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"Des que vio femmada, les iraremos tudo” Porjue:o Estado brasileiro esté falidlo, pagaremos suns dividas com as faxas © de jurds mais alta: domondo. Porque previdéncta €defiifiria, transformaremosa aposentadorsa dos que n em fone de financiamento para 0 capital. a "constituigio cidada"' ¢ incompative com o Estado privatizado, ens a consituigao efarenios do poder de consumo oatestad de dda vveiladsiro espago da nagio, ANA ELIZABETE ‘ion, CULTURA DA CRISE E SEGURIDADE SOCTAL previdéncia e da assisténcia brasileira nos anos 80 @ 90°” 0s viltimos anos, na procugia intelee~ tual do Servigo Social, vem se afirman- da um movimento significativo: 0 surgimento de elaboragdes que, rom- pendo definitivamente comas velhas preocupagdes acerca da "especificidade profisstonal”, priorizam & construgito de conhiecimentos sobre objetos da cago do assistente social. Néo é casua jeitos deste mavirnonto-sejam intelectuais que, alm de jovens, estabelecem uma interlocugio critica com as cigneias socials, reszatando inspiragdes chissicas ¢ nada concedendo aos modismas tito f6- ceis da pos-modemidade. CO langamento deste nove livro de Ana Blizabsete Mota se inscreve no interior deste movimento, re terando, 20 mesmo tempo, x sux vitalidade, Com a capacidade analftiea te que j4 deu provas em seus trabalhos anteriores © com recursos te6rico crt cos que atestam a sua maturidade intelectual, « autora aio nos offerece apenas (o que jé seria uma contribuigdo de yulto) um competente estudo so~ bre as tendéncias da previcléncia e da assisténcia sociais brasileiras contemporaneas Neste livro, o leitor encontrara uma Kicida and lise das estratégias do grande capital para engen drat, no marco la crise global da sociedule bur esa, uma nova hegemonia, adequada para asse- gurar 4 reprodugio da sua dominagio. E esta and lise comtempla um mergutho na partieufaridade bra- sileira: Ana Elizahete indica coma, nestas latit des, gestu-se também uma “cultura da crise" que jogano sentido de manter a subalternidade dos tra que os su ‘CULTURA DA CRISE E SEGURIDADE SOCIAL ‘Uinestudo sobre as tendéneias da presidenciae da asssténcia soclat Tessie ira nox anos 80 € 90> Roa \ Dados Internacionais de Catalogacao na Publicacdo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP. Brasill indices para catalogo sistematico: ANA ELIZABETE MOTA / 2 CULTURA DA CRISE £ SEGURIDADE SOCIAL ‘Um estudo sobre as tendéncias da previdencia e da asistencia social brasileira nos anos 80 ¢ 90 GS snore CULTURA DA CRISE E SEGURIDADE SOCIAL: Um esto sobre as tend&ncias dia previdtncia © da assisténcia social brasileira nos anos 80 ¢ 90) ‘Ani Blizabete da Mota Capa: DAC Prepavagée dle arigineis: Irene Hikichi Revisav: Maria de Lourdes de Almeida, Eliana Macias Comporsigos Dany Feitora Ll Assessoria editorial: Blizabere Borsianni Coordenayae editorial: Danilo A. Q. Merales Nethuma pare desta obea pode set reprod lexmressa da autora € do edits. ida 02 duplicada sem sutorizagdo © 1005 by Aube Direitos para esta edi CORTEZ EDITORA, Rus Barta, 387 — Tels (LI) 864-011) (95009-0090 So Paulo — SP Inypresso no Brasil - novembio de 1995 A Marliote Mos. A André, Nina ¢ Amaldo, pedagos de mim. Sumirio Siglas Preficio Apresentagio Introdugéo Capitulo 1 Crise econdmica ¢ constituigo de hegemonia 1. As mudangas na ordem econdmica mundial 2. Crise © reestruturagao produtiva, 3. Crise e consenso hegeménico Capitulo TT A cultura politica da erise dos anos 80 1. 0 debate sobre a crise 2. A cultura da crise no Brasil 3, Os vixos de culturt da rise no Brasil Capitulo 111 A seguridade social em tempo de crise L.A trajetria da seguridude social: da experiéncia fordista-keynesiana a flexibilizagao neoliberal 2. As particularidades da seguridade social brasileira no pos-64 = 3h 2 3. A agate politica dos empresdrios © dex trabalhadores © 0 percurso da seguridade social nos anos 80 49 49 65 8 87 87 108 117 117 136 149 Capitulo IV Ideario da reforma: 0 cidadio-pobre, 0 cidadio-fabril © 0 cidadio-consumidor 1. A hegemonia nasce na Fabrica 2. A protegio social na empresa privada: 0 idedtio do cidadao-fabril As propostas para a seguridade social na era dat produgio flexivel: a formagdio de cidadio-pobre © do cidadio-consumidor 3.1, Da crise da previdéncia a revistio constitucional 4, As propostas do grande capital 4.1, O pensamento da FIESP 4.2. © pensamento da FEBRABAN 4.3. 0 pensamento do Instituto Liberal As propostas dos organismos internacionais, 5.1. Fundo Monetério Internacional, Banco Mundial ¢ Banco Interamericano de Desenvolvimento 6. A proposta dos trabalhadores 6.1. © pensamento da Forga Sindical 6.2. 0 pensimento da CUT 7. Consideragaes finais Bibliografia . |. Obras e artigos de revistas 2. Fontes de pesquisa 180 183, 193, 193, 196 198 » 201 201 210 210 212 219 231 231 ABRAPP: RID BIRD CAP CEE CEPAL cur cNPS corINs, cur FEBRABAN PINSOCIAL, PML FUNRURAL, TAP, IBGE INPS INSS. IPEA MPAS ps TPS ocpR, ONG Siglas Associagao Brasileira das Entidades Fechadas de Previdencia Privada anco Interamericano de Desenvolvimento Banco Interamericano para Reconsirugio ¢ Desenvolvimento Caixa de Aposentadorias © Pensies ‘Comunidade Econimica Evropsia Comissio Econdmica para América Latina e Caribe Consolidazao das Leis do Trabalho Conselbo Nacional de Previdéncia Social Conteibuigio sobee © faturamento. das empresas Central Unica dos Trabalhadotes Federagio Brasileira de Associagées de Bancos Fundo de Garantia por Tempo de Servigo Federagio das Inciistrias do Estado de Sio Paulo Pando de Investimento Social undo Monetrio Internacional undo de Assist8ucia ao ‘Trabalhagor Rural Instituto de Aposentadariat © Pensies Instituto Brasileiro de Geogratia © Estaistica Instituto Nacional de Previdéncia Social Instituto Nacional de Seguro Social Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada Ministerio da Previdencia © Assisténcia Social Ministévio da Prevideéncia Social Ministério do Trabalho e Previdénsia Social Organizao para Cooperss’io e Desenvolvimento Econdmico Organizagao Nao-Governamental 9 PASEP PIB. Pls PND pes PSB PSTU Pr pv SENAL SESC Programa de Farmaco do PauimOnio do Servidor Péblico Produto Intern Bruto Programa de [ntegragao Social Plano. Nacional de Desenvolvimento Partido Popular Socialist Punido Socialista Brasileiro Pantido Socialista dos Trabalhadores Unificados Partido dos Trabalhadores Partido Verde Servigo Nacional de Aprendizagem Industrial Servigo Social do Comercio , Servigo Social da Indiseia Seguro de Riscos Sociais Unido Brasileira dos Emproséios Valor de Referéncia de Seguridade 10 Prefitcio A sociedade capitalista vem, ao longo das tiltimas décadas, atravessando uma série de modificagdes que tem chamado a atengiio de pesquisadores c politicos. Anuncia-se que, ao estamos vivendo a terceira revolugdo industrial, o trabalho, no sea sentido cléssico, nfo tem mais significado, Atribui-se a tecnologia toda essa imensa transformagio. Mas, afinal, € a sociedade do trabalho que perece ou se trata de quebrar o trabalhador coletivo e/ou os coletivos de tabalhadores e, com cles, as suas. sociabilidades? Como se deu esse proceso? O Capital subordinow o Trabalho, real ¢ formalmente, Superou © wabalhadar artesanal pelo moderno operdrie fabril, Concentrou trabalho © capital no processo produtivo. A historia sob o capi- talismo aparece como a histéria do Capital, das téenicas, da produgio © nunca do trabalho. As forgas prodativas do Trabalho aparece como forgas produtivas do Capital. Este, aparece como natural, etemo, imutavel e, cada yer mais, progressista. Aparece como negagao da historicidade do trabalhador. Tudo se passa no interior do cfrevlo do capital: 0 trabalho parece nao ter vida propria A ordem do capital aparece, hie et nune, como a liberdade de todas as classes, No enlanto, nesse proceso, esse trabalhador, contraditoriamente, se transformou em um ser coletivo. A perda (relativa) da sua autonomia, acrescenta (ou pode acrescentar) uma qualidade nova: ele € a forga produtiva por exceléncia. Atomizado, ele aparece, no processo do capital, como indi- viduo. Essa condigaio € basica para ocultar sua situagao. O trabalhador e 0 capitalista aparecem como individuos. F. exatamente essa semelhanga que permite torni-los “idénticos": todos sto ul iguais perante a lei. Nas formagGes sociais capitalistas, «a opressdio € a exploracdo se enconiram fundidas, sob a aparéncia da liberdade e igualdade de todos, Na sua luta cotidiana o trabalhador como coletivo — construitt sua identidade, ainda que parcial. Construiu-se, nessa Iuta e por ela, nZo obstante tudo, uma expe- riencia socialista, Paralelamente a essa experigncia, o Capitalismo viveu sua mais importante crise: a dos anos 30, Crise organica do Capital, ela viabilizou/tornou necessério um conjunto de medidas de con- watendéacia que tratou de conduzir/reconduzir as classes. traba Thadoras ao leito econdmico-corporativo, Para fazer face a essa crise, © capitalismo (seus infelectuais organieds, seus préticos) construia uma experiéneia combinada de keynesianismo e Welfare State, visando compatibilizar a acumulagie © a valorizagio capi talistas com direitos politicos e sociais minimos para os. trab thadores. Gestaram-se formas combinadas de liberalismo © de social-democracia. Reconstruir o capitalismo como o tinico hori- zonte possivel era a tarefa; ¢ se conseguitt, com bastante éxito, fazer as classes trabalhadoras aceitarem esse patamar, esse horizonte hist6rico Passada a época nazifascista, a maior parte da Europa viveu uma cra de “social-democratizacio”, tornada possfvel pela mais poderosi intervengao do capital, até entio: 0 Plano Marshall Face & alternativa russa, fortissima no imagindrio dos trabalhadores, os capitalistas de todo o mundo uniram-se: tudo valia contra o espectro vermelho, Sindicatos e partidos de esquerda (nem todos, € bom que se diga) se associaram ao capitalismo na busea de uma estabilidade que garantisse a “parceria antagonica”. ‘Tendo abandonado qualquer pretensdo revoluciondria, a maioria dos abathadores viviam a plenitude de um sindicalismo de resultados, ceriatura tépica da Ordem do Capital Emergiu © chamado compromisso fordista: © pacto social em escala internacional, Compromisso que podemos sintetizar da seguinte forma: os capitalistas nao se preocupavam com. altos salarios, deste que, obviamente, as centrais sindicais nao tentassem limitar a acumulagio & os lucres dos capitalisias. Compromisso que conyives com o surgimento do desemprego estrutural ea ampliagio da precarizagao do tabalho: foi uma espécie de re- 2 formismo burgués. Cabe aqui relembrar a sfntese gramsciana segundo a qual 0 reformismo € a “politica dos ‘bons tempos” Referimo-nos, € claro, ao setor mais organizado das classes trabalhadoras e que estava ligado ao coragito do capitalismo. Esse gentlemen agreement, em larga medida exitoso, atuou no sentido da incorporacéo dos operdrios, novamente ¢ de forma superior, @ racionatidade capitalista. O Welfare Stare foi a forma assumida pelo Estado capitalista, em alguns paises, para, através de politicas sociais compensatérias, buscar a “fidelidade das masses”, legiti- mando assim a ordem burguesa. Foram os chamados “anos gloriosos” do capitalismo. Com a crise dos anos setenta ¢ oitenta 0 capitalismo buscow livear-se das conquistas sociais que fora obrigado a conceder face a altemativa “socialista”. Na busca de solugées para a crise, caracterizada de forma multifacetada pelos diversos movimentos em luta, 0 capitalismo, face ao desmonte objetivos das experigncias ditas “socialistas", reciclou-se muito rapidamente, Liberados de todo e€ qualquer compromisso com a satisfagio das necessidades reais da populagaio ¢ da ampliagio da cidadania, ainda que a proctamem ad nauseam, os capitalistas recriaram a sua institu- cionalidade, Para tal, levaram a extremos a idéia de fiberdade do mercado. 0 capitalismo aparece hoje como o grande vitorioso, hege- ménico e coveiro do socialismo. A historia do século XX registrou um conflito entre duas formas de racionalidade classistas. A nova siluagéo criada nega, temporariamente, 4 humanidade uma alter- nativa: a da racionalidade socialista, A vitdria do capitalismo é wna aparéncia necesstiria: ela se constitul em wm poderoso elemento politico av penmitir elulir 0 cariter de classe das opces econdmico-politicas. Hoje, ox capitalistas fentam passar @ imagem segundo @ qual modernidade-avanco cientifico-avango politico (dito democratico) siéo un mesmo ¢ tnico proceso. Realidade contra a qual, dizem, nv se pode lutar: 0 capitalismo é a historia natural da humanidede A base da atual euforia capitatisia é ainda uma vee « repressao, seja salarial, seja politica, sobre o mundo de trabalho. © neoliberalismo aparentemente resolveu a situago em varios 13. paises © regides. O programa de ajuste financeiro do FMI — e sua politica monetarista — reduziu a quase nada os patses subalternos. O prego foi brutal: desindustrializagdo, recessao, desemprego, O Chile ¢ a Argentina sio bons exemplos. Em. muitos paises, as reformas neoliberais permitiram reduzir as astronémicas taxas de inflagdo para a ordem dos 100% anuais, elevando, contudo, mithdes de pessoas & mi © discurso neoliberal & elemento constituidor dess nalidade, Esté incorporado, tanto ao conjunto das relagées sociais das quais € 0 suporte ¢ 0 garantidor, quanto as tecnologias (as maquinas sdo elas mes mas ¢ qs relagdes sociais que as tornam possivel). Esse discurso transforma os opositores ao projet neo- liberal em adversirios do progresso e da modernidade, em ira ». O dominio ideoligice, exervido, universal e irrestritamente, pela midia e pelos programas governamentais, torna invisfvel para © conjunto da populagio a situagao de exclusio radical a que ela esta submetida A intelectuatidade, em grande medida, assumiu o discurso do fragmento, do detalhe. como iinica forma cientifica correia A categoria marxista de andlise da totalidade € transformada em algo totalitario. ‘Todo © qualquer process macro parece ser destituido de significado. O micro, identificado com 0 atual, com a verdade, torna-se elemento de dentineia da politizagio e da ideologizagao, ambas, necessiria e solidariamente, irracionais. Esta € a aparéncia que se passa para as classes subaltemas. Muito, desses intelectuais acabaram por actité-la ¢ isso & decisive, O mesmo, poréni, ndo se di na pritica e na teorizagao dos dominantes. Todo esse quadro levou e tem leyado a que os movimentos partidario, sindical, popular © de esquerda, acabem por considerar, despolitizadamente, que fora do capitalismo solu perdendo assim, ¢ isso & decisivo, suas referéncias classistas Mais do que a perda das referencias, criowse © vazio das experiéncias. O mercado parece reinar sozinho, ancorado no maior mo- nopstio de comunicagao social jamais visto, Controlando as in- formagoes, detendo 0 comanclo ‘sobre os instrumentos estatais, & fi cil passar a idéia, ndo se sabe durante quant tempo, de qne “4 tudo vai bem no melhor dos mundos. & bont lembrar sempre que os beneficios sob a ordem do privado nto podem ser Socializados. Se & verdade, no Brasil, que as classes subalternas pereebem que os precos tém uma certa estabilidadg, constalam, porém, lenta © dolorosamente, que nao ha trabalho, educagio, saiide, aposentadoria e seguridade para todos. Em complemento a isto, a justiga reescreve a Constituigao a0 “interpreté-Ia”. Tenta-se redefinir as condigSes gerais do tra- balho. O objetivo & a “desregulamentagio”: a quebra, « redugdo a0 minimo da legislagio de protegaio ao trabalho, abrindo caminho ao pleno dominic do mercado. E esse 0 discurso que se generaliza, € essa a pritica que se aprofunda. © sentido da Revisio Cons- titucional que, no Brasil, esta se realizando é © mesmo nos demais paises capitalistas: tragédia © farsa, A miséria, a destruigaio. dos servigos publices, a perda da cidadania, enfim a legitimagiio da opressio § vista como uma decorréncia do mercado. A violencia nfo eseandaliza mais: esté inteiramente banalizada. & pens... mas € assim mesmo, O neoli- heralismo revela-se, ento, no pior dos sentidos, um darwinismo social. O mercado ¢ aquele onde os melhores adaplados, os racionais, tiunfam, Os outros? Ora, os outros... Entregue asi mesmo, © neoliberalismo aprofundaré a miséria ¢ 0 apartheid social nfo dectarado. Faz-se necessériv fazer crer as classes subalternas que seu “destino” 6, para sempre, 0 da subordinagio permanente & Ordem do Capital. Aqui intervém o discurso neoliberal, apagando as diferengas, homogeneizando as préticas, Essa é a estratégia. Bus- case assim impedir que a pensamento ¢ as priticas das classes subalternas se transformem em identidade. Este é¢, no sentido gramsciano, a mais brutal dificuldade destas classes, Q seu saber/pensamento é construfdo, errdtica e fragmentariamente, a partir da sua insergo subordinada na estrutura social, Elas tm que, em um processo permanente de luta contra essa domina- gGo/saber, dar respostas concretas e imediatas aos problemas colocados pelos dominantes. E no proprio cerne das praticas & discursos dominantes, que aparecem diante da totalidade do social como a tnica possibilidade, como campo e naturalidade, como 16 horizonte, que as respostas das classes subalternas se configuram como nfo-saberes. E & exatamente por isso que os saberes/praticas dos dominantes ditam os ritmos e as formas de todo saber constituido. A nffo-estruturago auténoma das classes subalterna: de que elas tém que ser resposta a outros — que so dominantes —, faz com que a totalidade da sua existéncia (rica e contraditéria) seja reduzida 4 imediatez, & fragmentariedade, & cotidianidade, atuando, fundamentalmente, no limite do campo econémico-cor- porativo, ou seja, da sua reprodugao pura e simples. A produ- iio-reprodugiio ampliada das elasses subalternas é assim desqua- lificada, descentrada em rela si mesma e centrada na racionalidade contraditéria do(s) seu(s) antagonista(s). A constru- fio, por elas, em tal situacao, do momento ético-politico, da hegemonia, & imensamente dificultada. © fato Trata-se da Iuta hegemOnica: projetos € racionalidades esto em confromto. Cabe ayui 0 desatio dos imelectuais: qual racio- nalidade implementar? que sociedade construi construgio dat identidade das classes subaltemas e, assim, produzir 4 ruptura constituidora de sua identidade e projeto, & necessario m aos discursos © priticas dominantes, Essa construgio se faz ao mesmo tempo em que se luta contra os ? Para realizar a que elas se subtrai discursos/praticas das classes dominantes. Para as classes. subal- ternas 6 vital construir uma racionalidade nova, distinta da anterior, que se coloque como reflexao politica fundadora da possibilidade apresentar, como revolucionéria. Realizar isso significa dar passos decisivos em diregio a liberdade © autonomia de um novo real, de um novo bloco histérieo. E Cabe ao movimento social organizado trabalhar em uma perspectiva de reafirmagio dos direitos sociais. Mais do que hunca, a construgdo do. Projeto. Democratico-Popular _permitira articular nossa agenda social. Educagao, Saide, Seguridade Social, c -chologia, entre tantas outras coisas, nfo podem sei submetidas ao “livre” jogo do mercado. Mesmo no. chamado primeiro mundo, nao € isto o que ocorre, © neoliberalisme quer transformar nos: s sociedades em sucata, em produto descartavel 16 E sobre esse pano de fundo que se assenta,o trabalho de ‘Ana Blizabete da Mota, Negando-se as faceis ‘e confortdveis sedugées do atual como tinica verdade, Ana constrdi uma sélida teflexdo que desnuda os vinculos da teia infernal, do Capital Colocando-se na perspectiva das classes trabalhadoras, na pers- pectiva do futuro, Ana encontra as rafzes da melhor tradigao critica, Essa (radigao aliada & garra feminina, nordestina, humana, faz de Ana e do seu trabalho uma referéncia necesséria para todos que pretendam embrenhar-se no debate da Seguridade, Aqui estdo elementos vitais para a compreensdo da nossa realidade. Por ditimo, mas nZio menos importante, resta afirmar que (rabalhar com Ana foi um prazer e um orgulho. Foi a prova de que, apesar de tudo, a Universidade pode e deve continuar a ser um local de militancia critica, um lugar onde se pode trabathar ha construg’o de uma nova sociedade. ‘dmundo Fernandes Dias Apresentagao Este livro discute as tendéncias gerais da seguridade so- cial brasileira como expresso particular de um movimento mais geral, consubstanciado na erise econdmica, social ¢ politicn dos anos 80. A opeao por essa drea de investigagdo tem suas rafzes num conjunto de observagdes empiricas — fruto da minha experiéneia como assistente social e militante sindieal — ¢ numa série do questionamentos tedricos © politicos que teci ao longo da minha trajetéria como docente do curso de Servigo Social da Universidade Federal de Pernambuco. A ‘igor, a temética trabalhada neste estudo incorpora 0 conjunto das reflexdes e sistematizagfio tedricas que venho fazendo desde 1978. Inicialmente, tratando as determinagées da pritica do Servigo Social nas ompresas e, desde 1987, problematizando © processo de constituigdo da seguridade social propria dessas zagdes, com base nas reivindicagdes sindicais dos trabalha- dores, nas mudangas nos métodos de gestio da forga de trabalho © na intervenciio social do Estado. Das primeiras pesquisas, resultou minha dissertapao de m trado, na qual concluf que os servigos sociais agenciados pelas compress eram mediados pela ideologia da ajuda, transformando-se num verdadeiro “feitiga da ajuda”. Outra pesquisa, realizada nos finais dos anos 80, me dew condigdes de tematizar as inflexdes do movimento sindical que, fem torne daquela quesiao, comegou a transformar, aos acordos coletivos de trabalho, as concessé vohuntirias dos empresirias 19 em objeto de barganha, imprimindo um estatuto de direitos contratuais & oferta de servigos sociais. Instrumentalizada pelos estitdos realizados durante 0 Douto- rado, iniciet uma nova problematizagao, relacionando as reivin dicagées sindicais por seguridade social com as mudangas nas iniciativas empresariais, seja no interior das empresas, seja no campo das politicas sociais em geral. Observei, entio, uma série de implicagées decorrentes daquela pritica, na definigdo geral dos modos e condigées de reprodugio da forga de trabalho no Brasil. Constatei, assim, que as priticas assistenciais das empresas nfo se explicam apenas pela’ apreensiio do que ocorre no espago das unidades produtivas, nem se decidem em fungio dos embates politicos entre tabalhadores e patrées, durante as campanhas salariais. Antes, elas dependem da conjuntura econémica, social © politica do pais, do processo e das relagdes de trabalho desenvolvidas em cada empresa e da regulagio social do Estado, processos esses mediados pela ago das classes sociais. Em resumo: € na génese e no desenvolvimento das politicas sociais, em geral, ¢ da seguridade social, em particular, que podemos. identificar as determinagoes e as caracteristicas da proteg’io social brasileira, seja ela operacionatizada elas empresas ou pelas instituigdes do Estado, stas FormulagGes embasaram a construgao do objeto deste estudo — originalmente apresentado como tese de doutorado junto a0 Programa de Pos-graduagao em Servigo Social da PUC-SP — induzindo-me a pesquisar suas particularidades numa conjuntura de crise. Realizando um mevimento de reapropriagao do real, procurei identificar © movimento da seguridade social no Brasil dos anos 80 € 90 como man stagdo particular de um moyimente mais geral, mareado pela crise, pelo processo de reestruturagio produtiva e pelas novas estratégias utilizadas pelo grande capital @ pelos trabalhadores organizados. Assim, percorri a trajetria da seguridade social a. partir de 1964, identificando, inicialmente, as mudangas ocorridas nos anos 60 © 70, na vigéneia do regime militar © do milagre brasileira n seguida, trate especificamente das mudangas ocorridas. nat 20 década de 80, e que se estendem pelos anos 90, perfodo em que ocorrem, também, 0 processo de democratizagio’ e a insta de uma crise econdmica de dimensées internacionais, © presente livro contém uma introdugtio, na qual exponho a construgio do objeto de estudo, seguida de mais quatro capitulos. No primeiro abordo 0 contexto geral da crise dos anos 80, com destaque para os processos ecandmicos que afetam os paises centrais € periféricos. para as caracteristicas da_reestruturagio produtiva e para as principais prescri¢Ses dos organismos finan- ceiros internacionais sobre os ajustes ¢ reformas a serem realizados nos paises periféricos. No segundo capitulo, disserto sobre a construgio da cultura politica da crise, apresentando seus tragos gerais © particularizando sta emergéncia no Brasil No terceiro capitulo, intitulado “A seguridade social em tempo de crise”, trabalho a hipdtese que norteou esse estndo, gual seja, que as tendéneias da seguridade social brasileira nos anos 80 © 90 expressam 0 movimento de formacio de ums cultura politica da crise, marcada pelo pensamento privatista & pela constituicao do cidadao-consumidor. Neste mesmo capitulo, discuto, do ponto de vista tesrico e histérico, a relagio entre a conjuntura de crise econémica, as mudangas no mundo do trabalho e na intervengdo social do Estado, para, em seguida, discorrer sobre as particularidades da seguridade social brasileira p6s-64, ocasidio em que relaciono as transformagbes ocorridas com a experiencia politica dos empresiirios ¢ trabalhadores. no periodo. No quarto € tiltimo capitulo, trabalho o idedrio da reforma da seguridade social. Inicialmente, indico a relagao entre a formagao da cultura da crise ¢ sas implicagdes nas mudangas da seguridade soeial nos anos 80, remetendo esse movimento ao campo da construgiio da hegemonia, Em seguida, destaco as estratégias dos empresdrios ¢ dos trabalhadores organizados, mostrando como a agiio desses sujeitos determinou dois movimentos basicos daquele processo de mudanga: a protegio social da empresa ¢ a protegio social do Estado. Por fim, fago uma apreciagao critica das propostas do grande capital, dos organismos financeiros internacionais © dos trabalha- 21 dores assalariados em relagio a reforma da seguridade social na reviso constitucional, apontando a dindmica politica que deter- minou © surgimento das tendéncias gerais da seguridade social brasileira nos anos 80 e 90, © materializando, assim, has observagdes conelusivas. Ao final desta apresentagio, quero tornar ptiblico meu re- conhecimento as instituigées que viabilizaram minha participagao no curso de Doutorada em Servigo Social da Pontificia Univer sidade Catdlica de Sao Paulo: a Universidade Federal de Per- hambuco ¢ 0 Banco do Brasil S. A., possibilitando-me a realizagao da tese de doutorado que dew origem a este livro. As amigas Miriam Paditha, Rose Serra ¢ Franci Cardoso, tés doces jagungas que acompanharam cotidianamente o percurso deste estudo, agradego a solidariedade, 0 carinho © as valiosas assessorias afetivo-intelectuais. As minhas irmas e especialmente minha mie sou gratissima pela ajuda e pela disponibilidade © paciéncia que tiveram para suportar todas as crises que atravessei. A Antonio Fernando 0 meu reconhecimento pela inestimdvel solidariedade. Aos integrantes da banca examinadora da tese, os professores Gadiel Perruci, Edmundo Dias, José Paulo Netto ¢ as professoras Nobuco Kameyama e Aldaiza Sposati, agradego pelas observagées e valiosas sugestGes que incorporei ao contetido deste livro. Ao professor Gadiel, que me acompanha desde os tempos do mestrado na UFPE, devo grande parte da_minhaformagao académica» Com ele aprendi um modo dialético e especial de pensar o real. Do professor Edrmundo Dias, meu co-orientador e mesure na UNICAMP, recebi o estimulo constante, a confianga intelectual, oriemtagdes que me permitiram desvendar ‘0 pensamento gramsciano, Reafirmo, a eles, a minha amizade, carinho, respeito intelectual & gratidao. Finalmente, a Fernando Jaburu de Medeiros — 0 artesto do texto — devo nio apenas a revisdo meticulosa ¢ competente dos originais, mas 0 apoio e 0 estitnulo dados durante a fase final deste trabalho Ana Eligabete da Mota Recife, julho de 1995 22 Introdugio Inscrito no universo. mais geral do debate sobre a crise econémica, social ¢ politica dos anos 80, 0 presente trabalho analisa as tendneias da seguridade social no Brasil, a partir da tiltima década, estendendo-se até os primeiros anos da década de 90. A abordagem do tema & baseada na suposigio de que a crise brasileira dos anos 80!, e que se prolonga na presente década, € formadora de uma cultura politica que expressa os modos © as formas como as classes sociais enfrentam a referida ‘Tomamos, como universo especifico de discussiio, a questio da seguridade social brasileira nos anos 80, particularizando a questo da previdéncia social e da assisténcia, porque objeto de dispulas © embates entre empresa jos vinculados ao grande capital, instituigdes do Estado, partidos ¢ sindicatos de trabalhadores, além dos organismos financeiros internacionais, que sfio os responsiiveis 1. A expressto crise brasileira dos anos 80 ests sendo utlizada no sentido de lemarear 0 contexts sociaecondmico e poltica do Brasil na década de 80. Tal bbservagao se faz. nccessiria tendo em vista as possiveis eonotagdes que a expresso ra. Assim, desde 58, entendamos crise brasileira como eapressdo particular de uma crise de natureza mais geral do capitalism, eyjas teases particularizantes sa dados pelos moéos © formas ta insergao do Brasil na ondem caplalisia mundial, consideradas as caracteristicas historias da formagao evondmiea e social brasileira Isto G sia base ecorSmico-produtiva, a consttuigio das classes sociais e do Estado, Nesse sentido, a adogao da expressio crise brasileira das anos 80 6 indicadora dos processos reais vividos pela sociedade na dihima década, sem, contd, isali-los das injungies do movimento geral do capitalismo internacional 23 a al petiféricos. O objetivo ¢ analisar as propostas e as iniciativas de segmentos da burguesia brasileira, vinculados & grande industria e a0 capital finaneciro, dos trabalhadores organizados nos sindicatos © nas cenirais sindicais, e das organizagdes financeiras intemacionai para identificar os eixos cenirais desta cultura, particularizando a dimensdo da sua interferéncia nas tendencias da seguridade social brasileira, a partir dos anos 80. A hipétese central & de que, no feito da crise brasileira dos anos 80, vem sendo gestada uma cultura politica da crise que recicla as bases da constituigado da hegemonia do grande capital Dois vetores bisicos vém sendo privilegiados na formas: dessa cultura: @ defesa do proceso de privatizagdo, como forma de reduzir a intervengao estatal, e a constituigdo do “cidadéo- consumidor”, que € 0 sujeito politico nuclear da sociedade regulada pelo mercado. Esse movimento, formador de cultura, expressa uma tendénei geral de enfrentamento da crise que perpassa as esferas da economia e da politica e assume especificidades nas divers: fireas da vida social, como € © caso dos sistemas de seguridade social. Nao se trata, portanto, de discutir os impactos da cultura da crise nas tendéncias da seguridade social brasileira, mas de examinar as patticularidades da seguridade em tempos de crise. Para tematizar essas particularidades, tornou-se imperativo indagar: por que a seguridade é 0 alvo prioritirio das reformas sociais em conjunturas de crise? A primeira hipstese 6 a de que o lugar ocupado pela seguridade social, no proceso de produgio ¢ reproduce. social, particulariza, no plano material © politico, sua vinculagao com as necessidades de socializagio dos custos da reprodugao da forca de trabalho enquanto condigio da acumulagao do capital © com © proceso politico deflagrado pelos traballiadores em torno das conquistas sociais, institucionalizadas nos direitos sociais. 24 Essa afirmagdo sugere que a seguridade social diz respeito tanto ao movimento de yalorizagao do capital, como, também, As conquistas das classes trabalhadoras que, ao lutarem e con- quistarem meios de reprodugao da prépria vida, impdgm ao capital e ao Estado 0 desenvolvimento de acSes que se confrontam com os interesses imediatos da acumulagio. io se trata de uma aco mecinica do capital ¢ tampouco do trabalho. Na realidade, as condigdes gerais do proceso de producio material e de reprodugdo social so permeadas de contradigées que, em determinadas conjunturas, se transformam em necessidades de classe e objeto da pritica politica dos tra- bathadores e do capital. Esse processo depende do grav de desenvolvimento das forgas produtivas e do nivel de socializagio da politica conquistado pelas classes trabalhadoras, Nas conjunturas de crise econémica, o desenlace desse movimento torna-se mais explicito, pois, a nece: mecanismos de contratendéncia 4 queda tendencial da taxa de lucro revela a estreita vinculago entre os requerimentos do proceso de valorizagao e realizagao do capital e as condigoes sociopolitieas sob as quais 0 capital tenta superar as crises de sua reprodugio, sem perder a condigdo de classe hegeménica, valendo-se, dentre outras medidas, das politicas soci © nicleo temético da hipstese central deste estudo é a relagdo enire crise € hegemonia, que ¢ indicativa de uma concepgio te6rica e politica amplamente polemizada no interior do marxismo. Sua particularidade, enquanto hipétese de estudo, & definida pelas caracteristicas do capitalismo deste final de século, pelas mar festagées da crise no Brasil e pelas peculiaridades das rela de, dominio, subordinagéo & exploragao entre as classes sociais brasileiras. jidade de criar Destaca-se, do ponto de vista histérico, o fato de que a burguesia, no Brasil, exereitou seu dominio sem construir um projeto hegeménico que evidenciasse seu papel de classe dirigente no conjunio da sua chisse € junto ds outras classes. De fato, a ajet6ria do capitalismo brasileiro particulariza uma via de transigao para a ordem burguesa que tanto € distinta do modelo. classico 25 de revolugio burguesa, como da denominada via prussiana?. ‘Assim, a burguesia brasileira, “dada sua fragilidade estrutural, mostcou-se incapaz de realizar suas tarefas econémicas e politicas, recorrendo e transferindo para 0 aparato do Estado as atividades basicas propulsoras do processo de industrializacio © modernizacio, no perfodo que se abre no pés-30" (Antunes, 1988:103). Também na crise de 64, as diversas fragGes da burguesia, segundo Antunes, “incapacitadas para exercer a dirego ou hegemonia politica e ideolégica, mas, ao mesmo tempo, tendo a necessidade imperiosa de continuer dominando, (...) recorrem & manu militari, como condigio para buscar uma nova fase de desenvolvimento, capaz, de recuperar a economia, em estagnagiio desde o fim do governo Kubitschek, e reaquecer 0 padrdio de acumulagio” (1988:114), optando, assim, por uma forma de “dominio politico ditatorial, cuja finalidade imediata era recompor 0 conjunto heterogéneo das fragdes burguesas (...) em um novo bloco no poder” (1988:! 14). Do ponto de vista teSrico, os conceitos de crise ¢ hegemonia — que pertencem ao arabougo da teoria social de inspiragao marxiana — so bisicos no tratamento dessa hipotese, em fungao da capacidade que posstem de operat mediagdes entre o real que se quer desvendar e as categorias mais simples e mais gerais que permitem problematizar a ordem capitalista, Erguida sob a matriz. do materialism histérico e dialéico, a tradigdo marxista empreende o desvendamento do processo de produgao e reprodugio da sociedade capitalista, tematizando tebrica © historicamente 0 processo de produgao material de reprodugao social, numa perspectiva de ruptura € superego da ordem do capital Na clissica afirmagdo marxiana de que a “totalidade das relagdes de produgdo formam a estrutura econémica da sociedade, ‘a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura juridica e politica ¢ A qual correspondem formas sociais determinadas de @ncia” (Marx, 1978a:129-130), esta inscrito 0 principal eixo 2, Sobre a via prissiana de wransigéo, ver Coutinho, “As categorias de Gramsci © a ‘ealidade brasileita” (1988:103-127), In Gramset ¢ a@ América Larinas © Laie Werneck Viauna, Liberalism e sindicato mo Brasil (1989:128-141) 26. tedrico que permite identifiear, na formagdo da cultura, um dos processos sociopoliticos mediaderes da formagdd: da consciéncia € das praticas sociais das classes. J& no pressuposto marxiano da determinagid material das relagies sociais, expresso na clissica afirmago de que “o modo de produgio da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, politica, intelectual em geral” (Marx, 1978a:130), esté fundamentado o entendimento sobre as telacdes entre as condigdes de existéncia e as manifestacées ideolégicas e politicas das priticas das classes sociais. Tais pressupestos, erigidos sob algumas categorias-chave da teoria social de Marx, como € 0 caso da concepgao de totalidade, da determinagdo do econémica, da relacio entre base econémica © superestrutura politica, caracterizam-se como referéncias teéricas, © metodolégicas bisicas para o tratamento do objeto. Contuio, como essas categorias niio poderiam ser suficientes para o processo de andlise de uma determinada conjuntura histérica . aqui referenciada pelas crises periédicas do capital ¢ pela complexidade das préticas das classes sociais no enfrentamento daquelas crises —, a construgao da hipdtese central implicou dois procedimentos diversos, mas intimamente relacionados, © primeiro deles foi o da retengio daquelas categorias basicas que tematizam 0 processo de produgio e reprodugiio das concigdes materiais, presentes na teoria do valor-trabalho elaborada originalmente por Marx®, Seguindo-se a esse procedimento, também foram retidas, no interior da andlise hist6rica do desenvolvimento, do capitalismo, aquelas categorias que, sem fugirem ao rigor interno da teoria, sto passiveis de deslocarnentos, ampliagies & flexibilizagdes, necessdries ao tratamento de novas probleméticas postas, pela dindmica © complexidade do capitalismo deste final do séeulo XX. Tratamos, no caso especifice, das quesiées © formulagdes tedricas © hist6ricas relativas A constituigaio © as priticas sociais, 3. Ver Marx, O Cepital, livre 1 (1980), em especial cap. I item 4, O fetichismo da mereadoria: seu segredo. Ver, ainda, sobre a teoria do valor-iraballho, Rubin, A feorta marxista dy valer (1980), aT das classes; &s configuragdes contemporaneas das crises do capital; aos processos tecnicos € politicos de enfrentamento dessas crises, além da emergéncia de novos modos e formas de dominio, exploragio, subordinagao © resisténcia, presentes nos confronttos entre as classes fundamentais. Foram esses procedimentos que nos permitiram privilegiar as categorias de crise, cultura e hegemonia no tratamento do objeto de estudo, A potencialidade heuristic dessas categorias no repousa na capacidade que elas tém para explicar as leis gerais do desenvolvimento do capitalismo, mas na capacidade gue tém de operar mediagdes que permitem tratar a empiria da vida social, identificando sua génese, conexdes e vinculos com a totalidade social. Aqui, as refcréncias essenciais so as _mudangas no papel do Estado, a significagao econdmica ¢ politica das grandes cor- poragdes produtivas transnacionais, os processos de reestruturagio produtiva ¢ seus impactos no mundo da produgao, além das novas modalidades de controle do capital sobre o trabalho. Nesses termos, 0 papel mediador de tais categorias no conjunto do patriménio categorial da teoria marxista — seja no ambito da critica da economia politica, seja no ambito da teoria politica — permite atribuir aos conceitos de crise © hegemonia © estatuto de categorias analiticas do proceso hist6rico real. sse movimento investigative permitiu, também, definir a questo da formagio da cultura como um. proceso social que estabelece 0 nexo entre crise © constituigio de hegemonia no interior das praticas sociais das classes. Por isso mesmo, a cultura nao se constitui muma categoria de andlise, mas no prdéprio objeto da investiga 10 te6rica e hist6rica aos anos 20, retanto, foi a remi particularmente & crise de 1929, que nos permitiu aprender o debate sobre as crises do capital, bem como as polémicas sobre ‘05 processos de reestruturagiio/esgotamento da dominagdo burguesa. Cenério de_um conjunto de questées teéricas e politicas, as discussdes que se seguem aos anos 20 sio referentes & capacidade que tem o capital de superar suas crises, As novas formas de 28 organizagio/desorganizagio do movimento operdtio © a0 papel sumido pelo Estado no processo de ultrapassageth do capitalismo concorrencial para 0 capitalismo monopolistat Do ponto de vista politico, o debate, ap6s a I Guerra Mundial, € polarizado pelos tedricos da social-democracia e da Internacional Comunista. Os primeiros viam, nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo, uma possibilidade de estabilizagzio econdmica, porque criadas as bases para uma democracia politica © uma via pacifica de transig%io ao socialismo, Por sta vez, os reformistas, tendo por expoente Bernstein, atribufam as reformas um carder cumulative de conguistas em favor do proletariado, © que, igualmente, permitiria a transigao para 0 socialismo’, J4 0 pensamento da Internacional Comunista, oscilando entre teses catastrofistas efou voluntaristas, vislumbrava os anos 20 como palco de uma crise geral do capitalismo ¢ que propiciaria © surgimento de uma revolugao nos moldes soviéticos. Fortemente influenciados pelo pensamento economicista ¢ fatalista, que pre- valeceu no seio da I Internacional, os principais idedtogos do perfodo® acreditavam que o desenvolvimento das forcas produtivas levaria a um agucamento dos conflitos de classe, determinando a irreversibilidade de um colapso do capitalismo c, conseqitente- mente, a vitéria da revolugdo proketiti Essa remissio permitiu a reapropriagao de algumas questoes classicas, como € 0 caso das indagagdes sobre as crises econémicas do capital © sobre os processos sociais e politicos por elas deflagrados. Em especial, as possibilidades de reestruturagio eco- ndmica, de recomposigio das bases do dominio burgués, além da ago politica das classes trabalhadoras no processo de enfren- tamento das crises, Submetida a um processo de atualizagéo histérica, que tem como parimetro o capitalismo deste final de século, a investigagio 4. Sobre as crises do capital, ver Alivater, “A erise de 1929 © o debate sobre 1 teoria da crise” £19893:70-133) ¢ Marrama O politicn © ax transfarmages (1990), 5. Sobre 6 jpensamento da soclal-democtacia, ver “O markismo na epoca da Segunda Internacional.” in Hobsbawm (oFg.), Hivwiria de: marxismo, 1982, vol. th 6. A principal reFeréncia do marxismo evolucionisia & Kaotsky. 29 foi encaminhada no sentido de responder as seguintes questi qual a natureza da crise econdmica que se inicia nos anos 70? Como © capital esté enfrentando essa crise? Sob que condigdes a burguesia tenta reciclar as bases da sua hegemonia? Qual é a estratégia das classes trabalhadoras no enfrentamento dessa crise mareada pela ofensiva da burguesia internacional? A diferenga entre essas formulagdes © as dos anos 20 pode ser tratada sob duas éticas. A primeira delas remete as elaboracées construfdas no seio da social-democracia ¢ & relativa & estabilizacio econdmica e politica do denominado capitalismo organizado, Sua ervengio estatal como forma de principal caracteristica & a corrigir os desequilibrios econémicos, de que ¢ exemplo a pre- servago dos salérios com objetivo de viabilizar 0 consumo, amparada na experiéneia Keynesiana, vido a compor 0 chaniado pacto fordista. Tais indicagbes, nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo, guardam estreita conexdo com as contradict vividas pela social-democracia, nos paises de capitalismo avangado, de que & exemplo a crise do Welfare State. O segundo aspecto refere-se a configura capital, nos anos 10 © 20, como preniincio de crise geral do modo de produgdo e do sistema politico. Ao identificar a crise como sendo a ante-sala da revolug’o, 0 pensimento veiculado pelos ideslogos da I Internacional supunha a politizagdo mecinica dos processos econémicos. Ora, além da radical diferenga entre 0 contexto histérico das sociedades orientais e ocidentais (Gramsci, 1988b:74-75), nas tres primeiras décadas deste século, a crise contemporanea ¢ fundamentalmente afetada pelos deslocamentos geopolitics do capital, cuja principal caracterfstica € a sua natureza globalizada. Sssa € a razto pela qual estaria fora, do quadro de referéncia desta crise, a hipétese de crise geral Ampliando ainda mais os tragos distintos das crises, podemos destacar outro elemento, radicalmente diverso: & que, nesta crise, a burguesia trata o processo de reestruturacde econdmica sobre © leit de uma universalizagio da sociabilidade capitalista, vul- garmente pensada como o fim da histéria, em fungito da débaete do socialismo. real 30 Em outros termos, os paradigmas do. reformismo e da revolugdo insurrecional, tipicos dos anos 20 € 30, estiio neste momento destituidos de qualquer possibilidade histériea na ordem mundial contemporanea, “nao porque esta tenha se jmunizado & crosao das suas estruturas fundamentais, mas porque deixou para tras as condigdes que, noutro tempo, poderiam tomar eficazes aqueles paradigmas” (Netto, 1993:52), Diante desse quadro, torna-se imperative conhecer © perfil da atval crise do capital e os seus impactos sociopoliticos na ordem societal vigente. Nao se trata de pensar estes tempos de crise como esbogo de uma etérea nova ordem social, to a0 gosto de alguns marxistas envergonhados. Ji que os pilares do desenvolvimento do capitalismo — a propriedade privada dos mneios de producHo fundamentais, a socializagao da produgao © @ apropriagdio da rigueza produzida — continuam viabilizando 0 processo de reprodugao, € no minimo, falacioso fazer referencias uma nova ordem, Por isso, de amtemao, recusamos @ hipétese de que as mudangas ocorridas na sociedade contemporanea — no curso de visiveis inovagdes nos modos © formas de gerir as contradigbes sejam indicadoras da perenizagio da ordem burguesa, Felo contrario, trata-se de uma conjuntura de trinsigao e, como tal, portadora de um conjunto potencial de iniciativa politicas, capazes de promover mudangas, A rigor, este & um periods de disputas politicas em que a burguesia, no leito da crise, investe na perenizagio de uma sociedade baseada no mercado ena democracia dos livres proprictirios, contrapondo-se as lutas das classes. subalternas. Por isso, € imprescind{vel identificar, com base no proceso histérico real, qual o locus dos atuais conflites & controntos de classe. Isso porque, na atual conjuntura, os tradicionais espagos de conflitos de classe, em geral afetos a esfera do mundo do trabalho e As priticas institucionais de controle social, também. se ampliam. E no curso da ampliagio das esferas de conflito que a correlagio de ‘forgas entre as classes alarga-se para o Ambito da formagio cultural, isto 6, da construgio de outras formas de 31 racionalidade, da socializagdo de valores, informagoes © visdes do mundo e da sociedade, como uma condigao para a formagao de subjetividades coletivas, necessdrias & adestio das classes a um projeto econdmico, social, politico e cultural que consolide a hegemonia de uma classe. Nesses termos, a claboragio teérica de Gramsci forneceu ox fundamentos te6ricos, politicos & historicos desta discussi0 ao incorporar uma determinada concepgao da relagdo entre a eco- nomia e a politica No que diz respeito ao tema das erises, Gramsci tem uma formulagéio bem particular. -Afirma Portantiero que “para Gramsci € a presenga das massas como sujeitos de ago © que definiré os precisos encaminhamentos das crises, dos projetos revolucio- narios € das iniciativas de recomposigao capitalista, em um movimento conceitual que permite superar criticamente (...) 0 objetivismo e 0 voluntarismo presentes na tradi socialista”” (Portantiero, 1987:10). Na realidade, em face das idéias difundidas pelas I © II Internacional © da frustragio da revolugio proletéria, Gramsci teoriza sobre a capacidade que o capitalismo demonstrou para recompor sua dominagiio, com o objetivo politico de entender 0 fracasso da revolugao proletéria no Ocidente e 0 de pensar alternativas politicas para superar a ordem do capital. Segundo Portanticro, a teoria da hegemonia € a teoria da crise aparecem na obra de Gramsci como temas complementares € centrais de um enfoque que privilegiara a relagio de forgas entre as classes no processo de superagao da ordem capitalista (1987243). Para Gramsci, a construgio da hegemonia do grupo dominante ho se restringe as relagdes de dominagao ¢ exploragio no terreno da economia, mas remete a formagao de uma cultura que tora hegemonica ¢ universal a visto de mundo de uma classe que, sendo dominante, é também dirigente no interior da prdpria classe e diante das fragées majoritérias das demais classes. Essa concepgio nfo subtrai a economia da politica, apenas Ihe atribui uma relagao nao determinista. Segundo Gramsci: “em- 22 bora a hegemonia seja ético-politica, ela deve ser também eco- nomica, baseada necessariamente na fungdo decisiva’exercida pel ‘upo dominante no miicleo decisive da atividade econdmica’ (Gramsci, 1978:178). Ora, esse & um vetor analitico fundamental no tratamento do objeto desta pesquisa, pois nos permite qabalhar a relacdo entre crise econdmica e agdo politica de classes no ambito da constituigdo da hegemonia, longe da tradigio economicista e da ttadigio politicista Critico sistemdtico das posigdes economicistas, Gramsci nio atribui as crises cconémicas © papel de desagr dominante, Ble adota a concepgao marxiana da tratamento da telagdo entre crise econdmica e crise politica que reside a originalidade do seu pensamento sobre o Iugar das crises ha constructo da hegemonia. Para ele, ha que ser feita a distingiio entre as crises. or is. de longa duragao, © as conjunturais, como meio de identificar as suas determinagdes estruturais (de natureza histérico-social), © qualificar as mediagées potiticas Estas dltimas permitem observar em que medida, numa determinada Tormagdo social, uma crise econdmica cria as bases objetivas para a emergencia de uma crise de hegemonia (CF. Gramsci, 1978:187- 190). Dai porque, ele afirma: “pode-se excluir que, de per si, as crises econémicas imediatas produzam acontecimentos fundamen- tais: apenas podem criar um terreno favorivel A difusio de determinadas maneiras de pensar, de formular e resolver as questées que envolvem todo © curso ulterior da vida estatal” (Gramsei, 1988b:52) Nos textos clissicos de critica da economia politica’, as crises periédicas do capital so consideradas inerentes ao modo 7. Cabe ressaltar que, na obra de Marx, a base conceitual que permite uma Ieitura das erises do capital 6 posta nos livyos Ile HI de O Capital © nos Grinarise {quando ele discute a lei fendencial da queda da taxa de veros ¢ trata os esquemas le reprodiugao, Alem dos textos marxianos, para discutit tema, wtilizamos as obvas de Rosdolsky (1989), especialmente Partes Va Vik; Mandel, A ertse lo capital (1990); Alwvater (19898: 79-133). 33 dle produgao capitalista. Blas se inscrevem no processo de repro- dugio social, cuja tendéneia é manter — sob tensdes ¢ desequi- Ifbrios permanentes — 0 proceso de valorizagiio como condigao da acumulacdo do capital Segundo Altvater, na obra de Marx, nao € passivel determinar uma teoria especifiea da crise. Esta tiltima & concebida, sobretudo, “como agugamento © regulagio de contradiges que resulam do movimento do valor”. E complementa: “a teoria da crise sé tem sentido no contexto de uma teoria da acumulagao do capital” (1989483). As principais controvérsias acerca do pensamento de Marx sobre as crises do capital estao reunidas em trés miicleos de problematizagio: a) os limites A rentabilidade do capital; b) dimensdes restritas do consumo; ©} a superprodugdo de capital ¢ de mereadorias*, Quanto ao momento desencaceador das crises, as posigdes se polarizam entre os que as identificam nos limites do consumo (teses de subconsumo) e aqueles que as identificam nas condigdes de superprodugao, pelo aumento da composigao orginica do capital Segundo Rubin, as crises “so hiatos dentro do proceso de reprodugao social” (1980:31), determinados pelo proprio equilibrio instavel que se di entte © proceso de produgdo material © as condigdes de realizagio do hucro, no interior da I6gica da acumulagao do capital Como referide por Marx: “Nao sio idénticas as condigies da exploragio imediata € as da realizagio dessa exploragao” (19914281), Enquanto a primeira remete a produgio do sobre- trabalho, no Ambito do desenvolvimento das forgas.produtivas, a segunda implica tanto a capacidade de consumo da sociedad como os modos e as formas por meio dos quais os diversos ramos de atividade produtiva se articulam. E, portanto, a possi- bilidade de ocorréncia de descompassos entte esses dois momentos que cria as bases objetivas para a emergéncia de cris 8, Sobre o tema, ver Altvater (19893:95-127), 34 Segundo Marx: “As primeiras t8m por limite apenas a forga produtiva da sociedade, © as ltimas, a proporcioNalidade entre 08 diferentes ramos © © poder de consumo da sociedade. Mas esse poder nio ¢ determinado pela forga produtiva absoluta, nem pela capacidade de consumo absoluta e sim condicionada [sic] por relagées antagGnicas de distribuigdo, que restringem o consumo da grande massa da sociedade a um minimo variavel dentro de limites mais ou menos estritas. Além disso, limita-o a propensito ® acumular, a aumentar o capital e a produzir mais-valia em escala ampliada, E a lei da producdo capitalista, imposta pelas revolugées constantes nos prépries métodos de produgdo © pela depreciagto consequent do capital em funcionamento, pela luta geral da concoréncia e pela necessidade de melhorar a produgio ede ampliar sua escala, para a empresa simplesmente conservar-se, niio perecer” (1991a:281). Discutindo as crises econdmicas do capital, Mandel afirma que “o modo de produgéio capitalista 6, ao mesmo tempo, produgzio mercantil generalizada © produgdo para o hucro. das empresas aperando independentemente uma das outras, mas no podendo existir isoladamente. E, além disso, um sistema yoltado para a producio de uma massa incessantemente crescente de mais-valia (de sobretrabalho) © um sistema em que a apropriagao reat dessa mais-valia subordina-se a possibilidade de vender realmente as mercadorias que contém tal mais-valia, pelo menos, a0 seu prego de produgdo (incluindo © Iuero médio), ou a pregos que permitam realizar superlucros” (1990209). Articulando necessidades de diversas ordens, 0 movimento da mereadoria consubstancia as bases do processo de realizagiio © © faz sob um estado de equilibrio instdvel, marcado pela necessidade de wma relativa sincronia entre as empresas dos diversos ramos de producao (0 qué, quanto © quando produzir determinadas mercadorias), pela organizagdo sociotéenica da pro- dugdo enquanto produtora de wna massa globat de mais-valéa {aumento da produtividadefinovagdes tecnolégicas/reestruturagao produtiva) © pela manutencao da solvabilidade requerida peta venda das mercadorias (salériosferédito a0 consumidor), 35 Fi essa orquestragdo que cria as condigées objetivas para pensar-se as crises cconémicas, nfo como momentos de colapsos da reprodugio ampliada do capital, mas como o mecanismo através do qual a lei do valor se impde (Mandel, 1990:212) Para Mara, “as crises nao sao mais do que solugdes momentineas € violentas das contradigSes existentes, erupgdes bruscas que restauram transitoriamente 0 equilibrio desfeito” (19914:286). Por conseguinte, cabe-nos admitir que o proprio equilibrio instével — entre © processo de produgiio material ¢ as condigses de realizagao do Iucro no interior da Logica da acumulagao do capital — permite em. diferentes fases do desenvolvimento capi talista, que 0 ciclo de ‘eprodugao seja afetado por descompassos inerentes ao proceso de realizacao’. Segundo Mandel, “contrariamente as crises pré-capitalistas (..) que so quase todas de peniria Fisica de subprodugio de valores de uso, as crises capitalistas sio crises de superprodugdo de valores de troca, Nao € porque ha muito poucos produtos que a vida econémica se destegula, F porque hé a impossibilidade dle venda de mercadorias a pregos que garantam © lucro médio (..) que a vida econdmica se desorganiza, que as fabricas fecham aS suas portas, que os patrdes demitem e que a produgio, as rendas, as yendas, 09 inyestimentos © os empregos caem” (1990:210). Isso ocorre porque. no modo de producdio capitalista, “o processo de produgio material, por um lado, © 0 sistema de relagdes de produgao entre as unidades econdmicas individua privadas. par outro, nao esto ajustados um ao outro de antemao, Eles devem ajustar-se em cada etapa, em cada uma das transagées isoladas em que se divide formalmente a vida econdmica” (Rubin, 198031). Tais ajustes/desajustes, que se manifestam na queda da taxa de lucros ¢ no proceso de superprodugio de mereadorias, também Incluem outras mediagSes catalisadoras das crises que podem ter 9. A cespaito da eelagin entre produgio © realizagao da mais-valia, que esté nna base da discussfo marxiana dav crises e om torso da qual so desenvolveram algunas polémicas, consullar Rosdolsky (1989: 491-354), especificamente Parte VUl, © Mandel (1990), especialmente cap. XXY. 36 origem no “Ambito da produgio, da circulagiio, da concorréncia © da luta de classes” (Mandel, 1990-213), 4 Todavia, esse reconhecimento no & suficiente para pensar-se crises de modo genérico. Mandel, por exemplo,tentende. que ha necessidade de. qualificar hist6rica e conceitualmente as crises Segundo ele, “para compreender © encacleamento real entre a «eda da taxa de Iucro, a crise de superprodugao e 0 desenca- deamento da crise, devemos distinguir os fenémenos de aparcei~ rento da crise, seus detonadores, sua causa mais profunda e sua fung&o no quadro da légica imanente do modo de producio capitalista” (1990:21 1). Discutindo a referida lei, Marx afirma que “a tendéncia jadual, para cair, da taxa geral de lucro € portanto apenas expressdo peculiar ao modo de producdo capitalista, do progresso da produtividade social do trabalho. A taxa de luero pode, sem duivida, cair em virtude de outras causas de natureza temporaria, mas ficou demonstrado que & da esséneia do modo capitalista dlc _produgio, constituinde necessidade evidente, que, ao dese volver-se ele, a taxa média geral da mais-valia tenha de exprimi em taxa geral cadente de Iucro” (19914:243). Mas, como afirma Altvater, seas crises se relacionam ao movimento do valor, no se pode deixar de perceber que se trata de uma relagio social. “Daf, se deduz que as crises nunca sio exclusivamente econémicas mas que sio sempre sociais e politicas” (1989a:83). Por isso mesmo, € impossivel operarmos tematizagdes sobre as crises, exclusivamente, com base em uma teoria econdmica mesmo que reconhegamos a existéncia de uma base técnica inerente a0 movimento do capital, na deflagragaio das crises. Nessa linha de civefniv © em face do objeto da pesquisa, interessa-nos, principalmente, afirmar que as crises econdmicas so inerentes ao desenvolvimento do capitalismo e que, diante dos esquemas de reprodugao ampliada do capital, a emergéncia de crises € uma tendéneia sempre presente. Por outro lado, fugindo de uma perspectiva economicista, também nfo se trataria de trabalhar com uma teoria politica da crise, mas de aceitar a hipotese de que a deflagragao e 0 37 enfrentamento das crises é um processo no qual esto implicados a acumulagao do capital ¢ a agao politica das classes. Assim, 0 panorama da crise dos anos 80, © que se prolonga na presente década, traria no seu bojo a impossibilidade de pensarmos o enfrentamento da crise econémica sem a agudizagao dos processos politicos, Tal afirmagio reitera © nosso entendimento de que os periodos de crise so cendrios de reorganizagoes de natureza econémiea, social ¢ politica que, fatalmente, expressam iniciativas © int sses de classes, Em outros termos: Bosto que as crises econdmicas nfo se transformam mecanicamente em alavancas desagregadoras do bloco dominante — ao contririo, podem até favorecer novas formas de agregagio de fragées das classes dominantes —, isso significa que o enfrentamento das crises econdmicas depende da capacidade das classes de fazerem politica, Isto &, de reestruturarem progres- sivamente & constru hegemonia ameagada ou de tecerem as bases para jo de uma outra hegemonia. Por isso, as crises do capital — expressiio das contradigies inerentes ao proceso de acumulagio — nao tm o poder de deflagrar mecanicamente uma crise de hegemonia. E por impli: carem a emergéneia de processos politicos que os periodos de crise podem conter as condigées para reciclar as bases da hege- monia do grupo dominante ov esgarya De dimensées politicas mais ampliadas, no nivel superes- utural, uma crise de hegemonia caracteriza-se pelo enftaqueci- mento da direg%o politica da classe no poder, ou pela perda do seu poder de diregiio © de manutengio do consenso hegemdnico de classe. A igor, nas situagdes de crise, € possfvel haver © desen- cadeamento de_um conjunto de iniciativas por parte das classes fundamentais. Essas iniciativas, no entanto, apenas evidenciam simag®es de contronto de. interesses imediatos. Mas, apart destas disputas localizadas, as classes podem vir a formar frentes consonsuais de intervengao que aleancem o campo da luta hege monica. 38 Nessas condligdes, as classes dominantes podem reciclar as bases do seu dominio, erigindo também novas formas Ye obtengio do consenso necessario 4 reestruturacdo da sua hegemonia, ou mesmo exercitar praticas coercitivas para neutralizar a emergéncia Uc iniciativas de outras classes que ameacem a sua hegemonia. De outro modo, dependendo do nivel de organizagao politica, em situagoes de crise, as classes subalternas tambem podem ampliar suas bases organizativas, constituindo-se como classe nacional para obter © consenso na classe ¢ junto a outras fragdes de classes, que € a sua prerrogativa para construir uma nova hegemonia. Dessa forma, as classes subalternas criam as condigdes © partir das quais podem esgargar as priticas de dominagio © a ditecao do grupo dominante. Sao estes dois movimentos — rearticulagao das classes no poder (que tém 0 dominio econémico) e articulagzo das classes que lutam pelo poder hegem@nico (classes subalternizadas) que caracterizam o confronto de classes & as disputas por projetos societais, em contextos de crises econémicas de natureza orgdnica A leitura de Buci-Glucksmann sobre o tema é a de que, ha evolugio da teorizagio de Gramsci sobre a revolugdo passiva, existe uma verdadeira teoria da transigao. Ela toma como referencia as questées do ressurgimento © do americanismo para formular a tese de que “as formas de hegemonia nao tém o mesmo contetido” para as classes dominantes e subalternas, “(..) nao so idénticas quando se referem as formas de revolugio passiva das classes dominantes no contexto econdmico ¢ politico, ou quando programam um process de socializagao da politica capaz de assegurar uma revolugio cultural de massa” (1978:123). Razio por que, segundo interpretagdo da autora, na transigao, “ocorrem duas guerras de posigao: a da classe dominante nas suas diversas formas de revolugao passiva, a dissimétrica das classes subalternas, que lutam pela sua hegemonia © por uma diregio politica da sociedade” (1978:123), Bysa discussdo nos permite extrair dois elementos funda- mentais: a) a forma hegemonia nao remete a uma mera inver- soltroca dos sujeitos que detém o poder; b) 0 proceso de constittigdo da hegemonia € radicalmente distinto no que diz 9 respeito A pritica das el thadoras. ses fundamentais, capitalistas traba- Por isso, reafirmamos que, em perfodos de crise, é a capacidade das classes fazerem politica, isto é de construirem formas de articulacao e objetos de consenso de classe, que define ‘as tendéncias do processo social F, portanto, na materialidade do encaminhamento de propostas qualificadoras-de uma diregio politica que se definem as possi- bilidades de formagdo do consenso na classe e, conseqitentemente, as bases sob as quais se desenvolve um processo politico-cultural de reestruturagiio da hegemonia do capital ou a constituigio de uma nova hegemonia das classes subalternas. Altvater, em seu estudo a respeito das teorias marxistas das crises, atirma que, “come pressuposto para um desenvolvimento continuo, depois da crise deve nascer — a partir da reestruturagio — um nove projeto hegemOnico, A hegemonia assim entendida, portanto, ¢ posta em discussiio pela crise, mas ela se reestrutura © se reproduz justamente através da crise na forma de revolugio passiva” (1989a:95) Embora Altyater ndo discuta a questéio da hegemonia, en- quanto proceso a ser conquistado pelas classes subalternas, seu argumento 6 bastante prximo Aquele desenvolvide por Gramsci, em seu brilhante ensaio denominado “Americanisme © fordismo”, quando discute 0 fordismo no leito dos mecanismos de contra tendéncia & queda da taxa de lucro @ qualifica 0 americanismo como um movimento constitutive de hegemonia (Gramsci, 1988a). Mesmo pertencendo a periodos ¢ tradiges teéricas diferentes, dentro do marxismo, os argumentos de Gramsci e as interpretagoes de Altvater so parametrados pela crise de 1929 ¢ ambos tratam clas estratégias que viabilizaram a superagio daquela crise, a0 mesmo tempo em que formavam uma nova cultura’. 1, Na realidade, a crite de 1929 impticou um conjunto de mudangas estrutursis, ‘marcadas pela instauragto de um novo padrio de acumulagio, que exigiu transfor mages nfo apenas nes métodes © processos de ‘wabalho, mas prineipalmente na iestie da forga de Wabalho em pro! da formaglo © eonstituigao de trabalhador-con Sumidor, que 0 sujelto social xa socledade (ordista, 40 Segundo Portantiero, esta & inclusive, uma questio politi- camente decisiva no pensamento gramsciano acerca das crises: € argumenta que 0 micleo analitico da discussio de Gramsci sobre © assunto “6 a preocupagio por determinar a forma dp tendéncias que a crise gera, para estudiar a capacidade de recom- posigdo que o sistema possui ¢ que as crises estimulam” (1987:52) Esse foi 0 caso do fordismo no segundo pos-guerra: ao mesmo tempo em que assimilava um conjunto de mudangas técnicas necessérias ao restabelecimento do processo de acumu lagdo, também construia uma nova sociabilidade do trabalho jariado, envolvendo mudangas nos padrées comportamentais los trabalhadores, difundindo valores ético-morais © mobilizando ‘bes institucionais. Desse modo, 0 fordismo, base da hegemonia do americanismo, expressou um projeto mais amplo do que o de criar novos modes de organi: do trabalho, viabilizadores da reestruturagio pro: dutiva, apds a 11 Guerra. No bojo das suas priticas, ele procurou “criar uma nova forma de sociedade e um Nove Homem, com as qualidades morais ¢ intelectuais exigidas por essa nova socic- dade” (Clarke, 1991:129). Assim, falar de hegemonia “6 tratar de uma agtio que atinge hao apenas a estrutura econdmica € a organizagao politica da sociedade, mas que também age sobre o modo de pensar, de conhecer, © sobre as orientagies ideolégicas ¢ culturais, presentes has propostas € nos discurse das classes” (Tavares de Jesus, 1080:4) F nesse sentido que aqui: wrataremos historicamente os perfis econémicos ¢ politicos da crise dos anos $0, suas particularidades, no Brasil € as iniciativas que, tanto no ambito da economia como no da politica, evidenciam quais os eixos de rearticulagaofresisténcia das classes fundamentais diante da crise, Contudo, admitimes, desde jd, que a discussio est centrada no Ambito da formagao da cultura, aqui entendida como componente fundamental ‘da hegemonia, Marco de profundas mudangas ecanémicas, politicas ¢ sociais, 4 década de 80 — perfodo destacado neste estudo — sera abordada com base em tres aspectos fundamentais, que the imprimem, 41 caraeteristicas proprias: a) as mudangas na ordem econdmica mumnatial € seus impactos nos patses centvais e periféricos: bY as mudangas no mundo do trabatho, como expressdo das necessidades de reestruturagdo produtiva no leito de wna nove conjuntura politica critica: ©) as bases econdémicas, politicas e culturais que marcam @ rearticulacdo da burguesia internacional, na reestru- turagao da sua hegemonia. Esses aspectos, tematizados numa conjuntura de crise, nos permitiram qualificar os anos 80 como um “perfode de crise organica”, no qual a burguesia terta reestruturar a sua hegemonia, no interior do processo de correlacdo de forgas entre as classes. Considerando- essa problematizagio, nossa hipotese 6 a de que as teneléncias da seguridade sociad brasileira, a partir dos anos 80, expressam 0 movimento de formacdo de uma cultura politica da crise, que € marcada pelo pensamento privatista e pele constituigdo do cidadédo-consumidar. Tal hipdwse nao submete a discussie sobre as tendéncias da seguridade social brasileira a ma relagio de causalidade entre crise econdmica e crise da seguridade. Tampoueo, constatagio dos nexos entre a constituigao do trabalho assalariado, a necessidade. de reproducdo do trabalhador coletivo e a gestae estatal e privada da forga de trabalho, no contexto mais geral da acumulagao capitalista. © essencial ¢ a problematizacao da seguridade social em tempos de crise. Isso significa discuti-la no contexto das medidas. de enfrentamento dla crise que, invariavelmente, pasar por rees- iruturagdes na base produtiva, pela desvalorizagao da forga de uabalho © pelo redirecionamento dos mecanismos de regulagio estatal. De igual modo, significa reconhecer que as conseqiiéneias objetivas dlessas iniciativas visando 0 enfrentamento da crise apontam para a penalizacio dos trabalhadores, principalmente porque implicam desemprego, redugiio dos saldrios € cortes de despesas com seguridade soci E desse modo que, ao lado das medidas de ajuste ma condmico, as mudangas no sisiema de seguridade social brasileiro constituem 0 maior destaque da agenda das reformas liberais, que tem como principals formuladores. as organismos 42 internacionais'', os empresiirios vinculados ao grande capital © hurocracia estatal a cles associada. ‘No Brasil, a principal proposta do grande capital, em rela 4 previdéncia e a asistencia, € a defesa do principio 'da univer- sulisaegdo, mediado por dois mecanisinos: 0 mercado © a solida- ricdade entre classes antagénicas, constituindo uma modalidade de associagio entre mereantilizagio/assi social iencializagio da seguridade Para implementar esse projeto, foi necessaria a construgio de algumas préticas que comegam a ser implementadas em meados da década de 70, ainda no periodo da ditadura militar, sendo objeto da ofensiva dos trabalhadores nos anos 80. Entretanto, desde o final desta década, 0 grande capital opera novas investiclas no sentido de refuncionalizar a seguridade de acordo com seus interesses, no bojo da cultura politica da crise, A rigor, no Brasil, pés-1964, assiste-se a uma ampliagio dos sistemas de previdéncia e satide, para atender ao crescimento da massa de trabalhadores assalariados, em decorréncia do cres- cimento experimentado pela economia brasileira no perfodo. de 1967 a 1979. Inegavelmente, essa ampliagio da seguridade ponde, também, pela necessidade de legitimagio politica dos governos militares, mas é a relagho existente entre as fases de desenvolvimento do proceso produtivo, a constituigio do traba Ihador coletivo, as formas de produgio de mais-valia © os me- canismos de reprodugao do salariato, que ampara a Iégica da sua expansiio. Espelhados no fordismo periférico de que fala Lipiew. (1988:92-99}, 0 Brasil dos anos 70 experimentou o crescimento da stta economia, absorvendo, nos setores produtivos funclamentais, praticas relativas & gestito dla forga de trabalho, que se assemetham aguelas dos paises desenvolvidos. Em contrapartida, a periferia 11, Segundo Lountes Sola, “o peso das agéncias de finaneiamento internacTon nas deeisoes econdmicas internas de eas pats, aumenta na razao diveta da dependencia dlaqusles em relagio Be Fontes de Finaneiamenta internacional © & posigdo que ocupam nas relagbes internacionais que so de forga ¢ de cooperacde (1993:239), in Sola Lotorgh Estado, mercado © democracia, 43 desse sistema pauperizou-se, deixando alargado 0 fosso entre © trabalhador assalariado da grande empresa © os demais trabalha- dores precarizados! Esse fato teceu as bases para a associagiio, que viria_a acontecer, na década de 80, entre mercantilizagio/assistencializagio da seguridade social, agora tratada como uma necessidade pro- vocada pela crise que, sob a diregao do Consenso de Washington, encontra nas classes dominantes brasile as amplo apoio, Contudo, & necessério reconhecer que, nos anos 80, emerge no cendrio politico brasileiro 0 novo sindicalismo, cuja caracte- ristica principal é a politizagdo das demandas dos trabathadores, assalariados. Hé, portanto, uma relagio entre 0 crescimento dos setores produtores de capital intensive e a ampliagao do movimento sindical Reconhecido como sujeito politico pelo préprio grande capital, © sindicalismo dos anos 80) inaugura a priticn das negociagdes coletivas entre grandes sindicatos e grandes empresas, consolidando © processo de fordicizagdo das relagdes de trabalho no Brasil. Contando, pois, com esse mecanismo, os trabathadores do grande capital enfrentam o processo de desvalorizacao da sua fora de trabatho — inerente ao processo_de_ reestruturagio produtiva — exigindo das empresas a criacdo de mecanismos agenciadores de heneficios sociais, vinculando-os as condigdes de venda da sua forca de trabatho Dialética e contraditoriamente, esse movimento também de~ terminow um outro perfil na seguridade social brasileira, marcado pela ago das empresas e do mercado no agenciamento de servicos de satide © previdéncia, construindo uma prética em que a seguridade ¢ a produtividade do trabalho se resolvem na moderna 12, Note-se que esta é uma tendéncia que se acentua aos anos 90. No Brasil, fos dados da PME/IBGE, em 1994, atestam © aumento da precariedade do wabalbo. © percentual da popalagao ocupada, wabalhando de 40a 48. horas semanais © auferindo rendimento inferior a um salario minimo, subi 11,L%, Jo percentual de trabalhadores, com carteia assinida, eaiu de 56%, em 1993, para 49%, em 1994 Destaque-se, ainda, que houve exescimento nos registros de trabalhadores por conta propria (Conjuacura Feondmica, ov. 94: Gazeta Mercantil, 27.10.98, 44 empresa capitalista, como produto de acordos enige grandes em- presas © grandes sindicatos Presencia-se, no ambito politico, o surgimento de outra modalidade de socializagao da reprodugiio da forga’ de trabalho, na medida em que ela passa a ser suprida pelas empresas privadas © fica restrita a algumas categorias profissionais de trabalhadores, JA sob a ética do grande do seu pr ital, observa-se a implementa eto neoliberal no contexto da constituigio de uma cultura politica da crise. E verdade que o capital absorve as demandas dos trabalhadores por beneticios sociais; mas, ao faz8-lo, procura imprimir uma direro coerente com as necessidades do processo de acumulagio, Isto é, trata tais demandas como sina- lizagdes de um consenso entre empresirios © tabalhadores sobre a necessidade de privatizagio da seguridade social no Brasil Negando, implicitamente, a intermediagdo € © agenciamento do Fstado, 0 capital absorve as demandas dos trabalhadores, no interior do proceso de formagdo de uma cultura do consentimento da privatizagiio da seguridade — em especial na. esfera da previdéncia © saiide —, ao mesmo tempo em que difunde © socializa a necessidade de ampliagdo dos programas de assisténcia social, voltados para os pobres, procedimento esse coerente com @ sta concepgaio do Esta¢o minimo e com a necessidade de reduzir os impactos sociais dos ajustes ecanémicos. ‘Como justifica Joan Nelson (1993:358), um dos intelectuais do Consenso de Washington, trata-se de “uma abordagem mais ampla para reduzir as tensdes entre a liberalizacio econdmica & politica e estimular a consolidagio de ambas, Ao estabelecer-se uma economia de mercado, a limitagao dos riscos assume a forma de redes de seguranga social para os perdedores” No Ambito da seguridade, a materialidade dessa praposta se dé mediante © atendimento das necessidades dos trabalhadores precarizados © de menor remuneragio na escala salarial ou, mesmo, dos excluidos do processo de assalariamento, com a criagdo simulcanea de sistemas privados de previdencia, destinados aos trabalhadores do grande capital 45 Podemos, pois, afirmar que 0 micleo basico do movimento da seguridade no Brasil, ent tempos de crise, € a assistencializagao da seguridade social brasileira, qu movimento de privatizagao. Procura-se gestar uma cultura do americanismo! no bojo de uma ideologia da crise, cujo propdsito € 0 da formagao de novos valores © padres sociais compativeis com as necessidadles do capital, em tempos de rise. Desse modo, as tendéncias da seguridade social brasileira, cm particular ay da previdéncia ¢ da assisténcia, a partir clos anos 80, so determinadas pelas priticas sociais dos trabalhadares assalariados ¢ de segmentos do empresariado vinculados ao grande capital, diante das exigéncias surgidas no processo de enfrentamento, «a crise econdmica, como expresso particular de um movimento geral Assim, as mudangas imprimidas aos rumos da seguridade social brasileira sto, também, determinadas pelos processos de ajustes macroeconémicos, tendo como protagonistas os organismos, financeiros internacionais (FMI, BIRD e Banco Mundial), que so oS veiculadores das indicagoes do Consenso de Washington para os paises do Terceiro Mundo, em que estio ineluidas as recomendagées sobre os rumos da seguridade social brasileira em tempos de crise. No entanto, mediatamente, esas determinagdes podem ser localizadas com base nas mudangas imprimidas no mundo do rrabatho — cendrio du reestruturagio produtiva — posto que a questao da seguridade relaciona-se dliretamente com a reprodugo dia forea de trabalho e com os processos de exclusiio e precarizagao do Wabalho. Por sua vez, essa reestruturagio € 0 focus da formagto de uma civilta, que pode atribuir ds ideologias prdticas, emergentes 13. A referencia no americanismo € felts dentro da tradigIo do pensamento {gramsciano exposto en “Americanismo © fordisino”, Sua wlilizagdo Agu expressa fnosso entendimento acerca do processo de Formagio ua cultura coma 0 cinnente da onstituigio da hegemonia, Como sugere Gilicksmann, 9 modelo americana de hhegemonia define a concepeao de cultura cm Gramsci (Gramsci, 1988a'395-434; Buel-Ghicksmann, 1990;106-1 12), 46 com situagdes de tise, 0 estatuto de uma viséo ingiferenciada de mundo, no contexto mais geral da crise global da sociedade contemporainea, Nesse sentido, a previdéncia © a assist@neid social so consideradas como mecanismos que compéem 0 conjunto das praticas institucionais que interferem no process de constitui gio Uo ttabathador coletivo e na gestio estatal e privada da reprodugdo a forga de trabalho. Se assim for, podemos argumentar que as atuais estratégias sapital — nas quais se inclui a consteugio de uma nove cultura politica — nao se confundem com o velho © conhecide iransformismo, legitimador do poder dit burguesia, part realizar redirecionamentos na intervengio do Estado. uo Pelo contririo, defendemos a tese de que o novo reside no Fao de a burguesia nfo mais querer nem poder exercitar pelo uito este poder. Para universalizar a sua ordem, € necessario formar uma cultura geradora do consentimento das classes — isto & constituidora de hegemonia. a7 Capitulo I Crise econémica e constituigao de hegemonia 1. As mudancas na ordem econémiea mundial Finda a H Guerra Mundial, as economias industrializadas experimentam um longo periodo de crescimento, baseadas no modelo fordista-keynesiano, sob a hegemonia dos Estados Unidos (Harvey, 1993:119), mas que, no inicio dos anos 70, apresenta 08 primeiros © graves indicios de esgotamento. A rigor, ja nos finais da década de 60, as economias centrais comegam a apresentar sinais de declinio do crescimento econdmico, evidenciando 0 inicio da saturagiio daquele padrao de acumulag: A queda das taxas de Iucro, ‘as variagées na produtividade, 0 endividamento internacional © © desemprego séo indicios daquele process, ‘Trata-se, segundo a andlise de Mandel, da emergéncia de uma crise que expressa “o esgotamento da onda longa expansiva que comegou nos Estados Unidos em 1940, na Europa ¢ no Japo em 1948, € durou até 0 final dos anos 60” (1990:13) quando, ent&o, se inicia uma nova onda longa recessiva, carac- terizada por uma taxa de crescimento médio inferior & alcangada nas décadas de 50 e 60. Nos discursos oficiais, a crise econdmica que se inicia nos anos 70, € que se torna mais visivel nos anos 80, é problematizada 49 a partir de fatores externos, como é 0 caso da crise do petréleo de 1973, das lutas sociais pela libertagZo dos povos do Terceito Mundo, do comportamento dos sindicatos etc.! Ora, se as crises “nao so nem o resultado do acaso, nem © produto de elementos exdgenos (...), elas correspondem, a contrario, a légica imanente do sistema, embora fatores exdgenos © acidentais desempenhem evidentemente um papel nas particulari- dades de cada ciclo” (Mandel, 1990:1), como foi o caso da crise do petréleo. Assim sendo, a realidade da crise nfo se mostrou to pontual,, localizada num fator ou Thum conjunto de fatores. Sua duragiio ¢ persisténcia deitaram por terra as visdes ofimistas que aguardavam. sus superagdo com hase na intervengio localizada sobre os supostos fatores detonantes da crise. Sua dimensio generalizada, expressa no movimento de retragio da atividade econdmica em todos os paises capitalistas centrais, confirma exatamente 0 con- trario. Nao se tratando de um acaso, as razSes desse desenlace podem ser pensadas como produto “das transformagdes econdmicas mais profundas que se produziram no curso do longo periodo de expansio” (Mandel, 1990:1 1), identificadas nos avangos produtivos © na revolugdo tecnoldgica que Ihes foram inerentes, € que propiciaram uma maior concentragdo e @ internacionalizagao do capital ¢ da proc Com efeito, a partir do segundo pés-guerra, 0 mundo ca- pitalista presenciou um grande movimento de articulagéo entre as diversas economias, sob a hegemonia do grande capital mo- nopolista norte-americano, que imprimiu & economia internacional © seu padrio de produgio e de consumo. Essa articulagio se processou via intemnacionalizacio do capital, por meio das empresas industriais (ransnacionais, da mundializagzio do capital financeiro ¢ da divisao intemacional dos mereados e do trabalho. |, Sobee o yel das fatores exteraos na deflagragio dh crise. princinalmente 8 questo da crise do petréleo, ver as abservagdes criticas de Belhuzzo e Coutinho (1982:7-8) © Mandel (1990:7-8), 50 Pelo seu peso e caracteristicas, a economia americana asse- gurou uma dinamizagao generalizada de todo © conjunto das economias avangadas no p6s-1945, Entretanto, a economia ame- ricana, a0 mesmo tempo em que avancava em diregio a novos mereados produtores e consumidores, também permitia, no seu mercado interno, a penetracZio de produtos alemaes e japoneses, alimentando a manutengZo do ritmo de crescimento daqueles paises (Tavares e Fiori, 1993:19), Ao influenciar a concorréncia intercapitalista, abria espago para a penetragdo de suas empr na Europa € nos paises periféricos, incentivando, em conseqiiéncia, as disputas pela ocupagao do mereado internacional com a Ale= manha © 0 Japa. Os dois movimentos possibilitaram o fortalecimento tecno- logico © financeiro day grandes empresas européias e japonesas. tas iltimas, numa politica industrial ofensiva, reagi jam & pes Jo dos oligopélios americanos no seu mercado, intensificando esforgos de renovagao tecnolégica nos setores em que a indiistria americana jé havia gerado inovagdes, embora nao pudesse wtili- f-las sem depreciar massas de capital fixo recém-instaladas. Por sua vez. 0 grande capital europe, num movimento de centralizagio ¢ internacionalizagao, no interior da concorréncia intercapitalista, possibilitou a expansio da indtistria européia nos paises periféricos em bases tecnolégicas mais avangadas do que @ empresa americana. Uma das conseqiéneias mais significativas da interacion lizagdo, do ponto de vista politico, residiu no fato de que as Forgas produtivas ultrapassaram os limites do proprio Estado nacional, fato que fo protagonizado pelo desenvolvimento. das empress transnacionais, que passaram a produzir mais-valia si- multaneamente em vérios pafses, esquivando-se do controle d: politicas estatais regionalizadas. Na realidade, os limites da in- tervengdo estatal confrontaram-se com a ruptura dos limites na- cionais operada pelas empresas. multinacionais, que se instalaram em todo o mundo (Mandel, 1990:11-12; Belluzzo © Coutinho, 1982:9-11). Sem controle direto sobre a politica industrial, a de pregos © a de saldrios, o foco da intervengao governamental, para controlar SL 08 ciclos no pés-1945, consubstanciou-se na politica de expansio monetiria e do crédito, sendo esta “a caracterfstica principal da longa fase de expansiio do pés-guerra do ponto de vista do functonamento do conjunto da economia capitalista internacional, provecando 9 aparecimenta de ciclos de erédito parcialmente auténomos com relagio ao ciclo industrial, que procuravam com- pensi-lo” (Mandel, 1990:11), Como as politicas ¢ as instituigdes financeiray continuaram nacionais (Banco Central, moeda, governos), esses ciclos restringiam a0 espago nacional, provocando descompassos no plano internacional, Isto <, cada pais tinha a sua politica de crédito, embora fosse sensivel as mudangas do mercado mundial (Mandel, 1990:12) Ocorre, porém, que a natureza dessas politicas de crédito © de oxpansio da base monetéria determinaram a emergéncia de processos inflaciondtios, posto que, “a longo prazo, a aplicagio repetida de uma politica de expanstio monetéria (..) conduz a uma aceleragiio mundial da inflagdo” (Mandel, 1990:12), Por isso mesmo, * partir do momento em que a inflagio se acclerou em todos os paises imperialistas © levou ao desmo: ronamento o sistema monetario internacional (...), todos os governos foram obrigados a aplicar simultaneamente uma politica _anti- inflacionaria, mesmo que apenas pela pressio da concorréneia” ndel, 1990:12-13), ‘A partir dos finais da década de 60, 0 desempenho da economia americana ja revelava perda de dinamismo, em especial pelos gastos armamentistas no auge da Guerra do Vietnd, enquanto as economias japonesa e alema se tornavam competidoras eficazes, alterando © cendrio das relagdes econémicas internacion Marcada pelos deficits orgamentitios, a economia americana se vé compelida a decretar a inconversibilidade do_délar em relagio ao ouro, em 1971, Esse foi o ponto de partida para a crise econdmica mundial do capitalismo. “O dolar inflacionava-se. a0 ser emitido em maior quantidade para cobrir 0 rombo orca- mentério, 0 gue depreciava as exportagdes dos pafses do TI Mundo, valorizava as exportagées americanas e dava inicio ao processo de inflagio mundial” (Vizentini, 199212), 52 A desvalorizagio do délar, promovida pelo cirguito financeiro privado, teve como conseqiiéncia um movimento especulativo conhecido como o mercado das euromoedas, permitindo o inicio de um perfodo de grande expansdo do capital financeiro, Essa medida provocou graves repercussdes internacionais, determinando um conjunto de ajustes macroeconémicos nas eco- nomias ocidentais, na tentativa de implantar uma politica antiin- flacionéria, 0 que, por sua vez, implicou uma sincronizagao internacional do ciclo industrial. Essa sincronizaco impulsionou iniciativas expansionistas, alimentando a retomada do crescimento de todas as cconomias capitalistas no perfodo 1971-73, sob a lideranga dos Estados Unidos (Belluzzo e Coutinho, 1982:9) Foi nesse contexto que 0 cartel dos exportadores de petroleo aumentou significativamente os pregos do produto, em 1973, 0 que, na realidade, acabou por ser uma manobra das transnacionai pewoliferas € dos Estados Unidos contra as economias japone: e alema, que nia produziam petréleo (Belluzzo e Coutinho, 1982:12) Ora, se as bases da crise jd estavam postas no perfodo de expansiio, ¢ foram responsdveis por uma situagio de sup. de capital, © aumento dos precos do petréleo foi apenas um alisadar do ciclo recessivo que se instalou entre 1974-75, As repercussdes da crise e das estratégias utilizadas para superd-la foram extremamente desiguais, tanto entre os paises centrais, quanto entre eles © os patses periféricos, Enquanto os Estados Unidos se beneficiaram pela pequena dependéncia do petrdleo e pela entrada dos petrodélares, as economias perifiricas foram extremamente penalizadas pelos pregos dos produtos im- portados. Jé os pafses exportadores de petrdleo também se he- neficiaram pela sua integragaio no bloco petrolifero. Fm sintese, podemos dizer que os prentincios da crise, emergentes nos anos 60, foram inicialmente enfrentados com a intensificagao do processo de internacionalizagiio do grande capital Mas, em face do volume dos investimentos em capital fixo, as empresas nfo conseguiram reestruturar a produgio nas bases hecessiirias & manutengdo das taxas de luero. Esse movimento foi mais nitido. na indiistria do que nas indiistrias alemis © japonesas, que se tornam grandes competidoras em termos de conquista de mercados ¢ de avangos tecnolsgico: desde que elas jé vinham desenvolvendo uma politica de rees- tuturagiio industrial, nos finais dos anos 60. Esse € 0 quadro que vigora até 1975, quando se inicia uma retomada desiguel do crescimento nos paises centrais, Segundo Mandel, essa retomada foi frigil, hesitante ese manifestou, sobretudo, pela dificuldade que encontrou a prépria produgao industrial para retomar o nivel que mantinha antes da crise de 1974-75, Na realidade, a recuperagio dos investimentos foi insatisfatéria, ndo chegando a reverter @ capacidade oci das empresas, pelo fato de nao ter havido ampliagao do consumo, visto que ndo houve redugho das taxas de desemprego, nem aumento da poupanga ¢ da renda, De fato, € a reprodugio da situagio vivida nos infcios dos anos 70 que leva a economia a enfrentar um novo ciclo recessivo no infeio dos anos 80. Isto é: inflagdo, expansiio do mercado financeiro em detrimento do setor produtivo, que apresenta baixa evolugéio da utilizagto da capacidade instalada das empresas. Nesse sentido, os anos 80, despeito da existéncia de perfodos de recessfio © recuperagiio, podem ser pensados no leito do desenvolvimento progressivo da crise, iniciada nos anos 70 © que se prolonga na presente década. ‘Apesar das iniciativas levadas a efeito pelo grande capital, “ndio houve nem. reestruturagdio, nem expansio substancial do mercado mundial, nem uma teorganizagao fundamental do proceso de trabalho que permitisse um crescimento qualitativo da produgao de mais-valia, nem uma modificagiio fundamental das relagdes de forgas sociais, elementos que teriam permitido ao. capital assegurar novamente uma expansio comparivel Aquela dos. anos pés-Il guerra ou dos anos que precederam a T guerra mundial” (Mandel, 1990:247) Na realidade, os ajustes produzidos para a superagao da crise se mostraram. insuficientes porque persistiam pontos de estrangulamento, tais como a queda dos inyestimentos produtivos, desemprego crescente © ampliagao das dividas dos pafses perifé- Considerando 9 exposto, claboramos algumas conclusées sobre © eenario econdmico dos anos 80. Em principio, reafirmamos que a crise dos anos 80 se qualifica como uma crise do capital, cuja principal determinagito € cconémica, expressa num movimento convergente em que a crise de superproducao € administrada mediante expansio do crédito para financiar tanto os déficits dos paises hegeménicos como a integragdo funcional dos pafses pe~ riféricos ao processo de internacionalizagio do capital. Assistimos, também, a uma fustio do capital bancdrio com © Industrial, que € tipica da fase dos monopilios. De fato, “cada retomada econémica que se sucedeu apés 1971 foi apoiada numa massa de créditos cada vez maior relacionando-se com uma massa de lucros igual, ou sensivelmente inferior” (Mandel, 1990:260), Assim, @ recuperagio foi alimentada por um endividamento vir sivelmente acelerado ¢ oientada para as necessidades de cada perfodo. Como exemplos. temos 0 caso especifico dos créditos fornecidos aos pafses do Terceiro Mundo © as ex-cconomias socialistas nos anos 70, na fase do inicio da crise, bem como, nos anos 80, pela expansia do crédito ao governo ¢ aos grandes trustes da América do Norte (Mandel, 1990:261). Inegavelmente, a ¢ Hissiea afirmagio de que a crise expressa um descompasso entre produgdo ¢ circulagiio, enquanto proceso de produgao e realizacio de mais-valia e, ao mesmo tempo, 0 momento a partir do qual a lei do valor se impée, parece ser 0 elemento central do entendimento dessa crise, Nesses termos, dois movimentos sineronizados caracterizam as iniciativas superadoras da crise econdmica do capital: a rees- truturacdo da _produgio e dos mereados Segundo Mandel, “a recessio foi provocada e se prolongou sob 0 efeito de uma baixa da taxa média de lucro, combinada com uma queda dos inyestimentos produtives” (1990:178). Essa Fecessio atingitt os paises periféricos, sobretudo em dois aspectos: aumento dos pregos das matérias-primas © agravamento da crise financeira dos anos 80, cm decoréncia das altas das taxas de juros praticadas no periodo. A crise ccondmica requereu, assim, medidas de ajustes, hecessarias ao process de reestruluragao da economia, mas que intensificaram as tensdes sociais, Ao longo das duas dltimas décadas, apesar das diversas iniciativas implementadas e que apontam para momentos de ténue recuperagdo da economia, a crise vem sendo enfrentada valendo-se de uma cruzada conua ‘0s mecanismos anticiclicos de base keynesiana, tendo como contrapartida um programa de corte neoliberal, marcado pela negacdo da regulacao econdmica estatal, pelo abandono das po- liticas de pleno emprego e pela redugio dos mecanismos de seguridade social, em prol, € claro, da regulago operada pelo mercado. Esse processo, entretanto, nao permitiu que as economias capitalistas superassem a crise e restabeleces: cimento econdmico similares aqueles alcangados no segundo pos- guerra, Contraditoriamente, as iniciativas superadoras da crise ccondmica, pelo seu imbricamento no conjunto das _relagdes sociais, foram catalisadoras dos processos sociopoliticos que a projetaram como uma crise global do capitalism. Visto que a trajetéria do capitalismo nao se reduz a uma dindmica cfclica, formalmente identificada como fases de decl{nio, recuperacio e auge, ela supée um processo dinamico de mudangas nas suas formas de existéncia, em que a organizagio da produgio, dos mercados, dos salirios, da intervengaio estatal e das demas instituigdes é mutavel, dentro do contexto mais ampliado da reprodugao das suas estruturas fundamentais Evidente que 0 processo de reprodugiio e transformagiio do capitalismo, ainda que expressando um movimento geral, desen volve-se em condicées peculiares nos paises centrais © nos pe~ riféricos. Segundo Belluzzo e Coutinho, “a rpida internacionalizagio do grande capital monopolista das economias avangadas, nos 30 anos posteriores 4 II Guerra, propiciou, sem sombra de dtivida, ‘© avango dos processos de industrializagio na periferia” (1982:24) Assim, 0 processo de expansiio capitalista do segundo pos-guerra transformou de forma significativa as economias periféricas, in- corporando-as ao proceso de reprodugaio ampliada do capital, em escala global 56 Dessa forma, um contingente significative de paises perifé- Fics transformou-se cm campo de absorgzo de investimentos produtivos, contribuindo para que o capital se reproduzisse a uma taxa de lucto mais elevada e nura ritmo mais intenso, modificando, com base nisso, a condigao de paises eminentemente exportadores de produtos primérios Belluzzo e Coutinho, 1982:27). Entretanto, esse avango dependeu da canalizacio de recursos piiblicos para o financiamento da indiistria de bens de capital © © obras de infra-estrutura, No cumprimento do papel de indutor da industrializacdo, 0 Estado atuou de forma incisiva na formacao dle uma base produtiva integrada as necessidades dos grandes oligopélios internacionais, Assim intervindo, 0 Estado cumpriu 0 papel do capital bancario e do setor privado, que nao dispunha de reservas, nessa fase da industrializagio, Na etapa monopolista, essa nao é uma questio pontual, pois na era dos monopélios, além das classicas formas de inter- yengiio estatal na preservagiio das condigdes da produgio capitalista, © Bstado passa a intervir na dinamica econdmica de forma sistematica e continua, que, Isto é suas funy poltticas imbricam-se com as fungdes econdmicas*. Neste caso, as fungdes econdmicas do Estado se organizam © ele passa a atuar como empresirio, nos sctores hdsicos, na assungao do controle de empresas em dificuldades Tinanceiras, © como fornecedor de recursos piiblicos a0 setor privado por meio de subsidios, empréstimos com juros baixos ete Considerando 0 cardter periférico des: @ 0 seu papel como espago de reprodugiio do capitalism central, podemos afirmar que “as industrializagdes periféricas alcangaram graus diferentes de desenvolvimento. O que as distingue € a capacidade de reposigo ampliada do capital constante, em especial do fluxo de capital circulante, Isto é, a sustentagio do proceso de acumulacio capitalista, no que se refere aos elementos de maior peso dentro da massa de valor produzida, é a existéncia formagoes sociais 2, Sobre © tema, ver Netto (1992:15-30), BT de um setor de bens de produgio. O grau de integragio & 0 peso relativo deste setor no sistema industrial definem, por sua ver, a profundidade que pode ser alcangada pela penetracao das grandes empresas internacionais, particularmente no que diz. res- peito a produgio de bens durdveis” (Cf. Belluzzo e Coutinho, 1982:28). Por isso, & 0 grau de desenvolvimento continuado do setor de bem de produgio que define 0 nivel de desenvolvimento © 0 estigio de integragao do capitalismo periférico ao capital internacional ‘Assim, € 0 ritmo de desenvolvimento do processo de expansao do capital que permite, enquanto movimento histérico real, apreen- der ats particularidades de’ cada proceso de acumulagio © a relaco orgdnica entre 0 capital hegeménico e as economias periféricas. No caso brasileiro, a peculiaridade desse proceso, segundo Mello © Belluzzo, reside no papel do setor produtivo estatal, na dimensio do proceso de interniacionalizagdo do setor produtive e& na extensio do controle do Estado sobre 0 proceso. de acumulagio (1982:144), ‘Tomando como marco © periodo a partir do qual se esgota © chamado modelo de substituigio de importagdes — periodo denominado por Mello de industriatizacao restringida —, admi- timos @ segunda metade dos anos 50 como sendo 6 perfado em que se inivia a industrializagao pesada, responsével pela mudanga no padrio de acumulagio vigente no Brasil Segundo Mello ¢ Belluzzo, “o capitalismo monopolist de Estado se instaura no Brasil ao término do periodo Juscelino, que marca a tiltima fase da industrializagao, Isto porque s6 en (0 constituidas integralmente as bases necessérias para a auto- determinagio do capital, cristalizadas no estabelecimento de te- lagdes entre os Departamentos de Bens de Produgio, Bens de Consumo Assalariados € Bens de Consumo Capitalistas, 0 que impde uma dindmica essencialmente capitalista. ao modo de acumulagio” (1982:144) Esse modelo, baseado no creseimento acelerado da capacidade produtiva do setor de bens de produgio © do setor de bens duraveis de consumo, requeria um financiamento que superava 58 as disponibilidades do capital nacional privado e estrangeiro, ja investidos no pafs. Ao mesmo tempo, tal expansad produzia uma “desaceleragio do crescimento, ainda que se. mantivesse a mesma taxa de inves rento ptiblico, uma vez que a digestio da nova capacidade produtiva, criada nos departamentos de bens de pro- ducao ¢ de bens de consumo, provocaria um corte nos investimentos privados. Houve, no entanto, muito mais que isto, e a expansio desembocou numa crise que se arrastou de 1962 a 1967” (Mello, 1984121), Em suma, no perfodo que se inicia na segunda metade dos anos 1950 até 1961, presenciamos um movimento de rede- finigiio © expansio do modelo de acumulagio, responsiivel pela consolidagao da industrializagio brasileira em moldes tipicamente capitilistas, no entanto, esse periodo de expanstio desembocou numa crise que se prolongou de 1962 a 1967. Segundo Mello: “Nao € dificil entender que um proceso como este exigia como pré-requisito um determinado geau de desenvolvimento do capitalismo, uma ampliagao das bases técnicas da acumulagao, que se fizera durante a fase da industrializagio restringida, Porém, nao € menos certo que a industrializagao pesada tinha escassas possibilidades de nascer como mero des- dobramento do capital nacional e estrangeiro empregado nas induistrias leves: nem se dispunha de instrumentos prévios de mobilizagiio € centralizagio de capitais, indispensiveis A maciga concentragiio de recursos internos ¢ extemos, exigida pelo bloco de investimentos pesados, nem se poderia obter estrutura técnica © financeira dos novos capitais a partir da diversifica cestrulura produtiva existente. A expansio, portato, gio. poderia deixar de ser apoiada no Estado e no novo capital estrangeiro que se transfere sob a forma de capital produtivo” (1984:1 18). A estratégia implicon um sélido arranjo. socioecondmic: politico feito entre Estado, capital privado nacional © empr iransnacionais. Segundo Mello, “a aco do Estado foi decisiva, em primeiro lugar, porque se mostrou capaz de investir ma mente er infra-estrutura e nas indtistrias «le base sob sua res- ponsabilidade, © que estimulou o investimento privado nao. s6 por the ofrecer economias externas baratas, mas, também. por Ihe gerar demanda (...). Coube-the ademais, uma tarefa essencial 59 estabelecer as bases da associago com a grande empresa oligo- pélica, definindo, claramente, um esquema de acumulagao © the concedendo generosos favores” (Mello, 1984:118), Nesse sentido, 0 processo politico desencadeado no pré-64 foi definitive na inflexio do padrio de acumulagio. Como afirma Netto, “o que 0 golpe derrabou foi uma alternativa de desenvol- vimento econ6mico-social e politico que era virtualmente a reversaio do fio condutor da formagéo social brasileira” (1984:25). Isto é ou © capital nacional privado articulava, com a participagao do Estado, um esquema de acumulagdo que the permitisse desenvolver a industrializagio pesada, ou,teria que construir um outro arranjo politico-econdmico, privilegiando os interesses do capital estran- geiro para atingir 0 padrio de acumulagtio que Ihe interessava. Assim 0 chamado “milagre econdmico” da década de 70 ¢ © produto acabado de um movimento em que economia e politica se vineulam estecitamente para viabilizar um processo de mo- dernizagéo conservadora. Suas caracteristicas foram as benesses concedidas a0 capital estrangeiro © aos grupos nacionais, © que permitiu a concentragao e centralizagao do capital, além de instituir um padro de industrializagdo dirigido ao atendimento da parcela clitizada de consumidores internos e as demandas do exterior. F nessas condigSes que © periodo 1967-74 € considerado de recu- peragiio e expansao da economia brasileira. Ora, a partir da primeira crise do petrsieo, em 1974, a economia internacional apresenta mndangas significativas: com 0 prentincio do esgotamento do modelo de acumulagiio, ao mesmo tempo em que se encerrava um perfodo de erescimento iniciado nos anos 40, observa-se, também, 0 forte movimento especulativo que culmina com a segunda crise do petréleo, em 1979, ¢ com as medidas restritivas de politica monetiria adotadas no inicio dos anos 80, Esse perfodo exigia processos de ajustes variados em face do grau de integragio do pat ternacional. Foi com 0 objetivo de intervir nesse quadro que 0 I PND — no perfodo Geisel — deu énfase a indiistria de base e de bens de capital, cmbora tal projeto tenha sido inviabilizado em fungdo das relagdes entre 0 empresariado & © Estado. 60 Segundo Mello © Belluzzo, “a maior razio do seu fracasso foi determinada pela incapacidade de se ajustar os interesses da grande empresa estatal, grande empresa nacional privada e cor- poracio multinacional” (1982:157), desencadeando uma crise de condugao por parte do Estado. A plena realizagio do programa de modificagio da estrutura industrial brasileira, previsto no I! PND, foi atropelada por fatores internos e extemos. Internamente, as disputas de interesses setoriais, do capital determinaram um processo de desenvolvimento desigual nos setores que deveriam construir uma estratégia articulada para desenvolver a indiistria pesada. Isso se fez As estas da privatizagio dos fundos piiblicos e do proceso de endividamento externo, mas privilegiando apenas alguns grupos nacionais e multinacionais. Do ponto de vista das relagdes externas, 0 cendrio da crise dos anos 70, com seus desdobramentos no mercado, nos juros & a crise da divida extema em 1982, foi determinado nao apenas pelas presses inflaciondriay como cambém pelo fato de a economia brasileira passar a ser administrada por politicas convencionais, do tipo stop and go, marcada por movimentos relacionados principalmente com as negociagdes da divida externa Nesses termos, longe de representar o desenvolvimento pro- gressivo dos projetos do governo militar, a politica econémica, planejada a partir do perfodo Geisel, terminou por se constituir ho principal ingrediente da crise dos anos 80, j4 que tal politica foi sustentada pelo crédito internacional que viria @ ser suspenso em 1983, periodo a partir do qual o pais se vé obrigado a exportar capital para © pagamento dos empréstimos recebidos. Esses fatos, entretanto, nfo impedem a constatagaio de que 6s anos 70, no Brasil, foram um periodo de expansao e crescimento econémico, produzindo significativas mudangas na estrutura pro- dutiva, na formagiio do mercado de trabalho © na infra-estrutura urbana. Ao longo da década, pafs construiu um parque industrial significative e integrado 4 economia internacional. Todavia, © saldo dessa modernizagdo conservadora foi o wumento da con centragao de renda, a pauperizagad da maioria da populagdo e a precarizagio das condigées de vida e de trabalho da maioria dos trabalhadores. 61 Dessa forma, a década de 80 caracteriza-se como um perfodo em que convivem tragos de continuidade, saturagio ¢ alguns indicios de ruptura do modelo implementado no pés-64. Podemos dizer que, em nivel da economia, foi uma década que congelow algumas situagoes deflagradas desde os finais dos anos 70. Dat, ser considerada por muitos como a década perdida, em fungio day baixas taxas dle crescimento do PIB, da compressao dos saldtios e do aumento da concentragéo da riqueza. Ao mesmo tempo, metabolizou um novo processo politico, cujo principal protagonista foi a aco organizada de expressivos setores da sociedade civil, rompendo as bases de sustentagao da ditadura militar resultando, assim, fo restabelecimento do Estado demo- eritico, Esse cendrio imprime aos anos 80 a caracterfstica de uma década de transigto, soja porque a superagiio da crise econdmica néio apontava para a reedigao do modelo de desenvolvimento iniciado nos anos SO © redimensionado no pés-64, seja_ porque Os processos politicos de sransigdo peto alto, \do ao gosto das elites, também jf nao podiam ter contimiidade, diante do gran de socializagao da politica conquistado pela sociedade desde, pelo menos, © movimento dos trabalhadores do ABC, nos finais da década de 70, Numa linguagem gramseiana, afirmamos que os anos 80 marcam um periodo — extensive aos anos iniciais da década de 90 — de crise organica, Como assinala Neves, “a transi¢ao que se iniciou em meados dos anos 70 transcendeu, pois, de um mero rearranjo entre as forgas sociais que compunham o bloco de poder, qualificando-se como um processo de construgio au tonoma das diferentes forgas sociais que passaram a incorporar, nas suas priticas, novos instrumentos de organizagiio das massas. Significou o inicio de um processo de ruptura da ordem tutelada que presidiu as relagdes entre Estado © sociedade ao longo do nosso processo de modernizagio capitalista (...) impondo uma redefinigdo das praticas s6cio-politicas das varias forgas sociais em conflito — burguesia agréria, industrial, financeira e traba- thadores.urba rurais” (1994:34-35), 2 A rigor, a partir da segunda metade dos anos 80, constatamos, no conjunto das transformagoes. vividas pela sociedade brasileira, © surgimento de um novo processo de Tuta entre as classes fundamentais no Brasil. A ago politica organizada de fragdes da ‘burgucsit oe Glacéés ‘rabalnadonas Via idiatbe; "bariides. © utes movitnemtos organizativos, nos permite caractetizar esse perfodo como de ruptura com os pardmetros de organizacio conflito que vigiam desde 1964, implicando, por isso mesmo, uma redefinigao das. priticas sociapoliticas das classes Dado que esse proceso desenvolve-se no Icito da crise econdmica dos anos 80, podemos argumentar que, nos momentos de. crise, tal articulagio de forgas & mediatizada pelos impactos liferenciais que a crise econdmica imprime ao capital © ao trabalho. Por isso, em tempos de crise, 0 proceso de construgdio da hegemonia de uma classe passa pelos modos operatives de enfrentamento da crise que expressam, numa determinada con- juntura, suas vinculagdes com os prinefpios definidores de um. determinado projeto social. Nesses termos. © tratamento indiferenciado da crise, qual seja o de afirmar que ela é uma questio que afeta toda a sociedade brasileira © que dela requer frentes indiferenciadas de agio, aponta para a diluigio de projetos de classe em favor de modos operativos de enfrentamento da crise, que implicam con sensos de classe. Ora, do ponto de vista mais global, os diagndsticos indica, quase por unanimidade, que a crise brasileira nao € produto direto da crise internacional, mas & por ela determinada em fungio do modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil € pelas relagbes socials nele vigentes. Assim, ndio se wataria de um desdobramemto da crise eco- némica internacional, nem tampouco da expressdo periférica da rise global, mas da constatagto de que ela 6 uma manifestagao particular de um movimento geral. Isso significa identificar como “o particular se articula com o geral, no interior de uma totalidade historicamente construida” (Perruci, 1978:7). Considerando tal abordagem, podemos apontar, pelo menos, rs pontos essenciais da articulagdio entre © global ¢ 0 nacional: 63 4 reestruturagao produtiva em escala mundial; os mecanismos integrados de ajustes macroeconémicos; a rearticulagdo da he- gemonia burguesa sob a influéncia do neoliberalismo Como afirmam Tavares © Fiori, “as politicas de ajuste, ocorridas na década de 80, depois da crise da divida externa de 1982, fazem parte de um movimento de ajuste global que se inicia com a crise do padrao monetério internacional e os choques do petrdleo da década de 70, a0 lado do processo simultaneo de reordenamento das relagdes entre o centro hegemOnico do capi- talismo e os demais paises do mundo capitalista, Passa também por uma derrota politica do,chamado ‘soeialismo real’ e desemboca puma generalizagio das politicas neoliberais em todos os paises periféricos, comecando pela América Latina, passando pela Africa € estendendo-se ao Leste Europeu ¢ aos paises que surgiram com a desintegragao da Unido Soviética” (1993:18). Entendido como tendéneia geral, esse movimento se di- ferencia em funcio das peculiaridades sociais, econdmicas ¢ politicas de cada pais. No Brasil dos anos 80, tais peculiaridades devem ser identificadas no fato de que 0 processa de socializagao do poder politico ndo produziu rupturas nos mecanismos de socializagao do trabatho e na apropriagdo da riqueza social- mente produsida Ora, se 0 desenvolvimento progressive do processo de so- cializagdo da politica, protagonizado pela luta dos setores orga- hiizados das classes subalternas, é formador de uma diregao politica dle classe e constitutive de hegemonia, nao seria atipico que a burguesia procurasse contrapor-se a esse processo. Tal é a razio pela qual a construgio de uma cultura da crise é coerente com a deflagragtio de uma ofensiva burguesa que parece vir tentando Suncionatizar a tuta dos trabalhadores pela socializagio do poder politico, como um processo que diz. respeito aos modos conjunturai: € operacionais de enfrentamento da crise, servindo-se, para tanto, do grau de socializagao da politica, conquistado pelos trabalhadores a0 longo dos anos 80, Trata-sc de inflexionar 0 objeto da resistencia — os impactos da crise sobre os trabalhadores — num objeto de adesio e consentimento. 64 2, Crise € reestruturagio produtiva . Numa conjuntura de crise, a reestruturagio produtiva € uma iniciativa inerente 20 estabelecimento de um novo gquiltbrio insidvel que tem, como exigéncia basica, a reorganizagzio do papel das forgas produtivas na recomposigao do ciclo de reproduc: do capital, tanto na esfera da produgio como na das rela sociais. Epsa_reorganizagio, amplamente discutida na literatura es- pecializada’, expressa a estratégia utilizada pelo capital em diregao a enfrentamento da crise econdmica e pode ser mapeada em lois amplos: movimentos. © primeiro deles diz respeito aos requisitos necessérios A recomposigao do processo global de acumulacao € tem sew “locus” na reestruturacéo produtiva, implicando tamhém a reardenagéio geoecondmica das fases do ciclo global da mercadoria Por sua vez, esse movimento & catalisado valendo-se de intervengoe: a, no dmbito do reordenamento do quadro hierdrquico das nagées, em fungdo de sua riqueza e poder, como & 0 caso da relagdo entre os paises que formam o centro hegemdnico € deles com os paises periféricos; b. no mundo do trabalho, seja em fungie das mudangas requeridas pela divisio sociotécnica do trabalho, produto da reordenagio das fases do proceso de produgio ¢ realizagdio de mais-valia, em nivel mundial, seja por Forga de necessidades inerentes a0 proceso téenico de trabalho, determinado pelas transformagdes requeridas na reestru- turagdio da produgio e, ainda, pelo surgimento de novas 3. Sob deaominagées diversas, o tema da ree amplamente discutido nas cifneias soviais, Vale destacar que, em goral, @ tema da rocitruturagio fia subsumido As polémnicns sobre a chamada produsio flextvel cconsiderada coma um modelo que equacions a rigider dos méodos fordisins de Drodugio, no Ambito «lo processo ee labalho. Algomas reterénctas agt s4o funda mmentais: Harvey, A. condigan possmederna (1993), especiticamente Parte Il © 1V; Burawoy (1985 © 1990}: Clarke (1991): Boyer (1990); Lipietz (1988), sragio produliva ver send 65 exigencias que afetam a constituigio © reprodugtio do trabalhador coletivo O segundo movimento diz respeito aos mecanismos socio- politicos ¢ institucionais, necessérios a manutengdo do proceso de reproduc&o social, incidindo prioritariamente no dmbito da luta de classes e na relacdo entre ordem econdmica e projeto politico. Situados no nfvel superestrutural, eles sio mediados pela acdo politica das classes e das instituigées, na qual se inclui o Estado. Isto 6, dependem dos modos e das formas como as classes enfrentam politicamente as mudangas requeridas pelo Processo de reorganizagiio da produgio, no contexto mais geral das relagdes sociais. Fato que demonstra nfo ser esta apenas uma reforma econdmica, mas um movimento que interfere na organi- zagio social. A tese. subjacente 4 reestruturagio & a de que toda crise no mereado mundial expressa desequilforios no Ambito da produgao © da cireulactio de mercadorias e “ocasiona esforgos por parte do capital a fim de superar tais contradigées, reesteuturando tanto & produg@o quanto os mereados” (Mandel, 1990:197) Na esfera da produgio, as medidas objetivam a elevagito da taxa de lucro, seja modificando os padrées tecnolégicos, seja aumentando a produgio de mais-valia, seja supcrando obstdculos sociopoliticos que afetam a produtividade da forga de trabalho. No mbito do mercado, as iniciativas devem interferir na esfera da cireulagio, por meio da criagio de novas possibilidades de Escoamento da producao (novos nichos de mercado) ¢ da redivisao dos tradicionais: mercados consumidores: Nesses termos. uma discussio consegtiente sobre a reestru- turagiio produtiva exige que sejam recuperados, no. processo historico real, 08 vinculos entre as questdes afetas & crise econémica @ as iniciativas reestruturadoras do processo de produgao. Se, do panto de vista da economia, a ctise dos anos 80 earacteriza-se como produto do esgotamento do paditio de acumu- lagio, baseado na produgio © no mercado de consumo de massa, do ponto de vista politico, ela se caracteriza como uma crise orginica, na medida cm que ox esgargamentos das ideotogias 66 dos projetos societais operam refragées sobre as formas de su peragdo da crise. . Nela, esto implicados, de um lado, um conjunto de fatores: objetives que remetem ao cendrio das relagdes econémichs inter hacionais, como 0 caso das medidas de ajuste, do reordenamento das relagdes entre os pafses centrais e destes com os paises do Terceiro Mundo, da regulagio estatal, da globalizagio dos ciclo: da mereadoria, da divisto internacional do trabalho e do mercado v, de outro lado, os processos saciopaliticos e culturais expressos has questdes afetas A relagdo entre sistema ccondmico ¢ regime police, & correlagao de forgas entre classes ¢ A definigao de projetos societais. Observamos, pois, que a reestruturagio produtiva € apenas oma expressiio particular de um movimento geral ¢ ngo a deter- minagio que funda uma nova ordem, como querer alguns estu- dinsos co assunto. Por isso, pontuamos o atual reordenamento politico e eco- némico internacional, as tendéncias da divisiio internacional do wabalho ©, no interior dela, as questoes relativas & reorganizagao do processo de producto. Nesta tiltima, esto incluidas as formas, de gestiio da forga de trabalho, os mecanismos socioinstitucionais que interferem na reprodugio do trabalhador, a questiio tecnolégica, 8 divisio ténica do trabalho, entre outros, Historicamente, o processo de reestruturagiio industrial deve set entendido como uma conjuntura especifica: as iniciativas dos pa(ses centrais para enfrentarem 0 esgotamento do padrio de crescimento dos anos 70, sob a hegemonia noste-americana, de que sio exemplos os. impactos da politica do fortalecimento do dolar, implementada pelos Estados Unidos, ¢ a crise do petréleo que afetou o prego das matérias-primas. As referéncias princip da reestruturagio. produtiva ficam por conta do Japéo © da Alemania, que conseguiram empreender suas reestruturagées promovendo acentuadas mudangas na divisio intemacional do trabalho, diferentemente dos Estados Unidos que, desde © inicio da década de 70, ja no conseguiam difundir, para © mundo, sew padrio de produgao & consumo. 67 © Japfio, pressionado pela necessidade de fazer frente & crise da politica monetaria © cambial patrocinada pelos Estados Unidos, alem dos impactos negativos produzidos pela crise do petréleo, é forcade a empreender uma mudanga na sua estrutura industrial, Para tanto, dedicou-se & implementagaio de uma estratégia de transformagao tecnolégica, centrada na eletrénica de ponta & nna difusfio de novas técnicas de informagio e controle no interior do aparelho produtivo. © resultado foi o aumento da produtividade © 0 langamento de novos produtos que permitiram aleangar um mercado mundial de consumo de massa, eriando as condigdes para resistir & instabilidade do d6lar ¢ do mercado. Ji a Alemanha, dentre oy paises da OCDE, comandou a sua reestruturagiio também com base na concorréncia intercapi- talista, assumindo o comando da reardenagao do mercado curopeu © enfyentando positivamente a instabilidade do dolar. Segundo Tavares, 0 Japiio ¢ a Alemanha foram os pafses Ideres na_reestruturacao industrial, Afirma a autora que, “com a reconversio industrial © a difusto acelerada do progresso técnico, as duas grandes economias industriais foram capazes de alcangat vantagens comparativas dinmicas que thes ém permitido altos indices de inserc%o no mercado internacional. No caso da Ale- manha, a estratégia foi de consolidagio da sua posigio dominante na CEE € de controle da integracio européia, No caso do Japio, existe claramente uma estratégia de globalizagio mais completa, que envolveu num primeiro estégio uma nova divisto do trabalho na Asia e a conquista em grande escala do mercado norte-ame- ricano” (1993a:43) ____ Assim, 0 Japio vem comandando a intemnacionalizagio da Asia, adotando uma estratégia que consiste em deixar brechas ho mercado internacional para outros paises asiiticos — Coréia do Sul & Taiwan Embora tendo perdido posi¢aio na reestruturagio industeial, os Estados Unidos no perderam a sua condigio de poténcia. De um lado, est © peso do dolar na economia internacional: de outro, 0 processo de construciio de uma nova rea de integragéio capitalista, formada pelo Canadé ¢ México, comtando com a periferia latino-americana. 68 Complementa, ainda, Tavares, que a novidade da economia americana € a transnacionalizagda por dentro do proprio espaco americano, num movimento contrério ao acontecido no pés-guetia, Capitals de todo 0 mundo ditigiram-se para os Estadas Unidos em perfodo relativamente curto e em montante consideravel, influindo,poderosamente na reestruturagéio da economia americana. Nessv sentido, comenta a mesma autora, a tendencia esperada & ue que os Fstados Unidos venham a superar seus obstéculos na reestruturago industrial. No entanto, a “decadéncia americana”, contraditoriamente, ficaria evidenciada no conjunto de problemas sociais & politicos internos, gerados pela transnacionalizagiio da sua soviedade (1993a:50-51). Todo esse processo de ajuste dos pafses centrais, no entanto, leusse, em grande parte, as custas dos paises. periféricos, como » caso da América Latina, Na década de 70, sob as injuni do movimento de internacionalizagio do capital, esses paises adotaram modelos de desenvolvimento amparados no endivida- mento externo, Tal opgiio, realizada no cenfirio politico das slitaduras militares, que imperavam no Cone Sul do continente, subordinou alguns pafses latino-americanos aos interesses econd- micos e politicos dos pases centrais, aumentando, ainda mais, a desigualdade nas relagdes entre © centro © a periferia, © que hoje observamos € a transformagio destes paises em pobres provedores de capital para os centros hegemonicos, sob a forma de pagamento da divida externa, com o énus do empo- brecimento ¢ da miséria da sua populagao. Esse contexto, evidenciador do modo como © capital se reorganiza para restabelecer um novo cquilibrio, sugere as ten- déncias gerais das mudangas realizadas ao longo da década de 80, indicando alguns desdobramentos: a. © quadro_geral das relagdes internacionais é indicative de uma disputa no interior dos paises centrais — Estados Unidos, Japio e Alemanha. Uma das peculiaridades dessa disputa é 0 destocamento do eixo da hegemonia americana: sua condigéo de maior produtor € consumidor do mundo © gradualmente substituida pela condicio de banqueiro do mundo. De maior exportador de capitais, transforma-se 69 sindicatos e empresas, a expansio dos sistemas de seguridade social, a legislagiio reguladora do trabalho e os métodos fordistas de disciplinar a forga de wabalho. Se correta essa linha de argumentagio, 0 que se poe no horizonte € a exigéncia de o capital operar mudangas econdmica: sem perda da hegemonia do capital, Dai, a necessidade de formar uma cultura politica da crise, como condigéo para empreender mudangas consensidas, que adquiram o estatuto. de iniciativas positivas no enfrentamento da crise econdmica © eixo irradiador dessa cultura, como sugerido nos parigrafos anteriores, & 0 sucesso dla reestruturagio de alguns pafses centrais, transformados em verdadeitos projetos sociais regionais do capital, como € © caso da japenizacdo ou da ainericanizagao do mundo. Mas 0 contetido ideoldgico e politico dessa cultura — consideradas us condigées histéricas objetivas de cada pais — 6 a idéia de que a crise afeta indistintamente 0 conjunto da sociedade e que @ sua superagao heneficia indistintamente a todos os paises. A rigor, a admissio da cultura da erise, como uma mediagio desse proceso de mudangas dentro da ordem, insere-se no interior day polémicas sobre a relagdo entre crise ¢ reestruturacio, tanto nas cigneias sociais como no campo da economia e da ciéncia politica. A polémica esté entre os que encaram as mudangas como transformagoes positivas no mundo da produgio e do trabalho, qualificando-as de pés-mocemas ow pés-capitalistas, © aqueles que, a0 contrério, analisam as mudangas com base nas contradiges produzidas pelo proprio capitalismo deste final de século, Na literatura especializada, as principais correntes tedrieas que discutem a reestruturagiio produtiva sio a da especializagdio flexivel © @ do neo ou pds-ordismo, as quais, em linhas gera podem ser classificadas como: a. aquelas que definem a crise como esgotamento do para digma tecnolégico (aylorismo e fordismo), que caracte- rizou a montagem do aparetho de produgae voltado ao consumo de massa. Nessa linha de argumentagio, a Teestruturagio produtiva seria indicativa de uma ruptura radical com o padriio anterior, determinando a emergéncia 72, de_um nove desenvolvimento capitalista, baseado na fle- xibilizaco do processo de produgao de mercadorias, no qual, também, se incluiria a flexibilizagdo da contratagao € do uso da forga de trabalho, Sua l6gica € ardefesa de uma nova forma de produgao, que contesta a concentragiio da produgio em grandes uniclades produtivas, com cen- tralizagdo de normas e rigidez do controle da forga de trabalho. As propostas bisicas residem na descentralizagio dlas unidades de produgdo € na democratizagzio das decisdes nos locais de trabalho, Segundo Tude de Souza, “a prerrogativa deste modelo € a formagiio de um mercado dual da forga de trabalho: © trabathador do grande capital — estabilizado e qualificado — ao lado do trabalhador precarizado e desqualificado, que nfo tem seguranga ho seu emprego” (Souza, 1994:32); b. as teses regulacionistas © pds-fordistas, bascadas na crise do fordismo € no modo de regulacio. O eixo dessa crise do fordismo 6 a rigidez dos esquemas de reprodugio ganhos de produtividade vineulados ao incremento das faxas de lucro — e © papel regulador do Estado. Os regulacionistas apontam a retomada da produtividade © © crescimento das taxas de lucto, sob a diregao de uma tecnologia fundamentalmente nova, associada a mudangas significativas no nivel das relagdes de trabalho, como forma de superar a crise. Sugerem, também, que a “crise do Fstado intervencionista exige a construgio de novas formas politicas que possam articular © também legitimar estratégias econdmicas alternativas” (Clarke, 1991:117) Os adeptos desta tiltima corrente acreditam que. o crescimento econémico, necessirio & superagiio da crise, requer mucangas tanto nos processos de trabalho como na estrutura institucional reguladora, definida por eles como um novo regime pés-fordista. Na avaliagao de Clarke, “o pos-fordismo nao é uma realidade, hem mesmo uma visio coerente do futuro, mas. sobretude uma expresso da esperanga de que © futuro desenvolvimento do capitalismo. sera a salvagio da social-democracia” (1991122), 13 A _respeito desse conjunto de propostas — mudangas na producto via inovagées tecnoldgicas associadas a novos métodos de gestdo da forca de trabalho € mudangas no modo de regulagao como meio institucional assegurador de reestruturagdes nos pro- cessos de produgdéo — poslemos atirmar que estao subjacentes dois tipos de problemas: os obstéculos criados pelas formas institucionais de organizagao dos trabalhadores fordistas, as quais foram responsiveis pelos ganhos salariais @ pelas conquistas Socials na vigéncia do pacto fordista; e 0 esgotamento do modelo Keynesiano, que deu sustentagiio ccondmica e politica ao Welfare ‘State diante das iniciativas monetaristas dos anos 70, A superagiio desses obstéculos, num jeriado de intensificagzo da concoréncia intercapitalista, exigiv o fim do pacto fordista-keynesiano, mas sem produzir uma desestabilizacdo politica. Por conseguinte, tor- Nou-se necessirio reestruturar outras modalidades «de controle dos Processos de trabalho, além de recriar a performance do Estado, de modo a torné-la compativel com os novos modelos de produgiio Na realidade, do indica que as mudangas ocorridas no mundo do trabalho © no préprio capitalismo deste final de século, “quando confrontadas com as regras basicas de acumulacao ca pitalista, mostram-se_mais como transformagées da aparéneia Superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade pés-capitalista ou mesmo pos-industrial inteiramente nova” (Har. vey, 1993:8), Segundo Harvey, “a acumulagiio Mexivel é marcada por um Canfronto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos dle trabalho, dos mereados de trabalho, dos produtos © dos padrdes de consumo. Caraeteriza-se pelo surgiments de setores de produgio inteiramente novos, novas maneiras de for- necimento de servigos financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovagio comercial, teenokigica ¢ organizacional. A acumulagio flexivel envolve réipidas mudangas dos padrées do desenvolvimento desigual, tanto entre sctores como entre regis + algm de envolver um novo movimento denominado compressa do espaco-tempo no mundo capitalista s hotizontes temporais da tomada de decisio privada puibliea se estreitaram, enquanto a comunicagao via satélite © a 14 am cada vez mais a queda dos custos de transporte possibili Ie ditusdo imediata dessas decisoes num espago cada vez mais amplo © variegado” (1993:140), ¢ processo permite que os empregadores exergum pressdes mais rigidas no controle da fora de trabalho, j4 enfraquecida pela crise econdmica ¢ pelo aumento do desemprego. Fi dessa maneira que trabalho organizado vem sendo afetadlo pelo modelo de acumulagto flextvel, pois clue esse modelo implica niveis relativamente altos de desemprego estrutural, ripida qualificagio © desqualificagaio dos trabalhadores, ganhos. modestos, de salrios reais © enfraquecimento do poder sindical Contudo, a principal conseqiiéneia das mudangas empreen- dlidas, com base nesse modelo, € 0 surgimento de regimes © contratos de trabatho flexiveis que provocam uma maior subor- slinagtio do trabalhador As necessidades das empresas, além da diminuigdo do emprego regular em favor do trabalho em tempo parcial ou tempordrio. Dessa forma, as iniciativas de flexibilizagdio da producto impdem uma nova tendéneia na composigio da forga de trabalho. Os trabalhiadores especializados das grandes empresas, cada ve em menor nimero, tm emprego permanente © ocupam posicao estratépien dentro das organizagdes, além de terem seguranga no cmprego, promogao, cursos de reciclagem, seguro © outras. van- tagens, Os demais trabalhadores, entio, passam a formar dois grandes grupos: no primeiro, esto os que trabalham em regime de tempo integral, mas que, em face da grande oferta do mercado trabalho, podem ser facilmente substituidos: no segundo, estio os trabulhadores subcontratados © temporirios, 0s quais n&o. pos- suem seguranga no emprego, nem tampouco direito aos beneticios da seguridade social, Além disso, esses trabalhadores no tém organizagio sindical, 0 que inviabiliza seu poder de barganha por methores saldtios © condigdes de trabalho, Sem negar o desenvolvimento do modelo de producdo flexivel, Clarke tem uma outra perspectiva cle analise da questao. Para ele, a produgio flexivel mio & uma contraposigio A rigider da produgao fordista, mas a tinica alternativa de ‘salvagio da social-democracia, Para esse autor, “trata-se de uma relagao entre cs novas teenologias, novos padroes de demanda e novas formas de organizagio social da produgio” (1991:122). © objetivo “nao & simplesmente criar uma nova forma de organizagio do trabalho, mas sim criar uma nova forma de sociedade, construida sobre instituigges pelas quais os conflitos de interesses possam ser resolvidos racionalmente” (1991:129), em compasso com as. exi- géncias dessa nova sociedade do trabalho flexivel. Burawoy, um dos estudiosos da teoria do proceso de trabalho, utilizando-se da terminologia dos regulacionistas, defende a tese de que, em cada etapa de desenvolvimento do capitalismo, surgem regimes fabris que regulam o processo de trabalho, Esscs modos de regulagio expressam uma vinculagdo entre a organizacio do mabalho ea imtervencao do Estado. Assim, Burawoy identifica 0 regime despético, como modo de regulagao do capitalismo competitive, e 0 regime hegemdnico, como tipico da etapa monopolista. Enquanto, no primeiro, pre~ valecia 0 modelo “coercitivo” de controle do trabalho, no segundo, prevalece 0 consenso, marcado “pela coordenagao dos interesses econémicos dos uabathadores € patroes (Burawoy, 1990: 47-49) Conutdo, é a intervengao do Estado, por meio dos sistemas publicos de seguridade ¢ da legislagdo trabalhista, que determina © modo de regulagio das relagdes © dos processos de trabalho. A rigor, a construgilo teérica de Burawoy aproxima-se da tese de Clarke no que diz. respeito & centralidade das formas de controle do capital sobre 0 trabalhio, no process de produgio. Nesse sentido, os argumentos de Burawoy e de Clarke diferenciam-se dos desenyolvides por Harvey: os dois primeiros consideram 0 processo de subordinagio e de controle do trabalho 20 capital como a questo central da produgao capitalista con- tempordnea, enquanto para o dltim io fundamental da produgao e da acumula © 0 papel de- sempenhado pelo capital financeiro no enfrentamento da crise Segundo Harvey, “a flexibilidade conseguida na produgio, nos mereados de trabalho © no consumo (...) ¢ resultado da busca de solugdes financeiras para as tendéncias de crise do capitalismo” (1993: 181), 16 Embara fazendo incursdes distintas, ressaltamos que nenhum dos autores, acima referidos, restringe a flexibilizagio ao campo do processo técnico de producto, nem tampouco atribui-the 0 poder de superagtio das contradig6es do capital. Ao cpntrario, hé consenso de que a produgao © acumulagio flexiveis fazem parte de uma estratégia de enfrentamento da crise, nos lamites da ordem do capital Dai. a pertinéncia do pensamento de Burawoy, quando afirma que mais significativa “para o desenvolvimento dos regimes fabris, na atualidade, € a vulnerabilidade coletiva dos trabalhadores 2 mobilidade nacional e internacional do capital; & essa vulnerabi- lidade que leva & emergéncia de um novo despotismo construido sobre 08 fundamentos do regime hegeménico” (1990:33). Nessa ctapa de desenvolvimento do capitalismo, 0 controle do capital sobre © trabalho nao se di pela coergio nem pelo controle das resisténcias, mas, fundamentalmente, pela obtengto do consentimento dos trabalhadores aos sacrificios que thes so inpostos. Podemos ainda acrescentar, ao amparo das argumentagoes de Burawoy, que a peculiaridade dessa reestruturagao produti va dos anos 80 niio passa de uma perifericagdo do centro. Essa periferizagao é possivel em face da mobilidade do capital, catalisada pela busca de reservatdrios de fora de trabalho. nas. periferias, & custos baixissimos, pela dispersdio espacial co processo le produgao e pela agilidade dos sistemas de transporte © comunicagao. Na realidade, a grande mudanga dos tempos virosos para 08 tempos de crise consiste no fato de que “onde as trabalhadores costumavam receber concessdes com base na expansio dos Iucros, ele, agora, faz concesses com base na Iucratividade relativa dos capitalistas” (Burawoy, 1990:48). De fato, como sugere Burawoy. a agilidade © flexibilidade do capital, longe de imprimirem au- (onomia aos abalhadores, impdem uma cultura de concessoes na qual “o medo de ser despedido € substituida pelo medo da fuga de capitais, do fechamento da fabrica, da transferéneia das operagdes € do desinvestimento na planta industrial” (1990:48). Seguindo essa linha de argumentagdo, os processos de rees- truturagao produtiva tem como imperativo das mudangas a cons- 17 trugiio de novas formas de controle do capital sobre o trabalho, © bojo mais geral das estratégias de enfrentamento da crise A diferenga fundamental, entre as iniciativas dos anos $0 © aquelas que particularizam a recuperagdo do pas-guerra, esti localizada na arena da politica: nfo. mais a administragdo das resistencias dos trabalhadores, mas a obtengdo da seu consentimento ativo ao processo de flexibilizagiio do movimento do capital, B exatamente esta diregio polftica que subsidia a formagao de uma cultura indiferenciada de superagao da crise, em prol da hegemonia do capital 3. Crise e consenso hegeménico Como ji indicamos, a década de 80 & definida como um perfodo de crise orgdnica, Isto é, como um perfodo em que crise econdmica © poder politico de classes desdguam em. processos de transigaa, imprimindo novos perfis As. pri classes sociais das _. f S84 Afitmacio sintetiza © nosso entendimento de que as crises e as iniciativas de mudangas, realizadas no conjunto dos paises centrais © periféricos, mobilizam processos politicos, cu Temissio ao campo da hegemonia implica situd-lis no Ambito das relagdes de forgas as classes: fundamentais, Tal abordagem, ao localizar os processos de reorganizagao condmica, no Ambito da hegemonia, nos permite tematizar © chamado juste global ¢ as reformas estruturais como projetos Que extrapolam a esfera das reformas econdmicas stricta sensi, Sea porque contém um claro directonamento politico, seja porqu também sto objeto de resisténcias efou adesées por parte das classes. Nesses termos, como jé expusemos em outra passagem, as mudangas globais, indicativay dos. processos de transigao para uma nove orden, vem sendo implementadas sob a diregio. da burguesia internacional Evidentemente, essa constatagio nfo é negadora da existéncia de contradigdes, nem credita 4 burguesia a conquista da hegemonia, 78 Na realidade, 0 que se quer ressaltar que a chamada transigio n&o se completou. E, mais, que a directo imprimida Ss mudang é reveladora de um proceso constitutive de hegemonia, mas niio da sua realizagio. Por isso, a tensio resisténcia/congentimento transforma-se no objeto das novas estratégias das classes, em tempo de crise Com esse encaminhamento, buscamos, em primeira lngar, contestar 0 fatalismo da neoliberalizagdo do mundo ¢ as corres pondentes andlises proudhonianas das reformas, expressas na identificagio dos lados bom © mau das mndangas realizadas. Em segundo lugar, reafirmamos que, a despeito da diregao politica imprimida, esse processo € permeado de contradicées que produzem inflexdes de ordem politica. Admitimos que as teformas globais dos anos 80 © 90 — no Ambito do reordenamento macroccondmico ow da reestruturago produtiva — contradizendo qualquer previsto acerea do fim das ideologias, da luta de classe e da dissolugio dos ideérios socictais, antagOnicos, anunciam, segundo Przeworski, uma era da ideotogia, materializada na socializagio de um projeto intelectual, que tem como eixo a relagiio entre liberdade econémica ¢ liberdade politi (1993:209) De fato, 0 mundo “esté sofrendo um processo de ajuste global no qual a hierarquia das relagdes econdmicas © politicas internacionais est sendo rearrumada sob a égide de uma doutrina neoliberal, cosmopolita, gestada na capital politica do mundo capitalista” (Tavares ¢ Fiori, 1993:18) no comtexto de_um Ou seja: o ajuste global desenvolve- ago financeira © produtiva, que movimento conereto de global & comandado pelo Consenso de Washington. cgundo Num, “o Consenso de Washington 6 um modelo de desenvolvimento de cunho neoeléssico, elaborado pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetirio Internacional e pelos think tanks le Washington e que, agora, passa como sendo a Unica interpretagio racional passivel dos problemas da estabilizagio ¢ do creseimento” (1992:48), ganhando forga de doutrina constituida © aceita por mente todos os paises capitalistas do. mundo. 79

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