolução linear. Os principais problemas
estruturais que hoje enfrentamos não são novos ou mesmo momentâneos, sempre
acompanharam a história do nosso ensino jurídico. Todas as reformas educacionais
feitas, sejam reformas diretas ou com repercussão na seara jurídica, nunca alcançaram
plenamente seus objetivos.
Ora, é possível, assim, inferir que os cursos jurídicos no Brasil já nasceram em crise,
um entendimento semelhante ao de Adorno (1988, p. 26) quando analisa esse ensino no império
alemão, sustentando a hipótese de que nunca houve um ensino efetivamente jurídico naquele
período, mas uma relação construída para o aprendizado dos alunos a partir da didática do pro-
fessor. O que ocorria, de fato, era um ambiente extra ensino, aliado a características da vida aca-
dêmica, que foi considerado como responsável pela profissionalização do bacharel em Direito.
De outra sorte, nominar a pretensa crise do Direito parece mais complexa, uma vez que
o próprio termo Direito possui alcance amplo no universo simbólico e concreto do Estado. De
acordo com Freitas Filho(2013), o que se convencionou chamar de crise do Direito,
concretude fática. É certo que o Direito somente se realiza na prática, como resultado
do embate dialético entre a norma com o seu caráter de abstração e a realidade na
qual se aplica a mesma. A realidade para a qual se preparam os atores jurídicos e para
a qual teoricamente se produziu o juspositivismo parece não existir. A natureza dos
conflitos se alterou, as características do sujeito de direito se modificaram, e, portanto,
os conhecimentos do ator jurídico devem ser outros. Questões macroeconômicas, novos
direitos, a globalização econômica, a perda de capacidade normativa do Estado-nação,
entre outros fatos, provocam o ator jurídico a pensar o Direito de forma diversa daquela
de uma realidade sócio-econômica de matriz liberal na qual a tradição do pensamento
jurídico ocidental foi conformada.
131
Do pensamento do autor, percebe-se que as mudanças político-econômicas havidas no
cenário mundial estão sendo reconfiguradas pelos Estados. E sendo o direito um instrumento
regulador do Estado, provavelmente o mais importante, dentro da premissa do funcionamento
deste, o direito também precisa ser reconfigurado. Como consequência: se o Estado está em
crise, o direito também vive a crise. Ainda para Freitas Filho(2013, p.24), a crise atual do Estado
indica que os mecanismos econômicos, sociais e jurídicos de regulação, postos há um século,
já não funcionam.
O sistema da educação, refletido por Luhmann, também segue este mesmo percurso.
Temos definições óbvias, as quais não dão respostas para a constante produção de complexida-
de. O autor reflete como as respostas pedagógicas se apresentam do seguinte modo:
O que pretendem os autores com esta reflexão é, inicialmente, mostrar que as expe-
riências pedagógicas pretendem que todos os alunos aprendam da mesma forma ou que a escola
seja um locus de igualdade e inclusão. Na realidade, não passam de aspirações: teorias políticas
de determinadas esquerdas nem resolvem os problemas reais nem produzem teoria. Por isso,
algumas questões se apresentam como relevantes quando se estuda o sistema da educação.
Inicialmente, Luhmann trata da educação como intenção de educar: a educação não eleva os
indivíduos a um estado de perfeição ou plenitude; educação é sempre seleção, é produção cons-
tante de diferenças. Assim, a escola não é o lugar onde as diferenças não se fazem presentes,
ao contrário: estar incluído no sistema educacional significa a constante produção de diferença.
Entretanto, estas diferenças só podem acontecer para aqueles que estão incluídos; quem está
fora do sistema educacional não tem a possibilidade de “disputar”. Aqui está claro o paradoxo
da inclusão/exclusão. Ou seja, mesmo incluído em “igualdade de condições”, o sistema da edu-
cação – como qualquer outro sistema social – produz constantemente diferenças.
A escola nasce para incluir todos os que têm direito de estarem incluídos. A inclusão
universal que vivemos não garante a plena satisfação das expectativas. Por isso, Luhmann afir-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ma que aprendemos mais com a frustração das expectativas do que quando elas são satisfeitas,
como apresenta (BARALDI; CORSI; ESPOSITO, 1996, p.48):
6 Tradução: “A impressionante ambição crítico-social da pedagogia da última década, que em retrospectiva podemos considerar quase
uma história fatal, oferece poucos elementos úteis a respeito. Esta ambição, por sua vez, tem articulado as relações entre educação e
sociedade de maneira deficiente em muitos sentidos e definitivamente não operou a partir de uma base teórica suficiente”.
132
e quindi affrontare le diverse situazione che si presentano nel suo ambiente. La
delusione rende evidente il referimento di un’aspettativa alla realtà esterna, realtà la
cui rilevanteza perturbativa può essere colta proprio attraverso le delusione.7
Assim, se a criação de escolas para todos é uma forma moderna de redução da com-
plexidade, ela, ao mesmo tempo, cria novas complexidades, pois estamos sempre em evolução.
Assim, os mais variados problemas decorrentes da educação de massa devem ser – e são – ab-
sorvidos pelo sistema da educação através da comunicação.
Para contemplar mais um olhar acerca dessa ideia do ensino e seu direcionamento,
ainda na perspectiva luhumanniana, é possível perceber uma relação no que estamos aqui tra-
tando por crise e ou dificuldades no ensino e aprendizado das escolas jurídicas. É o que aponta
Siqueira(2016) ao analisar as dificuldades e problemas do ensino da história do direito, ao longo
da sua experiência docente em diferentes instituições de ensino superior. Em sua abordagem o
autor faz uma análise mais detida acerca do ensino da história do direito, mas indica situações
que não estão limitadas a esse âmbito da discussão.
Observe-se que a noção de lei quando usada como indicador de uma dada realidade,
comumente não reflete o que se dá entre o texto legal e a prática vivenciada na sociedade. Para
tanto, o autor se utiliza de um exemplo bastante significativo acerca do tema, ao invocar a Cons-
tituição Federal em seu art. 6º, IV, o qual reza:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas
necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação,
saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes
periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para
qualquer fim;
7 “A desilusão de expectativa tem uma função importante, uma vez que consente em tratar o que acontece de surpreendente no ambiente,
em particular nas situações de dupla contingência: um sistema pode transformar uma complexidade indeterminada em desilusão e, por
esta razão, enfrentar as diversas situações que se apresentam no seu ambiente. A desilusão desenvolve evidente o referimento de uma
expectativa à realidade externa, realidade a qual relevante perturbativa pode ser colhida precisamente através das desilusões.” Tradução
livre.
133
sociais não asseguram que as determinações ali presentes serão fielmente observadas, demons-
trando assim que a lei não pode ser apresentada, tampouco estudada fora do contexto ao qual
será aplicada. Nesse sentido reitera-se o pensamento de Luhmann para demonstrar que é muito
mais da frustração da expectativa do que da sua concretização que se retiram as lições necessá-
rias ao aprendizado, que só se concretizará de forma eficaz pela reflexão e discussão.
A escola para todos é recente. Nascida em função da necessidade de uma educação
de massa, ela passa a ser uma importante estrutura social na sociedade nas últimas décadas.
Porém, desde sua criação, observamos que a escola se tornou um lugar de alta complexidade
porque, por um lado, é a estrutura que pode incluir todos, porém produz internamente várias
formas de exclusão (refiro-me, por exemplo, às dificuldades que os alunos e professores apre-
sentam no processo aprendizagem, como é o caso dos “alunos especiais”, dos “alunos-pro-
blema”, dos “alunos informatizados”, dos alunos interessados em “qualquer coisa”, menos em
aprender). Por outro lado, temos professores não “especiais”, professores-problema, professores
não informatizados. Deparamo-nos, hoje, em sala de aula, com um novo perfil de alunos, em
um contexto tecnológico em que poucos professores foram formados e capacitados para ensinar.
As comunicações relevantes para o sistema da educação, advindas de outros sistemas,
irritam-no e provocam assimilação através do código do sistema da educação. Exemplificando:
o sistema da política tem a função de tomar decisões coletivamente vinculantes; estas, quando
chegam em qualquer sistema social, são absorvidas pelos códigos e estruturas internas de cada
sistema. Este processo de assimilar o que vem do sistema da política não significa satisfação e
inclusão plenas. O que, então, diferencia as comunicações educativas de outras comunicações?
A resposta, segundo Corsi(1998, p.66-67):
quer outro sistema, se diferencia dos demais. Todos os sistemas são fruto do processo evolutivo
social, o qual, especializando as comunicações internas, faz com que a estrutura do sistema se
organize para isso. No caso do sistema da educação, a escola “nasce” quando se torna necessá-
rio que os indivíduos, independentemente de local ou família, tenham acesso à formação e não
8 “A educação se diferencia dos outros processos comunicativos especificamente nisto: na tentativa de forçar a socialização endereçan-
do o comportamento individual a uma direção precisa, qualificada como correta e justa, e a tal objetivo essa requer a constituição de
situações particulares, como as salas de aula, onde se torna visível a artificialidade da educação mesma. Naturalmente a educação não
elimina a socialização; essa, ao contrario, a pressupõe e é obrigado a admiti-la nas salas de aula em cada situação comunicativa que
tenta ser educativa”. Tradução Livre.
134
apenas à socialização, que ocorre já na família. Assim, a educação não prescinde da socializa-
ção, mas é mais do que mera socialização, porque encaminha os indivíduos para uma formação,
que só pode ocorrer após a socialização e que leva os indivíduos a comportamentos diferentes.
Justamente por isso que a educação não é um processo simples que possa ser exercido por qual-
quer um e em qualquer lugar. Por esta razão, Luhmann reforça a ideia de que a educação não
pode ser explicada simplesmente pela socialização.
Este contexto – educação e socialização – propõe uma reanálise das intenções pedagó-
gicas e a necessidade de seleção, utilizando a possibilidade de influenciar o comportamento do
aluno, mudando seu estado psíquico no qual podemos observar o antes e o depois e a evidente
proposição de que socialização e educação são diferentes. Além disso, observamos que educa-
ção é seleção, pois trata da relação entre professor e aluno ou educador e educando, que por si
só se apresenta como seleção, em que a própria intenção pedagógica torna necessária a seleção.
Este fato, segundo Corsi (1998, p.73), é o ponto central: “senza la possibilità di selezionare non
avrebbe luogo l’educazione, ma solamente la socializzazione”9. Em outros termos, é esta dua-
lidade, como segue afirmando o autor, que evidencia a diferença entre ter um título e a capaci-
dade de exercitar a função proposta pelo mesmo: “la differenza tra conoscenze efetive (qualità
dell’educazione) e carriera educativa (selezione) costituisce l’aspetto più típico e peculiare del
sistema dell’educazione” (CORSI, 1998, p.73)10. É o que permite que a educação se diferencie e
evolua constantemente.
Este pressuposto nos leva a evidenciar o quanto as intenções educativas são comple-
xas. Claro que é melhor educar do que não o fazer, pois a educação busca melhorar as condições
psíquicas do aluno na sociedade. Este é o motivo principal pelo qual continuamente se coloca o
sistema educativo em questionamento, em reforma (o que não é diferente do sistema da saúde).
Como nenhum dos dois sistemas consegue os níveis máximos desejados, entram permanente-
mente em crise.
Assim, com a função de reduzir a complexidade, a escola é criada e recriada constan-
temente, pois é nela que os indivíduos são “educados” ou “deseducados”! Este tema tem sido
constante preocupação dos pedagogos, irritados constantemente por outros atores sociais que
propõem, constantemente, a reforma da educação.
Aqui podemos observar um ponto em comum entre o sistema da educação e da saúde:
ambos estão sempre no foco das reformas. A questão é saber quem reforma os reformadores, o
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
que vale para ambos os sistemas e é o tema que abordaremos no próximo ponto.
Parece-nos importante que entendamos a diferença entre educação e socialização. A
primeira significa aprendizagem intencional; já a socialização existe sempre que produzimos
alguma comunicação. Para Luhmann, por exemplo, socialização significa aprender a reagir às
expectativas que os outros têm de nós: este aprender a reagir não significa, necessariamente,
9 “Sem a possibilidade de selecionar, não haveria local para a educação, mas somente a socialização”. Tradução Livre.
10 “A diferença entre conhecimento efetivo (qualidade da educação) e carreira educativa (seleção) constitui o aspecto mais típico e pecu-
liar do sistema da educação”. Tradução Livre.
135
satisfazer as expectativas que os outros têm de nós mesmos, mas podemos inclusive desiludir.
Esta é a diferenciação que adotamos no nosso trabalho.
Quando se fala de desiguaglinaza e selezione, entendemos, como os autores citados,
que embora a escola sirva para a redução de complexidade do sistema educativo, também pro-
move seleção e desigualdades, na medida em que, por exemplo, estabelecem-se dentro desta
instituição mecanismos de competição, porque a escola confema... il fenomeno di una divisione
(CORSI, 1998, p.73).Outra forma evidente desta seleção é a questão das notas ou conceitos, bem
como a forma como valorizamos mais um aluno que outro. Qual o significado de uma nota dez
ou de uma nota zero? Poderíamos falar longamente sobre os mecanismos de desigualdade e de
seleção dentro da escola ou de qualquer outra instituição, mas para este estudo nos é suficiente
este entendimento, ou seja, não temos uma escola igual ou não seletiva porque, na medida em
que podemos fazer com que alguns alunos cresçam mais que outros, por melhor que seja nossa
intenção, produzimos diferenças quando não damos a todos as mesmas condições. Portanto, o
acesso “livre e universal” ao sistema educativo permanece no âmbito dos valores “humanitá-
rios”. A grande questão é como traduzir em um programa escolar este ideário humanista.
Sem a produção de comunicação, não existem os sistemas sociais. Neste sentido, e
retornando ao pensamento de Giancarlo Corsi(1996, p.72-73):
de diferentes formas.
As comunicações educativas podem ser percebidas por intermédio do efeito que nos-
sas ações cotidianamente apresentam. Por exemplo, um juiz, ao dar uma sentença, poderá, por
11 “A comunicação é, porém, um evento improvável. Em particular, a produção da comunicação apresenta três níveis de improbabilidade.
A um nível básico, é improvável que a comunicação venha comprimida e, portanto, realizada. A um segundo nível, que se produz na
base dos maiores pressupostos de complexidade, é improvável que a emissão consiga o interlocutor em situações ainda mais complexas,
enfim, é improvável que a comunicação venha aceita. O problema para a sociologia é esclarecer como a comunicação, por si só impro-
vável, venha a ser provável. Com a comunicação, vem o provável rendimento através do uso de alguns meios: A linguagem, os meios de
difusão e os meios de comunicação generalizados simbolicamente”. Tradução Livre.
136
intermédio desta produzir, entre outros efeitos, também o efeito educativo; da mesma forma um
advogado, quando orienta um cliente a respeito do seu processo. Ou seja, produzimos educação
dentro e fora da escola. Tradicionalmente, o sistema jurídico não tem uma função educativa,
mas os atos de seus operadores e os dos incluídos neste sistema podem produzir comunicações
educativas que gerarão, por sua vez, efeitos educativos. A comunicação é essencial para a exis-
tência e sobrevivência dos sistemas sociais. Tornam-se educativas porque promovem alterações,
informam, orientam.
Uma comunicação é educativa quando, ao mesmo tempo ensina e informa: para falar
de comunicação educativa, não basta que haja um tema qualquer. Deve haver, também, a von-
tade de mudar o comportamento de outro. Não é suficiente que se fale de qualquer coisa, mas
deve haver a vontade de mudar o comportamento daquele que está de fora. Um professor ensi-
na, um pai ensina buscando comunicar-se para educar (ou seja, educar é uma ação que implica
mudanças de comportamento). Temos educação quando esperamos que o outro, através de co-
municações educativas, melhore ou modifique. Esta comunicação se dá através de atos e ações.
Temos outros instrumentos que mostram a constante necessidade de Reforma do Sis-
tema da Saúde e Educação, escolhemos este porque é atual e mostra o caráter de normalidade
das reformas, como observa Corsi ao afirmar o caráter “normal” das reformas na educação, o
que, para nosso estudo, também repercute no sistema da saúde. Embora o autor afirme que na
educação temos uma tendência específica:
Ora, vemos que a educação busca por experimentação. A novidade se dá com a mesma
frequência no sistema de saúde brasileiro e de muitos países da América Latina, onde o direi-
to à saúde e os direitos sociais em geral, são recentes em relação à Europa, onde o Estado (de
Bem-Estar) Social já estava consolidado quando nós ainda lutávamos pela constitucionalização
destes direitos. Além do mais, hoje não se entende mais a Educação isoladamente. Assim,
as expectativas de que na escola seja possível produzir uma sociedade mais justa passa a ser
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
12 “A síndrome reformista no Sistema da Educação é definitivamente algo de diferente da exigência de flexibilidade e de capacidade
de adaptação exigidos das organizações no campo econômico ou administrativo. Se adverte que há uma inspiração universalista e
totalizante que não quer e talvez nem ao menos possa limitar-se aos problemas de uma única escola ou universidade”. Tradução Livre
137
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nas reflexões aqui apresentadas percebe-se que o ensino jurídico no Brasil,
desde sua implementação, sempre teve um comprometimento com uma ideologia dominante,
deixando em plano secundário o compromisso com a transformação da realidade. Ao aluno,
refém deste ensino, coube a tarefa de reproduzir e operar as fontes do Estado, sem questioná-las.
As novas realidades sociais evidenciam a necessidade de transformação do ensino
jurídico tradicional das faculdades de direito. É mister a criação e/ou construção de um ensino
voltado a realidade e ao estímulo da consciência crítica do aluno, para que o mesmo esteja cons-
ciente da necessidade da transformação da realidade sócio-jurídica.
As transformações e mudanças ocorridas na sociedade, tornaram o direito caótico,
uma vez que este não conseguiu e ainda tem sérias dificuldades em dar respostas positivas as
novas demandas emergentes, gerando as constantes necessidades de reformas do ensino no
âmbito jurídico.
Além disso, faz-se necessário transpor os limites da teoria, compreendendo o mundo e
refletindo sobre ele, agindo conscientemente, entendendo a necessidade de propor novos olhares
sobre a realidade e associar a este novo olhar a ação, adentrando-se na seara da efetividade. No
entanto, forçoso reconhecer que estamos diante de um desafio enorme frente a uma crise social
espelhada na crise do ensino em todos os seus graus.
É certo que as proposições enfocadas neste estudo não pretendem esgotar ou a temáti-
ca, que gera múltiplas relações nas sociedades multifacetadas e seus sistemas interligados. Em
razão da complexidade e grande relevância da problemática cabe buscar novas ideias, vieses e
reflexões na busca de um ensino jurídico de qualidade que beneficie o direito, o estudante e a
sociedade como um todo.
REFERÊNCIAS
138
CORSI, Giancarlo. Lo Scopo della Pedagogia Reformista: Eccellenza senza
Discriminazioni. Tese de Doutorado. Universität Bielefeld: 1996.
DESCARTES, René. Discurso do método. In: René Descartes. Trad. J. Guinsburg e Bento
Prado Júnior. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 33-81 (Coleção Os Pensadores).
FEITOZA, Pedro. A equivocada crise da educação jurídica. Revista Crítica do Direito, São
Paulo, v. 21, n. 1, out. 2011. Disponível em: <http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-
edicoes/numero-1-volume-21/a-equivocada-crise-da-educacao-juridica>. Acesso em: 02 maio.
2017.
FERRAZ JUNIOR. Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: RT,
1980.
MORIN, Edgar. (Dir.). A religação dos saberes: o desafio do século XXI. Trad. Flavia
Nascimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
139
PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SIQUEIRA, Gustavo S. Pequeno ensaio sobre como o direito ensina errado a história
ou algumas dicas para quem faz um trabalho acadêmico. In: Epistemologias Críticas do
Direito/ José Ricardo Cunha(organizador)...[et.al.]- 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
ABSTRACT
The article analyzes the issues related to the crisis of legal education in
Brazil, beyond the crisis variables and consequences in the academic
field. It also addresses issues related to transdisciplinarity, as well as the
effects of legal education on increasingly complex social systems.
Keywords: Legal education. Transdisciplinarity. Social transformation.
140
A SEXUALIDADE HUMANA E O DIREITO DA FAMÍLIA NOS ORDENAMENTOS
DE PORTUGAL E MACAU*
J. P. Remédio Marques 1
RESUMO
Este estudo analisa as diferentes dimensões da expressão da sexuali-
dade e do gênero no Direito da Família de Portugal e da Região Ad-
ministrativa Especial de Macau (v.g., casamento, paternidade, mater-
nidade, responsabilidades parentais e orientação sexual, mudança de
sexo e esterilização), expondo algumas diferenças de tratamento destes
problemas nos dois ordenamentos jurídicos. Apesar de o ordenamento
jurídico (direito público e direito privado) de Macau revelar uma forte
matriz portuguesa, a consciência axiológica jurídica desta Região
Administrativa Especial da China assenta em pressupostos culturais
diferentes, o que explica a descontinuidade de algumas soluções
jurídicas.
Palavras-chave: Direito da Família. Gênero. Homossexualidade. Res-
ponsabilidades parentais. Reprodução medicamente assistida.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 * Texto de apoio à conferência que o Autor proferiu na Universidade de Macau, no quadro da 9ª Conferência Internacional sobre As
Reformas Jurídicas de Macau no Contexto Global – O Direito, a Sexualidade e a Família. Organização: Centro de Estudos Jurídicos,
Faculdade de Direito de Macau, com o apoio da Direção dos Serviços de Assuntos de Justiça do Governo de Macau e da Fundação Rui
Cunha (Macau).
Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e da Universidade Lusíada do Porto (Portugal). Professor Visitante
de Faculdades de Direito em Espanha, Brasil, Angola, Moçambique e Macau.
141
O Direito da Família acolhe múltiplas expressões — e expressões multiformes e entre
si diferenciadas — da sexualidade humana. Isto é assim porque a Medicina e o Direito têm
construído discursos que constituem sistemas simbólicos; sistemas que se alicerçam nos valores
aceitos por determinadas culturas e sociedades e exercem um poder de regulação sobre dimen-
sões como o casamento, a sexualidade, a procriação e a maternidade.
As fontes de relações jurídico-familiares são os receptáculos dessas expressões da
sexualidade, quais sejam: parentesco, o casamento, a afinidade e a adoção. A união de facto
(com o sentido sociológico de união estável para o ordenamento jurídico brasileiro) é objeto de
tratamento jurídico específico em cada um dos ordenamentos jurídicos. E cada ordenamento
jurídico modela tais expressões de acordo com as conceções sócioculturais e ético-axiológicas
dominantes.
O art. 1576.º do Código Civil português (doravante CC) considera expressamente
como fontes de relações jurídico-familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adoção.
A mesma solução decorre do art. 1461.º do CC de Macau. Porém, o artigo 1471.º deste último
Código oferece-nos uma noção de união de facto, no sentido de a considerar como “elação ha-
vida entre duas pessoas que vivem voluntariamente em condições análogas às dos cônjuges”;
dispondo o art. 1472.º as circunstâncias fático-jurídicas de cuja verificação o legislador de Ma-
cau considera emergir uma relação denominada união de facto, à qual irá, depois, aplicar um
específico regime jurídico.
Isto significa que, tanto em Portugal como em Macau, o legislador não reconhece à
união de facto efeitos idênticos aos que reconhece ao casamento; em suma, não equipara as
duas situações. Trata-se de situações jurídicas (ou com relevo jurídico) completamente dife-
rentes, tanto no plano da constituição, dos efeitos jurídicos e da extinção, segundo (PINHEI-
RO,2008,p.642). Isto é constatado em várias dimensões do respetivo regime jurídico: p. ex., o
ex-companheiro não é herdeiro legitimário por morte do outro e somente beneficia de direito a
alimentos sobre os bens da herança, nos termos do art. 2020.º do CC português2, e art. 1862.º do
CC de Macau3, bem como, em Portugal, do direito real de habitação sobre a casa de morada de
família e uso do respetivo recheio durante um prazo de cinco anos4; o unido de facto que viva
com o arrendatário somente sucede na posição jurídica emergente do contrato de arrendamento
por morte deste se viver com ele no locado em união de facto há mais de um ano, diferentemen-
te do que ocorre com o cônjuge sobrevivo (art. 1106.º, n.º 1, alínea a), do CC português), para
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
cuja sucessão na posição jurídica de arrendatário a lei não exige qualquer prazo de duração da
2 O n.º 1 desta norma dispõe que “o membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.
3 Segundo o n.º 1 desta norma “tem direito a ser alimentado pelos rendimentos dos bens deixados pelo autor da sucessão, nos termos do
artigo 1859.º, quem à data da morte deste se encontrasse a viver com ele em união de facto há pelo menos 4 anos, desde que o unido de
facto não estivesse casado ou estivesse separado de facto há mais de 4 anos”. Todavia, o n.º 2 do mesmo artigo desgradua este direito
a alimentos, ao dispor que “O direito do unido de facto a exigir alimentos gradua-se abaixo do direito a alimentos que o cônjuge do
falecido, estando este casado à data da morte, ou os filhos deste tenham sobre os rendimentos dos bens da herança”
4 Art. 5.º, n.º 1, da Lei n.º 7/2001, de 11 de maio. Findo o prazo de cinco anos o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imó-
vel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respetivo
contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para
habitação, pelos senhorios (n.º 7 do referido art. 5.º).
142
residência conjugal. Isto também significa (e é por isso que estes legisladores consagraram tais
soluções) que as duas situações de vida em comum são materialmente diferentes: os unidos de
facto não assumem, não querem ou não podem assumir um compromisso de vida em comum,
ao invés do que ocorre com as pessoas casadas. A união de facto, em Portugal e em Macau,
não partilha totalmente das características das situações jurídicas familiares; scilicet, não é uma
situação jurídica indisponível, não desfruta de uma funcionalidade e oponibilidade erga omnes
acentuadas; e não tem uma durabilidade virtual5.
Na verdade, na união de facto não é exigido o cumprimento de deveres conjugais,
ao contrário do que ocorre com o casamento e o consentimento (recíproco) para essa situação
existencial ser mantida é renovado quotidianamente. No casamento há apenas um consentimento
inicial para formar o vínculo. Na união de facto existe um consentimento que se renova todos
os dias para que esta situação jurídica perdure. A dissolução do vínculo matrimonial obedece
por isso mesmo a um formalismo muito mais exigente. Um regime que equipare totalmente a
união de facto ao casamento pode ser julgado contrário à Constituição da República Portugue-
sa (art. 36.º, n.º 1, 2.ª Parte) e à Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau (art.
38.º). As pessoas vivem em união de facto precisamente que não desejam celebrar casamentoe
ficar sujeitas a obrigações e deveres jurídicos. Têm, aliás, o direito a não casar. No anverso,
as pessoas que celebram casamento colocam-se sob um manto de diversas obrigações (arts.
1671.º, n.º 2, e 1672.º do CC português; art. 1533.º do CC de Macau), que o legislador ordinário
não pode descaracterizar, no sentido de permitir que o casamento não ficasse dependente de
quaisquer formalismos e a sua dissolução pudesse ser realizada livremente e sem quaisquer
formalidades6. Mesmo em Macau — aqui onde em certos momentos históricos as pessoas se
consideravam casadas segundo os usos e costumes chineses —, a união de facto traduz uma
situação jurídica equiparada (ou conexa), para certos efeitos, às relações jurídicas de família
(PIRES, 2012, p.591/594).
2 CASAMENTO
5 Sobre estas características das situações familiares, cfr. Pinheiro, Jorge Duarte (2008), pp. 89-97.
6 Sobre isto, Coelho, F. M. Pereira; Oliveira, Guilherme de, Curso de Direito da Família. Vol. I. Introdução. Direito Matrimonial. 5.ª
ed. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2016, pp. 61-63; sobre a necessidade de a situação jurídica familiar implicar deveres familiares,
Varela, João de Matos Antunes, Direito da Família. Vol. I., 5.ª ed. Lisboa: Livraria Petrony, 1999, p. 31; ou, em alternativa, essa situa-
ção jurídica familiar implicar um estado pessoal, cfr. Mendes, João de Castro; Sousa, Miguel Teixeira de, Direito da Família. Lisboa:
Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990/1991, p. 15.
143
às relações heterossexuais e, recentemente, em muitos países, às relações homossexuais.
144
tentes em Portugal) e não aos tribunais portugueses para conhecer de tais causas de nulidade do
casamento canónico e da dissolução do casamento ratus et non consumatus (art. 1625.º do CC,
na sequência da manutenção do regime pretérito na nova concordata que a República Portugue-
sa celebrou com a Santa Sé, em 2004); decisão, esta, que, se for procedente, é objeto de revisão
e confirmação nos termos da lei processual civil pelos Tribunais de 2.ª Instância.
Em Macau vigora um sistema de casamento civil facultativo na primeira modalidade
(art. 121.º/1 do Código do Registo Civil de Macau). Vale dizer: os nubentes podem casar pe-
rante o funcionário do registo civil, bem como estão livres de celebrar uma vez que os efeitos,
quanto aos requisitos de fundo do casamento, sua invalidade e dissolução, são exclusivamente
regulados pelo CC de Macau.
O processo preliminar para casamento inclui, como primeiro acto dentro do procedi-
mento administrativo, a declaração para casamento acompanhada de vários documentos (alí-
neas a) e b) do n.º 1 do art. 137.º do Código do Registo Civil português).
Porém, nenhum desses documentos é a certidão médica passada em laboratório de
análises respeitante à despistagem de doenças sexualmente transmissíveis. Os países que pre-
veem a junção deste documento (p. ex., a França) não impedem a celebração do casamento se
ele não for junto. A ideia é a de apenas levar ao conhecimento do outro nubente, de uma forma
oficial, a condição médico-sexual do nubente com quem pretende casar, contribuindo para me-
lhor formar a sua vontade de contrair ou rejeitar a celebração do casamento.
2.2.2 O casamento católico (em Portugal) como espaço que (também) visa a procriação
145
Isto significa que a consumação (isto é, a existência de relações sexuais com potencia-
lidade para serem fecundantes) continua a ter no casamento católico um relevo que não possui
no casamento civil.
Vale dizer: a consumação como que torna o acto matrimonial mais estável, pois só
depois de consumado é que o casamento católico goza de indissolubilidade. Observe-se que
o casamento católico não consumado pode dissolverse por graça ou dispensa pontifícia (“dis-
pensa do casamento rato e não consumado”), nos termos do Cânone 1142 do Código de Direito
Canónico. Refira-se, por outro lado, que no direito canónico a impotência é impedimento ma-
trimonial dirimente (Cânone 1084), o que também revela como o espírito do direito canónico é
diverso, neste ponto, do direito civil.
O casamento católico evidencia três “bens do matrimónio” (bona matrimonii): o bo-
num prolis (a procriação e educação dos filhos), o bonum fidei (a mútua fidelidade) e o bonum
sacramenti (a indissolubilidade). Os elementos essenciais que individualizam o casamento ex-
primemse assim em direitos e deveres recíprocos dos cônjuges. Ora, se os nubentes (ainda
antes da celebração do casamento) têm intenção de não assumir esses deveres, excluindo um
ou alguns daqueles “bens”, então o casamento católico é inválido por falta de consentimento
matrimonial. Como diz o Cânone 1101, § 2, “se uma ou ambas as partes, por um ato positivo
de vontade, excluírem […] algum elemento essencial do matrimónio ou alguma propriedade
essencial, contraemno invalidamente”.
O consentimento para celebrar casamento deve ser livre, o que a lei também presume
(art. 1634.º do CC português). É assim necessário que a vontade dos nubentes tenha sido esclare-
cida, ou seja, formada com exacto conhecimento das coisas, e se tenha formado com liberdade
exterior, isto é, sem a pressão de violências ou ameaças.
A expressão e conformação da sexualidade de cada um dos nubentes pode contaminar
o consentimento para casar. Estou a referir-me ao erro. Este, como é sabido, deve recair sobre a
pessoa com quem se realiza o casamento e versar sobre uma qualidade essencial dessa pessoa.
Algumas dimensões dessa sexualidade podem ter implicações em matéria de erro na
celebração do casamento. O erro só é relevante (como causa de anulação do casamento) se
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
versar sobre qualidade essencial da pessoa do outro cônjuge (art. 637.º do CC português; art.
1509.º do CC de Macau. São essenciais as qualidades particularmente significativas, que, em
abstracto, sejam idóneas para determinar o consentimento para casar. Neste sentido, a vida
e costumes desonrosos, a impotência, deformidades físicas graves, doenças incuráveis e que
sejam hereditárias ou contagiosas, etc., serão circunstâncias que, entre outras, poderão assu-
mir relevância para este efeito. A impotência instrumental (falta, mutilação ou conformação
anormal dos órgãos sexuais), a impotência funcional (os órgãos sexuais existem e têm a sua
conformação normal, mas não são aptos para a cópula), a impotência seja absoluta ou relativa
(ou seja, quer se manifeste em relação a qualquer pessoa ou só em relação a certas pessoas e,
146
em particular, à pessoa do outro cônjuge) constituem qualidades essenciais (COELHO; OLI-
VEIRA,2016, p.282-284).
guês, impõe-se a ambos os cônjuges para fazer respeitar as convenções sociais, o luto; por outro
lado, e em relação à mulher, o maior prazo internupcial pretende evitar as dúvidas que poderiam
suscitarse sobre a paternidade do filho nascido depois do 2.º casamento. Note-se que estas pes-
soas não podem celebrar casamento (civil ou religioso) dentro dos referidos, mas podem eviden-
temente expressar a sua sexualidade no seio de uma união de facto, de um concubinato dura-
douro ou de relações sexuais efémeras com um ou vários parceiros sexuais, ao mesmo tempo ou
de forma sucessiva. De igual modo, o parentesco no terceiro grau da linha colateral (art. 1604.º,
alíneac), do CC português: tios e sobrinha; tia e sobrinho) é, igualmente, um impedimento, mas
pode ser dispensado por autorização da Conservatória do Registo Civil, ponderados motivos da
147
pretensão dos nubentes. Estes não são, porém, impedimentos matrimoniais em Macau.
2.5 Deveres conjugais; incapacidade física dos cônjuges; danos indirectos causados
por facto ilícito de terceiro
Tal como em Portugal, em Macau o dever conjugal de coabitação e de fidelidade estão
expressamente previstos na lei (art. 1533.º do CC de Macau).
A jusante há, porém, diferenças, pois Macau mantém o sistema do divórcio-sanção por
causa de violação culposa de deveres conjugais (art. 1635.º/1). Portugal aboliu expressamente
este sistema, em finais de 2008, embora ele esteja implicitamente presente no divórcio-ruptura
quando se alega a violação de tais deveres que, objectivamente, constata uma situação de crise
matrimonial a que urge por termo por meio da pretensão do divórcio. É verdade que está em
causa apenas a ruptura, independentemente das razões que a tenham determinado, designa-
damente a recusa em manter relações sexuais ou outras formas de expressão da sexualidade
dentro do casal.
Outros autores (Remédio Marques7e Jorge Duarte Pinheiro) preferem ver nessa mu-
dança de sexo a causa da dissolução automática do casamento por meio do recurso à figurada
ineficácia jurídica (ineficácia por isso mesmo superveniente), a qual, pela sua própria configu-
7 Marques, J. P. Remédio.Mudança de Sexo. O Critério Jurídico. Tese (Mestrado em Direito). Coimbra: Faculdade de Direto da Uni-
versidade de Coimbra (existente no fundo bibliográfico desta Faculdade e na Biblioteca Nacional), 1991, p. 413 ss., p. 424.
148
ração negocial, verifica-se sempre após a celebração do ato/negócio jurídico8.
Em Macau, a discussão permanece, uma vez que a identidade de sexo é requisito
essencial da celebração de casamento (civil). Em Portugal, após a admissão de celebração de
casamento entre pessoas do mesmo sexo, Pereira Coelho e Guilherme De Oliveira, entendem
que a mudança de sexo de um dos cônjuges não torna o casamento inexistente nem gera qual-
quer causa de invalidade.
Eu julgo, porém, que há dois de casamento (homossexual e heterossexual) cujo regime
jurídico é praticamente idêntico após a sua celebração, mas é diferente até ao momento da sua
celebração: o cônjuge que celebra um casamento heterossexual forma o seu consentimento
com base na diversidade de sexos; qualquer alteração do sexo legal do outro cônjuge atinge,
por via de regra, a formação de tal consentimento, visto que o sexo, nesse outro modelo social,
constitui um elemento essencial da pessoa do outro cônjuge (art. 1636.º CC português), cuja
diferente conformação (desconhecido do outro) vicia a vontade e conduziria à anulação desse
casamento. Neste sentido, o casamento heterossexual seguido da mudança legal de sexo de
um dos cônjuges já não implica a dissolução automática desse casamento, após o trânsito em
julgado da decisão que afirme e constitua essa mudança do sexo, mas abre a possibilidade de o
outro cônjuge peticionar a anulação do casamento.
Se o casamento for originariamente celebrado entre pessoas do mesmo sexo legal (o
que não é possível em Macau), a mudança legal de sexo de um dos cônjuges poderá ter relevân-
cia, igualmente, em matéria de vícios da vontade — pode conduzir à anulação do casamento por
erro —, não devendo importar a dissolução automática de tal casamento.
Deve, por outro lado, ser afastada a solução que autorize um dos cônjuges a divorciar-se
do outro (cuja legitimidade activa caberia ao cônjuge que não foi objecto de mudança de sexo)
na sequência da mudança de sexo e nome no registro civil. É verdade que o comportamento do
cônjuge, que, sem o consentimento do outro, se faz submeter a operação cirúrgica de mudança
de sexo, podia conduzir ao divórcio nos termos gerais de um casamento heterossexual. Todavia,
a operação cirúrgica pode ter sido acordada entre os cônjuges; por outro lado, não se justificaria
que a sorte de um matrimónio outrora considerado pela lei de como inexistente (e agora como
ferido eventualmente com um vício na formação da vontade de um dos nubentes ficasse na
dependência da vontade do outro cônjuge, mantendose o casamento entre cônjuges do mesmo
sexo no caso de não ser requerido o divórcio.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
3 UNIÃO DE FACTO
8 Com a admissão do casamento (civil) entre pessoas do mesmo sexo, em Portugal, por força da Lei n.º 9/2010, de 31 de maio, a questão
não é tão líquida no sentido da dissolução automática do casamento anteriormente celebrado com diversidade legal de sexos. Parece que
o cônjuge do transsexual estará livre de peticionar a anulação do casamento, nos termos do art. 1636.º do CC, uma vez que o estado de
transexualismo seja (como é) anterior À celebração do casamento e recai por via de regra sobre uma circunstância que foi decisiva ou
determinante na formação da vontade de esse cônjuge casar, exceto se o estado de transexualismo já fosse conhecido pela pessoa desse
cônjuge que agora se vê confrontado com a mudança legal de sexo (e nome) do outro.
149
A vida em comum em condições análogas às dos cônjuges é o que caracteriza a deno-
minada união de facto, uma vez que a lei portuguesa continua a não definir esta situação jurí-
dica de expressão da sexualidade humana. O CC de Macau procedeu a uma maior densificação
desta situação jurídica familiar (arts. 1471.º e 1472.º). No Brasil, esta situação tem o nome de
união estável, cujos efeitos jurídicos patrimoniais são idênticos aos das pessoas casadas, pelo
menos no que tange à maioria dos efeitos patrimoniais inter vivos9 e aos efeitos sucessórios, na
sequência da recente decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, de 10 de maio de 201710.
As pessoas vivem em comunhão de leito, mesa e habitação, como se fossem casadas,
apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligadas pelo vínculo formal do casa-
mento. A circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de
casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de
facto. Relações sexuais fortuitas, passageiras, acidentais, não configuram uma união de facto.,-
Tão pouco o concubinato duradouro traduz a vivência em união de facto. Uma pessoa só pode
viver em união de facto com outra, não com duas ou mais. É claro, porém, que não deixa de
haver união de facto porque um dos sujeitos da relação não é fiel ao outro, tal como não deixa
de haver casamento se um dos cônjuges viola o dever de fidelidade e mantém relações sexuais
com outra pessoa.
e educá-lo, bem como a situação familiar e económica do adoptante. Isto não significa que essa
orientação seja irrelevante, à luz das circunstâncias do caso concreto, caso seja voluntariamente
9 Cfr., muito antes desta decisão do STF, Dias, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias. 4.ª ed. revista, atualizada e ampliada.
São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007, p. 166, Autora que já afirmava que a união estável “gera um quase casamento na iden-
tificação dos seus efeitos, dispondo de regras patrimoniais quase idênticas”.
10 Como é sabido, o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL entendeu que a união estável e o casamento possuem o mesmo valor jurídico
em termos de direito sucessório, tendo o companheiro os mesmos direitos a heranças que o cônjuge (pessoa casada), julgando inconsti-
tucional a interpretação diversa que se possa retirar do art. 1790º do CC brasileiro. O texto da decisão com repercussão geral é o seguin-
te: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/2002, devendo ser
aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/2002» (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL, REs 878.694 e 646.721, T. Pleno, rel, min. Luís Roberto Barroso, j. 10/5/2017).
150
revelada pelo adoptante ou venha ao conhecimento dos técnicos de serviço social ou do juiz
antes da emissão da sentença que decreta a adopção.
O superior interesse do menor, cuja adopção é requerida exige, a meu ver, que seja
ponderada a orientação sexual e a vivência dos progenitores na construção da identidade pes-
soal (e, sexual) do menor, e no seu ser-com-os-outros.
5 PODERES-DEVERES PARENTAIS
Os menores de 18 anos estão sujeitos ao poder paternal (ou aos poderes-deveres paren-
tais). Todavia, esta incapacidade de exercício projecta-se sobretudo na vertente patrimonial. Em
outras dimensões da existência dos menores, designadamente, na expressão da sexualidade, os
menores desfrutam de notórias maioridades especiais antes de perfazerem 18 anos. Vejamos.
151
adopção, exige-se o consentimento do adoptando com mais de 12 anos (art. 1981.º/1, alíneaa),
do mesmo Código); o menor de 16 anos pode escolher livremente a sua religião (art. 1886.º,
idem; também assim no CC de Macau); os menores com 16 anos podem celebrar casamento
válido (art. 1649.º do CC português); em geral, nos processos de regulação de responsabilidades
parentais e demais processos tutelares cíveis, os menores com capacidade natural para entender
devem ser ouvidos pelo juiz, sob pena de nulidade processual.
No domínio da saúde e da sexualidade humana, estas «maioridades especiais» são
mais intensas. Vejamos. Admite-se o acesso livre às consultas de planejamento familiar a todos
os jovens em idade fértil, sem quaisquer restrições, independentemente de autorização prévia
dos pais (em Portugal: art. 5.º da Lei n.º 3/84, de 24 de Março; n.º 2 da Portaria n.º 52/85, de 26
de janeiro). Neste domínio da informação sexual e contracepção, os menores não se sujeitam
ao poder paternal. No que respeita à saúde sexual e reprodutiva, a Resolução da Assembleia da
República n.º 51/98, de 2 de novembro recomenda ao Governo a criação de consultas próprias
de ginecologia e obstetrícia para adolescentes nos centros de saúde e hospitais, o que já se ve-
rifica desde finais dos anos noventa do século passado. A Lei n.º 120/99 de 11 de agosto, que
reforça as garantias do direito à saúde reprodutiva, reafirma que os jovens podem ser atendidos
em qualquer consulta de planeamento familiar, mesmo que o centro de saúde não seja o da sua
área de residência.
De igual maneira, não há restrições etárias, em Portugal, para a venda de contracep-
tivos de venda livre; aliás, estes são inclusivamente fornecidos nos centros de saúde aos jovens
menores que os solicitem. Enfim, o livre acesso individual, com garantia de confidencialidade,
garante maior liberdade aos adolescentes relativamente à sua autodeterminação com a saúde
reprodutiva, pois o artigo 5.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 157/99, de 10 de maio, determina que são
utentes dos centros de saúde todos os cidadãos que neles se queiram livremente inscrever.
No que toca à interrupção voluntária da gravidez não criminalmente punível, a lei
portuguesa dá o poder de decisão à grávida com 16 anos ou mais (art. 142.º do Código Penal). O
consentimento é prestado por documento escrito pela mulher grávida, sempre que possível com
a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção.
No que respeita à capacidade para perfilhar, a lei portuguesa reconhece-a aos menores
de 16 anos, se não estiverem interditos por anomalia psíquica ou não forem notoriamente de-
mentes no momento da perfilhação (art. 1850.º, n. 1, do CC); idem, no ordenamento de Macau
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
152
prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer
parentes da linha colateral (art. 3.º/3, alínea b), do citado decreto-lei).
Quanto às demais intervenções médicas, incluindo as de alteração dos caracteres ge-
nitais externos e/ou internos, só os menores de 16 anos, ou os que não possuam o discernimento
necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento é que serão substituídos pelos
representantes11. A idade de 16 anos constitui assim no direito português uma presunção de
capacidade para consentir intervenções médicas (OLIVEIRA,199,p.228). Porém, em certos ca-
sos, o médico deverá chamar os pais a colaborar no esclarecimento, na formação da vontade do
menor de 16 anos, quando este aponta para uma solução com resultados graves e irreversíveis
para a sua saúde ou a sua vida.
Quanto aos menores com idade inferior a 16 anos, há quem entenda que é o médico
a pessoa que tem o ónus de demonstrar que o menor desfruta do discernimento e capacidade
suficiente para consentir, independentemente da vontade dos representantes legais. Todavia, aos
menores com mais de 14 anos e capacidade de entendimento internados em unidades de saúde
mental é reconhecida a capacidade de consentir12. Com efeito, se o menor for capaz de com-
preender o alcance, a índole e as consequências da intervenção e da recusa do tratamento, de
modo que se deva considerar capaz para consentir, ele deve também ser considerado capaz para
dissentir. Por outro lado, sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade para
consentir numa intervenção, esta não poderá ser efetuada sem a autorização do seu representan-
te, de uma autoridade ou de uma pessoa ou instância designada pela lei. A opinião do menor é
tomada em consideração em função da sua idade e do seu grau de maturidade.
Na verdade, o art. 46.º, n.º 3 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos (Portu-
gal) determina que “A opinião dos menores deve ser tomada em consideração, de acordo com a
sua maturidade, mas o médico não fica desobrigado de pedir o consentimento aos representan-
tes legais daqueles”. Também o n.º 2 do artigo 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem
e a Biomedicina, dispõe que: “Sempre que, nos termos da lei, um menor careça de capacidade
para consentir numa intervenção, esta não poderá ser efetuada sem a autorização do seu repre-
sentante.
COACTIVA
153
não pode ser efectuada sem a autorização do seu representante ou, na sua impossibilidade, do
tribunal competente, sendo a opinião do menor tomada em conta, em função da sua idade e do
seu grau de maturidade.
Em Portugal, o artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 3/84, requer idade acima de 25 anos, declara-
ção escrita e assinada, requerendo a realização do procedimento, bem como explicitando que a
pessoa foi esclarecida sobre a intervenção; essa declaração deverá ter ainda o nome e assinatura
do médico solicitado a intervir.
Já quanto aos incapazes de facto, em virtude de distúrbio mental, de doença ou de
motivo similar, a intervenção não pode ser efectuada sem a autorização do seu representante ou
do suprimento judicial do consentimento, devendo a pessoa em causa, na medida do possível,
participar no processo de autorização.
Em Portugal não há legislação específica sobre a esterilização não terapêutica de
maiores incapazes. A referida Lei n.º 3/84 limita-se a estatuir que o limite mínimo de idade
de 25 anos é dispensado nos casos em que a esterilização é determinada por razões de ordem
terapêutica. Todavia, o Conselho de Ética para as Ciências da Vida (Portugal) já emitiu pare-
cer (n.º 35/CNECV/01)13, no sentido de que a esterilização não terapêutica de incapazes através
da laqueadura só deve ser realizada como medida de último recurso, tendo em vista sua difícil
reversibilidade; ademais, a decisão deve partir de uma autorização do Tribunal.
O Código Deontológico da Ordem dos Médicos de Portugal determina, no seu art.
66.º, n.º 4, que os métodos de esterilização irreversíveis só devem ser executados após pedido
devidamente fundamentado no sentido de evitar graves riscos para a sua vida ou saúde dos seus
filhos hipotéticos e, sempre, mediante prévio consentimento judicial. A família do incapaz e
dos médicos são aqueles em quem a lei faz recair a difícil decisão acerca da esterilização não
terapêutica como meio de controlo de natalidade. Isto sem prejuízo de, como referi, o incapaz
dever ser ouvido. Mas tal como em Portugal, em Macau o consentimento é tolerante, pois nos
termos do n.º 5 deste artigo 6.º a autorização referida pode ser retirada, em qualquer momento
até à execução da intervenção, no interesse da pessoa em causa.
isso tem que ser reflectido na regulação jurídica e no Direito. A doação de óvulos e até de em-
briões levanta menos problemas do que a doação de esperma. Isto por causa de ideias em torno
da experiência do nascimento e da ligação maternal durante a gravidez.
Na China (e, logo, na Região Administrativa Especial de Macau), a doação de óvulos
é mais aceite do que a de esperma por causa dos valores patriarcais e das preocupações com
13 MACHADO, Pinto. Laqueação de Trompas em Menores Com Deficiência Mental Profunda. Conselho Nacional de Ética para as
Ciêcias da Vida. Lisboa, 3 abr 2001. Disponível em: <http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1273057418_P035_LaqueacaoTrom-
pas.pdf>. Acesso em: 1 out. 2017>.
154
a continuidade das linhagens patriarcais, ao passo que acontece exatamente o contrário, por
exemplo, em Israel, onde a identidade judaica é estabelecida através da mãe. No Reino Unido e
nos EUA a doação de esperma é vista de modo sexualizado – talvez porque a doação atravessa
as fronteiras de género –, enquanto a doação de ovos é vista como assexuada e altruísta.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
o recurso à adopção singular com ocultamento da (ou prévio à) existência de um/a parceiro/a.
Noutros casos, nacionais da China continental recorrem às autoridades sanitárias de
Macau para realizar técnicas de procriação assistida ilícitas face ao ordenamento da República
Popular da China (e, por vezes, de Macau).
De todos estes novos e radicais casos a bibliografia mais recente sobre estes assuntos
sugere que os modelos construídos por famílias, parceiros e pais gays e lésbicas, bem como
pelos pais de crianças nascidas graças a novas tecnologias reprodutivas, assentam igualmente
em ideias radicais e em ideias conservadoras.
155
Durante muito tempo a sexualidade, a procriação, a filiação e a aliança coincidiam,
mesmo que apenas idealmente, assim como a produção e reprodução da família. Hoje, em mui-
tos países (de que são expressão os ordenamentos jurídicos português e macaense), a cada vez
maior saliência cultural da homoparentalidade ainda vai confrontar-se, por muito tempo, com
os efeitos das normas jurídicas geralmente aceitas e produzidas nos Parlamentos, para efeitos da
constituição das subjectividades (neste caso de “pais” e “filhos”). E isto será tanto mais assim
quanto, sobretudo em contextos contemporâneos na Europa e nos E.U.A., a lei segue e apoia o
biologismo da cultura e a biologia tende a seguir e a apoiar o biologismo da lei14.
REFERÊNCIAS
Dias, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4.ª ed. revista, atualizada e ampliada.
São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007.
Mendes, João de Castro; Sousa, Miguel Teixeira de, Direito da Família. Lisboa: Associação
Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990/1991.
Moreira, Sónia. Autonomia do Menor no Exercício dos seus Direitos. Scientia Iuridica,
2001, p. 159 ss.
Oliveira, Guilherme de. O Acesso dos Menores aos Cuidados de Saúde. Temas de Direito da
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
14 Nestes termos, Almeida, Miguel Vale de, “O Esperma Sagrado: Algumas Ambiguidades da Homoparentalidade em Contextos Eu-
ro-Americanos Contemporâneos”, in: Quaderns, n.º 25, 2009, pp. 109 ss., pp. 119-120, acessível, igualmente no seguinte endereço
eletrônico: http://miguelvaledealmeida.net/wp-content/uploads/2012/11/193726-328868-1-PB.pdf
156
Pires, Cândida Antunes da Silva. O direito da Família e a Prova Legal do Estado Civil
em Macau. In: Repertório do Direito da Macau. Macau: Centro de Estudos Jurídicos da
Universidade de Macau, 2012, p. 591 ss.
Pitão, França. Uniões de Facto e Economia Comum. 2.ª ed. Coimbra: Almedina, 2006.
Varela, João de Matos Antunes. Direito da Família. Vol. I., 5.ª ed. Lisboa: LivrariaPetrony,
1999.
THE HUMAN SEXUALITY AND THE FAMILY LAW IN THE PORTUGUESE AND
MACAU LEGAL FRAMEWORK
ABSTRACT
This paper analyses some of the multiple dimensions of sexuality and
gender in Family Law in the Portuguese and Macau legal framework
(e.g., marriage, fatherhood; motherwood; adoption; parental respon-
sibilities and sexual orientation; sex reassignment, sterilization). Al-
though the legal system of Macao (public law and private law) reveals a
strong Portuguese matrix, the ethical and axiological awareness of this
Special Administrative Region of China is based on different cultural
assumptions, which explains the discontinuity of some legal solutions.
Keywords: Family Law. Sexuality. Gender. Homosexuality. Parental
responsibilities.Medical assisted reproduction.
157
CONTROLAR E PUNIR – O DIREITO PENAL EM MUDANÇA?
RESUMO
Este estudo analisa o controle social e a punição na sociedade do ris-
co e globalizada, em que se desenvolve uma nova criminalidade al-
tamente danosa e geradora de elevados sentimentos de insegurança.
O enfraquecimento do poder estatal ligado ao questionar do mode-
lo social, sob o pano de fundo da crise econômica desencadeada em
2008, alimentou uma cultura de controle e a penalização da seguran-
ça. O Estado Penal e uma ideologia securitária levam à crescente uti-
lização das penas de prisão e alternativas como puro controle. Apenas
uma reinterpretação da dimensão socializadora da punição, permiti-
rá restaurar a responsabilidade e autonomia, recriando o laço social.
Palavras-chave: Risco. Globalização. Segurança. Punição. Socialização
1 INTRODUÇÃO
Falar de controle social e de punição significa ter presente que a sociedade e o crime
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Professora de Direito e Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Foi Presidente da Comissão para a Refor-
ma do Sistema de Execução de Penas e Medidas e Presidente da Comissão de Reforma da Legislação sobre o Processo Tutelar Educati-
va. É colaboradora permanente da Revista Portuguesa de Ciência Criminal. É colaboradora do Comentário Conimbricence do Código
Penal - Parte Especial, É membro da Associação Internacional de Direito Penal. É Secretária-Geral da Fundação Internacional Penal e
Penitenciária. É Secretária para os Assuntos Europeus da Sociedade Internacional de Defesa Social. Foi diretora do CEJ. Presentemente
é Diretora da FDUC.
158
o perscrutar dos sinais emitidos em diferentes linhas de fronteira.
Os desafios estão bem esculpidos nas experiências da realidade social e em substâncias
e formas de criminalidade que marcam a contemporaneidade. A legitimidade do punir deve
limitar-se a um eidético mundo da vida, de inspiração husserliana? Isso não significará uma
política criminal míope, incapaz de responder à necessidade de proteger novos valores e de
perseguir e punir novos criminosos,em que a referência pode ser a catástrofes ambientais ou nu-
cleares? Mas até onde se pode ir naperseguição e punição da criminalidade mais grave, sobre-
tudo daquele que emerge nos dias atuais como desafio aos fundamentos da própria democracia?
E até onde se pode oferecer proteção àqueles que se propõem destruí-la, como acontece com
certas manifestações de criminalidade econômica ou de terrorismo?
O direito penal e, com ele, o direito de punir, tocam o seu próprio destino.
Ainterrogação, ao mesmo tempo mais genérica e mais funda, atravessa o atual tempo:
até onde pode recuar a liberdade para assegurar a segurança?
Tinha razão Saramago quando se referiu ao presente tempo como o tempo das pergun-
tas: sobram as perguntas e faltam as respostas.
2 O autor definiu a “sociedade do risco” como aquela que, juntamente com os progressos da civilização, apresentava a contrapartida da
produção de novos riscos conaturais àqueles progressos, por exemplo, perigos ambientais ou nucleares. Hoje em dia, como o próprio
Beck destaca (BECK, Ulrich; WILLMS,Johannes.Conversations with Ulrich Beck, Cambridge, Polity Press, 2003, p. 34), a lista dos
“riscos” poderia ser ampliada: riscos laborais (precariedade, flexibilidade laboral e despedimentos); riscos sanitário-alimentares (conta-
minações, adulterações, transgénicos, pestes de animais); riscos derivados da alta sinistralidade (laboral e em acidentes com veículos);
riscos próprios de desasjustamentos psíquico-emocionais e derivados das “patologias do consumo” (anorexias e bulimias).
159
de saúde pública, de segurança pessoal ou de segurança comunitária que, no novo milênio,
confrontam a humanidade com desafios avassaladores3.
Interagindo com o risco, a globalização – também já descrita como uma compressão
do Mundo - é o outro fenômeno responsável pela emergência de uma sociedade impregnada por
uma ideologia neoliberal, que não por acaso recebe o ápodo de “globalização neoliberal”4. O
primado da lex mercatoria - a entronização do mercado, para utilizar a terminologia do prêmio
Nobel Joseph Stiglitz – e a ausência de regulação pública efetiva são caraterísticas reconhecidas
da globalização, designadamente econômica, mas não só.
É esta sociedade que se confronta com mudanças que colocam a sua humanidade no
fio da navalha.
É, desde logo, (INNERARITY, 2009, p. 57) a invisibilidade dos poderes que a domi-
nam, cada vez menos identificáveis. A globalização trouxe consigo a questão de saber quem
manda aqui – ou, se se preferir, quem ordena o caos.
Foi também Beck5 que chamou a atenção para que a globalização, ao contrário do
que à primeira vista se poderia pensar, não apontava para o “fim da política”, mas para “novos
atores” da política num “novo espaço”: os grandes empresários em empresas internacionais à
escala mundial. A atuação destesnovos protagonistas, situada fora das fronteiras nacionais, sig-
nificou mais política – a politização da economia -,porque permite que desempenhem um papel
chave, não só na configuração das relações econômicas, mas na sociedade no seu conjunto:
têm uma localização incerta, escapam aos controles estatais e não prestam contas a qualquer
eleitorado. A abertura a espaços de tratamento diferenciado de certas atividades, ilícitas em um
lugares e lícitas noutros, permitem-lhes escolher o local em que querem instalar-se, em busca
da máxima rentabilidade em função das diferentes disciplinas legais, em domínios tão varia-
dos como o fiscal, laboral, segurança social ou ambiental, ou ainda os domínios financeiro ou
econômico. E onde se inclui, também, o direito penal, cujas opções legislativas condicionam o
investimento e são, em contrapartida, condicionadas por ele. (BASOCO, 2015, p. 8) Por sua vez,
o capitalismo financeiro de Sillicon Valley ou de Wall Street, aliado à aceleração da revolução
tecnológica e à proliferação dos cibermundos, converteu a economia real em algo quase obsole-
to e fez surgir uma economia virtual e imaterial, um capitalismo de acionistas e especuladores,
de “proprietários ausentes”, segundo Zygmunt Bauman (1999, p. 18). Desregulação, deslocali-
zação ou financiarização da economia são sinais de ameaça e geram desigualdade, assimetria
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
e enfraquecimento dos Estados. O que se observa équeos Estados nacionais definham na sua
capacidade de produzir riqueza e veem diminuídoo seu poder para gerir os assuntos internos,
3 São sete as áreas de (in)segurança identificadas, em 1994, no Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD): econômica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, comunitária, política.
4 Sobre o fenômeno da globalização, no que se segue: RODRIGUES,Anabela Miranda. “Direito penal económico – é legítimo? É neces-
sário?”, Revista Portuguesa de Ciências Criminais (RPCC), Ano 26, 2016, p. 42.
5 Chama a atenção, exatamente nestes termos (e no que se segue), para a análise de Ulrich Beck (Que és la globalización? Falacias del
globalismo, respuestas a la globalización, Paidós, 1998, p. 15.), Eduardo Demetrio Crespo, “El significado político del derecho penal
económico”, E. Demetrio Crespo y M. Maroto Calatayud, Crisis financeira y derecho penal económico, BdeF-Edisofer, Montevideu,
Madrid, 2014, p.4 e 5.
160
para tomarem as decisões que podem melhorar as condições de vida dos seus cidadãos. E, por
exemplo, quando os mercados “afundam” ou ficam “nervosos” não há nenhum interlocutor que
possa criticar ou tranquilizar. O poder é invisível e só é possível questioná-loatravés da especu-
lação argumentativa ou derrubando o World Trade Center (INNERARITY, 2009 p. 79)
É este o cenário da nova sociedade do risco ou “sociedade invisível” - como a apeli-
da Daniel Innerarity -, em que tudo aponta para que se vai viver num estado de permanente
insegurança.
Criminalidade e medo da criminalidade desempenham aqui um papel fundamental
(RODRIGUES, 2003, p. 39).
A globalização traz consigo a dimensão transfronteiriça dos problemas que desenca-
deia e o aumento da interligação e interdependência entre os Estados. Potenciando a liberdade
de circulação de pessoas e a utilização das tecnologias de comunicação e informação, não ape-
nas facilitou a prática de atividades criminosas como também o surgimento de uma realidade
criminológica especificamente global. Tornou o crime mais eficaz, mais lucrativo e exponen-
cialmente mais danoso.
Estreitamente ligado à globalização estáo nascimento e a expansão de uma criminali-
dade que utiliza as suas lógicas e potencialidades, permitindo que grupos criminosos aprovei-
tem as vantagens que oferece o novo espaço mundial. Por um lado, no mercado gigantesco para
que evoluiu a economia mundial, existe uma procura de bens proibidos que alimenta um mer-
cado de produtos e serviços ilegais. A atividade criminosa adquiriu uma enorme capacidade de
diversificação, organizando-se estrutural e economicamente de forma altamente lucrativa, para
explorar os mais variados domínios. A criminalidade dita econômica é hoje, assim, uma cate-
goria que pode alargar-se e dizer respeito, quer ao branqueamento ou a diferentes modalidades
de corrupção política, de funcionários ou de privados, como ainda aos tráficos internacionais de
droga, de moeda falsa, de armas, de órgãos humanos, de crianças para a adoção internacional,
de pessoas para a prostituição, de migrantes e de trabalhadores.
Entretanto, no espaço sem poderes visíveis em que se tornou o mundo, a definição do
crime e do delinquente diluem-se e tornam difícil a sua identificação enquanto tais. Estas inter-
rogações surgem hoje com frequência: É crime? Quem é o responsável? Não está só em causa
a fronteira, que é muito tênue, entre uma atividade econômica lícita ou ilícita, como será o caso
entre uma fuga, lícita, ao pagamento de impostos e uma fraude fiscal. Os chamados Papeis do
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Panamá ocuparam, há bem pouco tempo, a atualidade informativa e os prime time dos noticiá-
rios de todo o mundo – até que, tão depressa como apareceram, bruscamente desapareceram.
Curiosamente, o que se observou, foi que, em vez de negar a veracidade da informa-
ção, a principal estratégia de defesa, que foi utilizada pelos implicados, foi a de sustentar a
legalidade das contas ou das atuações refletidas nos diversos documentos filtrados. Se aparece
um cadáver, o primeiro impulso será pensar que esta-se perante uma vítima de homicídio. Pelo
contrário, a mera descoberta de uma série de documentos como os que figuram nos Papeis do
Panamá não é suficiente para determinar a existência de indícios de crime com um grau de
161
segurança equivalente. Provavelmente, na maioria dos casos, bastará para fundar um juízo ne-
gativo no plano moral, mas já não no plano legal, onde ficará a mera suspeita.
O fenômeno migratório é outro bom exemplo do que está em causa, em que, entre a ex-
ploração de quem auxilia à imigração ilegal e à própria imigração em si, se confundem, tantas
vezes, realidades diferentes. Também para a atividade terrorista falham as explicações causais
e os conceitos tradicionais de crime e de criminoso não dão respostas bastantes. A primeira
discussão em torno do 11 de setembro foi sobre se se estava perante um ato de guerra ou um ato
de terrorismo. A seguir ao atentado que deu início à nova era do terrorismo, Innerarity (2009, p.
103) preconizou que “assistiríamos a conflitos sem uniformes, com explosões dispersas, méto-
dos de destruição sinistros (…), sem sinais nos mapas como os que sinalizam uma guerra, com
estratégias desenhadas mais para produzir medo do que baixas”. E Martin Creveld viu em tudo
isto algo que iria para além do militar: afirmou que terminara a época da “estabilidade moder-
na, da soberania reconhecível, do monopólio da força monopolizada e da segurança garantida”
(citado por INNERARITY, 2009, p. 104).
- uma técnica de “autorregulação regulada”, como a designou Ulrich Sieber, do lado dos pena-
listas8 -, surge como resposta inovadora – de que a compliance é um exemplo paradigmático
6 Sobre isto, cf. RODRIGUES, Anabela Miranda. “Execução penal socializadora e o novo capitalismo – uma relação (im)possível?”.
Revista Brasileira de Ciências Criminais (RBCC), Ano 23, vol. 112, jan.-fev./2015, p. 20.
7 A referência é ao “regulatory capitalismo”, a expressão com que John Braithwaite cunhou o liberalismo regulador no seu, já hoje um
clássico, livro de 2008 com o mesmo nome, The regulatory capitalism, Oxford. Cf., também, do autor, “The new regulatory state and
the transformation of criminology”, British Journal of Criminolog, vol. 40, 2000, p. 197.
8 ULRICH SIEBER. Programas de compliance no direito penal empresarial: um novo conceito para o controle de criminalidade eco-
nômica. (tradução de Eduardo Saad-Diniz), Direito penal econômico: estudos em Homenagem aos 75 Anos do Professor Klaus Tiede-
mann, William Terra Oliveira, Pedro Ferreira Leite Neto, Tiago Sintra Essado, Eduardo Saad-Diniz (orgs.), São Paulo, Liber Ars, 2013.
162
- na estratégia de controle do comportamento institucional ou empresarial para garantir a apli-
cação das múltiplas disposições que regulam estas atividades, mas pode ter por efeito reduzir o
Estado a funções de controle9. As regras desta nova forma de regulação incluem possibilidades
normativas de pressão, que podem ir desde o direito civil, designadamente o direito das socie-
dades ou o direito do trabalho e passar pelo direito administrativo. Mas, no fim da linha, está o
direito penal.
A utilização da conhecida técnica do pau e da cenoura para assegurar o cumprimento
de mecanismos de controle, que visam antes de tudo ser eficazes, inscreve-se numa lógica mais
geral de despersonalização do controle ou de “governança impessoal global” como a designou
Carlo Bordoni, com “um grau cada vez menor de interferência dos políticos” e “um alto grau de
controlo social” (2016, p.168) Que, no direito penal, não só reduz o delinquente ao “inimigo”-
desdimensionando-o no seu valor absoluto como pessoa -, mas abre ainda o caminho à “socie-
dade robotizada”, de que fala Zaffaroni (2006, p. 56), em que os humanos seriam os robots.
Estados enfraquecidos para garantirem a segurança, comprometem-se cada vez mais na
sua realização, exigindo, “qual gato doméstico, precisão de movimentos por entre cristais”(ZAF-
FARONI, 2006, p. 40) para a garantir. E aí estão deveres cada vez mais estritos e minuciosos
que devem ser cumpridos na atuação quotidiana, para não lesar o Fisco, para não alimentar os
tráficos, para não branquear capitais, para não financiar o terrorismo. O direito, e o direito penal,
faz dos cidadãos cada vez mais garantes do que nunca imaginaria-se que se teria de garantir.
Os programas de compliance, com o “deslizamento para baixo” da responsabilização penal que
geram e a criação de bodes expiatórios; ou as elaboradas teorias de “cegueira deliberada” para
punir generalizadamente comportamentos negligentes, revelam-se como pretextos para legiti-
mar um controle social (que no final da linha é) punitivo. Estar-se-ia no caminho de criminalizar
aqueles que não denunciarem uma mala abandonada num aeroporto ou na estação de metro?
Há, sem dúvida, uma dimensão social que tem de impregnar a ação individual e insti-
tucional das presentes sociedades democráticas. Mas o Estado não pode retirar-se e, ao mesmo
tempo, responsabilizar e transformar a todos em whistleblowers (assopradores de apito).
A partir daqui é apenas um pequeno passo até à penalização da segurança. Perante
um espaço que se abre e se alarga ao tamanho do mundo, nasce, contraditoriamente, uma cul-
tura de controle estatal, fechada e monolítica e a segurança emerge com um novo estatuto, cujo
traço é a redução ao penal. O Estado penal é também o resultado desta reorientação do Estado
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
e da sua nova legitimidade – que não se contesta - para assumir o controle dos novos e grandes
riscos, mas cujo poder e competências não cessam de aumentar em matéria de criminalização
generalizada, polícia, repressão e segurança.
Este processo não pode ser visto unicamente através das lentes dos penalistas.
É, com efeito, um fenômeno muito parecido com o que já está a acontecer através da
9 Sobre a “democracia do controlo”, vide ROSANVALLON, Pierre.La contrademocracia. La politica en la era de la desconfianza.Bue-
nos Aires: Manantial, 2007, p. 49.
163
localização de telefone celular, do uso da internet, dos drones e câmaras nas cidades. Mas, como
alerta Bordini, é “muito mais sofisticado e complexo” (2016, p. 169)
É a “desdemocratização”, de que fala Charles Tilly (citado por BORDINI; BAUMAN,
2016, p. 169), com normas para restringir liberdades e direitos individuais, limitação de direi-
tos políticos ou medidas excepcionais para lidar com acontecimentos excepcionais (terrorismo,
catástrofes naturais). Ou, numa perspetiva mais abrangente, é a “pós-democracia”, que Colin
Crouch., (citado por BORDINI; BAUMAN, 2016, p. 176) conceituou como “crise do igualita-
rismo e de trivialização do processo democrático”, e cujo exemplo clássico, que aponta Bordini
(2016, p. 176), é a insegurança no emprego de contratos a termo, cuja introdução se normaliza,
como “prática necessária para satisfazer a exigência de flexibilização da indústria”.
Como afirmou Innerarity (2009, p. 60) a propósito do terrorismo e ao procurar explicar
o fenômeno, a sua “verdadeira gravidade” reside nas “injustiças e desigualdades” do mundo
atual, disfarçadas ou “protegidas” na sua invisibilidade“por uma aparência correta”, e nas novas
proibições, na vigilância, na insegurança e na ambiguidade em relação aos direitos garantidos.
10 Sobre o que se segue, cf. RODRIGUES,Anabela Miranda. L’éxécution de la peine privative de liberte. Problémes de politiquecrimi-
nelle, L’éxécution des sanctions privatives de liberte et les impératifs de la sécurité/The implementation of prison sentences and aspects
of security (sous la direction/under the direction of Peter Take t/and ManonJendly), Actes du Colloque de la FIPP, Budapest; Hongrie
16-19 février 2006/Proceedings of the Colloquium of the IPPF, Budapest, Hungary, 16-19 February 2006, p.51; id, «Novo olharsobre a
questãopunitiva», Educar o outro. As questões do género, dos direitos humanos e da educação nas prisões portuguesas, Humana Glo-
bal. Publicações Humanas, 2007, p. 117. Superpopulação carcerária. Controlo da execução e alternativas.Revista Eletrónica de Direito
Penal, AIDP – GB, Ano1, Vol.I, n.1, jun. 2013.
164
contraposição, à “nova” penologia passou a interessar a categoria ou o grupo de risco em que
o indivíduo se insere, para o neutralizar, vigiar e controlar. A máxima de Casablanca, “prenda
os indivíduos do costume”, foi substituída pela ordem de “prender os grupos do costume”. É a
entronização da segurança.
Já quanto às penas alternativas à prisão, verifica-se uma renovada manifestação de
interesse quanto a elas por parte dos decisores políticos e assiste-se à criação de um crescente
e complexo mosaico de sanções diferentes da privação de liberdade intramuros. Mas, vistas
meramente como managerialistic tecnics que se destinam a limitar a liberdade de movimentos,
reduzem os seus efeitos à intensificação do controle sobre o indivíduo, mais uma vez sem nada
mudar quanto ao delinquente ou na sociedade. Para além disso, uma análise do movimento
dos delinquentes ao longo de um certo período de tempo assinala uma corrente contínua de
indivíduos entre a comunidade para cumprimento de sanções e a prisão, ligada a uma menor
tolerância que, não por acaso, se verifica quanto à violação das condições que possibilitam o
cumprimento das sanções na comunidade. O aspeto agora em causa é o da transincarceração,
resultante do sistema autopoiético criado pela proliferação de sanções que se reforçam mutua-
mente, e que permite o que já se chamou a “reciclagem” do indivíduo, favorecendo a sua circu-
lação por diferentes instâncias de controle.
Desta forma, é, ainda, e mais uma vez, a utilização acrescida da prisão que está em
causa, agora potenciada por uma expansão generalizada do sistema punitivo que favorece o
encarceramento.
A questão da segurança e do lugar que ocupa no Estado em mudança da atualidade colo-
ca-se ainda sob o pano de fundo da influência que sobre ela tem a crise econômica que atravessa a
década que estars-se a viver, como consequência dos abalos financeiros desencadeados em 2008.
Esta situação foi denunciada, ao nível europeu, pelo European Prison Observatory,
em 201311. A crise econêmica é apontada como diretamente responsável pela degradação das
condições de detenção, em clara violação dos direitos humanos dos presos e das Regras Peniten-
ciárias Europeias, que enunciam como princípio fundamental que “as condições de reclusão que
violem os direitos humanos não podem ser justificadas com invocação da falta de recursos”.12
Com efeito, destaca-se que a crise econômica, em muitos Estados europeus, teve um
impacto direto no orçamento anual destinado às administrações prisionais, que diminuiu. No
discurso político, o contexto de “contenção financeira” é a razão de “vetar qualquer proposta
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
para melhorar as condições de detenção”. Desta forma, denuncia-se como piorou a qualida-
de da vida quotidiana nas prisões, designadamente, ao nível dos serviços prestados e pelo
que diz respeito à insuficiência de técnicos e trabalhadores sociais (MACULAN; RONCO;
EDIZIONI, 2013, p. 53, 54). Já em Estados onde os orçamentos das administrações prisionais
11 Cf. RelatórioPrison in Europe: overview and trends. Detention conditions in the European Union, apresentado em Roma, em setem-
bro de 2013, da responsabilidade de Alessandro Maculan, Daniela Ronco e Francesca Vianello.
12 Cf. Recomendação Rec (2006)2 do Comité de Ministros aos Estados Membros sobre as Regras Penitenciárias Europeias (adotada
pelo Comité de Ministros na 952ª reunião de Delegados dos Ministros, de 11 de Janeiro de 2006), Anexo à recomendação REC (2006)
2, Parte I, Princípios Fundamentais, 4.
165
não diminuíram ou foram mesmo aumentados, a maior parte dos fundos adicionais foram
destinados à construção de novas prisões, alimentando o business penitenciário que foi-se re-
ferido em vez de serem dirigidos a promover iniciativas de socialização (MACULAN; RON-
CO; EDIZIONI, 2013, p.53).
A “insegurança econômica” das pessoas, elevada a níveis sem precedentes nos tempos
mais recentes de bem-estar, acrescida da atitude de uma comunicação social que desfoca a atenção
do público do alvo das elites econômicas e políticas, são também apontadas como contribuindo
para um tratamento mais “punitivo” dos presos. (MACULAN; RONCO; EDIZIONI, 2013, p. 55).
Por sobre tudo isto, e também como consequência da crise econômica, muitos gover-
nos europeus sentiram a necessidade de reduzir as taxas de população prisional: construir cada
vez mais prisões para uma população prisional que não cessa de aumentar, é caro para o erário
público, mesmo recorrendo a parcerias privadas. Verificou-se, então, tal como já se referiu, a
expansão da utilização de penas “ditas” alternativas à prisão. O resultado pretendido pode ob-
ter-se a curto prazo, mas o Estado encobre a exasperação punitiva que significa a sua utilização
como penas que visam o puro controle generalizado da vida dos cidadãos e desinteressa-se do
efeito expansivo do sistema carcerário a longo prazo, pelo qual, com forte probabilidade, não
terá de responder.
Foi feita uma proposta de percurso, de que já se cumpriu uma parte, mas encontra-se
longe de um conjunto articulado de respostas de teor político-criminal. Ambiciona-se recolher
à Sombra Maiúscula de um sociólogo como Zygmunt Bauman que, a propósito da nova ordem
global, confessou não estar preparado para “visualizar” e “muito menos, desenhar uma plan-
ta” da “nova ordem global”, afirmando que “seria completamente irresponsável se o fizesse
enquanto subimos, como estamos a fazer agora, uma encosta íngreme”, sem poder “ver o que
há do outro lado do cume da montanha”. Concluindo que: “O máximo que podemos ousar é
pensar nos obstáculos para o topo”, “nas coisas que temos de transpor ou remover do caminho”
(BORDINI; BAUMAN, 2016, p. 187).
A questão que conduz diretamente ao âmago do problema, é esta: exigem as condições
da nova realidade criminológica, determinada pelas transformações assinaladas, uma atitude
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
radical de abolição do direito penal e, com ele, do sistema punitivo? Entende-se que a melhor
resposta é aquela que segue o eco de Radbruch: não quero algo diferente do direito penal, quero
um direito penal melhor. E assim, quem sabe, talvez ele até deixe um dia de existir e desabem
os poderes formais de controlo.
No âmbito punitivo, entende-se que o compromisso do jurista deve ser com uma refle-
xão crítica sobre a trama do sistema, que se nutra do pensamento criminológico e sociológico.
Estes saberes, com os seus movimentos e correntes e as ligações que estabelecem com o sistema
penal, podem despertar alertas criativos. Partilha-se, neste trabalho, inteiramente da posição
166
de Alvino Augusto de Sá (2014) em relação aos penalistas, e inspiro-se nela para defender que
estes devem não só conhecer as reflexões oriundas daquelas áreas sobre o “ato de punir, as
instâncias punitivas e a conduta que o sistema punitivo costumeiramente seleciona e pune”,
como devem também “apropriar-se”das suas reflexões e sobretudo “angustiar-se sadiamente”
com elas. Se caírem as pontes desta reflexão, crítica e atualizada, sobre o controle e a punição,
haverá a continuação, mais e mais, da assistência ao aumento da criminalidade; e, mais e mais,
a admitir a barbárie, com o regresso da tortura, das prisões em terra de ninguém, da prisão
perpétua ou da pena de morte.
Uma coisa é aceitar passivamente que a punição perpetua a injustiça e a desigualdade.
Outra, diferente, é, nas palavras do criminólogo Álvaro Pires,13 “observar quais são as ideias
que o sistema penal moderno valoriza e que constituem um obstáculo cognitivo da sua própria
evolução. Em outras palavras, quais são as ideias que ele considera ainda boas, mas que, na
verdade, o impedem de se transformar qualitativamente e de se adaptar para o novo milénio”.
(2012, p. da internet)
A reflexão de que não são satisfatórios os resultados da política securitária e de contro-
le, com o aumento da severidade das penas para responder aos problemas da criminalidade na
sociedade atual, é um bom e singelo exemplo da necessidade de “ressignificação” dos fatos, das
condutas e das normas de que fala Alvino de Sá para o direito penal. (SÁ, 2014, p 10)
A “ressignificação” da intervenção socializadora na execução da pena de prisão e das
penas alternativas será, porventura, um dos grandes desafios do direito penal da atualidade,
acompanhando a reinterpretação dos direitos sociais que está a marcar as transformações do
Estado social. A questão não se reflete tanto na legitimação, quanto na compreensão do conteú-
do do direito à socialização.
Há que reconhecer que este direito se inscreve numa redefinição do Estado Social
que enfrenta hoje uma espécie de “revolução sociológica”, no sentido de que “os seus sujeitos
mudaram” (ROSANVALLON, 1995, p. 189). Deixaram de ser grupos ou classes relativamente
homogêneas. Regressam os “indivíduos” - regressa a pessoa - que se encontram em situações
específicas.O que está em causa é que, por variadas razões – entre elas, a desregulação esta-
tal-econômica -, é hoje muito difícil “decifrar a sociedade”, que não é mais uma sociedade de
grupos, organizada hierarquicamente e de movimentos relativamente lentos.
O que se diz – é Rosanvallon que o afirma - é que a redefinição do Estado Social está
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
a passar por uma “evolução cognitiva” e que as sua formas de intervenção se reconformam,
abrindo-se ao “miolo social” (ROSANVALLON, 1995, p. 202, 201). O que isto significa é um
novo enfoque (do) social (ROSANVALLON 1995, p. 194). Assim, a propósito dos fenômenos de
exclusão - de que a delinquência pode ser um deles –, o que se observa é que não faz qualquer
sentido tentar apreender os excluídos através de uma “classificação categorial”. O que importa
13 Os desafios do Direito no século XXI. Entrevista especial com Álvaro Pires, Instituto Humanitas UNISINOS, ADITAL, 03 de abril
de 2012.
167
é antes tomar em conta os “processos de exclusão” e “analisar a natureza das ‘trajetórias’ que
conduzem às situações de exclusão, na medida em que estas são resultantes de um processo
específico e particular”14.
A par desta redefinição dos “sujeitos da ação social”, o Estado converte-se num “Es-
tado Serviço”(ROSANVALLON 1995, p. 210): o objetivo do Estado (social) é agora oferecer a
cada um os meios específicos – “propor ajudas diferenciadas” - para “modificar o curso de uma
vida”, “superar uma rutura” ou “prever um problema”.
A partir daqui, assiste-se a uma transformação global da relação dos indivíduos com
as instituições sociais, no sentido da sua cada vez maior individualização, a que a justiça penal
não é alheia.O que está em causa, como se observa, é uma reinterpretação dos direitos sociais,
de acordo com uma perspetiva contratualista, que articula direitos e deveres.
Na execução da prisão recupera-se o conceito de socialização que lhe aponta o sentido
de prevenção da reincidência, isto é, que apela ao dever, por parte do Estado, de oferecer ao
preso condições que lhe permitam voltar a viver em sociedade sem praticar crimes. Acentua-se,
assim, que será muito difícil recusar que é tarefa do Estado responder à situação de especial
necessidade que traduz o estado de reclusão.
Uma socialização renovada funda-se no reconhecimento da necessidade de oferecer ao
preso condições de aderir à intervenção – a palavra-chave é aqui motivação - e na importância
e vantagens da utilização da noção de “contrato” para se obter a sua participação voluntária nos
programas de tratamento.
Na ótica contratualista, devem alargar-se os programas orientados para problemáticas
específicas do preso. A adesão e a participação – em termos claros, o consentimento do pre-
so – excluirão qualquer hipótese de intervenção coativa. Trata-se de sublinhar a necessidade
de colocar serviços à sua disponibilidade. São várias as hipóteses: prestar ajudas aos reclusos
desfavorecidos, promovendo a igualdade real; restabelecer a saúde física e mental e diminuir
as taxas de suicídio; dotá-los de competências sociais tais como, criar o seu próprio trabalho ou
arranjar emprego.
Não pode-se aqui, alongar-se na análise detalhada do que nesta evolução está em cau-
sa.15 Apenas retenhe-se dela, com Rosanvallon,16(ROSANVALLON 1995, p. 172, 173 e 174)
que, embora a pessoa possa estar numa situação de carência – como quem é punido está -, a sua
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
14 Neste contexto, explicita Rosanvallon (1995, p. 195) que “os excluídos formam mesmo uma ‘não classe’,
no sentido de que constituem a sombra projetada das disfuncionalidades da sociedade, resultam de uma (…)
dessocialização no sentido forte do termo (…). Os fenómenos de exclusão são manifestações da diferença e da
não agregação social (…). Neste sentido, a exclusão não é um novo problema social, é uma outra maneira de
descrever as dificuldades para estabelecer solidariedades (…). Falar de inserção é então tratar das diferentes
formas de agregação social existentes ou por promover”.
15 Sobre a reinterpretação do conceito de socialização, aplicado aos presos, no sentido de “evitar a dessocialização” e de “promover a
não dessocialização”, RODRIGUES, Anabela Miranda.Novo olhar sobre a questão penitenciária.2ª edição, Coimbra Editora, 2002,
p.47; id, RBCC, cit, p.29s
16 O Autor fala ainda, neste contexto, da via de um “individualismo contratual”, em que “o respeito essencial pelo indivíduo vai de par
com a reconstrução do vínculo social” (1995, p. 180).
168
relação com o Estado traduz “uma relação de reciprocidade”, uma “obrigação de meios da parte
da sociedade” em relação a um “beneficiário” considerado como “ator do seu próprio futuro”.
Visto como “sujeito da ação social”, é considerado como uma pessoa “autónoma, responsável,
capaz de assumir compromissos e honrá-los”. O contrato de inserção permite voltar a ligar o
indivíduo ao princípio gerador da sociedade, o contrato social. A obrigação que o acompanha
não é uma forma de restrição da liberdade, é antes um momento de construção do social.
Na execução da prisão recupera-se o conceito de socialização que lhe aponta o sentido
de prevenção da reincidência, isto é, que apela ao dever, por parte do Estado, de oferecer ao
preso condições que lhe permitam voltar a viver em sociedade sem praticar crimes.
Por aqui passamposições como as de Salomão Shecaira (2014, p. 54) que entende que
o criminoso “tem vontade própria”, uma “assombrosa capacidade de transcender, de superar o
legado que recebeu e construir o seu próprio futuro”, e uma “capacidade ímpar de conservar
a sua própria opinião e superar-se, transformando e transformando-se”. Ou, como tem-se de-
fendido, que a ideia de socialização tem de voltar a ocupar lugar no sistema punitivo, fundada
numa cultura de participação e consenso e de revalorização dos direitos humanos em que se
deve buscar, cada vez mais, a relegitimação do penal, assim se promovendo a responsabilidade
e a autonomia da pessoa, considerando-a na sua dignidade única.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
BECK, Ulrich; WILLMS, Johannes. Conversations with Ulrich Beck. Cambridge: Polity
Press, 2003.
169
BORDINI, Carlo; BAUMAN, Zigmumt.Estado de crise. Relógio D´Água, 2016.
fev./2015, p.17-32.
170
ROSANVALLON, Pierre.La nueva cuestión social. Repensar el Estado providencia,
Buenos Aires, Editiones Manatial, 1995.
ABSTRACT
This study analyzes the social control and punishment in the risk and
globalized society, in which is developed a highly harmful and gener-
ates high feelings of insecurity new criminality. The weakening of state
power linked to question the social model, under the economic crisis
unleashed in 2008 scenario, fueled a culture of and the penalization of
security. The Penal State and the security ideology lead to increasethe
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
171
RESPONSABILIDADE CIVIL DO PRODUTOR E NEXO DE CAUSALIDADE:
BREVES CONSIDERAÇÕES
RESUMO
Tendo em conta que a jurisprudência portuguesa tem exigido, no âm-
bito da responsabilidade do produtor, a prova quer do defeito, quer da
causalidade entre aquele e o dano gerado e que o Tribunal de Justiça da
União Europeia, num caso concreto sobre o qual foi chamado a pronun-
ciar-se, embora tenha afastado a exigência de uma prova científica e ir-
refutável do nexo causal, recusa igualmente a comprovação do requisito
com apelo a uma presunção que leve a demonstrar automaticamente o
nexo de causalidade, propomo-nos, neste artigo, confrontar o tradicio-
nal entendimento acerca da causalidade com uma perspetiva imputa-
cional. No final, estaremos em condições de perceber em que medida a
exigência da jurisprudência portuguesa e europeia faz ou não sentido.
Palavras-chave: Responsabilidade do produtor. Jurisprudência. Nexo
de causalidade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 INTRODUÇÃO
1 Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Coimbra.
Investigadora do Instituto Jurídico da Faculdade de Direito de Coimbra.
2 Cf., com amplo desenvolvimento, escreve João Calvão da Silva emResponsabilidade civil do produtor.
172
complexidade com que os problemas surgem na realidade não permitiu que só pela objetivação
da responsabilidade se eliminassem todas as dificuldades que a esse nível se podem enfrentar.
Na verdade, a previsão da responsabilidade do produtor garantiu que se ultrapassasse o estrito
domínio contratual, viabilizando que o consumidor/adquirente de um bem que, por causa de um
defeito que ele contivesse, sofresse danos demandasse o fabricante e não apenas o fornecedor
direto3, ao mesmo tempo que permitiu afastar a necessidade de prova do desvalor objetivo de
cuidado, sempre difícil de apurar pela intermediação dos diversos agentes do circuito produtivo.
Mas nem por isso arredou a exigência quer da prova do defeito, quer da prova da causalidade
entre aquele e o dano gerado.
A jurisprudência portuguesa tem sido perentória na afirmação dessa exigência. O Su-
premo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 25 de Março de 20104, recordou que, numa ação de
responsabilidade do produtor, “o lesado terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos:
danos, defeitos, nexo causal entre estes e aqueles”, não obstante admitir que, porque a prova da
causalidade se pode revelar extremamente árdua, “as regras da experiência da vida, o id quod
plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da
evidência, uma espécie de causalidade” (CORDEIRO, 2010). Também no Acórdão de 20 de No-
vembro de 20075, a Relação do Porto, a propósito de um caso em que A, produtora de vinhos,
adquiriu postes de suporte de vinha, que acabaram por se degradar e rachar, caindo e provocan-
do danos decorrentes da necessidade de remoção dos mesmos, considerou que o “lesado não
tem de provar a culpa e a ilicitude, bastando provar a existência do defeito, do dano e do nexo de
causalidade entre um e outro”, razão pela qual se deveria conceder a indemnização solicitada,
por aplicação do regime da responsabilidade do produtor6. E, no Acórdão de 13 de Setembro de
20077, a Relação de Évora voltou a repetir a disciplina, negando o ressarcimento, porque não foi
demonstrada a existência do defeito, nem o nexo causal entre o defeito do automóvel que tinha
sido adquirido e o acidente que com ele foi sofrido.
A lição resulta, aliás, da disciplina legal, fruto da transposição da diretiva comunitária
sobre responsabilidade decorrente dos produtos defeituosos, segundo a qual cabe ao lesado a
prova do dano, do defeito e do nexo causal.
Não se estranha, por isso, que sejam diversas as ações que improcedem a este nível e
que, em virtude disso, se procurem forjar expedientes de facilitação do ónus probandi. Menezes
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
3 Sobre a questão de saber se, no domínio contratual, haveria ou não possibilidade de se obter o ressarcimento junto do produtor do bem,
cf. Luís Menezes Leitão, “A responsabilidade civil do produtor pelos danos causados ao consumidor”, Panóptica, 6/2, 2011, 16 s. (www.
panoptica.org), considerando a possibilidade de se aplicar o artigo 800º CC, vendo-se o produtor como um auxiliar do vendedor, o que
permitiria tornar o último responsável perante o consumidor; ou a possibilidade de se configurar a existência de um contrato entre o
produtor e o consumidor.
4 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2010, Processo nº 5521/03.OTBALM.S1, www.dgsi.pt
5 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Novembro de 2007, Processo nº0725464, www.dgsi.pt
6 Não se entende a decisão do Tribunal da Relação do Porto, por dois motivos. Em primeiro lugar, os postes de suporte da vinha não se
destinavam a um uso não profissional; em segundo lugar, os danos que se verificaram não resultam de uma lesão num objeto diferente
daquele que é reputado de defeituoso. A decisão, aliás, contraria a decisão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Junho de 2004, que
distingue claramente, a propósito de um carro defeituoso, a responsabilidade do produtor e a responsabilidade do vendedor por falta de
conformidade ou qualidade das coisas vendidas
7 Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Setembro de 2007 (Processo nº1139/07-2), www.dgsi.pt
173
Cordeiro (2010) aduz a este respeito que o ponto delicado da prova do vício e da causalidade “foi
suplantado com a ideia de prova da primeira aparência (alemã) ou da res ipsa loquitur (common
law): as coisas falam por si; se uma roda se desintegra, é porque houve negligência no seu fabri-
co, ainda que não seja possível provar como tal ocorreu”. Embora o autor se refira a um período
anterior à consagração definitiva da responsabilidade objetiva do produtor, não é menos seguro
afirmar que desses mesmos mecanismos se socorre hoje a jurisprudência e a doutrina para fazer
face aos problemas que tem de enfrentar.
A este propósito e recentemente, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Acórdão
no processo C-621/158, foi chamado a pronunciar-se sobre a questão de saber se, numa situação
em que não há um consenso científico, o juiz se pode ou não basear, a despeito da exigência de
prova do dano, do defeito e do nexo causal pelo lesado, em indícios graves, precisos e concor-
dantes para estabelecer a ligação que se exige entre um determinado produto e o resultado lesivo
advindo. Em causa estava a administração de uma vacina, entre finais de 1998 e meados de 1999,
contra a hepatite B, produzida pela Sanofi Pasteur. Em Agosto de 1999, o senhor a quem tinha
sido administrada começou a apresentar diversas perturbações, que levaram ao diagnóstico de
esclerose múltipla, acabando por falecer em 2011. No quadro da ação proposta contra a Sanofi
para obter uma indemnização, a Cour d’Appel de Paris considerou que não estaria provado o
nexo de causalidade, por não haver consenso científico entre a vacinação contra a hepatite B e
o aparecimento de esclerose múltipla. Chamado a pronunciar-se, o Tribunal de Justiça da União
Europeia, fazendo referência ao excelente estado de saúde anterior do lesado, à inexistência de
antecedentes familiares e à relação temporal entre a vacinação e o aparecimento da doença, veio
considerar que é compatível com a diretiva comunitária na matéria um regime probatório que,
na falta de provas certas e irrefutáveis, permita ao juiz concluir pela existência de um defeito e
do exigível nexo de causalidade. Basta que haja um conjunto de indícios que levem a considerar,
com um grau suficientemente elevado de probabilidade, que essa conclusão corresponde à reali-
dade. Tais indícios devem ser suficientemente graves e precisos, de molde a permitirem extrair
as conclusões que se procuram. Mais considerou o Tribunal de Justiça da União Europeia que
o legislador nacional não pode lançar mão de uma prova por presunção que leve a demonstrar
automaticamente o nexo causal, quando estejam reunidos certos indícios predeterminados.
Em face do exposto, suscitam-se diversas dúvidas. Com efeito, o Tribunal de Justiça da
União Europeia orienta-se pela ideia de (elevado gau de) probabilidade, não indo ao ponto de im-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
por a prova certa e irrefutável, ao mesmo tempo que recusa a possibilidade de comprovação do re-
quisito com apelo a uma presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo de causalidade.
Portanto, haverá que, em primeiro lugar, perceber qual a probabilidade relevante para este efeito.
Tal não será, contudo, bastante: de facto, orientando-se a jurisprudência pelo critério
da causalidade adequada, o centro nevrálgico da indagação é exatamente a probabilidade de
que se fala. Simplesmente, a leitura atenta do acórdão em questão parece apontar para a ideia
174
de que, ao invés de se recorrer ao juízo probabilístico próprio da adequação, se está a alijar o
ónus probatório ao nível fáctico. Nessa medida, questiona-se se, afinal, não entra em cena um
primeiro patamar de indagação causal, a identificar-se com uma noção de condicionalidade.
O dado importa uma terceira consideração, talvez a mais relevante: saber, então, do
que se fala quando se fala de causalidade, e, consequentemente, quando se lida com o problema
da prova do nexo que se procura erigir.
175
Além disso, o artigo 8º estabelece um limite aos danos ressarcíveis, considerando que
só o são os que resultem de morte ou lesão pessoal e os que ocorram em coisa diversa do pro-
duto defeituoso, desde que seja normalmente destinado ao uso ou consumo privado e o lesado
lhe tenha dado principalmente este destino. E o artigo 9º consagra que os danos causados em
coisas só são indemnizáveis na medida em que excedam o valor de 500 euros.
Fundamental passa a ser, como se compreenderá, o estabelecimento de um nexo de
ligação entre o defeito do produto e os danos que sobrevenham. Embora o diploma não se refira
especificamente ao requisito, ele resulta com naturalidade quer da finalidade da responsabili-
dade civil do produtor (ressarcitória), quer do fundamento último que para ela encontremos: o
produtor não deve ser onerado com uma hiper-responsabilidade, mas tão só deve ser chamado
a responder pelos danos que tenham sido gerados pelo seu produto.
O busílis da questão está em saber o que entender por este nexo de causalidade. Tradi-
cionalmente, a doutrina maioritária tem deposto no sentido de que ele se descobre com base na
questão “é normal e provável (adequado) que de um comportamento do tipo do do lesante – no
caso, a colocação de um produto com aquele tipo de defeito em circulação – resulte um dano
daquele género?”. Tal indagação surgiria na sequência de uma prévia inquirição condicional,
por meio da qual se procuravam afastar todos os comportamentos irrelevantes para o surgimen-
to do dano – haveria de determinar se o dano teria surgido se não tivesse existido aquele defeito.
Porque a realidade não se nos oferece em termos determinísticos e continuamente li-
neares, a resposta que se pudesse obter para a questão da condicionalidade acabaria por ser ofe-
recida, as mais das vezes, em termos probabilísticos. A aproximação entre os dois critérios de
estabelecimento da causalidade passa, portanto, a ser notória, sem que, contudo, se confunda a
sua intencionalidade9. Se a condicionalidade surge a depor no sentido de afastar comportamen-
tos irrelevantes, a adequação pretenderia introduzir uma solução normativizada para o proble-
ma. Simplesmente, dependendo da perspetiva do observador que se assuma, assim chegaremos
ou a uma formulação probabilística-estatística que não só quadra mal com a intencionalidade
predicativa da juridicidade, como não nos permite avançar em relação ao resultado que se ob-
tém com a conditio; ou a uma formulação que, porque baseada nos dados do conhecimento do
9 Veja-se, a este propósito, Wester-Ouisse, “Définition de la causalité dans les projets européens sur le droit de la responsabilité”, www.
grerca.univ-rennes1.fr/digitalAssets/267/267962_vwesterouisse.pdf, 6, considerando que, no articulado em análise, a conditio sine qua
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
non dá, em muitas situações, lugar à probabilidade, sendo consideradas pertinentes todas as causas que, de maneira provável, causaram
ou contribuíram para causar o dano. No fundo, haveria uma aproximação à doutrina da causalidade adequada em casos como aqueles
em que a) há múltiplas causas que isoladamente terão causado o dano; b) há múltiplas causas que, em conjunto, causaram o dano; c) há
múltiplas putativas causas, não se sabendo qual delas causou efetivamente o dano; d) há muitas vítimas de uma atividade, a ser tratadas
igualmente em termos de causa provável; e) há a contribuição causal da vítima.
Para uma aproximação entre a doutrina da conditio sine qua non e da causalidade adequada, cf. Florence G’Sell-M acrez, Recherches sur
la notion de causalité, Université Paris I – Pantheon – Sorbonne, 2005, 163 e 171. Afirma a autora francesa que a teoria da causalidade
adequada implica, também, um raciocínio contrafactual na medida em que leva a interrogar sobre o aumento da probabilidade do dano
gerado por um antecedente. Ao mesmo tempo, explica que, “mesmo centrando-nos no concreto e individual, temos de recorrer, pela
referência ao curso normal das coisas, às regras da experiência, às generalizações causais que pensávamos reservadas para a teoria da
causalidade adequada. De facto, a lógica probabilística da teoria da adequação ressurge quando o carácter sine qua non da condição
examinada não se impõe pela evidência”, ou seja, “o raciocínio contrafactual supõe que se represente aquilo que teria sido o curso
provável dos eventos na ausência do fator considerado”, pelo que “a resposta à questão da conditio sine qua non não é dada senão em
termos de probabilidade”.
Sobre o ponto, cf., também, Mafalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação. Contributo para a compreensão da
natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, Princípia, 2017, 98 s.
176
agente concreto, nos aproxima da culpa, não permitindo dar uma resposta consistente para a
indagação causal.
Em tudo isto, o que se deteta é uma predominância da probabilidade, a cumprir di-
versos papéis. Por um lado, ela é critério do juízo causal, por outro lado é índice probatório de
determinação do iter conducente ao dano.
Percebe-se, portanto, que não existe um grande desvio entre as soluções a que chegamos
no seio do nosso ordenamento jurídico e aquelas que são veiculadas pelo Tribunal de Justiça da
União Europeia. A referência ao elevado grau de probabilidade parece, claramente, apontar no
sentido da determinação da concatenação ao nível factual. E, se ela nos desonera em certa medi-
da, por não nos impor a prova certa e irrefutável, nem por isso afasta todos os nossos problemas.
Em primeiro lugar, haveremos de questionar qual o grau de probabilidade de que se
cura. Exigir-se-á, apenas, uma probabilidade de 50% ou a elevada probabilidade implicará a
presença de índices estatísticos superiores? Acresce que o facto de existir, por exemplo, uma
probabilidade de 99% não garante que o facto efetivamente ocorrido não se situe no intervalo
percentual remanescente, pelo que não se conseguirá determinar com certeza qual a causa na-
tural do dano. Por outro lado, o critério probabilístico estatístico parece claudicar sempre que
em causa esteja um comportamento omissivo ou qualquer outro que escape a uma lógica natu-
ralística de regularidade causal. Ademais, o resultado que se obtém para a indagação variará
consoante os termos de descrição dos eventos, mais ou menos pormenorizados, correndo-se o
risco de termos de lidar com o que a doutrina designa, a propósito da causalidade adequada,
por fórmula vazia. In fine, enfrentar-se-ão problemas sempre que a probabilidade estatística nos
indicar mais do que um eventual efeito causador do dano, sem que nos ofereça, concomitante-
mente, a possibilidade de discernir com certeza sobre qual foi a verdadeira causa. No fundo,
entramos aí no cerne do que vem conhecido por causalidade múltipla, com as suas nuances
próprias, mais ou menos dilemáticas, que se agigantam nas hipóteses de causalidade alternativa
incerta e justificaram, inclusivamente, no seio da responsabilidade do produtor, a teorização de
critérios como o da market share liability10.
10 Sobre a teoria e a sua inviabilidade no quadro do ordenamento jurídico português, quer porque, numa perspetiva, afronta a intenciona-
lidade predicativa da juridicidade, quer porque, mesmo que surja normativizada de acordo com um ideal de justiça, quadra mal com os
dados intrassistemáticos, cf. Mafalda Miranda Barbosa, “Responsabilidade por danos em massa : reflexões em torno da market-share
liability”, Estudos de Direito do Consumidor, nº10, 2016.
177
que se conclua que este não se teria verificado sem aquela. Fortemente inspirada na doutrina
filosófica de Stuart Mill11, percebe-se que a mesma tenha colhido grande entusiasmo no século
XIX, fruto do clima cientista e positivista que naquela época se viveu12-13. Para o autor, a causa
é tida como a soma de todas as condições que conjuntamente se mostrem suficientes para a
produção de um evento de tal modo que, uma vez verificadas, invariavelmente o resultado será
aquele. Importada para o mundo jurídico pelas mãos de Von Buri14, a recondução da causa à
simples condição baseia-se, sobretudo, na impossibilidade científica de se eleger, de entre as
várias circunstâncias potenciadoras do resultado, aquela que efetivamente possa ser vista como
determinante15. A intervenção da condição seria necessária para a produção do dano e nessa
medida suficiente para a imputação da responsabilidade 16. A despeito da aparente simplicidade
da teoria, a granjear adeptos pela desoneração a que conduz o julgador, a verdade é que não só
aquela é meramente aparente – conduzindo, na prática, ao artificialismo do critério mobilizado
em concreto –, como se improcedente na prática judicativa17.
11 Para Stuart Mill, a causa real é o grupo de antecedentes que determinaram o fenómeno e sem o qual ele não teria lugar, pelo que “nin-
guém tem o direito, filosoficamente falando, de dar o nome de causa a um deles” (Sistema de lógica dedutiva e indutiva, apud Pereira
Coelho, “Onexo de causalidade na responsabilidade civil”, Boletim da Faculdade de Direito, suplemento IX, 1951, 181. Cf., ainda, A
system of logic: raciocinative and inductive, John W. Parker, London, 1843, 392 s.)
12 Sobre a justificação para esta equiparação entre a causa e qualquer condição sem a qual o evento não se teria verificado, cf. Pereira
Coelho, “Onexo de causalidade na responsabilidade civil”, Boletim da Faculdade de Direito, suplemento IX, 1951, 183. Veja-se, ainda,
Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité en droit de la responsabilité civile, Dalloz, 2010, 31 s., expondo a transição entre
o mundo da juridicidade da doutrina filosófica de Mill através da ideia de sinédoque.
13 Neste sentido, cf. A ntunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10º edição, Almedina, Coimbra, 2003, 883. Note-se que o autor,
apesar de repudiar a teoria, salienta que a mesma configura já uma forma de delimitação dos danos a ressarcir, designadamente no
cotejo com o critério puramente empírico do post hoc ergo propter hoc. Limita a obrigação de indemnizar aos danos que se inserem no
processo de causalidade em que interfere aquele facto e, dentro desses, àqueles que não se verificariam sem tal facto. No mesmo sentido,
cf. R ibeiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 497. Veja-se, também, R ené Demogue, Traité des obligations en générale, I, Source des
obligations, t. IV, Libraire A. Rousseau, Paris, 1923, 25.
14 Aderindo à doutrina, cf., ainda, Demogue, Traité des obligations en générale, I, Source des obligations, Libraire A. Rousseau, Paris,
1923, t. IV, 24.
15 Para outras considerações, veja-se A ntunes Varela, Das Obrigações, 916; Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos admi-
nistradores das sociedades comerciais, Lex, Lisboa, 1997, 532 s.; M. Franzoni, “Dei fatti illeciti. Art. 2043-2059”, in F. Galgano (ed.),
Commentario del codice civile Scialoja-Branca, 1993, 95 s.; Trimarchi, Causalità e danno, 194 s.; G. A lpa, M. Bessone, V. Zeno -Zenco -
vich, “I fatti illeciti”, Tratatto di diritto civile, 14, Obligazioni e Contratti, VI (a cura di Pietro R escigno), 2ª edição, UTET, Torino, 1995,
63 s.; Fritz H aueisen, “Die Theorie der wesentlichen Bedingund – ein wichtige Ursachenlehre”, Juristenzeitung, 16, Heft 1, 1961, 9 s.
16 Qualquer condição seria vista como causa e nessa medida todas as condições seriam equivalentes. Não há, portanto, uma importação
literal do pensamento de Mill para o mundo jurídico, já que não é a soma das condições que determinaria a relevância da causa.
É, aliás, neste ponto que se localiza a crítica de Birkmeyer a Von Buri. É que, partindo da ideia de que o evento só ocorre pelo concurso
de todas as condições predispostas para o efeito, Von Buri, sustentando a impossibilidade de alguma se destacar das demais, defende
a equivalência entre todas, recusando a ideia de causa eficiente ínsita à teoriaprotagonizada pelo primeiro autor. Acontece que este,
exatamente porque todas se mostram necessárias para a produção do dano, deduz daqui o corolário da insuficiência dela, dizendo que,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
consentaneamente com o ponto de partida do autor, se deveria sustentar como causa a soma de todas as condições. Afasta, desta forma,
a crítica que Von Buri lhe dirige relativamente à impossibilidade de eleição de uma causa eficiente entre as diversas condições. Cf., à
frente, o que se explicita – de forma sumária – acerca da teoria daquele.
Para uma análise comparatística entre os dois autores, cf. Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 186 s. O autor afirma, contundente-
mente, que Von Buri parte de um sofisma. Parte da ideia de que todas as condições são necessárias para chegar à conclusão que o efeito
é produto de cada uma delas, porque cada uma das condições torna causais as restantes. Ora, como salienta Pereira Coelho “se A+B+-
C+D são iguais a E, é evidente que só uma dessas grandezas não pode ser igual a E. E é isto que em resumo afirma Buri” (cf. pág. 187).
Acentua, por isso, o autor a nuance da conceção hodierna da teoria da equivalência das condições. “Os jurisconsultos que hoje em dia
defendem a teoria da conditio sine qua non limitam-se a acentuar que todas as condições são necessárias para o efeito e que portanto
elas são, neste sentido, equivalentes, não sendo possível fazer entre elas qualquer distinção”. Dito de outro modo, todas podem ser
consideradas causas.
Cf., ainda, Oliveira Ascensão, Acção finalista e nexo causal, Dissertação do Curso Complementar de Ciências Jurídicas, Faculdade de
Direito de Lisboa, 1956, 112 s.
17 Cf. G. M arty, “La relation de cause à effet comme condition de la responsabilité civile”, 691 s.; François Chabas, L’influence de la
pluralité de causes, nº100;R aniero Bordon, Il nesso di causalità, 42. Para outras considerações, cf. M afalda Miranda Barbosa, Do
nexo de causalidade ao nexo de imputação, cap. II
178
Assim, o critério quadra mal com a intencionalidade jurídica. Parte de uma visão de-
terminística do mundo, que não é sequer aceite no campo das ciências exatas, esquecendo que,
ao nível jurídico, o direito não pode ser determinado pelo ser, na medida em que se traduz num
dever-ser. Por outro lado, deixa-nos sem resposta em todos os casos em que o dano tem origem
no comportamento da vítima. Desde logo, há a considerar todos aqueles casos em que se desvela
um comportamento do lesado que, concorrentemente, desempenha um papel ativo no processo
causal. E não falamos só das hipóteses de concorrência de culpas do lesado – a encerrar a vexata
quaestio da qualificação do seu âmago como um problema atinente à culpa ou à causalidade –,
mas também daqueloutras em que o processo causal tem início num comportamento da vítima,
adotado em face da influência psicológica que um terceiro sobre ela exerceu. Lembramo-nos,
num exercício de chamada à colação de uma memória predisponível dos problemas com que o
sistema se vai debatendo, das situações de responsabilidade por informações18.
Ao mesmo tempo, conduz a uma extensão desmedida da responsabilidade19. Na verda-
de, o imbricamento em cadeia de acontecimentos opera-se com uma tal voracidade na realidade
18 Na verdade, sempre que o processo causal seja integrado por uma dimensão psicológica torna-se extremamente difícil, ou mesmo
impossível, raciocinar em termos contrafactuais. Será que, sem o conselho recebido, o lesado teria atuado de forma diferente? Mas isso
não afeta o núcleo de autonomia que predica a decisão em que radica, afinal, o agir humano?
19 Nesse sentido, cf. Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 22-23; Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 189 s.; A ntunesVarela,
Dasobrigações, 884-885; A lmeida Costa, Direito das Obrigações, 761-762; Pessoa Jorge, Ensaio, 390 s. e Direito das Obrigações, 1º
vol., AAFDL, Lisboa, 1975/1976, 569 e 573; Sinde Monteiro, “Rudimentos da responsabilidade civil”, Revista da Faculdade de Direito
da Universidade do Porto, ano 2º, 2005, 379; Carneiro da Frada,Direito Civil. Responsabilidade civil, 101; M anuel de A ndrade, Teoria
geral das obrigações, 349; Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos administradores, 547 e Direito das Obrigações,334; R i-
beiro de Faria, Direito das Obrigações, I, 498; Galvão Telles, Direito das Obrigações, 404 s.; Paulo Mota Pinto, Interesse contratual
negativo, 655;Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 35; R aniero Bordon, Il nesso di causalità, 45; G. Valcavi, “Intorno
al rapporto di causalità nel torto civile”, 488; W.V.H. Rogers, Winfiel and Jolowicz 212 e 213, adiantando que a conditio sine qua non,
identificada ao nível da Common Law com o but-for test, não serve para restringir a responsabilidade, sendo, amiúde, visto como um
primeiro filtro no sentido da eliminação das condições irrelevantes.
179
prática que torna imprestável um critério assente na pura conexão causal20-21. Do mesmo passo,
mas sem contradição, restringe, noutras situações, a responsabilidade, impedindo uma decisão
justa. Pense-se no âmbito de relevância dos casos em abstrato assimiláveis pela intencionalidade
problemática do conceito de causalidade cumulativa ou alternativa. A e B disparam ao mesmo
tempo sobre C, pelo que nenhum dos ferimentos pode ser visto como condição sem a qual o
dano não teria ocorrido, já que qualquer um deles poderia desaparecer, continuando o processo
20 Sobre esta crítica em especial, cf., inter alia, A ntunes Varela, Das obrigações, 885; Pereira Coelho, “O nexo de causalidade”, 80;
Gomes da Silva, O dever de prestar, 67 s.; LuísMenezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 359 e n.760.
21 Porque a doutrina da conditio sine qua non remonta, como dissemos, ao quadro filosófico de inspiração millesiana, importa dar aqui
nota da advertência feita por Pereira Coelho (cf. “O nexo de causalidade181, n. 1). Na verdade, afirma-se amiúde que a doutrina em
causa abre a porta ao infinito. Alerta o jurista português que tal não é necessariamente assim, no quadro filosófico do problema. E não é
porque, quando Stuart Mill “define a causa como a totalidade das condições, não compreende entre tais condições também os seus ante-
cedentes mediatos, isto é, as condições das condições”. Cf. Stuart Mill, A system of logic, 392 s. Diante da explicação – que, saliente-se,
não leva o autor a aderir à posição jurídica equivalente – concita-se uma dúvida e afiguram-se razoáveis alguns esclarecimentos. Em
bom rigor, como distinguir as condições das condições, os tais antecedentes mediatos, das condições imediatas e próprias? A impresta-
bilidade de tal juízo – quando normativamente assumido, ao vestir a roupagem da teoria da equivalência das condições – só se logrará
compreender, porém, na bifurcação de perspetivas. Centrando-nos no dano concretamente sofrido, indagamos ex ante se ele foi causado
pelo comportamento do putativo lesante para, de acordo com a doutrina em apreço, respondermos que sim, sempre que surja como uma
condição sem a qual não teria sobrevindo. Pergunta-se, então, e se confluir mais do que uma causa juridicamente atendível como eleger
uma como o polo de imputação da responsabilidade? Prospetivamente, olhamos para a multiplicidade de danos sobrevindos. Operando
a realidade segundo uma cadeia de causas e efeitos, como balizar o dano indemnizável? Contrariamente à pressuposição epistemológica
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
da condicionalidade como padrão explicativo da realidade, do ponto de vista da intencionalidade jurídica ela nada nos comunica, senão
a idoneidade do meio para produzir um determinado dano. Tanto mais que, no seio do que pode ser identificado com o kantiano reino
dos fins, a estrutura dos acontecimentos é menos linear e mais tentacular.
No plano jurídico, Pereira Coelho mostra-se crítico da doutrina da conditio sine qua non exatamente pela “latitude verdadeiramente de-
marcada e incomportável” que ela fornece à noção de causa (cf. “O nexo de causalidade” 188 e 190 s. Nelas, o autor, afastando visões
caricaturais acerca da teoria, mostra que o que releva é saber em que medida o dano pode ser causalmente reconduzido ao facto que
viole ou ofenda um direito de outrem).
Também no sentido de mostrar a impraticabilidade da adoção da doutrina da condition sine qua non no quadro do direito civil, embora não
se pronuncie sobre a prestabilidade da mesma no âmbito penalista, cf. Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 23; Oliveira Ascen-
são, Acção finalista e nexo causal, 115.
Acerca da possível recondução do pensamento a um regresso ad infinitum, veja-se, ainda, Larenz, Schuldrecht, I, 434.
Cf., igualmente, Paul Esmein, “Trois problèmes de responsabilité civile. Causalité. Concours des responsabilités. Conventions d’irresponsa-
bilité”, 317-369. Para uma sistematização das críticas apontadas à doutrina, Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 34 s.
(alargamento desmesurado do número de potenciais responsáveis, risco de condução da responsabilidade ad infinitum, impossibilidade
de repartição do encargo ressarcitório entre os diversos coautores ou entre a vítima e um dos autores do dano, insusceptibilidade de
resolução dos problemas de sobredeterminação causal)
180
causal a seguir o seu curso letal22.
Em face das inconcludências da doutrina da condicionalidade, os autores passaram,
com formulações diversas, a propor um entendimento causal que – aparentemente – se afasta
de uma impostação naturalista e lógica para abraçar, do ponto de vista da juridicidade, a espe-
cífica intencionalidade que a predica23. Já não se indaga qual a causa do dano, mas olha-se para
o comportamento do lesante para ver se, em abstrato, ele é ou não idóneo a produzir um dano
daquele tipo. Encontra-se, por isso, o ponto de clivagem entre esta perspetiva e as doutrinas que
22 Cf., no mesmo sentido, dando este exemplo, A ntunes Varela, Das obrigações, I, 884, n. 1 e 739 s.
Note-se que a crítica pode ser contornada, considerando que o que importa para o estabelecimento da conexão causal é o evento concreto
– a morte tal como ela ocorreu – e não abstrato. Cf. Pereira Coelho, O problema da causa virtual, 9, n. 6 e 180 s. [Entre os principais
argumentos invocados pelo autor, referência nacional em matéria de causalidade, contam-se o facto de o juízo de condicionalidade dever
ser um juízo puro, não devendo resvalar para nenhuma seleção segundo razões atinentes à valiosidade do comportamento e as dúvidas
suscitadas pelos casos de causalidadecumulativa]; Vaz Serra, “Obrigação de indemnizar. Colocação. Fontes. Conceito e espécies de
dano. Nexo causal. Extensão do dever de indemnizar. Espécies de indemnização. Direito de abstenção e de remoção”, Boletim do Mi-
nistério da Justiça, nº84, Março 1959, 63-64 e n. 185; Trimarchi, Causalità e danno, 5; Bydlinski, “Mittäterschaft im Schadenrecht”,
Archiv für die civilistische Praxis, 158, 1959, 416 [De Bydlinski veja-se, porém, Probleme der Schadensverursachung nach deutschem
und österreichischemRecht, F. Enke, Estugarda, 1964, 17, colocando em evidência algumas das aporias a que pode conduzir a conside-
ração do resultado em concreto]; R ibeiro de Faria, Direito das Obrigações, 499; Geraldes de Carvalho, “A causalidade. Subsídios para
uma teoria da responsabilidade jurídica em geral” , 26 s.; Jorge Carlos da Fonseca, “A relevância negativa da causa virtual ou hipotética
na responsabilidade civil (Delimitação do problema. Sua incidência no Direito Português)”, Revista Jurídica, AAFDL, nº4, 1984, 43;
H art e Honoré, Causation in the law, 2nd edition, Claredon Press, Oxford, 2002, reimpressão, 124, 235, 252 e ss.; Larenz, Lehrbuch des
Schuldrechts,Allgemeiner Teil, 14 Auflage, Verlag C. H. Beck, München, 1987, I, 360; ChristophRothenfusser, Kausalitätund Nachteil,
Beck, München, 2003, 75-81, mostrando-se crítico da configuração concreta do resultado (cf. pág. 60 s.).
Sobre o ponto, cf., também, Vaz Serra, “Obrigação de indemnização”, 95. No âmbito dos trabalhos preparatórios do atual Código Civil, e
aderindo previamente à doutrina da causalidade adequada, Vaz Serra pondera uma hipótese prática com uma intencionalidade análoga
à que problematizámos em texto. Relativamente a ela, pode aí ler-se: “poderia julgar-se que falta a conexão causal entre o facto e um dos
autores e o dano, pois esse facto não é condição sine qua non do dano. No entanto, tal não seria razoável. A vítima ficaria sem indem-
nização apesar de o facto de qualquer dos autores ter sido suficiente para produzir o dano. Portanto, deve cada um deles considerar-se
responsável pelo dano total”. Note-se que o discurso do civilista se dirige à doutrina da causalidade adequada, mostrando, em sintonia
com o que posteriormente denunciaremos, que, ao partir-se da doutrina da equivalência das condições para a corrigirmos, continuamos
a ser contagiados com alguns dos seus anátemas. Saliente-se, ainda, que em debate está a possibilidade de, no seio do ordenamento
jurídico pátrio, se chegar a uma solução como a que é viabilizada pelo §830 BGB.
Mais se diga que, no que à teoria da conditio sine qua non tange, a possibilidade corretiva a que aqui aludimos se traduz, afinal, na total
subversão do seu núcleo predicativo, já que com ela deixa-se de conseguir eliminar os acontecimentos irrelevantes para a emergência
do resultado.
Acerca desta problemática, veja-se, ainda, com amplo desenvolvimento, Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse con-
tratual positivo, volume I e II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008,659 s.Fala o autor, ademais, num outro desafio lançado às teorias por si
designadas de contrafactuais, a coincidir com a problemática da causalidade virtual, que receberia uma possível resposta com base no
argumento da conformação concreta do resultado. E nesse ensejo, dualiza as posições dos autores, agrupando-as entre aqueles segundo
os quais “é indispensável abstrair de algumas características do resultado, de acordo com um critério jurídica, sob pena de se chegar a
resultados estranhos” e aqueloutros para quem há que “considerar o resultado na sua configuração concreta, com as suas características
individualizadoras, isto é, tal como ocorreu, naquele momento e lugar e daquele modo”. Entre os primeiros encontrar-se-ia Traeger; en-
tre os segundos Müller e Engisch. Ponderando argumentos a favor e contra cada uma das posições, Paulo Mota Pinto erige como nódulo
problemático central destas lucubrações a indagação: “o problema é, pois, o de saber qual é a configuração concreta do resultado rele-
vante e o que são circunstâncias adjacentes irrelevantes: a separação entre circunstâncias ou elementos laterais em relação à produção
do resultado e irrelevantes para este (mas que o caracterizam em concreto), por um lado, e circunstâncias ou elementos relevantes para
o resultado.” [A propósito do pensamento de Müller, cf. Die Bedeutung des Kausalzusammenhangs im Straf- und Schadensersatzrecht,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
181
se integram naquilo que Honoré apelidou de necessity theories e de explanatory theories24. A
questão que passa a orientar o jurista é – numa formulação positiva – a de saber se é normal e
adequado (provável) que aquele tipo de comportamento gere aquele tipo de dano; ou – numa
formulação negativa – a de saber se é de todo indiferente para a produção de um dano daquele
tipo um comportamento como o do lesante.
Sobre a doutrina da causalidade adequada haveremos desde já de considerar que ela
não constitui um magma uniforme. Pelo contrário, no seu seio albergam-se formulações abso-
lutamente díspares que vão desde uma visão probabilística-estatística, que quadra mal com a
intencionalidade jurídica, até um conceito normativizado de causalidade. O certo, porém, é que
mesmo numa visão normativa de adequação as inconcludências a que a doutrina aporta o jurista
não são de pequena monta25.
Assim, colocam-se desde logo problemas ao nível da descrição dos relatas, isto é, dos
termos a relacionar. Na verdade, se se perguntar “é normal e provável que um pequeno golpe na
face provoque a morte de uma pessoa”, a resposta será, em princípio, negativa. Mas se se per-
guntar “é normal e provável que um pequeno golpe na face provoque a morte de um hemofílico
em último grau”, a resposta pode já ser afirmativa. Quer isto dizer que consoante a descrição
que se faça dos eventos, assim a resposta já vai contida na indagação. E não será fácil optar por
uma descrição dos relata em abstrato – porque se perde a necessária relevância do caso concre-
to – ou em concreto, porque a pormenorização pode, de facto, condicionar uma solução que, a
priori, não deveria estar estabelecida. Isto quer dizer, no fundo, que – consoante afirmam certos
autores – a adequação é critério de coisa alguma, uma fórmula vazia (Leeformel)26.
Por outro lado, coloca-se o problema de saber qual o ponto de vista que se deve adotar
nesta indagação: o ponto de vista do sujeito que atuou, o ponto de vista do homem médio ou
o ponto de vista do observador ótimo e experiente? E devem ou não ter-se em conta os conhe-
cimentos efetivos do lesante que, em concreto, podem alterar o juízo de prognose a encetar?
Basta pensar, por exemplo, na hipótese em que o sujeito sabia da hemofilia da vítima e por isso
desfere contra ela um golpe. Mas, ao considerarmos esta probabilidade corrigida por índices de
subjetividade, não estamos a aproximar-nos da culpa e da previsibilidade, sendo certo que os
autores a rejeitam – e bem – para estabelecer o nexo de causalidade? O mesmo não se poderá
perguntar se o nosso juízo um juízo ex ante? Mas, por outro lado, se o juízo for absolutamente
objetivo e formulado ex post, não estaremos a condenar-nos a uma resposta de tipo estatístico
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
que quadra mal com a intencionalidade predicativa da juridicidade e nos afasta de soluções jus-
tas, como no exemplo apresentado anteriormente? E, in fine, qual o grau de probabilidade que
24 A propósito da classificação das teorias causais, cf. Christophe Quézel-A mbrunaz, Essai sur la causalité, 23 s.
Para outros desenvolvimentos e uma enunciação destas diversas doutrinas, cf. M afalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao
nexo de imputação, 86 s.
25 Para um acompanhamento mais pormenorizado das diversas críticas que lançamos sobre a causalidade adequada, cf. M afalda Miran-
da Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, 99 s., bem como a demais bibliografia aí citada.
26 Menezes Cordeiro, Da responsabilidade, 534, ao afirmar que ela não é bitola de coisa nenhuma, mas “espaço que iremos preenchendo
com base no senso comum e em juízos de tipo ético”; Menezes Leitão, A responsabilidade do gestor,325; Günther Bernert, “Die Lee-
formel von der Adäquanz”, Archiv für die civilistische Praxis, 169, 1969,421-442
182
deve ser requerido?
A causalidade adequada mostra-se ainda falha noutras situações. Em primeiro lugar,
ela não nos oferece uma resposta satisfatória sempre que esteja em causa a chamada causalida-
de psicológica, isto é, sempre que o sujeito atua para levar o lesado ou um terceiro a agir. Do
mesmo modo, mostra-se insuficiente nas hipóteses de causalidade cumulativa necessária. Por
último, ao partir de uma ideia de condicionalidade, acaba por ficar refém dos problemas ante-
riormente patenteados.
As dúvidas e dificuldades expostas acerca da justeza das soluções alicerçadas na pro-
babilidade refletem estes dados, embora, pela confluência a que aludimos entre a condicionali-
dade sem a qual e a causalidade adequada, eles possam surgir miscigenados.
Do mesmo passo, permitem-nos perceber que não podemos – se quisermos ser con-
gruentes na busca de uma solução normativamente fundada e materialmente justa – ficar presos
às soluções doutrinais tradicionais. Há que, portanto, repensar o problema.
Metodologicamente, se toda a interpretação da norma faz apelo aos princípios que ela
leva pressupostos, então o cumprimento das exigências de sentido comunicadas pelo direito –
desvelável na ideia de liberdade e responsabilidade (no sentido da role-responsability colimada
na pessoalidade) – só será logrado se e quando todas as categorias harmonicamente articuladas
para fundar a sua procedência forem interpretadas, no cotejo com o caso concreto, tendo em
consideração, não só as finalidades primárias desse ressarcimento, mas ainda a intencionalida-
de normativa dela. Na interpretação que se faça dos referidos requisitos, há que trancendê-los
pela pressuposição da intencionalidade ético-axiológica daquele princípio da responsabilidade
assente na pessoalidade. Assim, em relação à causalidade: mais do que ser vista como um pro-
blema normativo, há-de ser recortada, entre outros aspetos, com base na ideia de pessoalidade
livre em que se ancora toda a juridicidade. A leitura ético-axiológica do pressuposto delitual
não pode, contudo, apagar do nosso referente dialógico as outras notas que, num nível menos
rarefeito de compreensão delitual, concorrem para a caracterização do sistema. Nessa medida,
importa não esquecer a ideia de comutação a que somos conduzidos pela análise da teleologia
primária da responsabilidade civil. Se a finalidade precípua do instituto é a reparação dos danos,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
torna-se urgente considerar o resultado lesivo, sem o qual a indemnização não terá razão de ser.
É ele que torna a causalidade imprescindível como requisito delitual: permite estabelecer a pon-
te entre a teleonomologia e a teleologia da responsabilidade civil. Ou dito de outro modo, é ela
que evita o desenho puramente sancionatório do instituto, impondo que este apenas assimile a
relevância do caso concreto quando e se o comportamento ilícito e culposo se projete num dano.
Na verdade, não basta que se olhe para uma dimensão de validade. Qualquer critério jurídico
há-de ser perpassado por uma ideia de eficácia. Nessa medida, na busca dos contornos com que
deve ser desenhada a causalidade, importa não obnubilar o dado ontológico envolvente. Será
183
ele a chamar-nos a atenção quer para a complexidade causal, quer para o imbricamento condi-
cional. Nesta medida, influenciará, numa dialética entretecida com o plano axiológico, a própria
modelação da causalidade enquanto requisito do direito delitual. O risco é, assim, chamado para
o centro do discurso do decidente. O apelo à conformação societária como uma comunidade de
risco serve menos para evidenciar a perigosidade de cada ato concreto – ou atividade encabeça-
da – do que para mostrar que, sendo aquele risco imanente ao modus vivendi, não será possível
ajuizar causalmente abstraindo do contexto relacional de esferas que se cruzam. É, aliás, este o
único recorte compaginável com a noção de ação em se estrutura o nosso delito.
Nas hipóteses de responsabilidade pelo risco, como aquela que estamos a contemplar
a propósito da responsabilidade do produtor27, o risco cumpre, ainda, a função de fundamento
da própria responsabilidade.
A mutação de perspetiva é possível a partir do momento em que olhamos para a respon-
sabilidade do ponto de vista ético-axiológico e não apenas dogmático28. A própria ação, de onde
se parte, deve ser vista como uma categoria onto-axiológica o que, no diálogo com a pressupo-
sição do risco, nos permite inverter alguns dos aspetos tradicionais do problema. Assim, e desde
logo, podemos afirmar que o filão fundamentador da imputação objetiva não pode deixar de se
encontrar numa esfera de risco que se assume. Não basta contemplar a esfera de risco assumida
pelo agente de uma forma atomística, desenraizada da tessitura antropológico-social e munda-
nal em que ele está inserido. Dito de outro modo, e relacionando-se isso com o pertinentemente
aceite em matéria de definição da conduta juridicamente relevante, salienta-se aqui que, porque
o referencial de sentido de que partimos é a pessoa humana, matizada pelo dialéctico encontro
entre o eu, componente da sua individualidade, e o tu, potenciador do desenvolvimento integral
da sua personalidade, há que cotejá-la com a esfera de risco encabeçada pelo lesado, pelos ter-
ceiros que compõem teluricamente o horizonte de atuação daquele, e ainda com a esfera de ris-
co geral da vida. Ao que, aliás, não será também estranho o facto de todo o problema vir ener-
vado pela teleologia primária da responsabilidade delitual, ou seja, pelo escopo eminentemente
reparador do instituto. A pessoa, ao agir, porque é livre, assume uma role responsibility, tendo
de, no encontro com o seu semelhante, cumprir uma série de deveres de cuidado. Duas hipóte-
ses são, então, em teoria, viáveis: ou a pessoa atua investida num especial papel/função ou se
integra numa comunidade de perigo concretamente definida e, neste caso, a esfera de risco apta
a alicerçar o juízo imputacional fica a priori desenhada, hipótese que ocorre, concretamente,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
27 A este propósito – e em geral acerca de toda a responsabilidade do produtor –, cf. Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor,
503 s., considerando que se trata de uma responsabilidade objetiva. Em sentido contrário, sustentando que em causa está uma respon-
sabilidade subjetiva, veja-se Menezes Cordeiro, Tratadode Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, tomo III, Almedina,
2010, 692
28 Cf., para maiores desenvolvimentos, Mafalda Miranda Barbosa, Do nexo de causalidade ao nexo de imputação, 890 s. e 1130 s.,
bem como a demais bibliografia aí citada e que aqui damos por reproduzimos. Repristinamos algumas das conclusões a que, naquela
investigação, chegámos.
184
aumento do risco, que pode ser comprovado, exatamente, pela preterição daqueles deveres de
cuidado. Estes cumprem uma dupla função. Por um lado, permitem desvelar a culpa (devendo,
para tanto, haver previsibilidade da lesão e exigibilidade do comportamento contrário tendo
como referente o homem médio); por outro lado, alicerçam o juízo imputacional, ao definirem
um círculo de responsabilidade, a partir do qual se tem de determinar, posteriormente, se o dano
pertence ou não ao seu núcleo. A culpabilidade não se confunde com a “causalidade”. Pode o
epicentro da imputação objetiva residir na imputação subjetiva firmada, sem que, contudo, os
dois planos se confundam. Condicionam-se dialeticamente, é certo, não indo ao ponto de se
identificar. O condicionamento dialéctico de que se dá conta passa pela repercussão do âmbito
de relevância da culpa em sede de imputação objetiva. Isto é, a partir do momento em que o
agente atua de forma dolosa, encabeçando uma esfera de risco, as exigências comunicadas em
sede do que tradicionalmente era entendido como o nexo de causalidade atenuam-se. Acresce
que, ainda que a previsibilidade releve a este nível, o ponto de referência dela será diferente.
Assim, a previsibilidade de que se cura deve ser entendida como cognoscibilidade do potencial
lesante da esfera de risco que assume, que gera ou que incrementa. Ela não tem de se referir
a todos os danos eventos. Designadamente, não terá de se referir aos danos subsequentes ou
àqueles que resultem do agravamento da primeira lesão. Por isso, quando afirmamos que, ao
nível da primeira modalidade de ilicitude, a culpa tem de se referir ao resultado, acompanha-
mos, entre outros, autores como Lindenmaier, Von Caemmerer ou Till Ristow, para sustentar
que a previsibilidade que enforma a culpa deve recuar, no seu ponto referencial, até ao momento
da edificação da esfera de risco que se passa a titular. Assim, para que haja imputação objetiva,
tem de verificar-se a assunção de uma esfera de risco, donde a primeira tarefa do julgador será
a de procurar o gérmen da sua emergência. São-lhe, por isso, em princípio, imputáveis todos
os danos que tenham a sua raiz naquela esfera, donde, a priori, podemos fixar dois polos de
desvelação da imputação: um negativo, a excluir a responsabilidade nos casos em que o dano
se mostra impossível (impossibilidade do dano), ou por falta de objeto, ou por inidoneidade do
meio; outro positivo, a afirmá-la diante de situações de aumento do risco.
Exclui-se a imputação quando o risco não foi criado (não criação do risco), quando
haja diminuição do risco e quando ocorra um facto fortuito ou de força maior. Impõe-se, ade-
mais, a ponderação da problemática atinente ao comportamento lícito alternativo.
No tocante à responsabilidade pelo risco, a esfera de risco é definida previamente pelo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
legislador, atento o modelo de tipicidade com que nos confrontamos, sendo encabeçada no mo-
mento em que o sujeito (pretensamente responsável) a assume.
Abre-se, posteriormente, o segundo patamar da indagação “causal”.
Contemplando, prima facie, a esfera de risco geral da vida, diremos que a imputação
deveria ser recusada quando o facto do lesante, criando embora uma esfera de risco, apenas
determina a presença do bem ou direito ofendido no tempo e lugar da lesão do mesmo. O cotejo
com a esfera de risco natural permite antever que esta absorve o risco criado pelo agente, por-
quanto seja sempre presente e mais amplo que aquele. A pergunta que nos orienta é: um evento
185
danoso do tipo do ocorrido distribui-se de modo substancialmente uniforme nesse tempo e
nesse espaço, ou, de uma forma mais simplista, trata-se ou não de um risco a que todos – indi-
ferenciadamente – estão expostos?
O confronto com a esfera de risco titulada pelo lesado impõe-se de igual modo. São a
este nível ponderadas as tradicionais hipóteses da existência de uma predisposição constitucio-
nal do lesado para sofrer o dano. Lidando-se com a questão das debilidades constitucionais do
lesado, duas hipóteses são cogitáveis. Se elas forem conhecidas do lesante, afirma-se, em regra,
a imputação, exceto se não for razoável considerar que ele fica, por esse especial conhecimento,
investido numa posição de garante. Se não forem conhecidas, então a ponderação há-de ser
outra. Partindo da contemplação da esfera de risco edificada pelo lesante, dir-se-á que, ao agir
em contravenção com os deveres do tráfego que sobre ele impendem, assume a responsabilida-
de pelos danos que ali se inscrevam, pelo que haverá de suportar o risco de se cruzar com um
lesado dotado de idiossincrasias que agravem a lesão perpetrada. Excluir-se-á, contudo, a im-
putação quando o lesado, em face de debilidades tão atípicas e tão profundas, devesse assumir
especiais deveres para consigo mesmo. A mesma estrutura valorativa se mobiliza quando em
causa não esteja uma dimensão constitutiva do lesado, mas sim uma conduta dele que permita
erigir uma esfera de responsabilidade, pelo que, também nos casos de um comportamento não
condicionado pelo seu biopsiquismo, a solução alcançada pelo cotejo referido pode ser intuída,
em termos sistemáticos, a partir da ponderação aqui posta a nu. Há que determinar nestes casos
em que medida existe ou não uma atuação livre do lesado que convoque uma ideia de autorres-
ponsabilidade pela lesão sofrida. Não é outro o raciocínio encetado a propósito das debilidades
constitucionais dele, tanto que a imputação só é negada quando se verifique a omissão de deter-
minados deveres que nos oneram enquanto pessoas para salvaguarda de nós mesmos.
Não se estranha, por isso, que o pensamento jurídico – mormente o pensamento jurí-
dico transfronteiriço – tenha gizado como critério guia do decidente o critério da provocação.
Tornam-se, também, operantes a este nível ideias como a autocolocação em risco ou a hetero-
colocação em risco consentido.
Havendo essa atuação livre do lesado, temos que ver até que ponto os deveres que
oneravam o lesante tinham ou não como objetivo obviar o comportamento do lesado. Tido isto
em mente, bem como a gravidade da atuação de cada um, poderemos saber que esfera de risco
absorve a outra ou, em alternativa, se se deve estabelecer um concurso entre ambas.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
186
da sua vontade, ou porque houve indução à prática do ato, ou porque não lhe era exigível outro
tipo de comportamento, atenta a conduta do primeiro agente (o nosso lesante, a quem queremos
imputar a lesão). Neste caso, ou este último surge como um autor mediato e é responsável, ou a
ulterior conduta lesiva se integra ainda na esfera de responsabilidade por ele erigida e a imputa-
ção também não pode ser negada.
Maiores problemas se colocam, portanto, quando existe uma atuação livre por parte
do terceiro que conduz ao dano. Há, aí, que ter em conta alguns aspetos. Desde logo, temos de
saber se os deveres do tráfego que coloram a esfera de risco/responsabilidade encabeçada pelo
lesante tinham ou não por finalidade imediata obviar o comportamento do terceiro, pois, nesse
caso, torna-se líquida a resposta afirmativa à indagação imputacional. Não tendo tal finalidade,
o juízo há-de ser outro. O confronto entre o círculo de responsabilidade desenhado pelo lesante
e o círculo titulado pelo terceiro – independentemente de, em concreto, se verificarem, quanto
a ele, os restantes requisitos delituais – torna-se urgente e leva o jurista decidente a ponderar se
há ou não consunção de um pelo outro. Dito de outro modo, a gravidade do comportamento do
terceiro pode ser de molde a consumir a responsabilidade do primeiro lesante. Mas, ao invés,
a obliteração dos deveres de respeito – deveres de evitar o resultado – pelo primeiro lesante,
levando à atualização da esfera de responsabilidade a jusante, pode implicar que a lesão perpe-
trada pelo terceiro seja imputável àquele. Como fatores relevantes de ponderação de uma e outra
hipótese encontramos a intencionalidade da intervenção dita interruptiva e o nível de risco que
foi assumido ou incrementado pelo lesante.
O modelo cogitado para a causalidade, assim transmutada em imputação, continua a
ser válido para a responsabilidade pelo risco. Pensemo-lo, então, por referência à responsabi-
lidade do produtor. Ao colocar no mercado um determinado produto (defeituoso), o produtor
assume uma esfera de risco, pelo que responderá, em regra, por todos os danos que possam
ligar-se funcionalmente ao defeito detetado. Não se exige, para que a ligação se estabeleça, um
qualquer grau de probabilidade bastante, contentando-nos antes com a mera possibilidade. Na
verdade, a densificação da imputação que se começa, assim, a erigir será oferecida pelo cotejo
entre esta esfera de risco com outras esferas de risco que com ela se confrontem.
Tal como no caso da responsabilidade subjetiva, a esfera de risco geral da vida conduz
à exclusão da imputação quando a atividade em questão (a colocação do produto defeituoso no
mercado), identificando embora uma esfera de risco, apenas determina a presença do bem ou
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
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trata – é considerar a própria intencionalidade da responsabilidade em questão. Ora, no caso da
responsabilidade do produtor, a defeituosidade de que se parte implica a falta de segurança do
produto, tendo em conta todas as circunstâncias, entre as quais a utilização que razoavelmente
dele se faça, donde as predisposições constitucionais do lesado podem ser de molde a, se deter-
minarem uma utilização não razoável do bem, excluir a imputação. Já não será esta a pondera-
ção se o defeito não for afastado, mas o impacto que o produto tiver no lesado determinar uma
lesão agravada. Nessa hipótese, parecem-nos ser mobilizáveis os critérios predispostos em geral
para resolver a questão imputacional, a partir dos quais a responsabilidade pode ser excluída ou
limitada.
É nesse sentido que deve ser interpretado o artigo 7º/1 DL nº383/89, nos termos do
qual, “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para o dano, pode o tribunal, tendo
em conta todas as circunstâncias, reduzir ou excluir a indemnização”. Tal como por referência
ao artigo 570º CC, a ideia de culpa não deve ser compreendida em sentido estrito, por não
ser possível fazer recair um juízo de censura ético-jurídica sobre a própria pessoa, pelo que
a simples presença de uma predisposição constitucional não acompanhada dos deveres de
cuidado em relação a si mesmo que deveriam ser adotados pode ser de molde a desencadear a
consequência jurídica.
Finalmente, há que confrontar a esfera de risco do lesante com a esfera de risco enca-
beçada por um terceiro. Fundamental é, então, perceber em que medida o comportamento do
terceiro é ou não livre, qual a amplitude do risco assumido pelo lesante e qual a gravidade do
comportamento do terceiro. Ao contrário do que se sustentou durante largo tempo, a disciplina
da responsabilidade civil do produtor abre-nos as portas para situações de concurso entre culpa
e risco, afastando soluções radicais de exclusão da responsabilidade pelo risco, sempre que se
verifique uma hipótese concorrente de culpa29.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
de concreta. Mas, para tanto, basta que o lesado prove a edificação de uma esfera de risco e a
existência do evento lesivo. O juízo acerca da pertença deste àquela esfera traduzir-se-á numa
dimensão normativa da realização judicativo-decisória do direito.
Perguntar-se-á, contudo, e sobretudo porque estamos diante de uma hipótese de res-
ponsabilidade pelo risco (em que a esfera de risco é assumida a montante, no momento em que
se dá início a uma qualquer atividade tida pelo legislador como arriscada ao ponto de, com
188
base em critérios de justiça distributiva, se admitir a imposição de uma obrigação ressarcitória
independentemente de culpa), se será bastante a comprovação da edificação/assunção da esfera
de risco de que se cura, para, de imediato, se responder que urge, num caso como este, provar a
interferência daquela atividade na história de surgimento do evento lesivo. Mas, para tanto, não
nos precisamos de enredar numa lógica contrafáctica, própria de um juízo condicionalista (que,
aliás, se mostra irrealizável em concreto), nem necessitamos de partir em busca de uma verdade
científica acerca dos factos.
Numa hipótese de responsabilidade do produtor, devemos contentar-nos com a prova
da utilização/consumo/aquisição do produto defeituoso pelo lesado e do dano. A ligação entre
a colocação do produto no mercado e a emergência da lesão implica o referido juízo normativo
a cargo do julgador.
Resta, porém, um problema de não pequena monta. Confrontados com a decisão do
Tribunal de Justiça da União Europeia, torna-se forçoso pensar em que medida é que o que fica
dito é compatível com a ideia de que, embora haja a possibilidade de se dar por estabelecida a
causalidade com base num grau suficientemente elevado de probabilidade, deixando de lado
a exigência de uma verdade científica, se posterga a hipótese de se lançar mão de uma prova
por presunção que leve a demonstrar automaticamente o nexo causal, quando estejam reunidos
certos indícios predeterminados.
A dúvida, sendo pertinente, não nos conduz a uma aporia. Em primeiro lugar, embora
a diretiva pretenda harmonizar os diversos ordenamentos jurídicos nesta matéria, introduzin-
do uma proteção bastante para o consumidor e, assim, consolidando as bases de um mercado
único, ela não vai ao ponto de impor uma dada conceção dogmática acerca dos pressupostos de
procedência da pretensão indemnizatória em relação aos quais, explicitamente, não crie uma
disciplina excecional. Embora no artigo 4º Diretiva 85/374/CEE se disponha que cabe ao lesado
a prova do dano, do defeito e do nexo de causalidade, o certo é que a prova que se exige a este
nível ficará sempre dependente do entendimento que se derrame sobre o requisito. Ora, a partir
do momento em que a nossa perspetiva é imputacional, a prova que se requer não pode ir além
do que ficou explicitado supra.
Note-se, aliás, que, de acordo com o modelo que edificámos, não está em causa qual-
quer presunção de causalidade. O que se propõe não é que o julgador presuma a ligação exigível
a partir de qualquer dado apresentado pelo lesado, mas que edifique um juízo normativo com
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
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REFERÊNCIAS
SILVA, João Calvão da. Responsabilidade civil do produtor, Coimbra: Almedina, 1999.
ABSTRACT
Taking into consideration that the Portuguese Courts, in the context of
product liability, require the proof of defect and of causation between
the defect and the damages and that the European Union Court of Jus-
tice, in a specific case, even considering that it is not required a scien-
tific and irrefutable proof of the causal link, also refuses the proof by
presumption that automatically demonstrates causation, we intend to
confront the traditional understanding of causation with an imputation-
al perspective of the requisite. In the end, we will be able to conclude
to what extent the requirement of Portuguese and European case-law
makes sense.
KeywordsProducer liability. Jurisprudence. Nexus of causality.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
190
CONFLITO DE VALORES E FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO DO ESTADO NO
CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM PORTUGAL
RESUMO
A violência doméstica é um grave problema social dos dias atuais. O
presente trabalho pretende refletir sobre a legitimidade da intervenção
do Estado, no contexto da violência conjugal e parental, à luz da legis-
lação em vigor no ordenamento jurídico português, partindo da afirma-
ção do princípio fundamental da não-ingerência na família, para o re-
conhecimento da necessidade de salvaguarda dos direitos fundamentais
inalienáveis de cada um dos seus membros.A intervenção do Estado é
constitucionalmente imposta, mas delimitada pelos princípios da subsi-
diariedade e da proporcionalidade.
Palavras-chave: Violência doméstica. Estado. Intervenção. Limites
imanentes. Proporcionalidade.
1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
O sociólogo Giddens (2001, p. 193) não tem dúvidas em afirmar que: “O lar é o lugar
mais perigoso nas sociedades modernas.”. Este autor sustenta que uma pessoa de qualquer sexo
ou idade tem maiores probabilidades de vir a ser fisicamente atacada dentro de casa, do que na
rua, à noite. Estamos em face do fenômeno da violência doméstica ou familiar.
1 Professora Auxiliar da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Investigadora do CEID – Católica
Research Centre for the Future of Law. Licenciada em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, em
1999. Mestre em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, na área das Ciências Jurídico-Civilísti-
cas, em 2004. Doutoramento em Direito pela Escola de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa, em 2014. Principal área
de investigação: Direito Penal/ Violência Doméstica/ Direito das Crianças.
191
Na sua abordagem são empregues, comummente, as expressões violência familiar
ou violência doméstica, de forma mais ou menos indistinta. A expressão violência doméstica
entrou no vocabulário jurídico, proveniente da sociologia anglófona, após se ter generalizado
na linguagem comum (BELEZA, 2007, p. 2). Seria, porventura, mais apropriada a expressão
violência familiar, mas a segunda acabou por dominar. Ambas as expressões traduzem, com a
amplitude possível, este fenômeno, ainda que, numa perspetiva estritamente jurídica, nenhuma
delas consiga, em rigor, abarcar todas as manifestações do mesmo. Em face das objeções apon-
tadas a ambas as designações, será de preferir o emprego associado das mesmas – violência
familiar e doméstica – expressão que beneficia de amplitude suficiente para deixar a coberto
todas as situações que o legislador penal considerou serem dignas e carecidas de tutela jurídi-
co-penal autônoma.
Nos dias de hoje, encontra-se já afastado o modelo liberal de família. Neste modelo,
ao Estado cabia a regulação da esfera pública, ao mesmo tempo que as instituições legais prote-
giam agressivamente a esfera privada contra a intervenção estatal, que era pouco solicitada, de
modo a salvaguardar a intimidade e o livre desenvolvimento da família. Na atualidade, porém,
parece seguro afirmar que o Estado se deve preocupar com a intervenção na família, procuran-
do assegurar a sua proteção social, econômica e jurídica, mas também promovendo o respeito
pelos direitos fundamentais de cada um dos seus membros.
No presente trabalho, pretendemos discutir se, ou em que medida, é legítima ao Es-
tado a intervenção junto da problemática da violência doméstica, em particular, da violência
conjugal, stricto sensu, e da violência parental, tomando por referência a legislação vigente no
ordenamento jurídico português a este respeito.
Mais antiga que o Estado, a família é um organismo natural que preexiste ao Direito
escrito e dentro do qual vive uma ordenação íntima, complexa e difícil de racionalizar (COE-
LHO; OLIVEIRA, 2011, p. 145; XAVIER, 2008, p. 59).
À família, natural ou adotiva, é reconhecido um direito à proteção da sociedade e do
Estado, sendo objeto de uma garantia institucional. Por essa razão, a família tem sido objeto
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
192
autoridade pública no exercício deste direito, senão quando esta ingerência estiver prevista na
lei e constituir uma providência que seja necessária para a proteção da saúde ou da moral, ou a
proteção dos direitos e das liberdades de terceiros. No mesmo sentido, encontramos os artigos
7.º e 33.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia.
No artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), integrado já no capítulo
dos direitos e deveres sociais, reconhece-se à Família, enquanto elemento fundamental da so-
ciedade, o direito à proteção da sociedade e do Estado e à efetivação de todas as condições que
permitam a realização pessoal dos seus membros.
A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra diversas disposições à famí-
lia, enquanto célula fundamental da sociedade, decorrendo das mesmas a afirmação de determi-
nados princípios constitucionais do direito da família2, designadamente: o direito de constituir
família; o princípio da igualdade dos cônjuges; o princípio da atribuição aos pais do poder-de-
ver de educação dos filhos; o princípio da inseparabilidade dos filhos dos seus progenitores; o
princípio da proteção da adoção; o princípio da proteção da família; o princípio da proteção da
maternidade e paternidade (COELHO; OLIVEIRA, 2011, p. 111 e seg).
Logo no artigo 36.º, n.º 1, a CRP prevê o direito de todos a constituir família e a con-
trair casamento em condições de plena igualdade, e no n.º 3 do mesmo preceito, a igualdade de
direitos e deveres dos cônjuges, quanto à capacidade civil e política e à manutenção e educação
dos filhos.
No n.º 5 do artigo 36.º reconhece-se o direito e o dever de educação e manutenção dos
filhos. O artigo 68.º, relativo à proteção da maternidade e paternidade, reforça esta ideia, deter-
minando que “Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização
da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”. No n.º
2, o preceito reconhece a maternidade e a paternidade como valores sociais eminentes, admitin-
do-se, assim, um verdadeiro direito fundamental dos pais e das mães, enquanto tais, à proteção
da sociedade e do Estado no desempenho dessa tarefa.
Por sua vez, no n.º 6 do artigo 36.º da CRP, encontramos outro princípio fundamental
no domínio das relações paterno-materno filiais: o princípio da inseparabilidade dos filhos dos
pais, ressalvados os casos de incumprimento por estes dos seus deveres fundamentais para com
os filhos, sempre mediante decisão judicial. Desta garantia constitucional decorre “a natureza
primordial e insubstituível da intervenção dos pais na tarefa de educação e acompanhamento
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
dos filhos, (...) só se justificando o afastamento de uns e outros em casos extremos, de irrespon-
sabilidade ou negligência” (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 828 e 834).
193
Muito embora a Constituição confira tutela autônoma à família, enquanto tal, ela não
perfilha uma conceção personalista da família e do casamento, não sendo admissível uma confi-
guração legal da família de acordo com um modelo autoritário ou com uma visão que absolutize
o interesse supra individual e coletivo da família, pese embora a tutela constitucional da família
não se identifique com a proteção dos indivíduos que a integram (XAVIER, 2003, p. 154).
Desde logo, a CRP reconheceu também às crianças um direito à proteção perante a
sociedade e o Estado, ao acolher expressamente o direito das crianças à proteção contra o exer-
cício abusivo da autoridade na família3. A reforma de 1977 do Código Civil pôs termo à refe-
rência ao poder de correção, para passar a consagrar apenas um dever de obediência dos filhos
em relação aos pais. Hoje, em particular, desde a entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, de 31 de
outubro, no que respeita à proteção das crianças e dos jovens, o Código Civil não se limita a
estabelecer limites ao exercício da autoridade, mas impõe aos pais um dever positivo de respeito
pela personalidade dos filhos4.
O preceito constitucional de que decorre o princípio da proteção à infância é o artigo
69.º da CRP, que, sob a epígrafe Infância, declara, no seu n.º 1, que “As crianças têm direito à
proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente
contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusi-
vo da autoridade na família e nas demais instituições.”. Nesta norma da CRP, encontra-se con-
sagrado um direito das crianças à proteção, “impondo-se os correlativos deveres de prestação
ou atividade ao Estado e à sociedade” (CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 2007, p. 869). Está
em causa um direito social típico, que implica deveres de legislação e de ação administrativa
para a sua realização e concretização, mas que pressupõe um direito negativo das crianças a não
serem abandonadas, discriminadas ou oprimidas. Os sujeitos passivos deste direito são não só
o Estado como os poderes públicos e a sociedade em geral, incluindo a família e, dentro desta,
os pais. Este mesmo n.º 1 do artigo 69.º impõe também a definição legal e a limitação da autori-
dade sobre as crianças no seio da família, justificando a concretização legislativa das inibições
e limitações ao exercício das responsabilidades parentais, bem como as medidas de vigilância
e punição dos maus tratos e das sevícias contra as crianças no ambiente doméstico (CANOTI-
LHO; MOREIRA, 2007, p. 870).
No n.º 2 do artigo 69.º proclama-se a especial proteção que o Estado deverá assegu-
rar às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
194
ças, a saber: a orfandade, o abandono e a privação de um ambiente familiar normal, mas no
âmbito normativo deste preceito poderão entrar outras situações, como a violência doméstica,
as atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à idade da criança, os comportamentos e
atividades gravemente lesivas da sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimen-
to, conferindo-se à criança especial proteção contra o exercício abusivo da autoridade na família
(CANOTILHO; VITAL MOREIRA, 2007, p. 871).
Finalmente, no domínio dos Direitos, Liberdades e Garantias, encontramos nos artigos
24.º a 27.º o reconhecimento, respetivamente, dos direitos fundamentais à vida, à integridade
pessoal, à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cida-
dania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e
familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, à liberdade e à segurança.
Todos estes direitos poderão resultar ameaçados ou violados, nos casos de violência doméstica.
É no âmbito deste enquadramento constitucional que terá que perspetivar-se a inter-
venção estatal no contexto da violência doméstica. Caberá ao Estado tomar posição quanto ao
conflito de valores aqui subjacente: a privacidade e o direito à diversidade das famílias – a não-
-ingerência – por um lado, e a tutela dos direitos fundamentais de cada membro da família – os
cônjuges e as crianças, por outro.
4 O CONFLITO DE VALORES
195
tos que fazem parte da tutela geral da personalidade, consagrada no artigo 26º da CRP. Esta
tutela constitui uma expressão direta do postulado básico da dignidade humana (MIRANDA;
MEDEIROS, 2010, p. 613).
Nela se inclui o direito à própria formação da personalidade, que abarca o direito ao
desenvolvimento de todas as potencialidades e capacidades, assumindo particular importância
quando estão em causa crianças ou jovens ainda em formação da sua personalidade (MIRAN-
DA; MEDEIROS, 2010, p. 614). Por outro lado, no âmbito desta tutela geral da personalidade,
encontramos também presente o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (MI-
RANDA; MEDEIROS, 2010, p. 620). Este direito não é um direito ilimitável. Ao contrário, em
matéria de colisão de direitos fundamentais, é daqueles direitos que apresenta um maior índice
de conflitualidade possível de antecipar (MIRANDA; MEDEIROS, 2010, p. 624).
O Estado encontra-se perante um dilema, que se poderia representar pela imagem de
uma balança cujos pratos buscam incessantemente o equilíbrio. Se por um lado, a intervenção
do Estado é imposta, como forma de garantir o respeito pelos mais elementares direitos dos
membros individuais da família, ou a reintegração destes direitos, por vezes grosseiramente
violados, por outro lado, não poderemos deixar de perceber que tal intervenção se faz no seio da
família, a quem é reconhecida liberdade, autonomia e reserva da vida privada. Mas o princípio
da não-ingerência nos assuntos privados não pode ser invocado para impedir a luta contra a
violência doméstica5.
Mas esta intervenção do Estado só será admissível se lograr obter um justo equilíbrio
entre os dois pratos da balança. No que concerne àviolência parental, por exemplo, nem mesmo
a Convenção dos Direitos da Criança (CDC) nos sugere critérios infalíveis de decisão, que per-
mitam assegurar uma justa composição entre os interesses em presença, tais como o direito dos
filhos a estar e conviver com os seus progenitores e o direito a serem protegidos contra os maus
tratos. Torna-se, por isso, indispensável realizar a avaliação dos diferentes interesses em crise,
no caso concreto (HAMMARBERGcitado por CLEMENTE, 2009, p. 51). Esta dicotomia torna
delicada, mas ao mesmo tempo, mais aliciante, a definição de estratégias de intervenção. A con-
secução do objetivo de equilíbrio entre este conjunto de valores fundamentais constitui o maior
desafio que ao Estado se coloca no plano da intervenção no contexto da violência doméstica.
direito (?)
Os direitos, liberdades e garantias não são absolutos nem ilimitados, visto que a co-
munidade liga os direitos a uma ideia de responsabilidade social e integra-os no conjunto dos
valores comunitários (ANDRADE, 2012, p. 263). Todos os direitos fundamentais têm limites,
que consistem essencialmente num conflito prático entre valores, entre os valores próprios dos
direitos, ou entre esses e outros valores comunitários, no contexto do sistema constitucional
196
(ANDRADE, 2012, p. 264).
A solução para o conflito enunciado no ponto precedente, no caso da violência paren-
tal, entre o direito à reserva da intimidade da vida privada, ao direito dos pais à educação e
manutenção dos filhos e sua inseparabilidade, consagrados nos artigos 26.º e 36.º, n.ºs 5 e 6, da
CRP, por um lado, e a garantia dos direitos fundamentais da criança, por outro, poderá obter-se
através do reconhecimento de limites imanentes ou intrínsecos a estes direitos, ou mesmo pela
constatação de verdadeiras colisões de direitos, carecidas de uma resolução particular, atinente
aos dados do caso concreto.
A doutrina utiliza a expressão limites imanentes para designar os contornos de con-
sagração constitucional de um direito consagrado na Constituição. “A expressão não é, porém,
inteiramente feliz, mormente quando ela é utilizada no sentido de limites máximos de conteúdo
ou de limites do objeto, pois deste modo não se expressa claramente que o designado limite
imanente está fora da proteção constitucional.” (VAZ, 1996, p. 316).
Os limites imanentes constituem restrições constitucionais, expressas ou implícitas, ao
conteúdo “natural” do direito (VAZ, 1996, p. 317). Estamos à procura do conteúdo protegido por
cada preceito, uma vez que a Constituição não dá cobertura a todas as situações, formas ou mo-
dos de exercício pensáveis para cada um dos direitos. Pode-se encontrar limites expressamente
formulados no texto constitucional, no próprio preceito, ou em outros preceitos constitucionais,
ou, noutros casos, essas limitações só são determináveis por via interpretativa. Em qualquer
destas hipóteses, o direito não existe enquanto dimensão constitucional protegida, pelo que
não se chega a levantar o problema da restrição legal, ou de colisão de direitos. Concretamen-
te a respeito da violência parental, Vieira De Andrade (2012, p. 273) questiona: “Fará sentido
invocar o direito de educar os filhos para os espancar violentamente?” Para logo concluir que,
neste, como em muitos outros casos, não estamos propriamente numa situação de conflito en-
tre o direito invocado e outros direitos ou valores, mas é o próprio preceito constitucional que
não protege essas formas de exercício do direito fundamental. Assim, deveremos entender que
a reserva da vida privada e os outros direitos constitucionais conflituantes apenas têm um de-
terminado âmbito de proteção constitucional, havendo, pois, esferas de ação no exercício deste
direito que se encontram a descoberto desta proteção6. A unidade valorativa da Constituição
coloca-as fora da proteção constitucional ou é mesmo contrária a essa unidade valorativa. “A
Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na conceção que
faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado” (MIRANDA, 2012, p. 219).
No Direito Internacional encontramos disposições que afloram este conceito: o artigo
6 Vide, a este respeito VIEIRA DE ANDRADE(2012, p. 267), que sustenta a admissibilidade de uma interpretação das normas consti-
tucionais que permita restringir à partida o âmbito de proteção da norma que prevê o direito fundamental, excluindo os conteúdos que
possam considerar-se in limineconstitucionalmente inadmissíveis. O direito pessoal à reserva da intimidade da vida privada e familiar,
constitucionalmente protegido pelo artigo 26.º, n.º 1 da CRP, não comporta todas as configurações imagináveis de exercício desse direi-
to. Torna-se aqui necessário proceder a uma interpretação restritiva, em abstrato, da norma constitucional que prevê este direito, que se
justifica como forma de assegurar plenamente o núcleo essencial de outros direitos fundamentais em presença.
197
30.º da DUDH determina que “Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpre-
tada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se en-
tregar a alguma atividade ou de praticar algum ato destinado a destruir os direitos e liberdades
aqui enunciados.”. Em sentido quase coincidente encontramos o artigo 17.º da CEDH e o artigo
54.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
No plano infraconstitucional, no Direito Civil, encontramos consagrado o instituto
do abuso do direito7, que talvez nem necessitasse de prescrição positiva, porquanto se trata de
um princípio normativo (NEVES citado por ABREU, 2006, p. 49). “O instituto do abuso do
direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos
subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções”(HÖRSTER, 1992, p. 281).
Resulta evidente que a ordem jurídica implica a delimitação de poderes, podendo, nessa medi-
da, afirmar-se que todos os direitos são relativos, porque circunscritos por necessários limites
legais, a fim de que os vários poderes possam coexistir (ABREU, 2006, p. 39). Por essa razão,
no plano infraconstitucional, aintervenção legislativa estatal tanto poderá traduzir-se numa ati-
vidade concretizadora, isto é, uma tarefa de interpretação dos limites imanentes do direito fun-
damental impressos no preceito constitucional, nada acrescentando, ou retirando ao conteúdo
constitucional, como numa atividade restritiva, desta feita, apenas se estiver protegida aquela
dimensão constitucional do exercício do direito(VAZ, 1996,p. 313, 317).
Os direitos familiares pessoais característicos da relação jurídica paterno-materno fi-
lial são poderes individuais que correm o risco de ser objeto de um exercício abusivo. Quem
age em abuso do direito invoca um poder que aparentemente lhe pertence, mas que não tem
fundamento material. “Há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exer-
cício de um direito, se traduz na não realização de interesses pessoais de que esse direito é
instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.” (neste caso, os interesses do filho)
(ABREU, 2009, p. 43). Por comportamento entender-se-á tanto uma ação como uma omissão.
Hörster (1992, p. 283) distingue entre o abuso institucional e o abuso individual. Quando o pai
ou a mãe invocam o seu direito de educação para, por hipótese, aplicar regularmente castigos
corporais ao filho, por força do artigo 1878.º do Código Civil, a questão coloca-se no plano do
abuso institucional. O direito é, neste caso, invocado para fins que estão fora dos objetivos para
os quais ele foi atribuído pela norma. A norma não confere este direito com o conteúdo invoca-
do. Encontra-se, em rigor, perante o exercício de um direito apenas aparente, mas não existente
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
7 Cfr. o artigo 334.º do Código Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos
pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
198
estrito, tratando-se antes de direitos de estrutura complexa que, do ponto de vista do seu conteú-
do, apresentam uma natureza específica, que comporta direitos e deveres (HÖRSTER, 1992, p.
256-257). Leite De Campos (1997, p. 139), reforça este entendimento: “o titular do poder não o
exerce no seu interesse, mas antes (“também”) no interesse do sujeito passivo.” O seu exercício
não é inteiramente livre, mas controlado pela ordem jurídica, tendo em conta as funções a que
de destina. Por essa razão, a tese da invocabilidade do instituto do abuso do direito consagrado
no artigo 334.º do Código Civil ao exercício das responsabilidades parentais não é pacífica na
doutrina.
Ao invés, só é admitida por aqueles autores que as classificam como direitos subjetivos
stricto sensu(em sentido estrito). Recorde-se aqui a posição defendida por Jorge Miranda(2006,
p. 28-29), segundo a qual, os limites a impor ao exercício das responsabilidades parentais expli-
cam-se pela categoria geral que pode aplicar-se a quaisquer direitos subjetivos – a noção de abu-
so de direito. O autor acolhe a ideia de que todo o direito é conferido para desempenho de uma
função, razão que motiva a sua adesão ao conceito de abuso do direito para as hipóteses em que
os pais, em vez de educarem, pervertem ou deixam perverter a função em razão da qual esse
direito foi concedido – a formação da personalidade do filho e o desenvolvimento da sua própria
personalidade; então, cessarão as razões porque lhes foi reservado o correspondente poder.
Em sentido inverso, Meneses Cordeiro (2011, p. 242), ao deter-se sobre a interpretação
a conferir aos diversos segmentos da norma prevista no artigo 334.º do Código Civil, pronun-
cia-se sobre o entendimento a retirar da locução “fim social ou económico do direito”. Referin-
do-se em detalhe às diversas teorias do abuso do direito(2011, p. 351 e seg.), o autor recusa que
nas teorias funcionais se possa encontrar a chave do abuso. Os direitos podem ser concedidos
com uma certa função – são direitos ou poderes funcionais ou direitos-deveres, mas, quando
tal suceda, as normas em jogo devem ser respeitadas sob pena de ilicitude, não havendo lugar a
abuso – os valores sociais devem ser defendidos, mas com clareza e em face de normas a tanto
dirigidas; não há aqui planos para o abuso (CORDEIRO, 2011, p. 354-355).
Há ainda autores que aproximam os poderes-deveres ou poderes funcionais dos pode-
res discricionários das autoridades administrativas. A liberdade de que goza o titular destes po-
deres-deveres – no caso, as responsabilidades parentais – seria idêntica àquela de que disfrutam
os órgãos da Administração quando, no uso da discricionariedade, escolhem o se, o como ou
o quando da atuação em concreto do interesse público. Falar-se-ia a este respeito de desvio de
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
poder e não de abuso do direito (ABREU, 2006,p. 81). Mas Coutinho De Abreu (2006,p. 82-83)
acaba por concluir que estar-se aqui perante direitos subjetivos, na medida em que podemos ain-
da falar de uma livre disposição, muito embora resulte inegável a menor liberdade de atuação
nos poderes funcionais, do que nos típicos direitos subjetivos. A despeito destas afirmações, re-
cusada a aplicabilidade a estas hipóteses do desvio de poder, o autor acaba também por concluir
pela inaplicabilidade do abuso do direito, ao considerar que, em consonância com a intensidade
dos laços afetivos materno-paterno filiais, são proibidos aos pais determinados comportamen-
tos, podendo decretar-se a inibição do exercício das responsabilidades parentais, quando esses
199
poderes-deveres não possam, ou não sejam, devidamente exercidos – por essa razão, Coutinho
De Abreu(2006,p. 84) rejeita a aplicabilidade da cláusula geral do abuso do direito a este nível
das relações entre o titular do poder funcional e do beneficiário deste, enquanto Castro Mendes
(1979, p. 117) refere explicitamente o abuso do direito a propósito do n.º 2 do artigo 69.º da CRP,
relativo ao exercício abusivo da autoridade na família.
Por fim, ainda será pensável a verificação de uma colisão ou conflito de direitos, em
sentido estrito, quando se puder entender que a Constituição protege simultaneamente os dois
valores ou bens, em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética) (AN-
DRADE, 2012, p. 299). Quando as dimensões dos dois direitos são constitucionalmente prote-
gidas, o aplicador do Direito tem que conferir a ambas proteção jurídica.
No domínio das relações paterno-materno filiais, Vieira De Andrade (2012, p. 299)
interroga-se se deverá punir-se por homicídio um pai que, por convicção religiosa, não permita
a realização de uma transfusão de sangue a um filho menor, indispensável à sua sobrevivência.
“Até que ponto podem os pais dispor da maneira de viver dos filhos?” A solução dos conflitos
e colisões entre direitos, liberdades e garantias não pode ser resolvida sistematicamente através
de uma preferência abstrata, com o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores
constitucionais.
Nas situações de verdadeiros conflitos de direitos, ou seja, na ausência de disposição
legislativa que o preveja e dirima, antecipadamente, lançar-se-á mão, de acordo com a doutrina
constitucional, do princípio da harmonização ou da concordância prática, procurando que o
conteúdo essencial dos direitos em conflito nunca seja afetado e pugnando pela realização má-
xima de cada um desses direitos. Vieira De Andrade (2012, p. 299-300) propõe para estas hipó-
teses de conflitos de direitos a atinência a três fatores, ponderando, num juízo global, em função
de cada um deles, todas as circunstâncias relevantes no caso concreto. Deverá atender-se ao
âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, à natureza do caso,
apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objetivas do facto conflitual;
e finalmente, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções
diferenciadas.
No contexto da intervenção do Estado na violência parental, o problema prende-se
muito mais com a delimitação de limites imanentes e, logo, pelo preenchimento do conteúdo
constitucionalmente protegido do direito, ou princípio fundamental em causa, do que com o
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
conflito de direitos, uma vez que, da exposição precedente, resulta que os princípios constitucio-
nais de Direito da Família e os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição aos pais
não comportam um conteúdo protegido, ou formas de exercício tais, que coloquem em causa os
direitos constitucionalmente reconhecidos à criança. Hipóteses de genuíno conflito de direitos,
a solucionar em face do caso concreto, à luz dos critérios propostos por Vieira De Andrade, são
pouco frequentes.
200
5 FUNDAMENTO DA INTERVENÇÃO: A INTERVENÇÃO DO ESTADO
COMO EXCEÇÃO AO PRINCÍPIO DA NÃO-INGERÊNCIA - REQUISITOS DE
ADMISSIBILIDADE ESPECIFICAMENTE EM SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
PARENTAL
201
inconstitucionalidade por omissão.
A acentuação da privacidade das relações familiares expôs as fragilidades das famí-
lias e recordou a importância da intervenção do Estado, no sentido da proteção dos mais vul-
neráveis. Mas esta intervenção deve reger-se pelo princípio da subsidiariedade. dirigindo-se,
sobretudo, à promoção e à proteção dos direitos destas pessoas mais frágeis. Esta intervenção
estatal deve traduzir-se numa atividade de regulação e fiscalização, mas também de promoção
e facilitação das funções próprias das famílias (RITA LOBO XAVIER, 2010, p. 368).
A intervenção do Estado na família e, particularmente, no problema da violência do-
méstica, deve reger-se por dois princípios fundamentais: a subsidiariedade da intervenção e
a cooperação do Estado com a família. Assim, os problemas derivados das fragilidades das
famílias e das ruturas familiares devem ser encarados nas suas causas e as soluções para os
mesmos devem procurar-se, através de ações que visem regular e prevenir a desagregação fa-
miliar (XAVIER, 2010, p. 370).
O artigo 8.º da CEDH consagra, como vimos, o direito ao respeito pela vida privada e
familiar, estabelecendo o princípio da não-ingerência da autoridade pública no exercício deste
direito, senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que
seja necessária para a proteção da saúde, ou da moral, ou para a proteção dos direitos e das
liberdades de terceiros. Do n.º 2 do artigo 8.º da CEDH decorre a afirmação do princípio da
proporcionalidade – as medidas excecionais aí previstas têm que ser proporcionais.
Por sua vez, o artigo 18.º, n.º 1, da CRP proclama que “Os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam entidades
públicas e privadas”. Sendo entidades públicas, “desde logo, os poderes públicos: o legislador, o
governo/administração, e os Tribunais” (CANOTILHO, 2000, p. 437). Detendo-se mais concre-
tamente sobre a figura do legislador, a vinculação deste assume uma importante dimensão po-
sitiva, que se traduz no dever de o legislador conformar “as relações da vida, as relações entre o
Estado e os cidadãos e as relações entre os indivíduos, segundo as medidas e diretivas materiais
consubstanciadas nas normas garantidoras de direitos, liberdades e garantias. Neste sentido, o
legislador deve “realizar” os direitos, liberdades e garantias, otimizando a sua normatividade e
atualidade.” (CANOTILHO, 2000, p. 438). Dito de outra forma, no domínio concreto da violên-
cia doméstica, incumbe ao legislador adotar as medidas legislativas que tiver por convenientes,
para assegurar a plena realização dos direitos, liberdades e garantias dos membros da família:
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
“Porque ao falar-se de violência doméstica é a dignidade do ser humano que é posta em causa de
forma intensa e, frequentemente, de um modo dramático, cabe ao Estado, em constante articu-
lação com as respostas, válidas mas insuficientes, que têm sido dadas pela sociedade civil, um
papel fundamental na sua identificação, prevenção e combate.” (LOURENÇO; CARVALHO,
2001, p. 101).
O n.º 2 do artigo 18.º da Constituição determina que: “a lei só pode restringir os direitos,
liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
202
protegidos”. Toda a intervenção estatal no domínio da salvaguarda dos direitos fundamentais
das vítimas de violência doméstica, terá que reger-se pelo princípio da proporcionalidade, es-
pelhado em critérios de indispensabilidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.
O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio da proibição do ex-
cesso, desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação ou idoneidade; princípio da
necessidade, exigibilidade ou indispensabilidade e princípio da racionalidade ou proporcio-
nalidade em sentido estrito (CANOTILHO; MOREIRA, 2007, p. 392-393)(MIRANDA, 2012,
p. 308-309).
Pressuposta a legitimidade do fim consignado na norma, a idoneidade ou adequação
traduz-se na existência de um meio adequado à sua prossecução. Perante um bem juridicamente
protegido, a intervenção ou a providência a adotar, seja ela legislativa, ou de outra índole, deve
constituir um meio adequado à prossecução dos fins visados pela lei, que serão, à partida, a
salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos.
Colocada a questão em relação à violência parental, o princípio da proporcionalidade,
nesta vertente, só estará respeitado se a intervenção estatal proposta no caso permitir satisfazer
adequadamente as necessidades de proteção dos direitos fundamentais da criança, violados ou
colocados em risco. De destacar que, a par de violações do princípio por excesso de proteção,
poderão também verificar-se violações por defeito, isto é, derivadas do incumprimento, por par-
te do Estado, de deveres de proteção relativos ao exercício dos direitos fundamentais. Constitui-
rá intervenção violadora do princípio da proporcionalidade, por hipótese, aquela intervenção do
Estado que se traduza no afastamento do filho dos progenitores, após a constatação da inflição
esporádica de castigos corporais de pouca gravidade, sem a prévia tentativa de colaboração com
os pais, no sentido da sua reeducação para a parentalidade, como a não intervenção do Estado,
perante a sinalização de uma situação de maus tratos físicos, ou psicológicos, de gravidade
apreciável, de que venha a decorrer dano para o desenvolvimento da criança.
A necessidade do meio, ou se preferirmos, a exigibilidade ou indispensabilidade, tradu-
z-se na imposição para o Estado de, perante várias soluções em abstrato aplicáveis ao problema
versado, se decidir pela adoção daquela que melhor satisfizer, em concreto, a realização do fim a
atingir, seja por força dos menores custos, ou eventualmente dos maiores benefícios, que aquela
solução possa representar – as medidas devem ser necessárias8, porque os fins visados pela lei
não podiam ser obtidos por outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
8 A noção de necessidade implica a proporcionalidade da ingerência relativamente ao fim visado (ALVES, 2008, p. 215).
203
mejado (MIRANDA, 2012, p. 308).
A intervenção do Estado deverá ser excecional e conformar-se pelos princípios da
necessidade e da proporcionalidade. Mas incumbe ao Estado o direito – e o dever – de intervir,
quando o gozo, ou o exercício de direitos cívicos, sociais, econômicos, ou culturais, de que cada
membro da família é titular, são ameaçados por fatores que lhe são exteriores, como a incúria,
a exclusão social, o abandono, ou os maus tratos (RODRIGUES, 2003, p. 8). No conflito de in-
teresses pais-filhos, prevalecerá o interesse dos filhos (ALVES, 2008, p. 203). No ordenamento
jurídico português, esta afirmação terá que ser entendida cum grano salis (como um grão de
sal), uma vez que a prevalência do superior interesse da criança terá que ser sempre interpretada
em consonância com as regras constitucionalmente vigentes para a resolução de conflitos de
direitos, que não estabelecem prevalência absoluta de nenhum direito fundamental em relação
aos demais.
O artigo 8.º da CEDH impõe às autoridades nacionais o estabelecimento de um justo
equilíbrio entre os interesses da criança e os interesses dos pais e a atribuição de particular re-
levância ao superior interesse dacriança que, de acordo com a natureza e a gravidade do caso,
poderá justificar a prevalência sobre o interesse dos pais (ALVES, 2008, p. 203). Por essa razão,
muito embora se reconheça a importância da convivência em família de pais e filhos, o artigo 8.º
não autoriza, por exemplo, a pretensão do progenitor a que sejam tomadas medidas prejudiciais
à saúde, ou ao desenvolvimento da criança.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em fase do que supra de escreveu, será forçoso concluir-se que a intervenção do Esta-
do no domínio da violência doméstica se encontra internacional e constitucionalmente imposta,
desde que contida dentro dos limites definidos pelos artigos 8.º, n.º 2, da CEDH, e 18.º, n.º 2 da
CRP, designadamente, para a proteção da vida, da integridade física e psíquica, da identidade
pessoal, do livre desenvolvimento da personalidade dos membros da família e do seu desenvol-
vimento integral como pessoa.
É pacífica, na atualidade, a aceitação da necessidade de intervenção do Estado na
família, mas não se confunda intervenção, com intromissão. Numa perspetiva da prática con-
creta, a intervenção é por vezes objeto de “tibieza, de bloqueios e de confusão de conceitos que
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
não são confundíveis: intervenção, que implica a capacidade de decisão oportuna; e invasão, de
que resulta uma intromissão sem decisão oportuna, inútil” (FONSECA 2002, p. 9).
É um direito dos cidadãos que o Estado intervenha, sempre que a segurança, a saúde,
a formação, o desenvolvimento físico, psíquico e emocional, o bem-estar, de um membro da
família estejam em perigo. E nessa perspetiva, a intervenção só deverá verificar-se, quando for
necessária para defender e assegurar os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos
e deverá ser feita de harmonia com os princípios orientadores decorrentes da Constituição e da
Lei.
204
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FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ABSTRACT
Domestic violence is a serious social problem nowadays. The present
work intends to reflect on the State intervention legitimacy, in the con-
jugal and parental violence context, under the light of the current leg-
206
islation inPortuguese legal system, from the affirmation of the nonin-
terference in the family fundamental principle, for the recognition of
safeguarding the inalienable fundamental rights of each member neces-
sity. State intervention is constitutionally imposed, but delimited by the
principles of subsidiarity and proportionality.
Keywords: Domestic violence. State Intervention. Immanent bounda-
ries. Proportionality.
207
Recebido 21/07/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
A discussão sobre o papel do Direito e a economia política no desen-
volvimento econômico é complexa, remetendo à problemática de defi-
nição de desenvolvimento e instituição. As instituições são essenciais
ao desenvolvimento, se impregnando na sociedade por meio do Direito.
O próprio ordenamento jurídico é uma instituição, sendo a mais im-
portante delas uma vez que cria, modifica e extingue outros arranjos
institucionais. A economia política auxilia neste estudo, facilitando o
entendimento das instituições existentes na sociedade em um determi-
nado contexto histórico. É importante em razão da influência que exer-
ce na seara jurídica e nas instituições, sendo um princípio estruturante
do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Desenvolvimento. Direito. Instituições. Eco-
nomia. Sociedade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 INTRODUÇÃO
1 Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP em 2009. Pós Graduado em Direito Empresarial, com ênfase em Planeja-
mento Tributário pela Fundação Getúlio Vargas – GV Law em 2011. Mestre em Direito Econômico, com ênfase em Tributação e Desen-
volvimento Econômico pela Universidade de São Paulo – USP em 2017. Advogado Tributarista em São Paulo, no escritório Gasparini,
De Cresci e Nogueira Lima Advogados.
208
cer, desde logo, a premissa de que o desenvolvimento somente pode ser alcançado se houver a
disponibilização de instituições para toda a sociedade, sendo papel do Direito criar instrumen-
tos que possibilitem esta disponibilidade. Surge, assim, a necessidade de se estudar qual o papel
do ordenamento jurídico no desenvolvimento e a sua relação com a economia política. Para tal,
deve-se analisar o conceito de arranjos institucionais e sua função dentro do desenvolvimento,
uma vez que o próprio Direito é uma instituição.
Essa discussão envolve questões complexas e termos de textura aberta, dificultando a
delimitação de importantes conceitos acerca do assunto. Para auxiliar na presente análise, de-
ve-se socorrer do campo da economia política, o qual, além de possuir importantes reflexos no
Direito e nos arranjos institucionais, facilita a compreensão das instituições e arranjos jurídicos
existentes na sociedade.
Pretende-se analisar até que ponto o ordenamento jurídico é elemento apto a conferir
meios de desenvolvimento ao país, a importância das instituições para tal, bem como a influên-
cia da economia política neste debate. Também serão tecidas considerações acerca do caso do
Brasil, que muito embora tenha conseguido progressos recentes, ainda não conseguiu se livrar
do subdesenvolvimento.
A solução para alterar o referido cenário varia de acordo com as inflexões de economia
política vividas no Brasil, existindo momentos nos quais é defendida maior presença do Estado
na economia, com momentos mais liberais. As alterações de paradigmas criam desafios institu-
cionais em decorrência da necessidade de adaptação ao novo contexto.
Um exemplo é a emergência, no país, do denominado Novo Ativismo Estatal, o qual fez
surgir importantes desafios ao Direito, que terá de repensar os arranjos institucionais existentes
no Brasil, de forma a criar novos e adaptar os existentes para atender essa nova conformação
de economia política.
De acordo com Fábio Nusdeo (2001, p. 349), desenvolvimento é mais do que o simples
crescimento econômico, envolvendo “uma série infindável de modificações de ordem qualitati-
va e quantitativa de tal maneira a conduzir a uma radical mudança de estrutura na economia e
da própria sociedade do país em questão”.
No mesmo sentido, Amartya Sen (2010, p. 16) amplia o conceito de desenvolvimento,
entendendo-o como algo que “requer que se removam as principais fontes de privação da liber-
dade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destruição social sistemática,
negligencias dos serviços públicos e intolerância ou interferência de Estados repressivos”.
209
Não obstante, embora o crescimento econômico possa ser considerado meio de se pro-
mover o desenvolvimento, ambos não podem ser confundidos. Para que um Estado se desenvol-
va, são necessárias alterações estruturais na própria sociedade de sorte que haja uma redução
do mal-estar causado pelo subdesenvolvimento, conferindo-se formas para que todos usufruam
dos bens de consumo e tenham suas necessidades básicas saciadas.
Tomando por base o referido conceito de desenvolvimento, cumpre verificar se há
ou não uma relação com o Direito. Kevin Davis e Michael Trebilcock (2008, p. 4-5) identi-
ficam uma corrente teórica que acredita ser possível a utilização dos arranjos jurídicos para
gerar mudanças estruturais, bem como outra, segundo a qual o Direito, ou é incapaz, ou é
dispensável, na determinação de mudanças estruturais na sociedade. Focar-se-á na primeira,
conhecida como corrente otimista, a qual, segundo Kevin Davis e Michael Trebilcock (2008,
p. 5), é majoritária.
Dentro da referida corrente teórica, chama-se atenção para a análise funcional do or-
denamento jurídico, que tenta compreendê-lo de acordo com sua efetiva ação na sociedade.
Deve-se, assim, buscar a criação e manutenção de uma estrutura jurídica organizada, sendo
esta condição necessária para expansão do capitalismo e crescimento econômico, sendo uma
das principais funções do Direito conferir previsibilidade e segurança jurídica ao mercado,
fundamentais para uma ação conjunta das instituições estatais e organizações privadas em prol
do crescimento econômico que, muito embora não seja o desenvolvimento propriamente dito, é
um dos meios pelo qual deve ser alcançado.
No mesmo sentido, Dani Rodrik, Arnind Subramanian e Francesco Trebbi (2002, p.
22), analisando o desenvolvimento de China e Rússia, concluíram que a diferença verificada en-
tre ambos os países relaciona-se à certeza e à segurança dos investidores em relação à proteção
da propriedade, sendo que o Estado chinês é mais bem sucedido na atração de investimentos,
uma vez que a proteção da propriedade é maior na China do que na Rússia. Não obstante este
entendimento dos autores, destaca-se o alerta de Ha-Joon Chang (2006, p. 8) de que a segurança
da propriedade não deve ser um fim em si mesmo, havendo a necessidade de o Direito determi-
nar em quais circunstâncias e condições haverá esta proteção.
Ainda dentro da corrente otimista, Marina Mota Prado (2010, p. 3) identifica duas
teorias: i) direito no desenvolvimento, a qual possui uma visão instrumental do Direito, sendo
este um meio para viabilizar o desenvolvimento, com enfoque no crescimento econômico, quer
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
por meio de intervenção estatal, quer por meio de uma presença mínima do Estado; e, ii) direito
como desenvolvimento, com uma visão finalística do Direito, com o enfoque maior nos avanços
sociais, os quais devem ser garantidos pelos arranjos jurídicos. Prado (2010, p. 19) destaca que
a principal diferença entre ambas é que, enquanto a primeira entende o desenvolvimento mais
relacionado com o crescimento econômico, a segunda se alinha à teoria de Sen (2010), relacio-
nando desenvolvimento como garantia de liberdades individuais.
Ainda de acordo com Prado (2010, p. 6), deve-se identificar interconectividades entre
as correntes teóricas do Direito no desenvolvimento e do Direito como desenvolvimento, afir-
210
mando que não são excludentes, mas que uma serve como meio para outra. Assim, ao mesmo
tempo em que os arranjos jurídicos podem prover as instituições necessárias para garantir os
objetivos alcançados, podem ser concomitantemente um meio para se alcançar outras metas de
desenvolvimentos, sendo ambas funções complementares.
Conforme destacado por Davis e Trebilcock (2008, p. 11-12), outro enfoque da corrente
teórica em análise acerca de Direito e desenvolvimento relaciona-se com o surgimento da Nova
Economia Institucional, que defende a existência, nos países desenvolvidos, de uma relação pró-
xima entre instituições públicas e organizações privadas, no sentido de serem criados estímulos
para a sociedade. Estes estímulos podem ser no sentido de incentivar atividades produtivas,
bem como distribuição dos ganhos, permitindo acesso da população à riqueza gerada, permi-
tindo o desenvolvimento do Estado. Por outro lado, segundo Douglass North (1995, p. 20), os
países do terceiro mundo não seriam desenvolvidos por não terem logrado êxito em construir
instituições que fossem eficientemente voltadas para a criação destes estímulos produtivos.
Prado (2010, p. 14), embora destaque a importância da teoria institucional no campo
do Direito e desenvolvimento, apresenta algumas críticas à referida teoria, dentre as quais: i)
falta de consenso sobre o conceito de instituição; ii) incapacidade de explicar a existência, em
países desenvolvidos, de instituições ruins. Tais críticas não a tornam menos importante, haja
vista que, como apontado por Davis e Trebilcock (2008, p. 60), há um entendimento crescente
no sentido de que existe uma relação entre instituições e desenvolvimento.
Este debate termina remetendo, invariavelmente, à análise do conceito de instituição
e seu papel dentro do desenvolvimento, pois, conforme será abordado, o próprio Direito é um
arranjo institucional. O Direito é responsável por criar e dar efetividade às demais instituições
da sociedade, já que o ordenamento jurídico é um elemento essencial ao desenvolvimento.
mente, a se estabelecer o seu conceito e se determinar sua relação com o ordenamento jurídico.
Dentro da perspectiva da Nova Economia Institucional, North (1995, p. 23) entende
que “as instituições são limitações comportamentais criadas pela própria sociedade, dentro de
sua estrutura, abrangendo regras formais e restrições informais, bem como os meios de apli-
cação coercitiva de ambos”. Devem ser assim entendidas como as regras do jogo existentes em
determinada sociedade que constrangem o comportamento dos indivíduos, induzindo-os a agir
ou não agir de determinada maneira.
Sob a óptica institucionalista, Geoffrey Hodgson (2006, p. 2) entende que instituições
211
são importantes estruturas da sociedade, responsáveis por disciplinar a vida social, permitindo
ou limitando comportamentos individuais para conferir previsibilidade e estabilidade às ex-
pectativas comportamentais dos indivíduos. Para a teoria de Hodgson, instituições são regras,
incluindo neste conceito as normas jurídicas, normas sociais e organizações.
Destaca-se o fato que, por uma questão de recorde metodológico, optou-se por manter
a objetividade do presente trabalho e não adentrar na crítica que Hodgson (2006) faz à North
(1995) em relação ao conceito deste acerca de instituição, que a diferencia de organização, abar-
cada no entendimento de instituição apresentada por Hodgson (2006). Porém, apenas registra-
-se a existência da referida divergência entre os autores.
Para Hodgson (1998, p. 179-180) “o cerne das instituições são os hábitos, os quais são
o resultado da consolidação de uma conduta usual dos indivíduos, alterada quando há uma
mudança de comportamento”. Ademais, segundo John Harris (2003, p. 347-348), “também de-
vem ser consideradas questões culturais e políticas, uma vez que, por estarem impregnadas no
tecido social, influenciam diretamente no comportamento individual e, consequentemente, nos
arranjos institucionais”.
Verifica-se, assim, que entre instituição e indivíduo há uma relação de retroalimenta-
ção, por meio da qual na medida em que um evolui, influencia mudanças no outro de sorte a
acompanhar esta alteração.
Sob a ótica jurídica, Maurice Hauriou (1925, p. 97-98) conceitua instituições como
formas estáveis de organização da sociedade, correspondendo a fenômenos sociais, impessoais
e coletivos, com elementos de dinamismo e mutabilidade, que se infiltram, por meio do Direito,
no meio social, mas com ele não se confundindo.
Santi Romano (2008, p. 85-86), por sua vez, entende que o Direito é um arranjo ins-
titucional, se enquadrando no conceito por ele apresentado, segundo o qual “instituições são
agências fechadas, existentes em termos concretos e objetivos, constituindo-se como um ele-
mento social detentor de autonomia e separabilidade relativa”. Romano (2008, p. 92-93) traz,
ainda, outro elemento marcante das instituições, que diz respeito à noção de objetivação, a qual
corresponde ao fato de transcenderem, por meio do ordenamento jurídico, às pessoas que as
compõem, sendo independentemente identificáveis.
Portanto, tratam-se as instituições de um fenômeno social, impessoal e coletivo, tendo
o hábito da coletividade como elemento central. É por meio delas que são estabelecidas limi-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tações aos indivíduos por meio de normas jurídicas e sociais, aplicadas coercitivamente, que
estimulam os indivíduos a agir de determinada maneira. Possuem por função disciplinar a vida
social, permitindo ou restringindo ações individuais para conferir previsibilidade e estabilidade
às expectativas comportamentais da sociedade.
Conforme destacado por Hauriou (1925) e por Romano (2008), as instituições se im-
pregnam no corpo social pelo do Direito, sendo por meio deste que ocorre a sua instituciona-
lização e objetivação, configurando-se, o ordenamento jurídico, um elemento de conservação
e mudanças institucionais. É por meio do Direito que os arranjos institucionais são criados,
212
modificados e extintos, configurando-se como a mais importante instituição social.
Pois bem, conforme estudo de Rodrik, Subramanian e Trebbi (2002, p. 4), no âmbito
do desenvolvimento, as instituições preponderam sobre as demais variáveis por eles identifica-
das, quais sejam, geográfica e de integração do comércio internacional. As instituições exer-
cem, conforme bem apontado por Chang (2006, p. 2), três funções principais, na promoção do
desenvolvimento econômico, sendo elas: i) coordenação e administração; ii) aprendizagem e
inovação; e, iii) distribuição de renda e coesão social.
Cabe ao ordenamento jurídico, segundo Rodrik, Subramanian e Trebbi (2002, p. 21-
22), a construção dos arranjos institucionais específicos, de acordo com as vicissitudes ambien-
tais da sociedade, em atenção ao contexto no qual o Estado está inserido. O referido processo
de criação e adaptação das instituições deve se dar por meio de um complexo processo de arti-
culação e balanceamento das formas das instituições e funções que se esperam destes arranjos.
O enfoque dos referidos autores está em linha com a teoria de Roberto Mangabeira
Unger (1996, p. 19), o qual entende “ser tarefa do Direito auxiliar na imaginação institucional,
mapeando e criticando os arranjos institucionais existentes de sorte a reestruturá-los, se neces-
sário for, conferindo-lhes maior eficiência”.
Verifica-se que, a construção dos arranjos institucionais, bem como a manutenção e
eventual extinção de instituições, é um processo complexo, envolvendo todo contexto no qual a
sociedade está envolvida, abrangendo questões históricas, políticas e culturais. As peculiarida-
des de cada país apareceram no processo de imaginação institucional, sendo importante que os
arranjos institucionais sejam desenhados de acordo com as características intrínsecas de cada
país, em respeito ao contexto no qual a sociedade se faz inserida.
Assim, é importante destacar que o Direito não age sozinho, mas em conjunto com
as conformações de economia política existentes em determinado país, que auxiliam o sistema
jurídico na criação, manutenção, aprimoramento ou extinção de outros arranjos institucionais.
213
como: historicidade, distribuição de riquezas, conflito distributivo, democracia, legitimidade e
variabilidade institucional.
Tal empreitada ocorre por meio de análise empírica, realizada segundo as conforma-
ções de economia política vigente, refletindo o contexto no qual a sociedade está inserida. A
partir de tal crítica, por meio do ordenamento jurídico, são formatadas ferramentas para discutir
as condições básicas da vida social, reformando os arranjos institucionais existentes, conferin-
do-lhes maior eficácia, bem como criando ou extinguindo instituições conforme seja necessário.
Para se entender esta relação, cumpre analisar, inicialmente, o conceito de economia
política, o qual parte do pressuposto de que política e economia são indivisíveis, ou seja, as de-
cisões econômicas possuem um viés político, devendo ser analisadas dentro do contexto social.
Este foi a primeiro nome que a ciência econômica teve em sua história, se referindo, nos séculos
XVII e XVIII, à produção, circulação e distribuição de riqueza, não sendo possível dissociar a
economia da política.
A economia política é o campo que busca compreender a realidade econômica em seu
contexto político, social, histórico, geográfico e jurídico. Para Nusdeo (2001, p. 92):
Verifica-se que, em qualquer teoria de economia política, o Estado tem papel central,
tanto para se defender uma maior autuação deste na economia, quanto o contrário, sendo a de-
214
cisão de não intervenção também uma decisão estatal.
Ao analisar a questão, Reitz (2001, p. 1.139-1.140) identifica duas correntes filosóficas
que explicam a concepção do papel do Estado na economia: i) a primeira é baseada na filosofia
de Thomas Hobbes, a qual permite uma interpretação mais abrangente da atuação do Estado;
e, ii) a segunda concepção é a que considera a teoria de John Locke, que interpreta o Estado
como um moderador entre os vários grupos sociais, com uma participação menor na economia.
Segundo a teoria de Reitz, quanto mais centrada a economia política no Estado, como
acontece na França e na Alemanha, maior a valorização, pelo Direito, da burocracia estatal,
havendo maior presença do Estado na economia. Por sua vez, quanto mais focada no mercado
for a economia política, como ocorre nos Estados Unidos, maior a valorização do indivíduo em
detrimento da burocracia estatal, com um Estado regulador menos presente na economia.
O que é possível verificar é que Direito e economia política possuem uma intrínseca
relação de influência mútua, retroalimentando-se mutuamente ao longo do tempo, conforme
o ambiente sócio-político da sociedade se altera. A economia política está equidistante entre
o direito, de um lado, e a economia do outro, sendo possível, através de sua análise, entender
questões concernentes ao ordenamento jurídico de um determinado país.
O ordenamento jurídico é a instituição basilar dos demais arranjos institucionais, os
quais foram juridicamente moldados de acordo com as conformidades da economia política.
Dessa forma, é correto o entendimento de que o Direito é o arranjo institucional necessário
a institucionalizar e objetivar os conceitos do capitalismo, que irão servir de força motriz da
economia do país. Porém, ao fazê-lo, não o realiza de forma independente, mas sim dentro dos
contornos e cenários traçados pela economia política, que lhe servem como princípio estrutu-
rante que delimita seus contornos.
De acordo com Diogo Coutinho e Mario Shapiro (2013, p. 3-4), a economia política ad-
mite que o capitalismo é processo histórico, somente podendo ser analisado através do contexto
no qual a sociedade encontra-se inserida. Segundo essa teoria, em cada época há uma ligação
peculiar entre o papel do Estado e instituições jurídicas dentro de um cenário econômico, de
acordo com as variações peculiares de cada momento.
Portanto, deve-se reconhecer que o capitalismo varia de acordo com aspectos ideo-
lógicos referentes ao mercado e ao Estado, bem como relativos aos arranjos institucionais de
cultura, política, economia e Direito. De tal sorte, não há uma economia política homogênea,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
mas tantas quantas forem os contextos históricos nos quais a sociedade está inserida.
No Brasil, a Constituição de 1988 apresenta diversos dispositivos para regular a ação
estatal na economia, determinando momentos de maior ou menor atuação, bem como elencando
os arranjos institucionais disponíveis para o Estado intervir, direta ou indiretamente, no do-
mínio econômico. Nestas conformações, faz-se presente a economia política, que variaram de
acordo com a evolução do contexto sócio-político da sociedade brasileira.
215
5 O NOVO ATIVISMO ESTATAL DO BRASIL E OS DESAFIOS JURÍDICOS
Ademais, ainda em conformidade com Coutinho, Shapiro e Trubek (2013, p. 7-8), este
modelo é marcado pela experimentação institucional e mudança gradual, caracterizando-se,
fundamentalmente: i) pela continuidade da política macroeconômica neoliberal do governo an-
terior, lastreada na responsabilidade fiscal, taxa de câmbio flutuante e metas de inflação; e, ii)
pela adoção de políticas microeconômicas de indução de crescimento que compensam os efeitos
216
colaterais dessa política de origem neoliberal, tais como política industrial e política social mais
robusta.
Em terceiro lugar, é interessante observar que este novo ativismo estatal brasileiro está
em linha com uma corrente otimista que defende a função instrumental do ordenamento jurídi-
co no desenvolvimento, denominada direito nos Estados em desenvolvimentos, segundo a qual,
de acordo com Prado (2010, p. 6), “para que o Direito possa atingir plenamente o seu mister, é
necessária uma presença estatal no sentido de garantir o desenvolvimento”. A atuação do Esta-
do, assim, é um importante meio de promoção, pelo ordenamento jurídico, do desenvolvimento,
devendo ser realizado para estruturar os arranjos institucionais que os instrumentalizam. Neste
sentido, Chang e Peter Evans (2000, p. 2) afirmam que “o desenvolvimentismo é um clássico
exemplo de como as instituições podem atuar no sentido de promover o desenvolvimento”.
Importante pontuar aqui a análise de Evans (1992, p. 163), a qual entende que a atuação
estatal pode ser determinante para o desenvolvimento do país, como no caso de Japão, Coréia
do Sul e Taiwan, na hipótese de haver uma burocracia eficiente, capaz de criar um ambiente
propício para a conjunção de investimentos externos com os esforços domésticos, buscando
uma parceria entre as instituições e organizações. Por outro lado, Evans (1992, p. 149-150) cita
o modelo do Estado predatório “no qual a atuação estatal gera empecilhos ao desenvolvimento
em razão de uma burocracia corrupta e de arranjos institucionais ineficientes, como é o caso do
Zaire”. Neste Estado, a falta de arranjos institucionais adequados e a existência de uma estru-
tura política e estatal corrupta, voltada exclusivamente aos seus próprios interesses e não aos
da coletividade, levaram o país a uma grave crise econômica e social, causando enormes pro-
blemas humanitários, ou seja, em outras palavras, foram na direção oposta do desenvolvimento
econômico.
De acordo com Evans (1992, p. 166), o Brasil está enquadrado em um terceiro modelo,
composto por países que, não obstante tenham conseguido avanços recentes, ainda encontram
dificuldades para se desenvolver. No caso brasileiro, muito embora tenha se verificado certo
grau de desenvolvimento nos últimos anos, ainda existem problemas institucionais decorrentes
de instrumentos burocráticos sem muita base técnica, ineficientes e com surtos de corrupção.
Tais entraves institucionais afetam a produção, crescimento e distribuição das riquezas, fazendo
com que o desenvolvimento não alcance toda população. Logo, o Brasil não conseguiu estrutu-
rar arranjos institucionais sólidos que possibilitem o desenvolvimento.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Os reflexos destes problemas institucionais, por exemplo, são as altas taxas de juros,
que atravancam o crescimento econômico e o desenvolvimento brasileiro. Nesse sentido, im-
portante destacar o entendimento de Pérsio Árida, Edmar Lisboa Bacha e André Lara-Rezende
(2004, p. 2-3):
muito embora economistas afirmem que as elevadas taxas de juros são explicadas
pela política monetária ortodoxa, metas e ajustes fiscais insuficientes para garantir
um resultado nominal positivo ou subsequentes choques externos e internos que
aumentam a percepção de risco do país no cenário internacional, o principal motivo
217
é a incerteza jurisdicional, que pode ser decomposta: i) no risco do Estado alterar o
valor do contrato antes do momento de sua execução; ii) na hipótese de interpretação
desfavorável ao investidor no caso de judicialização da relação contratual.
218
o desenvolvimento, aperfeiçoando os arranjos institucionais, aumentando a eficiência da buro-
cracia estatal, de sorte a conferir os estímulos necessários ao desenvolvimento.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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ABSTRACT
The discussion on the Law and economic development is complex, cre-
ating the necessity of defining development and institutions. Institutions
are important for development, is embedded in society through Law,
and through this it is the objectification and institutionalization of insti-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
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Recebido 12/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
O presente artigo busca compreender qual é o papel da razão prática
na interpretação rawlsiana de Kant. Para isso, leva em consideração a
maneira pela qual a própria racionalidade prática kantiana repercute no
conceito de razoabilidade em Rawls, no intuito de identificar os distin-
tos estatutos e âmbitos de sua aplicação. Propõe-se, portanto, enten-
der como a racionalidade prática kantiana é aproveitada e reconfigurada
por Rawls à luz da especificidade da proposta teórico-política de “Uma
teoria da justiça”, notadamente no que diz respeito à noção de consenso
sobreposto.
Palavras-chave: Razão Prática. Racionalidade. Razoabilidade.
(John Rawls)
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 INTRODUÇÃO
As sociedades contemporâneas são pautadas pelo dissenso moral, uma vez que o plu-
ralismo de ideias, advindo do ideal democrático, faz com que o Estado não imponha uma con-
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cepção única de bem, excelência humana ou valor moral supremo, cabendo aos seus cidadãos
seguirem seus próprios ideais de vida. Assim, o respeito com relação àqueles que devem ser
considerados como os fins últimos de cada cidadão é uma condição necessária para o bom
funcionamento das instituições políticas, notadamente em uma concepção teórica, liberal e
igualitária.
No intuito de alcançar um conteúdo consensual mínimo que possa pautar essas deci-
sões morais, John Rawls busca encontrar uma determinada configuração de valores que seja
capaz de enfrentar essa problemática. A tal fim, como é notório, Rawls propõe que os indiví-
duos sejam compreendidos, na posição original, como pessoas morais, isto é, agentes livres que,
através do uso de racionalidade, são capazes de identificar princípios aptos à formulação de uma
concepção de justiça.
O projeto de Rawls, portanto, a partir do pressuposto do intrínseco pluralismo moral
que caracteriza as sociedades contemporâneas, propõe-se a dar um passo no intuito de articular
uma perspectiva normativa preferível a outras, a saber, que respeite um rol de questões políticas
que envolvam um desacordo moral.
Na busca dessa determinada configuração de princípios e valores orientadores da socie-
dade, Rawls enfrenta a doutrina utilitarista, a qual julga dominante no campo teórico-político e
amplamente aceita até então. Para isso, ele se debruça em uma interpretação profunda da matriz
kantiana no sentido de buscar um princípio que possa servir de base para a escolha de princípios
e valores, sem, contudo, partir de uma configuração predeterminada do conteúdo normativo.
Em outras palavras, Rawls aproveita a filosofia moral kantiana para retomar uma con-
cepção político-liberal-igualitária, que leve em conta o valor fundamental dos indivíduos como
pessoas racionais, livres e iguais. Assim, a interpretação rawlsiana de Kant adapta, no contexto
de Uma teoria da justiça, algumas formulações teóricas do filosofo prussiano. Nessa senda, o
artigo pretende expor a forma como John Rawls promove essa interpretação dos conceitos kan-
tianos e os adapta à sua teoria, através da reformulação dos conceitos da razão pura prática e da
razão prática empírica, reestruturados como racionalidade e razoabilidade na obra rawlsiana.
2 CONCEITOS FUNDAMENTAIS
que pode ser abordado em uma perspectiva estreitamente política. De acordo com Rawls, é a
estrutura básica da sociedade e de suas instituições que se torna objeto fundamental da análise
da teoria política. Nesse sentido (RAWLS, 2016, p.8) reconhece:
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A estrutura básica da sociedade, portanto, busca encontrar os arranjos sociais funda-
mentais, oriundos de um consenso sobreposto de valores que surge a partir de um acordo origi-
nal, análogo, segundo Rawls, ao pacto social no estado de natureza do contratualismo clássico
(cf. RAWLS, 2016, p.14). É partindo dessa situação hipotética, reconfigurada sob a forma de
posição original, que Rawls pretende chegar a uma determinada configuração de valores fun-
damentais, no intuito de definir os princípios que atribuirão direitos e deveres fundamentais aos
cidadãos, através da formulação de uma concepção de estrutura básica razoavelmente justa ou
equitativa. Faz-se necessário, portanto, que, na determinação de princípios e valores fundamen-
tais, seja minimizado o conflito entre as diversas doutrinas, uma vez que cada cidadão possui
um projeto particular de vida, o que, de certa forma, acabaria por influenciar nas escolhas dos
bens primários e dos próprios princípios de justiça. Nesse sentido, pode-se observar, conforme
o filósofo Kymlicka (2006, p.66) que:
[...]a concepção de justiça é composta de uma ideia central: todos os bens primários
sociais – liberdade e oportunidade, renda e riqueza, e as bases do respeito de si mesmo –
devem ser distribuídos igualmente, a menos que uma distribuição desigual de qualquer
um ou de todos estes bens seja vantajosa para os menos favorecidos.
Dois são os objetivos principais da teoria de Rawls. O primeiro é contrastar sua teoria
com o que ele considera a ideologia prevalecente no que se refere à justiça distributiva, a saber,
o ideal da igualdade de oportunidades. O segundo é a utilização de princípios de justiça basea-
dos em um contrato social hipotético que sirva de fundamento para a definição de princípios de
governo da sociedade. Esse contrato social hipotético, como dito, é chamado de posição original
ou de véu da ignorância.
Contudo, conforme alerta o professor Tredanaro (2017, p.72), não se pode confundir a
posição original como uma situação de absoluta neutralidade, pois:
[...] Rawls sugere a posição original como método para que se possa entrar em acordo
acerca de princípios de justiça válidos em uma sociedade liberal e democrática, sendo
que, desde início, tal objetivo define a própria posição original no que diz respeito às
condições de possibilidade. De outro lado, a caracterização da posição original em tais
termos não deve deixar pensar em uma operação de abstração falha ou incompleta, mas
apenas orientada, pois, como apontamos, a aceitação de determinados pressupostos e
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
condições – isto é, que estejamos nos referindo a seres racionais que mutuamente se
reconhecem como livres e iguais do ponto de vista de sua organização jurídico-política
– não representa senão a delimitação de um contexto do qual a própria concepção da
justiça como equidade não pode prescindir.
224
Os agentes racionais, livres e iguais tentam chegar a uma configuração específica de
princípios e valores capaz de levar em consideração uma concepção política que possa servir de
base à razão pública, na determinação dos elementos essenciais de uma sociedade em que cada
cidadão possa dedicar-se a busca e realizar seu próprio projeto de vida. Nesse aspecto, a coope-
ração e a razoabilidade assumem um papel relevante, a fim de viabilizar concretamente certo
consenso sobreposto acerca de valores políticos básicos. Com isso, Rawls retoma os conceitos
de razão prática pura e da razão prática empírica da obra de Kant e reconstrói esses conceitos
no intuito de adequá-los à sua teoria. De modo particular, Rawls refere-se à Fundamentação da
metafísica dos costumes ressaltando que:
ra da racionalidade em sua acepção calculadora dos meios mais adequados a determinados fins.
As doutrinas teleológicas, neste ponto, são severamente criticadas por Kant, uma vez
que, tendo em vista o fato de que o valor moral que as fundamentam é justamente um fim
predeterminado, como por exemplo, a busca da “felicidade” ou qualquer outro elemento que
as justifique, não levam em consideração a vontade “boa”, e a ação não é deliberada por mero
dever, mas deixa-se levar pelas inclinações. A doutrina moral por excelência conforme Kant
(2009, 169) deveria esvaziar-se de conteúdo e guiar-se a partir de um mandamento da razão pura
à vontade, expresso através do imperativo categórico, pois, somente assim, encontra-se o valor
225
supremo da moralidade.
Neste aspecto, Rawls também enfrenta um problema análogo ao de Kant, uma vez que
há uma predominância das doutrinas que buscam uma determinada configuração específica de
valores, entre elas destaca-se o utilitarismo, o qual apresenta uma concepção de justiça mera e
simplesmente conceituada através da soma de felicidades individuais.
Assim como Kant, Rawls também tem que lutar contra uma concepção teórica popular
amplamente aceita na filosofia política de seu tempo. Rawls busca, então, legitimar a escolha de
determinados princípios normativos que possam orientar a sociedade, sem, contudo, configu-
rarem-se previamente através de um conteúdo valorativo determinado, pois, do contrário, seria
impossível respeitar a convivência entre cidadãos livres e iguais, tanto do ponto de vista moral,
quanto do ponto de vista político. Ou seja, seriam impossíveis arranjos sociais que respeitassem
um razoável pluralismo de valores.
Ao efetuar esse “procedimento de escolha” o filósofo americano busca, com isso, apro-
ximar-se ao máximo do esvaziamento de todo e qualquer conteúdo exterior que possa influen-
ciar no processo de determinação dos princípios de justiça da estrutura básica. Portanto, apesar
da reconstrução do imperativo categórico de Kant como ligado à ideia de razoabilidade, Rawls
é fiel ao espírito do legado kantiano na medida em que considera a razão prática pura, a qual,
expressa através do seu uso público, serve como base para a fundamentação e justificação dos
juízos morais, isto é, de juízos fundamentais acerca dos quais é impossível não chegar, em âm-
bito político, a um consenso sobreposto.
Contudo, no que diz respeito à letra da filosofia kantiana, não se pode deixar de notar
certo salto dado por Rawls, ao conferir ao imperativo categórico uma função essencial em sua
teoria, na medida em que a normatividade categórica é relacionada à razoabilidade, enquanto
em Kant não há rastro dessa noção. Em sua concepção estreitamente política de justiça, Rawls
parece buscar um sentido mais restrito também para o uso da razão pura prática, que manda
categoricamente do ponto de vista moral. Rawls vê nessa ideia um papel político mais espe-
cífico que a razão passa a assumir, como disposição de reconhecer os limites de execução de
princípios práticos que, embora não determinados racionalmente a partir de valores prévios,
só se realizam em determinadas consequências político-sociais, já postas. Por outras palavras,
os princípios de justiça identificados na posição original sob o véu de ignorância, deverão ser
compreendidos como princípios exequíveis em um dado contexto político-social de pluralismo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
de valores substantivos.
Não se pretende, assim, desvalorizar o importante papel que Rawls confere ao véu da
ignorância na definição e escolhas dos princípios, uma vez que o fato de os agentes racionais
não saberem qual posição social irão ocupar e como irão participar da distribuição de bens
permite que eles deliberem de forma a excluir preferências ligadas a valores previamente de-
terminados. Nesse ponto, a racionalidade pura prática é expressa como razoabilidade graças à
possiblidade de que todos exerçam sua faculdade de escolha como sujeitos incondicionados,
isto é, livres e iguais. Nesse sentido, Rawls interpreta Kant: “[...] quando nos sugere testar nossa
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máxima ponderando como as coisas passariam a ser se ela fosse uma lei universal da natureza,
Kant tem de supor que não conhecemos nosso lugar dentro desse sistema natural imaginado”
(RAWLS, 2016, p.166, nota de rodapé).
[...] o racional é uma deia distinta do razoável e se aplica a um agente único e unificado
(quer se trate de um indivíduo ou de uma pessoa jurídica), dotado das faculdades de
julgamento e deliberação, ao buscar realizar fins e interesses que são peculiarmente
seus. O racional aplica-se ao modo como esses fins e interesses são adotados e
promovidos, bem como à forma como são priorizados. Mas os agentes racionais não
se limitam ao cálculo de adequação meios-fins, porque se veem obrigados a avaliar fins
últimos de acordo com o significado que têm para o próprio plano de vida como um
todo e segundo o modo como esses fins se coadunam e se complementam mutuamente.
(RAWLS, 2011, p.60)
derar que todos os sujeitos, pelo fato de serem racionais, decidiriam conforme uma maneira que
levasse em consideração cada outra pessoa, fazendo com que, cada máxima individual pudesse
se tornar universal. Assim, ele reconhece um mandamento da razão, pois tende a identificar um
dever de cooperação. Conforme Tredanaro, “racionalidade das partes e razoabilidades das res-
trições, juntamente, concorrem a especificar os requisitos do raciocínio correto para a escolha
dos princípios que devem regular as instituições básicas de uma sociedade aceita como liberal
e democrática” (2017, p.72).
A racionalidade, apesar de não se confundir com a razoabilidade encontra-se com esta
relacionada, e é um componente da escolha e execução de princípios para uma ideia de socieda-
227
de cujo fim é a cooperação equitativa. A esse respeito é preciso pontuar que os agentes racionais
na posição original não têm uma moral específica visando à cooperação social; trata-se, antes,
apenas da moralidade compreendida kantianamente como razão pura prática que confere aos
agentes racionais a possibilidade de emitirem juízos e se valerem de um senso de justiça. Uma
vez escolhidos os princípios incondicionados orientadores e uma determinada concepção de
justiça embasada nesses princípios, há uma expressão equitativa e cooperativa de valores, que,
por sua vez, passam pelo crivo da razoabilidade, no intuito de chegar a um equilíbrio.
A esse equilíbrio, Rawls denomina como equilíbrio reflexivo, que é a forma pela qual
cada pessoa decide, por meio de uma reflexão racional, aquilo que constitui e define sua própria
concepção de “bem” através de um juízo ponderado, isto é, um sistema de fins que lhe é razoável
procurar. Há uma pressuposição de que a pessoa, ao emitir o juízo, tem a capacidade, a oportuni-
dade e o desejo de chegar a uma decisão correta, e assim também o fazem os outros membros do
grupo, levando em consideração a concepção de “bem” adotada. Juntos, todos os sujeitos morais
de uma sociedade democrática buscam chegar a um consenso de valores reconhecidos por todos,
na tentativa de compatibilizar os princípios escolhidos e os juízos ponderados.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nessas ideias, é perceptível que Rawls atribui ao razoável um sentido mais
restrito e a ele associa, primeiro, a disposição de propor e sujeitar-se a termos equitativos de
cooperação e, segundo, a disposição de reconhecer a necessidade de ponderação do juízo polí-
tico e aceitar suas consequências. Note-se que Rawls deixa claro o fato de que falar de razoa-
bilidade é fazer referência a uma disposição, ao contrário da razão pura prática de Kant, que
consiste em uma verdadeira imposição. Isso é um aspecto crucial na interpretação do conceito
de razoabilidade, uma vez que essa disposição é decorrente do fato de que estão se consideran-
do indivíduos em uma relação social e não isolados. Lembra-se aqui o fato de que sua busca por
uma concepção de justiça é política e não metafísica. Nesse sentido, busca-se uma concepção
de justiça capaz de se amoldar ao paradigma do Estado democrático de direito, que tenha como
fundamento uma perspectiva moral elaborada com vistas a atender as instituições econômicas
e sociais, levando em consideração uma concepção específica de justiça fundada na estrutura
básica. É nesse aspecto que os conceitos de razoabilidade e racionalidade se destacam, pois são
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
condição de possibilidade para a fundamentação dos juízos morais que servirão de base para a
crítica das instituições.
Diante disso, pode-se perceber que os conceitos de razoabilidade e racionalidade são
conceitos práticos, que devem ser analisados no âmbito da ação política, mais precisamente
como formas orientadoras para a estrutura básica da sociedade. Assim, a ideia central de Rawls
é a de articular, de uma forma sistemática, uma teoria pela qual os indivíduos possam conceber
a si próprios como cidadãos de uma sociedade liberal democrática. Para isso, seria essencial
levarem consideração uma determinada configuração de valores políticos razoáveis, a fim de
228
escapar de uma visão substancialista e única do bem, conforme a proposta pelo utilitarismo, no
intuito de fazer conviver diferentes concepções morais no âmbito político.
Ademais, tanto racionalidade quanto razoabilidade são articulações essenciais da ra-
zão pura prática, para que se possa chegar à ideia política fundamental, qual seja, proporcionar
aos cidadãos a capacidade de escolherem princípios de justiça e uma concepção do bem não
substancialista. Deve-se destacar o fato de que, apesar de serem distintas, racionalidade e razoa-
bilidade operam em conjunto, no intuito de fazer com que os sujeitos políticos que deliberam na
esfera pública possam confiar em certo grau de cooperação por partes dos outros, de modo que
todos possam se beneficiar em relação a essas escolhas.
REFERENCIAS
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução de Luís Carlos Borges. São
Paulo: Martins Fontes, 2006.
RAWLS, John.Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica. Lua Nova,
Revista de Cultura e Política. São Paulo,n.25, p.25-59, abr.1992. ISSN 0102-6445. Disponível
em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451992000100003>.
Acesso em: 22/03/2017.
_______, Uma teoria da justiça. 4. ed. Tradução de Jussara Simões. Revisão técnica e da
tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
php?script=sci_arttext&pid=S0100-512X2017000100065&lng=en&nrm=iso>. Acesso em
08/08/2017.
ABSTRACT
The present article seeks to understand the role of practical reason in
Rawlsian interpretation of Kant. For this, it takes into account the way
229
in which Kantian practical rationality itself has repercussions on the
concept of reasonableness in Rawls, in order to identify the different
statutes and scope of its application. It is therefore proposed to under-
stand how Kantian practical rationality is harnessed and reconfigured
by Rawls in the light of the specificity of the theoretical-political pro-
posal of “A Theory of Justice”, notably with regard to the notion of
overlapping consensus.
Keywords: Practical Reason. Rationality. Reasonability.
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Recebido 11/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
O presente artigo tem por escopo realizar breves comentários a respeito
da recente Lei nº 13.460/2017, que dispõe sobre a defesa dos direitos
dos usuários dos serviços públicos. Inicialmente, o estudo parte da exi-
gência constitucional de regulamentação do tema e das circunstâncias
de surgimento da lei. Contextualizado este cenário, serão analisadas
suas principais disposições legais para que, criticamente, verifique-se
até que ponto o diploma legislativo sedimenta, inova ou contradiz os
aspectos defendidos pela doutrina pátria acerca dos serviços públicos.
Palavras-chave: Serviços públicos. Lei nº 13.460/2017. Direitos dos
usuários.
1 INTRODUÇÃO
1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pós-graduando em Direito Público pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
231
em relação aos serviços públicos, ainda que prestados de forma indireta. Mesmo após a exi-
gência de eficiência enquanto garantia constitucional, insculpida no caput do art. 37 da Cons-
tituição Federal de 1988 através da Emenda Constitucional nº 19/1998, a prestação de serviços
públicos muito pouco evoluiu, notadamente em face da existência de mecanismos precários de
controle administrativo.
Assim, a descrença nos serviços estatais deve-se, em parte, à deficitária regulamenta-
ção capaz de garantir direitos básicos e mecanismos de controle a serem utilizados pelos cida-
dãos. Nessa ordem de ideias, buscou-se superar tal fato através da recente Lei nº 13.460/2017,
publicada em 26 de junho de 2017.
A justificativa do presente trabalho decorre da relevância jurídica e social do tema,
tendo em vista a, até então, ausência de legislação garantidora de direitos básicos dos usuários
dos serviços públicos. Justifica-se, ademais, pela amplitude da prestação de tais serviços, que
irradia por toda a sociedade.
Nessa perspectiva, o presente artigo possui como objetivo analisar criticamente as
principais disposições da Lei nº 13.460/2017. De forma específica, buscar-se-á refletir até que
ponto o diploma legislativo sedimenta, inova ou contradiz os aspectos defendidos pela doutrina
pátria acerca dos serviços públicos. Outrossim, também se buscará verificar se a normativa, de
fato, traz mecanismos de proteção aos usuários dos serviços públicos.
Para tanto, será realizada uma breve contextualização sobre o tema a partir de sua exi-
gência constitucional e das circunstâncias que levaram ao surgimento da lei objeto de estudo.
Por fim, serão analisados os principais dispositivos da nova legislação, destacando-se as inova-
ções e sua conformidade com o ordenamento jurídico pátrio.
O texto originário da Constituição Federal de 1988 já previa, em seu art. 1752, a exigên-
cia de edição de lei que dispusesse sobre o direito dos usuários e a obrigação de manutenção de
um serviço público adequado (par. un., inc. II e IV, respectivamente). Não obstante a existência
da Lei nº 8.987/95, aplicável ao regime de permissões e concessões públicas, a regulamentação
dos direitos dos usuários dos serviços públicos prestados de forma direta pelo Estado ainda se
demonstrava carente.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
2 Embora a Constituição Federal de 1988 tenha sido influenciada pela Escola Francesa do Serviço Público, nota-se a adesão a um modelo
misto, fortemente influenciado pelo regime norte-americano das public utilities (utilidades públicas, em tradução literal). A principal
distinção entre estes dois modelos reside na titularidade, pois enquanto no modelo francês o serviço público é titularizado pelo Estado,
no modelo americano as public utilities são de titularidade dos particulares, com limitações estatais decorrentes do poder de polícia.
Dessa forma, em decorrência do caráter historicamente liberal de sua ordem econômica, nos Estados Unidos não existe a categoria
dos serviços públicos tal como conhecida no Brasil. Salvo raras exceções, as atividades são livres aos particulares, mas, em virtude do
relevante interesse público, são submetidas a forte regulação estatal e controles diferenciados. Por conseguinte, ao reconhecer o caráter
econômico dos serviços públicos constantes no art. 175 e subordinar a sua atuação aos princípios da livre iniciativa e da livre concor-
rência, a Constituição Federal de 1988 aproximou os regimes citados, de forma semelhante ao ocorrido no âmbito da União Europeia
(OLIVEIRA, 2011, p. 4-6).
232
da Constituição Federal de 1988, estabelecendo o prazo de 120 (cento e vinte) dias para a edição
de lei que regulasse as formas de participação dos usuários, notadamente em relação às recla-
mações, avaliações periódicas da qualidade dos serviços, acesso aos registros e representação
contra o exercício insatisfatório dos agentes públicos.
Frente a esse cenário, no ano seguinte iniciou-se o trâmite legislativo do Projeto de Lei
do Senado 439/1999, que tinha como objetivo regulamentar a matéria da proteção e defesa dos
usuários dos serviços públicos. Após três anos de tramitação no Senado Federal, o projeto de lei
seguiu para a Câmara dos Deputados como Projeto de Lei 6.953/2002.
Contudo, diante da morosa tramitação do PL, a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB) ingressou, no ano de 2013, com a Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão
(ADO) nº 24, requerendo provimento jurisdicional que determinasse liminarmente a edição
da legislação objeto do estudo. Pleiteou, ainda, em caráter cautelar, que fosse determinada a
aplicação provisória do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos serviços públicos – em
consonância com o entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça3– enquanto
não houvesse a edição da lei.
No mesmo ano, o relator, Ministro Dias Toffoli, deferiu a liminar e fixou o prazo de
120 (cento e vinte) dias para a edição da lei em questão. Entretanto, não autorizou a aplicação
subsidiária e provisória do Código de Defesa do Consumidor.
O Congresso Nacional, no entanto, manteve-se inerte mesmo após a decisão do Supre-
mo Tribunal Federal. Apenas no ano de 2015, treze anos após seu recebimento, a Câmara dos
Deputados aprovou emenda substitutiva global e reenviou o projeto de lei ao Senado Federal, que
aprovou o substitutivo com pequenas alterações no dia 06/06/2017. Finalmente, em 26/06/2017
foi sancionada e publicada a referida norma, tornando-se, então, a Lei nº 13.460/2017.
A Lei nº 13.460/2017 instituiu uma codificação mínima, que dispõe sobre normas ge-
rais acerca dos mecanismos de proteção, defesa e participação dos usuários dos serviços públi-
cos. Não obstante a inércia legislativa diante da necessidade imediata de sua edição, a entrada
em vigor de tal instituto busca garantir respeito e efetividade a um agrupamento mínimo de
direitos dos usuários, indispensáveis para a satisfação de direitos fundamentais.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Nesse viés, o presente estudo passará a discorrer sobre os principais aspectos polêmi-
cos e modernizadores trazidos em seu bojo. Deve-se advertir, inicialmente, que as disposições
da lei não se aplicam imediatamente, de forma que os prestadores de serviço público terão ra-
zoável prazo para adaptarem-se às novas exigências legais.
3 Nesse sentido: SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.659.509/SE. Segunda Turma. Rel. Min. Herman Benjamin. j. 02/05/2017.
DJe 12/05/2017; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt no REsp 1.569.566/MT. Segunda Turma. Rel. Min. Herman Benjamin.
J. 07/03/2017. DJe 27/04/2017; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AREsp 239.416/RJ. Primeira Turma. Rel. Min. Napo-
leão Nunes Maia Filho. j. 26/02/2013. DJe 06/03/2013; SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgRg no AREsp 183.812/SP. Segunda
Turma. Rel. Min. Mauro Campbell Marques. j. 06/11/2012. DJe 12/11/2012.
233
Assim, estabelece o seu art. 25 o período de vacância da lei de 360 (trezentos e ses-
senta) dias para a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios com mais de 500.000
(quinhentos mil) habitantes; 540 (quinhentos e quarenta) dias para os municípios que possuam
entre 100.000 (cem mil) e 500.000 (quinhentos mil) habitantes; e 720 (setecentos e vinte) dias
para os municípios com menos de 100.000 (cem mil) habitantes.
O art. 1º, § 1º, da Lei nº 13.460/2017 estabelece que seu âmbito de aplicação abrange
a Administração Pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios. Todavia, tal dispositivo será aplicado apenas de forma subsidiária em relação aos
serviços públicos prestados por particular.
Vale destacar que o recente regulamento não aponta de modo preciso a quais leis suas
disposições serão aplicadas subsidiariamente. E mais, também não especifica quais particu-
lares estão sujeitos a sua disciplina. Apesar da imprecisão, os particulares aos quais a lei se
refere diz respeito aos concessionários e permissionários, não se destinando aos prestadores
de serviço público não privativo, posto que exploram o serviço em regime de atividade eco-
nômica em sentido estrito.
De outro lado, o art. 2º, inc. III, afirma que Administração Pública é “órgão ou enti-
dade integrante da Administração Pública de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, a Advocacia Pública e a Defensoria Pública”.
À vista disso, verifica-se, inicialmente, a falta de rigor técnico do legislador ao excluir
do conceito de Administração Pública o Ministério Público e o Tribunal de Contas. Por óbvio,
são órgãos que também fazem parte do conceito de Administração Pública proposto pela lei e,
por conseguinte, devem se submeter às suas disposições.
Contudo, o novo diploma não se absteve de conceituar o alcance do serviço público.
Saliente-se que, de acordo com o art. 2º, inciso II, considera-se serviço público a “atividade
administrativa ou de prestação direta ou indireta de bens ou serviços à população, exercida por
órgão ou entidade da Administração Pública”.
Face as asserções apresentadas, este conceito aproxima-se da concepção de serviço pú-
blico proposto pela l’Ècole du Service Publique (Escola do Serviço Público francesa) no início
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
do século XX, que teve em Léon Duguit seu maior exponente4. Na definição de Duguit, serviço
público seria toda e qualquer atividade que vise atender as necessidades coletivas. Em outras
palavras, seriam as atividades cujo cumprimento deve ser assegurado, regulado e controlado
4 Costuma-se afirmar que a noção de serviço público surgiu na França após a Revolução Francesa, cujo marco inicial ocorreu com o caso
Blanco. Neste caso, foi requerida indenização em razão do atropelamento da menina Agnés Blanco por um vagão da Cia. Nacional do
Fumo, entidade integrante da Administração Pública francesa. Dessa forma, suscitou-se, durante o curso do processo, conflito de atri-
buição entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo perante o Tribunal de Conflitos, o qual decidiu pela competência da ju-
risdição administrativa decorrente da responsabilidade pela prestação de serviço público (GROTTI, 2003, p. 27-28). Acórdão disponível
em: <http://www.conseil-etat.fr/Decisions-Avis-Publications/Decisions/Les-decisions-les-plus-importantes-du-Conseil-d-Etat/Tribu-
nal-des-conflits-8-fevrier-1873-Blanco> e <https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriAdmin.do?idTexte=CETATEXT000007605886>.
Acesso em: 23 out. 2017.
234
pelo Estado, porquanto seriam indispensáveis ao desenvolvimento social e deveriam, por isto,
ser por este prestadas. O Estado seria, então, uma cooperação de serviços públicos a ser contro-
lado e organizado pelos governantes (DUGUIT citado por PEREIRA, 2002, p. 2).
O dispositivo deixa clara a intenção do legislador de excluir do seu âmbito de aplicação
as Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OS-
CIP) e as Organizações da Sociedade Civil (OSC). Em que pese a atuação em cooperação com
Poder Público para a consecução de finalidades públicas, tratam-se de entidades não integrantes
da Administração Pública e, portanto, não sujeitas às disposições da lei em comento.
Ao avançar nas disposições preliminares, o art. 4º da Lei nº 13.460/2017 elenca o rol
de princípios a serem observados na prestação dos serviços públicos e no atendimento aos
usuários: regularidade, continuidade, efetividade, segurança, atualidade, generalidade, trans-
parência e cortesia.
Em apertada síntese, pode-se dizer que a regularidade determina que os serviços pú-
blicos sejam prestados de acordo com padrões de qualidade e quantidade impostos pela Ad-
ministração Pública; a continuidade implica que os serviços devem possuir caráter contínuo,
sucessivo e sem interrupções capazes de prejudicar os usuários; a segurança, ao seu turno, diz
respeito à observância de normas que não coloquem em risco os usuários do serviço público,
terceiros e, ainda, bens públicos e particulares; a atualidade envolve a ideia de que a prestação
dos serviços públicos deve acompanhar as técnicas modernas de oferecimento aos usuários; a
generalidade impõe o dever de oferecer o serviço público de forma isonômica, sem quaisquer
discriminações; já a transparência refere-se à ampla publicidade dos procedimentos adotados
na prestação do serviço, fundamental para o exercício do controle por parte dos usuários; em
última instância, a cortesia, afinal, vincula à Administração Pública a função de oferecer um
tratamento urbano e cortês a todos os usuários, haja vista que a prestação não é um dever (GAS-
PARINI, 2008, p. 301-303).
Interessante notar que o legislador optou por fazer menção expressa ao princípio da
efetividade, e não da eficiência – previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal de 1988
– ou da eficácia. Neste ponto, houve inclinação efetiva do legislador no sentido de valorizar em
que medida os resultados da prestação dos serviços públicos trazem benefício à coletividade. A
noção de efetividade, segundo Marcelo Douglas de Figueiredo Torres (2004, p. 175):
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
É o mais complexo dos três conceitos, em que a preocupação central é averiguar a real
necessidade e oportunidade de determinadas ações estatais, deixando claro que setores
são beneficiados e em detrimento de que outros atores sociais. Essa averiguação da
necessidade e oportunidade deve ser a mais democrática, transparente e responsável
possível, buscando sintonizar e sensibilizara população para a implementação das
políticas públicas. Este conceito não se relaciona estritamente com a ideia de eficiência,
que tem uma conotação econômica muito forte, haja vista que nada mais impróprio
para a administração pública do que fazer com eficiência o que simplesmente não
precisa ser feito.
235
Ademais, o legislador perdeu importante oportunidade para inserir o princípio da mo-
dicidade de forma expressa na lei6. A ideia do princípio da modicidade é de que a tarifa ou a taxa
5
a ser paga pelos usuários dos serviços corresponda à “menor tarifa em face do custo e do menor
custo em face da adequação do serviço”, nas palavras de Marçal Justen Filho (2003, p. 308).
O respeito à modicidade representa uma vedação à instituição de tarifas que onerem
excessivamente os usuários do serviço público. Ou seja, a remuneração pela prestação dos ser-
viços públicos deve ser proporcional ao custo do respectivo serviço, visto que, salvo raras ex-
ceções7, é plenamente possível a cobrança de contraprestação pecuniária dos serviços públicos.
De mais a mais, o § 2º do art. 1º traz normas de integração legislativa. Os inc. I e II
determinam que a aplicação da Lei nº 13.460/2017 não afasta o cumprimento do disposto em
normas específicas, quando se tratar de serviço ou atividade sujeitos a regulação ou supervisão,
ou o disposto no Código de Defesa do Consumidor, quando caracterizada relação de consumo.
A sua primeira parte trata-se de previsão sem teor semântico inovador, visto que todo e qual-
quer serviço público, ainda que prestado por particulares, está sujeito a normas regulamentares
ou regulatórias, as quais não seriam afastadas em decorrência da nova legislação, que possui
caráter geral.
Entretanto, o novo diploma silencia quanto ao modo de integração entre a Lei nº
13.460/2017 e o Código de Defesa do Consumidor de forma a surgir a seguinte indagação: qual
norma seria utilizada subsidiariamente? A resposta a essa pergunta, pelo menos em uma análise
inicial, dependerá da espécie de relação tratada. Caso estejam presentes os requisitos da relação
de consumo na prestação do serviço público, a Lei nº 13.460/2017 será aplicada subsidiariamente;
se inexistentes, o Código de Defesa do Consumidor deve ser aplicado subsidiariamente – em cir-
cunstância de compatibilidade – e apenas para garantir maior amplitude aos direitos dos usuários.
Destarte, o acesso do usuário às informações deve obedecer aos procedimentos pre-
vistos na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), em conformidade com o art. 2º, par.
un., da Lei nº 13.460/2017.
melhante a constante na lei de concessões de serviços públicos, determina que os usuários têm
direito à prestação do serviço de forma adequada, embora não estabeleça o conteúdo jurídico
do termo adequação.
Dentre os quinze incisos que estabelecem diretrizes para a prestação dos serviços pú-
5 O termo “modicidade” deriva do latim modicus, que significa algo que se opõe à exorbitância, ou seja, moderado, parco, proporcional
ou reduzido (SILVA, 2014, p. 928).
6 O princípio da modicidade encontra previsão expressa no art. 6º, §1º, da lei de concessão de serviços públicos (Lei nº 8.987/2995).
7 Apresenta-se, como exemplos, a gratuidade dos serviços públicos de ensino em estabelecimentos oficiais (CF/88, art. 206, inc. IV) e do
transporte coletivo urbano aos idosos (CF/88, art. 230, § 2º).
236
blicos, alguns pontos merecem destaque.
O inc. III traz importante disposição que busca dar efetividade ao princípio da isono-
mia, visto que garante a ordem cronológica de atendimento dos usuários, ressalvados os casos
de urgência, de possibilidade de agendamento e de prioridades legais (gestantes, idosos, defi-
cientes, dentre outros).
Sem dúvida, mais uma vez o legislador perdeu a oportunidade de proporcionar máxi-
ma efetividade ao princípio da isonomia, tendo em vista que, para além do mero atendimento,
deveria ser assegurada aos usuários dos serviços públicos a garantia da observância da or-
dem cronológica em relação aos pleitos formulados perante o responsável pelo serviço público,
de modo semelhante à sistemática constante no art. 12 do Código de Processo Civil (Lei nº
13.105/2015).
Outrossim, a análise conjunta dos inc. IX, XI, XIII e XIV demonstra a intenção do le-
gislador de emprestar maior carga de informalidade às relações com os usuários. Dessa forma, a
autenticação de documentos deverá ser realizada pelo próprio agente público diante da apresen-
tação dos originais pelo usuário. Ademais, é vedada a exigência de reconhecimento de firma,
exceto quando houver dúvida de autenticidade, procedimentos que possuem igual previsão no
art. 22 da Lei de Processo Administrativo Federal (Lei nº 9.784/1999).
Além disso, na prestação dos serviços públicos devem ser eliminadas as formalidades
e exigências cujo custo econômico ou social seja superior ao risco envolvido (inc. XI). Do mes-
mo modo, devem ser aplicados mecanismos tecnológicos que visem a simplificação de proces-
sos e procedimentos de atendimento aos usuários (inc. XIII), utilizando-se linguagem simples e
compreensível8 e abstendo-se de usar siglas, jargões e estrangeirismos (inc. XIV)9.
Sob outra perspectiva, a Lei nº 13.460/2017, em seu art. 7º, impõe o dever de divulga-
ção de Carta de Serviços ao usuário por parte de órgãos e entidades. Trata-se, na verdade, de
mera reprodução do antigo art. 11 do Decreto nº 6.932/2009, aplicável apenas no âmbito do Po-
der Executivo Federal e em vigor na data de publicação da lei. Contudo, em 17 de julho de 2017,
foi publicado o Decreto nº 9.094, que revogou por completo o Decreto nº 6.932/2009, embora
ainda se verifique o elevado grau de similitude com o diploma legal em análise.
Segundo o dispositivo, a Carta de Serviços ao Usuário diz respeito a uma espécie de
cartilha que terá como objetivo trazer informações claras, precisas e sucintas sobre os serviços
prestados; forma e requisitos de acesso; prazos e forma de prestação do serviço; formas de apre-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
8 Insta asseverar que a necessidade de linguagem simples, clara e compreensível já possuía previsão semelhante no Código de Defesa do
Consumidor enquanto direito básico do consumidor (art. 6º, inc.III).
9 No âmbito do Poder Executivo federal, os usuários poderão utilizar-se do mecanismo de Solicitação de Simplificação, que consiste na
utilização do formulário Simplifique! para a proposição de melhorias na prestação do serviço (Decreto nº 9.094/2017, arts. 13 e 14).
237
Entretanto, ao contrário do disposto no art. 18 do Decreto nº 9.094/201710, a lei determina a sua
publicação unicamente no sítio eletrônico do órgão ou entidade (art. 7º, § 4º). Sob o espectro
dos destinatários dos serviços, tal previsão representa elevado grau de segregação, incompatível
com a análise sistemática da norma e com os princípios reitores da atividade administrativa, pois
impõe barreiras físicas, financeiras e informacionais ao amplo acesso à informação.
10 De acordo com o aludido diploma, a Carta de Serviços ao Usuário deverá ser divulgada permanentemente aos usuários dos serviços
públicos e disponibilizados nos locais de atendimento, nos portais institucionais na internet e no Portal de Serviços do Governo Federal,
disponível no sítio eletrônico www.servicos.gov.br.
11 De acordo com Rubens Pinto Lyra, a primeira concepção de ouvidoria remete ao século XIX, na Suécia, com a figura do ombudsman,
que significa representante do cidadão, o qual deveria atuar como conexão entre o povo e qualquer instituição estatal (2010, p. 19-51).
238
mo, informações acerca do número e motivos de manifestações, análise de pontos recorrentes e
providências tomadas pela Administração Pública (art. 15, inc. I a IV).
De mais a mais, buscou o art. 16 estabelecer limites temporais para a prolação de de-
cisão administrativa final, a qual deve ocorrer no prazo de trinta dias, prorrogável uma vez por
igual período, mediante justificativa. Ao contrário do disposto no art. 49 da Lei nº 9.784/1999,
considera-se como termo inicial de contagem do prazo o dia da efetiva provocação do usuário, e
não a data de finalização da instrução. Acertadamente, visou o legislador imprimir maior celeri-
dade à apreciação dos pleitos dos usuários, que não precisarão aguardar o término da instrução
para a contagem de prazo.
Desse modo, o direito de manifestação dos usuários e a possibilidade de instituição
de ouvidorias harmonizam-se com os princípios da motivação e do controle. De acordo com
o primeiro, aqueles que prestam serviço público possuem o dever de fundamentar satisfatoria-
mente todas as decisões relacionadas à prestação do serviço; o segundo, por sua vez, determina
o conjunto de mecanismos necessários para a fiscalização e revisão da atividade administrativa.
12 De acordo com Guillermo Gassman: “Hoje, num contexto de pluralismo político, e diante de acontecimentos nacionais e internacionais
que parecem reforçar a necessidade de consideração da opinião diretamente expressada pelas populações administradas, o conceito de
democracia aproxima-se da busca de ‘um consenso mais amplo sobre a escolha de políticas públicas’ mais que do simples ‘consenso
na escolha de pessoas’ (representantes), aproximando-se de um caráter substancial. Trata-se do reforço da legitimidade na atuação do
Estado, reduzindo a conflito e ampliando a aceitação social das normas (sejam abstratas ou concretas).” (2016, p. 105)
13 O sistema de conselho de usuários já era utilizado por alguns prestadores de serviço público, principalmente concessionários. Cite-se,
por exemplo, a Resolução da Agência Nacional de Telecomunicações (ANEEL) nº 623, de 18 de outubro de 2013 – que revogou a Re-
solução nº 490, de 24 de janeiro de 2008. Em seu art. 4º, determina a implantação de conselhos de usuários em cada uma das regiões do
país por parte das prestadoras de serviços de telecomunicações.
239
aberto ao público, considerando-se as espécies classes representadas (art. 19).
Atente-se ao fato de que a participação dos usuários será considerada serviço relevante
e, por consequência, não haverá contraprestação pecuniária ou qualquer espécie de vínculo con-
tratual. Considerando-se tal característica, não se esquivou o legislador em estabelecer disposi-
tivo de acautelamento para impedir que demandas judiciais sejam propostas com a finalidade de
reconhecer vínculo laboral e o consequente pagamento de parcelas remuneratórias.
A fim de evitar a ineficácia dos conselhos de usuários, as regulamentações a serem
editadas devem garantir a concreta participação dos usuários, considerando-se as dimensões do
território abrangido pelo serviço público. Sendo assim, serviços prestados nacionalmente ou em
grandes estados ou municípios devem possuir mais de um conselho e observar a distribuição
regional e/ou local dos usuários.
Finalmente, o art. 20 abre a possibilidade de consulta do conselho de usuários quanto
à indicação do ouvidor. Todavia, a legislação permanece silente quanto ao seu procedimento de
escolha, o que demonstra, mais uma vez, a necessidade de edição de normas regulamentares
capazes de suprir estas lacunas da lei.
240
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
JUSTEN FILHO, Marçal. Teoria geral das concessões de serviço público. São Paulo:
Dialética, 2003.
LYRA, Rubens Pinto (Org.). Ouvidorias e Ministério Público. As duas faces do ombudsman
241
no Brasil.João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2010.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo:
Malheiros, 2015.
PEREIRA, Marcelo. A escola do serviço público. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ –
Centro de Atualização Jurídica, n. 11, fev. 2002. Disponível em: <http://www.direitopublico.
com.br>. Acesso em: 01 ago. 2017.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 31. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
ABSTRACT
The purpose of this article is to make brief comments on the recent
Law n. 13.460/2017, which deals with the defense of the rights of users
of public services. Initially, the study starts from the constitutional re-
quirement of regulation of the subject and the circumstances of the law’s
appearance. In the context of this scenario, its main legal provisions will
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
242
Recebido 06/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
O presente trabalho se propõe a uma análise do processo judicial ele-
trônico e suas implicações dentro de um escopo principiológico e práti-
co. Serão analisados os princípios aplicados ao processo judicial e com
isso uma reflexão sobre a consecução dos objetivos pretendidos com a
mudança. Para a realização do estudo, utilizou-se metodologia quali-
tativa, com revisão bibliográfica. Concluiu-se que o processo judicial
eletrônico segue uma tendência mundial da informatização e facilitação
ao acesso, mas ainda existem algumas lacunas que precisam de ajuste
para que os princípios que orientam o processo judicial eletrônico atin-
jam sua concretização.
Palavras-chave: Princípios processuais. Processo judicial eletrônico.
Informatização judicial. Tramitação eletrônica.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 INTRODUÇÃO
A informatização do direito processual teve como marco inicial a Lei n° 8.245/91, que
inseriu em seu artigo 58, inciso IV, a possibilidade de citar, intimar ou notificar por meio de
“telex ou fac-símile” as partes. Posteriormente, houve grande desenvolvimento das ferramentas
1 Advogada e docente. Mestra em estudos urbanos e regionais e doutoranda em arquitetura e urbanismo, ambos pela UFRN. Membro da
Comissão de direito ambiental da OAB RN. Pesquisadora do grupo de pesquisa Estúdio Conceito.
2 Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
243
digitais que culminou com a edição da Lei nº 11.419/06, que disciplina as regras gerais do pro-
cesso eletrônico, buscando permitir o exercício dos direitos fundamentais, também chamados
princípios, do devido processo legal e do acesso à justiça.
Com a abertura do Judiciário à informatização, diversos sistemas eletrônicos foram
desenvolvidos, o que passou a dificultar a uniformização do acesso e utilização do processo ele-
trônico, de modo que, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça implantou o Processo Judicial
Eletrônico, sistema-chave que deve ser implantado em todos os Tribunais até 2018 (artigo 34,
§3º da Resolução nº 185/2013).
Não obstante as transformações positivas ocorridas com a implantação do processo
eletrônico, o qual contribui para a concretização dos princípios da celeridade e economia pro-
cessual, da publicidade, do acesso à justiça e do devido processo legal, há ainda muitos entraves
no que tange sua exclusiva utilização na tramitação processual, surgindo diversas críticas dos
profissionais em razão das instabilidades, falhas e insegurança jurídica observadas.
Desse modo, como o processo eletrônico, da mesma forma que o processo físico, toma
como lastro os princípios elencados na Constituição Federal e no Código de Processo Civil,
busca-se, por meio de pesquisa qualitativa calcada em revisão bibliográfica, analisar a concre-
tização dos princípios informadores do processo civil com a utilização do Processo Judicial
Eletrônico, verificando os benefícios e as dificuldades dos operadores no cotidiano forense.
Segundo Cappelletti e Garth (1988, p.31), a recente preocupação com o efetivo acesso
à justiça deu origem a três ondas de transformações: a) assistência jurídica aos necessitados:
concessão da assistência judiciária gratuita para aqueles que não têm condições de arcar com
as custas processuais; b) representação jurídica para os interesses difusos, mormente nas áreas
do consumidor e do meio ambiente; c) enfoque no acesso à justiça, no qual pode se encaixar o
processo eletrônico.
O processo brasileiro vem, no decorrer dos anos, sofrendo diversas mudanças de modo
a facilitar o acesso à justiça pela sociedade, e, consequentemente, concretizar os princípios
processuais constitucionais e infraconstitucionais que estruturam o ordenamento pátrio. O foco
é simples: dar maior celeridade à tramitação processual, garantindo o devido processo legal
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
(MAHLMEISTER, [20--].
Nessa onda revolucionária, diversas leis foram promulgadas paulatinamente, introdu-
zindo na processualística brasileira os mecanismos eletrônicos postos à disposição da popula-
ção com a Era da Computação, como a Lei nº 8.245/1991 e a Lei nº 9.800/99, as quais represen-
tam os primeiros passos que culminaram no atual processo judicial eletrônico, regulado pela
Lei nº 11.419/2006.
Antes da Lei nº 11. 419 de 19 de dezembro de 2006, diante da lentidão quase intranspo-
nível do Judiciário, foi promulgada a Lei nº 8.245 de 18 de outubro de 1991, a qual dispõe sobre
244
locação de imóveis urbanos e os procedimentos inerentes. Tal diploma previu, no artigo 58, in-
ciso IV, que, desde que autorizado no contrato de locação, “a citação, intimação ou notificação
far-se-á mediante correspondência com aviso de recebimento, ou, tratando-se de pessoa jurídica
ou firma individual, também mediante telex ou fac-símile [...]” (REZENDE, 2016).
Posteriormente, em 26 de maio de 1999, foi promulgada a Lei nº 9.800, que permitiu
às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais,
dispondo que tal não prejudicaria o cumprimento dos prazos, posto que as partes deveriam
deixar os originais das peças em cinco (05) dias em Juízo (artigo 2º). A lei também previa a
responsabilidade das partes sobre os documentos enviados, bem como pela entrega em modo
físico (artigo 4º) (REZENDE, 2016).
Importante ressaltar a inovação trazida pela Lei nº 10.259 de 12 de julho de 2001, a
qual instituiu os Juizados Especiais Federais, que em seu artigo 8º, §2º, prevê que os Tribunais
poderão organizar o serviço de intimação das partes e recebimento das petições de forma ele-
trônica, dando mais um passo em direção à informatização do processo brasileiro.
Nessa mesma sintonia, em dezembro de 2004, o Tribunal Regional Federal da 5ª Re-
gião implantou o Sistema Digital dos Juizados Especiais (CRETA), por meio da Resolução nº
19 de 15 de setembro de 2004 (SILVA, 2017). Tal sistema é gratuito, não exigindo a utilização
de certificado digital, apenas o acesso à internet, e até hoje é utilizado pela Justiça Federal, no
que toca aos Juizados Especiais.
Com a Lei nº 11.419 de 19 de dezembro de 2006, houve grande revolução no orde-
namento jurídico brasileiro, possibilitando a implementação do Processo Judicial Eletrônico
(PJE), assim como o Processo Judicial Digital (PROJUDI), este último exclusivo ao âmbito dos
Juizados Especiais Cíveis e Criminais (REZENDE, 2016).
O processo judicial eletrônico, como se observa, foi introduzido com moderação no
ordenamento jurídico brasileiro, buscando concretizar o princípio da tutela jurisdicional satisfa-
tiva, por meio de técnicas e tecnologias mais acessíveis, e que proporcionassem mais segurança
e agilidade à tramitação processual. Atualmente, há diversos mecanismos, formas e meios de
acesso, os quais serão mais discutidos nos tópicos seguintes.
2015
245
maneciam, embora as partes devessem se adequar às normas técnicas que passaram a regular a
prática do ato processual no (novo) meio digital.
Vale salientar que em seu artigo 18, a Lei do Processo Eletrônico permite aos órgãos do
Poder Judiciário regulamentá-la no âmbito das suas respectivas competências, o que na prática
oportunizou aos Tribunais a, por meio de portarias, resoluções, criarem sistemas eletrônicos
diferentes e, muitas vezes, incompatíveis entre si (CORDEIRO e BORGES, 2014).
Não por outro motivo, o Conselho Nacional de Justiça passou a coordenar a implemen-
tação dos sistemas processuais eletrônicos, na tentativa de reunir num único sistema todos os
mecanismos, tendo lançado em 2011, junto a diversos Tribunais, o Processo Judicial Eletrônico,
sucessor do PROJUDI, antes utilizado em 19 Estados da Federação (CORDEIRO e BORGES,
2014).
Num primeiro momento, o sistema foi instalado na subseção judiciária de Natal/RN,
em abril de 2010, e depois em outros órgãos do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Em
dezembro do mesmo ano, o sistema foi introduzido no Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
O intuito do Conselho Nacional de Justiça era que, com a implantação de um sistema único e
gratuito, todos os profissionais do direito pudessem acompanhar o andamento processual com
mais celeridade e facilidade, adequando-o às suas necessidades e contribuindo com necessárias
mudanças e melhorias (CORDEIRO e BORGES, 2014).
Efetivamente, a Resolução nº 185/2013, a qual institui o PJE, dispõe em seu artigo 35
que o Tribunal ou Conselho deve divulgar o cronograma de execução do sistema nos órgãos jul-
gadores, demonstrando a necessidade de adesão pelo Poder Judiciário brasileiro como um todo
para a melhoria da prestação jurisdicional, embora ainda haja dificuldade na implementação
em Comarcas do interior, sendo mais comum a utilização nas capitais e região metropolitana.
Com as transformações trazidas pela Lei nº 11.419/06 no processo judicial, acentuou-
-se a necessidade de adaptação do Código de Processo Civil às novas estruturas do trâmite
processual. Por isso, o novo Código de Processo Civil, promulgado em 2015, trouxe algumas
novidades no tocante ao processo eletrônico, apesar de não tanto quanto se esperava, a fim de
conferir maior celeridade e garantir o acesso à justiça.
O artigo 229, §2º preleciona que, caso o processo seja eletrônico, não se aplicará o
prazo em dobro aos litisconsortes com advogados distintos, vez que o acesso aos autos é simul-
tâneo. Os artigos 236, §3º, 453, §1º e 461, §2º dispõem sobre a possibilidade de realização de au-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
diências por videoconferência, ou qualquer outro meio de transmissão em tempo real, podendo,
inclusive, testemunhas serem ouvidas por esse meio, se residentes em Comarca diferente da que
tramita o processo (SILVA, 2017).
Os artigos 246, V, 477, § 4º, 513, § 11º, III e 1.019, III preveem a possibilidade de cita-
ção e intimação das partes por meio eletrônico, e como a contagem do prazo processual se dará.
O artigo 246, §§1º e 2º estabelece a necessidade das empresas públicas e privadas se cadastra-
rem no PJE para que possam receber as citações e intimações mais facilmente, sendo facultativo
para as empresas de pequeno porte e microempresários (SILVA, 2017).
246
Logo, percebe-se que a tendência atual é de informatização do processo judicial, com
a busca por mecanismos que cada vez mais simplifiquem o trâmite processual para garantir o
devido processo legal, e contornar as deficiências na prestação da tutela jurisdicional, em razão
da demora, da dificuldade de publicização, e da estrutura deficitária do Judiciário, a qual não
acompanha as mudanças sociais.
O inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que ninguém será privado de
seus bens ou da sua liberdade sem o devido processo legal. O processo deve estar de acordo não
só com a lei, mas com o direito como um todo, de modo que são incluídos os princípios, normas
que estruturam o ordenamento jurídico (DIDIER JÚNIOR, 2015).
No decorrer do tempo, diversos princípios foram se agregando ao devido processo
legal, como forma de conferir substância nas particularidades de aplicação desse último. As-
sim, o direito ao contraditório, ampla defesa, publicidade, celeridade processual, decorrem da
garantia máxima do devido processo legal, direito fundamental de todos os cidadãos (DIDIER
JÚNIOR, 2015).
Logo, não obstante ser recente, o processo eletrônico, assim como o processo físico,
tem suporte numa gama de princípios, legitimando-o e orientando o seu desenvolvimento. Os
princípios processuais clássicos, os quais já norteavam o processo físico, passaram a se amoldar
ao processo eletrônico, devido às mudanças que foram introduzidas e a necessidade de novas
balizas para garantir a segurança jurídica às partes (CORDEIRO e BORGES, 2014).
Entre os princípios que dão suporte ao processo eletrônico, pode-se citar: o acesso à
justiça, devido processo legal, razoável duração do processo/celeridade, economia processual, e
publicidade, os quais serão delineados nas próximas seções.
4.1Acesso à justiça
247
A primeira Constituição Federal a prever o direito de amplo acesso ao Poder Judiciário
foi a de 1946, sendo um dos pilares que estruturam a própria razão de ser do sistema jurídico. O
Judiciário, como um dos três Poderes, na clássica disposição de Montesquieu3, é um dos atores
responsáveis pela efetivação das prescrições da Constituição, devendo, assim, ser garantido aos
cidadãos o direito de ação, de petição, e de defesa (TAVARES, 2015).
Dessa forma, o processo eletrônico busca garantir o pleno acesso ao Judiciário, faci-
litando a postulação dos interesses em juízo e a redução das custas do processo, ampliando a
participação para aqueles que não possuem recursos financeiros suficientes se encartados na
realidade dos processos físicos (CORDEIRO e BORGES, 2014).
O princípio do devido processo legal, como já se afirmou, está encartado no artigo 5º,
inciso LIV da Constituição Federal. Tal princípio transparece a garantia concedida às partes
para se utilizar de todos os meios jurídicos possíveis, de modo que haja a paridade de armas dos
envolvidos, sendo garantido pelo Estado a higidez na tramitação processual (TAVARES, 2015).
O devido processo legal, portanto, é uma garantia do desenvolvimento do processo
conforme as normas já estabelecidas, retirando do arbítrio do julgador ou das partes a decisão
sobre como irá proceder o andamento do litígio. Esse princípio garante o direito, dito funda-
mental, ao processo justo, efetivo, e devido, com observância não só da lei, mas do ordenamento
jurídico (CORDEIRO e BORGES, 2014).
Segundo Puerari e Isaia (2012), “a Convenção Americana de Direitos Humanos é um
dos principais diplomas em defesa do devido processo legal.”, em cujo artigo 8º é garantido o
direito de ser ouvido, com as devidas garantias, dentro de um prazo razoável, o que acaba por
estabelecer uma relação entre o princípio em comento e o da celeridade processual.
Conforme entendimento de Fredie Didier Júnior (2015),
necessidade premente de obediência a esse princípio, de modo que o processo judicial eletrônico
está amparado por esse direito fundamental, devendo atender às garantias previstas na Cons-
tituição Federal, bem como nas leis ordinárias, para que seja devido e efetivo (CORDEIRO e
BORGES, 2014).
3 Montesquieu foi filósofo social e escritor francês, além de presidente do Parlamento de Bordeaux e membro da Academia Francesa. Em
1748, escreveu o livro “O espírito das leis”, por meio do qual defendeu a divisão do poder em três: Executivo, Legislativo e Judiciário,
influenciando governos liberais desde então (FRAZÃO, Dilva. Montesquieu. 2016. Disponível em:<https://www.ebiografia.com/mon-
tesquieu/>. Acesso em: 03 set. 2017.; MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo, Martins Fontes, 2000.851p.).
248
4.3 Razoável duração do processo e Celeridade processual
A exigência da duração razoável do processo está prevista no artigo 5º, inciso LXX-
VIII da CF/1988, inserida pela Emenda Constitucional nº 45/2004, bem como no Código de
Processo Civil, em seu artigo 4º e 139, II. O novo Código, inclusive, inseriu tal garantia dentre
os direitos das partes processuais, dispondo que “as partes têm o direito de obter em prazo ra-
zoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. ” (DIDIER JÚNIOR. 2015).
Segundo Tavares (2015), ao utilizar a expressão “razoável duração”, o constituinte
inseriu a ideia de celeridade, mas não exclusivamente ligada à rapidez, mas com atribuição do
tempo necessário para que não haja a violação do direito ao devido processo legal. Portanto, a
celeridade está intrinsecamente relacionada com a razoável duração do processo.
A celeridade processual, assim, apresenta-se como uma forma de transpor o obstáculo
que acaba por caracterizar o Judiciário: a morosidade. Buscando mais do que um processo rápi-
do, tal princípio, como bem expresso no Diploma Processual, pretende que as partes obtenham
a tutela jurisdicional satisfativa, isto é, o melhor resultado possível dentro de um espaço de
tempo adequado.
O processo eletrônico, nesse cenário, torna-se uma das soluções pretendidas pelo Ju-
diciário para alcançar a rapidez na prestação jurisdicional. “Sendo assim, o princípio da celeri-
dade processual é, inevitavelmente, o corolário da informatização da Justiça.” (CORDEIRO e
BORGES, 2014).
tempo praticável”, sendo o dispêndio de recursos o maior obstáculo para o acesso à justiça.
Entretanto, tal princípio engloba a necessidade geral de eficiência do Poder Judiciário, não só
restrita a economia de valores.
Quanto a esse princípio, o processo eletrônico representa a maior economia de recursos
em face do automatismo (REZENDE, 2016). Consoante entendimento de Fraga (2013, p. 31), “o
processo eletrônico é a tradução de economia processual, pois através de vários instrumentos e
ferramentas ele tem tornando o processo, economicamente, muito mais viável”.
O processo eletrônico reduziu o tempo, as etapas, os custos e os atos processuais para
249
a concretização de um mesmo resultado, a prestação da tutela jurisdicional. Dessa forma, é
possível vislumbrar a concretização desse princípio pela nova sistemática instituída pela infor-
matização do Judiciário.
4.5 Publicidade
O direito fundamental à publicidade dos atos processuais está previsto no artigo 5º, in-
ciso LX da Constituição Federal. Os artigos 8º e 11º do Código de Processo Civil ratificam essa
necessidade para a devida tramitação do processo judicial, nos seguintes termos:
Segundo Fredie Didier Júnior (2015), os atos processuais devem ser públicos. Desse
modo, o princípio da publicidade tem dois propósitos: 1) proteger as partes da arbitrariedade das
decisões e demais atos jurisdicionais; 2) oportunizar o controle da sociedade sobre a atividade
jurisdicional. Essas duas funções desembocam em duas dimensões: 1) interna: publicidade en-
tre as partes; 2) externa: publicidade para terceiros.
Nesse sentido, a Constituição Federal apenas restringe a publicidade quando para a
proteção da intimidade e o interesse social exigir, tendo em vista que a regra é da publicidade,
a exceção é do sigilo. Por isso, o Código de Processo Civil, em seu artigo 189, traz as hipóteses
expressas em que a publicidade pode ser restringida:
Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça
os processos:
I - em que o exija o interesse público ou social;
II - que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união
estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes;
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Acresça que, para Tavares (2015, p. 604), a falta de fundamentação de uma decisão
judicial já pode ser considerada violação ao princípio da publicidade, uma vez que “a motivação
propicia a comunicação ou divulgação do iter seguido pelo magistrado para prolatar sua decisão
neste ou naquele sentido.”. Ressalta, ainda, o jurista que a publicidade exige uma linguagem
adequada para a transmissão da mensagem, a fim de que seja atingido o seu objetivo.
250
O processo eletrônico está amparado pelo princípio em comento, vez que pode ser
acessado por qualquer pessoa cadastrada no sistema, de qualquer lugar, através da internet
(REZENDE, 2016). Ademais, o acompanhamento do processo é em tempo real, também opor-
tunizado por meio do Serviço de Acompanhamento por E-mail, o qual notifica as partes dos
andamentos processuais, enviando um e-mail com a informação.
Segundo Puerari e Isaia (2012), o processo judicial eletrônico não resolveu o proble-
ma da demora do Judiciário, uma vez que o processo em si é lento, além de que as alterações
trazidas pela Lei nº 11.419/2006 não repercutiram no Processo Civil. O novo Código, ainda que
ressalte a imprescindibilidade da celeridade processual, priorizou o efetivo contraditório, con-
cedendo mais tempo para que as partes pudessem praticar os atos processuais, como dispõe o
artigo 212.
Ademais, o sistema, por passar por diversas instabilidades diárias, interfere na otimi-
zação dos atos processuais, uma vez que se gasta mais tempo para realizar um protocolo, para
acessar ao sistema (seja na Secretaria da Vara ou no escritório de advocacia), do que seria neces-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
sário para imprimir a petição, a decisão, ou despacho, e juntar aos autos físicos, como outrora
era feito, o que definitivamente não se encaixa no ideal do processo eletrônico.
Entretanto, para Cordeiro e Borges (2014), o ideal do processo eletrônico está conecta-
do com o princípio da celeridade processual, visto que o a informatização afasta o problema do
chamado “tempo morto”, período de tempo em que o processo fica sem qualquer movimentação
entre um ato judicial e outro, da mesma forma que suprime etapas cartorárias as quais consu-
miam tempo, como a numeração de folhas.
Conforme Silva (2017), o processo eletrônico concretiza o princípio da celeridade pro-
cessual quando aperfeiçoou a atividade dos magistrados, no tocante à possibilidade de produ-
251
ção de despachos em lote, decisões iguais para casos iguais, bem como quanto ao julgamento
de diversos processos ao mesmo tempo, o que se pode dizer que economiza tempo e acelera a
finalização do processo.
4 BOCCHINI, Bruno. Pesquisa mostra que 58% da população brasileira usam a internet. 2016. Disponível em:<http://agenciabrasil.
ebc.com.br/pesquisa-e-inovacao/noticia/2016-09/pesquisa-mostra-que-58-da-populacao-brasileira-usam-internet>. Acesso em: 23 jul.
217.
252
Maralha, Penha e Rangel (2014) acrescentam que, aliado às dificuldades da deficitária
estrutura da internet no país, estão as diversas versões do PJE e a exigência de preparo imediato
dos profissionais a todas as situações e os transtornos possíveis, criando mais entraves para o
acesso à justiça:
Por fim, não é despiciendo ressaltar que, num olhar perfunctório, verifica-se que o
processo eletrônico não possui mecanismos acessíveis para as pessoas com deficiência (RE-
ZENDE, 2016), o que não condiz com o artigo 17 da Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000,
o qual dispõe que
Assim, observa-se que, a despeito das inovações e das transformações trazidas pela
informatização da justiça como um todo, há entraves que ainda necessitam de soluções, como a
deficiência na infraestrutura da internet, as dificuldades de acesso ao sistema devido às instabi-
lidades das plataformas, a insuficiência no amparo aos portadores de deficiência, entre outros,
o que viola diretamente o princípio do acesso à justiça.
253
Conforme Silva (2017), em termos de desenvolvimento sustentável, houve grande
avanço com a introdução do PJE, em razão da redução da necessidade de se gastar papel com
impressão, visto que, agora, todos os documentos são produzidos eletronicamente, acessíveis
por meio de download, o que transpareceria maior segurança, sem o risco do extravio de docu-
mentos.
Nesse sentido, destaca Silva (2017)
Outro ponto positivo em relação ao processo virtual é que evita eventuais perdas,
furtos e extravios de processos e respectivos documentos, com a possibilidade de
se fazer os downloads de todo o conteúdo e de todas as peças processuais existente
nos autos, trazendo maior segurança das informações contidas nos documentos. Sem
falar que alguns prazos processuais correrão em igual período para todas as partes,
bem como a parte terá a ferramenta solicitar sigilo para juntada de petição sigilosa.
proporciona melhorias para o meio ambiente, e para o andamento processual, trabalhar com
autos eletrônicos ainda não se mostra agradável para todos, causando cansaço e indisposição,
em razão do grande dispêndio de tempo em frente ao computador e sua radiação luminosa
(BARROSO, 2014).
Outro ponto a se discutir são os prazos processuais. Segundo Porto Júnior e Porto Neto
(2014), há insegurança jurídica quando, por instabilidade no sistema do PJE, os prazos neces-
254
sitem ser prorrogados, haja vista que os Tribunais nem sempre têm ciência sobre as falhas, ou,
por serem às vezes falhas pontuais, atingindo poucos usuários, passam despercebidas pelo setor
de apoio do Tribunal, dificultando o reconhecimento da necessidade de prorrogação dos prazos
processuais.
Em tais hipóteses é evidente o advogado poderá ser prejudicado diante da não inserção
de uma indisponibilidade no relatório geral de incidentes. E, então, se pergunta como
provar que, não constando a interrupção no quadro de avisos, o sistema estava, de
fato, inoperante?
Eis um contratempo fatigante porque a primeira vista seria fácil, bastaria salvar a tela
informando o empecilho e então o prazo ficaria prorrogado. Todavia, não é assim que
tem entendido o Superior Tribunal de Justiça, o qual, inclusive, tem jurisprudência
firme recusando documentos extraídos da internet, senão vejamos um dos precedentes
que ratifica o contrassenso que ainda impera entre a jurisprudência de seus órgãos
e o interesse pela implantação de sistemas informatizados nos Tribunais, verbis:
“Documento extraído da Internet – Ausência de Fé Pública – Deserção –Acórdão
Recorrido em Harmonia com o Entendimento Desta Corte – Arts. 244 e 250 do CPC”.
5 BRASIL. OAB. OAB aponta os cinco maiores problemas do Processo Judicial Eletrônico. 2013. Disponível em:<http://www.oab.
org.br/noticia/25217/oab-aponta-os-cinco-maiores-problemas-do-processo-judicial-eletronico>. Acesso em: 23 jul. 2017.
255
ciente infraestrutura da internet no país são fatores que tornam a exigência de acesso constante
ao sistema para a conferência de prazos um desafio e um ônus extremamente penoso para os
profissionais, principalmente aos advogados que são cotidianamente cobrados em seus prazos.
Mais uma dificuldade pode ser encontrada na ausência de uniformização dos sistemas
processuais eletrônicos dos Tribunais, haja vista que, embora o Conselho Nacional de Justiça
esteja se esforçando para padronizá-los com a implantação do PJE em 2013, há ainda grande
diversidade de plataformas no país, dificultando a intercomunicação dos órgãos jurisdicionais
(BARROSO, 2014).
Em alguns casos, a diversidade de sistemas do processo eletrônico decorre das várias
falhas e problemas percebidos pelos Tribunais na utilização do mesmo, de modo que se busca,
muitas vezes, flexibilizar a utilização do PJE, desenvolvido pelo CNJ, para que os jurisdiciona-
dos sejam melhor atendidos. Tal ocorreu com a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados
Especiais Federais que recentemente substituiu o PJE pelo e-proc6, desenvolvido desde 2003 na
Justiça Federal da 4ª Região (LUCHETE, 2017).
Foram listados vários problemas observados com o uso do PJE, como instabilidade
recorrente, demora na resolução dos problemas técnicos, enquanto que o e-proc apresenta, pelo
menos, 7 vantagens em relação ao PJE, como “acesso por aplicativos móveis, funcionalidade
simples e ferramentas para separar, publicar e enviar processos em lote” (LUCHETE, 2017).
Logo, verifica-se que a implementação geral do PJE tem sido flexibilizada em razão
dos problemas que surgem cotidianamente, tendo, inclusive, a Ministra Carmem Lúcia do Su-
premo Tribunal Federal suspendido no ano passado a implantação do sistema no STF, e anun-
ciado em maio deste ano no Plenário do CNJ a permissão para flexibilização do uso da plata-
forma (LUCHETE, 2017).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
cialmente.
O processo digital assume relevante importância no combate à morosidade do Judiciá-
rio, de modo que exige maior investimento no setor da informática para o aprimoramento do
sistema, que ainda apresenta distorções e fragilidades, culminando na efetiva concretização do
6 O e-proc (Sistema de Transmissão Eletrônica de Atos Processuais da Justiça Federal) foi instituído pela Resolução 13, de 11 de março
de 2004, pelo presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, permitindo, inicialmente, a tramitação eletrônica de processos do
âmbito do juizado especial cível. Atualmente, os processos da justiça comum, bem como o segundo grau são abrangidos pelo sistema
(MARCIELI. E-PROC. 2012. Disponível em:< http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/e-proc>. Acesso em: 03 set. 2017).
256
devido processo legal, assegurado no rol de direitos fundamentais, pela Constituição Federal.
Diversos entraves acompanham a utilização diária do sistema, o que não está pas-
sando despercebido nem mesmo pelos Tribunais, que vêm flexibilizando sua implantação e/ou
substituindo-o por sistemas diferentes do padrão institucionalizado pelo CNJ para promover
maior acessibilidade aos jurisdicionados, inobstante seja urgente a necessidade de unificação
dos sistemas, padronizando as versões, e a adoção de uma postura definitiva dos responsáveis.
É imperioso o desenvolvimento da informática para redução das falhas e instabilidades
do processo eletrônico, uma vez que a insegurança jurídica é sentimento constante dos
profissionais e partes, os quais se submetem diariamente às reviravoltas do sistema, que tem
como objetivo maior o de facilitar o trâmite processual, com a mudança do meio em que ocorre
o desenvolvimento da demanda.
A informatização do Judiciário não resolverá todos os problemas que o permeiam,
sendo mais uma forma de aprimorar a prestação da tutela jurisdicional, que estava se mostrando
ineficiente. Por isso, torna-se imprescindível o constante desenvolvimento dos sistemas eletrô-
nicos para que o fornecimento da tutela satisfativa seja feito de forma eficiente, com qualidade,
segurança, e transparência, ancorado nos princípios processuais.
Há muitos entraves a serem transpostos pelos operadores do direito, visto que o Pro-
cesso Judicial Eletrônico está longe da perfeição almejada, sendo preciso maior capacitação
dos servidores, a uniformização dos sistemas, a correção das instabilidades e falhas das pla-
taformas, instituindo, enquanto não resolvidos tais problemas, uma alternativa viável para que
aqueles que dependem do bom funcionamento do sistema, como a possibilidade de protocolo
físico em algumas situações, visto que, sendo um direito fundamental, a prestação jurisdicional
não pode falhar ou faltar àqueles que dela necessitam.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Marcos Patrick Chaves. Processo judicial eletrônico: Lei 11.419/06. Desafios em
sua implantação. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVII, n. 129, out 2014. Disponível em:
<http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=15289>. Acesso
em: 23 jul. 2017.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
257
processual civil. 17. ed. Salvador: Juspodivm, 2015.
LUCHETE, Felipe. Turma Nacional dos juizados especiais federais troca PJe pelo eproc.
2017. Disponível em:<http://www.conjur.com.br/2017-jul-04/turma-nacional-juizados-
especiais-federais-troca-pje-eproc>. Acesso em: 23 jul. 2017.
MARALHA, Ana Lucia; PENHA, Carlos Onofre; RANGEL, Tauã Lima Verdan. A
Fenomenologia do Processo Judicial Eletrônico e suas implicações. In: COÊLHO, Marcus
Vinicius Furtado; ALLEMAND, Luiz Cláudio (Org.). Processo judicial eletrônico. Brasília:
OAB - Conselho Federal, Comissão Especial de Direito da Tecnologia e Informação, 2014. p.
85-106. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/processo-judicial-eletrônico-
oab-brasília>. Acesso em: 23 jul. 2017.
258
SILVA, Juliana de Moura. Processo judicial eletrônico: um estudo sobre o devido processo
legal na vertente da celeridade processual.Revista Jus Navigandi, Teresina, jan. 2017.
Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/55336/processo-judicial-eletronico-um-estudo-sobre-
o-devido-processo-legal-na-vertente-da-celeridade-processual/3>. Acesso em: 23 jul. 2017.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
ABSTRACT
The present work proposes an analysis of the electronic judicial process
and its implications within a practical and principological scope. The
principles applied to the judicial process will be analyzed and with it a
reflection on the attainment of the intended objectives with the change.
For the accomplishment of the study, a qualitative methodology was
used, with bibliographical revision. It is concluded that the electronic
judicial process follows a worldwide trend of computerization and fa-
cilitation of access, but there are still some gaps that need adjustment
so that the principles guiding the electronic judicial process reach their
fulfillment.
Keywords: Procedural principles. Electronic judicial process. Judicial
computerization. Electronic procedure. FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
259
Recebido 02/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
O presente artigo trata, em linhas gerais, dos impactos do contexto do
fim da 2ª Guerra Mundial no Direito, em especial na Filosofia do Di-
reito e no Direito Constitucional. Para tanto, analisou-se criticamente
a literatura acerca do tema, partindo-se da seguinte indagação: de que
forma os paradigmas jusfilosófico e constitucional da época foram alte-
rados? Visando responder esta pergunta, toma-se o conceito de “Justi-
ça” – essencial para o sistema jurídico – como exemplo para investigar
tal questionamento na seara da Filosofia do Direito. Em seguida, explo-
ra-se a consolidação do modelo de Democracia Constitucional como
dominante após as atrocidades cometidas no período.
Palavras-chave: Justiça. Totalitarismo. Democracia Constitucional.
1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Agradeço ao Professor Otavio Maciel pelos comentários essenciais para este artigo.
2 Graduando da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). Visiting Student (2016) em “Democrazia e Sviluppo” na
Università degli Studi di Siena (UniSi-Itália). Bolsista (FUB) do Programa de Iniciação Científica (PIBIC/UnB).
260
às possíveis novas ingerências abusivas de líderes de Governo. Além disso, tal cenário elucidou
também a relevância de um sistema jurídico estruturado e afeito aos ideais democráticos. Nessa
linha, o presente artigo busca explorar, como panorama geral, os impactos do contexto do fim
da 2ª Guerra Mundial no Direito, em especial no âmbito da Filosofia do Direito e do Direito
Constitucional. Para tanto, indaga-se: de que forma os paradigmas jusfilosófico e constitucional
foram alterados pelo advento da 2ª Guerra Mundial?
Visando responder a tal pergunta, toma-se o conceito de Justiça – essencial para o
sistema jurídico – como exemplo para investigar este questionamento acerca das alterações
radicais das estruturas do paradigma jusfilosófico da época. Destarte, almeja-se expor um pa-
norama geral do contraste entre as concepções de Justiça de dois prestigiosos autores: Hannah
Arendt e Hans Kelsen. Essa escolha se dá não somente pela importância de ambos para o
contexto, tampouco pela discrepância das linhas argumentativas deles. Em verdade, ambos os
autores sofreram perseguições por parte do regime nazista à vista de inclinações político-ideo-
lógicas e de preferências religiosas, em especial ao judaísmo. Por isso, aparentam, ao fundo de
suas obras, ter a preocupação precípua de instituir mecanismos sólidos de luta contra as mazelas
do totalitarismo.
Outrossim, é preciso analisar as exposições críticas externadas por ambos, para então,
diferenciá-los e, posteriormente, explorar o possível encontro desses dois marcos teóricos. Com
isso, intenta-se em visualizar o legado e a importância de ambos para o pensamento jusfilosó-
fico ulterior. Assim, a despeito da concomitante análise bibliográfica de diversos escritos de
ambos os autores, tem-se como foco desta parte da investigação duas obras: “O Problema da
Justiça”3, de Hans Kelsen e “As Origens do Totalitarismo”4, de Hannah Arendt.
Na primeira parte deste trabalho, almeja-se compreender a concepção de Hans Kelsen
acerca do problema da Justiça. Tendo em vista a missão do autor de realizar uma teoria pura
do Direito capaz de isolá-lo da Moral, a Justiça, para ele, se situaria como algo fora do campo
de estudo da Ciência do Direito, pois carregaria forte conteúdo moral intrínseco a qualquer
discussão que a envolvesse. Nesse sentido, o direito positivo estaria autorizado a ir de encontro
com mandamentos de justiça de modo que isso não o tornaria inválido. Dessa maneira, o autor
prossegue e demonstra a necessidade de se ver com maior cautela o problema da “Justiça” à
vista das possíveis manipulações ideológicas que o conceito pode vir a receber.
A segunda parte do trabalho intenta em observar, igualmente, a visão de Hannah
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Arendt no que diz respeito ao conceito de Justiça. Sua perspectiva diferencia-se da de Kelsen
na medida em que, de forma diluída, suscita um entrelaço entre Direito, Moral e Política. Nesse
raciocínio, expõe seu pensamento no qual a Justiça, sob uma perspectiva pragmática, parece
se apresentar somente no caso em concreto. Para tanto, a autora expõe os riscos que uma visão
abstrata de direitos (humanos) pode acarretar, bem como os perigos de se olhar os indivíduos
261
sob uma perspectiva genérica e abstrata. Argumenta, então, que tal postura acabou por permitir
que esses humanos ficassem legalmente desprotegidos e que se propagasse um forte desinte-
resse pela vida humana. Dessa maneira, para a autora, o efetivo provimento de direitos gera a
necessidade de se estabelecer mecanismos práticos e Instituições fortes capazes de garanti-los
no caso concreto. Em suma, Arendt visa efetivar um modelo de Justiça particular e concreto
e evitar uma abstração da própria vida humana, sob pena de se perder a dimensão de sua real
relevância.
Não obstante as visíveis diferenças e os caminhos percorridos distantes entre si, na
terceira parte deste artigo, objetiva-se evidenciar os possíveis entrelaçamentos entre as ideias
expostas pelos dois autores. Isso, com o propósito de demonstrar que, apesar de linhas argu-
mentativas bem distintas, ambos almejam os mesmos fins: o provimento de direitos, a formu-
lação de procedimentos normativos legítimos capazes de garantir concretamente tais direitos e
a desconstrução de um paradigma totalitário. Indo além, na persecução desses fins, os pensa-
mentos da Filosofia do Direito e do Direito Constitucional da época acabaram por se influenciar
mutua e reciprocamente, encontrando-se no intuito de proteger os cidadãos contra as barbáries
do totalitarismo e no apego à escolha de procedimentos normativos seguros e legítimos que
visassem a consolidação e a fruição dos direitos fundamentais.
Por fim, a última parte deste artigo se preocupa em esclarecer como a 2ª Guerra Mun-
dial foi importante para a mudança do paradigma constitucional da época. A maioria da li-
teratura5 a respeito do tema acaba por dar maior foco na derrocada do positivismo jurídico e
a consequente ascensão do pós-positivismo, especialmente no que tange à passagem de uma
visão do Direito mais afeita à rigidez das regras para a ascensão das teorias principiológicas e
o reencontro do Direito com a Moral. Diferentemente, aqui, a intenção é demonstrar que este
cenário foi responsável por: (i) permitir a ascensão das Democracias Constitucionais ao redor
de diversos países do mundo; (ii) solidificar a compreensão de que Constitucionalismo e De-
mocracia exercem uma relação tensa e conflitiva, porém crucial; (iii) fazer com que os direitos
fundamentais passassem a ser a razão de existência e de legitimidade das Constituições poste-
riores; e (iv) fortificar o papel do Poder Judiciário na manutenção da Democracia;
5 Ver: BICALHO, Guilherme P.D.; FERNANDES, Ricardo VC. Do positivismo ao pós-positivismo jurídico: O atual paradigma jusfi-
losófico constitucional. Brasília: Revista de Informação Legislativa, a. 48, n. 189, jan. /mar. 2011.
262
Hans Kelsen, ao postular sua teoria, buscava alicerçar a pureza do Direito com o fato
de que esse não deveria se entrelaçar com a Moral, assim, evitando sincretismos metodológicos
entre o Direito e outras áreas na medida em que isso obscureceria a essência do estudo jurídico.
Para ele, o Direito seria sempre o dito direito positivo e tal positividade repousaria no fato de
que sua anulação e sua criação residiriam em decisões de seres humanos sendo, portanto, inde-
pendentes da moralidade de sistemas (KELSEN, 2009, pp. 166-168).O Direito, assim, sob um
giro decisionista, adviria, em última instância, da autoridade.
Por conseguinte, sob tal óptica normativista, Kelsen trata a Justiça como algo para além
de sua Teoria Pura e, consequentemente, fora da Ciência Jurídica. Sendo assim, ela poderia ser
relacionada a um agente ou a um ato, todavia não a uma norma. Dessa forma, a Justiça estaria
relacionada com o âmbito das virtudes e seria simplesmente um atributo humano específico a
um indivíduo ou frente à sua conduta social. Por exemplo, um juiz poderia ser justo ou injusto,
porém esta constatação não seria aplicável às normas que ele aplica, mas sim apenas ao modo
em que ele as aplica. Dessa maneira, o problema da Justiça pertenceria a reflexões do âmbito da
Ética e da Filosofia, mas não do Direito. Isso à vista de que as ditas “normas de justiça” seriam,
ao fundo, normas morais (NETO, 2010, p. 95).Nessa perspectiva, portanto, o autor somente se
preocupava com a autoridade válida positivamente.
Seguindo tal adensamento teórico, a visão kelseniana de Justiça demonstra que essa
virtude e as normas advindas dela estariam relacionadas com qualidades morais fora do direito
positivo. Havendo choque ou contradição entre “normas de justiça” e “normas positivas”, Kel-
sen criticava o jusnaturalismo e afirmava a inexistência de tal conflito, pois não seria juridica-
mente possível avaliar se uma norma positiva era justa ou não. A corrente teórica jusnaturalis-
taafirmava que as normas positivas estariam vinculadas ao direito natural e só seriam válidas
– vinculariam as pessoas obrigando-as à conduzirem-se de acordo com o seu mandamento – em
face de sua consonância com as “normas naturais” ou com as “normas de justiça”. Malgrado, o
autor austríaco realizou uma abordagem na qual ele concluía com o posicionamento de que não
seria possível realizar juízos de valor sob normas. Assim, as normas positivas, sob o ponto de
vista da validade, existiriam independentemente de estarem em conformidade com as normas
de justiça (KELSEN, 1998, pp. 5-9).
Diferentemente, para a doutrina jusnaturalista, como já afirmado, o direito positivo
apenas seria válido na medida em que estivesse adequado ao direito natural, isto é, somente
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
o “Direito justo” seria, de fato, Direito (MATOS, 2004, p. 81). Por isso, na visão kelseniana,
a avaliação se uma norma seria justa ou injusta seria um verdadeiro erro lógico, pois normas
jurídicas somente poderiam ser analisadas a partir de critérios de validade, ou seja, só seria
possível avaliar se elas seriam válidas ou inválidas. Caso contrário, chegar-se-ia ao absurdo de
reconhecer que duas normas igualmente válidas seriam contraditórias (MATOS, 2004, p. 78).
Destarte, Kelsen, ao tratar deste assunto, perpassa por diferentes tipos de “normas de
justiça” buscando demonstrar tal característica ideológica intrínseca a elas. Basicamente, divi-
diu tais normas em: (i) metafísico-religiosas – com a pretensão de fundar um ideal de justiça
263
absoluto que seja oriundo de uma instância superior propagadora de um conhecimento inatingí-
vel ao conhecimento humano experimental – expondo como exemplo a justiça na concepção de
Platão e a justiça no ideário cristão e (ii) racionais – passíveis de compreensão pela racionalida-
de humana, assim como instituídas por atos humanos de vontade – exemplificando o ideário de
justiça comunista de Karl Marx, o meio termo de Aristóteles e muitos outros meandros que en-
volvem até mesmo o dito preceito do “amor ao próximo” (KELSEN, 1998, pp. 16-17). A Justiça,
em não raras vezes, poderia ser utilizada como um instrumento de legitimação da dominação
(KELSEN, 2008, p. 151).
Portanto, Kelsen busca demonstrar que o Direito não necessita respeitar um dito mí-
nimo moral para ser, assim, aceito como tal, pois sua validade e sua própria natureza requerem
somente valor jurídico (KELSEN, 1976, p. 104). Em outras palavras, a lei tal como posta pelo
legislador, caso tenha seguido os procedimentos adequados e tenha respeitado os moldes hierár-
quicos necessários, firma-se no ordenamento jurídico e assim “adquire” validade. Desse modo,
a discussão acerca da Justiça é extremamente relevante, todavia não constitui objeto de estudo
da Ciência do Direito, mas, sim, da Ética, tendo em vista o inerente conteúdo moral de tais nor-
mas de justiça. Sucintamente, o raciocínio jurídico deveria, em verdade, se preocupar apenas
sobre os seguintes juízos acerca das normas: lícito/ilícito, o legal/ilegal, constitucional/inconsti-
tucional, válido/inválido. Por isso, Kelsen se preocupa em estudar este tão importante conceito,
no entanto, faz questão de deixar explícito que tal juízo de valor não encontra solo em sua Teoria
Pura, pois, para ele, tal discussão se situa fora do escopo de estudo do próprio Direito.
Kelsen, como neokantiano, trata a Justiça de modo relativizado, isto é, excluindo a
possibilidade de um ideal de Justiça absoluto e universal. O autor apresenta esta visão relativis-
ta do conceito na qual não seria possível elucidar, conceituar ou conceber a Justiça de maneira
absoluta, pois ela não seria um conceito estanque e inerte comum a todos os homens (BITTAR,
2000, p. 554). Ao contrário disso, em verdade, a Justiça só poderia ser entendida sob uma con-
cepção particular que contemplasse sua adequação ao caso em concreto. Assim, sucintamente,
não seria possível, portanto, observar uma espécie de “Justiça universal”.
Vale ressaltar que o autor, entretanto, na obra estudada com maior enfoque, não aden-
trou explicitamente no mérito da existência ou inexistência da Justiça, apenas pressupõe a im-
possibilidade de se formular juízos de valor jurídico acerca dela e da possível manipulação que
normas de justiça podem sofrer. Todavia, ao longo de seus escritos, ele fornece fortes e claros
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
indícios de acreditar que só seria possível verificar tal conceito no caso em concreto e fora do
raciocínio estritamente jurídico.
264
consequentemente, regidos por leis de exceção como o “Tratados de Minorias”. Além disso,
eles tinham como seu organismo protetor uma entidade abstrata e distante comandada pelos
mesmos países que negavam o reconhecimento da sua cidadania, a Liga das Nações (ARENDT,
1998, p. 306). Dessa forma, a condição de apátrida, por exemplo, na verdade, para ela, foi resul-
tado do próprio desinteresse pela vida humana6e não do inchaço populacional dos países ou até
mesmo da aversão ao “outro” (estrangeiro) à vista da conjectura que se passava.
Em sua exposição, Hannah Arendt demonstrou a contradição e o paradoxo do apego
ao discurso da época da presença de direitos humanos vistos como inalienáveis, não obstan-
te em notável contraste com a presença de milhões de indivíduos vivendo sem direito algum
(ARENDT, 1998, p. 312). Nessa linha, também suscitou uma importante crítica em relação à
ideia abstrata de direitos humanos para questionar sua relevância no contexto prático e real:
quem seriam, de verdade, os homens protegidos pelos “direitos do homem”? Ao se formular
generalizações e formatar um indivíduo comum e abstrato, perdeu-se a essência e a particu-
laridade de todos os homens. Consequentemente, impossibilitou-se a concretização real dos
direitos prometidos na medida em que eles necessitam ser particularizados à luz das demandas
do caso concreto para de fato existirem. A autora questiona, dessa forma, a validade pragmática
da propagação retórica de direitos humanos abstratos e da efetividade de se intentar em tutelar
uma condição humana universal.
Ao deixar tais pessoas à mercê da sorte e sem nenhuma jurisdição, os ordenamentos
legais de diversos países foram afetados, pois tais pessoas sem direito algum começaram, por
exemplo, a transgredir a lei à vista de que os criminosos detinham uma melhor posição jurídica
e um melhor tratamento legal do que os apátridas (ARENDT, 1998, p. 320) em diversos Esta-
dos. Todo esse descaso com a dignidade da pessoa humana acabou por causar uma grande crise
de confiança acerca da universalidade dos direitos humanos e das próprias leis baseadas neles
(ARENDT, 1998, p. 324). Tal desconfiança foi gerada pela percepção prática de que os direitos
humanos, que deveriam existir independentemente de governos, acabavam não sendo garanti-
dos na ausência de Instituições sólidas que pudessem assegurá-los. Assim, ao ser expulso de
uma nação, o indivíduo acabava sendo expulso de todas as nações, consequentemente, posicio-
nando-se fora de toda legalidade (ARENDT, 1998, pp. 327-328). Tais situações fáticas deixavam
os afetados com uma a última baliza legal: o direito a se ter direitos.
Em tal situação, em que a única coisa que resta a alguém é o fato de ser humano e por
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
isso ter direito a ter direitos, nota-se que o sentido e a essência humana foram esvaziados e a
vida acaba por perder o seu real valor. Assim, no momento em que o sentido de algo escapa aos
homens, o mundo manifesta sua inospitalidade, tendo em vista que o mundo e os laços que vin-
culam os homens dependem, ao fundo, da significação que estes lhe dão (SILVA, 2011, p. 112).
6 É valido ressaltar, nesse mesmo raciocínio, que “ao atribuir as culpas [das atrocidades oriundas destes regimes] não devemos esquecer
que os nazistas, na verdade, aplicaram em prática diversas teorias e políticas dominantes desde o fim da década de 20 na Europa. Essa
variável nos ajuda a compreender o ‘espírito colaboracionista’ de tantos cidadãos (tanto alemães quanto de outros países dominados por
este regime) com as políticas de extermínio “ (tradução livre). Para uma maior compreensão, ver: GALAIN PALERMO, Pablo. La culpa
de la guerra en Hannah Arendt y Karl Jaspers. São Leopoldo: RECHTD, v. 7, n. 2, 2015. p. 129
265
Os direitos fundamentais, anteriormente, eram justificados sob uma espécie de lei imu-
tável da natureza pela qual existiriam direitos naturais coletivos referentes às castas sociais. Isto
é, o pensamento vigente via o lugar social de cada indivíduo como algo pré-estabelecido e os
seus respectivos direitos seriam providos sob a ideia de “dar a cada um o que é seu”. Não obs-
tante, na modernidade, buscou-se estruturar um suposto mais individual. Com o surgimento do
jusnaturalismo racionalista, intentou-se em propiciar os direitos como supostos individuais na
medida em que cada pessoa seria titular desses, independentemente de seu lugar na sociedade.
A partir dessa visão individualista, em verdade, é que se formatou a ideia de universalidade dos
direitos.
Arendt, nesse raciocínio, expôs uma espécie de jusnaturalismo bem diferente daquele
advindo das teorias do mundo Clássico, pois notava-se nele ainda resquícios da religião, mais
especificamente da mitologia grega. Criticando tal concepção Clássica, Arendt acaba por de-
monstrar que em tal condição fundamental de privação de direitos, a natureza não traz leis ine-
rentes à condição humana capazes de proteger os indivíduos. Na verdade, para ela, mais do que
isso, seria necessário que houvesse a presença de governos, de Instituições e de mecanismos
responsáveis por um efetivo abrigo. Em suma, tal contexto totalitário demonstrou que parado-
xalmente era possível perder os direitos humanos em geral na medida em que o indivíduo era
considerado, unicamente e meramente, humano (ARENDT, 1998, p. 335).Destarte, o ideal da
Justiça, para Arendt, não diria respeito a uma virtude moral primordial que alicerça todas as
outras, tampouco significaria a conformidade da conduta com a norma (SILVA, 2011, p. 113).
A autora, assim, expõe um conceito de Justiça que é, sim, universal no qual todos os
homens têm o direito a ter direitos. No entanto, observa, também, que isso não é forte o bastante
para proteger tais indivíduos. Assim, o esvaziamento das Instituições e do próprio Poder-Nação
acabaria por desproteger, como um todo, os direitos humanos e as garantias fundamentais. Isso,
pois, com isso, ficam ausentes os mecanismos capazes de concretizá-los e efetivá-los sob uma
óptica pragmática. O ideal da Justiça, então, acaba deixando de ser um bem em si, inatingível,
e passa a se tornar uma ideia teórica, todavia que só poderia ser observada nas particularidades
do caso em concreto.
Portanto, a Justiça para Hannah Arendt encontra-se diluída em suas obras. Sob sua
óptica, o Direito, alicerçado em padrões jurídicos fortes, traz legitimidade jurídica, política e
social à comunidade tornando-se, então, um elemento crucial para a concretização da Justiça.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Nessa linha, ela se sustenta a partir da legitimidade advinda do Direito aplicado por referenciais
claros oriundos de um corpo estruturado de leis, regras e princípios. Na mesma medida, tal
conceito, em Arendt, passa a ser observado a partir da noção de equidade – entendida como um
elemento de adequação do Direito ao caso concreto (FREITAS, 2014, p. 136), essencialmente,
fugindo de tais abstrações e generalidades que permitiram o desamparo de inúmeros indivíduos
à luz dos horrores do totalitarismo.
266
4 CAMINHOS DIFERENTES PARA UM MESMO FIM: PROCEDIMENTOS
NORMATIVOS E O PROVIMENTO DE DIREITOS
À vista dos males oriundos da Segunda Guerra Mundial, Kelsen e Arendt foram
perseguidos por causa de suas ideias. Em consequência disso, sempre criticaram as consequências
que tais regimes ofereciam a diferentes áreas da vida e do conhecimento. A despeito dos mé-
todos extremamente diferentes e da divergência de perspectivas especialmente no que tange à
relevância do conceito de Justiça, o apego aos procedimentos normativos seguros7 para o caso
concreto acabou por unir tais posicionamentos teóricos. Ou seja, apesar de apresentarem pontos
de vista bem diferentes, ambos, em verdade, lutam contra a mesma coisa: a onda totalitária que
abarcou o contexto vivenciado por eles. Para tanto, observavam que era preciso propagar um
maior apreço aos moldes teóricos e institucionais capazes de garantir mais segurança aos pro-
cedimentos legislativos e normativos.
No caso de Kelsen, nota-se tal apego de forma clara durante toda a estruturação e
formatação de sua obra. Isso, pois ele dedicou-se até mesmo à elucidação de possibilidades
de atuação de tais procedimentos dentro do sistema jurídico, bem como de possíveis modelos
seguros para a operacionalização deles8, pois sem eles o Direito seria somente mera abstração.
Por isso, para o autor, uma concepção meramente abstrata de Justiça dentro do Direito poderia
permitir que ele fosse corrompido por ideologias e que sua aplicação ficasse passível de ma-
nipulação. Afinal, como outrora o autor afirmou “a guerra é o pai de todas as coisas, o rei de
todas elas. [...] Alguns, ela demonstra serem deuses; outros, homens. A alguns, ela faz escravos;
a outros, homens livres” (KELSEN, 2008, p. 22). Arendt, por outro lado, vinculou-se de certa
forma ao jusnaturalismo demonstrando uma espécie de apego ao “direito natural a ter direi-
tos” pelo qual qualquer pessoa teria“direito a ter direitos”. Todavia, o que é relevante para tal
comparação é que a própria autora demonstra que isso não é suficiente. Para ela, a presença de
procedimentos normativos que permitam a garantia de tais direitos é o elemento essencial para
a garantia pragmática e concreta desse “direito a ter direitos”. Nesse sentido, Arendt postula que
seria importante promover a existência de mecanismos institucionais e de instituições fortes a
fim de defender, fiscalizar e garantir tais direitos quando afrontados e violados.
Em suma, partindo-se do pressuposto de que as pessoas têm direito a ter direitos,
Arendt observava a Justiça de forma universal, porém concreta, porque visualizava a impor-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tância de sua realização na prática e acreditava que ela somente poderia ser densificada no caso
concreto. Kelsen, de outra maneira, acreditava que os estudos acerca do problema da Justiça
representam uma reflexão extrajurídica, isto é, fora de sua Teoria Pura, isso implicava em dizer,
então, que esta reflexão não seria objeto de análise da Ciência do Direito. No entanto, apesar de
7 Esta expressão, aqui, abarca os procedimentos legislativos realizados a partir da deliberação de autoridades legítimas e que têm o intuito
de construir previsões legais de proteção dos indivíduos, em especial de minorias, blindando-os contra as possíveis ingerências abusivas
do Estado frente aos direitos fundamentais dos cidadãos. Cabe expor que, para ambos, tais procedimentos normativos deveriam prever a
existência de Instituições fortes e independentes capazes de garantir o “enforcement” e a fiscalização de suas previsões legais.
8 Para melhor compreender como tal modelo é operacionalizado, ver: KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª ed. Coimbra: Armênio
Armado, 1976.
267
tais diferenças no que tange ao papel da Justiça, ambos concebiam a importância de uma visão
pragmática e concreta dessa, assim como partilham da noção de que dever-se-ia prestar maior
atenção aos procedimentos normativos/institucionais do Estado com o intuito de superar as
atrocidades dos regimes totalitários para que elas não se repetissem.
9 Faz-se necessário ressaltar que esta expressão apresenta diversos significados e diferentes posicionamentos ideológicos e intelectuais.
Existem vários “constitucionalismos”, no entanto, a estrondosa maioria apresenta bases comuns mencionadas ao longo do texto como,
por exemplo, a limitação do poder de Governo e o respeito aos direitos fundamentais. Para uma boa explanação acerca do tema, ver:
SOUSA, Inês Alves de; MARÓN, Manuel Fondevila. Divergências e convergências entre as teorias de Rudolf Smend e Konrad
Hesse na interpretação dos direitos fundamentais. São Leopoldo: RECHTD, v. 9, n. 1, 2017. pp. 12-14
268
142) afeita ao respeito à diversidade e à defesa do pluralismo social. Desse modo, é fácil per-
ceber que os direitos fundamentais se firmaram, de fato, como limites materiais à deliberação
democrática, fixando eles longe do alcance de maiorias eventuais.
Portanto, a 2ª Guerra Mundial serviu como evento paradigmático para reestruturar o
sistema jurídico à luz dos horrores advindos da utilização da estrutura burocrática do Estado
para massacres (ARENDT, 1964, p. 135). Por exemplo, na esteira da lição do professor Bru-
ce Ackerman, a situação alemã pós-nazismo criou um cenário de “Novo Começo” no qual a
Constituição se apresentou como um marco simbólico de grande transição na vida política da
nação (ACKERMAN, 1996, p. 778).Nesse diapasão, grande parte dos atos de reminiscência do
holocausto, inclusive a própria posterior Constituição alemã, fixaram-se como símbolos rela-
cionados à luta contra o totalitarismo. Outrossim, o intento era o de se evidenciar o potencial
democrático do uso da memória para informar a comunidade internacional acerca da violação
sistemático e/ou generalizada de direitos (PAIXÃO; FRISSO, 2016, p. 192) que ocorreu.
À luz disso, é preciso perceber que essa mudança paradigmática não influenciou ape-
nas o conceito de Justiça no âmbito da Filosofia do Direito e da Teoria do Direito, mas também
propagou a difusão do modelo de Democracia Constitucional ao redor do mundo. Nesse cami-
nho, tem-se um novo paradigma jusfilosóficoe constitucional em que o apego à escolha de pro-
cedimentos normativos seguros com o intuito de consolidar a fruição dos direitos fundamentais
– semelhança apontada entre Kelsen e Arendt - consubstanciou-se como égide do pensamento
político-constitucional posterior. Aqui, Filosofia do Direito, Teoria do Direito e Direito Consti-
tucional parecem ter se encontrado.
Com a consolidação deste modelo de democracia constitucional, especialmente nos
países ocidentais, após as terríveis experiências de totalitarismo e autoritarismo, a ideia da exis-
tência de uma tensão inexorável entre constitucionalismo e democracia tornou-se cada vez mais
forte (CHUEIRI, 2012, p. 2). A legitimidade popular de alguns governantes para cometer barbá-
ries e a adesão massiva da população a estes regimes fizeram com que se chegasse à conclusão
de que o princípio majoritário, sozinho, não seria capaz de assegurar por completo a igualdade
política. Em verdade, a expressão das urnas – voto majoritário, por exemplo, diria respeito à
voz dos vencedores e não necessariamente ao dito “bem comum” ou ao interesse da sociedade
como um todo (KOZICKI; BARBOZA, 2008, p. 152).A democracia firmou-se, então, como
expressão da vontade da maioria, todavia respeitando as minorias existentes.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Mais do que isso, o Poder Judiciário começou a realizar um importante papel na pro-
teção, realização e interpretação dos direitos fundamentais positivados nas Constituições dessa
nova era. Assim, foi possível perceber, com clareza solar, a difusão de Cortes Constitucionais
ao redor do planeta, bem como seu paulatino ganho de força com a implementação e consolida-
ção do controle de constitucionalidade (BARBOZA, 2013, pp. 43-44) como meio para proteger
269
minorias, prover direitos e expandir a autoridade do Judiciário.10
Nesse cenário, por conseguinte, tal tensão demonstrou que ambos elementos precisa-
riam conviver de forma conflituosa e paradoxal a fim de se produzir uma relação produtiva e
rica entre eles. Dessa forma, democracia e constitucionalismo passaram a se apresentar como
fundamentos co-originários e reciprocamente constitutivos na medida em que se constatou que
sem um não há, efetivamente, o outro, sob pena de se ver novamente instauradas as mazelas
geradas pelos regimes totalitários. Em suma, a democracia sem o constitucionalismo poderia
gerar uma vontade ilimitada da maioria, uma ditadura da maioria. Por outro lado, o consti-
tucionalismo só é constitucional e íntegro, caso esteja inserido em um ambiente democrático
(CARVALHO NETTO, 2003, p. 15).
Em decorrência disso, constituiu-se uma sociedade em que o fundamento filosófico da
legitimidade do Estado tornou-se o de que o povo se autogoverna à luz das bases teóricas do
governo majoritário, porém tal governo e tais decisões populares deveriam ser limitadas pela
lei das leis, a Constituição (CHUEIRI; GODOY, 2010, p. 159). Invertendo o entendimento an-
terior, as normas constitucionais não seriam mais os instrumentos de legitimidade dos direitos
fundamentais, pelo contrário, a Constituição só adquiriria legitimidade na medida em que fosse
balizada pelos direitos fundamentais (STRECK, 2010, p. 51). Afinal, defender a legitimidade
democrática de um regime constitucional significa dizer que ele é compatível com o exercício
da democracia na dimensão da relação do povo com sua Constituição (COLON-RÍOS, 2011, p.
2).
Por isso, o advento da Segunda Guerra Mundial e as discussões tocantes aos efeitos do
totalitarismo fixaram a tarefa básica dos constitucionalistas e jusfilósofos posteriores:
“Sem abrir mão do conhecimento crítico acerca das inegáveis possibilidades de usos
abusivos do Direito em geral, do Constitucional em especial, [deve-se] resgatar, em
um contexto de racionalidade que se sabe limitada, o reencantamento com o Direito e
com a Democracia; enfim, com os direitos fundamentais e com o constitucionalismo”
(CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 40)
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
10 É preciso perceber que atualmente, em especial no Brasil, observa-se a inversão do problema. A dita legitimidade “contramajoritária”
do Judiciário tem feito com que ele se hipertrofiasse de maneira perigosa à luz de uma postura ativista além dos limites benéficos a um
ambiente democrático. Nessa linha, atualmente, as Supremas Cortes aparentam ser as detentoras da última palavra sobre assuntos rele-
vantes para a sociedade. No entanto, a premissa deve ser clara: busca-se uma Supremacia Constitucional e não Judicial. Para uma crítica
mais atenta, ver: GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao Povo: Crítica à supremacia judicial e diálogos institucionais.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2017.
270
ção de atrocidades por via do aparato estatal acabaram por, paradoxalmente, gerar a consciên-
cia social e teórica posterior capaz de instaurar um modelo de Estado Democrático de Direito
substancial e material. A literatura costuma indicar que, à luz do percurso histórico-político da
humanidade, inúmeros processos de escrita de uma Constituição mais democrática costumam
se originar a partir de revoluções populares (HUTCHINSON; COLON-RÍOS, 2013, p. 1).Na
mesma linha, historicamente, constata-se a visão de que, em não raras vezes, momentos de
extremo sofrimento humano e de sacrifício dos direitos fundamentais parecem propagar, poste-
riormente, movimentos sociais e teóricos inclusivos e afeitos à fruição e à proteção de direitos.
Para além de uma aproximação entre as duas teorias, é possível perceber, ao analisar
criticamente as obras de ambos autores, a importância que tal debate acerca do conceito de
Justiça trouxe para a prática jurídica posterior e para o próprio pensamento jusfilósofico subse-
quente. As elucidações a respeito da relevância da Justiça para o direito positivo permitiram, a
partir das concatenações de Kelsen, a percepção dos perigos que possíveis manipulações ideo-
lógicas de normas jurídicas podem acarretar. Por outro lado, a partir de Arendt, constatou-se,
então, a importância da existência de mecanismos e de instituições capazes de garantir, efeti-
vamente, o provimento de direitos aos indivíduos e de propagar o próprio ideário de Justiça no
caso concreto.
Constatou-se, portanto, sucintamente, a complexidade das questões atinentes à possível
instrumentalização da prática jurídica e a importância da criação de bases teóricas de legitima-
ção das instituições, das Constituições e dos governos por meio de procedimentos normativos
seguros arraigados em princípios democráticos.
REFERÊNCIAS
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________. Einchman in Jerusalem: a Report on the Banality of Evil. New York: The
Viking Press, 1964.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
271
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. A Justiça Kelseniana. São Paulo: Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo (USP), 2000.
CHUEIRI, Vera Karam de. Judicial Review, reasons and technology: a glance at
constitutionalism and democracy. Frankfurt am Main: Goethe Universitat Paper Series n. 19,
Series B, 2012.
COLON-RÍOS, Joel I. The Second Dimension of Democracy: The People and Their
Constitution. Victoria University of Wellington Legal Research Papers, paper n° 25, v. 1, n. 4,
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GALAIN PALERMO, Pablo. La culpa de la guerra en Hannah Arendt y Karl Jaspers. São
Leopoldo: RECHTD, v. 7, n. 2, 2015.
GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao Povo: Crítica à supremacia judicial
e diálogos institucionais. Belo Horizonte: EditoraFórum, 2017.
272
Relationship? Victoria University of Wellington Legal Research Papers, paper n° 19, v. 3, n. 5,
2013.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 4ª ed. Coimbra: Armênio Armado, 1976.
_______. Teoria Geral do Direito e do Estado. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
SILVA, Cacilda Bonfim e. Hannah Arendt: A Justiça como Julgamento. Brasília: Dissertação
(Mestrado em Filosofia) – Universidade de Brasília, 2011.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
SOUSA, Inês Alves de; MARÓN, Manuel Fondevila. Divergências e convergências entre
as teorias de Rudolf Smend e Konrad Hesse na interpretação dos direitos fundamentais.
São Leopoldo: RECHTD, v. 9, n. 1, 2017.
273
CONSTITUTIONAL DEMOCRACIES
ABSTRACT
This paper aims to provide an overview about the World War II’s im-
pacts on Law, particularly on Philosophy of Law and Constitutional
Law. In order to do so, I critically analyze the previous literature on
the subject, starting from the following question: how the paradigms of
these legal subjects were changed? To answer this question, the concept
of “Justice” – essential for the legal system – is taken as an example
to investigate the impacts on the first legal field (Philosophy of Law).
Therefore, first, I present Hans Kelsen’s vision of Justice, which is, for
him, an issue that is outside Law’s scope of study. Secondly, I present
Hannah Arendt’s perspective on the matter of “Justice” which is seen
in a pragmatic way, that is, it must be strengthen in the “real life cas-
es”. Next, despite the distant argumentative lines, I try to present the
similarities between both theories. That is, both theories aim to combat
the totalitarian wave by means of safe normative procedures in order
to protect and promote fundamental rights. Finally, then, I explore the
consolidation of the Constitutional Democracy’s model- seen as domi-
nant after the atrocities that happened in World War II.
Keywords: Justice. Totalitarism. Constitutional Democracy. Hans Kel-
sen. Hannah Arendt.
274
Recebido 06/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
Este trabalho objetiva, a partir da justificativa do Estado civil de Kant
na obra A Metafisica dos Costumes, analisar a existência ou não de um
direito de resistência, bem como o caminho da reforma do direito. Para
tanto, buscou-se identificar o posicionamento de Kant quanto a Revolu-
ção Francesa, tanto do ponto de vista de seu conteúdo, quanto do ponto
de vista de seu procedimento. Defendendo-se, por fim, que, apesar de
uma primeira leitura sugerir um Kant estritamente contrário a resistên-
cia, uma visão mais detalhada desse tema em suas obras pode sugerir,
na revolução, uma chave para o agir cidadão.
Palavras-chave: Revolução. Reforma. Kant. Filosofia do Direito.
1 INTRODUÇÃO
O tema da revolução tem sido objeto de intensas pesquisas, especialmente no que diz
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
275
excelência de Immanuel Kant, A Metafisica dos Costumes, especificamente, a sua primeira par-
te, intitulada A Doutrina do Direito.
Nesta obra, Kant faz uma distinção entre ações i) contrárias ao dever, ii) conforme
o dever e iii) ações por dever. As primeiras seriam tidas como imorais, as segundas seriam
amorais e apenas as terceiras seriam consideradas éticas, pois seriam realizadas segundo o
imperativo categórico. Desta forma, Kant distingue o Direito da Ética, sendo o agir ético ne-
cessariamente um agir por dever, enquanto o Direito pode ser conforme ou contrário ao dever.
Além disso, enquanto as leis éticas regulam ações internas e externas e não impli-
cam a existência do Estado, as leis jurídicas somente conseguem regular ações externas. Neste
sentido, a Doutrina do Direito procura responder: como são possíveis leis jurídicas morais?
Como o Estado pode ser justo?
Para Kant, essas são questões relevantes, na medida em que é possível e legítimo estu-
dar o Direito partindo-se apenas de uma perspectiva do direito positivo. Entretanto, não se pode
limitar o direito apenas ao direito que está posto, pois, parafraseando o filósofo aqui em análise,
seria como uma cabeça provavelmente bonita, mas impossibilitada de pensar. Devendo-se, por-
tanto, falar em justiça.
Desta feita, e partindo-se de tais pressupostos, foi analisado o fundamento do Estado
de Direito na doutrina kantiana e se há algum espaço para resistência a esse Estado ou modifi-
cação de suas leis em caso de injustiça.
A constituição do Estado civil em Kant não surge de um contrato original real, mas
de um interesse comum da razão universal. Um ato da razão legisladora de homens que se per-
mitem estar abaixo de leis de coação, sem prejuízo de sua liberdade. Esta união se dá para que
haja igual liberdade e autonomia, na medida em que fundamenta os atos públicos em preceitos
racionais, controlando os impulsos da fragilidade humana, e, assim, distanciando-se da injusti-
ça presente no estado de natureza.
Para Kant:
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
“É verdade que o estado de natureza não necessita, simplesmente por ser natural, de
ser um estado de injustiça, de tratar-se mutuamente apenas em termos do grau de força
que cada um tem. Mas ainda persistiria sendo um estado destituído de justiça, no qual,
quando os direitos estão em disputa, não haveria juiz competente para proferir uma
sentença detentora de força jurídica” (KANT, 2008a, p. 154).
Como pode-se perceber, diferentemente de Hobbes (2014), Kant não anula o estado de
natureza com o surgimento da sociedade civil, pois, embora já houvesse direito numa sociedade
sem Estado, este se dava de maneira equívoca, com muitos problemas para se manter. Desta
276
feita, a formação de um ordenamento político-jurídico racional torna viável os direitos naturais
(privados), que antes eram obstaculizados pelo caos.
Neste sentido, o Estado é moralmente necessário para estabelecer as regras de um
direito inequívoco, porque estabelece o modo racional de relação entre sujeitos de direito, ga-
rantindo igual liberdade para todos. Assim, mesmo uma sociedade “feita de anjos” necessitaria
do Estado para julgar as eventuais discordâncias entre o direito mais adequado a ser aplicado.
Para Hobbes (2014), o quadro constante de guerra é a razão de ser do Estado civil, no
entanto, para Kant, embora a guerra impulsione a criação do Estado, ela não é a sua justificati-
va2. Pois, como dito anteriormente, o Estado trata-se de um mandamento moral, um imperativo
categórico:
“E não se pode dizer: o ser humano num Estado sacrificou uma parte de sua liberdade
externa inata a favor de um fim, mas, ao contrário, que ele renunciou inteiramente à sua
liberdade selvagem e sem lei para se ver com sua liberdade toda não reduzida numa
dependência às leis, ou seja, numa condição jurídica, uma vez que essa dependência
surge de sua própria vontade legisladora” (KANT, 2008a, p. 158).
Vê-se aqui uma preocupação em restringir o exercício da liberdade natural movida por
impulsos,na transição do estado de natureza para a condição civil, a fim de reprimir o perigo à
coexistência dos indivíduos pelo exercício de uma liberdade obediente. Logo, pode-se dizer que
o estabelecimento de condições legais de permissão e vedação, e a necessidade dos indivíduos
conformarem seu agir a esse conteúdo coercitivo publicamente imposto, é, implicitamente, o
primeiro dos deveres jurídicos.
Dito isso, ver-se-á se há a possibilidade de resistência dentro da ideia do contrato ori-
ginário, que, como pode-se concluir até aqui, possui um intuito nitidamente ordenador, de ins-
talação e manutenção da paz.
A resistência política é uma ideia presente desde a antiguidade, passando pelo medievo
e sendo melhor trabalhada conceitualmente na Idade Moderna pelos pensadores contratualistas,
como Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau.O tratamento dado à resistência
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
variou,ao longo do tempo, desde a relação pejorativa de ato exercido por facção até a ação legíti-
ma em contextos de opressão. Locke (2005), por exemplo, defendia a legitimidade de resistência
dos súditos quando o soberano conduzisse o governo em prestígio exclusivo de seus interesses
2 Nas palavras de Holtman (2002, p. 215), “The Kantian state is necessary, then, not to transform a chaos ruled by force and wiles into an
order where appetites are coercively reigned in for mutual advantage. It is required to ensure that persons can treat others, and ensure
that they themselves are treated, as free, equal, and independent citizens”. [“O estado kantiano é necessário, então, não para transfor-
mar um caos governado pela força e astúcia em uma ordem onde as paixões são coercitivamente dominadas para vantagem mútua. É
necessário garantir que as pessoas possam tratar os outros e garantir que elas mesmas sejam tratadas, como cidadãos livres, iguais e
independentes]. Livre tradução.
277
privados.
No entanto, na obra A Metafísica dos Costumes, Kant demonstra um esforço no senti-
do oposto aos seus predecessores, numa tentativa de demonstrar a contradição existente em se
admitir um direito de resistência dentro da sociedade civil.
Neste sentido, esclarece Rodrigues (2012, p. 19):
“Como admitir que a mesma razão universal – que conduziu os indivíduos a imperativa
consolidação de uma sociedade apaziguada, conduzida pelo soberano – pudesse, ao
mesmo tempo, conter uma cláusula autorizadora de mecanismos jurídicos legítimos
para o questionamento do poder institucional estabilizador?”.
“A razão do dever que tem um povo de tolerar até o que é tido como um abuso
insuportável da autoridade suprema é sua resistência a legislação maior nunca poder
ser considerado algo distinto daquilo que contraria a lei (...) Para que um povo estivesse
autorizado a oferecer resistência, seria necessário haver uma lei pública que lhe
facultasse resistir, isto é, a legislação maior teria que encerrar uma disposição de que
não é soberana, e que torna o povo, na qualidade de súdito, por um e o mesmo critério,
soberano sobre aquele ao qual está submetido” (KANT, 2008a, p. 163). [grifo nosso].
“(...) mesmo a constituição não pode conter nenhum artigo que possibilitasse a
existência de algum poder no Estado para resistir ao comandante supremo no caso
de haver por parte dele a violação da lei da constituição, de modo a restringi-lo. Pois
alguém a quem cabe limitar a autoridade num Estado precisa ter ainda mais poder do
que quem é por ele limitado, ou, ao menos, tanto poder quanto ele; e, como um senhor
legitimo que dirige os súditos a resistência, precisa também ser capaz de protegê-lo
e prover julgamentos que detenham força jurídica em quaisquer casos que surjam,
devendo, por conseguinte, ser capaz de comandar publicamente a resistência. Neste
278
caso, entretanto, o comandante supremo num Estado não é o comandante supremo;
ao contrário, é aquele que é capaz de lhe oferecer resistência, o que é contraditório”.
(KANT, 2008a, p.162). [grifo nosso].
“O poder legislativo pode pertencer somente à vontade unida do povo, pois uma vez
que todo o direito deve dele proceder, a ninguém é capaz de causar injustiça mediante
sua lei. Ora, quando alguém realiza disposições tocantes a outra pessoa, é sempre
possível que cause injustiça a esta; entretanto, jamais é capaz de produzir injustiça
em suas decisões concernentes a si mesmo. Portanto, somente a vontade concorrente
e unida de todos (...) pode legislar” (KANT, 2008a, p. 156). [grifo nosso].
Aqui, Kant afirma a responsabilidade do povo em honrar com a primeira das obriga-
ções políticas firmadas no pacto inicial, qual seja, a obediência as leis instituídas em unidade.
Tanto é assim, que, em A Metafísica dos Costumes, os cidadãos são chamados de súditos e o
representante legislador de soberano. Logo, se o direito emana do povo, o povo não pode decidir
quem fica fora do direito. Por essa razão, há uma contradição interna no abandono da ideia de
direito pelo povo, através da resistência.
“Se um súdito, após ter ponderado sobre a origem última da autoridade então soberana,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Fica claro então, que tal comportamento não deve ser tolerado, pois trata-se de um
golpe. Logo, se não houver êxito na revolução, quem lhe deu causa deve ser punido segundo
o ordenamento vigente. Por outro lado, se houver êxito, e uma nova ordem entrar em vigor, as
ações tomadas anteriormente a ela não devem ser justificadas moralmente.
Para entender melhor o posicionamento kantiano quanto a esse tema, é importante
279
analisar como ele interpretou o momento histórico da Revolução Francesa, visão esta, que,
dentre outras obras, pode ser encontrada em O conflito das faculdades(KANT, 2008b). Nela,
Kant demonstra-se favorável as ações motoras da Revolução, por coerência aos ideais por ele
defendidos, criticando o Antigo Regime como uma fase que devesse ser superada por esquecer
e insultar os direitos do homem. Por outro lado, o filósofo manifesta indignação pelo procedi-
mento radical adotado no curso revolucionário.
Para ele, o radicalismo levado a concreto pelo movimento revolucionário francês re-
presentou um absurdo: “é como se o Estado cometesse suicídio” (KANT, 2008a, p.165).Trata-se
de um desfazimento completo do contrato originário e um retorno ao estado de natureza e à
ausência de juridicidade. Segundo Bobbio (1997, p. 149) “(...) a atitude de Kant é ao mesmo
tempo de atração e de repulsão, de entusiasmo pela grandiosidade dos eventos e de pavor pelo
desencadeamento das paixões”.
É importante ressaltar, como assinala Ricardo Terra (2003), que os juízos kantianos
sobre a revolução podem ser vistos em diferentes perspectivas: do ponto de vista jurídico, como
já exposto até aqui, e, no que concerne a liberdade, do ponto de vista da filosofia da história, que
melhor pode elucidar as aparentes contradições do filósofo.
Do ponto de vista da análise do progresso humano, a “experiência universal” do entu-
siasmo causado pela Revolução Francesa pode indicar uma disposição moral do caráter huma-
no, a qual permite a progressão para o melhor. De acordo com Fonseca (2010, p. 38):
Com efeito, Kant (2008b) não perde a oportunidade também de afirmar que se um
homem “bem pensante” esperasse repetir um tal acontecimento, não deveria, se reparasse nos
custos de uma revolução, querer empreendê-la mais uma vez.
Porém, esta discussão presta-se a uma análise mais cuidadosa da filosofia da história
kantiana, cujo presente trabalho não comporta fazer.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Dito isto,pode-se concluir que Kant não pressupõe uma perfeição racional das leis
elaboradas na condição civil, como se poderia pensar em um primeiro momento, mas admite a
necessidade de eventuais alterações, sendo estas realizadas dentro de um procedimento legíti-
mo e positivado.
Ao longo de toda obra em análise, Kant mostra-se um completo positivista, pois aplica
280
todos os esforços para salvar o Direito, acreditando nele, e, sobretudo, acreditando na política
para corrigi-lo e transformá-lo.
Para Kant, na condição civil aliena-se o direito de usar a força. Pode-se ter o direito
de reclamar, mas nunca de usar a força contra o Estado, pois tal conduta seria juridicamente
insustentável, como já exposto:
“Mesmo que o órgão do soberano, o governante, proceda contra a lei, por exemplo, se
opor-se a lei da igualdade na distribuição do ônus do Estado em matéria de tributos,
recrutamento, etc., os súditos poderão realmente fazer oposição a essa injustiça
mediante queixas, mas não por meio de resistência” (KANT, 2008a, p.162). [grifo
nosso].
Kant admite a ocasião de reformas graduais na constituição defeituosa, desde que pro-
movidas pelo poder legislativo, ideia essa decorrente do conceito de soberania, cuja titularidade
pertence ao corpo de cidadãos e é diretamente exercida pelos órgãos destinados à atividade
legiferante, sendo qualquer reforma, portanto, conduzida de forma legítima, somente por este:
Embora, na teoria do direito de Kant (2008), em tese, deveres e direitos, não colidam,
na prática, podem haver colisões. Isso ocorre numa situação em que as pessoas ajam de maneira
irracional ou incoerente, podendo colocar os outros em um dilema. É importante deixar claro
que o paradoxo ocorre numa situação específica, não no sistema, e, que, apesar de existirem
281
casos que escapem a racionalidade, isso não justifica aceitar casuísmos3.
No entanto, mesmo que se pense em uma lei que claramente contraria a justiça kantia-
na, ainda surgem problemas sobre a melhor maneira de responder a ela. Holtman sugere que a
chave dessa resposta esteja no “espírito de liberdade” em Kant, cuja expressão se dá:
“(...) não só dando nossa opinião sobre questões políticas, mas recusando,
ocasionalmente, honrar ou cumprir os pedidos do chefe de Estado. O espírito de
liberdade não é, portanto, simplesmente contemplativo; para evitar a contradição, o
cidadão kantiano deve agir, não apenas pensar” (HOLTMAN, 2002, p.226)4.
Neste sentido, embora haja razões formais suficientes para ser contrário a resistência,
também existem, no pensamento kantiano, razões para se concluir que a ideia da revolução não
seja inevitavelmente contrária à justiça, como uma resposta inicial sugere. Sarah Holtman(2002)
elenca quatro implicações, que relacionadas a justiça kantiana, confirmam essa ideia, as quais
sejam:“visão, senso de justiça, orientação e autoconcepção” (HOLTMAN, 2002, p. 229-231).
Com relação a primeira implicação, em geral, quem sofre as tensões psicológicas so-
ciais, pode ter dificuldade em formar uma imagem abrangente dos maus que estão sendo pra-
ticados e das etapas necessárias para mudanças positivas. A notícia do ato revolucionário pode
ser um catalisador para o pensamento, preparando aqueles, agora quase incapacitados, para
entender os erros cometidos, pois o medo e o horror têm o poder de fechar os olhos ao papel de
avaliação como cidadãos.
O senso de justiça é aquele que desperta nas pessoas acometidas pelo medo, uma
paixão pela justiça. A busca por alguma maneira de explicar um ato surpreendente de bravura
ou tolice (a resistência) pode provocar o reconhecimento intelectual da injustiça que deve ser
corrigida. Mas, ver profundamente, perceptivamente, o que deve ser feito e ser movido para o
fazer, normalmente exige mais.
A quarta implicação consiste em que, por vezes, a sensação de obediência suprema
por parte do povo pode ajudar a evitar que os cidadãos reconheçam a profundidade dos erros
cometidos em torno deles. Neste cenário, o ato revolucionário pode ser também um fator de
orientação, na medida em que me possibilita a comparação entre uma injustiça e outra.
A autoconcepção está relacionada ao cidadão idealizado por Kant não ser meramente
uma criança a ser dirigida. Ele participa e tenta corrigir erros em leis e instituições, consideran-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
3 “Justice may indeed be underdetermined for some, even many, circumstances. This does not mean, though, that it is underdetermined in
all circumstances and for all questions. Certain laws and institutions will clearly contravene basic Kantian commitments (…) This seems
to be the case, for example, where what is at issue is the state’s participation in genocide, slavery, or severe discrimination on cultural, re-
ligious, or racial grounds” (HOLTMAN,2002, p.225). [A justiça pode, de fato, ser subdeterminada para algumas circunstâncias, mesmo
muitas. Isso não significa, porém, que está subdeterminada em todas as circunstâncias e para todas as questões. Certas leis e instituições
irão violar claramente os compromissos básicos de Kant (...) Este parece ser o caso, por exemplo, onde o que está em causa é a participa-
ção do estado no genocídio, no esquecimento ou na discriminação severa por motivos culturais, religiosos ou raciais”]. Livre tradução.
4 “(…) not only by giving our opinion on political issues, but by refusing on occasion to honour or comply with the requests of the head
of state. The spirit of freedom is thus not simply contemplative; to avoid contradiction, the Kantian citizen must act, not merely think”
(HOLTMAN, 2002, p. 226).
282
Por fim, para Holtman (2002), apesar dos perigos da revolução, às vezes respeitamos
os cidadãos livres, iguais e independentes, tentando remover o governo de seu lugar. Embora
o método revolucionário seja questionável, o poder de despertar e informar a capacidade da
cidadania nos outros e preservá-la em nós mesmos será melhor do que a decisão de nunca agir
em uma situação controversa.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
283
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. 2. ed. Tradução, textos adicionais e notas de
Edson Bini. Bauru: Edipro, 2008.
______. O conflito das faculdades. Trad. de Artur Morão. Covilhã: Universidade da Beira
Interior, 2008. (Coleção Textos Clássicos da Filosofia).
______. À paz perpétua. Tradução e prefácio de Marco Zingano. Porto Alegre: L&PM
Editores, 2011. (Coleção L&PM POCKET).
LOCKE, John. Dos tratados sobre o governo. Trad. de Julio Fischer. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
TERRA, Ricardo Ribeiro. Passagens: estudos sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2003.
ABSTRACT
This paper aims, from the justification of the civil state, in the work
The Metaphysics of Morals, to analyze whether or not a right of resis-
tance, as well as the way of the reform of the law. In order to do so, we
sought to identify Kant’s position regarding the French Revolution, both
in terms of its content and in the point of view of its procedure. Finally,
it is argued that, although a first reading suggests a Kant strictly against
resistance, a more detailed view of this theme in his works may suggest,
in the revolution, a key to the citizen action.
Keywords: Revolution. Reform. Kant. Philosophy of Law.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
284
Recebido 14/08/2017
Aceito 30/10/2017
RESUMO
A pesquisa trata da importância da educação como direito fundamen-
tal e social, na concretização do paradigma do Estado Democrático de
Direito. Defende a importância de políticas públicas para a efetivação
do direito à educação como direito fundamental. Assevera o direito à
educação como elemento essencial na vivência da própria dignidade da
pessoa humana. Ao tratar-se da educação como direito fundamental so-
cial, demonstra-se que não há uma autoaplicabilidade, sendo imprescin-
díveis as ações estatais e a participação de toda a população para uma
eficácia social na concretização do paradigma do Estado Democrático
de Direito.
Palavras-chave: Educação. Políticas públicas. Estado Democrático de
Direito.
1 INTRODUÇÃO
1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-Graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade
Estadual de Londrina. Técnico em Administração de Empresas. Integrante do Grupo de “Hermenêutica Constitucional: a judicialização
e o limite interpretativo do poder judiciário” da Universidade Estadual de Londrina.
285
A educação como direito fundamental social ocorre por meio de políticas públicas
adequadas e através da participação efetiva de todos os cidadãos, sendo que esses só podem
participar efetivamente por meio de um processo educacional, possibilitando-lhes a plena com-
preensão do paradigma do Estado Democrático de Direito com seus pressupostos e exigências.
Para a realização da democracia, não basta atribuir a um elevado número de cidadãos o direito
de participar, direta ou indiretamente, da tomada de decisões coletivas.
Para que a população tenha efetivamente a possibilidade de um exercício democrático,
o direito fundamental à educação é essencial para a formação de todo ser humano, uma vez que
a educação funciona como processo de interação social e participação política, inclusive na ela-
boração das leis. O Estado Democrático de Direito é decorrência de uma democracia represen-
tativa, participativa e pluralista, garantindo a realização de prática dos direitos fundamentais,
inclusive dos direitos sociais.
A Constituição Federal, artigo 6º, traz a lume que a educação é um direito social,
bem como um direito fundamental, de modo que o artigo205 da Constituição Federal trata da
educação como direito de todos e dever do Estado e, inclusive, da família, asseverando que a
educação será incentivada e promovida com a colaboração de toda sociedade.
Nesse espeque, o alcance para todas essas garantias contidas no texto constitucional,
para uma participação efetiva do intérprete, só é possível através de um processo educacional,
vez que a ausência de uma educação básica e integral do indivíduo ocasiona sua exclusão, com
consequente ausência de participação política.
O método utilizado é o dedutivo, através do qual se inicia a pesquisa por meio de con-
ceitos gerais do significado semântico e sócio-político de Estado Democrático de Direito para,
após, buscar-se a compreensão da importância da formação educacional em relação às normas
jurídico-constitucionais, onde o intérprete, através de uma formação adequada, participe e des-
frute efetivamente da democracia. Para tanto, utiliza-se de dados obtidos a partir de levanta-
mento bibliográfico, apoderando-se, como fonte de pesquisa, do estudo legal e doutrinário.
A educação possui grande importância na atualidade, uma vez que trata-se dedireito
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
fundamental social. Sendo assim, uma breveincursão histórica se faznecessária para o entendi-
mento das problemáticas hodiernas.
Os gregos preocupados em relação à interação entre o processo histórico da formação
do ser humano e o seu processo espiritual, produziram seu projeto ideal de humanidade:
286
A educação não seria propriedade apenas de alguns indivíduos, mas de toda a comuni-
dade, bem como “em nenhuma parte o influxo da comunidade nos seus membros” teria maior
força que no esforço contínuo de educar (JAEGER, 2003, p. 4). Deveria ser um processo de
construção consciente, “só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a palavra
formação” (JAEGER, 2003, p. 13).
Como aponta Jaeger:
Para o povo grego, acima do homem supostamente autônomo, seria necessário com-
preender o homem como um ser universal. A essência da educação consistiria, justamente, na
modelagem dos indivíduos pelas normas da comunidade (JAEGER, 2003, p. 14).
A educação, no sentido mais amplo, significa:
287
os seres humanos para uma construção e participação autônomas na criação de sua própria
história.
A ordem jurídica “que de modo algum é pressuposto, não está dada, porém, pelo con-
trário, constitui uma tarefa, pois o processo de formação de uma unidade política e de uma
ordem jurídica é, antes de tudo, um processo histórico concreto” (ALFLEN DA SILVA, 2000,
p. 349/350), o qual reclama uma colaboração consciente de toda a sociedade.
A educação por uma série de fins úteis é indicada:
É importante trazer à tona o conceito de Estado Democrático de Direito, uma vez que
énele que a educação deve ocorrer e ser concretizada. Sendo assim, José Afonso da Silva traz
abordagem relevante quanto ao conceito de democracia:
288
liberalismo colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a
sociedade democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito
de Estado Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. (AFONSO DA
SILVA, 2013, p. 114,grifo do autor).
[...] que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão decidir sejam
colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre
uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir
sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão
das próprias opiniões, de reunião, de associação, etc. — os direitos à base dos quais
nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido
forte, isto é, do estado que não apenas exerce o poder sub lege, mas o exerce dentro
de limites derivados do reconhecimento constitucional dos direitos “invioláveis” do
indivíduo (BOBBIO, 1986, p. 20, grifo do autor)
E “seja qual for o fundamento filosófico destes direitos, eles são o pressuposto necessá-
rio para o correto funcionamento dos próprios mecanismos predominantemente procedimentais
que caracterizam um regime democrático” (BOBBIO, 1986, p. 20).
Para que os cidadãos tenham efetivamente a possibilidade de um exercício democrá-
tico, o direito fundamental à educação é essencial para a formação de todo ser humano, uma
vez que a educação funciona como processo de mediação de sociabilidade. “Ou seja, a prática
educativa tem também a finalidade intrínseca de inserir os sujeitos oriundos das novas gerações
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
no universo social, uma vez que eles não poderão existir fora do tecido social” (SEVERINO,
1994, p. 71).
Deve haver a ideia vinculada de proteção aos direitos fundamentais, uma vez que “a
norma jurídica emanada do poder competente deve ter como primazia a garantia do respeito
inarredável dos direitos individuais e sociais fundamentais do homem” (PRADO, 2010, p. 63):
289
Nesse sentido:
2.2 A educação como direito fundamental social à luz do Estado Democrático de Direito
290
no segundo tópico. Compreende-se que há premissas destinadas a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igual-
dade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, livre, justa e solidária e sem
preconceitos, com fundamento na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político (AFONSO DA SILVA,
2013, p. 127).
Conforme a própria Constituição Federal “o poder emana do povo”, ou seja, ouo poder
é concretizado por meio de representantes eleitos indiretamente, através do voto, ou o poder
é exercido pela participação direta da população. O artigo 6º traz à tona que a educação é um
direito social, e é um direito fundamental. Segundo o artigo 205 da Constituição brasileira, a
educação é erigida como direito de todos e dever do Estado e da família, será incentivada e
promovida com a colaboração de toda sociedade.
O alcance para todas essas garantias delineadas pelo texto constitucional, para uma
participação efetiva do intérprete, só é possível através da educação. A carência de uma edu-
cação básica e integral do indivíduo é fator excludente de sua participação política (GOMES,
2002, p. 12).
ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirma-
da na conclusão” (KELSEN, 1999, p. 136).
Segundo Hans Kelsen, “todas as normas cuja validade pode ser reconduzida a uma e
mesma norma fundamental formam um sistema de normas, uma ordem normativa” (KELSEN,
1999, p. 136). A norma fundamental é a fonte comum da validade de todas as normas perten-
centes a uma e mesma ordem normativa, o seu fundamento de validade comum, nesse sentido, o
direito à educação encontra-se em um patamar de norma fundamental (KELSEN, 1999, p. 136).
E não é só isso, porque, inclusive, entre a norma e a realidade existe uma tensão per-
291
manente, da qual derivam as possibilidades e os limites do direito constitucional (BARROSO,
2009, p. 80).
Não é à toa que Konrad Hesse diz que a Constituição tem força normativa e:
Konrad Hesse assevera que a Constituição não pode, por si só, realizar nada, ela pode
impor afazeres. Essas tarefas, para serem efetivamente praticadas, requerem ações que orien-
tem a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, assim sendo, a Constituição transfor-
ma-se em força ativa. Por isso, é importante que se façam vigentes no pensamento coletivo e dos
entes públicos “na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional –, não só a
vontade de poder, mas também a vontade de Constituição” (HESSE, 1991, p. 7).
3.1 Políticas públicas para a implementação da educação como direito fundamental social
Desenvolver ações que visem concretizar a educação como direito fundamental social
é de extrema relevância. Sendo assim, épreciso que, por meio de políticas públicas, se estabele-
ça dentro do contexto do Estado Social de Direitos, um plexo de ações voltadas à intervenção
Estatal e à sociedade como um todo, no sentido de concretização daquilo que está previsto na
Constituição (SIQUEIRA, 2011, et seq). Ademais, o Estado atual deve repudiar as bases da
filosofia político-liberal e ser “a providência do seu povo”, no sentido de assumir para si certas
funções essenciais ligadas à vida e desenvolvimento da nação e dos indivíduos que a compõe,
em atento com o que preceitua a Constituição Brasileira.
Isso não quer dizer que o Estado esteja sendo extremamente paternalista, porque não
é verdade. O Estado deve se distanciar da ultrapassada filosofia política do Estado Liberal, que
era extremamente restritiva quanto às funções estatais. Além do mais, a educação como direito
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
292
DINAMARCO, 2012, p. 46/47).
Portanto, “essa atividade compreende obras e prestação de serviços relacionados com
a ordem social econômica e compreende também as providências [...]” (CINTRA; GRINOVER;
DINAMARCO, 2012, p. 46/47). E “a igualdade de oportunidades e a asseguração do mínimo
existencial somente poderão surgir se a todos for assegurado o direito a processo educacional
adequado (SOUZA, 2009, p. 88).
Há, portanto, uma dependência da ação estatal. E as normas sociais se enquadram
como normas de eficácia limitada, necessitando de regulamentação e intervenção Estatal, e sem
a ação estatal, a eficácia da norma não se produz por completo (SILVA, 2010, p. 233). Segundo
Virgílio Afonso da Silva, “a limitação dessa eficácia ficaria ainda mais clara em face dos custos
que esses direitos implicam para o Estado, que, por isso, não tem condições de agir da forma
esperada”. Além do mais, “a baixa efetividade desses direitos seria uma demonstração do cará-
ter limitado das normas que os garantem” (SILVA, 2010, p. 233/234).
É possível sedimentar uma conclusão que defenda normas garantidoras de direitos
fundamentais sociais. No entanto, para que essas normas produzam materialmente seus
efeitos, transcendendo o âmbito formal, exigem regulamentações. Nesses casos, de normas de
eficácia limitada, onde o direito à educação se enquadra, “também os direitos sociais devem ser
concebidos como direitos com suporte fático amplo” (SILVA, 2010, p. 238).
3.2 Desafios para o século XXI na realização de medidas para a concretização da educação
Pedro Demo, (2004, p. 20), aduz que se deve acenar para a modernidade, haja vista os
desafios que o futuro aponta para as novas gerações. Mas, também, o entendimento de tendên-
cias típicas das sociedades atuais e futuras, a capacidade de se adequar e responder aos desafios
da modernidade, capacidade de entender, questionar, e, principalmente, de enfrentar novas ano-
malias sociais, capacidades que só serão ampliadas através de uma educação de base.
Todo esse processo requer tempo e consciência da grande importância de que é um
investimento precioso, e não custo, isso porque é algo em construção, posto que “não nascemos
prontos” (CORTELLA, 2006, p. 11). A participação efetiva da população como um todo só se
dá através da educação, uma vez que “o conteúdo da norma e o resultado da concretização her-
menêutica não depende só da atividade jurisdicional e/ou da administração em geral” (SILVA,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
2000, p. 356).
É um processo dialógico entre população e o poder público estatal, já que não basta,
simplesmente, inserir um rol de enunciados formais para justificar a produção de leis desatentas
à realidade. São necessários mecanismos que tornem efetiva a transformação do ser humano em
sua formação, criando, conforme demonstra Pablo Lucas Verdú (2006, p. 55),o sentir constitu-
cional como modo de integração política. Não se deve esquecer afunção social e pública que a
educação representa na sociedade contemporânea (LOMBARDI, 2001, p. 39).
A educação é um direito fundamental social necessário para a concretização do Esta-
do Democrático de Direito. Como bem expende Hans-Georg Gadamer, a formação propicia o
293
aperfeiçoar humano, suas faculdades e aptidões. Assim, tem-se que, há uma transferência que
deve ser compreendida, depreendendo-se que, o resultado da formação não é produzido como
intento tecnicista, ou seja, não há uma finalidade técnica, mas traz consigo a ideia do nasci-
mento, do despertar de um processo interno de constituição e formação, que permanece em
constante evolução e aperfeiçoamento (2009, p. 212).
No intento de formação do ser humano, e não de deformá-lo, é preciso ter em mente,
como alerta Paulo Freire (2001, p. 17), “os homens educam-se uns aos outros mediatizados pelo
mundo”. Todavia, é preciso uma educação que liberte os cidadãos, possibilitando-lhes tornar
sujeitos em busca de sua ocupação política, afastando-se elementos incertos, tornando-se su-
jeitos transformadores da história, em solidariedade à coletividade (SCHMIED-KOWARZIK,
1983, p. 69-70).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado Democrático de Direito não está anteriormente dado aos seres humanos
como algo acabado, estático e definitivo. Pelo contrário, é fundamental a educação básica dos
indivíduos, porque a educação é um processo de mudança da interpretação da realidade e pos-
sibilita a realização da democracia e do próprio paradigma estatal insculpido no preâmbulo da
Constituição Federal.
A educação é direito fundamental social no Estado Democrático de Direito e prescinde
de políticas públicas para a sua realização, bem como é imprescindível para a concretização do
Estado Democrático de Direito que não é algo pronto, mas requer constante aperfeiçoamento,
em constante construção, para que toda a humanidade vivencie uma verdadeira democracia.
Desse modo, fazem-se necessárias ferramentas que tornem efetiva a transformação do
ser humano através de um processo educacional.Assim,de um lado existe uma dependência da
ação estatal,vez que as normas sociais se amoldam como normas de eficácia limitada, necessi-
tando de regulamentação e intervenção estatal, e sem a ação estatal, a eficácia da norma não se
produz por completo, todavia, toda essa estrutura requer a participação do povo.
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FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ABSTRACT
296
The research deals with the importance of education as a fundamental
and social right, in the implementation of the paradigm of the Dem-
ocratic State of Law. It defends the importance of public policies for
the realization of the right to education as a fundamental right. It had
affirmed the right to education as an essential element in the realization
of the dignity of the human person. When it comes to education as a
fundamental social right, it demonstrates that there is no self-applica-
tion, and state actions and the entire population are essential in a partic-
ipatory manner for social efficiency.
Keywords: Education. Public policy. Democratic state.
297
EL FENÓMENO JURÍDICO Y FORMAS BÁSICAS DE PENSAR EL DERECHO1
RESUMEN4
Este artículo presenta el lugar apropiado donde se sitúa la Asignatu-
ra de Filosofía del Derecho, como relación que se establece entre los
campos de la Filosofía y de los estudios jurídicos, seguido de posibles
articulaciones conceptuales del Derecho, como fenómeno normativo,
político, social e histórico. Evidencia, igualmente, dos enfoques meto-
dológicos para tratar el asunto: la fusión de horizontes entre las concep-
ciones filosóficas y propiamente jurídicas, históricamente consideradas;
así como las cuatro concepciones fundamentales del Derecho surgidas
en el pensamiento occidental: el Derecho Natural, antiguo y moderno;
el Derecho Racional, el Derecho como fuerza y como técnica social:
el Derecho Positivo. A la exposición de los postulados de las teorías,
se añade un breve muestreo de cómo se puede hacer problemático un
análisis filosófico de dichos enfoques. En las consideraciones finales se
presenta una propuesta de discusión para el tema e indicación, en las
Referencias, de los principales autores enfocados.
Palabras clave: Filosofía. Naturalismo. Racionalismo. Positivismo.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Artículo para estudiantes de Ciencias Jurídicas y Sociales, operadores e investigadores de Derecho que deseen profundizar em la inter-
faz entre lãs concepciones filosóficas y legales presentes em el pensamiento occidental.
2 Licenciado em Derecho, Maestria em Filosofía, Profesor de la Universidade Feevale, doctor por el Programa de Postgrado de Unisinos
em la Línea de Investigación del Lenguaje, Racionalidad y Discurso de la Ciéncia. Av Pernambuco, 1690 - CP 90240-002 - Porto Alegre
/ RS, correo electrónico: henriquek@feevale.br. Teléfono: 051 - 999.55.27.01
3 Doctora em Derecho por la Universidad de Burgos (España), Maestra em Derecho de la Universidade de Santa Cruz do Sul, Especialista
em Derecho por la Universidade de Santa Cruz do Sul. Abogada.
4 Traductora: Andrea de Araújo Rubert, Licenciada en Letras por la Universidad Federal del Rio Grande del Sur e por el Programa de
Postgrado de la Universidade do Minho, en Portugal, em la línea de investigación de Português como segunda língua.
298
1 SITUANDO LA ASIGNATURA
En un estudio como este, la mejor metodología que se puede emplear es, antes de
otras consideraciones, situar la Asignatura de la Filosofía del Derecho, no sólo como una de las
posibilidades de los Currículos de las Carreras de Derecho, sino como un campo que pretende
reunir conocimientos más específicos, originado, de forma directa, de la relación constitutiva
que se establece entre la Filosofía y el propio Derecho. Ese procedimiento es seguido por la
mejor doctrina, de tal forma que, al discurrir sobre la Filosofía General, como sistematización
del pensamiento y enfrentamiento del propio pensamiento acerca del mundo y del ser, Mascaro
coloca a la Filosofía del Derecho como un objeto específico de aquella, en la medida en que “(...)
la Filosofía del Derecho no es más que la Filosofía General con un tema específico de análisis,
el Derecho” (MASCARO, 2010, p. 10).
En ese esfuerzo de situar la Asignatura, por lo tanto, según el mismo autor, se exige
“(...) una doble especificidad: ella es una rama específica de la Filosofía General y el máximo
pensamiento posible sobre el Derecho”; de modo que:
Siendo la Filosofía del Derecho la propia Filosofía General, con un objeto específico,
el Derecho, la indagación que se pone preliminarmente, se refiere a la propia ubicación
de lo que sea jurídico, ya que es esto lo que da identidad a la Filosofía del Derecho.
(MASCARO, 2010, p. 18).
299
Por su parte, Miguel Reale así se posiciona:
Estos autores ahora citados, por lo tanto, añaden a la Asignatura su carácter crítico,
en el sentido de buscar no sólo cuestionar los fundamentos del Derecho, como también el de
analizar el propio pensamiento, la propia característica del modo en que opera el razonamiento
jurídico, en sus instancias, sus institutos, en la formulación de sus postulados, para, además de
verificar en cuanto a su naturaleza, provocar los cambios que la dinamicidad de sus construc-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ciones conlleva.
A su vez, Cretella Jr. explica que: “Filosofía del Derecho es la exposición crítico- eva-
luativa de experiencia legal, en la universalidad de sus aspectos, mediante la indagación de los
primeros principios que informan a los institutos jurídicos, los derechos y los sistemas.” (CRE-
TELLA JR., 1999, p. 15).
Otro aspecto, se suma a la especificidad de la Asignatura ya presentada en su carácter
crítico, el de operar de forma a cuestionar la propia articulación de los valores que, en deter-
minada circunstancia, informaron, o mejor, sirvieron de base constitutiva para los principios
jurídicos, los diversos derechos erigidos sobre la base de tales valores y, aún, los sistemas jurí-
300
dicos como un todo que compone la estructura compleja del Derecho. De esta forma, se busca
por su universalidad, no sólo enfocada en los aspectos referentes a sus ordenamientos formales,
esto es, de su conjunto propio de leyes, no sólo en aquello que tales ordenamientos albergan de
aplicaciones prácticas a la convivencia humana, sino en lo que tales institutos sirven como base
que hace posible tal convivencia y tal sociabilidad intrínseca a la condición humana.
Podemos, ahora, con Bittar y Almeida, afirmar que, al cuestionar los fundamentos de
la experiencia jurídica como un todo, en su teoría y práctica, las investigaciones propias de la
Filosofía del Derecho, se prestan a abrir horizontes para otras posibilidades de sentido de los
institutos jurídicos, como, por ejemplo, proponer algunas metas y tareas que están comprendi-
das en esas perspectivas, que pueden expresarse así:
a. proceder a la crítica de las prácticas, de las actitudes y de las actividades de los ope-
radores del Derecho;
b. evaluar y cuestionar la actividad de legislar, así como ofrecer apoyo reflexivo al le-
gislador;
c. proceder a la evaluación del papel desempeñado por la ciencia jurídica y el compor-
tamiento del jurista sobre ella;
d. investigar las causas de la desestructuración, el debilitamiento o la ruina de un sistema
jurídico;
e. depurar el lenguaje jurídico, los conceptos filosóficos y científicos del Derecho;
f. investigar la eficacia de los institutos jurídicos, su acción social y su compromiso con
cuestiones sociales, ya sea con respecto a los individuos, ya sea con respecto a los
grupos o comunidades, así como a las preocupaciones humanas universales;
g. aclarar y definir la teleología del Derecho, su aspecto evaluativo y sus relaciones con
la sociedad y losanhelos culturales;
h. rescatar orígenes y valores fundantes de los procesos e institutos jurídicos;
i. mediante la crítica conceptual, institucional, valorativa, política y procesal, asistir al
juez en el proceso decisorio. (BITTAR y ALMEIDA, 2001, p.16)
Al aclarar una posible especificidad de la Filosofía del Derecho, así como, concomitan-
temente, presentar algunas consideraciones acerca de los aspectos del fenómeno jurídico que se
propone averiguar, ese elenco de tareas que se puede realizar con sus investigaciones pueden
colocarnos en un espacio seguro en cuanto a los propósitos de la Asignatura, una vez que, por
el examen de esos postulados, se puede cuestionar y analizar el fenómeno jurídico en aspectos
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
301
o sea, bases referenciales para la actividad propia de legislar, bien como de las condiciones de
aplicabilidad de las leyes por los órganos jurisdiccionales del Estado.
Su tarea de evaluación se vuelve igualmente al papel que la ciencia jurídica desempeña
en el contexto de la sociedad y al papel del jurista ante ella, también aclara en ese sentido, la
dinámica de los institutos jurídicos que, una vez vigentes y una vez constituidos en un sistema,
pasan por modificaciones, a veces tan profundas a punto de desnaturalizarse y de no sólo dejar
de ser significativas en una determinada sociedad y contexto histórico, como de perder su efi-
cacia y aplicabilidad, siendo sustituidos por otros.
En la tarea de buscar por los fundamentos del Derecho, no se puede dejar de analizar el
lenguaje conceptual de que se constituyen los institutos jurídicos, su corrección terminológica,
su adecuación correcta a los principios generales informadores del Derecho, buscando aclarar
los valores estatuidos por las normas, y por la propia finalidad de las normas, en el sentido de
verificar si, efectivamente, corresponden a los anhelos de dada cultura, en sus aspectos consti-
tutivos más basilares.
De la misma forma, las investigaciones de la Asignatura analizan la dinamicidad pro-
pia del Derecho, cuando éste se dirige a establecer las relaciones entre los individuos y grupos
integrantes de las sociedades y de la propia colectividad como un todo, enfocadas en los valores,
predisposiciones y nociones y concepciones que digan respeto a la condición humana, en sus
aspectos particulares y universales. En ese sentido, no podía dejar de asesorar al Poder Jurisdic-
cional del Estado en su momento máximo, es decir, el de la decisión del juez, en sus instancias
apropiadas.
definición fija, prefiere seguir el camino metodológico de presentar algunas características esen-
ciales del fenómeno jurídico como un todo, relacionándolo, de inmediato, como una de las ex-
presiones del contexto social, en el que se articulan aspectos perennes y, de forma paradójica,
esencialmente dinámicos:
302
dialéctico. De la discusión entre varias corrientes, se buscan las soluciones legislativas.
(VENOSA, 2009, p. 06)
Por ese aspecto histórico del Derecho, se refuerza su carácter esencialmente dialéctico,
ya que la experiencia histórica de los pueblos y naciones puede ser averiguada a partir de las
construcciones jurídicas instituidas en una época que se quiera analizar, de tal forma que, en
cada período considerado, se pueden ver los valores estatuidos como norma jurídica y de ahí
303
deducir su dinámica propia, reflejo de los institutos que permanecen y quese deshacen, en rela-
ción directa con las concepciones que las sociedades pudieron elaborar como reglas o normas
para regular su propia conducta.
El aspecto paradójico de este movimiento proviene del hecho de que, al analizar estos
institutos jurídicos en su experimentación histórica, se puede percibir que datos fundamentales,
como, por ejemplo, la protección de la vida, siempre estuvieron presentes en las normas y le-
gislaciones, a pesar de las diferentes formas con las que se presentaron. Otro de esos principios
básicos y que permea todo el ámbito del Derecho, se refiere a las concepciones de Justicia: va-
riables en cada cultura, en cada momento histórico, en cada conjunto de normas objetivas que
se encargan de su ejecución, pero presente en su universalidad en cada uno de esos aspectos. No
se tiene, por tanto, en el Derecho, solamente la relatividad de los valores, como ya se ha men-
cionado, sino la perennidad de valores, considerados en su aspecto universal, como principios
informadores que el propio género humano elaboró para sí mismo y en función directa de las
concepciones de su propia humanidad.
En su Diccionario de Filosofía, Abbagnano propone una larga conceptualización de
Derecho, también apunta algunas de las características marcadas ya presentadas en ese estudio
acerca del fenómeno jurídico:
304
en la técnica que, al mediar las relaciones recíprocas fundamentales, posibilita la existencia hu-
mana como coexistencia, como convivencia ordenada de las relaciones sociales; e de esa forma
se establece el carácter mutuamente constitutivo entre Derecho y sociedad.
En ese sentido, también se posiciona Venosa, al establecer las relaciones entre técnica,
conjunto de reglas y relaciones humanas fundamentales de convivencia intersubjetiva:
(...) el Derecho traduce una realidad histórico-cultural. No hay Derecho fuera del
mundo de la cultura, insertado en el contexto histórico. Por esa razón se afirma que
el Derecho es atributivo, porque realiza, permanentemente, valores de convivencia.
Realizar el Derecho es, por lo tanto, realizar la sociedad como comunidad concreta,
que no se reduce a un amorfo conglomerado de personas, sino que forma un orden de
cooperación, de comunión de finalidades. Para poder reaccionar este desiderato, el
Derecho es coercible, debe ser impuesto por normas de conducta. Este objetivo deriva
de elecciones entre imperativos que integrarán las normas. (VENOSA, 2009, p. 16)
Es importante resaltar aquí, una característica fundamental del Derecho, ademas de las
otras posibilidades conceptuales presentadas, o sea, su coercibilidad. Puesto que su conjunto
de normas se refiere a conductas obligatorias, no a meras facultades de actuar en ese o en aquel
sentido, libremente al gusto de la subjetividad de cada individuo, pero de obligar a un orden
general, aunque opere excepciones fundamentales a la condición de cada uno individualmente,
o, en sentido propiamente jurídico, a las personas que interactúan en ese contexto.
Se constata, de pronto, otra de las condiciones de la dinámica del fenómeno jurídico,
ya que establece las dialécticas y contradictorias relaciones entre lo que es personal, subjetivo
y lo que se refiere al conjunto del ordenamiento social, como reglas coercitivas de convivencia
recíprocas, no como forma de anular una u otra, sino de presentarlas en una síntesis armoniosa
y armonizadora de las mismas relaciones, en la multiplicidad y diversidad de sus aspectos. Se
sigue, por ejemplo, que el ser humano como individuo, puede elegir por no seguir tales reglas, lo
que trae consecuencias obvias: o no podrá vivir en sociedad, o tendrá que arcar con las cargas/
castigos, derivados de sus propias prácticas.
El autor arriba mencionado, concluye con la afirmación de que la profundización de
esas cuestiones pertenece a la Filosofía del Derecho y, luego, podemos apuntar otro doctrinador
que, al conceptuar el fenómeno jurídico, elabora una teoría tridimensional del Derecho, de la
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
cual no se aparta ninguna expresión de la experiencia jurídica, en cuanto hecho social, valor y
norma. Nos referimos, pues, a Miguel Reale, que así se posiciona:
305
En consonancia con el enfoque seguido en el presente estudio, el mismo autor consi-
dera que:
Realizar el Derecho es, por lo tanto, realizar los valores de coexistencia, no este o aquél
individuo, no este o aquel grupo, pero de la comunidad, concebida de manera concreta,
es decir, como una unidad de orden que tiene valor propio, sin ofensa uolvido de los
valores peculiares a las formas de vida de los individuos o de los grupos. “(REALE,
2009, p. 701).
Un poco adelante, en la misma obra, Reale aclara que usa la expresión ordenación,
con el propósito claro de añadir otro carácter fundamental del Derecho, o sea, la problemática
cuestión relacionada al poder, a través del cual, en su núcleo, el Derecho tiene el objetivo de,
incluso por el ejercicio de la fuerza, realizar los valores estatuidos por las normas vigentes en
una determinada sociedad, en cierto contexto histórico. Por lo tanto, el Derecho presenta una
forma ordenadora específica y el poder como garantía de su actualización, o sea, de su realiza-
ción efectiva.
Por lo expuesto, se percibe, una vez más, el Derecho, considerado en sus aspectos am-
plios y universales, no sólo como normas abstractas, formuladas sin vínculos con los contextos
sociales e históricos a los que se refieren, sino, al contrario, como sustancialmente vinculados a
esos mismos contextos, como una forma específica de presentarles en cierto orden, en función
de los valores humanos seleccionados, tanto en sus aspectos relativos, como perennes.
Así, en un análisis de tales contextos, no se podría huir de un examen de los institutos
jurídicos que los componen, justamente por eso, porque los constituyen, porque los posibilitan,
porque es a través del Derecho que se presenta una de las más concretas articulaciones de las
estructuras sociales e históricas que corresponden a la experiencia humana. Y la existencia de
la sociedad no puede prescindir, a su vez, de la realización del Derecho, como ya se ha mencio-
nado anteriormente, de su efectividad como experiencia propiamente humana.
306
los innumerables tratados que se presentan sobre el tema.
Se trata de presentar, en ese estudio, las principales temáticas y pensadores, en su
situación histórica, así como con una breve problematización filosófica, a partir de un enfoque
fenomenológico, que evidencia las concepciones generales del Derecho, no como definiciones
cerradas, sino como definiciones que se comunican y se construyen conjuntamente, en el sen-
tido de ser presentadas como posibilidades de pensar el fenómeno jurídico. Sin embargo, al
enumerar, aunque no exhaustivamente tales pensadores y temas, dejamos la provocación en el
sentido de que se hace siempre necesaria la investigación posterior, a partir de un texto intro-
ductorio de tales enfoques, como ya se ha mencionado.
La primera de las concepciones, o sea, la del Derecho Natural resulta de las especu-
laciones filosóficas que también buscaban un fundamento para el conocimiento como un todo,
307
al reconocer en la racionalidad humana las condiciones de una validez universal y necesaria de
los conceptos, en contraposición con la variabilidad de las formas y objetos que se abrían a las
facultades cognitivas.
La tarea de esta forma de pensar el Derecho era la de se lo dar un fundamento constan-
te e invariable, que apoyara su validez universal, en principios perennes, que no representasen la
mutabilidad de las formas accidentales y transitorias, constantes en las legislaciones específicas
de los diversos pueblos y naciones.
Se hizo una especie de primer estudio comparado de las diversas legislaciones vigen-
tes en el mundo antiguo, verificándose que determinados pueblos y naciones valoraban ciertos
aspectos y otros no; y tal variabilidad condujo a la idea de imperfección de tales ordenamientos,
principalmente porque surgían las primeras formas de pensar la organización perfecta de las so-
ciedades humanas. Por eso, Abbagnano, en la obra citada, afirma que: “El Derecho natural es la
perfecta racionalidad de la norma, es decir, la perfecta adecuación de la norma a su propósito de
garantizar la posibilidad de la vida asociativa. Los diversos derechos positivos son realizaciones
imperfectas o aproximativas de esa normatividad perfecta.” (ABBAGNANO, 1982, p. 260).
Así, el fundamento del Derecho es la normatividad perfecta que, a su vez, es la expre-
sión de una perfecta capacidad racional de ordenar los dispares factores de la condición huma-
na, considerados desde el punto de vista individual o colectivo, para instaurar una convivencia
humana recíproca, en principios universales y necesarios. Esta fase también se puede dividir
en Derecho Natural Antiguo y Derecho Natural Moderno, cada una de las subdivisiones que
presentan variaciones del diseño en general, como lo vemos ahora.
En la Fase Antigua, considerada clásica, la ley natural emana del orden racional per-
fecto del universo y lleva a cabo esa orden en la comunidad humana. Ese principio se basa en el
concepto griego de Cosmos, a saber, de un inicio caótico, un tipo de desorden primitivo, donde
los elementos que forman la materia y energías primordiales estaban en dispersión confusa,
surge un único principio, capaz de ordenar todos los fenómenos que, a partir de sus acciones,
produce el orden perfecto de los mismos elementos y crea el universo conocido, incluyendo la
condición humana.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
308
de historia, esos conceptos eran pasados por la experiencia humana histórica de ese período, por
lo que esas ideas básicas resultaron bien adaptadas a la lógica cristiana del período siguiente,
que adaptó conceptos filosóficos griegos a los postulados de un Dios único, presentado como la
fuente de todo proceso de creación.
En consecuencia, ese factor de ordenación quedó definido como el acto creador divino,
es decir, ese orden universal o es el mismo Dios o viene de Dios. El acceso a dicha voluntad
divina se llevó a cabo por la Iglesia como intérprete de dicha orden por lo cual se entiende como
incuestionable. La ley se basa, por tanto, en el mismo Dios y su tarea es realizar el orden divino
en la tierra. Ese entendimiento dominó casi todo el período histórico de la Edad Media.
la técnica es deducir la norma legal correcta que, siendo una adaptación necesaria a esa doble
condición del ser humano, permiten, a su vez, las correctas relaciones de convivencia de las
comunidades y las sociedades.
Como es la naturaleza del fenómeno jurídico, tales consideraciones básicas también
sufrieron contrastes significativos, que incluyen las aportaciones de pensadores ya menciona-
dos, así como de Hobbes y Locke y también Puttendorf y Hume, que finalmente transforman
ese carácter de racionalidad necesaria de la técnica que elabora la norma y de la propia norma.
Ya no es un aspecto unívoco que la norma determina siempre la condición humana en sus
relaciones recíprocas y es el complemento perfecto a esta condición, sino que se establece un
309
concepto más flexible de una técnica más maleable, y una norma tal cual, ahora considerada
como un ordenamiento razonable de las relaciones humanas, que relativiza ese carácter fijo e
implacable de la normatividad como expresión perfecta de la racionalidad y la sociabilidad hu-
manas. La norma deja de ser necesaria y absoluta, para ser considerada como razonable en un
contexto dado.
El segundo diseño distingue Derecho y moral, puesto que las características que se
atribuyeron al Derecho, pasan a ser identificadas con la moralidad, que se entenderá como una
obligación interna del ser humano, lo que le obliga a una acción desde su fuero íntimo, mientras
que el Derecho se entenderá como una obligación externa, es decir, la obediencia a una regla o
norma social.
Kant establece así la diferencia entre legalidad y moralidad, “La pura concordancia y
discordancia de una acción con la ley, independientemente del motivo de la acción misma, se
llama legalidad, mientras que, cuando la idea de deber deriva de la ley es, al mismo tiempo,
motivo de la acción, se llama moralidad.” (KANT, 1984, párrafo 3).
Por consiguiente, si alguien cumple los mandamientos de la ley, por ser obligado a
hacerlo, agota los requisitos del Derecho, es decir, cumple con la ley. Ahora bien, si a esa obli-
gación externa se añade que, no sólo se siente obligado externamente por la ley, pero también
en lo íntimo sus acciones están motivadas a dicho cumplimiento, se dice que es la esfera moral:
no solo actúa de acuerdo con la ley, como también actúa por deber moral. Sin embargo, esa
moral para Kant no se refería al mero cumplimiento de una persona con las costumbres de una
sociedad determinada, sino también a los motivos íntimos de la acción humana, dictados por la
razón, considerada objetiva e inmutable. Por esta razón, el Derecho es considerado como una
forma derivada e incluso imperfecta de la moralidad, pues, por ley, se obliga a alguien, externa-
mente, a actuar en consecuencia o en conformidad con una norma determinada, mientras que
la moral verdadera, puede incluso prescindir de un orden externo.
Esas ideas tuvieron un fuerte impacto y diversos desarrollos sucesivos en la enseñanza
del Derecho, ya que las declaraciones de Kant, en las cuales está basado el Derecho Racional se
pueden destacar tres puntos principales:
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310
duo, considerados por separado, sin tener en cuenta sus singularidades, ni las sociedades en las
que se insertan; así como de una facultad que, como un atributo superior, fuera capaz de dictar
normas perfectas para el actuar humano y de obligar, desde el fuero más íntimo del ser, a que
ese actuar fuera completa y totalmente adecuados a esos dictámenes.
Una vez que se cuestiona la misma razón que sirve como el fundamento de la moral,
se pregunta, además, si hay un carácter de universalidad práctica de la ley moral. Por ello, en-
tonces, es que el carácter fundamental del Derecho, con la tarea de promover la convivencia
humana adecuada, es coercitivo. Es posible también discutir la legitimidad misma de esa legis-
latura, incluso cuando se establece normas de conducta externa, es decir, las leyes: ¿qué crite-
rios se utiliza para determinar que se debe ser obligado a hacer esto o aquello, y no otra cosa
cualquier?, es decir, ¿qué supuestos se articulan en sus opciones? Y una vez identificados esos
supuestos, podemos preguntar: ¿están dotados de validez absoluta? ¿Hay dicha racionalidad y
dicha moralidad de carácter objetivo?
La tercera concepción del Derecho, centra sus supuestos sobre el punto de la compren-
sión de la ley como fuerza coercitiva que garantiza la realización de la propia norma, desde las
instituciones asentadas históricamente, entre las que se destaca el Estado como su fundamento.
Así pues, el Estado se presenta como la realidad histórica final, que es la culminación de la
evolución histórica del ser humano, como el único verdadero y definitivo logro del Derecho.
Esa concepción del Derecho nace con Hegel, ya que se supone que la razón y la reali-
dad se identifican de tal manera, que es en el Derecho y en el Estado que se ve la racionalidad
celebrada, hecha efectiva, plena, desde lo que se establece para sí mismo. En ese sentido, la ley
no es más que la realización de la libertad en el Estado, de manera que, el Derecho sólo existe
como ley del Estado y, a su vez, la libertad existe sólo como obediencia a las leyes estatales. Por
lo tanto, todavía en las palabras de Hegel, en la misma obra: “El individuo obedece a las leyes y
sabe que, por esa obediencia, tiene su libertad; tiene en ella la relación con su propia voluntad.”
(Hegel, 2000, p. 99).
No se debe pensar, sin embargo, que en esa relación se establece la desaparición del
individuo, ya que Hegel ve en el estado precisamente la posibilidad de síntesis entre lo social y
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311
Otra consideración importante es que, al ser el hombre la manifestación del espíritu,
la realización de este espíritu se da en la historia. Hegel se dedica a mostrar el espíritu en sus
manifestaciones, es decir, en las diversas formas que pueden aparecer en la historia. Una de
esas posibilidades efectivas de manifestación del espíritu se da como Espíritu Objetivo, que se
expresa como Derecho, a través de la realización de la racionalidad en la experiencia histórica
del hombre y, según esa racionalidad avanza en su presencia y existencia histórica, en otras pa-
labras, en esa expansión permanente, están los objetivos de racionalidad jurídica: “El dominio
del Derecho es el espíritu en general; su propia base, su punto de partida es el libre albedrío, por
lo que la libertad es su sustancia y su destino y que el sistema del Derecho es el imperio de la
libertad llevado a cabo (...).” (Hegel, 2000, p. 248).
Para explicar esos conceptos que buscan el fundamento del Derecho, por la relación
entre ese entendimiento del Derecho como una fuerza que sostiene y constituye el Estado y
también emana del Estado; y que, dialécticamente, mientras opera la síntesis máxima de las
contradicciones humanas individuales, ofrece la máxima libertad y por lo tanto es un poder que
emana del espíritu mismo en su experiencia objetiva, Bittar y Almeida explican que:
La esencia del Derecho (la máxima libertad), se hace acontecimiento de Derecho (la
libertad concreta), se manifiesta en este o aquel conjunto de leyes, de tal o cual Estado,
de tal o cual cultura. De esa manera, surgen las leyes, los códigos, el derecho positivo,
que son realizaciones de la noción abstracta del Derecho.” (BITTAR Y ALMEIDA,
2001, p. 79)
Mientras máxima abstracción, podemos entender la Ley como expresión del Estado, a
través de sus leyes objetivas y ese sistema legal que es sostenido y que sostiene el Derecho, que
se expresa y es una consecuencia de ese Estado; y el Estado, a su vez, se constituye en otra máxi-
ma abstracción, como un enunciado perfecto, ideal, donde las libertades individuales máximas y
las garantías sociales podrían ser consideradas en un equilibrio armonioso y perfecto.
Eso es, sin duda, una amplia y máxima idealización lógica, tal vez un logro a ser al-
canzado. Ahora, decir que tales elaboraciones lógico-racionales se expresan de manera efectiva
en la Historia, a través de la concreción de las leyes objetivas e incluso de la estructura y del
sistema legal de los Estados Nacionales, concretamente existentes y presentes en la Historia en
sí, nos debe llevar a niveles muy graves de análisis y cuestionamiento. Por lo tanto, si nos cen-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tramos los Estados totalitarios, terroristas y genocidas, cuyo sistema jurídico no sólo autorizó,
como también estableció mandamientos explícitos de cese de las libertades y garantías indivi-
duales y colectivas, como produjo la muerte sistemática de sus propios ciudadanos o de otros
seres humanos, debemos revisar la lógica de la legitimidad del estado y las leyes, por sí mismos.
Ejemplos claros de los regímenes nazi e incluso del socialismo de Stalin y de los regímenes de
Europa del Este, y también algunos regímenes de orientación musulmana, cuya lógica jurídica
positiva todavía existe, como asaltos violentos contra los derechos humanos básicos.
Desde las consideraciones de Hegel, en el sentido de Estado y de Derecho, no se puede
312
decir que esos casos constituyen excepciones a la regla del Derecho, siendo excepciones, tales
como el régimen militar en Brasil, teniendo en cuenta que todos esos sistemas legales tenían
su legitimidad por la fuerza concreta de los titulares del poder del Estado, en las instituciones
políticas establecidas y legitimaban su estructura legal por la fuerza. De manera que su lógica
perfecta representó, de hecho, la máxima barbarie y la negación de lo que puede interpretarse
como el Derecho.
En palabras de Hegel: “Lo que es el Derecho, en sí mismo, se hace constar en su exis-
tencia objetiva, es decir, se define para la conciencia por el pensamiento. Se le conoce como que,
con justicia, es la ley. Dicho Derecho es, de acuerdo con esta determinación, el Derecho positivo
en general. “(Hegel, 2000 p. 258).
Sin embargo, una vez más, nos preguntamos si la positividad de las normas es efectiva-
mente capaz de realizar en lo concreto de sus mandamientos, lo que es el Derecho, en sí mismo;
al igual que, si el Derecho positivo puede resumir las consideraciones de valor, para garantizar
las libertades individuales y colectivas completas y todavía llevar a cabo actualmente en la
Historia, los significados de Justicia, al máximo. Tal vez eso se pueda poner como meta. Algo
que debemos tratar de lograr, pero no declarar como un poder pleno, realizado, que expresa,
específicamente, tales ideales.
La cuarta concepción del Derecho, aunque haya diversas variables, comprende el De-
recho como una técnica social, desde el punto de vista centrado en el positivismo jurídico, esto
es, en la especificidad de las normas legales, entendidas no como un sistema diseñado para
alcanzar valores perennes e idealizados de la condición humana, especialmente en lo que se
refiere a un concepto universal de Justicia, considerada como el tipo de perfecta convivencia
entre los seres humanos, sino como un instrumento para lograr ciertos fines y luego como una
herramienta:
Los orígenes históricos de este positivismo jurídico son los mismos que el positivismo
científico que alcanzó su apogeo en el siglo XIX; y de cuyos principios se valió su mayor teó-
rico, Hans Kelsen, en su esfuerzo por presentar, en la época contemporánea, una ciencia pura
del Derecho que tuviera su fundamento en la propia estructura lógico-formal del sistema legal,
basada en un estándar eminentemente lógico, desde donde emanarían todas las demás reglas,
dependiendo de las condiciones de su validez, determinadas por el propio sistema legal.
Este esfuerzo de desarrollo tiene como objetivo alcanzar una Ciencia del Derecho, pur-
gada de aspectos antropológicos, sociológicos o económicos, éticos o metafísicos y religiosos,
313
buscando el carácter de lo que es jurídico, en la estructura del sistema formal del Derecho que, a
su vez, se apoya en un método propio, definido por el Derecho mismo, mientras se opera con sus
variables, es decir, desde la operación de un sistema dado, con su conjunto de leyes, centrado en
la existencia de la norma jurídica puede tener su validez cuestionada desde lo que se observa:
314
- y, por último, ¿podemos excluir de cualquier formulación lógica del Derecho positivo
la complejidad del ser humano, como verdadero paradigma y autor de cualquier orden?
5 CONSIDERACIONES FINALES
Puede causar una cierta extrañeza el hecho de no hacer referencia a una quinta posi-
bilidad de enfoque del fenómeno jurídico y que nace, no como un sustituto de otras formas de
pensamiento jurídico, pero como complemento a una experiencia conceptual y, por lo tanto, la
experiencia humana de este mismo fenómeno considerado universalmente; es decir, la ausen-
cia de una referencia directa a la hermenéutica jurídica, ya sea tratada como la hermenéutica
clásica, en la que se discuten los métodos de interpretación necesarios para aplicar las leyes, así
como su tendencia contemporánea, es decir, desde el cambio lingüístico-hermenéutico operado
en el pensamiento occidental, a partir de las formulaciones de los filósofos Heidegger y Gada-
315
mer. Dejamos entonces registrado, y este es otro estímulo para la investigación adicional, que
tales consideraciones podrían extrapolar las posibilidades y condiciones de este estudio, con el
fin de limitarnos sólo a presentar lo que ahora autores como Lênio Streck consideran una crítica
hermenéutica al Derecho.
En este sentido, hay que destacar, lo más brevemente posible, ese enfoque. Podemos
considerar que, a partir de la aplicación del círculo hermenéutico como condición de la com-
prensión del fenómeno jurídico, mientras que conforma como su propia forma de ser en el mun-
do, en su función de regular, normativamente, a sí mismo, así como la vida social en el que está
insertado; ya que toda la experiencia de establecer estos sentidos normativos se da en, y a través
del lenguaje, desde donde se llega al carácter inagotable del Derecho en todas sus instancias.
Este es el reto que se presenta: no prescindir de la norma legal y, concomitantemente, permane-
cer en estado de alerta para que no se ocurra, a través del Derecho, el encubrimiento del hecho
por el propio texto normativo. Se cree, por lo tanto, en la norma como inseparable de su texto,
así como la aplicación de la norma como inseparable de su interpretación: no es posible aplicar
la norma sin interpretarla. Se trata de mostrar el Derecho como una permanente construcción
e instauración del sentido normativo de la existencia, a la que se llega por la comprensión de la
dimensión abierta de esa construcción continua, mientras que una unidad de sentido inmanente
presente en la existencia.
Por último, registramos, de manera explícita, que una mirada más atenta a las conside-
raciones filosóficas que presentan las escuelas anteriores del pensamiento jurídico, de hecho, se
revisten de esa mirada hermenéutico-interpretativa, dejada, aquí, como ejemplo de un ejercicio
primero de análisis a qué tal pensar puede llevarnos.
6 REFERENCIAS
ADEODATO, João Maurício. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência.
São Paulo: Atlas, 2009, 4ª. Ed.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
BITTAR, C.B. e ALMEIDA, Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2001,
1ª. Ed.
CARREIRO, C.H. Porto. Notas sobre Filosofia do Direito. São Paulo: Alba, 2000.
316
HEGEL, Georg W. F. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, 2ª.
Ed.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010, 1ª. Ed.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Saraiva: São Paulo, 2009, 20ª. Ed.
ABSTRACT
The present article presents the proper place where lies the Discipline,
as the relationship established between the fields of Philosophy and legal
studies, followed by conceptual articulations of Law as a phenomenon
normative, political, social and historical. Evidence also has two meth-
odological approaches to deal with the focus: the fusion of horizons
between the philosophical and legal properly, historically considered, as
well as the four fundamental concepts of Law, which emerged in occi-
dental thought: the natural law, ancient and modern, the jusrationalism,
the Law as a force and as a social technique: juspositivism. The presen-
tation of the postulates of the theories, is added a brief sampling of how
problematic it can become a philosophical analysis of such approaches.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
RESUMO
O presente artigo apresenta o lugar apropriado onde se situa a Disci-
317
plina, como relação que se estabelece entre os campos da Filosofia e
dos estudos jurídicos, seguido de possíveis articulações conceituais
do Direito, enquanto fenômeno normativo, político, social e histórico.
Evidencia, igualmente, duas abordagens metodológicas para tratar do
enfoque: a fusão de horizontes entre as concepções filosóficas e pro-
priamente jurídicas, historicamente consideradas; bem como as quatro
concepções fundamentais de Direito, surgidas no pensamento ociden-
tal: o jus naturalismo, antigo e moderno; o jus racionalismo, o Direito
como força e como Técnica Social: o jus positivismo. À exposição dos
postulados das teorias, acrescenta-se uma breve amostragem de como
se pode tornar problemática uma análise filosófica de tais enfoques. Nas
considerações finais traz uma proposta de discussão para o tema e indi-
cação, nas Referências, dos principais autores focados.
Palavras-Chave: Filosofia. Jus naturalismo. Racionalismo. Positivis-
mo.
318
SOCIAL CONTROL THROUGH SHAME SANCTION: AN AMERICAN
PERSPECTIVE
ABSTRACT
This paper aims to investigate why we can identify in the so called Post-
modern Western Civilization the increase of shame sanctions with the
scope of social rehabilitation instead of the traditional coercive power
of Law. The hypothesis that I will work on is the possibility of Indi-
vidualization process dispenses the reference of the Alter, i.e. the State
as Institution of Law, in the conduct establishment process as well as
its control in a social perspective. This movement would be clarified
through the contemporary psychoanalysis debate, in its social standards.
The present paper will be structured as it follows, always considering a
theoretical perspective: 1) The presentation of the modern shame sanc-
tion matter; 2) Identification of what kind of relation there is judges of
modern and democratic civilizations, decisions and Shame Sanctions 3)
Identification of perspective in Post-modern society change in a psycho-
analysis perspective and 4) Its impact in the comprehension of the dy-
namic between Law and Society, considering the social generalization
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Full professor at University of São Paulo – Law School from Ribeirão Preto.
319
1 INTRODUCTION
Western Law in its modern standards used to reject Shame as a legitimate way of en-
forcement. The reasons relay on heritage middle age forms of use shame as punishment, usually
associate that with some kind of physically or psychologically violence. So, in modern form of
law, the Rule of Law, followed by Due process of law and the idea that Freedom was suppose to
be the most important value in an western society, turning at this point the medieval concept of
punishment in a more rational and civilized way, which resulted in an banishment of shame of
every modern European law doctrine or jurisprudence tradition. The political reason of that was
consolidated in the Democracy mentality, especially under the argument the State should not be
responsible of revenge acts. Instead of it, the rationality must be the guiding line to government
decisions and juridical sentences.
However, the modern World has seen in the cradle of modern way of democracy, lo-
cal sentences that inflict Shame as sanctions manifested in many forms. Almost instantly there
were critical papers about it, as well some defenders one. In this way I believe the works of
James Q. Whitman2 and Tony M. Massaro3 can be used as outstanding references, among oth-
ers. This debate enlighten us of some moral perspective in using shame sanctions in modern law
systems whose can be raised in two premises: (1) Differentiate Modern and Medieval ways of
Shame sanctions arguing that both has no similarity with each other, especially when the first
one is not allowed causing, through shame, violence, specially physical one. (2) Through this
statement, the discussions about the forms of Modern Shame Sanctions were established in the
attempt of answer the same question: Are shame sanctions, in a modern perspective, morally
good and congruent of Modern Law Systems those democratically legitimate?
I do not believe that I could contribute to this kind of discussion, specially because I
truly believe the works cited above would be able to reach the most important points in the pur-
suit of answering the question earlier cited. However, I believe that there is a deeper point that
the previous question does not have condition to reach and I believe that it could be the central
problem of the Modern use of Shame Sanctions. It is about another perspective of the use of
Shame as sanctions, not just about if it is good or bad the use of Shame sanctions in modern
western societies but why modern judges and courts try to do social adjustment through the
inflicting of shame sanctions, especially when the modern societies supposed to guide their
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
sentences in a rational way, try to stipulate guilt in conducts and, then inflicting a civilized
sentence?
This question cannot be answered precisely and certainly not without letting many
other questions in the air. So I will attempt to pointing some theoretical references that could be
able to make us organize and identify some good points of question with no intention of solve
2 WHITMAN, James Q. What is Wrong with Inflicting Shame Sanctions?. (1998). Faculty Scholarship Series. Paper 655.
3 MASSARO, Tony M. Shame, culture and American criminal Law. 89 Michigan Law Review 1880 (1991)
Arizona Legal Studies Discussion Paper.
320
this problem in few pages. Much less than that, I will try to turn our eyes of some movements
of society and then try to identify good points that could guide our answer or, better, improve
my question.
The question about the use of Shame Sanctions would be easily solved if we try relay-
ing some kind of bad responsibility on the Judges or Courts those sentenced Shame sanctions.
In this way, we could simply say that those Judges are judging wrongly and they are exceptions
in the Rule of Law’s World. But it is not that simple. Contemporary and Western Judges know a
lot about Democratic standards of Due process of Law and the duty of the Law pro Social Order
by respecting some fundamental rights. This constitutional essence of Modern Law is present
in every democratic western Nation. It would not be different in the United States of America,
where lays the beginning of all of it.
We should, then, try understanding this phenomenon, in the first place, through the
eyes of the Judges. They could have realized something, consciously or not, that turn practical
the use of shame sanctions and, more, make that compatible with the democratic principles than
the other sentences those I will entitle here as “Guilt Sanctions” (Which has its origins in an
rational analysis of person responsibility). So, pragmatically, they try to make a choice whereas
the Shame could support those principles, democratic ones and, more, could be eventually more
effective than “Guilt Sanctions”.
I cannot also simply agree that is just a Moral reaction matter of the Judges, in a re-
sponse of an unorganized, chaotic and libertine society. The Christianity argument can be defi-
nitely use and present in these inferences, but it is not a new thing. It was always there. I believe
that we have investigate what is changed in the last decades that make acceptable, the fact that
Judges try to solve juridical issues with the use Shame. If we want identify that, we cannot call
that a retrocession simply, reducing this phenomenon to some delay of part of the American
Judges. We, then, have to suppose that, when this choice was made, it was due some possible
change of social mentality. That is precisely my hypothesis.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
It is hard to suppose intuitively there could be any change in contemporary society that
has as one of its consequences this type of change in Law mentality, especially when the social
theory available discusses those kinds of emotion, i.e., Shame and Guilt having as reference
in some level the psychoanalysis theory. Thanks to Freud, the Civilization Process has been
understood and followed by some kind of emotions control, by suppressing them, and that was
what make the Western Civilization possible, and, at the same time, brought the most important
subjective pathologies to the mankind. Trying to explaining this movement, Freud in his most
321
used work in social theory4 express some kind of appearance order of this emotions in primitive
social groups. First came Shame (Scham) than Guilt (Schuld).
Actually, there is just one passage of the work cited above that put those emotions in
that order – a footnote, by the way (p. 229) – and Freud already had wrote about Guilt almost
two decades earlier that5. Anyway, one of the greatest Social thinker of 20th Century, Norbert
Elias, as a ratification, described that passage as a process, the civilization process6. This Idea
was adopted by the most part of Europeans social thinkers and established as some kind of
“theoretical common sense” about how the western civilization was developed. This position-
ing has been consolidated due the several serious works in this sense7.
At this point, the civilization theoretical status which establishes the Modern Law,
could be understood exclusively through the management of Guilt in several degrees of Indi-
vidual Life, what also cover the social and institutional spheres, relaying on Shame just a rel-
evant historical social perspective, which do not have a significant part in contemporary society,
especially to the effectiveness of Rule of Law. To that, a third created “person” has the role (as
a symbolical Father) – through the emotional mechanism of guilt – making possible the interac-
tion of people.
In this sense, “modern Law” would be the concretization of this mechanism, consoli-
dating the idea that the western Civilization was emotionally built under the management of
Guilt in Conscious and Unconscious level. This symbolical Father is, in Psychoanalysis, the
Superego, which could be manifested in many forms, depending on the psychic structure pres-
ent in each person, individually; Socially, and to what is important in this work, that could be
the Modern State.
What happens, though, if this symbolical figure has no longer the power of provoking
Guilt, neither by its presence, nor by its rules and norms? To a relevant part of the authors of
this area affirms that the psychic mechanism cited above must be rearranged. To explain that I
will use as reference one of the most important contemporary thinkers of this mechanism, i.e.,
Dany-Robert Dufour, who says the change of capitalism forms, since 1929, was followed by a
drastic change of social behavior, but internally of the individuals, those who became more ego-
istic. With that change, the Guilt, which requires a worry to others, was slowly losing its power
of adjustment to Civilization. In that sense, all the legal Structure, based on Guilt, has no longer
the same relevance, in an individual psychic perspective (Consciously or not), in the role of ad-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
justing socially. According to Dufour (2013, p. 105-110), Shame became the most predominant
feeling of so called post-modern society (that after 1929), precisely due the narcissism reference
4 FREUD, Sigmund. Das Unbehagen in der Kultur. (1930). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der Gesellschaft Ursprünge der Reli-
gion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000. pp. 191-270.
5 Totem und Tabu. (1912-13). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer.
2000. pp. 287-444.
6 ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation. Bd. II. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 1976. pp. 397-8.
7 For instance: LOTTER, Maria-Sybilla. Scham, Schuld, Verantwortung. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 2012, and LIETZMANN, Anja.
Theorie der Scham. Eine anthropologische Perspektive auf ein menschiliches Charakiteristikum. Hamburg. Fischer. 2007.
322
of this kind of emotion. As consequent, would be almost “natural” that this type of dynamic
urged in Law enforcement.
I am not saying – actually, I hardly doubt – that the Judges whose applied Shame Sanc-
tions had read Dufour, not even have the awareness of all this process, or else, this kind of theo-
retical debate. But, this process can be perceptible in Society and a Judge, especially Counties
one, can be the unconscious and intuitive comprehension of this phenomenon, trying solving
the problem by changing the emotional framework of their sentences. I can use, as example, the
interview given to Los Angeles Time, from a Texas district Judge about the reason that he use
to inflict Shame Sanctions in some kind of crimes convicted persons. He said that: “The people
I see have too good a self-esteem, I want them to feel guilty about what they’ve done. I don’t
want ‘em to leave the courthouse having warm fuzzies inside.”8. Of course there is some serious
consequences of this kind of emotional management in Juridical Sentences and the local Judges
usually do not reflect the consequences of this sort of decision to Law System or mentality,
precisely because they have a pragmatic perspective of Law. But what they have in mind when
they inflict some Shame Sanctions it is precisely what all of western civilization can experience
in some level. The change of some Social establishment, what comes also from inside the indi-
viduals and not just from some change of social references. All the new standards of Modern
Society - New-liberalism, globalism, Internet, Democracy and so on – are leading changes in so
many levels of society and individuals, that it is completely impossible to Law as whole keep the
same sphere of act and modus operandi. The change came to everyone and everything.
REFERENCES
ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation. Bd. II. Frankfurt a.M. Suhrkamp. 1976.
FREUD, Sigmund. Totem und Tabu. (1912-13). In Studienausgabe – Bd. IX – Fragen der
8 SHATZKIN, Kate. Judges Are Resorting to Shame in Sentencing Criminals. Los Angeles Times. In April 26th 1998. Available at::
http://articles.latimes.com/1998/apr/26/news/mn-43159
323
Gesellschaft Ursprünge der Religion. Frankfurt a.M. Fischer. 2000.
LIETZMANN, Anja. Theorie der Scham. Eine anthropologische Perspektive auf ein
menschiliches Charakiteristikum. Hamburg. Fischer. 2007.
MASSARO, Tony M. Shame, culture and American criminal Law. 89th Michigan Law
Review 1880. 1991.
RESUMO
Esse artigo almeja investigar o porquê de podermos identificar na en-
tão chamada civilização ocidental pós-moderna o crescimento de shame
sanctions com o escopo de reabilitação social ao invés do tradicional
poder coercitivo da Lei. A hipótese que será utilizada é a possiblidade do
processo de Individualização dispensar a referência ao Alter, ou seja, o
Estado como uma Instituição de Direito, no processo de estabelecimento
da conduta, bem como no seu controle em uma perspectiva social. Esse
movimento vai ser evidenciado através do debate psicanalítico contem-
porâneo, nos seus parâmetros sociais. O presente artigo será estruturado
assim como segue, sempre considerando uma perspectiva teórica: 1) A
apresentação do assunto da moderna shame sanction; 2) Identificação de
qual tipo de relação existe entre os juízes das modernas e democráticas
civilizações, decisões e shame sanction; 3) Identificação da perspectiva
de mudança na sociedade pós-moderna em um viés psicanalítico; e 4) O
seu impacto na compreensão do dinamismo entre Lei e Sociedade, con-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
324
A DESGRAÇA DA CULTURA DO ÓDIO NA “DESONRA” DE COETZEE: LIÇÃO
PARA OS CONTURBADOS DIAS ATUAIS
A primeira leitura da orelha do livro “Desonra”2, que rendeu o prêmio Booker Prize
(pela segunda vez) ao escritor sul-africano John Coetzee – posteriormente agraciado com o
Nobel de Literatura (2003) – pode indicar para uma ficção desenrolada em torno das máculas
decorrentes de abusos sexuais, e a nódoa à honra que representam. Mas o livro, ao final de sua
leitura, termina revelando discussão muito mais ampla – por isso seu título original (Disgrace)
talvez lhe faça melhor julgamento.
A narrativa fluida e simples parte do desnudamento do protagonista David Lurie, que
depois de exercer anos de fascínio sobre as mulheres, vê-se confortável com a extravasão de
seus instintos sexuais nos encontros previsíveis e ascéticos com uma prostituta, em dia e horá-
rio marcados, uma vez por semana. Quando esse pacto tácito é quebrado, ele se vê encorajado
a seduzir uma de suas alunas – a insegura Melanie – e, mesmo sem tê-la obrigado por força
física à consumação dos atos sexuais, termina sendo acusado de conduta antiética no âmbito da
Universidade Técnica do Cabo, onde “ganha a vida”.
E é justamente essa vida, previsível e ordenada, que começa a se desarranjar a partir de
seu julgamento perante uma comissão de inquérito constituída de seus colegas professores para
“investigar” eventual desvio ético de sua parte. Em princípio, garante-se uma apuração igual-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
mente previsível e ordenada, onde “o assunto vai ser tratado com a maior discrição” e os nomes
do acusado e da vítima serão preservados (p. 50), mas, para além do formalismo dessa apura-
ção, a comunidade acadêmica, aos burburinhos e muxoxos, já expõe sua condenação – bem ao
gosto da espetacularização de operações de investigações no Brasil nos dias atuais: “primeiro a
sentença, depois o julgamento” (p. 52).
1 Professor efetivo da UFRN, Doutor em Ciências Jurídicas pela UFPB, Mestre em Direito Constitucional pela UFRN, Promotor de
Justiça e co-fundador da Revista Fides.
2 Para esta resenha, utilizou-se a seguinte edição: COETZEE, J. M. Desonra. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
325
No âmbito da comissão, porém, presa às formalidades da hipocrisia e das soluções de
aparência, há interesse em evitar a medida drástica da demissão do investigado, que perante ela
confessou todos os atos pelos quais foi acusado, simplesmente por não enxergar neles desvio
algum. O reitor pede a David que ele assine uma declaração pública de admissão dos “sérios
abusos aos direitos humanos da reclamante” (p. 69), como se a consolidar seu arrependimento,
o que desperta no investigado irresignação: a corte perante a qual se apresentou, juridicamente
instituída como um “braço da lei”, deveria lhe dirigir uma solução jurídica; e não exigir-lhe
adesão ao espírito do arrependimento, pertencente a outra ordem ética. Nisso enxerga-se clara-
mente a distinção entre o dever jurídico e o dever moral: para a satisfação daquele seu simples
cumprimento já basta, afinal não se pode, juridicamente, exigir do devedor de impostos que
cumpra sua obrigação feliz e satisfeito; por outro lado, somente imbuído do arrependimento é
que o dever moral poderia ser atendido por David, porquanto o preceito moral não admite “a
separação entre a ação motivada e o motivo da ação”3, a tornar solidários o arrependimento
(motivo) e a declaração pública (ação).
Convicto de sua posição, o protagonista, assumidamente despreparado para reformas
(p. 91), resolveu deixar a universidade espontaneamente, para passar uns dias com sua filha,
Lucy, que possuía no Município de Salem uma pequena propriedade rural. Nesse lugar sua des-
graça continua: sua rotina sem sabor é quebrada por um violento assalto capitaneado por três
homens locais, que resulta em sério atentado a sua vida (por pouco não consumida pelo fogo) e
na violência sexual de sua filha.
Desde esse acontecimento, é tomado por ódio crescente de seus agressores, diante da
falta de perspectiva de que respondam por seus atos, sentimento que ele próprio reconhece: “A
vingança é como um fogo. Quanto mais devora, mais quer devorar” (p. 130). A associação ao
“fogo”, que derreteu seu cabelo e parte de sua orelha e quase o consumiu por completo não é por
acaso: a fagulha do ódio que David já nutria por aquela comunidade e seus integrantes começa a
tomar conta de todos os seus pensamentos, a ponto de desejar aos seus agressores “tudo de mal,
onde quer que estejam” (p. 125). Esse mesmo fogo é confundido com a justiça, que para ele se
revelaria quando os três homens fossem “presos, julgados e castigados” (p. 138) – embora, na
verdade, sua aspiração era a da mais crua vindita.
Eis a razão de David não compreender a passividade de Lucy diante da violência por
ela experimentada – apesar de desonrada, abdica até de comunicar à polícia o estupro coletivo
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
a que foi submetida! Surge, então, outra pertinente discussão quando da apuração do ilícito: a
posição da vítima. Para o pai, cuja honra foi igualmente maculada, nada mais natural, talvez
até imperativo, do que a busca desesperada pela vingança: “Você vai ter de testemunhar” (p.
176). O inconformismo de David com a falta de colaboração de Lucy para a descoberta de seus
vilipendiadores contrasta com o interesse desta em ver respeitada, em princípio, sua intimidade,
3 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p.
322.
326
seu recato, diante de ato tão aviltante, como quando, com o olhar, desafia seu pai a contradizê-la
enquanto narra sua versão do que ocorreu às autoridades policiais locais. Trata-se do direito
da vítima à participação, que pode consistir no condicionamento da ação penal à sua manifes-
tação4, tal como ocorre no vigente ordenamento jurídico brasileiro, que prevê para o crime de
estupro ação penal condicionada à representação como regra (art. 225, caput). Imperiosa, assim,
é a pergunta a ser feita à vítima por ela mesma em crimes desse jaez, e que David dirigiu à filha
como mero ornamento retórico: “Está pronta para testemunhar?”
O que David não enxerga, porém, é que aquele ato pode ter decorrido justamente do
mesmo sentimento que ele alimenta e tenta incubar em sua filha: o ódio. Ódio de quem se viu
tratado como animal de carga, historicamente afastado dos mais elementares direitos sob o regi-
me colonial e de apartheid experimentado na África do Sul. Ódio a retribuir idêntico sentimen-
to dos forasteiros que, por não ostentarem pele escura, auferiam o que de melhor aquele país
podia proporcionar, enquanto os “nativos” eram segregados e oprimidos. A desigualdade social
é secamente apresentada pelo autor: “Um risco possuir coisas: um carro, um par de sapatos, um
maço de cigarros. Coisas insuficientes em circulação, carros, sapatos, cigarros insuficientes.
Gente demais, coisas de menos” (p. 114). Pode-se sempre esperar a resignação de um povo in-
teiro que se vê impedido de possuir um par de sapatos?
É então que se revela a verdadeira missão de Lucy, simbolizada pela sua gravidez
resultante do ato de violência: dar à luz um novo pacto, uma nova sociedade, em que o ódio,
que durante tantos anos separou as pessoas naquele país, dê lugar à compreensão, tolerância e
convivência pacífica. Isso fica claro quando Lucy reprime a violência de seu pai contra ato des-
respeitoso de um de seus agressores (Pollux), talvez o pai biológico do nascituro: “David, não
dá para continuar assim. Estava tudo assentado, tudo em paz de novo, até você voltar. Preciso
de paz à minha volta. Estou pronta para fazer qualquer coisa, qualquer sacrifício, para ter paz”
(p. 234). É, assim, a paz da justiça restaurativa que ela almeja, diferentemente de seu pai.
Seu nome, aliás, indica seu papel no roteiro da obra, como o de muitos personagens
na obra. A palavra Lucy deriva do latim lux, a sinalizar a luz que esta protagonista representa
sobre as trevas de uma realidade social de traumas e ódio – sem mencionar que dá nome à mais
conhecida obra do poeta romântico William Wordsworth (The Lucy poems), não por acaso uma
das mais importantes referências do acadêmico David Lurie. O nome deste, por seu turno, se
origina do hebraico e significa “o amado”, a indicar a trajetória de conquistas amorosas do se-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
dutor professor, agora enfrentando seu ocaso. Tampouco foge da livre escolha do autor o nome
dado ao único dos estupradores que merece possuí-lo: Pollux, que tinha como gêmeo – embora
de pais diferentes – Castor5, segundo a mitologia grega, uniu-se a este na empreitada do rapto
de Hilária e Febe, comungando de seu homônimo criado por Coetzee as circunstâncias de haver
atentado contra uma mulher e de ter agido coletivamente, junto com seus “irmãos”. Por fim,
4 RODRIGUES, Roger de Melo. A tutela da vítima no processo penal brasileiro. Curitiba: Juruá, 2014, p. 92.
5 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: histórias de deuses e heróis. Trad. David Jardim. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro,
2006, p. 159.
327
aquele que um dia se apresentou como mero trabalhador de Lucy, depois dos acontecimentos
afigura-se como seu protetor, a tal ponto que se dispõe até a desposá-la e assumir a paternidade
do filho que ela espera: Petrus, que o autor nomeia em sua forma latina mesmo, para nem se-
quer tentar dissimular sua função de porto-seguro, de rocha sobre a qual Lucy poderá erigir sua
árdua obra de reconstrução daquela sociedade.
Apresenta-se, assim, um desfecho para a desgraça anunciada pelo autor, sob a perspec-
tiva iluminada de Lucy: a expiação de culpas de seus antepassados, decorrentes da opressão aos
nativos do país, e a ruptura da cultura de ódio de que ela própria foi vítima. Ainda que pareça
por demais elevada sua postura para que os meros mortais possam segui-la, é inconteste sua li-
ção de que é possível traçar caminho diferente do muito comumente difundido nos dias de hoje,
patenteado pelas máximas “bandido bom é bandido morto”, “fora, estrangeiros” ou “morte aos
infiéis”. Apesar da “desistência” de seu pai (p. 246) – representando toda sua geração – Lucy
convoca a que se assuma comportamento diverso diante da violência, alinhado à justiça restau-
rativa, como a mostrar que o mais certo produto do ódio e da intolerância é, simplesmente: mais
ódio e intolerância, verdadeiro justiciamento, jamais uma forma de justiça.
328
HARRY POTTER, JURAMENTO INQUEBRÁVEL E CLAÚSULA PENAL
Rute Saraiva1
1 INTRODUÇÃO
329
O Juramento Inquebrável, que surge evidenciado no Livro VI da coleção3, consiste
num contrato entre dois feiticeiros, avalizado e testemunhado por um terceiro que o celebra com
a ajuda de uma varinha mágica, em que uma das Partes se compromete a cumprir obrigações
acordadas com a outra Parte. O contrato, realizado simbolicamente de mãos dadas, é selado
por línguas de chamas como arame incandescente disparadas da varinha da testemunha e por
lindas correntes brilhantes que envolvem e ligam as mãos unidas como uma corda. A quebra
de contrato resulta na morte do incumpridor, ou seja do devedor, o que parece constituir, para
todos os efeitos, uma cláusula penal.
Na saga, além da tentativa dos gémeos Weasley, gorada pelo pai muito aflito, de indu-
zirem o irmão Ron, ainda pequeno, a se vincular, o Juramento Inquebrável é celebrado entre
Narcissa, mãe de Malfoy, aterrorizada por perder o filho único na realização da tarefa de assas-
sinar Dumbledore a mando de Voldemort, e Snape, Devorador da Morte preferido do Senhor
das Trevas e professor de Draco em Hogwarts, em casa daquele, com o apoio de uma descon-
fiada Bellatrix, irmã de Narcissa e fidelíssima seguidora de Voldemort. O seu objecto prende-se
genericamente com a protecção de Draco por parte de Snape. Em rigor, subdivide-se em três
obrigações cumulativas e cada vez mais específicas e exigentes, a saber:
Neste caso, as três obrigações reforçam-se, tentando cobrir qualquer lacuna que possa
ser utilizada para o obrigado se eximir ao seu cumprimento, procurando garantir ao máximo a
vida, integridade física e emocional e a segurança de Draco para descanso de sua mãe. Note-se,
porém, que, sendo Snape professor em Hogwarts e exímio mágico e vivendo o protegido na
escola durante grande parte do ano e do período em que se encontra ao serviço de Voldemort e
sendo Hogwarts raramente frequentada por sujeitos que aí não estudem ou trabalhem e estan-
do fortemente defendida por feitiços (incluindo para impedir materializações e aparecimentos
no recinto escolar) e professores fiéis a Dumbledore, dificilmente Malfoy correrá grande risco
(incluindo ser punido por Voldemort) e as duas primeiras promessas de Snape são fácil e natu-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
3 Harry Potter and the Half-Blood Prince no original. Harry Potter e o Enigma do Príncipe, no Brasil, e Harry Potter e o Príncipe Mis-
terioso, em Portugal.
330
o encargo de matar Dumbledore depois de Draco (falhar), pelo que, até pelo historial vingativo
do Senhor das Trevas, o próprio Severus enfrenta já risco de morte antes de fazer o Juramento,
tanto mais que é traidor da causa daquele, fazendo um jogo perigosíssimo de contra-contra
espionagem.
Antes de se avançar, contudo, quanto a esta questão, e ainda no que respeita a des-
crição do tipo contratual, sublinhe-se, que não havendo nos sete livros, nem no material extra
oficialmente fornecido amiúde pela autora, por exemplo, online, qualquer outro voto desta na-
tureza4 não se pode ao certo recortá-lo, designadamente determinar se implica a celebração
necessária de três promessas interligadas substancialmente e cada vez mais detalhadas ou se o
seu número, coesão e lógica de reforço são característicos. Acresce que não é claro se o Jura-
mento é unilateral ou bilateral, ou seja se contém obrigações apenas para uma das Partes ou se
as duas (ou mais?) partes envolvidas podem comprometer-se a uma qualquer prestação. No caso
em concreto, as obrigações apenas recaem em Snape não sendo Narcissa onerada com qualquer
outra enquanto contrapartida directa ou não das assumidas pela outra parte. Todavia, no site
oficial, a propósito deste feitiço, e apesar de se começar por apresentar uma lógica de unilate-
ralidade, definindo-o como uma promessa feita por um mágico a outro, refere-se que a quebra
do pacto por qualquer uma das Partes é sancionada com a morte. Ora, tal implica que ambas
assumam obrigações (não necessariamente sinalagmáticas), o que não sucede no exemplo do
livro, salvo se considerarmos que haverá do lado de Narcissa a obrigação de manter segredo
quanto ao pacto, um pouco na lógica do encantamento Fidelius, devido à preocupação em não
revelar a tarefa atribuída por Voldemort a Draco.
Quanto ao Juramento Inquebrável, em si, desconhece-se ademais qual o encantamento
usado em termos verbais, apenas se sabendo, quanto aos aspectos formais, a necessidade de
varinha e de Testemunha e a vinculação simbolizada por línguas de chamas e correntes, numa
alusão clara à sua solidez e seriedade, relembrando que se pode confiar (i.e.“pôr as mãos no
fogo por alguém”) e que não se deve ser leviano (i.e. “brincar com o fogo”) sob pena de sanção
danosa (i.e.“fogo eterno”), ficando-se eternamente preso (corrente) ao voto feito.
Uma outra dúvida prende-se com o que acontece ao contrato no caso da Testemunha/
Avalizadora falecer primeiro do que o devedor e de este cumprir as suas obrigações. O proble-
ma, que não surge na saga pois não só Severus morre primeiro que Bella como executa o com-
prometido, nasce em boa parte da semelhança deste tipo contratual com o feitiço Fidelius e com
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
4 Note-se que no episódio que envolve Ron e os gémeos não se fornecem pormenores quanto ao conteúdo contratual.
331
vários feitiços e poções inadequadamente feitos), parece possível um objecto contratual ilícito,
já que o terceiro compromisso obriga Snape a substituir Malfoy no assassinato de Dumbledore,
malgrado, inteligentemente, tal não seja explicitado, remetendo para um outro acordo, esse sim
ilícito (e, em última análise, considerando a tarefa e os envolvidos, impossível5). Ou seja, a as-
sunção da posição de comissário por Snape no juramento celebrado não especifica formalmente
o conteúdo ilegal e contrário à ordem pública, pelo que talvez as Partes tenham encontrado nes-
ta formulação remissiva um meio para contornar uma eventual proibição jurídica de negócios
de conteúdo ilegal, frequente na maioria dos ordenamentos jurídicos (veja-se, por exemplo, o
artigo 280 do Código Civil português ou 166 inciso II do Código Civil brasileiro). Hesitação se-
melhante levantariam igualmente os dois primeiros compromissos, visto que Narcissa pretende
a protecção do filho enquanto este prepara e executa a maligna tarefa entregue pelo Senhor das
Trevas, isto é, o seu objecto decorre de um pacto ilegal (entre dois sujeitos que não são parte do
actual Juramento Inquebrável). Ainda assim, considerando esta última ressalva e o facto de não
se pretender uma prestação que em si possa constituir um ato ilegal (pelo contrário, pretende-se
salvar uma vida e salvaguardar a sua integridade – mesmo que seja durante um processo de
actuação vil), parece um pouco mais difícil de considerar estes dois primeiros compromissos
ilícitos e nulos.
Ora, assumindo a nulidade da terceira parte do Juramento Inquebrável, naturalmente
se suscita de seguida a questão da nulidade da totalidade do Juramento ou da sua redução ou
conversão. Na hipótese de redução, pressupondo a existência no universo mágico de Harry Pot-
ter de uma norma semelhante à do artigo 292 do Código Civil português ou do 170 do Código
Civil brasileiro, coloca-se a dúvida sobre a celebração do contrato, sobretudo por Narcissa (e
Bellatrix), sem a terceira tarefa, visto que, no fundo, é esta que acaba por ser a maior garantia
de protecção de Draco pois o receio é mais que seja vítima da fúria de Voldemort do que das
tentativas de assassinar Dumbledore, além de que para a Testemunha se apresenta, pela sua
concretização, como prova de boa-fé de Snape e de ser, afinal, um fiel seguidor do Senhor das
Trevas e, enquanto tal, confiável para os Devoradores da Morte.
Por último, saliente-se que o que parece certo, até pelo tom sarcástico e desconfiado de
Bellatrix que goza com promessas e tentativas vãs de Severus, é que o pacto não seria selado sem
a cláusula penal subjacente ao Juramento Inquebrável e que o torna, até pelo seu carácter fatal e
perpétuo, no contrato dos contratos mágicos uma vez que vincula irreversivelmente as Partes e
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
exige, por isso, uma solenidade formal e cuidados especiais na sua delimitação substantiva.
5 Veja-se que Narcissa (e Snape que acaba por concordar) pressente na tarefa essa impossibilidade ao equacionar que esta se trata essen-
cialmente de um castigo velado de Voldemort à sua família, em especial quanto aos maus resultados de Lucius na obtenção da Profecia,
procurando penalizá-los com a morte de Draco, seja no seu confronto com Dumbledore, seja pelo próprio Senhor das Trevas em caso
de incumprimento (mais do que provável). Afinal, Draco é apenas um jovem feiticeiro que deverá enfrentar, num ambiente favorável ao
Director de Hogwarts, um dos maiores mágicos da história.
332
De modo sucinto, a cláusula penal, intensamente trabalhada no plano doutrinário e que
remonta pelo menos ao Direito romano, traduz a liberdade contratual das Partes e a sua autono-
mia na determinação e construção dos termos negociais, consistindo num pacto acessório para
incentivar e reforçar o cumprimento de alguma obrigação, principal ou acessória, estabelecida
num contrato (ou negócio jurídico) através da estipulação de uma pena, em regra pecuniária, a
ser imposta ao devedor (ou, eventualmente, a terceiro).
No fundo, num exercício endógeno e coaseano das partes, o devedor aceita levar a cabo
uma prestação diversa da reforçada na hipótese de não cumprir fielmente (de todo, em parte
ou no prazo fixado), dentro das suas possibilidades, com a obrigação acordada em benefício do
credor (ou de outrem). A cláusula penal apresenta pois, numa lógica pessoal e obrigacional, uma
dimensão eminentemente ressarcitória e coercitiva, variando no tempo e no espaço o seu maior
ou menor pendor indenizatório e/ou punitivo, substituindo-se a imposições legais (supletivas)
exógenas. A sua fixação pressupõe um cálculo e pré-determinação de perdas e danos, vedando
hoje o Direito português e o brasileiro, respectivamente nos artigos 811, n.º 3 e 412, que o valor
da cláusula penal exceda o do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal,
podendo ser reduzida judicialmente, de acordo com a equidade, quando for manifestamente
excessiva, ainda que por causa superveniente ou quando a obrigação tiver sido parcialmente
cumprida, sob pena de invalidade6. Em suma, a cláusula penal caracteriza-se pela sua acesso-
riedade, obrigatoriedade e condicionalidade.
Note-se, porém, algumas distinções entre os regimes de Civil e Common Law. Em ter-
mos históricos, no primeiro, por influência do Código napoleónico, até ao princípio do século
XX, a cláusula penal tinha sobretudo uma função indenizatória, não podendo o valor fixado
pelas Partes ser alterado a posteriori, nem mesmo no plano judicial. Com o Código Civil ale-
mão, no início de novecentos, o seu papel passa a assumir uma função predominantemente
coercitiva e de mínimo compensatório, embora predominando a primeira nos países de matriz
mais germânica e a segunda nos latinos. A partir da década de 80 torna-se evidente uma abor-
dagem unifuncional mais próxima da anglo-saxónica em que se distingue a verdadeira cláusula
penal (penalty clause) com dimensão sancionatória e funcionando como pena privada (e proi-
bida genericamente na Common Law) da cláusula de liquidação antecipada do dano (liquidated
damages clause).7
Ora, no Juramento Inquebrável, em primeiro lugar, e ao contrário do que sucede no
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
mundo dos muggles, o conteúdo da cláusula penal não pode ser convencionado pelas partes e
6 Note-se que tal não impede que a cláusula penal venha a assumir uma dimensão sancionatória, sendo que o valor definido, neste caso,
não deve ser tanto pensado em função dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) mas da penalização desejada, pelo que a sua eventual
excessividade deverá ser equacionada com recurso a critérios como a boa-fé ou ineficiência econômica. SILVEIRA, Marcelo Amaro
da. Análise Ecônomica da Cláusula Penal em Obrigações Acessórias Negativas, Revista Jurídica Luso-Brasileira, Lisboa, Ano 3, n.º
3, 682-683.
7 M. A. Silveira (2017). P. 678 e ss, 720. Por todos, MONTEIRO, António Pinto. Cláusula penal e indemnização. Tese de Doutoramento,
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1990, que defende mesmo a existência de três tipos de cláusulas penais:
cláusula penal em sentido; cláusula de fixação antecipada da indemnização; cláusula penal exclusivamente compulsória,. Rejeitando,
portanto, a posição doutrinária tradicional que propugna a cláusula penal como uma figura unitária, com uma dupla função e natureza
mista.
333
não tem natureza pecuniária. Independentemente das obrigações acordadas, está sempre em
causa, existindo inadimplemento, a morte do incumpridor, como decorre quer do exemplo de
Snape e Narcissa como dos irmãos Weasley. Assim, e como a pena capital é entendida na maio-
ria dos ordenamentos jurídicos como a sanção mais pesada atendendo ao valor do bem jurídico
fundamental da vida, a sua utilização como cláusula penal parece revestir uma dimensão so-
bretudo sancionatória e não meramente compensatória visto que dificilmente o incumprimento
de uma qualquer obrigação “corrente” ou “quotidiana” produzirá danos equiparáveis à morte de
um ser humano. A severidade da sanção traduz aliás a solenidade do contrato e o seu provável
recurso em situações muito excepcionais. Ou seja, se considerarmos que a acção se desenrola
no Reino Unido então, no mundo mágico paralelo, a solução seria contrária à existente no mun-
do muggle que rejeita a cláusula penal (penalty doctrine), indo portanto ao encontro dos ensina-
mentos de parte da literatura da Law and Economics que prefere ponderações custo-benefício
a proibições genéricas.8
No pacto celebrado no Livro VI seria, contudo, possível equacionar uma natureza
indenizatória para lá da mais óbvia componente sancionatória face à elevada parada em causa.
Afinal, as obrigações assumidas por Snape visam garantir a integridade e vida de Draco na sua
interacção com dois dos maiores feiticeiros de todos os tempos (Dumbledore e Voldemort) pelo
que na hipótese de falhanço se pagaria a morte de Draco (ou a sucção da sua alma por Demen-
tores em Azkaban) pela de Severus, ou seja o sacrifício de uma vida pela não salvação de outra.
Ademais, subjacente e a montante do Juramento Inquebrável está um acordo de assas-
sinato entre Malfoy e o Senhor das Trevas, mesmo que não fique claro se o primeiro foi coagido
a celebrá-lo (por medo por si e pelos seus) ou se aderiu voluntariamente, designadamente pelo
prestígio e posição privilegiada que poderia obter junto do mandante. Todavia, pode-se admitir,
em especial conhecendo Dumbledore (até porque este até à sua morte sempre procurou proteger
e ajudar Draco de forma a não manchar a sua alma, tendo inclusive combinado previamente
com Snape que seria este a matá-lo, recordando-lho no final) e a protecção existente em Ho-
gwarts contra os Devoradores da Morte, que a atuação de Malfoy dificilmente culminaria num
desfecho fatal, podendo, no limite, ser expulso da escola ou simplesmente julgado pelo Wizen-
gamot e encarcerado em Azkaban. Deste modo, ressalta uma vez mais a dimensão punitiva da
cláusula penal do Juramento Inquebrável.
Aliás, também uma outra diferença sobressai em relação ao regime jurídico muggle,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
tanto de Civil como de Common Law: a cláusula penal do Juramento Inquebrável, pelo seu peso
e natureza que, no fundo, conferem e explicam a solenidade contratual subjacente, não se reduz
a um mero pacto acessório; pelo contrário, a sua severidade inusitada parece ser a razão de ser
do próprio Juramento e da sua celebração pela força que lhe confere, intensificando o vínculo
8 Por todos, em português, sobre a perspectiva da Law and Economics e da Teoria Econômica do Contrato e a cláusula penal/penalty
doctrine, ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 921-922 e 927-940. Ver ainda, preferindo
uma lógica de Law and Economics, a solução da Civil Law, HATZIS, Aristides N. Having the Cake and Eating it too: Efficient Penalty
Clauses in Common and Civil Contract Law. International Review of Law & Economics, Vol. 22, No. 4, Dezembro, 2002.
334
contratual, e incentivo extremo para o seu cumprimento. Narcissa, enfim, na sua profunda afli-
ção de mãe, apenas propõe este tipo contratual para assegurar a protecção vital do filho9e para
Bellatrix trata-se da única forma de atestar verdadeira e eficazmente a boa-fé e convicção de
Severus. Posto de outra maneira, no universo mágico, a cláusula penal é a razão de ser e o que
define o Juramento Inquebrável mais do que os compromissos convencionados pelas Partes.
A dúvida natural daqui resultante prende-se com a motivação das Partes para enve-
redar por este tipo contratual. Em regra, o recurso a uma cláusula penal tem como propósito
primordial, como se vem assinalando, o reforço do cumprimento da obrigação principal, servin-
do como incentivo adicional e, simultaneamente, como sinalização do lado do devedor da sua
motivação em cumprir. Por outras palavras, para o obrigado funciona como estímulo e pressão,
uma vez que coloca um preço mais elevado no incumprimento do que no cumprimento obri-
gacional e no acionamento da cláusula do que no resultado do regime supletivo de inadimple-
mento, alterando as suas preferências em benefício do cumprimento. Ou seja, a sua diligência
e motivação são fomentadas, combatendo portanto o característico risco moral pós-contratual.
Para o credor, a cláusula penal surge como garantia da confiança na outra parte num
contexto de assimetrias informativas, mormente em relação a novos devedores ou a devedores
que têm, como Snape junto dos Devoradores da Morte, especialmente com Bellatrix, um his-
tórico de cumprimento e lealdade dúbios, ajudando, deste modo, a vencer as reticências dos
credores mais avessos ao risco. Se é expectável que, por estas razões, seja o credor a propor uma
cláusula penal, como acontece com Narcissa, tal não impede que o devedor também a sugira
como meio de vencer a suspeita da outra parte, funcionando, portanto, como seguro contratual
e instrumento fundamental para ultrapassar a tendência para a não contratação por receio de
um dos lados quando não conhece devidamente a contraparte. Neste último cenário espera-se,
porém, que o devedor saiba devida e racionalmente avaliar os seus riscos de incumprimento,
visto que, de outra forma, se estará a onerar excessivamente e a subestimar a probabilidade de
inadimplemento, com todas as ineficiências e custos pessoais e sociais consequentes de um jogo
de sinalização viciado (bluff ) para impressionar e manipular (ARAÚJO, 2007, p. 696); (SILVEI-
RA, 2017, P. 689-690).
Por outro lado, numa perspectiva compensatória (mas também sancionatória), a exis-
tência de uma cláusula penal pode diminuir custos pós-contratuais (pese embora possa sig-
nificar pela sua negociação e procura da completude contratual um acréscimo de custos de
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
transação pré-contratuais, até porque uma das partes pode encarar a proposta como um ataque
à sua seriedade e retidão) pela “sua exigibilidade de pleno jure e a desnecessidade de alegação
e prova do dano”(SOMBRA, 2012). Por outras palavras, a cláusula é acionada automaticamente
na hipótese de incumprimento substituindo a necessidade de uma acção judicial para apurar
prejuízos e fixar uma indemnização, evitando o arrastamento moroso do caso em tribunal,
9 No limite, também se pode equacionar que Narcissa também opta pelo Juramento Inquebrável para garantir o segredo do seu conteúdo
perante Voldemort, sendo que o seu inadimplemento culminaria na morte de Snape, única testemunha, para além da irmã Bellatrix, da
sua desconfiança em relação ao Senhor das Trevas e de violação do sigilo em torno da tarefa atribuída a Draco.
335
com todos os (muitos) custos (incluindo emocionais) associados. Resumindo, se os custos de
litigância poupados forem inferiores aos custos de negociação da cláusula penal, então esta
justifica-se, ceteris paribus10, pela sua eficiência em termos de uma redução agregada dos cus-
tos de transação. Tal pode suceder, em especial, em situações em que os danos derivados do
incumprimento são difíceis de calcular ou quando as partes antevêem e concordam com o valor
compensatório, evitando avaliações (judiciais) erróneas (SILVEIRA, 2017, P. 692-693).
Não se retire abusivamente destas palavras a universalidade da eficiência da cláusula
penal, sendo pois necessária uma avaliação casuística que atente, entre outros, ao valor fixado
(relativamente aos danos efetivos resultantes do incumprimento), à profundidade das assime-
trias informativas e da clivagem (de poder) entre as Partes e à influência de uma maior ou menor
racionalidade e vontade limitadas.
Veja-se que se a cláusula penal fixar um preço demasiado baixo (mais comum se a
lógica for compensatória) ou demasiado alto (característico da função punitiva) as ineficiên-
cias podem surgir, no primeiro caso ao facilitar o incumprimento e, no segundo, ao impedir
uma quebra eficiente do contrato11, levar a um cumprimento ineficiente do mesmo e potenciar
comportamentos sabotadores e de duplo risco moral do credor (que ficaria a ganhar com o ac-
cionamento da cláusula relativamente ao cumprimento contratual), para além de conduzir a um
aumento dos custos de transação por despoletar um processo de revisão equitativa da cláusula
(SILVEIRA, 2017, P. 695-696 e 699).
Ora, no Juramento Inquebrável, o preço pelo incumprimento é, como se viu, na maior
parte das vezes, muito superior aos possíveis danos originados pelo inadimplemento devido à
sua natureza eminentemente punitiva, com os consequentes riscos de ineficiência. No entanto,
no contrato celebrado entre Narcissa e Snape, não se antecipam alguns dos possíveis problemas
equacionados:
i) dificilmente aparecerá alguém que ofereça um acordo melhor que justifique a quebra
do Juramento, quanto mais não seja pelo carácter secreto deste (para evitar a fúria de
Voldemort e o conhecimento de traição dentro do seu grupo de seguidores) e por pres-
supor um potencial confronto com dois dos maiores mágicos de sempre (Dumbledore
em legítima defesa e Voldemort por vingança e punição de falhas);
conseguir a morte de Severus. Esta ameaça apenas serve para fortalecer e estimular a
prossecução das tarefas ajuramentadas; e
10 Ceteris Paribus é um termo da língua latina que significa “todas as demais coisas permanecem iguais”.
11 Contra, WILKINSON-RYAN, Tess. Do Liquidated Damages Encourage Breach? A Psychological Experiment. Michigan Law Review,
Vol. 108, 2010, defende, após verificação experimental, que a existência de uma cláusula de liquidação antecipada do dano ou até mesmo
penal clarifica as expectativas normativas das partes com a revelação de uma disposição de procurar oportunidades e aceitar a quebra
contratual por um preço mais baixo, possibilitando uma quebra eficiente do contrato.
336
do ele haja com culpa ou negligência. Ora, esta delimitação encontra-se no recorte
da segunda obrigação quando se fixa expressamente o seu cumprimento dentro das
possibilidades de Severus.
bertada na destruição de um Horcrux como o Diretor de Hogwarts lhe pediu para o matar com o
intuito de evitar o seu fim angustiante e de não manchar a alma de Draco, tendo ele concordado.
Ou seja, Snape acabará por matar Dumbledore não como agente de Narcissa (e Voldemort) mas
como agente de Dumbledore. Será suicídio assistido e não homicídio, permitindo, porém, cum-
prir o Juramento Inquebrável, em que o que interessa é o resultado, e, deste modo, manter-se
12 Sobre a importância da intencionalidade na celebração de contratos no universo de Harry Potter e na Common Law, HALL, Timothy S.
[et al.]. Harry Potter and the Law. University of Louisville School of Law Legal Studies Research Paper Series No. 2007-05, Louisville,
2007, pp. 32-36.
337
(de modo ingrato) como espião infiltrado (e solitário) junto dos Devoradores da Morte, mesmo
se sem o devido reconhecimento por parte dos membros da Ordem da Fénix.
Neste contexto, rapidamente se percebe que Snape não sofre de alguns dos enviusa-
mentos cognitivos frequentes nos devedores que os conduzem a aceitar cláusulas penais dema-
siado onerosas, a saber o excesso de confiança quanto às suas capacidades para o cumprimento
das obrigações assumidas, o sobre-optimismo quanto às condições envolventes favoráveis para
o adimplemento e o desconto hiperbólico quanto ao momento (e dimensão) de efectivação das
obrigações, sobre-avaliando-se a celebração imediata do contrato e a sinalização dada e sub-
-estimando-se o esforço a prazo para o cumprimento, pese embora as reticências exibidas no
momento de executar Dumbledore possam suscitar algumas reservas. No limite, pelo privilégio
informativo de que dispõe e pela posição dentro de Hogwarts e junto a Dumbledore, poderá
sofrer de uma ilusão de controlo da situação.
Narcissa, pelo seu lado, parece evidenciar algum efeito de dotação com a exigência da
celebração do Juramento Inquebrável, atribuindo ao cumprimento contratual um valor exces-
sivo devido a uma acentuada aversão à perda (afinal está em causa a vida e integridade do seu
único filho) que se traduz na exigência do preço pelo inadimplemento ser a vida de Snape. Não
fora o papel de agente “triplo” de Snape e das preciosas vantagens informativas que detém, cer-
tamente a proposição de um Juramento Inquebrável com uma cláusula penal de vida ou morte
levantaria enormes custos de transacção (ex ante), com Snape a querer negociar a cláusula (ou
tipo contratual), ou, simplesmente, levaria à não celebração de um contrato (SILVEIRA, 2017,
P. 706).
Resumindo, é possível imaginar várias situações em que a celebração do Juramento
Inquebrável com a sua cláusula penal de vida ou morte possa revelar-se ineficiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mágica.
A celebração de um Juramento Inquebrável, que se justifica pela liberdade contratual,
apenas se explicará, deste modo, para situações graves (de vida e de morte) ou em que as Par-
tes revelem vieses cognitivos exagerados, designadamente um excesso de confiança nas suas
capacidades e sobre-optimismo quanto às condições de cumprimento. Para evitar fatalidades
desnecessárias, até pela aparente facilidade na celebração deste tipo de contratos como resulta
do episódio dos irmãos Weasley, deveriam ser introduzidos procedimentos que ajudassem a
desmontar eventuais distorções racionais, mormente fomentando um período de reflexão, por
338
exemplo, prevendo um hiato entre a celebração do contrato e a sua vigência e vinculação e obri-
gando a uma (re)confirmação formal expressa, ou o acompanhamento da negociação contratual
por um terceiro, um pouco à semelhança do papel de Bellatrix, e que vem revelando um interes-
sante potencial desenviusador em instituições com estruturas hierárquicas13. Estes mecanismos
teriam a vantagem aparente de não apresentarem custos de transacção significativos sobretudo
quando comparados com a solução tradicional de correção equitativa judicial ex post de cláu-
sulas penais excessivas. Estas reflexões poderão, em última análise, servir igualmente para o
melhoramento do Direito contratual muggle.
REFERÊNCIAS
BAFFI, Enrico. Efficient Penalty Clauses with Debiasing: Lessons from Cognitive
Psychology. Università Degli Studi Guglielmo Marconi, Roma, nov. 2007. Disponível em:
<https://ssrn.com/abstract=1029926>. Acesso em: 1 out. 2017.
HALL, Timothy S. e outros. Harry Potter and the Law. University of Louisville School of
Law Legal Studies Research Paper Series, Louisville, n. 2007-05, out. 2005. Disponível em:
< http://ssrn.com/abstract=829344>. Acesso em: 1 out. 2017.
HATZIS, Aristides N. Having the Cake and Eating it too: Efficient Penalty Clauses in
Common and Civil Contract Law. International Review of Law & Economics. Vol. 22, n. 4,
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SOMBRA, Thiago Santos. As arras e a cláusula penal no Código Civil de 2002. Revista dos
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
13 BAFFI, Enrico. Efficient Penalty Clauses with Debiasing: Lessons from Cognitive Psychology. Università degli Studi Roma Tre,
Roma, 2007. https://ssrn.com/abstract=1029926
339
SUPREMO OU SOBERANO?
1 Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave. Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PU-
C-SP. Graduada em Direito pela PUC-SP. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN.
Estágio pós-doutoral na WestifälischeWilhelms-Universität Münster (WWU). Membro da diretoria do IPPC. Membro da ABDPRO.
Membro do IBDP.
2 Versão tupiniquim da famosafrase de Charles Hughes “We are under a Constitution, but the Constitution is what the judges say it is.”
3 Ousete, pois a EC n. 1 de 1969, dada a sua extensão e o conteúdo dos dispositivos que alterou, pode ser considerada como uma nova
Constituição.
4 Até 31 de agosto de 2017.
340
constitucionais são constantes – a Constituição brasileira, com menos de 30 anos de idade, con-
ta com mais de 84.000 (oitenta e quatro mil) palavras. Ou seja, não temos falta de texto...
A norma constitucional, entretanto, não se confunde com o texto5, sendo certo que a
atividade interpretativa extrai a norma jurídica a partir do texto constitucional. Mas isso não
significa dizer, de modo algum, que o texto constitucional é irrelevante, ou que não há limites
para a interpretação da Constituição. Ou seja, há uma distância enorme entre assumir que a
norma jurídica não se confunde com o texto da lei ou da Constituição, e dizer que o texto pode
ser relevado na interpretação.
O texto da Constituição funciona como limite aos poderes instituídos6, definindo suas
competências, o modo de sua atuação e estabelecendo os direitos e garantias que devem ser
respeitados. O texto também é um limite para a interpretação da Constituição.
Em outras palavras, o STF não pode, sob o argumento de ser “o guardião da Cons-
tituição”7, criar normas desconectadas com o texto escrito da Constituição. A necessária ob-
servância das normas da Constituição é fundamento do Estado Democrático de Direito, sendo
fundamental para a manutenção de um Estado Constitucional.
Há determinados artigos da Constituição que permitem uma certa maleabilidade in-
terpretativa (como o conteúdo do devido processo legal, da igualdade), mas há outros que não
permitem qualquer tipo de flexibilidade – como as regras de competência.
Descumprir regras expressas da Constituição, argumentando que se trata de “mutação
constitucional”8, somente colabora para uma discricionariedade judicial sem limites (se o limite
não está na Constituição, estará onde?).
A relação entre “direito e moral” e “direito e sociedade” deve ser muito bem estabe-
lecida para que não corramos o risco de estabelecer padrões morais ou sociológicos nos julga-
mentos jurídicos. É claro que a adequação social das normas jurídicas é uma necessidade9, mas
atribuir, sem comando constitucional expresso, essa “competência de adequação” ao judiciário,
sem limites, permitindo-se a inovação, é minimamente temeroso.
O direito constitucional, com afirma Zagrebelsky10, não pode contentar-se em ser um
subproduto da história e da política, propondo soluções voltadas ao passado; ao contrário, deve
voltar-se ao futuro, convertendo-se em força autonomamente constitutiva tanto da história
quanto da política.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
5 “A norma jurídica não se encontra já pronta nos textos legais; nestes encontram-se apenas formas primárias, os textos normativos. A
norma só será produzida em cada processo particular de solução jurídica de um caso, em cada decisão judicial. (...) A “norma jurídica”
torna-se, dessa forma, um conceito complexo, composto do âmbito normativo e do progrma normativo (isto é, do resultado da interpre-
tação de todos os dados linguísticos.)” (MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estrutu-
rantes, 3ª. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p.135)
6 Não é demais lembrar que o STF, assim como todos os poderes instituídos são criações do Poder Constituinte Originário, ou seja, são
“criaturas” e não “criadores”.
7 Art. 102, CF. É de se observar que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios também o são (art. 23, I, CF).
8 Exemplos recentes não faltam. Para citar um caso em que o desrespeito ao texto se mostrou grotesco, veja-se a “interpretação” dada ao
art. 52, X na decisão liminar proferida pelo Ministro Gilmar Mendes na Rcl 4335-AC, em que afirmou haver uma “mutação constitucio-
nal” no referido artigo, o que alteraria a competência atribuída pelo Constituinte originário ao Senado, para o STF.
9 Já dizia GeogesRipert que quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito.
10 ZAGREBELSKY, Gustavo. Historia y constitución, trad. Miguel Carbonell. Madrid: Trota, 2011, p. 27-28
341
Surge, então, um novo pensamento no campo jurídico, por meio do qual se atribui
força maior às normas constitucionais, capaz não apenas de fazer prevalecer no ordenamento
jurídico somente as normas que estejam em conformidade formal e material com o seu conteú-
do, mas também com força suficiente para conformar a sociedade em que estão inseridas tais
normas: é a chamada “força normativa da Constituição”11.
Afirmar que a Constituição possui força normativa significa dizer que a Constituição
tem o poder de conformar a sociedade, possuindo as normas constitucionais um status diferen-
ciado das demais normas do ordenamento jurídico. Essa percepção tornou premente a modifi-
cação de diversos institutos e instrumentos jurídicos, como a expansão da jurisdição constitu-
cional, e a instituição de novos instrumentos de controle de constitucionalidade.
O poder político ilimitado, que não possui controle, pode perverter-se numa grande
máquina corruptora, como ocorreu na Alemanha com o nazismo, na Itália com o fascismo e na
Rússia com o stalinismo12. Acreditar que transferir esse poder ilimitado ao judiciário não terá
as mesmas consequências perversas é, minimante, ingênuo.
Percebe-se, assim, que a observação da norma constitucional é elemento nuclear para
que haja coerência e integridade no sistema jurídico, haja vista tornar menor o espaço de dis-
cricionariedade judicial. A Constituição é o limite para a atuação do Estado, e o texto da Cons-
tituição, embora não se confunda com a norma que dele se extrai, é um limitador à atividade
hermenêutica.
Para se compreender essa relação, a metáfora com as cores é bastante esclarecedora
dos limites e certezas hermenêuticas. Quando se fala sobre a cor salmão (um misto de laranja
com rosa, às vezes mais claro, às vezes mais escuro), há uma certa margem de discussão sobre
qual seria exatamente essa cor.
Dependendo da incidência da luz (que também pode ser mais amarelada, ou esbran-
quiçada), e das pré-concepções de quem vê, o salmão pode se parecer mais com o laranja. Em
sendo diversas as circunstâncias, o salmão pode ficar mais próximo do vermelho, do rosa, ou
até mesmo do bege. Mas ele jamais será preto, azul ou verde.
Ou seja, na interpretação há zonas cinzentas, em que a configuração da norma depen-
derá efetivamente das circunstâncias concretas13, Há zonas de certeza negativa. Assim como, há
zonas de certeza positiva. Nestas zonas, qualquer confronto significa arbítrio.
A competência legislativa – inovação do direito – foi conferida pelo constituinte origi-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
nário ao órgão legislativo. Ao judiciário foi atribuída a competência precípua de julgar causas,
de modo que é defeso a qualquer órgão do judiciário extrapolar os limites impostos pelo texto
11 HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p.
15-16
12 O autor, quando se refere a uma das leis do Reich alemão (que permitia a condenação de um homem à pena de morte se fosse denuncia-
do pelo “crime” de criticar Hitler), afirma que “a corrupção das mentes é obtida através da desinformação maciça e da proibição de toda
crítica”. (CAPPELLETTI, Mauro. Repudiando Montesquieu? A expansão e a legitimidade da “justiça constitucional”. Trad. Fernando
Sá. Porto Alegre. Revista do TRF – 4ª. Região, ano 12, n. 40, p. 15-49, 2001, p. 18-19).
13 A alteração do sentido da norma em decorrência de alterações subjetivas, objetivas, circunstanciais e temporais.
342
da Constituição e das leis com ela compatíveis.14
O sistema jurídico é um complexo de normas, hierarquicamente organizadas a partir
da Constituição. Esse fato torna o Estado Democrático de Direito possível, pois que pautado
em um ponto de confluência, resultado das escolhas políticas e sociais de um povo, num de-
terminado território, exercendo sua soberania em sua expressão máxima: o Poder Constituinte
Originário.
Assim, resta patente que, em um verdadeiro Estado Democrático de Direito não existe
ampla liberdade ao Estado-julgador. Ao contrário, deverá ele estar estritamente vinculado aos
limites impostos pelo ordenamento jurídico, já que a atuação estatal, limitadora que é das liber-
dades individuais, deverá se pautar nas normas estabelecidas pela sociedade para o seu regular
funcionamento (ordenamento jurídico, todo ele com fundamento de validade retirado, em últi-
ma instância, da Constituição Federal).
O Estado-juiz, assim, não tem liberdade irrestrita para “reescrever” o texto na ativida-
de interpretativa. O texto não é suficiente, mas também não pode ser ignorado. Quando a Cons-
tituição diz o que ela é, não cabe ao Supremo desdizê-la. O Supremo é supremo, e não soberano.
A Constituição diz o que ela diz, e não o que o STF diz que ela diz.
14 O controle de constitucionalidade, através de suas diversas técnicas, é a única maneira constitucionalmente aceitável de se permitir ao
Estado-juiz deixar de aplicar uma lei.
343
WEAK COURTS, STRONG RIGHTS
Recensão do livro1:
TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: judicial review and social welfare rights
in comparative constitutional law. Princeton, Princeton University Press, 2008. 272p. (ISBN
978-0-691-13092-7), $26,13.
344
diálogo entre a Corte Constitucional e o Poder Legislativo corporifica um providencial propósi-
to responsabilizador dos atores políticos.
Prendendo-se à programação do livro, Tushnet divide-o em 03 (três) partes, totali-
zando 08 (oito) capítulos, no seguinte modo: (a) na primeira, apresentam-se os necessários es-
clarecimentos sobre a revisão judicial forte e a revisão judicial fraca, destacando importantes
questões sobre o direito constitucional comparado, formas alternativas de revisão judicial e a
possível instabilidade da revisão judicial fraca e suas implicações; (b) na segunda, destaca a
responsabilidade do Poder Legislativo na aplicação da Constituição, discorrendo sobre a ativi-
dade interpretativa do legislador e, também, sobre as decisões de cunho constitucional fora das
cortes, o que bem evidencia a existência de diversos corpos decisórios revelantes no Estado; por
fim, (c) na terceira parte, o autor discute a aplicação judicial dos direitos econômicos e sociais,
pontuando sobre a conflitiva relação entre a state action doctrine5e os direitos sociais e econô-
micos, a estrutura operacional da revisão judicial, efeitos horizontais e direitos sociais, findando
com a discursiva e/ou conflitiva questão da aplicação dos direitos econômicos e sociais.
Vale lembrar que a proposta discursiva do livro, como proposta conteudística, prende-
-se à dificuldade em aplicar judicialmente os direitos econômicos e sociais nos Estados Unidos.
A partir disso, e com o coligir de outras fontes constitucionais, o autor consagra a importância
de um novo modelo de revisão judicial: a revisão judicial fraca6. Desde já, é importante destacar
que a Constituição dos Estados Unidos não criou qualquer modelo de revisão judicial [forte],
logo, ela decorreu de um longo processo de evolução jurisprudencial7, de maneira que não há
uma razoável garantia constitucional de que uma consciente ação política não possa romper
com o modelo atual (p. 74, nota 88).
De plano, Tushnet já destaca um dado precioso sobre a revisão judicial fraca, qual seja,
de que no constitucionalismo moderno o povo de uma nação deve ter o compromisso de esco-
lher suas políticas e, com isso, assumir o ônus de uma autogovernação democrática (p. 18), o
que impõe, evidentemente, a possibilidade de impor limites às escolhas políticas numa perspec-
5 Que possui sua origem na aplicação da Décima Quarta Emenda da Constituição dos Estados Unidos (Civil Rights Cases), com particular
destaque ao caso Lochner v. New York [198 U.S. 45 (1905)]. Em verdade, ao destacar a liberdade de contratar, que, inclusive, não era um
direito expresso na Constituição, em detrimento da saúde do trabalhador (negro), a corte norte-americana promoveu verdadeira política
em vez de interpretar o direito (Paul KENS, Lochner v. New York, In: Kermit. L. HALL (ed.), The Oxford Guide to United States Su-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
345
tiva democrática (p. 19), daí a particular importância desse modelo de revisão judicial: consagra
o reconhecimento da autogovernação democrática no constitucionalismo moderno. Se, por um
lado, a democracia nem sempre revela a melhor solução aos dilemas da sociedade, e toda socie-
dade democrática bem sabe disso; por outro, ela deve denunciar os responsáveis pelas decisões
políticas fundamentais do Estado. É impensável qualquer liberdade, num regime democrático,
sem as inflexões das providenciais ou sofríveis opções políticas do povo.
Nisso resulta que a revisão judial forte, na qual os julgamentos da corte são defintivos e
não revisáveis8, não se compatibiliza propriamente com a autodeterminação democrática de um
povo, mesmo que tal modelo, e que isso seja fora de dúvida, tenha o propósito de assegurar os
direitos desse povo. O que parece bem evidente é a tensão constante entre o modelo de revisão
judicial forte na defesa ou aplicação dos limites constitucionais e o exercício de um autogoverno
democrático (p. 22). Nesse ponto, como forma de revisão judicial fraca, é bem interessante a
figura do mandato interpretativo (interpretative mandate) estampado no § 6 do New Zealand
Bill of Rights Act9, de 1990, porquanto consagra uma atuação judicial com nítida deferência ao
legislador e, por outro lado, formenta uma atuação legislativa cônscia dos limites substantivos
claramente impostos pela corte (p. 27). Por outro lado, a Seção 33 da Carta Canadense de Di-
reitos e Liberdades de 1982, na discutível técnica da cláusula não obstante, expressa uma pos-
sível instabilidade na adoção da revisão judicial fraca, uma vez que permite uma compreensão
da atividade legislativa dissonante da perspectiva judicial (override); contudo, o custo político
dessa atuação acaba por demover qualquer perspectiva não dialogal entre a corte e o legislativo
(p. 51)10; de todo modo, num sistema dialogal, as tratativas sobre os grandes problemas consti-
tucionais não encerram apenas respostas do Legislador, mas, também, da Corte Constitucional
(p. 46).
Dentre tantos posicionamentos do autor, um parece ganhar ares de inegável consis-
tência: a revisão judicial forte acaba por estimular uma atuação legislativa de mera tomada de
posição, isto é, sem o necessário compromisso político e sem a exigível responsabilidade na in-
terpretação constitucional (p. 82), pois o modelo de atuação judicial acaba por reduzir a impor-
tância do Legislador como intérprete constitucional, até porque reduz, ou mesmo fulmina, uma
diversidade de interpretações razoáveis sobre o sentido da Constituição e, com isso, impede a
alteração de entendimento sobre determinada matéria. O imobilismo pela segurança, também
pode ser uma forma de gerar mais insegurança diante das vicissitudes da hipermodernidade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Além disso, a mera tomada de posição do Legislador acaba por desaguar num danoso efeito em
cadeia, a saber, a questão constitucional é basicamente ignorada por acreditar que apenas outra
8 O caso Cooper v. Aaron [358 U.S., 1, 18 (1958)] foi considerado pelo autor como a articulação moderna da revisão judicial forte (p. 21).
9 “Wherever an enactment can be given a meaning that is consistent with the rights and freedoms contained in this Bill of Rights,
that meaning shall be preferred to any other meaning”. Disponível em: <http://www.legislation.govt.nz/act/public/1990/0109/latest/
DLM225502.html>. Acesso em 26 abr. 2015.
10 Daí a razão do necessário cometimento na adoção do instituto, aliás, inicialmente pensado como um compromisso político e, hoje,
expressa uma verdadeira instituição constitucional nova, uma forma de constitucionalismo suave, que exige o diálogo entre o legislador
e o juiz (BARAK,Aharon,Proportionality. Constitutional Rights and their Limitations. Translator Doron Klair. Cambridge: Cambridge
University Press, 2012, p. 170).
346
seara decisória é capaz de enfrentá-la, passando, assim, do Legislador ao Presidente, na linear
compreensão de que a questão constitucional seja decidida pela via excepcional do veto; o Poder
Executivo, por sua vez, empreende o entendimento de que a questão constitucional seja final-
mente definida pelas cortes através das demandas judiciais (p. 89-90). O efeito em cadeia, em
verdade, não passa de um expediente de transferência de responsabilidade sobre a interpretação
da Constituição, possuindo, dessa forma, um efeito imobilizante dos atores eminentes políticos
na interpretação constitucional. Por seu turno, com maior carga de responsabilidade política, a
revisão judicial fraca pode incentivar o legislador a levar sua Constituição a sério (p. 91).
O autor compreende que a interpretação realizada pelos orgãos não judiciais não é
pior que a interpretação promovida pelos órgãos judiciais, observando-se, evidentemente, a
diversidade de perspectiva que cada atuação apresenta no exercício de suas competências cons-
titucionais (p. 106). Portanto, Tushnet destaca que o Legislador pode ser um bom intérprete
constucional (p. 96), especialmente quando amparado por uma experiente equipe técnica, que,
na qualidade de intérpretes constitucionais qualificados, são capazes de expressar os efetivos
riscos na adoção de determinada regulamentação, ainda que, numa perspectiva empírica, al-
guns assessores possam ser fortemente politizados, no que pode enfraquecer eventual análise
de questão constitucional (p. 99). Ademais, a dinâmica da decisão política, no que compreende
a interpretação constitucional, não define a ideia de erro em função da discordância de entendi-
mento sobre o sentido da Constituição, daí que o Legislador não erra por discordar da posição
firmada pela corte, mas, tão-somente, corporifica o regular e legítimo exercício de intérprete
constitucional (p. 103), até porque decidir por último é errar por derradeiro e, assim, não neces-
sariamente colocar em evidência qualquer erro do Legislador.
Tushnet promove, ainda, uma demorada exposição sobre o processo decisório cons-
titucional fora das cortes, pontuando, sobretudo, acerca dos órgãos relevantes da estrutura de
poder do Estado norte-americano, por exemplo, a atuação do Congresso no caso de impeach-
ment do ex-presidente Bill Clinton (p. 115) ou da atuação do Office of Legal Counsel do Depar-
tamento de Justiça no assessoramento do Poder Executivo, que, numa posição desinteressada
sobre a questão constitucional, pode expressar limites e possibilidades de eventual interpreta-
ção constitucional defendida pelo Presidente da República (p. 134). O autor destaca até mesmo
disposição da Constituição Portuguesa sobre a inconstitucionalidade por omissão, que, sem
dúvida, revela-se um claro instrumento constitucional de diálogo entre a corte constitucional
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
347
entre os poderes e, sobretudo, do efetivo controle recíproco entre eles, porquanto a lógica da
última palavra, impositiva e restritiva, típica da revisão judicial forte (strong-form judicial re-
view), perde espaço na tentativa de uma atuação judicial diretiva e receptiva. Diretiva11, porque
trava um diálogo franco sobre o significado do texto constitucional e, com isso, empreende uma
clara posição de responsabilidade na concretização do texto constitucional, fazendo com que o
Legislativo possa sofrer o alto custo político de uma atuação declaradamente inconstitucional.
Receptiva, porque a análise do texto constitucional parte da compreensão de que as decisões
da corte podem ser revistas em curto prazo de tempo (p. 34), tudo em função do diálogo cons-
trutivo com o Legislativo. Disso resulta uma questão importante: a interpretação constitucional
passa a absorver múltiplas vias de compreensão, melhor dizendo, alcança novos e importantes
autores na decantação do texto constitucional, denotando, dessa forma, uma possívele necessá-
ria realidade ao significado da Constituição e coloca a autogovernação democrática no centro
das possibilidades políticas da aplicação dos direitos econômicos e sociais.
Quiçá, o incremento de novas vias interpretativas, numa relação de complementarie-
dade, portanto, dialogal, demonstre ser a forma de revisão judicial mais consentânea com a
democracia moderna, pois, não alijando a importância do Poder Judiciário, prestigia o sentido
plural que a expressão política dos demais poderes arvora na determinação do significado do
texto constitucional.
A revisão judicial fraca, por certo, possui os seus empeços, e isso será apresentado
adiante, mas ela possui o inegável mérito de fazer rediscutir posições judiciais, justamente por-
que a dinâmica revisional dos direitos é mais ativa, pois o diálogo intenso com o Legislativo
impõe uma descoberta de novas formas de promover a efetivação dos direitos, o que exige, mui-
tas vezes, mudança de entendimento da corte, especialmente sobre questões relativas ao modo
de efetivação dos direitos sociais. Assim, a revisão judicial fraca possui o grande triunfo de
permitir que os julgamentos, nos quais são decantadas as interpretações constitucionais, sejam
revistos em curto espaço de tempo por uma legislatura, inclusive sopesando a importância da
posição tomada judicialmente nos processos legislativos (p. 24), sem falar que os mecanismos
ordinários da atuação legislativa não se encontram vedados, isto é, não é necessário empreender
o complexo processo de emenda constitucional para tentar aperfeiçoar a disciplina normativa
dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido, é inegável que a revisão judicial fraca é um
modelo mais democrático, porque simplesmente é mais representativo da sociedade civil, uma
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
vez que o diálogo é aberto e possui uma seara própria de discussão inegavelmente mais ampla
que a verificada na ambiência judicial.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a state action doctrine12, que persiste como ranço
de uma empedernida cultura constitucional, seria alvo de uma intensa e discursiva análise pela
via da revisão judicial fraca, porquanto os julgados demandariam novas formas de enxergar
11 Obviamente, nessa perspectiva dialogal, a dinâmica diretivo-conformativa do Legislador sempre será destacada por meio do princípio
democrático.
12 A SAD, sigla impensável o seu uso no idioma inglês, já revela algo de deprimentena mencionada doutrina.
348
a conflituosa questão da doutrina dos efeitos horizontais indiretos13, muito embora o autor
reconheça a dificuldade de sua aplicação na estrutura da revisão judicial nos Estados Unidos
(p. 198). Tushnet defende que o direito constitucional comparado seja capaz de ventilar luzes
sobre a problemática da efetivação dos direitos econômicos e sociais na estrutura do direito
constitucional doméstico (p. 163) e, nesse sentido, o autor promoveu uma demorada exposição
sobre a inconsistência teórico-funcional da state action doctrine em relação a outros institutos
do direito constitucional comparado. De qualquer forma, o que assoma em importância na revi-
são judicial fraca é a clara possibilidade de aplicação da doutrina dos efeitos horizontais e, com
isso, a aplicação judicial dos direitos sociais e econômicos, notadamente quando tal aplicação
acabe por atrair a responsabilidade dos órgãos estatais em função de uma inegável questão
de fundo constitucional (substantive constitutional norm), exigindo-se, assim, o dever de uma
disciplina legislativa mais precisa desses direitos. A state action doctrine revela um inevitável
dilema: não há diferença substancial entre os danos possivelmente causados pelo Poder Público
daqueles eventualmente produzidos pelos particulares à luz das normas constitucionais (p. 179).
A pretendida distinção, portanto, é superficial e sem critério, o que, evidentemente, pode causar
enormes injustiças no caso concreto. Tushnet chega a desabafar que a state action doctrine não
passa de uma expressão de valores constitucionais dos Estados Unidos, porém não é uma regra
legal defensável analiticamente (p. 185).
De todo modo, a concretização dos direitos sociais, a partir da perspectiva dialogal,
decorreria de mecanismos processuais capazes de impor o entendimento judicial sobre a ma-
téria, de forma que a proteção constitucional dos direitos seja empreendida mesmo quando as
cortes não tenham a última e definitiva palavra sobre os direitos. Tushnet destaca muitos julga-
dos sobre questões decorrentes de cortes de diversos países, aliás, com considerável convenci-
mento sobre a viabilidade de suas conclusões (p. 197-226), atentando-se que a obrigação moral
ou política do Legislador, imposta constitucionalmente14, de assegurar a aplicação dos direitos
econômicos e sociais, não quer dizer que eles sejam necessariamente exigíveis judicialmente
ou, pelo menos, que não sejam por meio da revisão judicial forte (p. 230-231).
Destaca-se, ainda, que a revisão judicial fraca tem a pretensão de ser mais adequada
no sistema de constituições multiníveis, porquanto assegura o processo democrático, sem fragi-
lizar as minorias, por conta da intensa reflexividade na aplicação dos direitos numa regime de
compatibilização de diversos textos constitucionais, fato que é facilmente percebido na tensão,
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
nada rara, entre Convenção Europeia e a legislação interna, constitucional ou não, de cada Es-
tado membro da União Europeia (p. 31). Não se questiona que isso representa uma importante
13 Conforme os escólios da jurisprudência alemã. Nesse ponto, é sempre bom lembrar que o Tribunal Constitucional Federal Alemão
limitou-se a reconhecer que uma autoridade pública (corte subalterna) não considerou devidamente a liberdade de expressão de Erich
Lüth, isto é, não se pronunciou adequadamente sobre uma ordem objetiva de valores que se aplica tanto ao direito público quanto ao di-
reito privado (p. 221). O que se questiona é justamente sobre essa pretendida ordem objetiva de valores, como se fosse um dado objetivo
e mesmo uma ordem, mas, a depender das circunstâncias, apenas um mecanismo para decantar casuisticamente a tirania dos valores.
14 Claro que se trata de uma manifesta imposição normativa, que, evidentemente, carreia a obrigação moral e política, especialmente
quando são expressamente cotejadas nos textos constitucionais, como é o caso das constituições brasileira e portuguesa.
349
pretensão, pois permite rediscutir rapidamente posições já decididas numa conjuntura de pro-
fundas e frequentes mudanças político-econômicas, especialmente no contexto de grave crise
econômica.
Tushnet parte, portanto, da compreensão de que as cortes devem ser pensadas numa
clara e sincera relação com outras instituições, notadamente com o Poder Legislativo, resultan-
do, assim, um processo político mais efetivo e esclarecedor sobre a efetivação dos direitos, jus-
tamente porque a atividade legislativa tende a ser mais responsável na definição do sentido da
Constituição e, com isso, na elaboração das leis a partir dos desígnios constitucionais. A revisão
judicial fraca possui, assim, o desafio de firmar o entendimento de que as previsões gerais e
abstratas da Constituição podem ser concebidas ou interpretadas por várias formas igualmente
razoáveis, destacando uma atuação legislativa capaz de oferecer uma interpretação alternativa
do significado da Constituição (p. 49). Nesse ponto, é plenamente questionável se mecanismos
processuais fracos poderiam efetivamente concretizar direitos, para tanto, basta compreender
que a dinâmica da concretização dos direitos depende mais do alcance político da atuação do
Poder Público do que precisamente da exigibilidade judicial dos direitos. Daí que a nota de ex-
perimentalismo da revisão judicial fraca parece compreender e harmonizar melhor a dinâmica
política da efetivação dos direitos que a revisão judicial forte.
Prendendo-se uma ligeira análise crítica do livro, cumpre lembrar que o autor, a des-
peito de arvorar a importância do direito constitucional comparado, escreveu sua tese baseada
em realidades constitucionais bem diversas da América Latina, ainda que faça ligeiras conside-
rações a uma decisão de um tribunal argentino (p. 178), percebe-se que os pressupostos teóricos
da revisão judicial fraca exigem uma sociedade civil vigilante e, mais que isso, uma democracia
consolidada, lastreada, portanto, em instituições fortes e cônscias de suas competências consti-
tucionalmente estabelecidas (p. 253). É dizer, a revisão judicial fraca não se compatibiliza com
a debilidade das instituições democráticas, uma vez que, nesse contexto, o diálogo político não
alcançará uma magnitude necessária para identificar uma dinâmica decisória pautada na auto-
nomia da sociedade civil numa democracia representativa. É dizer, instituições fracas sempre
sucumbem numa ambiência de controvertidas lutas político-ideológicas sobre as decisões fun-
damentais do Estado.
Não obstante tais considerações, os dilemas constitucionais dos países latino-america-
nos, em particular o Brasil, podem ser vistos numa dinâmica compreensiva diversa da revisão
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
judicial forte, que, evidentemente, exigem soluções constitucionais próprias, mas que não dis-
pensam a necessidade de diálogo entre os Poderes, residindo, aqui, uma indiscutível qualidade
da revisão judicial fraca. Outro ponto importante é a dualidade inerente à própria revisão ju-
dicial fraca, pois a resistência da atividade legislativa em admitir os nortes do diálogo político,
isto é, o contorno da conformação constitucional, vai desaguar numa premente atuação, cada
vez mais impositiva, do Poder Judiciário, recaindo, mais adiante, nas pretensões de decisões
judiciais finais e não revisáveis pelo Poder Legislativo e, ainda, a revisão judicial fraca pode
consagrar uma revisão judicial forte quando o legislativo sempre endossa as interpretações da
350
corte (p. 47).
O novo modelo exige temperamentos e precisa de decantação teórico-funcional para
galgar maior espaço no constitucionalismo moderno, afinal, o reduzido número de países que
o adota, sem falar na considerável variação do seu modo operativo, faz com que muita refle-
xão seja necessária para sua efetiva adoção nos países latino-americanos, ainda tão afeitos aos
arroubos políticos na interpretação constitucional e à instabilidade democrática nas relações
institucionais.
Uma assertiva afigura-se defensável: a predisposição ao diálogo entre o Legislador e
a Corte Constitucional e, em seguida, os resultados políticos desse efetivo diálogo, por romper
com a dinâmica decisória de superposição da revisão judicial forte, parece ser um cenário mais
adequado para superar os grandes dilemas constitucionais de um povo; todavia, essa forma de
revisão judicial surge mais da maturidade político-institucional de um país do que propriamente
das felizes experiências constitucionais de outras nações. De qualquer forma, a revisão judicial
fraca planta sementes para uma necessária rediscussão da revisão judicial forte, tendo em vista
os motivos já declinados nesta recensão.
351
O CUIDADO ENTRE A ILICITUDE E A CULPA
Durante o século XIX e ao longo da primeira metade do século XX, a teoria da res-
ponsabilidade (civil e criminal) foi dominada pela prevalência quase incontestada de uma con-
cepção naturalística da ação, entendida como uma modificação do mundo exterior, ligada cau-
salmente à vontade do agente, indiferente a qualquer juízo de valor.
Por seu lado, a ilicitude concentrava a chamada “matéria objectiva” do facto, sendo de-
finida pela violação ou perigo de violação de bens jurídicos dotados de protecção delitual, caso
não sobreviesse uma causa de justificação. Por seu turno, a ação ilícita seria culposa, sempre
que se comprovasse a existência entre o agente e o facto de um nexo psíquico passível de fun-
dar a sua imputação, fosse a título de dolo, enquanto conhecimento e vontade de realização do
ilícito, ou negligência, entendida como deficiente tensão de vontade, impeditiva de uma correta
previsão do fato, por isso se fala de uma concepção psicológica da culpa.
Deste modo, o pensamento clássico organizava a matéria delitual segundo uma divisão
bipartida, que encerrava integralmente a dimensão “objetiva” do fato na ilicitude e concentrava
a sua dimensão “subjectiva”, também por inteiro, na culpa.
A partir de certo momento2, a tese naturalística de ação conheceu ásperas e justifica-
das críticas dirigidas contra os seus principais pilares conceptuais. Deste logo, além do entorse
de alguns delitos comissivos (assim, as injúrias representariam a emissão de vibrações sonoras
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
352
dica das omissões, também se fazia sentir na concepção “negativa” da ilicitude, reduzida à mera
ausência de uma causa de justificação, desprovendo-a do desvalor ínsito a um comportamento
contrário a um dever de conduta imposto em ordem à proteção de posições jurídicas alheias.
Por seu turno, a concepção psicológica da culpa também se prestava a várias críticas.
Por um lado, ignorava a possibilidade de o inimputável – por definição, incapaz de culpa –
poder agir com dolo ou negligência, bem como a falta de qualquer relação psicológica entre o
agente e o facto na negligência inconsciente. Por outro, a inclusão do dolo e da negligência na
culpa confundia valoração do objeto e objeto da valoração, uma vez que tanto o dolo como a ne-
gligência constituem elementos do próprio comportamento, ou seja, do substrato que é valorado
em sede de culpa, não podendo por isso pertencer-lhe. 4
Estas incongruências reflectiam-se no tratamento da matéria do cuidado, que era inte-
gralmente remetido para a negligência, entendida como modalidade de culpa, a qual compreen-
deria a falta ao dever objetivo de cuidado, tanto no seu aspecto objetivo ou exterior (padrão pelo
qual se mede o grau de capacidade, destreza ou diligência necessária), como sob o ponto de
vista subjectivo ou interior (grau de aptidão ou diligência possível em face das circunstâncias
reais do caso, da capacidade pessoal do agente, etc.); estes dois aspectos estariam intimamente
associados na óptica da responsabilidade civil, nenhuma vantagem se obtendo com a sua distri-
buição por conceitos diferentes, como a ilicitude e a culpa. 5
São essencialmente duas as razões que impedem a procedência desta orientação:
Por um lado, a inclusão da violação do dever objectivo de cuidado na culpa constituía
um paradoxo teórico, porque ordena na mesma instância dogmática o objeto da valoração – in-
fração do dever – e a valoração do objeto – avaliação da reprovabilidade daquela violação. A
culpa não contém deveres, antes pressupõe a sua violação, servindo para avaliar se a sua preva-
ricação é ou não censurável.
Por outro, o teor das considerações essenciais desenvolvidas em sede de culpa não cor-
respondia minimamente ao anunciado, quando se distinguia o “aspecto objectivo ou exterior”
do “ponto de vista subjectivo ou interior” do dever objectivo de cuidado; ao invés, toda a análise
da culpa se concentrava no “lado interior”, contrapondo a negligência consciente à inconsciente,
conforme, respectivamente, o agente previsse a produção do fato ilícito como possível, embora
acreditando por leviandade ou incúria na sua não verificação e não tomando por isso as pro-
vidências necessárias para o evitar ou nem sequer concebesse essa possibilidade, podendo e
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
4 São fundamentais neste contexto as críticas dirigidas por FIGUEIREDO DIAS. Direito Penal– Parte Geral, Questões Fundamentais
– A doutrina geral do crime. Tomo I, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 240-242 e RIBEIRO FARIA. Algumas notas
sobre o finalismo no direito civil. BFDUC, Volume LXX (1994), p. 187. Segundo ARTHUR KAUFMANN. Das Schuldprinzip:
eine strafrechtlich-rechtsphilosophische Untersuchung. Heidelberg, 1961, coube a REINHARD FRANK. Über den Aufbau des
Schuldbegriffs. Giessen, 1907, a demonstração pioneira da inviabilidade da concepção psicológica da culpa, com base no estado de
necessidade desculpante que exclui a culpa, apesar de o agente atuar com dolo.
5 Assim, ANTUNES VARELA. Das Obrigações em Geral. Almedina, Coimbra, 5ª edição, 1986, pp. 464-465.
6 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, pp. 448-449.
353
da negligência, era afinal omisso na doutrina clássica da responsabilidade, não se explican-
do verdadeiramente em que consistia, os critérios que o determinavam nem as fontes de que
promanava. Os desenvolvimentos esgotavam-se no que hoje se designa por “cuidado interno”,
olvidando o conteúdo e as características do comportamento devido para evitar lesões nos bens
juridicamente protegidos pela tutela delitual.
354
parte um elemento material, a infracção do dever objetivo de cuidado e um elemento psíquico,
a deficiente ou inexistente representação do evento.
Esta complexidade heterogénea que estrutura a negligência justifica a repartição dog-
mática dos seus elementos componentes. A violação do dever objectivo de cuidado, com a con-
sequente criação de um perigo não permitido de lesão para um bem juridicamente protegido,
faz parte da ilicitude, enquanto a reprovável atitude pessoal de imprudência que se traduziu na
deficiente ou inexistente representação da possibilidade de verificação do resultado ilícito, não
pode deixar de pertencer à culpa.7
A inserção do dever objectivo de cuidado na ilicitude encontra a sua razão de ser no
fato de se tratar de um dever instrumental, imposto para evitar lesões nos bens jurídicos prote-
gidos pela própria ilicitude. Logo, em termos de construção teorética, seria paradoxal que esse
dever fosse ordenado numa categoria dogmática, a culpa, que, por definição, pressupõe consu-
mada a ilicitude, ou seja, a lesão ou o perigo de lesão dos bens jurídicos que o dever objetivo
de cuidado se propõe, justamente, acautelar. Tal localização sistemática representaria uma nova
confusão metodológica entre o objeto da avaliação e a avaliação do objeto.
Por seu lado, já pertence ao foro exclusivo da culpa saber se o incumprimento do cui-
dado objectivamente devido podia ter sido evitado e, decidir, por conseguinte, da respectiva
censurabilidade.
7 Assim, ULRICH HUBER. Zivilrechtliche Fahrlässigkeit. FS für Ernst Rudolf Huber, Göttingen, 1973, p. 256-257: “A evolução levou
a que atualmente se reconheça no juízo de negligência – ou seja no conceito de “cuidado exigível no tráfego” – em parte um juízo de
ilicitude e em parte de culpa”. Como sublinham JOSEF ESSER/HANS – LEO WEYERS, Schuldrecht, Band II – Besonderer Teil, Teil-
band 2 – Gesetzliche Schuldverhältnisse. Heidelberg, 8ª edição, 2000, p. 170, saber “se o responsável não terá observado o necessário
cuidado no tráfego, que foi anteriormente concebida apenas como uma questão de culpa, resulta, de acordo com a opinião correcta e
importante, de apurar se ele agiu de forma ilícita. Ou de forma concisa: a violação do dever de cuidado é uma característica da ilicitude”.
Também FRANZ WIEACKER. Rechtswidrigkeit Und Fahrlässigkeit Im Bürgerlichen Recht. JZ 7- 1957, p. 536, defendia a divisão
do conceito de negligência, ao incluir o exame do cumprimento do cuidado objectivamente necessário na ilicitude e a imputação do
comportamento desaprovado na culpa.
355
lesões, o qual corresponde ao chamado “cuidado externo” (circular à velocidade aconselhável
pelas condições do tráfego, assinalar o piso molhado em centros comerciais, fixar corrimãos nas
escadas para que as pessoas se possam segurar, etc.).
Embora o emprego do cuidado interno seja em regra pressuposto de cumprimento
do cuidado externo, as duas formas de cuidado revelam-se perfeitamente dissociáveis, sendo
imagináveis situações em que apesar de se ter observado elevada reflexão, se agiu, ainda assim,
de forma imprudente, de que é exemplo o atirador que, durante uma caçada, se esforça mui-
tíssimo – mas em vão – para não atingir o batedor, juntamente com a presa; embora o caçador
devesse ter omitido o tiro, não esteve contudo desatento. De todo o modo, o comportamento
do agente não foi cuidadoso, porque não evitou a realização da ofensa. Em suma, não houve
“cuidado externo”, apesar de se ter observado “cuidado interno”. A situação inversa também se
pode configurar facilmente, como sucede com os comportamentos apropriados casuais, que não
foram precedidos de “cuidado interno”; será o caso do automobilista que, apesar de distraído,
conduz à velocidade regulamentar ou que se deteve antes de uma passagem de peões sem se ter
apercebido da sua existência.
O cuidado externo exprime-se através dos deveres de conduta aplicáveis às circuns-
tâncias de cada caso e cuja violação gera a ilicitude do comportamento, servindo assim a defesa
dos bens jurídicos cristalizados nos chamados interesses de integridade8. Logo, o correspon-
dente dever de conduta deve obedecer ao estalão do cuidado máximo, vigorando ainda que o
vinculado não o possa cumprir nas condições concretas que se lhe deparam: por exemplo, a
avaria de um taquímetro ou o fato de uma placa com indicação da velocidade máxima estar
tapada por uma árvore, não isentam o condutor de respeitar a velocidade máxima.
Enquanto tarefa fundamental das regras delituais, a proteção dos referidos interesses
de conservação exige a excelência dos comportamentos adotados para os prevenir de lesões. A
“excelência” não constitui uma abstração inatingível: o automobilista que se apercebe de um
caminhão mal estacionado a encobrir um certo espaço, pode perfeitamente representar a hipó-
tese de estar tapada uma placa de trânsito e nesse caso decide parar o veículo para avaliar as
circunstâncias, concluindo que existia mesmo uma tal placa. Ninguém provavelmente procede
deste modo, mas a conduta é possível e é esse padrão de cuidado que a regra espera a final de
quem participa no tráfego, razão pela qual, não sendo cumprido, comina o comportamento com
o juízo de ilicitude, porque não cumpriu o dever objetivo de cuidado apesar de materialmente
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
o poder cumprir.
Por seu lado, o cuidado interno compreende a identificação das circunstâncias que im-
põem o dever de comportamento e a preparação das decisões conducentes ao seu cumprimento.
Servem de exemplo os procedimentos que devem anteceder uma ultrapassagem: antes de a efe-
tuar, o condutor deve verificar, de modo a evitar uma colisão, se nesse momento não existe outro
8 Aos interesses de integridade (ou de conservação) correspondem os bens jurídicos existentes (status quo) e que são protegidos pela
responsabilidade extracontratual, enquanto os interesses de movimento correspondem aos bens jurídicos a adquirir (status ad quem)
através do comércio jurídico (mormente, tráfego negocial) e são defendidos pela responsabilidade contratual.
356
veículo atrás de si que esteja também a realizar a mesma manobra; o fato de não ter visto o outro
automóvel por este se encontrar no ângulo de sombra do espelho retrovisor, ainda assim não
impedirá a imputação negligente, uma vez que, antes da ultrapassagem, deveria ter olhado pela
sua janela lateral de forma a apurar se o ângulo “morto” se encontrava realmente vazio; de igual
modo, o médico prudente presta atenção ao fato de não deixar zaragatoas no corpo do doente
que está ser operado; este dever de “prudência interna” é transformado pelo juiz em “prudência
externa” através da seguinte constatação: o médico consciente das suas responsabilidades evita
o esquecimento de zaragatoas, mandando contá-las antes e depois da operação.9
Estão, assim, fundamentalmente em causa, as capacidades físicas, intelectuais e emo-
cionais que permitem ao agente antever a possibilidade de verificação do facto ilícito e decidir-
-se pela sua evitação, razão pela qual os elementos constitutivos da culpa negligente consistem
na previsibilidade e evitabilidade do evento.
A previsibilidade não significa, contudo, que o agente tenha que tomar em considera-
ção toda e qualquer possibilidade de lesão, por remota que seja, sob pena de se comprometer ir-
remediavelmente a liberdade geral de ação, mas apenas as que, segundo as regras da experiên-
cia, se apresentem como prováveis. Os exemplos abundam: quem coloca em circulação objetos
cuja utilização imprópria poderão estar ligados a perigos – v. g., facas, machados ou artigos
pirotécnicos – não age negligentemente, se não houver razão para supor o fato que semelhante
utilização irá acontecer, a qual já será contudo natural quando se vende artigos pirotécnicos,
fósforos ou isqueiros a crianças e adolescentes: as crianças gostam de “brincar com o fogo” de
maneira descuidada, e, por isso, causam frequentemente incêndios;do mesmo modo, pode ser
descurada a possibilidade de se causar uma lesão durante uma caçada pela utilização de um
cartucho defeituoso, quando, por experiência, se sabe que existem entre 100 a 500 cartuchos
regulares.10
Em suma, no âmbito da culpa negligente, investiga-se se a pessoa comum do círculo de
tráfego a que pertence o agente, agindo nas condições concretas deste e empregando as normais
capacidades intelectuais, emocionais e físicas, poderia ter previsto a verificação do evento e
evitá-lo, mediante a adoção do comportamento apropriado. 11
O processo de imputação delitual constitui um sistema de “pesos e contrapesos” que
balanceia e equilibra a defesa de bens jurídicos relativamente antagónicos (liberdade versus
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
357
interesses de integridade).
Enquanto a definição do dever de cuidado, para efeitos de ilicitude, obedece a um cri-
tério estritamente objectivo, aferido pelos interesses de integridade e nessa medida se norteia
pela posição do lesado, a avaliação, em sede de culpado, seu incumprimento visa salvaguardar
a liberdade de ação, orientando-se agora pela posição do lesante. Quem cumpre o cuidado que,
em regra, é necessário para evitar lesões de bens jurídicos, não tem que indenizar os danos
causados; privilegia-se, assim, os processos dinâmicos à situação existente, reservando-se um
espaço de livre atuação, pois caso se tivesse que responder por qualquer causação de prejuízos,
os comportamentos humanos orientar-se-iam sobretudo pela sua prevenção, mais do que pela
criação de bens novos.
O princípio da culpa vem, assim, corrigir os desequilíbrios criados pela vigência pre-
dominante de fatores objetivos ao nível da determinação da regra cuja violação gera a ilicitude
do comportamento. Deste modo, condutas ilícitas, como o caso do automobilista que desres-
peitou a velocidade máxima por o velocímetro, apesar de realizada a inspecção devida, se ter
avariado ou por não se ter apercebido do sinal de trânsito que estava encoberto por um camião
mal estacionado, serão agora isentas de culpa, em virtude de não ter havido falta de cuidado
interno, impedindo portanto o preenchimento da negligência. Não se exige, em suma, nada de
impossível ao agente, estando, antes, em causa, determinar a medida de cuidado que, nas con-
dições do caso, uma pessoa comum pertencente ao seu círculo de tráfego poderia tomar para
impedir a ofensa dos interesses de integridade. 12
12 Como observa ERWIN DEUTSCH, Der Begriff der Fahrlässigkeit im Zivilrecht, Jura 9-1987, p. 508, a negligência está sempre
dependente das circunstâncias: se um transeunte sofre, na rua, um ataque de asfixia, então um médico que passa pelo local pode efectuar
um corte de traqueia até com o canivete para salvar o doente; em exames de raio X em série numa cidade alemão destruída com a guerra,
puderam ser aplicadas medidas de precaução mais reduzidas contra a confusão de imagens de raio X do que as geralmente habituais.
358
RESPONSABILIDADE SOCIAL DAS EMPRESAS: RECENTES ESCÂNDALOS E
PROPOSTAS DE SOLUÇÃO
359
particular, na utilização de “rótulos sociais”.
Do lado dos investidores, tem-se divulgado a ideia de Investimento Socialmente Res-
ponsável (ISR), ou seja, de incluir, na decisão de investimento, outros critérios para além da
performance financeira das empresas. Tem-se, inclusivamente, assistido ao surgimento de en-
tidades gestoras de fundos especialmente orientados para investir em empresas socialmente
responsáveis.
O crescimento deste tipo de investimento não reflete apenas uma moral e uma ética
coletivas, mas, acima de tudo, uma expetativa de resultados de longo prazo assentes na ade-
são a políticas responsáveis. É, aliás, muito interessante acompanhar o surgimento de índices
bolsistas que agrupam empresas que preenchem alguns critérios de sustentabilidade, como o
Advanced Sustainable Performance Index (ASPI Eurozone), o FTSE4Good (Financial Times
Stock Exchange for good), bem como o Dow Jones Sustainability Group Index. O investimento
socialmente responsável tem vindo a ganhar terreno, pelo que as empresas optam por entrar
nestes índices, de forma a reforçar a sua cotação no mercado bolsista.
Porém, e apesar dos múltiplos avanços que se têm sentido no mercado e no comporta-
mento das empresas e dos consumidores, houve uma série de escândalos recentes que puseram
a descoberto variadas falhas das políticas de RSE.
Pensemos no caso Volkswagen: a empresa deliberadamente encetou estratégias para
contornar as regras sobre emissões poluentes, ao mesmo tempo que se apresentava no mercado
como o produtor n.º 1 de automóveis a nível mundial e como uma empresa amiga do ambiente.
No fundo, a Volkswagen utilizava as suas campanhas de responsabilidade social da empresa
como uma mera ferramenta de marketing.
Infelizmente, esta conclusão pode ser estendida a um conjunto de grandes empresas,
que, por via de campanhas verdes e de defesa dos direitos humanos, levam os consumidores a
acreditar que estas se vão autorregular. Porém, para lá dos atos ocasionais e simbólicos, invaria-
velmente as empresas revelam que o seu único objetivo é maximizar o lucro a qualquer custo.
O caso da Volkswagen é nítido. Produzia mais 40% de gases tóxicos do que o permitido por lei,
ao mesmo tempo que o seu relatório anual documentava inúmeros projetos sociais apoiados. A
Volkswagen foi, inclusivamente, globalmente graduada como a décima primeira melhor socie-
dade do mundo para trabalhar em termos de responsabilidade social e, em 2015, o Dow Jones
Sustainability Index escolheu-a como a líder global na indústria automóvel pelo seu compro-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
misso com o meio ambiente. No ano anterior — em 2014 — o World Environment Center ti-
nha-lhe atribuído uma medalha de ouro pelo seu contributo para o desenvolvimento sustentável.
A verdade é que, hoje em dia, as ações de responsabilidade social da empresa são
praticamente obrigatórias para todas as multinacionais que queiram preservar a sua imagem
no mercado. De acordo com estudos independentes, estima-se que as empresas da Fortune 500
gastam entre 15 e 19 biliões de dólares em campanhas deste tipo.
Embora este financiamento beneficie as instituições e causas apoiadas, o grande pro-
blema é que a RSE se transformou numa bandeira que as empresas ostentam para aparecerem
360
com uma imagem limpa e transparente, ainda que ao mesmo tempo os seus standards internos
não sejam o que aparentam. Por exemplo, a BP antes do derrame no golfo do México havia en-
cetado uma campanha denominada “beyond petroleum”, na qual se apresentava como empresa
verde e ecologicamente sustentável.
Porém, se a Volkswagen foi a vilã do ano 2015, a Exxon foi a vilã de uma vida. Em
setembro de 2015, uma investigação aos documentos da empresa revelou que investigações
feitas pela própria sociedades alertavam para os perigos de alterações climáticas já em 1981. A
Exxon em vez de promover um debate alargado sobre como fazer a transição para uma econo-
mia sustentável, investiu milhões de dólares no financiamento de lobbys dedicados a denegrir os
estudos científicos sobre alterações climáticas. Aliás, a prática de financiamento de lobbys deste
tipo tornou-se tão comum que têm vindo a ser lançadas campanhas por ONGs, subordinadas
ao tema “clean words, dirty lobby”, precisamente para diminuir o gap existente entre as ações
e as palavras das empresas.
Apesar dos variados casos em que as políticas de responsabilidade social das empresas
se revelaram insuficientes ou uma mera fachada, há que deixar uma nota ironicamente positi-
va. O efeito Trump nas políticas de RSE tem sido estrondoso. Ao contrário do que seria de se
esperar, o presidente tornou convencional a discussão e adoção de políticas RSE. Por exemplo,
na sequência da ordem executiva anti-imigração, várias empresas americanas, porque ficaram
em risco de perder alguns dos seus melhores trabalhadores, ergueram-se na defesa dos direitos
humanos. Embora a sua motivação não tenha sido altruísta nem filantrópica, há muito quem
diga que podemos falar num novo capítulo da responsabilidade social da empresa. De fato, se há
uns tempos atrás fizéssemos uma pesquisa sobre quais as empresas empenhadas, v.g., na defesa
e integração dos refugiados, apenas teríamos encontrado o TripAdvidor. Hoje, pelo contrário,
assistimos a CEOs de centenas de empresas a defender os mais básicos direitos humanos e até
a Starbucks foi ao ponto de se comprometer a contratar 10.000 refugiados. Por isso, com toda a
ironia, temos de agradecer a Trump ter impulsionado uma nova era de responsabilidade social
da empresa.
Para utilizar a expressão do Presidente Obama, vivemos hoje numa “era de responsabi-
lidade”, que, porém, só será absoluta se soubermos reagir às falhas das políticas de responsabili-
dade social. Ou seja, o que devemos fazer quando as políticas anunciadas não forem cumpridas.
Na nossa opinião, a solução pode passar por uma adequada interpretação da legisla-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
ção societária. De acordo com o artigo 64 do Código das Sociedades Comerciais português, a
administração de uma sociedade que seja regida pela lei portuguesa, não deverá orientar a sua
atuação apenas pela velha máxima do shareholder profit, ou seja, pela procura de lucro para os
sócios a qualquer custo, mas deverá, antes, ter em consideração os interesses dos stakeholders
(grupos estratégicos). Claro que há que questionar se é legítimo, numa perspetiva de corporate
governance (governança corporativa), que os administradores se afastem da prossecução estrita
dos interesses dos sócios, para considerarem também os interesses de outros intervenientes.
A dificuldade é clara: os administradores não se encontram diretamente ao serviço de outros
361
sujeitos que não os sócios. No entanto, cada vez mais tem sido aceite que os administradores
estão vinculados a deveres de lealdade perante a própria sociedade, os sócios e até os credores
sociais e tem-se avançado para uma ideia de post-shareholder value. Ou seja, que os adminis-
tradores não se devem deixar conduzir por uma absoluta primazia dos interesses dos acionistas
e estão também vinculados a um multi-stakeholder director’s fiduciary duties, que é o mesmo
que dizer que os administradores estão vinculados a deveres fiduciários perante múltiplas par-
tes interessadas.
Ainda assim, resta saber o que fazer naqueles casos em que os administradores não
respeitam estas diretivas de atuação ou em que as empresas transmitem ao mercado a informa-
ção que adotam políticas RSE estando, afinal, a poluir o ambiente ou a violar direito humanos.
Julgamos que se as empresas estiverem admitidas à negociação no mercado regula-
mentado poderá existir responsabilidade civil por divulgação de informações falsas ou enga-
nadoras. A ideia que temos vindo a defender, ainda que noutra sede, é que a responsabilidade
civil no mercado de capitais, apesar de aparentemente delitual, se deve pautar pelo regime
obrigacional. Quer estejamos a falar de investidores que compraram instrumentos financeiros
à própria empresa que divulgou informação enganadora, caso em que não pode haver dúvidas
que o regime aplicável é o obrigacional, quer daqueles casos em que o investidor comprou ins-
trumentos financeiros no mercado secundário ou a um intermediário financeiro, a responsabi-
lidade será ainda obrigacional. Não tenho dúvidas em considerar que não estamos perante um
comum dever geral de respeito da sociedade que divulga a informação perante os investidores
no mercado. Estamos, sim, perante deveres já específicos, em que se identifica uma “ligação
especial” (a ideia alemã de Sonderverbindung2), embora com as especificidades próprias do
anonimato que caracteriza o mercado de capitais. Fora dos casos em que existe um contrato
ou vínculo equivalente (em que não surge qualquer dúvida), o critério para impor deveres de
cuidado e proteção reforçados em relação ao dever geral de respeito não é a existência de uma
relação de confiança ou de um contacto direto entre os sujeitos. Decisivo será o poder de in-
fluência sobre a esfera jurídica alheia resultante da posição funcional do lesante. O lesante, em
vez de surgir como um qualquer terceiro, encontra-se numa especial posição para causar danos.
A sua responsabilidade não é a típica Jedermannhaftung (responsabilidade de todos). Está já a
caminho da responsabilidade obrigacional, surgindo como uma terceira via, intermédia entre as
duas modalidades de responsabilidade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
362
os seus consumidores em erro. Assim, nos termos gerais da responsabilidade civil obrigacional,
tudo dependerá das expetativas dos consumidores. Aqueles que contratem com empresas co-
nhecidas por reiteradas violações de direitos humanos, não se poderão espantar — e reclamar
uma indenização — se descobrirem que a empresa utiliza trabalho infantil no fabrico dos seus
produtos. Pelo contrário, se estiver em causa uma empresa como a Ben & Jerry’s, conhecida
pelo seu empenho na defesa do comércio justo, do ambiente ou da paz, seria uma frustração
absoluta das expetativas descobrir que, afinal, maltratava vacas para produzir gelados.
Em suma, a adoção de políticas de responsabilidade social das empresas é sempre vo-
luntária. Tem de o ser, sob pena de excessiva limitação da sua liberdade econômica. No entanto,
há um conjunto de mecanismos preventivos e punitivos que podem ser desenvolvidos para ga-
rantir que se gera um ambiente favorável à adoção destas políticas.
Os primeiros passos já têm sido dados e passam por mecanismos societários: a con-
sagração da relevância dos interesses dos stakeholders na atuação dos administradores ou a
obrigação de publicar balanços sociais em que se dê nota das políticas sociais das empresas.
Do lado repressivo, é essencial construir uma teoria de responsabilidade civil que im-
peça que as empresas utilizem a responsabilidade social como mera fachada para efeitos de
marketing. O desenvolvimento de um sistema vigoroso de responsabilidade civil será o maior
incentivo a que as empresas sejam coerente e finalmente deixemos de ter no mercado empresas
que se apresentam como sustentáveis, ao mesmo tempo que poluem de forma irreversível o
ambiente, como aconteceu no caso da BP ou da Volkswagen.
363
O DESAFIO DO ENSINO DA SOCIOLOGIA JURÍDICA NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
Ser professora nos ocupa desde o final dos anos 90, no nosso caso, por tradição familiar
e também por inconformismo com a distância entre o direito dos livros e o direito dos tribunais.
A advocacia nos intricados meandros de textos mutantes e estruturas engessadas in-
comodou, apesar de acreditar e prestigiar qualquer das inúmeras faces da profissão jurídica e
recomendar a atividade advocatícia sempre aos alunos iniciantes no direito, por crer que não
existe escola melhor do que a prática do fórum, do cliente no seu escritório. É, sobretudo, um
exercício de maturidade de vida a advocacia.
Lecionar sociologia jurídica é de extrema importância. A missão é despertar nos alu-
nos o gosto pela crítica social e do direito, fundamental para o exercício de qualquer profissão
jurídica. Em conjunto com as turmas, faz-se um esforço para influenciar os alunos pelo gosto
da pesquisa acadêmica, pois acredita-se que seja essa a ferramenta indispensável da formação
e atuação do jurista (GUIMARÃES, 2010).
Não raro, ao longo do semestre, atuam monitores alunos de graduação e estagiários
de docência assistida, alunos do mestrado em direito. São prontamente incluídos na rotina da
docência, oportunizando-se aos mesmos a prática de sala de aula, com a idealização de que se
sintam vocacionados para a mais essencial das profissões. Procura-se repassar para eles, com
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (2010). É Advogada e Professora da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), no Departamento de Direito Processual e Propedêutica (DEPRO).
364
Os alunos têm chegado à universidade cada vez mais jovens. Nos cursos de direito em
instituições públicas, vimos ao longo dos últimos anos os perfis se modificarem, passando de
uma origem mais aristocrática e elitista, o que era comum nos cursos de direito em instituições
públicas, fruto das características do nosso sistema de ensino, para um perfil mais plural, graças
às cotas para ingresso, bem diversificadas.
Nas salas de aula que conduzimos, em geral são oferecidas, primeiramente, ao aluno
ferramentas de análise em três eixos: acesso à justiça, pluralismo jurídico, eficácia do direito.
Temas diversos são trabalhados, visando a desenvolver competências para a pesquisa e a prática
oral, com a produção de seminários temáticos, com temas da atualidade. Textos acadêmicos,
músicas, séries de TV, o jornal de ontem, os blogs locais, tudo é alvo de discussão jurídica, bus-
cando compreender a função do direito para o controle social e suas características aplicadas.
Sim, os alunos precisam saber que o direito não está só nos livros... a codificação e
sistematização teórica, que será fornecida ao longo de cerca de 5 anos de formação é essencial
para o bom perfil profissional. Do mesmo modo, a capacidade de enxergar o direito e nas suas
relações com a economia, a política, a psicologia, a vida das pessoas, enfim.2
Muito se tem dito acerca dos currículos e da formação jurídica ao longo do tempo.3
Depois de 1988, temos mudanças de toda ordem a nos influenciar e demandar cada vez mais
uma visão crítica do sistema jurídico.
No papel de avaliadora institucional de cursos de direito, enxergamos ao longo dos
anos bastante diversidade de norte a sul do país. Preconceitos de avaliadores e avaliados (sim!)
em relação à formação em rede pública ou privada de ensino superior são frequentes. Essa vi-
vência mostrou que quanto mais interdisciplinaridade os cursos de direito vivenciam, muitas
vezes mais por questões de gestão e sobrevivência, dadas as peculiaridades regionais e locais,
mais as formações jurídicas se beneficiam.
Em tempos de crise ética e moral no país, cremos que nunca o direito foi tão comenta-
do e debatido, gerando naturais dúvidas e incompreensões, por tamanha massa de brasileiros.
Meandros da teoria do processo vieram à público, curiosidade sobre a composição dos tribunais
e órgãos judiciários. Direito penal na rua... torcidas organizadas diante de horas de juridiquês
na televisão, tal qual ocorre nos campeonatos de futebol.
Ao discorrer sobre o histórico da formação do jurista no Brasil e relacionar esse per-
curso aos aspectos do déficit de adequação social do ensino jurídico na atualidade e sua relação
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
Este conjunto de ineficiências democráticas cria um vácuo para que os próprios países
desenvolvidos repensem suas instituições, repensem o estado de direito, para torná-los
2 Cf. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova cultura do Direito. 3 ed. São Paulo: Editora alfa
ômega, 2001.
3 Cf. Para um aprofundamento do tema das formação do bacharel em direito. Botelho, Eliane Junqueira. Faculdades de Direito ou Fábri-
cas de Ilusões?. Rio de Janeiro: LetraCapital/IDES, 1999. JUNQUEIRA, E. B. . Diretrizes curriculares para o Curso de Direito. Revista
da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior. Brasília, v. 16, n.12, p. 49-74, 1998.
365
mais favoráveis à liberdade e à igualdade. Para que afastem seus fantasmas, antes que
eles se tornem realidade e os engulam. Este vácuo de eficiência democrática é uma
oportunidade para que o ensino jurídico de qualquer país, inclusive e sobretudo do
Brasil, seja mais autonomamente ambicioso.
Tal movimento, iniciado em 2017, surge num contexto crise das instituições brasilei-
ras, inclusive as jurídicas, e clama pela ação dos juristas contra a crise de pensamento, “com-
prometedora da democracia e do desenvolvimento econômico do país”. No documento base,
argumenta-se no sentido de que5:
Iniciativas como essa revelam que o cenário do ensino jurídico do país ainda há de se
movimentar bastante no sentido da crítica das suas instituições e do despertar de sentimentos
questionadores da sua prática nos alunos de direito.
Diversidade de pontos de vista, interdisciplinaridade, criatividade na didática para a
366
orientação dos conteúdos, pois o jovem se comunica digitalmente, a fim de evitar o distancia-
mento dos mestres, dada à questão geracional envolvida, são a tônica do ensino da sociologia
jurídica na contemporaneidade.
REFERÊNCIAS
CASTRO, Marcus Faro de. Faculty of Law, Universidade de Brasília at the the Global
Legal Education Forum. Day 2. Panel: ‘Globalization, Crisis and Legal Education’. Held
at the Harvard Law School – Cambridge, MA, on March 23-25, 2012. Recurso eletrônico.
Disponível em: <https://economialegal.wordpress.com/2012/03/31/legal-ideas-institutions-and-
legal-education-challenges-posed-by-globalization/>. Acesso em: 02 jul. 2017.
367
HÁ POSSIBILIDADE DE CANDIDATURAS INDEPENDENTES NO BRASIL? UMA
ANÁLISE À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
limitar com autorização para realização de registro de candidatura independente nas Eleições
Gerais de 2018, mesmo na hipótese de não preenchimento da condição de filiação partidária.
A presente decisão, muito embora proferida em caráter liminar, em primeira instância,
1 Professor Adjunto da UFRN (Departamento de Direito Privado). Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (UC-PT) e pela
Universidade do País Basco (UPV/EHU - ES). Mestre em Direito pela UFRN e pela UPV/EHU – ES. Membro do Conselho Nacional da
Academia Brasileira de Direito Internacional.
2 BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral do Estado de Goiás. Ação Ordinária, 25-54.2017.6.09.0132. Mauro Junqueira e União Federal. Re-
lator: Hamilton Gomes Carneiro. 22/09/2017. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/dl/tre-go-candidatura-avulsa.pdf >. Acesso
em: 26 set. 2017.
3 Ratificada, no Brasil, pelo Decreto nº 6.949/2009. Cabe mencionar que dito tratado obedeceu o rito do § 3º do art. 5º da CF/88 e, portan-
to, goza de hierarquia equivalente as emendas constitucionais.
368
absolutamente sujeita a diversos recursos e contrária, em alguns de seus fundamentos, ao en-
tendimento do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), merece ser analisada à luz da relação
entre Direito Internacional e Direito Constitucional.
Nesse contexto, o presente escrito irá enfrentar, ainda que de modo breve, cada um
dos argumentos elencados. Para tanto, algumas constatações teóricas serão trazidas, para, logo
após, debater sobre o mérito da decisão, seja do ponto de vista da competência do juiz para afas-
tar a aplicação de uma norma constitucional originária diante de sua eventual incompatibilidade
com os tratados internacionais de direitos humanos, bem como sobre a própria (in)convenciona-
lidade da exigência de filiação partidária como condição de elegibilidade.
Inicialmente, não há qualquer divergência relevante no que concerne a natureza
de cláusula de abertura/atipicidade conferida ao § 2º do art. 5º da CF/88, conforme já afirmei
em outra oportunidade (MOREIRA, 2016, p. 42 – 45).
Com relação à aplicabilidade imediata das normas protetivas de direitos humanos pre-
vistas em tratados internacionais, ao que parece, não há qualquer polêmica. Há claros funda-
mentos no Direito Internacional e no próprio Direito brasileiro para embasar tal entendimento.
No âmbito do Direito Internacional, a própria Corte Interamericana de Direitos Hu-
manos (Corte IDH), em sua Opinião Consultiva 07-96, considerou que a CADH é autoaplicável
(CARVALHO RAMOS, 2013, p. 215). Por outro lado, a CF/88, no § 1º do art. 5º, reza que “as
normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Portanto,
resta inquestionável que as normas internacionais citadas na fundamentação da decisão em
comento são autoaplicáveis, pois tais tratados foram devidamente incorporados4.
Vale ressaltar que o magistrado que prolatou a decisão em tela equivocou-se ao afirmar
“que este tipo de tratado, por ter aplicação imediata quando o Brasil se torna signatário, não há
necessidade de aprovação em dois turnos do Congresso Nacional”. Dois erros: primeiro, os tra-
tados somente vigoram no Brasil após a sua ratificação e não com a simples assinatura; segun-
do, todos os tratados internacionais de direitos humanos devem passar pelo crivo do Congresso
Nacional. Sendo que a aprovação em dois turnos, segundo o entendimento do STF, apenas iria
conferir a força equivalente das emendas constitucionais.
No que tange à hierarquia dos tratados internacionais de direitos humanos no ordena-
mento jurídico brasileiro, o STF, conforme tratei outrora (MOREIRA, 2015), firmou posiciona-
mento, ao nosso sentir equivocado, que ditos instrumentos internacionais possuem hierarquia
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
supralegal. Dessa forma, invalidariam as leis ordinárias que dispusessem em sentido contrário.
Com relação aos tratados incorporados pelo rito do §3º do art. 5º, como é o caso da CDPD, são,
diante da previsão constitucional, equivalentes às emendas. Nesse ponto, o entendimento do
4 “...no que concerne à aplicação, não deve prosperar a tese de que os tratados de direitos humanos só terão aplicabilidade imediata após
a aprovação pelo quórum estabelecido no § 3º do art. 5º da Constituição de 1988, pois quando o Constituinte originário preceituou que
‘as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata’, incluiu as normas expressas no texto constitucional, bem como
as normas implícitas e também as definidoras desses direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais, sem estipular quais de-
veriam ser essas normas, se provenientes do direito interno ou do direito internacional, acentuando apenas que todas elas têm aplicação
imediata, independente de serem ou não aprovadas por maioria simples ou qualificada. (GUERRA, 2014, p. 272 – 273).
369
juiz eleitoral não se encontra de acordo com o pensamento do STF.
Com efeito, talvez uma das questões mais delicadas seja o entendimento de que
há conflito entre a norma constitucional que estabelece a filiação partidária como condição de
elegibilidade e o disposto no art. 29 da CDPD e no art. 23 da CADH. Nesse ponto, o cerne da
questão consiste em saber se o texto dos citados dispositivos, ao garantirem a igualdade de con-
dições na disputa pelos cargos políticos e estabelecerem os limites ao exercício de tal direito,
vedam o acréscimos de outros requisitos pelo direito estatal.
Sem embargo, vê-se que o constituinte originário de 88 optou por positivar a filiação
partidária como condição de elegibilidade, nos termos do inc. V, do §3º do art. 5º. Ocorre que a
CADH, conforme o item 2 do art. 23, preceituou que “a lei pode regular o exercício dos direitos e
oportunidades a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivos de idade, nacionalida-
de, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente,
em processo penal”. Observa-se que não há entre as possibilidades de limitação do exercício dos
direitos políticos a “filiação partidária”. Desse modo, levando em consideração o princípio do
“efeito útil”, penso que há incompatibilidade entre a exigência de filiação partidária e os limites
autorizados pela CADH.
Ainda que não se adote o posicionamento acima, é preciso fazer uma analogia ao caso da
prisão civil por dívida do depositário infiel, pois, mesmo ainda estando prevista na Constituição
brasileira, segundo decidiu o STF, não há mais legislação infraconstitucional que a regulamente, em
virtude da força supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. Aplicando esse mesmo
entendimento, a exigência de filiação partidária, uma vez que limita o exercício de um direito políti-
co, precisa ser regulamentada. Porém, não mais subsiste tal regulamentação legal, se considerarmos
que o rol de limites aos direitos políticos previstos no art. 23, 2, da CADH é taxativo.
Mesmo sem fazer menção nítida, é visível que o magistrado exercitou o controle
de convencionalidade, uma vez que afastou a aplicação da norma constitucional tomando
como parâmetro os tratados internacionais de direitos humanos5. Nesse ponto, eis que surge
uma questão que também é de largo relevo. Poderia um juiz de primeira instância exercer o
controle de convencionalidade sobre normas constitucionais? Mesmo diante da omissão da
legislação brasileira com relação ao controle de convencionalidade e apesar do célebre en-
tendimento que “não há normas constitucionais inconstitucionais”, defendo que é totalmente
possível a declaração de inconvencionalidade das normas constitucionais, ou seja, é possível
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
5 “É ainda importante esclarecer que, segundo a ótica do sistema internacional de direitos humanos, o controle de convencionalidade
pode ser exercido inclusive em face do texto constitucional, a fim de compatibilizá-lo com os instrumentos internacionais de direitos
humanos”. (MAZZUOLI, 2016, p. 184).
6 Para uma análise mais detida sobre o exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH, vide: (MOREIRA, 2017, p. 251 – 271).
7 A Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça da Nicarágua, ainda que de forma seletiva, declarou a inconvencionalidade das
normas constitucionais que vedavam a reeleição, conforme leciona Jorge Ernesto Roa Roa (2017, p. 149 – 150).
370
incluindo a própria Constituição, com o bloco de convencionalidade. Portanto, reconheço que
o outrora mencionado juiz eleitoral atuou dentro de sua competência, no que concerne a apli-
cação das normas internacionais.
Com relação ao tema das candidaturas independentes, a Corte IDH já se manifestou,
de certo modo, em duas oportunidades. No Caso Yatama contra Nicarágua8, a Corte IDH afir-
mou que a Nicarágua violou os direitos políticos, previstos no art. 23 da CADH, em prejuízo
dos candidatos propostos por YATAMA para participar das eleições municipais. Em suma,
houve o reconhecimento de que não existe disposição na CADH que permite sustentar que os
cidadãos só podem exercer o direito a candidatar-se a cargos eletivos através de um partido
político. Portanto, tal limitação constitui uma restrição indevida ao exercício do direito político,
principalmente, se levarmos em consideração o fato que a organização em partido político não é
comum para determinados grupos sociais minoritários. Entretanto, no Caso Castañeda Gutman
contra México9, a Corte IDH reconheceu a ampla discricionariedade dos Estados para a confi-
guração de um sistema eleitoral, porém, ao mesmo tempo, indicou que este caso não era com-
parável ao Yatama. De certa forma, considerou que a obrigação do Estado a configurar outros
meios para o acesso de minorias aos processos eleitorais, distintos dos partidos políticos, não
é aplicável ao processo eleitoral quando as minorias não estão em risco de verem seus direitos
políticos tolhidos pela exigência de filiação partidária (TORRES ZÚÑIGA, 2017, p. 113 – 114).
Ao que parece, não é esse o caso do autor da ação, pois não houve qualquer menção ao fato do
mesmo integrar algum grupo social minoritário e/ou politicamente vulnerável.
É incontestável que a CADH não impõe o dever dos Estados optarem por um sistema
majoritário ou proporcional. O que acarreta numa margem de apreciação nacional indiscutível,
nesse ponto. Mas isso não significa que o Estado possa definir de modo absolutamente discri-
cionário as regras de exclusão de candidatos ou os requisitos para o efetivo exercício do direito
de ser eleito (ROA ROA, 2017, p. 154).
A querela também vem sendo discutida no âmbito da Jurisdição Constitucional brasi-
leira. Em sede de Recurso Extraordinário com Agravo (ARE)10, cujo Relator é o Min. Barroso,
o STF terá que decidir acerca da constitucionalidade e/ou convencionalidade da exigência de
filiação partidária como condição de elegibilidade, bem como sobre o próprio acerto da decisão
do Tribunal Superior Eleitoral, que negou o registro da candidatura independente.
Com relação ao julgamento do mencionado ARE, vale ressaltar que o Ministério Pú-
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
blico Federal emitiu parecer favorável as candidaturas independentes, cujos principais pontos
no que concerne ao mérito da questão são: a) os tratados internacionais de direitos humanos,
uma vez incorporados, são dotados de hierarquia constitucional, por força do art. 5º, § 2º da
8 Corte IDH. Caso Yatama Vs. Nicaragua. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de junio de 2005.
Serie C No. 127.
9 Corte IDH. Caso Castañeda Gutman Vs. México. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 6 de agosto
de 2008. Serie C No. 184.
10 STF. 1.054.490 (1246). Pleno. Relator Min. Roberto Barroso. 05/10/2017. DJU 13/10/17.
371
CF/88; b) o art. 23, inc. 1, b, e o inc. 2, da CADH proíbe a restrição da capacidade eleitoral pas-
siva por razões diversas das ali estabelecidas, entre as quais não se inclui a filiação partidária,
portanto, o art. 14, § 3º, da CF/88 foi por ele privado de eficácia; c) não há incompatibilidade
entre a mencionada norma internacional e as cláusulas pétreas11.
Com efeito, dando andamento ao julgamento, o STF, por unanimidade, resolveu atri-
buir repercussão geral à questão constitucional em tela, em 05 de outubro de 201712.Certa-
mente, em breve, ter-se-á mais uma oportunidade em que o STF poderá manter ou rever o seu
posicionamento acerca da hierarquia das normas protetivas de direitos humanos, bem como
sobre a própria relação entre o Direito Internacional e o Estatal. Muito embora, insisto, deva-se
abandonar a questão hierárquica e buscar harmonizar o sistema jurídico através da visão de um
constitucionalismo multinível13.
Sem embargo, a discussão não se limita ao STF, pois outros tribunais já se deparam
com ações cujo objeto é a autorização para candidaturas independentes da filiação partidária.
Talvez um dos exemplos mais interessantes seja a Ação Civil Pública (ACP) movida pelo Mi-
nistério Público Eleitoral de Goiás (MPE-GO), que tramita na 133ª Zona Eleitoral, Comarca de
Goiânia14.
Protocolada em 20 de setembro de 2017, a referida ACP fundamenta sua pretensão, em
síntese, nos seguintes pontos: a CDPD, tratado internacional equivalente à emenda constitucio-
nal, revogou o art. 14, § 3º, inc. V da CF/88, bem como toda a legislação ordinária em sentido
contrário, no que concerne as normas limitadoras do direito de participação política; a CADH,
ao não estabelecer a filiação partidária como limite ao direito de participação política e de ocu-
par cargos políticos, retirou a eficácia de toda a legislação infraconstitucional, pois não há lei
ordinária que regulamente a exigência de filiação a partido político.
Diante do exposto, sou favorável às candidaturas independentes, desde que para cargos
majoritários, uma vez que tal não se harmoniza com o sistema proporcional. No que concerne
ao sistema eleitoral proporcional, entendo que os integrantes de grupos sociais minoritários,
desde que politicamente vulneráveis e que demonstrem a impossibilidade de formarem um
partido político ou de seus membros filiarem-se a uma agremiação política já existente, também
seria dispensada a filiação partidária. Nesse caso, o grupo poderia ser dotado de uma persona-
lidade jurídica anômala, somente para fins de participação no processo eleitoral.
Com efeito, a solução acima apontada deriva de uma interpretação conforme o direito
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
11 BRASIL. Ministério Público Federal. Recurso extraordinário com agravo. Eleitoral. Candidaturas avulsas garantidas em tratados
internacionais contra a letra expressa do art. 14, § 3º, v, da CR. Parecer, n. 22790, 1/10/2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.
br/dl/parecer-mp-avulsa.pdf>. Acesso em: 09/10/2017.
12 Acompanhamento Processual. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?inciden-
te=5208032>. Acesso em: 09/10/2013.
13 Para um estudo aprofundado do tema, vide: ACOSTA ALVARADO, Paola Andrea. Diálogo Judicial y Constitucionalismo Multini-
vel. El caso interamericano. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2015.
14 Disponível em: <http://www.mpgo.mp.br/portal/arquivos/2017/09/26/17_40_24_26_A%C3%A7%C3%A3o_eleitoral_Uni%C3%A3o_
regulamenta%C3%A7%C3%A3o_candidaturas_avulsas.pdf>. Acesso em: 27 set. 2017.
372
das fontes, bem como de um diálogo com os entendimentos da Corte IDH.
Por fim, se me perguntarem se eu acredito que o STF irá reconhecer a inconvenciona-
lidade da exigência de filiação partidária, responderei que não, pois o nosso mais alto tribunal
não é nenhum exemplo de boa aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Além
disso, do ponto de vista político, o qual procurei “fugir” ao longo de todo o texto, nosso Con-
gresso não tomará qualquer medida legislativa que possa dificultar ou gerar qualquer incerteza
na reeleição dos atuais ocupantes de mandato eletivo.
REFERÊNCIAS
CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem
Internacional. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
ROA ROA, Jorge Ernesto. Las Antinomias entre las Constituciones y la Convención
Americana sobre Derechos Humanos: el gran dilema del juez constitucional y
convencional interamericano. In.: SAIZ ARNAIZ, Alejandro (Dir.); ROA ROA,
Jorge Ernesto; SOLANES MULLOR, Joan (Coords.). Diálogos Judiciales en el Sistema
Interamericano de Derechos Humanos. Valencia, TirantloBranch, 2017, p. 137 – 162.
373
TORRES ZÚÑIGA, Natalia. Control de Normas Constitucionales por la Corte
Interamericana de Derechos Humanos: subsidiariedade, deferencia e impacto en
la teoría del cambio constitucional. In.: SAIZ ARNAIZ, Alejandro (Dir.); ROA ROA,
Jorge Ernesto; SOLANES MULLOR, Joan (Coords.). Diálogos Judiciales en el Sistema
Interamericano de Derechos Humanos. Valencia: TirantloBranch, 2017, p. 89 – 126.
374
APONTAMENTOS SOBRE A APURAÇÃO, SANÇÃO E REPARAÇÃO À TORTURA
NO DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
1 INTRODUÇÃO
A proibição da tortura é uma norma imperativa de direito internacional que gera obriga-
ções ao Estado, inclusive quando inexistir uma lei que a proíba. É parte de uma norma ius cogens
baseada na ideia de que não há qualquer circunstância que justifique o uso de tortura2, constituin-
do-se em um direito humano de núcleo duro no qual o impedimento do uso de tortura é absoluto.
A conceituação trazida pela Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, a seguir denominada apenas
Convenção, designa como tortura:
qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos
intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações
ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja
suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por
qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou
sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de
funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência[...]3.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
1 Professora da FGV Direito SP. Doutora em Direitos Humanos (USP) e mestre em Ciências Sociais (PUC/SP). Parte desse trabalho foi
desenvolvido por solicitação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – CNPCT, em 2015.
2 A noção de ius cogens é prevista no artigo 53 da Convenção de Viena de 23 de maio de 1969 e a tortura foi reconhecida como parte
destas normas pelo Comitê de Direitos Humanos, nas Observações Gerais nº 24.8: “Reservationsthatoffendperemptorynormswouldno-
tbecompatiblewiththeobjectandpurposeoftheCovenant. Although treaties that are mere exchanges of obligations between States allow
them to reserve inter se application of rules of general international law, it is otherwise in human rights treaties, which are for the benefit
of persons within their jurisdiction. Accordingly, provisions in the Covenant that represent customary international law (and a fortiori
when they have the character of peremptory norms) may not be the subject of reservations. Accordingly, a State may not reserve the right
to engage in slavery, to torture, to subject persons to cruel, inhuman or degrading treatment or punishment, to arbitrarily deprive persons
of their lives, to arbitrarily arrest and detain persons, to deny freedom of thought, conscience and religion, to presume a person guilty
unless he proves his innocence, to execute pregnant women or children, to permit the advocacy of national, racial or religious hatred, to
deny to persons of marriageable age the right to marry, or to deny to minorities the right to enjoy their own culture, profess their own
religion, or use their own language. And while reservations to particular clauses of article 14 may be acceptable, a general reservation
to the right to a fair trial would not be”. CPR/C/21/Rev.1/Add.6.
3 Artigo 1.1 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas,
promulgada pelo Decreto nº 40 de 15 de fevereiro de 1991.
375
Estão compreendidos nesta definição quatro elementos constitutivos essenciais da tor-
tura, como expôs o Relator Especial das Nações Unidas para Tortura e Outros Tratamentos ou
Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, no Estudo sobre o fenômeno da
tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no mundo, incluindo
condições de detenção4:
i. Infligir dores ou sofrimentos agudos5, físicos ou mentais;
ii. Fazê-lo intencionalmente;
iii. Ter um propósito concreto, quer seja para discriminar, intimidar, coagir ou para
fins de castigo, contenção, para obter informações econfissões;
iv. Quando há participação ou aquiescência de um funcionário do Estado6.
Estes elementos são fundamentais para uma compreensão dos atos de tortura e tam-
bém para sua diferenciação frente às demais formas de maus tratos ou tratamentos degradantes
ou desumanos.
Para o direito internacional dos direitos humanos, a consequência mais clara da impo-
sição de obrigações positivas pela Convenção é a compreensão de que omissões (e não apenas
ações) podem caracterizar um ato de tortura e de que a intencionalidade fica caracterizada a partir
da prática da tortura com um propósito específico, seja de castigo, discriminação ou intimidação7.
A prática de tortura ainda é mais comum em situações nas quais há uma clara assi-
metria de poder, como frente às pessoas privadas de liberdade8. Em acréscimo, os Princípios
de Yogyakarta (Princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos
em relação à orientação sexual e identidade de gênero) demandam que “toda pessoa privada da
liberdade deve ser tratada com humanidade e com respeito pela dignidade inerente à pessoa hu-
mana”, prevendo regras e interpretações específicas para as pessoas privadas de liberdade que,
4 Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, in human or degrading treatment or punishment, Manfred Nowak, Adden-
dum , Study on the phenomena of torture, cruel, in human or degrading treatment or punishment in the world, including an assessment
of conditions of detention. A/HRC/13/39/Add.5
5 O Relator Especial das Nações Unidas para Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações
Unidas, no Estudo sobre o fenômeno da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes no mundo, incluindo
condições de detenção já referido no texto deste parecer alerta para os problemas advindos desta concepção equivocada de tortura e a
excessiva ênfase na busca de lesões físicas. “74. [...] The definition of torture often relates to the infliction of injuries. Time and again,
my counterparts were surprised when I emphasized that the definition of torture does not require any bodily injuries, let alone any las-
ting impairment. The particular evil of torture is the deliberate infliction of severe pain or suffering on a powerless person, and not the
infliction of injuries. Injuries can be an aggravating factor, but it is impermissible to reduce torture to such a concept. Many methods of
torture, such as waterboarding or asphyxiation with plastic bags do not lead to any injuries. 75. Furthermore, the insistence on injuries
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
is particularly worrying, since more and more of the torture methods applied are designed not to leave any traces. Survivors of such
practices find it much more difficult to obtain recognition of their suffering and to initiate a criminal investigation. Modern forensic
examinations which could corroborate the victims’ reports and secure evidence are almost never available. As such, torture methods
that leave no traces do constitute an additional challenge to hold perpetrators accountable. 76. A further misconception relates to the
involvement of public officials. Despite the unambiguous wording of the Convention, I encountered a lack of awareness for the scope of
the accountability of State agents on numerous occasions. Public officials or any other persons acting in their official capacities are under
the obligation to intervene whenever severe pain or suffering is inflicted in the circumstances described in article 1 [...]”. A/HRC/13/39/
Add.5, par 74 a 76.
6 A/HRC/13/39/Add.5, par. 30.
7 A/HRC/13/39/Add.5, par. 34: “34. The element of intent contained in the definition of torture in the Convention requires that severe
pain or suffering be intentionally inflicted on the victim in order to achieve a certain purpose. From this follows that torture can never be
inflicted by negligence. [...]It is also important to underline that the intentional infliction of severe pain or suffering has to be committed
for a specific purpose referred to in the Convention, such as the extraction of a confession or information. For example, severe pain,
inflicted during a medical intervention, with the purpose of treating a patient, does not satisfy the element of intent”.
8 Observações Gerais adotadas pelo Comitê Contra a Tortura. Observação Geral nº 2 (2007), par. 3, CAT/C/GC/2.
376
já vulneráveis, ficam ainda mais expostas em razão de discriminação por orientação sexual:
Tendo em vista que a convenção não exclui conceituações mais amplas produzidas
pelas legislações nacionais, é importante mencionar que a Lei 9.455/97 incorpora as principais
noções da Convenção e deixa explícita a responsabilidade de investigação e apuração da prática
de tortura, criando uma pena especifica para “aquele que se omite em face dessas condutas,
quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las”.
377
a tortura previsto nas Observações Gerais feitas pelo Comitê contra a Tortura13.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua jurisprudência e de forma con-
sistente, também se vale destas três fases para determinar as obrigações dos Estados diante de
um caso de tortura: a realização de uma investigação que respeite os direitos humanos, que
permita a participação das vítimas e que seja célere; a promoção célere de julgamento dos acu-
sados e, por fim, a efetiva responsabilização e sanção dos envolvidos na prática de tortura. Sob
esta perspectiva, os parâmetros de atuação impostos às instituições do sistema de justiça são
bastante exigentes e demandam nada menos que a intolerância com a prática de tortura.
O dever de investigar, pelos parâmetros produzidos pela Corte Interamericana de Di-
reitos Humanos,
é uma obrigação de meios e não de resultado, que deve ser assumida pelo Estado
como um dever jurídico próprio e não como uma simples formalidade, condenada
antecipadamente a ser infrutífera, ou como uma mera gestão de interesses particulares,
que dependa da iniciativa processual das vítimas, de seus familiares ou do oferecimento
privado de meios probatórios14.
13 CAT/C/GC/2, par. 18.”18.The Committee has made clear that where State authorities or others acting in official capacity or under co-
lour of law, know or have reasonable grounds to believe that acts of torture or ill-treatment are being committed by non-State officials
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
or private actors and they fail to exercise due diligence to prevent, investigate, prosecute and punish such non-State officials or private
actors consistently with the Convention, the State bears responsibility and its officials should be considered as authors, complicit or
otherwise responsible under the Convention for consenting to or acquiescing in such impermissible acts. Since the failure of the State to
exercise due diligence to intervene to stop, sanction and provide remedies to victims of torture facilitates and enables non-State actors to
commit acts impermissible under the Convention with impunity, the State’s indifference or inaction provides a form of encouragement
and/or de facto permission. The Committee has applied this principle to States parties’ failure to prevent and protect victims from gen-
der-based violence, such as rape, domestic violence, female genital mutilation, and trafficking”.
14 Tradução livre. Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez. Fondo, supra nota 25, párrs. 166 y 167; Caso
Fernández Ortega y otros, supra nota 53, párr. 191, y Caso Rosendo Cantú y otra, supra nota 45, párr. 175.
15 Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso del Masacre de Pueblo Bello, supra nota 139, párr. 143; Caso Rosendo Cantú y otra,
supra nota 45, párr. 175, y Caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña, supra nota 24, párr. 65.
16 Conforme explica Novak, são duas as razões principais para a rapidez na investigação: a primeira é assegurar que a vítima não mais
esteja sob risco de sofrer nova tortura e a segunda reside no fato de que lesões desaparecem rapidamente, prejudicando a construção de
evidências para o caso.
A/HRC/13/39/Add.5, par. 137
378
Esta obrigação deriva do fato de que as vítimas raramente estão em condições de de-
nunciar práticas de tortura sofridas, sobretudo em ambientes de privação de liberdade, nas quais
estão mais sujeitas a riscos e represálias. É por esta razão que o artigo 12 impõe esta obrigação
e responsabilidade às autoridades estatais17, sobre a qualnão possuem qualquer discricionarie-
dade18, ou seja, não podem escolher não agir. Trata-se de um dever, de uma normaimperativa.
Ao analisar estas exigências percebe-se que bastam motivos razoáveis, indícios ou a
palavra da vítima para que sejam iniciados procedimentos de investigação pela prática de tortu-
ra, mesmo que a tortura. Em qualquer caso em que houver indícios de sua ocorrência, o Estado
deverá iniciar uma investigação19, que conte com a presença de um advogado em todas as fases
do processo20, evitando represálias, quer como elemento garantidor da qualidade da prova ao
criar um ambiente livre e seguro para o depoimento. Afinal, não é “aconselhável que se confie
as investigações apenas a estes profissionais que têm estritos vínculos com as pessoas suspeitas
de terem praticado tortura”21.
O quesito imparcialidade22, assim, demanda que outras instituições também tenham o
poder de investigar, julgar e responsabilizar atos de tortura23. Sob esta perspectiva, a presença
de procedimentos alternativos à investigação feita pela polícia pode ser benéfica, mas não afasta
a responsabilidade primordial daqueles que tiveram o primeiro contato com os indícios de tor-
tura. É importante que se reconheça que estas vias alternativas possuem severas limitações e
podem gerar, em última instância, a perpetuação da impunidade. Por estes motivos, a adoção de
17 A/HRC/13/39/Add.5, par. 135. “135 [...] As outlined earlier, victims are in most cases not in the position to file a complaint without
putting themselves into further danger and risk suffering reprisals. In order to counterbalance the vulnerability of the victim and the
de facto inaccessibility of complaints mechanisms, particularly in the context of detention, article 12 CAT shifts the responsibility to
initiate an investigation from the victim to the State authority most directly involved”.
18 A/HRC/13/39/Add.5, par. 136.
19 Corte Interamericana de Derechos Humanos, Caso Bayarri Vs. Argentina. Sentencia del 30 de octubre de 2008, Serie C No. 187,
párrafo 92.
20 CAT/OP/BRA/1, par 67.“67.A detainee must have the right to legal assistance of his/her own choosing, and from the outset of deten-
tion. An independent legal representative should be entitled to be present and assist the detainee during all police interviews and during
appearances before a judge, as a fundamental safeguard against torture and ill-treatment. If a detainee has been subjected to torture or
ill-treatment, this access to defence will facilitate the right to complaint, in addition to performing a preventive function”.
21 A/HRC/13/39/Add.5, par. 148. “148. While investigations by police chiefs, prison directors and public prosecutors often are necessary
as a first step for a prompt investigation, it is advisable not to entrust the investigation solely to persons who have close personal or
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
professional links with the persons suspected of having committed torture or ill-treatment, or who may have an interest in protecting
these persons or the particular unit to which they belong. It is not surprising that countries where only police officers are investigating
allegations against the police, military officers against the military and so on, are often not able to present a single conviction for torture,
despite well-founded allegations to the contrary”.
22 O mesmo é dito pelo ponto 74 do Protocolo de Istambul: “Caso os procedimentos de inquérito se revelem inadequados devido à
escassez de recursos ou falta de capacidade técnica, possível falta de imparcialidade, indícios da existência de abusos sistemáticos ou
outros motivos relevantes, os Estados deverão garantir que as investigações sejam levadas a cabo por uma comissão de inquérito inde-
pendente ou mecanismo análogo. Os membros desta comissão deverão ser selecionados com base na sua reconhecida imparcialidade,
competência e independência pessoal. Deverão, em particular, ser independentes de quaisquer suspeitos e das instituições ou agências
a que estes pertençam”.
23 /HRC/13/39/Add.5, par. 149. “149. When impartial and vested with full investigative powers, competent authorities for investigations
into torture allegations include inter alia courts, national human rights institutions, ombuds-institutions, detention monitoring commis-
sions, public prosecutors and special independent police investigators entrusted with the sole task of investigating torture and CIDT by
police officials (so-called ‘police-police’). While NHRI’s, ombuds institutions and detention monitoring commissions usually lack full
powers of criminal investigations, a special ‘police-police’, if truly independent from the police, may be in a better position to collect the
evidence necessary to bring the perpetrators of torture to justice”.
379
estratégias alternativas não pode representar o abandono das vias usuais de responsabilização24,
que devem ser usadas de forma rotineira na investigação de atos de tortura25. A dimensão da
concorrência e controle entre instituições é fundamental para que se impeça a tortura.
De acordo com o Protocolo de Istambul, uma investigação eficaz da tortura tem, entre
outros, os seguintes objetivos:
Além disso, o Protocolo impõe uma série de regras a serem observadas em todas as
etapas da investigação, constituindo-se verdadeiramente em um Manual de Investigação e San-
ção da Tortura.
As obrigações de investigar e de provar a tortura não podem recair sobre a vítima;
tanto o contrário, é obrigação do Estado demonstrar que seus agentes não cometeram atos de
tortura27. Assim, outros elementos de prova devem ser buscados com celeridade, com o in-
tuito de preservar a possibilidade de o inquérito servir, de fato, aos seus objetivos, como, por
exemplo, as perícias médicas28.
Pessoas privadas de liberdade estão mais sujeitas à tortura e os processos nos quais
respondem pelos crimes (que originam as suas medidas de privação de liberdade) e, por isso,
devem ter mecanismos que assegurem que a sanção penal se dê sem a prática de tortura, como,
24 CAT/OP/BRA/1, par 53. “53 . The SPT recommends that all allegations of torture and ill-treatment be
thoroughly investigated as a matter of routine and that perpetrators be held accountable for their actions. The State party should issue a
strong condemnation, at the highest level of authority, declaring that torture will not be tolerated under any circumstances. This message
of “zero tolerance” of torture and ill-treatment should be delivered at regular intervals to all security forces and custodial staff, including
through professional training”.
25 O parágrafo 84 do Protocolo de Istambul traz as hipóteses nas quais deve-se investir na criação de uma comissão independente de
inquérito para apurar casos de tortura, em substituição às instâncias ordinárias.
26 Protocolo de Istambul, par. 77.
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
27 SPT. Tradução libre. Informe sobre la visita a México del Subcomité para la Prevención de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles,
Inhumanos o Degradantes. ONU doc. CAT/OP/MEX/1, 31/05/2010, par. 39.
28 Protocolo de Istambul, par 82: “82. [...] O perito médico deverá elaborar imediatamente um relatório escrito rigoroso. Este relatório
deverá incluir, no mínimo, os seguintes elementos: a) As circunstâncias em que decorre o exame - - nome da pessoa examinada e nome
e função de todos quantos estejam presentes no exame; hora e data exatas do exame; localização, natureza e morada (incluindo, se ne-
cessário, a sala) da instituição onde se realiza o exame (por exemplo, estabelecimento prisional, clínica, casa particular); condições em
que se encontra a pessoa no momento do exame (por exemplo, natureza de quaisquer restrições que lhe tenham sido impostas aquando
da chegada ao local do exame ou no decurso do mesmo, presença de forças de segurança durante o exame, comportamento das pessoas
que acompanham o detido, ameaças proferidas contra a pessoa que efetua o exame) e quaisquer outros fatores relevantes; b)
Historial – registo detalhado dos factos relatados pela pessoa em causa no decurso do exame, incluindo os alegados métodos de tortura ou
maus tratos, momento em que se alega ter ocorrido a tortura ou os maus tratos e todos os sintomas físicos ou psicológicos que a pessoa
afirme sofrer; c) Observações físicas e psicológicas – registo de todos os resultados obtidos na sequência do exame, a nível físico e
psicológico, incluindo os testes de diagnóstico apropriados e, sempre que possível, fotografias a cores de todas as lesões; d) Parecer –
interpretação quanto à relação provável entre os resultados do exame físico e psicológico e a eventual ocorrência de tortura ou maus
tratos. Deverá ser formulada uma recomendação quanto à necessidade de qualquer tratamento médico ou psicológico ou exame ulterior;
e) Autoria – o relatório deverá identificar claramente as pessoas que procederam ao exame e deverá ser assinado”.
380
por exemplo demanda a Convenção (artigo 11), quer para obtenção de confissões e provas29:
Na mesma linha de raciocínio, pessoas privadas de liberdade devem ter contato pessoal
com o juiz de seu caso30, justamente como uma medida capaz não só de averiguar a legalidade
da prisão, mas também de evitar e, se for o caso, constatar o emprego de maus tratos ou tortura.
Ambas as ponderações sobre a imparcialidade e a celeridade do procedimento inter-
ferem em sua seriedade, na medida em que é diminuída sua capacidade de oferecer respostas
eficazes. Além disso, a ausência da figura de um investigador que crie laços de confiança com
as vítimas e que tenha a condição de acompanhar a maior parte da produção de provas31 pode
também representar um prejuízo à eficácia da investigação que, conforme já mencionamos, é
uma obrigação de meio que deve ser cumprida com a maior diligência pelas instituições do
sistema de justiça.
A exigência de celeridade, por sua vez, tem por objetivo a preservação da integridade das
provas32, além de permitir à vítima uma rápida prestação jurisdicional que se traduz, para o direito
internacional dos direitos humanos, enquanto direito humano de garantia e proteção judicial.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito internacional dos direitos humanos – quer nos tratados internacionais, quer
nas interpretações autênticas dos mesmos – impõe aos Estados uma série de obrigações de
respeito, proteção e garantia dos direitos humanos. Especificamente em relação à prevenção,
29 “A/HRC/13/39/Add.5, par 93. “93. The inadmissibility of evidence obtained under torture is one of the most crucial safeguards against
abuse in the criminal justice system. Its purpose is twofold: first, given that the vast majority of torture is inflicted in the course of
criminal investigations with the purpose to extract a confession, the safeguard intends to remove a prime incentive for torture. Second,
evidence obtained under torture is highly unreliable concerning the veracity of the statements obtained. Declaring the evidence inad-
missible helps ensure that no innocent person is convicted”.
30 O artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem
FIDES, Natal, V. 8, n. 2, jul./dez. 2017.
demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo
razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que
assegurem o seu comparecimento em juízo”. Este dispositivo tem sido usado para a criação de audiências de custódia para pessoas pri-
vadas de liberdade. Neste sentido, JUNIOR AURY, Lopes; PAIVA, Caio. Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao
juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal. Revista Liberdades nº 17, setembro/dezembro de 2014.
31 Protocolo de Istambul, par 89, menciona a necessidade de seleção de um investigador responsável a dirigir os trabalhos: “89. As autoridades
responsáveis pela condução do processo de inquérito deverão designar uma pessoa como principal responsável pelo interrogatório da pre-
sumível vítima. Embora esta última possa ter necessidade de discutir o seu caso com profissionais das áreas do Direito e da saúde, a equipe
de investigação deverá envidar todos os esforços para evitar que a pessoa se veja obrigada a repetir desnecessariamente a sua história”.
32 Corte Interamericana de Direitos Humanos, Cf. Caso Baldeón García, Sentença de 6 de abril de 2006. Série C, nº 147, par. 142; Caso
Lori BerensonMejía. Sentença de 25 de novembro de 2004. Série C, nº 119, par. 133; e Caso Juan Humberto Sánchez, Sentença de7 de
junho de 2003. Série C, nº 99, par. 120. No caso Ximenes Lopes vs Brasil, por exemplo, a demora em identificar e inquirir testemunhas
foi considerada uma grave falha do inquérito quando à sua seriedade e celeridade: “189. Houve uma falha das autoridades estatais quanto
à devida diligência, ao não iniciarem imediatamente a investigação dos fatos, o que impediu inclusive a oportuna preservação e coleta da
prova e a identificação de testemunhas oculares” (Caso Ximenes Lopes, Sentença de 4 de julho de 2006, Série C, N. 149), gerando uma
consequente violação do direito de proteção judicial previsto no artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos.
381
reparação e sanção à tortura, as instituições nacionais – e sobretudo as instituições do sistema
de justiça – são espaços em que esse direito pode ser realizado com observância dos parâmetros
internacionais ou podem se tornar os espaços nos quais são perpetradas novas violações.
382
Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade
w w w. r e v i s t a f i d e s . c o m