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A estratégia da lagartixa - uma viagem pelos bastidores da medicina

Dário Vianna Birolini

- Osasco, SP - Novo Século Editora, 2010

Coleção Novos Talentos da Literatura Brasileira

Gênero: Médicos - Reminiscências

Numeração: ausente, 285 pp

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Dezembro de 2017

Contracapa

"A atividade clínica cria em alguns médicos o desejo 'irresistível de contar casos. Neste livro,
Dário Birolini explora os limites de seu talento como escritor, ao alinhar as experiências vividas
desde os primeiros anos na faculdade, até atingir a maturidade profissional.

A narrativa é cheia de humor, observações atentas do comportamento humano, confissões


corajosas a respeito das fraquezas e limitações do médico, e de reflexões sobre o papel que
desempenhamos na sociedade moderna. As histórias são contadas em velocidade próxima à
de uma metralhadora rotatória, como se o autor estivesse empenhado em não deixar nada
para trás.

O resultado é um livro daqueles que o leitor não consegue parar de ler".

Dr. Drauzio Varella

"Quase 300 páginas devoradas, porém, de um fôlego. Sua escrita tem agudo senso de humor.
Consegue arrancar riso em muitas passagens sobre os bastidores da Medicina. E o melhor:
não é um livro que coleciona histórias de médico. Começa assim, mas lança a isca para ao seu
trecho final pontuar sobre o que é ser médico hoje e o futuro da Medicina. Para os médicos,
será instigante. Para os leigos, revelador".
Fernando Zamith

Jornalista, Rádio Jovem Pan/Jovem Pan Online

"De uma maneira absolutamente descontraída e com uma pitada suave de bom humor, o Dr.
Dário Vianna Birolini retrata nesse livro, baseado em casos verídicos, a realidade da nossa vida
médica e da importância da relação médico-paciente, tão desprezada na atualidade. É uma
obra que enriqueceu minha maturidade médica".

Dr. Alfredo Salim Helito

Clínico Geral, médico de família do Hospital Sírio Libanês

Consultor da Rádio Jovem Pan Autor do livro Saúde, Entendendo as Doenças.

Orelhas

"Este é o livro que todo médico desejaria ter escrito. Pois a medicina é uma das poucas
disciplinas que não reflete sobre a sua atividade. O estudo de sua história, de seus aspectos
sociais, antropológicos e filosóficos tornaria sua prática mais rica, mais eficaz e mais humana.
O texto resgata a subjetividade que se perdeu com a evolução da ciência. O autor enfrenta
com elegância e determinação a corporação médica: os que a denunciam de seu interior são
vistos como fracos ou traidores, e os que o fazem de fora são tidos como ingratos. A
Estratégia da lagartixa ilumina os recessos mais obscuros da profissão por meio de um texto
que mescla seriedade e bom humor, sem fazer concessões.

Se este é o livro que todo médico gostaria de ter escrito, ele é, natural mente, o livro que
todo médico desejará ler. A linguagem franca e acessível faz dele uma narrativa ao alcance de
todo leitor que deseje se aproximar da intimidade e dos bastidores da clínica a que todos têm
de recorrer inevitavelmente um dia."

Paulo Schiller
Formado em 1995 pela Faculdade de Medicina da USP, Dário Vianna Birolini se especializou
em Cirurgia Geral Avançada pelo Hospital das Clínicas;, em Cirurgia do Aparelho Digestivo pelo
CBCD e em Gestão na área da Saúde pela FGV.

Atualmente, é assistente do Departamento de Cirurgia no Hospital das Clínicas em São Paulo e


coordena o Departamento de Cirurgia do Aparelho Digestivo em um hospital privado em São
José dos Campos (SP), onde reside com a sua família.

DÁRIO VIANNA BIROLINI

A ESTRATÉGIA DA LAGARTIXA

Uma viagem pelos bastidores da medicina

Coleção NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

novo século'

São PAULO 2010

Copyright (c) 2010 by Dário Vianna Birolini

PRODUÇÃO EDITORIAL: Equipe Novo Século

PROJETO GRÁFICO E COMPOSIÇÃO: S4 Editorial

CAPA: Diego Cortez

IMAGEM DE CAPA: Vania Toledo

REVISÃO: Patrizia Zagni


Luci Kasai

"A melhor coisa que vocé pode fazer por uma pessoa é inspirá-la."

BOB DYLAN

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Birolini, Dário Vianna A estratégia da lagartixa : uma viagem pelos bastidores da medicina /
Dário Vianna Birolini. - Osasco, SP : Novo Século Editora, 2010. - (Coleção Novos Talentos da
Literatura Brasileira)

1. Birolini, Dário Vianna 2. Médicos - Reminiscências I. Título. II. Série.

10-00294

CDD-610.92

Indices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Médicos : Reminiscências 610.92

2010

IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO A

NOVO SÉCULO EDITORA LTDA.

Rua Aurora Soares Barbosa, 405 - 2º andar


CEP 06023-010 - Osasco - SP

Tel. (11) 3699.7107 - Fax (11) 3699.7323

www.novoseculo.com.br

atendimento@novoseculo.com.br

Dedico este livro a alguém que, além de ter sido muito importante para o desenvolvimento da
cirurgia de emergência, me inspirou a optar por essa especialidade.

Sua criatividade pode ser aferida na versatilidade de suas obras. Desenvolveu várias técnicas e
classificações conhecidas internacionalmente. Desde estratégias cirúrgicas nos ferimentos
cardíacos e descrições de regiões anatômicas até como salgar com perfeição um prato do seu
Almeida (garçom do seu restaurante predileto) ou estratificar a beleza feminina...

Não desperdicei o tempo em que convivemos no pronto-socorro; assimilei os seus conselhos e


aforismos. Posso dizer que, graças a eles, soube enfrentar com sucesso cenários complexos,
que iam de lesões hepáticas graves à angústia da minha esposa com suas dúvidas em relação
à melhor cor dos nossos "bem-casados".

Pode parecer ridículo dedicar este livro a alguém cujo maior ídolo é Camões, mas...

... ao cirurgião, caricaturista, músico, poeta e amigo, prof. Dr. Adoniram de Mauro Figueiredo

In bocca al lupo! Agradeço à minha amada esposa, que tanto detestou as horas que passei
longe dela, catando milho no teclado do meu computador e tentando organizar minhas ideias.

A vocês, queridos pais, que com muito sacrifício me presentearam com o maior tesouro que
carrego: a educação.

Aos professores que eu, sem muito sucesso, tentei me espelhar como, Dario Birolini, Eugênio
Ferreira, Paulo D. Branco, Marcelo M. Machado, Adib Jatene, Nelson F. Margarido, Celso de
O. Befnini e Adoniram de M. Figueiredo.
A todos os colegas que me ajudaram, lembrando de incríveis histórias e ponderando sobre
minhas divagações (nesse quesito, eu seria muito injusto se citasse apenas vinte ou trinta
nomes).

Ao apoio técnico que recebi, com tanto carinho, de Reynaldo Ayer de Oliveira, Roberto
Figueredo, Dráuzio Varella, Samir Rasslan, Vania Toledo, Fernando Zamith, Caio Soares e
Maria Helena Huebra.

À lucidez de Paulo Schiller, às sugestões de Jocielle Miranda, e à disposição em ajudar de


Antonio Mauro S. C. Bocalho, Wagner C. Pádua Filho, Alfredo Salim Helito, Miguel Srougi,
Maria Lúcia V da Silva, Carlos A. da Silva, Fernando Buischi, Waltênio Vasconcelos e Euclides E
de A. Cavalcanti.

À empolgação de Cristina de E M. Barretti. Sem a sua insistência eu teria desistido.

À Novo Século e sua equipe, por todo o apoio recebido e por acreditarem em meu trabalho.

Por fim, agradeço a você leitor. É o meu primeiro livro e ainda não conheço direito como
funcionam os meandros desse terreno, mas além de compartilhar experiências e
pensamentos, com a compra deste exemplar você estará ajudando a Ong para benefício
próprio "Faça um Birolini feliz"...

SUMÁRIO

Prefácio

Desculpas

Introdução fundamental

1 - O INÍCIO

A pré-história
O trote

O curso básico

Fugindo do curricular

Como examinar um paciente

Anamnese? O que é isso?

Treinando os cinco sentidos

Os exames complementares

A linguagem médica

2 - O INTERNATO

Preparo emocional

A prática

Como não fazer um parto

A hierarquia

A supervisão

Postura de médico

A empatia e o escudo protetor

O jogo de cintura

3 -A RESIDÊNCIA BÁSICA

A inspiração e a seleção

Serei um boneco-cabeção de Olinda?

O hipotálamo maluco e a cueca molhada

Furor operandi

Anestesia e anestesistas
"As" xerifes

4 -A RESIDÊNCIA AVANÇADA (3º, 4º E 5º ANOS)

O dia do raio e algumas superstições

Cuidando de um médico doente, sendo um doente médico

Pronto-socorro

Cliente habitual: o motobói

Cliente habitual: o bêbado

Cliente habitual: o bandido

Cliente habitual: a histérica - DNV

Pequeno manual de situações inusitadas

5 - O DESMAME DO HOSPITAL

O peso da profissão

A vitrine da loja

Atestados

VIP

Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...

Complicações Erros Algumas consequências negativas... ... e algumas consequências positivas

6 - ENCARANDO A REALIDADE

Novas faculdades... ... novas dificuldades

O consultório particular

Um mar de dúvidas
A medicina baseada em clarividências

A medicina virou um negócio da China!

7 - EPÍLOGO

O ensino O fim do honro cirurgicus

PREFÁCIO

Dário Vianna Birolini se expressa de modo direto. Sua escrita flui com humor, a começar pelo
título do livro. Emprega um mínimo de termos técnicos. Evita palavras eruditas, mas revela ser
possuidor de erudição. Por vezes, expressa-se como os doentes que contam os seus males e
aflições. Respeita a ética, não indicando pessoas nem entidades; no entanto, tudo que
descreve reflete a sua experiência na medicina até o presente, no âmbito da cirurgia geral,
com destaque à cirurgia de urgência.

Nessa área da cirurgia possui formação exemplar. Após a sua graduação na Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), fez quatro anos de residência em Cirurgia e
foi por dois anos Preceptor de Cirurgia no Hospital das Clínicas (HC) da FMUSP. Teve ampla
atuação no Pronto-Socorro Cirúrgico do Instituto Central do HC. Descreve, a seguir, com
pertinência, a dificíl e dolorosa passagem da "casa paterna", o HC (Hospital Escola
Universitário da FMUSP), para a vida profissional médica, em outras instituições hospitalares e
na sua clínica privada. Até o presente, o autor mantém vínculo empregatício com o Pronto-
Socorro Cirúrgico do HC. Saibam que fui, também, médico clínico do Pronto-Socorro do HC-
FMUSP de 1959 a 1968. Sou, portanto, um fiel avalista de tudo que ele relata sobre o PS-HC.
O cenário era o mesmo, estressante. Tratamentos com sucesso. Tratamentos sem sucesso.
Pacientes com medo, porém portadores de doenças simples. E, também, episódios
tragicômicos.

Fiz menção ao estilo de redação do autor, com humor. Embora o leitor sorria com frequência,
pois o texto é agradável e divertido, A estratégia da lagartixa é um livro muito sério. A biologia
ensina que a lagartixa, quando em perigo, presa pela cauda, livra-se dela para fugir. Essa
estratégia enseja uma metáfora. Na vida da gente, em certas ocasiões, abrimos mão de
algumas coisas para sobreviver ou viver melhor.
Dário Vianna Birolini discorre, entre outros temas, sobre a imperiosa necessidade de domínio
pleno da técnica cirúrgica. Concordo, porque só assim o cérebro do cirurgião fica liberado para
estabelecer as estratégias e executar as táticas e os gestos durante o ato operatório, tendo
em mente o pré e o pós-operatório. Comenta sobre o erro médico e o diferencia da
complicação inerente a qualquer procedimento, ainda que executado à perfeição. Analisa,
com perspicácia, os planos de saúde e os seus auditores, bem como os médicos, as clínicas e
os hospitais conveniados e, nesse contexto complexo, insere os pacientes que pagam pelos
planos de saúde. Faz menção aos três pecados: negligência, imperícia e imprudência. Enfim,
são muitos os aspectos abordados no texto, todos ilustrados com casos médicos e situações
inusitadas.

Tenho tido curiosidade de, por vezes, perguntar às pessoas a que faixa etária gostariam de
voltar, se fosse possível retornar no tempo. Dou preferência a fazer essa indagação àquelas
que já viveram o bastante, por terem um passado mais longo. As respostas são muito variadas.
Nos extremos, há os que retornariam à infância remota e, na outra ponta, os que negam
qualquer retorno, porque estão no presente prospectando o futuro. A pergunta dá ensejo a
conversas "de se jogar fora" que servem para fazer o tempo passar. Mas quando sou eu o
indagado sobre o tema, tenho sempre a mesma resposta: desejaria retornar aos 40 anos de
idade, quando já se acumularam experiências no trabalho e na vida em geral e ainda se tem a
vida pela frente para poder enfrentar vários desafios, inclusive no trabalho.

Dário Vianna Birolini está por aí, nesse tempo de vida de cerca de 40 anos. Ao escrever o livro
A estratégia da-lagartixa, no qual leva o leitor a uma "viagem aos bastidores da medicina", ele
revela a sua experiência vivida e, após analisá-la, conta e comenta. Esses bastidores estão
repletos de emoções, boas e más, e de coisas certas e erradas. Deixa transparecer, também,
desafios que poderão ser enfrentados. Afinal, pela sua idade, ele tem a vida pela frente.

MARCELLO MARCONDES MACHADO

Professor titular emérito e

ex-diretor da FMUSP

***
DESCULPAS

A você que comprou o livro, pensando que o seu autor fosse o professor emérito de cirurgia da
FMUSP, importante pesquisador, divulgador do ensino da Clínica Cirúrgica, pioneiro, entre
outras conquistas, ao trazer, para o Brasil, a unidade de terapia intensiva (UTI) nos anos 1960,
o resgate e a cirurgia do trauma nos anos 1990, minhas desculpas.

Ele é meu homônimo que, involuntariamente, algumas vezes tornou a minha vida mais fácil e,
em outras, muito mais difícil.

Caríssimo tio, minhas desculpas. Talvez este livro o faça passar por certo constrangimento
pela segunda vez. Não sei se ficou sabendo da primeira, mas foi bem esquisita e vou lhe
contar...

Atendi um paciente com problemas mentais quando era residente no segundo ano (R-2) de
cirurgia. Ele se queixava de dor no ânus - fazia 12 anos - quando procurou o pronto-socorro.
Como eu o examinei e não achei nada de errado, expliquei que o encaminharia ao
ambulatório. Lá poderia ser realizada uma investigação mais detalhada, uma vez que não se
tratava de uma urgência, embora seus sintomas persistissem. Não sei por que, mas o paciente
ficou por vários dias andando pela rua com a guia de encaminhamento carimbada com o
nosso nome e assinada por mim. Para todos os médicos com quem se defrontava nas
calçadas, mostrava o papel e perguntava se conheciam aquele profissional - apontando para o
meu carimbo. Após uma resposta afirmativa (pois pensavam se tratar do senhor), contava que
esse médico - e apontava para o nosso nome - teria enfiado um prego no reto dele. Puro
delirio, mas a reação era sempre de surpresa e piorava quando ele, como prova, mostrava
uma foto que teria tirado em close-up do próprio bumbum (evidentemente sem prego)... Até
que o paciente mudasse de atitude, o senhor foi motivo de chacota.

Basta assistir a dez minutos de videocassetadas para perceber como somos politicamente
incorretos. Achamos graça de quem cai, bate, escorrega, leva uma paulada. Rimos do
sofrimento alheio. Mas será que a pessoa que caiu também se divertiu tanto assim com o seu
flagrante?

Neste livro, narro situações curiosas, mas que sempre acabam envolvendo alguém que sofre
ou é tratado de algum mal. Para os que, infelizmente, passaram por situações parecidas às das
histórias, seja como pacientes seja como parentes destes, minhas desculpas. Estar do outro
lado, sofrendo, não é nada fácil.
***

INTRODUÇÃO FUNDAMENTAL

Uma comparação grotesca, porém cabível:

O único modo, e talvez a última chance, de salvar a vida daquele paciente seria amputando a
sua perna.

A troca de um membro pela vida - exclamou o doutorando -, assim como uma lagartixa
acuada por um predador...

Certa vez fui comprar um livro numa dessas grandes livrarias. A balconista, ao me atender,
pediu o meu cartão de crédito e a minha identidade. Dei, por engano, o cartão do plano de
saúde em vez do de crédito. Ela logo percebeu o erro e educadamente me alertou do fato.
Pedi desculpas, ao que a moça simpaticamente completou:

-Tudo bem, errar é humano! Não perdi a oportunidade de fazer uma brincadeira: - Mesmo
sendo médico? Para a minha completa surpresa, a moça ficou atordoada. - Mas você é
médico! Então não deveria errar! Será que ela nunca teria aventado essa possibilidade?

Normalmente, consideraria esse diálogo irrelevante e insípido, mas ele gerou uma série de
reflexões em minha mente. O primeiro pensamento foi, na verdade, um pedido aos céus para
que ela nunca fosse minha paciente, pois sou falível. Não gostaria de tratar de alguém assim
tão intolerante. Mas o que veio depois foi a semente deste livro.

Não era a primeira vez que percebia essa cobrança das pessoas que se esquecem do fato de
que nós, médicos, somos humanos. Será que ela ocultava tal dado por pura conveniência, ou
toda aquela reação era resultado de nossa própria hipocrisia como médicos?
Quantas vezes ouvi indagações semelhantes a esta: - Hoje tenho um importante
compromisso, mas entrei em contato com a minha irmã, que está com diarreia. Desenvolverei
os mesmos sintomas?

Respondo, de forma bem-humorada, dizendo que a irmã dele era a terceira do dia que
atendera por diarreia. Não podemos ser negligentes com a higiene, mas se a doença passasse
de uma pessoa para a outra assim tão facilmente, teria de trabalhar sentado num vaso
sanitário!

Será que esse fulano acha que, por ser médico, eu sou imune? Muito pelo contrário! Se ficar
doente, ainda sofro o risco de infecções pela flora hospitalar. Imagine uma moléstia causada
por alguma daquelas bactérias que só morrem a marteladas! Mas parece que o impulso inicial
(irracional), exceto a consternação, é: médico também fica doente?

Surpreendente! O médico fica doente! Isso para não falar de quando é suspeito de metralhar
a plateia num cinema ou de abusar de adolescentes sedados, por exemplo.

É evidente que tais acontecimentos estão muito distantes do normal ou do aceitável, mas a
profissão dos autores desses delitos amplifica nossa indignação. Por quê? Resquício da época
em que "doença-pecado" e "médico-sacerdote" eram quase considerados sinônimos?

Outra vez, ao ser questionado por um paciente quanto à demora no atendimento em um


hospital público, expliquei que naquele dia a demanda vinha muito acima do normal.
Estávamos fazendo o possível. Ele questionou, indagando se não poderíamos ser mais rápidos.
Eu disse que já estávamos no limite da segurança. Um pequeno acréscimo na agilidade do
atendimento aumentaria em muito as nossas chances de errar, e as vítimas poderiam ser eles
mesmos. Pedi paciência e brinquei dizendo que desde manhã não tínhamos tido tempo nem
para ir ao banheiro. A sua resposta, muito dura, foi:

- Se precisa ir ao banheiro, não deveria ter escolhido esta profissão! Por acreditar que presto
um serviço de alta qualidade, comumente fico frustrado quando não sou bem atendido por
qualquer um que seja. É muito difícil não fazer comparações. O paciente tem o mesmo direito
de ser exigente. E não deve ser nada fácil ficar esperando muito, quando se sente náuseas ou
dores. Mas não precisava ter dito isso. Não somos super-homens. -
Você pensa que isso só acontece em hospital público? Trabalhei num hospital privado de
primeira linha. Nele, mensalmente, era enviado um relatório aos plantonistas com as queixas e
sugestões advindas do serviço de atendimento ao cliente.

Eu tinha o hábito de ler as reclamações. A meu ver, algumas queixas eram totalmente
pertinentes. Outras evidenciavam, claramente, falta de conhecimento sobre o médico e a sua
vida. Poderia citar várias delas, mas mencionarei aqui a primeira que me veio à mente. Era
mais ou menos assim:

- Fui atendida neste hospital por causa de uma dor muito forte nas costas. Apesar de aliviar a
minha dor e de ter feito o diagnóstico correto de cólica renal, me incomodou o fato de o
médico estar com cara de sono, todo amassado e com o cabelo despenteado. Senti-me
desrespeitada. Horário do atendimento: 04h30min.

A apresentação do médico é fundamental. Mas nesse caso não era nem de longe a prioridade.
Calcula-se que até 25% da população possa ter uma crise de cólica renal na vida. Se você já foi
um desses azarados, deve se lembrar da intensidade da dor. Dizem que é pior do que a dor
do parto.

Quando acordaram o colega às quatro da manhã, dizendo que um paciente com provável
cólica renal tinha chegado, ele saiu correndo para aliviar o sofrimento e não para retocar a
maquiagem. Esta é uma das razões por que em muitos locais os plantonistas trabalham de
uniformes-pijamas.

Essa pessoa provavelmente não ficou frustrada ao descobrir que aquele profissional deitava
sem aquelas redinhas de cabelo, mas, sim, ao perceber que ele dormia durante o plantão. O
plantonista estaria "dormindo em serviço", fato esse comprovado pela sua cara!

Pode causar surpresa, mas nós dormimos no plantão. Por quê? Primeiro, porque também
somos escravos dos nossos relógios biológicos e muitas vezes não chega nenhum paciente de
madrugada. Segundo porque, em geral, trabalharemos normalmente no dia seguinte. Nós
também ficamos amassados e despenteados quando acordamos.

Quanto tempo você levaria para se desamassar e trocar de roupa, caso fosse acordado às
quatro da matina? Preferiria esperar todo esse tempo com uma das piores dores que o ser
humano conhece, para depois ser atendido por alguém engomado?
Talvez você esteja dizendo: - Ah, espera aí! Não somos tão radicais assim! É uma exceção!
Concordo. Mas imagine que você vá a um pronto-socorro com alguma queixa (que não seja
emergencial ou dolorosa) e o médico demore um pouco para atendê-lo. Se essa demora
(suponhamos que, de cinco minutos) ocorrer porque o médico estava terminando de almoçar,
certamente lhe explicarão que ele estava em outro procedimento. Nunca lhe dirão: "Aguarde
um pouquinho, pois o doutor está na sobremesa. Falta só o cafezinho".

Embora sabendo que nos alimentamos diariamente, duvido que a segunda resposta o deixe
mais confortável que a primeira. Eu também preferiria a primeira.

Eu aqui esperando, enquanto o médico toma um cafezinho? Guardadas as devidas


proporções, pergunto se no seu trabalho você não tem tempo para almoçar ou não termina
de tomar o cafezinho antes de atender alguém?

Sempre que vou ao ambulatório, ao ver aquele monte de gente esperando, fico imaginando o
que os pacientes diriam se colocássemos uma plaqueta, como aquelas que já vi em alguns
bancos:

- Seguimos aqui a determinação do Ministério do Trabalho. A cada sessenta minutos de


trabalho, descansamos dez (algo mais ou menos assim)...

E quanto aos erros... Cometemos pequenos erros diariamente, embora também os corrijamos
constantemente ao conduzirmos nossos casos clínicos.

Como não errar?

Várias doenças podem ter exatamente as mesmas manifestações clínicas e laboratoriais. Para
tudo existem resultados falso-positivos e falso-negativos. Nenhum exame possui 100% de
acurácia. O paciente às vezes mente ou oculta fatos. A mesma doença pode apresentar-se
com diferentes manifestações dependendo do paciente, das afecções associadas, de
interações medicamentosas e até do clima!
Como não errar, se somos imperfeitos? Será nosso raciocínio igualmente eficaz quando
atendemos um mendigo ou o presidente da República ou no começo e ao fim do plantão?

Basta seguir protocolos e não haverá enganos! Duvido... A maioria dos protocolos esclarece
muito bem o que fazer, por exemplo, no caso de dor abdominal "presente" ou "ausente". Mas
nada orientam para os "não sei", para os "mais ou menos" e os "não é bem uma dor", que
podem aparecer em muitos casos.

Além disso, poderia (ou deveria) o médico seguir a mesma trilha diagnóstico-terapêutica com
o paciente pouco abastado e o credenciado pelo seguro "plus-diamond-universal"? Com o
senhor alérgico a iodo e o superobeso? Na rua, na cadeia, no hospital geral?

A falsa impressão de que o médico não erra, não precisa comer ou não tem fadiga, é
realmente muito conveniente. Dessa forma, enquanto pacientes, estaremos seguros. Não
seremos vítimas de imperfeições humanas.

Desculpe-me, leitor, mas pretendo decepcioná-lo constantemente. Sabe aquele médico de


família excelente, solícito e que sempre acerta? Ele também já teve o seu primeiro paciente.
Sofre as angústias, dúvidas, medos e fraquezas do nosso dia a dia. Engana-se. Fica doente,
alimenta-se e possui as mesmas necessidades fisiológicas que todos nós.

Por essas e outras, com a intenção de mostrar que somos feitos de carne e osso, como
qualquer outro mortal, comecei a colecionar relatos de casos e "causos".

Que valor teria narrar o que ocorre em 90% do nosso tempo e que você já conhece? Falar dos
acertos médicos, das inovações tecnológicas, da nossa enérgica disposição e da dedicação ao
trabalho, dos casos corriqueiros e sem desafios, do sacerdócio e da ética inabalável? Isso
apenas solidificaria uma imagem de perfeição, a qual desejo refutar!

A crescente intolerância às nossas imperfeições humanas, algumas vezes absolutamente


inevitáveis, acabará levando à extinção da profissão médica, coisa que já vem ocorrendo em
muitos locais e especialidades.

Talvez uma forma de salvar o médico - assim como a lagartixa - seja mutilando parte da sua
imagem e reputação, ao expor os 10% restantes.
A minha intenção não é de macular a imagem do médico, mas acredito que, expondo a nossa
condição de seres humanos, as pessoas se tornarão mais tolerantes. Não há nada melhor do
que exemplos para demonstrar, desnudar nossas fraquezas, dúvidas e erros. Porém, a
exposição de eventos desconexos tornaria a narrativa muito enfadonha. Assim, pensei em
escrever, em sequência cronológica, sobre a formação e o dia a dia de um médico, enquanto
relato um pouco da nossa rotina, tantas vezes imaginada de forma diferente, romântica.

Apesar de contar alguns fatos que realmente se passaram comigo (com algumas modificações
para preservar a imagem dos envolvidos), aproveitei para enriquecer a narrativa inserindo
várias histórias do folclore médico. Da mesma forma, alguns questionamentos e reflexões
instigantes que mencionarei, apesar de muitas vezes deles discordar, também provêm de
outros autores. Portanto, é extremamente importante que o leitor saiba que esta obra de
ficção não é uma autobiografia, apesar de desenvolver os capítulos na primeira pessoa. Todos
os lugares, pessoas e acontecimentos, da forma como narro, são imaginários.

(Mesmo assim, se sua avó for uma daquelas pessoas que, ao se encontrar com o vilão da
novela na rua, o repreende pelas maldades do seu personagem, me previna, por favor.)

Tentei lembrar-me das dúvidas e curiosidades mais frequentes, dos graduandos e de meus
amigos que não eram médicos, sobre os bastidores da medicina atual. Ao discorrer sobre
esses assuntos, deparei-me com temas muito espinhosos e polêmicos, o que não significa
estar de acordo com eles, aceitá-los ou achá-los divertidos. Caberá ao leitor avaliá-los.

Minha intenção não é fazer rir, embora tente, com bom humor, relatar algumas histórias
pitorescas que despertaram a curiosidade em todos que as ouviram. Isso não constitui uma
novidade. Vários médicos já escreveram livros sobre suas aventuras e desventuras. Alguns,
posteriormente, se tornaram competentes escritores a ponto de brincarem que pagariam
uma gorda recompensa para quem achasse um exemplar do seu primeiro livro e o queimasse.
Tudo por vergonha do conteúdo e da forma do que teriam escrito décadas atrás. Não temo
tanto assim o meu futuro, uma vez que não pretendo ser escritor-médico nem médico-
escritor. Mas peço desculpas ao leitor pelo meu amadorismo na área. Tentarei ser o mais
didático e o menos técnico possível.

Quando comecei a escrever, muitas pessoas me disseram que os leigos não entenderiam e
que o livro queimaria o filme dos médicos.
Mas, desde que eu consiga mutilar a imagem desses "super-homens" na medida correta,
acredito que, além de ajudá-los, este livro pode ser uma fonte de descoberta e de
sentimentos muito interessantes para ser descartado.

Isso foi confirmado por vários amigos, inclusive um que, após ler algumas linhas, me
estimulou de forma óbvia, mas sincera:

- Se todo mundo ler o seu livro, será um best-seller! Espero que esteja correto e que eu
consiga tirar, do médico, somente a cauda.

***

1 - O INÍCIO

A pré-história

Caso você não tenha lido a introdução deste livro (seu preguiçoso!), volte e leia. Pensando
bem, a cada dez capítulos será recomendável relê-la.

Nunca fui uma daquelas pessoas que desde criança sonhava com uma atividade específica,
como boa parte dos médicos. Entrei na faculdade muito jovem. Naquela época, desconhecia,
por ignorância mesmo, 90% das profissões. Das poucas que sabia, Medicina era a que me
parecia a mais segura em termos de emprego e também a de maior glamour. Não estava tão
em voga o erro médico. Parecia ser um bom ramo. Assim, aos 17 anos, e admirando vários
parentes doutores, resolvi prestar vestibular para Medicina.

Não deixei de realizar um daqueles populares testes de aptidão. Para variar, o resultado foi
muito vago e não me ajudou. De qualquer forma, futuramente, não ficaria muito angustiado
com isso. Sabe por quê?
Porque uma das grandes vantagens na Medicina é que, com o amadurecimento, temos um
leque enorme de escolhas pela frente. Conheço poucas pessoas que abandonaram o curso
para prestar outra faculdade. Aqueles que entraram por pressão dos pais ou romantismo e
que, na verdade, queriam ser psicólogos, desde que tenham tido paciência, acabaram virando
psiquiatras.

Essa adaptação pode funcionar com uma série de outras áreas. Para não dizer que sou
preconceituoso ou que tenha ressentimentos, resolvi reproduzir este quebra-cabeças,
desenvolvido por um grupo de cientistas anônimos.

Pegue uma caneta. Agora você mesmo poderá juntar as setinhas e chegar às suas próprias
conclusões.

Exemplo:

Eu queria ser administrador de empresas - então faça administração hospitalar Agora é com
você... - Ajudante de pedreiro - Plantão de pronto-socorro -Técnico em Informática
- Informática médica - Advogado - Medicina legal - Marcenaria -
Ortopedia - Engenheiro - Engenharia Genética - Procurador de pelo em ovo -
Auditoria de convênios

Além das vontades, aptidões e armbições, o próprio perfil do médico acaba sendo responsável
pela escollha de sua área.

Na verdade, não sei quem seria o ovo ou quem seria a galinha, mas existe até uma tese de
doutorado em Psicologia a esse respeito. Esta, de forma muito resumida, aponta, por
exemplo, o cirurgião como sendo muito focado, objetivo e direto, ao passo que o clínico
costuma ter uma visão mais aberta, perdendo um pouco o foco'. Mas antes de discutir a
evolução da escolha por uma ou outa área, tinha de entrar em alguma faculdade e dei sorte.
Prestei o vestibuilar e fui aprovado.

*1. BELLODI, P. L. O clínico e o cirurgião: estereótipos, punrrsonalidade e escolha da


especialidade médica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

***
O trote

"Os trotes começaram ainda na Idade Média, quando os calouros eram colocados nos
vestíbulos (daí a origem da palavra vestibular), que antecediam a sala de aula. Ali, eles tinham
os cabelos raspados, por uma medida profilática, pois havia a possibilidade de propagação de
doenças, sobretudo a peste. É interessante destacar que, enquanto naquela época os cabelos
eram raspados por medida preventiva, hoje, é sinal de sucesso, de realização e de posição de
destaque."

MARCOS ANTÔNIO SILVEIRA REIS

Embora esse ritual de passagem tenha mudado bastante, a primeira coisa que ocorreu
quando entrei na faculdade foi o trote.

Ainda que fazendo jus à sua definição, raramente era abusivo. A maioria das vítimas o levava
na brincadeira. Talvez por isso era parcialmente negligenciado pelas autoridades da faculdade.

Não tinha piolho nem era portador da peste, mas cortaram meu cabelo, me pintaram todo,
recortaram minhas roupas e me deram um monte de cerveja e refrigerante.

Depois desse linchamento "consentido", levaram-me a um churrasco de confraternização.

Antes da faculdade, tinha um único amigo de olhos puxados. Não sabia distinguir um chinês
de um japonês. Imagine o meu trote, cercado por sessenta orientais carecas e com a face
pintada. Não sabia com quem estava confraternizando nem com quem tinha confraternizado!

Para ir da faculdade ao clube onde seria o churrasco, os veteranos amarraram,


simbolicamente, um barbantinho no punho de cada calouro e formamos uma imensa fila
indiana. Esta passava por um lava-rápido de gente, em que alguns veteranos tiraram o excesso
de guache do nosso corpo. Depois, caminhamos para o deck ao redor da piscina. Lá, em
volume altíssimo, uma bateria e caixas de som enormes tocavam os hinos e as músicas da
faculdade que deveríamos aprender para as competições. No meio dessa bagunça, de
repente, os veteranos gritaram:
- Piscina!

Nessa hora, quase duas centenas de calouros saíram correndo como se fossem uma manada e
pularam ou foram jogados, seja pelos veteranos, seja por seus amigos de escola, para dentro
da água. Foi tudo tão rápido que nem vi quem me jogou.

Na piscina, os novatos ficaram nadando, gritando, espirrando jatos uns nos outros e em quem
tinha ficado de fora. Devido à tinta do trote, a água ficou turva (pra não dizer preta, na área
mais profunda). Foi uma tremenda algazarra que deixou boas lembranças.

Quem diria que, uma década depois, uma faculdade ficaria maculada para sempre com a
terrível morte de um dos seus calouros. Eu não sei como ninguém previu essa evidente
possibilidade, uma vez que o trote parece ter sido similar.

Eu era o residente de cirurgia mais graduado do pronto-socorro, quando apareceu uma aluna
esbaforida, gritando que um calouro estava se afogando no clube. Rapidamente, pedi ao
residente do 32 (R3) e do 2º anos (R2) que pegassem o material de reanimação normalmente
utilizado para recepcionar os helicópteros e fossem voando com a ambulância do hospital
para o local. Pouco tempo depois, meu R3 retornou em choque, indignado, frustrado e
estressado.

Após acalmá-lo, ele me explicou que, ao chegar de sirene ligada e a mil por hora na piscina do
clube, constatou que o aluno estava morto havia horas. Tudo o que fez foi chamar os
bombeiros para resgatar o corpo.

Segundo o residente, a piscina estava muito escura por conta de todo o guache dos calouros
mal limpos pelo lava-rápido de gente. O funcionário do clube passava o aspirador no fundo da
piscina quando notou algo estranho em seu leito. Ao prestar mais atenção, identificou o
corpo. Isto, pelo menos, 30 minutos após iniciar a limpeza da piscina. Com essa informação, o
médico resolveu declará-lo morto, pois antes dessa meia hora ninguém teria tido acesso à
piscina, a não ser na noite anterior. Mesmo assim, foi pressionado para retirar o aluno da água
e tentar reanimá-lo. Não deve ter sido nada fácil.
Ouvi quinhentas versões diferentes do ocorrido e não gostaria de polemizar algo tão doloroso.
A morte desse moço foi um fato absurdo, irreparável e lamentável. Mas, se é que resultou de
um ritual parecido com o que passei anos antes, pelo menos fez com que as pessoas se
conscientizassem dos perigos daquela"inocente"brincadeira. É óbvio que, algum dia, algo
poderia sair errado!

Ao terminar o evento, voltei para casa a pé (acho que nenhum meio de transporte público me
aceitaria naquele estado) com o que restava da roupa, rasgada e pintada. Todo mundo na rua
me olhava. Expressões de dó, espanto e indignação.

Paradoxalmente, transpirava satisfação. Ostentava alegremente a minha careca pintada como


um grande troféu.

Não sou a favor do trote. Mas é curioso como alguns ficam orgulhosos ao passarem por esse
constrangimento público, enquanto outros se sentem extremamente humilhados. Eu não me
senti violentado. Tentei entrar na brincadeira e agraciar-me com os louros da conquista.

Calouro é mesmo um ser esquisito, não? Poucos dias depois tivemos a aula inaugural com um
ilustre professor de cirurgia cardíaca. Ao sairmos do teatro da faculdade, onde ocorrera a
brilhante exposição, mais tinta e meleca. Literalmente, chovia farinha e guache na porta do
teatro. Por sorte, aquele foi o meu último contato com a sujeira.

Iniciaríamos, então, o período de adaptação à nova etapa de nossa vida.

A essa altura dos acontecimentos, não tinha a menor ideia do que significava uma
universidade. Estava acostumado com o esquema de tocar o sinal para começar e acabar uma
aula. Onde estavam os bedéis? A lista de presença? A diretora?

Sabendo que estávamos perdidos, vários veteranos surgiram para nos "ajudar". O instrutor de
anatomia, por exemplo, nos orientou sobre os materiais que seriam utilizados no curso de
mesmo nome e assim por diante. Não era raro aparecermos em casas de material cirúrgico
procurando por uma caixinha de foramens, carretel de linha Alba, um axônio de vinte
centímetros ou outros absurdos.
Foramens são orifícios naturais nos ossos, por onde passam vasos ou nervos. Linha Alba é o
nome dado ao tendão dos músculos abdominais. Axônio é a cauda da célula nervosa, o
neurônio.

Outros veteranos filiados ao centro acadêmico perguntavam se desejaríamos vagas no


estacionamento. Para adquiri-las, bastaria pagar um pequeno valor. Teríamos até placas
indicativas com o nosso próprio nome. Quão orgulhosas ficariam as nossas mães!

Mas o estacionamento de graça era para todos. Será que ninguém havia notado a inexistência
de plaquinhas exclusivas?

Foi muito divertido descobrir onde eles colocaram a minha plaqueta. As elegantes palavras
"Reservado - Doutorando Dário" estavam fixadas no galho de uma árvore. Havia outras no
porão, dentro dos banheiros e até na frente das placas que demarcavam as vagas de alguns
professores. E era engraçado quando algum calouro, crédulo, estacionava o carro ali...

Acreditando que o trote teria terminado, começou o curso. A primeira aula, intitulada
"Medicina natural - Os poderes da banana na cura do onfaloma" (um tipo de tumor que dá no
umbigo), foi ministrada por um professor, que devia ter uns quarenta anos, no anfiteatro da
disciplina de Medicina Legal. Apesar da idade mais avançada que a nossa, ele ainda era um
estudante da faculdade. Só percebemos a pegadinha quando alguns "alunos repetentes"
começaram a discutir entre si se a banana nanica era mais potente que a prata, com
argumentos que os levaram a cair na gargalhada.

Agora sim o trote havia terminado. Mas começou a frustração...

O curso básico

Antes de passar pelas áreas médicas, o aluno entrará em contato com as básicas, muito
distantes do que ele desejava e imaginava ser uma faculdade de Medicina. Hoje isso vem
mudando, com sua inserção cada vez mais precoce no contato com o paciente, até mesmo
para que perceba a importância das matérias básicas. Mas, naquela época, fiquei muito
frustrado por um motivo diferente. Ao contrário da maioria dos alunos, ao entrar na faculdade
comecei a pensar em trabalhar com laboratório, especificamente na área de genética. Logo
nos primeiros meses pude conhecer a realidade da pesquisa em nosso país mesmo dentro da
universidade e concluí que Einstein tinha razão: - "a ciência é uma coisa maravilhosa, se você
não tiver que ganhar a vida com ela"...

Nessa fase aprendemos duas coisas fundamentais para qualquer aluno de Medicina. Por meio
das enfadonhas aulas de bioquímica, biofisica, histologia, genética, entre outras,
incorporamos o que serviria mais tarde como pilar de toda a nossa formação médica.
Aprendemos também a jogar truco, um jogo de baralho em que o blefe é muito importante.

Sorte ou azar, aprendi mais sobre os pilares do que sobre as cartas de baralho, embora elas
tivessem me proporcionado boas risadas e reforçado o contato com alunos de outros cursos
no campus.

Estes sempre nos perguntavam sobre uma vedete do nosso aprendizado básico. E não eram as
maravilhosas aulas sobre "Estudos dos Problemas Brasileiros". Falemos um pouco, então,
sobre os cadáveres.

O contato com os cadáveres não é muito agradável, mas eles são peças fundamentais e
indispensáveis para se aprender anatomia. Se alguém duvida, basta tentar aprendê-la apenas
com a leitura. Para exemplificar, abri aleatoriamente um livro-texto (com mais de trezentas
páginas) e copiei o pequeno trecho:

"O ramo da iliaca interna passa para trás entre o primeiro e o segundo ou segundo e terceiro
nervos sacrais e deixa a pelve pelo forame isquiático maior, abaixo do piriforme. Desce no
glúteo medial ao nervo isquiático sob o glúteo máximo, atrás do obturatório interno...."2

Pelo amor de Deus! Imagine-se estudando isso numa madrugada, véspera de prova. Não
tenho dúvidas de que aqui realmente funciona o ditado que diz: "uma imagem vale mais que
mil palavras". Diria ainda que o cadáver vale mais que mil imagens, pois podemos analisá-lo
tridimensionalmente e em vários ângulos, além de sentir sua textura, seu peso e... seu cheiro.

Atualmente existem técnicas mais agradáveis de conservação, como a plastinação (vide


aquelas exposições "artísticas" do corpo humano). Mas naquela época só tínhamos o formol,
que fede muito, faz os olhos lacrimejarem e as narinas arderem. E pasme: algumas mulheres
ainda pagam para utilizar isso no alisamento dos cabelos!
*2. GARDNER, G.; RAHILLY, O. Anatomia. Rio de Janeiro: Guanabara,1988.

Além do desconforto físico, havia o emocional. Não que eu imaginasse a vida daquele corpo ou
o seu eventual sofrimento. Com o tempo, eles passam a parecer bonecos inanimados.
Literalmente, peças de anatomia. Mesmo assim, não dava para sair da aula e ir direto ao
Bandejão Lavoisier (refeitório da universidade) comer carne de panela com aqueles nervinhos
que dificultam a deglutição. É igualzinha à musculatura humana! Eu tinha náuseas só de
pensar.

Brincávamos que os cozinheiros eram adeptos da teoria de que nada se perde e tudo se
transforma, principalmente quando o cardápio da semana incluía, consecutivamente, bife,
estrogonofe e carne moída...

Mas isso ocorria só no começo. A capacidade de adaptação do ser humano é imensa. Após
alguns dias, dissecávamos sem problemas, e a vontade de comer bife voltava quando a aula
começava a se prolongar demais.

Após utilizarmos o cadáver, ele precisava ser devolvido para o tanque de formol. Não
podíamos levá-lo para uma lição de casa. Já os ossos, podiam ser examinados sem luvas,
exigindo apenas cuidado na manipulação, para sua conservação. Assim, recebíamos uma
sacola cheia de ossos diversos para cada pequeno grupo de anatomia. Graças a um desses
sacos, ocorreu um episódio curioso.

Eu deixei a sacola de ossos guardada dentro do meu carro e fui assistir a um jogo no
Pacaembu. Ao retornar, descobri que tinha sido roubado. Como não achei mais o meu veículo,
procurei uma delegacia para lavrar um boletim de ocorrência. Ao relatar os objetos que
teriam sumido, talvez por ser uma coisa tão natural para nós, nem pensei nas consequências
que sofreria ao declarar a lição de casa:

- Tinha algum pertence dentro do automóvel? - Sim, uma carteira, documentos, meu rádio e
uma sacola com ossos. - Carteira, documentos, rádio, osso de cachorro... - Não eram de
cachorro. Eram humanos. - De plástico? De brinquedo? - Não, né! De cadáver...

O boletim instantaneamente se transformou em inquérito. O policial não se conformava.


- Ossada de quem? Como morreu? Onde achou os ossos? Tem como provar?

Ah, se arrependimento matasse... Eu achei que seria detido e fiquei indignado, o que
conturbou ainda mais o ambiente. No fim quase fui preso mesmo, devido às "incongruências"
do meu depoimento.

Coincidência ou não, fato é que depois daquele episódio na delegacia duas coisas
aconteceram:

• Proibiram a retirada de ossos do ambiente acadêmico;

• Os assaltantes abandonaram aquele carro sem levar nada. Vai ver acharam que pertencia a
um serial killer...

Passado o impacto inicial, as aulas de anatomia e os experimentos com sapos ou ratinhos


passaram a ser rotina e perderam o encanto. Continuamos sentindo falta dos pacientes e do
hospital, que só apareceriam por volta do terceiro ano da faculdade ou nas atividades
extracurriculares.

Fugindo do curricular

Desde o início do curso, podemos participar de muitas atividades paralelas, mas na minha
ingênua e imatura cabeça elas representavam uma grande novidade que acabei aproveitando
muito pouco.

Atividade extracurricular, no segundo grau, era sinônimo de cabular aula. Inclusive na


faculdade, achava estranho participar de algo oferecido pela instituição, o que,
necessariamente, implicaria abrir mão de algumas aulas. Eu ainda era muito imaturo e
"caxias" para isso. Ainda não tinha percebido que a faculdade era um meio de me tornar
autodidata.

Acredito que o objetivo primordial da Escola de Medicina seja o de formar médicos. Penso
que a atividade curricular deve ser muito mais valorizada do que a extracurricular. Os cursos
curriculares, que foram estudados e reformados várias vezes, têm por objetivo formar o
melhor profissional possível.

Dificilmente um aluno repete o ano na faculdade. E como passar de ano, em geral, é moleza,
parte dos professores tende a desvalorizar os que se dedicam mais ao curso propriamente
dito do que às atividades paralelas. É como se fazer o curricular fosse apenas uma obrigação,
independentemente de como o cursamos. Há alunos que passam pelo estágio de cirurgia
estudando apenas os resumos das aulas dadas. Outros, após estudarem quase todo o livro-
texto, coisa que, muitas vezes, nem os próprios residentes conseguiram. Será que esses
estudantes teriam tempo para atividades extras?

O fato de os médicos trabalharem muito também torna irrelevante aos professores as nossas
queixas de excesso de carga horária. Como ousaria reclamar que estava trabalhando muito se
meu chefe, um professor livre-docente fluente em três idiomas, tinha sido boia-fria e depois
auxiliar num banco, enquanto cursava a faculdade em período integral?

De uma forma ou de outra, os cursos, as ligas, as pesquisas e os estágios eram muito


valorizados. E, talvez, o aspecto mais importante deles tenha sido a abertura dos horizontes
que poderiam nos proporcionar.

Na minha entrevista para entrar na residência médica, fui muito criticado por não ter
trabalhos publicados ou monitorias. Em resposta, disse que dera prioridade à atividade
curricular. Pude dizer isto embasado em minhas notas, que eram muito boas. Para não falar
que minhas atividades extracurriculares foram nulas, participei de vários cursos e algumas
pesquisas.

Na primeira pesquisa, o objetivo era estudar a hipotermia (baixa temperatura corporal)


durante o atendimento de pacientes acidentados, tentando relacioná-la ao tratamento e às
suas complicações.

No atendimento de um traumatizado grave é muito comum que quatro ou cinco médicos


atendam o paciente ao mesmo tempo, realizando atividades simultâneas e coordenadas, com
alguns auxiliares de enfermagem. Enquanto um verifica e trata os eventuais problemas da
respiração, outro médico cuida da circulação e dos sangramentos, outro, da parte neurológica,
outros, ainda, dos membros e das fraturas, e assim por diante.
No meio dessa bagunça, como um contorcionista, tinha que me aproximar do paciente,
apresentar-me, explicar a pesquisa e pedir permissão para aplicá-la.

Uma vez concedida, driblando todos aqueles procedimentos médicos, inseria um termômetro
digital no ânus do paciente e acompanhava a sua evolução.

Por isso, fiquei conhecido no pronto-socorro (PS) como "o rapaz do sorvetão". Quando algum
médico me via, saía correndo e escondendo o bumbum só por gozação.

A pesquisa empacou depois de um tempo. Seria necessária a minha presença constante no


pronto-socorro e ainda teria que ter a sorte de pegar um acidentado no plantão. Muitas vezes
isso não ocorria. Outras vezes, esse acidentado chegava ao fim do meu período e eu não
conseguia aproveitar o caso, além daqueles que, compreensivelmente, se negavam a
participar do protocolo.

Mas não me arrependo de ter passado todo aquele tempo esperando no pronto-socorro.
Enquanto não vinha ninguém que pudéssemos encaixar nos padrões da pesquisa, eu aprendia
com os atendimentos e situações que ocorriam à minha volta. É o famoso "aprendizado por
osmose".

Frustrado com a dificuldade em realizar uma pesquisa clínica, resolvi ajudar numa outra,
retrospectiva, com prontuários. Queríamos relacionar as diferentes técnicas de colostomia e
suas complicações.

Colostomia é a exteriorização de um segmento do intestino através da pele, necessitando


daquelas famosas bolsinhas coletoras.

Após discutir com um orientador sobre quais seriam as diretrizes do estudo, fui levantar os
prontuários dos pacientes colostomizados. Esta era uma tarefa hercúlea.

Para começar, tinha de ir ao arquivo médico e aguardar que alguma boa alma me atendesse
naquele maldito balcão. O serviço, na ocasião, correspondia aos padrões de atendimento
público do nosso país.
Com o tempo, muita paciência e puxação de saco, alguns funcionários começavam a facilitar a
nossa vida (não quero parecer injusto, isso hoje melhorou muito). Mesmo assim, não era fácil
localizar os prontuários no meio daqueles milhões de envelopes empilhados.

Uma vez localizados, descobríamos que suas páginas, apesar de juntas, estavam totalmente
fora de ordem. Algumas internações correspondiam a períodos de vários meses, com
verdadeiros calhamaços de páginas. Após serem organizados, vinha a parte mais gostosa:
decifrar os hieróglifos dos médicos!

Como escrevemos mal! Letras ilegíveis que, mesmo decifradas, nos frustravam novamente
pela falta de dados registrados.

Consegui aguentar esse martírio durante quase mil prontuários. A minha energia e a confiança
na veracidade do que coletava foram se esgotando. Não tinha muita segurança quanto aos
dados, devido à fonte inadequada de que dispunha. A cada cinquenta prontuários, parecia-me
que apenas um era confiável.

Temos tendência a acreditar em tudo o que lemos. Depois dessa experiência pessoal, comecei
a ficar mais cético em relação às pesquisas médicas. Quem pode garantir que gente exausta e
com essas dificuldades não acabe se embaralhando com os dados ou que, para obter um bom
número de casos, acabe sendo liberal demais para com os relatórios incompletos?

Achei que estava gastando muito tempo em algo que, no meu íntimo, não me deixava
confortável.

Decidi gastar mais energia estudando o que já fora pesquisado do que pesquisando o que não
fora estudado. Mais uma vez, voltei a minha atenção ao curso curricular.

Como examinar um paciente

Fim do curso básico. Os doentes ainda eram algo distante para mim. Entretanto, antes que o
curso médico o fizesse, o destino acabou antecipando esse contato na forma de uma ingrata
surpresa.
Um dos meus colegas, que ultimamente não se sentia bem, começou a ter convulsões. Só não
morreu porque o levaram ao hospital, onde foi diagnosticada grave falência dos rins. Estava
inchado, com pressão alta e toxinas em concentrações elevadíssimas em seu sangue.
Começou a fazer diálise e pouco tempo depois, muito deprimido, submeteu-se a um
transplante renal. No primeiro dia de pós-operatório, fomos visitá-lo. Tentando animá-lo, um
amigo falou:

- Fique tranquilo. Ouvi casos de transplantados que viveram até dez anos!

Que maravilha deve ter sido ouvir isso no terceiro ano da faculdade. Mais quatro anos para se
formar, oito com a especialização, e depois ele morreria?

Quase linchamos o nosso colega pelo seu comentário descerebrado. E descabido, pois o colega
ainda vive normalmente.

Esse relato serve para mostrar como éramos totalmente crus. No terceiro ano começaria o tão
esperado contato com os pacientes. Entretanto, como pude perceber, essa introdução é
gradual, entre outros motivos, para a própria segurança dos doentes.

Inicialmente, os pacientes apareciam apenas como reforço do tema ensinado nas aulas
teóricas. Por exemplo, logo depois de estudar insuficiência hepática, íamos ao hospital
conversar com algum enfermo que estivesse sofrendo desse mal. É um dos melhores métodos
para fixar o aprendizado teórico. A prova disso é que nunca mais me esqueci dessas aulinhas.

Quando começamos a ter aulas práticas, nós nos pavoneávamos para cima e para baixo,
vestidos de branco e ostentando os nossos estetoscópios como se fossem coroas reais. Como
se o simples fato de portar tais instrumentos nos transformasse em autoridades ou em alunos
superiores aos demais. Nós os carregávamos até quando íamos assistir às aulas de fraturas,
em que os ortopedistas não fazem muita questão de conhecer a sua serventia.

Certa vez, estávamos no estágio de cirurgia plástica e reparadora e fomos apresentados a uma
moça que se queimara no fogão enquanto cozinhava. Ela havia convulsionado devido à
epilepsia, da qual se tratava sem regularidade, e caíra desmaiada em cima do fogão aceso.
Sua mama, gravemente queimada, necessitou de enxertia: uma técnica utilizada no
tratamento de queimaduras profundas que retira uma camada fina de pele saudável para
cobrir a área atingida. Nesse caso, após a cicatrização, ficou sem o mamilo.
Sentamos ao redor da paciente formando uma roda. O professor então nos perguntou como
poderíamos reconstituir o mamilo.

Todos pararam para pensar, talvez tão ansiosos quanto a paciente por alguma resposta genial.
De repente, um dos "moços-de-branco-ede-estetoscópio" arriscou:

- Podemos retirar seu clitóris e implantá-lo na mama! Na mesma hora a paciente se retraiu,
cobriu com as mãos a sua região pudenda e começou a gritar:

- Comigo não, comigo não. Prefiro ficar sem mamilo! Socorro! O professor precisou acalmá-la,
explicando qual seria a técnica mais adequada em seu caso e lembrando que aquilo não era
uma junta médica, e sim uma aula prática para alunos de Medicina...

Apesar desses memoráveis encontros, foi somente no curso de propedêutica que começamos
a aprender como colher a história clínica e realizar o exame físico. Aí, sim, podíamos sentir o
verdadeiro gostinho de "ser médicos" e, ainda, sem o peso da responsabilidade.

No início, como em qualquer outro tipo de aprendizado, encontrávamos muita dificuldade


para realizar essas atividades. Precisávamos transparecer normalidade aos pacientes
enquanto executávamos tais passos, mas parecíamos máquinas sem óleo tentando funcionar
aos trancos e barrancos. E o pior de tudo é que muitas vezes perdíamos até o propósito do
que estávamos realizando. Comportamento totalmente artificial!

Quando uma equipe termina o período de plantão deve relatar, para a equipe que a substitui,
todos os casos e as condutas tomadas. Isso é o que chamamos de passagem de plantão. Ao
assistir a alguns médicos passando rotineiramente o plantão, tinha a impressão de que nunca
conseguiria fazer aquilo. Como eles decoravam e descreviam várias histórias e exames físicos
de múltiplos pacientes e, ainda, conseguiam raciocinar sobre as possibilidades diagnósticas ao
mesmo tempo? E tudo a toque de caixa!

Logo ao primeiro dado alterado da história ou do exame físico de algum caso discutido, já me
perdia. Gastava um tempo enorme para raciocinar nas hipóteses diagnósticas, enquanto eles
já estavam passando outros dados que abriam portas a novos diagnósticos!
Claro que com a prática tudo passa a ser automático e simultâneo. O primeiro passo a dar e,
sem dúvida, o mais importante, era a anamnese.

Anamnese? O que é isso?

Ambulatório de clínica médica. Moço com estranhos sintomas.

Já bem longe da puberdade, o jovem havia notado um aumento gradual de suas mamas,
acompanhado de alteração no timbre da sua voz. Ambas as alterações eram notáveis ao
exame físico.

O médico que assistia aos alunos e residentes (médico assistente) perguntou ao paciente se
ele estava usando anabolizantes ou alguma droga, o que ele negou veementemente.

O caso chamou a atenção dos professores, que passaram a discutir várias síndromes raras
tentando explicar os achados clínicos. O leque de opções diagnósticas era enorme, assim
como o número de exames possivelmente necessários. Quais testes deveriam solicitar visando
a confirmar ou descartar síndromes que poderiam ser endócrino-metabólicas, neurológicas,
urológicas ou, até, genéticas?

Diferentemente da concepção dos médicos, para os alunos e o paciente, "droga" significaria


apenas algo ilícito. Enquanto os médicos discutiam sobre quais exames pedir, um aluno foi
completar a sua "listinha de perguntas que não posso me esquecer de formular". Perguntou
ao paciente se ele estava tomando alguma medicação, e ele disse que sim. Ao ser perguntado
sobre qual seria o medicamento, ele cochichou:

- Estou tendo relações sexuais com a minha namorada, mas o pai dela não pode saber. Para
que não corramos riscos de ser descobertos, eu é que estou tomando os anticoncepcionais
dela...

Parece bobagem, mas é um ótimo exemplo de como a história clínica é fundamental. Às vezes
uma simples pergunta reduz drasticamente o custo, o tempo e o sofrimento de qualquer
tratamento, sem contar com a queima desnecessária de massa cinzenta.
Várias pessoas têm a curiosa impressão de que o médico faz diagnóstico por meio do exame
físico ou dos exames complementares. Ledo engano!

O diagnóstico, na maioria das vezes, é alcançado pela história clínica. Anamnese é a história
que disseca cronológica e detalhadamente os eventos relacionados com o atual quadro clínico.
É fundamental para o profissional saber obtê-la de forma adequada, se pretende alcançar
bons resultados diagnósticos e terapêuticos.

Isso explica por que os médicos detestam ser solicitados para dar apenas uma olhadinha, ou
por que havia numa Faculdade deVeterinária a seguinte placa:

Consulta 50 reais Só uma olhadinha 100 reais Ao dar uma rápida olhadinha,
nós, médicos, precisaremos aplicar conhecimentos que vão desde a anatomia até a
farmacologia, mas teremos maior dificuldade para chegar ao diagnóstico sem uma avaliação
adequada. Cai a nossa eficácia e não ficamos isentos da responsabilidade!

A história é a nossa pedra fundamental, sendo útil em praticamente todas as situações. Assim,
irei explicá-la um pouco melhor.

Ela é dividida em cinco partes:

1. Queixa e duração

Aqui o médico, de forma rápida e sucinta, identifica qual é o problema que aflige o doente,
buscando focar a condução do interrogatório. A duração ajuda a determinar a urgência e a
gravidade do caso. É um poderoso instrumento na triagem médica.

Em grandes hospitais públicos, a procura por atendimento pode ser enorme. Para separar
urgências de não urgências e orientar o encaminhamento e tratamento de todos os que
procuram o hospital, existe o médico da triagem. Este precisa ser experiente para, de forma
rápida e segura, separar os pacientes sem prejudicá-los. Ele não pode bloquear todos os
atendimentos, pois certamente estará mandando embora urgências mal "triadas". Por outro
lado, não pode deixar qualquer caso crônico entrar, o que atrasaria ainda mais o pronto
atendimento das urgências. Na maioria das vezes, essa divisão é fácil, graças a duas simples
perguntas: "Qual é o seu problema e há quanto tempo?".
- Dor nas costas desde ontem!

A conduta será o atendimento imediato com o ortopedista do pronto-socorro.

- Dor nas costas há mais de dez anos! A conduta será o encaminhamento ao ortopedista do
posto de saúde.

2. História pregressa da moléstia atual

Nela, o médico dirige a história do doente, dando ênfase ao que pode estar relacionado à sua
queixa inicial. É a parte realmente trabalhosa, que exige arte e uma técnica enorme. O colega
precisa saber ouvir, mas deve ajudar o paciente a chegar onde precisa. Não interessa ouvir se
sicrano come muito feijão ou se tem hemorroidas, quando o seu problema é um tiro no peito!

Parece um bate-papo, mas na verdade envolve uma série de métodos. Não devemos, por
exemplo, influenciar as respostas. Ao perguntar se a dor é em peso ou queimação, já
restringimos a resposta a apenas duas opções. Não é fácil.

O diálogo a seguir entre um médico e seu paciente representa apenas um dos tipos de
dificuldade que enfrentamos:

- O que a trouxe? - O ônibus, né! - Onde começou a dor? - Na casa de uma prima. Ela mora
na Bahia... - Usou algum remédio? - Uns comprimidos vermelhinhos.

Por mais que finja, o médico nunca sabe a cor do comprimido. Não perca tempo com isso!

Imagine tirar a história clínica desse paciente durante um plantão de pronto-socorro, sem
parecer indelicado ao tentar separar o joio do trigo. Precisamos de muita paciência e
compaixão.
3. Antecedentes pessoais e hábitos

Haveria alguma doença, cirurgia, medicação, alergia ou hábito que poderia ter colaborado
para o aparecimento ou o agravamento dos sintomas?

Quando o médico menospreza esse passo, pode cair numa armadilha. Veja o que aconteceu
com um cirurgião ao tirar uma história sem pesquisar adequadamente os antecedentes:

- O senhor está com apendicite! - Mas não é possível. Tem certeza? - Não há dúvida. Tudo
indica - falando com o peito estufado e as pálpebras semicerradas - tratar-se de uma
apendicite aguda! - Mas eu já retirei o apêndice... - Talvez - ainda no pedestal - tenha sido mal
operado. Devem ter deixado um pedaço dele. - Mas foi o senhor que me operou. Não se
lembra?

4. Antecedentes familiares

Uma queixa de alteração do hábito intestinal me deixará mais preocupado em relação a um


paciente que possui vários familiares falecidos por câncer do intestino do que a um aluno
morando numa república, cuja dieta costuma ser macarrão com pizza e gelatina.

5. Interrogatório sobre os diversos aparelhos

Busca ativa do médico por outras alterações e sintomas em todos os sistemas (eventualmente
esquecidos no relato dado pelo paciente), investigando-os de forma holistica. Parte
fundamental para tratar uma pessoa e não o seu estômago.

Apesar do treino, às vezes obter uma anamnese pode ser um parto a fórceps. A história clínica
mais difícil que já tirei foi numa aula de propedêutica neurológica.

O professor, sem saber dos diagnósticos, distribuiu aleatoriamente os alunos pelos leitos da
enfermaria de neurologia. Nossa missão seria colher uma história clínica em "apenas" uma
hora. Caí com o número onze e extrapolei o tempo disponível, pois não conseguia encontrar
nexo no que o paciente falava. Esgotado o período, o professor pediu que eu relatasse o meu
caso clínico para o grupo. A história era terrível, sem pé nem cabeça. Desculpei-me alegando
que o paciente era muito difícil, quando tive de engolir um famoso bordão em Medicina:

- Não existe história difícil, e, sim, quem não sabe tirá-la! Estimulante para quem está
aprendendo, não? Mas a vingança não tardou. Para que pudesse mostrar aos outros alunos
sua refinada técnica, o professor foi entrevistar o meu paciente. Logo viu que entraria em
apuros, caso não tivesse percebido o problema. O doente possuía afasia de Wernicke, devido a
um derrame cerebral. Em outras palavras, ele falava fluentemente, mas sobre coisas
totalmente sem sentido. Quando eu perguntava as horas, ele respondia garfo ou verde. Nunca
tinha visto isso e, sem conhecer a existência de uma patologia assim, escrevi a história mais
esdrúxula que o professor teria ouvido. Ele desculpou-se pela sua própria rigidez e nos ensinou
um pouco mais sobre a síndrome.

Além de todas as técnicas que tinha de aprender, sofria grande dificuldade para decorar tudo
o que o paciente falava, filtrar o importante, passar para o papel e, finalmente, raciocinar no
diagnóstico e na conduta. Não sabia ainda me focar no que era pertinente nem refletir
enquanto ouvia. Aliás, ficávamos mais preocupados com as perguntas que precisaríamos
aplicar do que com as respostas. Ainda não sabíamos fazer o mais importante: ouvir.

No início, as perguntas são decoradas. Às vezes as esquecíamos ou as fazíamos sem a menor


necessidade, uma vez que não estavam sendo elaboradas com base num raciocínio lógico,
mas na decoreba. Mais uma vez, faziam parte da "listinha de perguntas que não devemos nos
esquecer de fazer". Por isso, no começo, as histórias dos terceiro-anistas são verdadeiros
tratados de besteirol, recheadas de dados inúteis e indagações, algumas vezes até
inconvenientes. Esse problema ocorre porque o questionário não deve ser sempre o mesmo.
Ele muda de acordo com o contexto. No começo, somos muito rígidos para mudar também.
Isso me levou a vivenciar uma série de situações interessantes, como:

- A senhora sente falta de ar quando anda? - Se a paraplegia me permitisse andar, talvez eu


soubesse lhe responder!

- O senhor está com a menstruação atrasada? (Afinal, sempre temos que perguntar da parte
ginecológica...)

Às vezes escrevíamos enormes bobagens sem pensar, compatíveis apenas com a que li na bula
do medicamento que se compra para o filho: "Contraindicações da pomada específica para
tratamento de fimose: gravidez e amamentação'
Pergunto-me: "Mulher grávida por acaso trata de fimose? Homem amamenta?"

Passado algum tempo, finalmente aprendemos a ser mais maleáveis e, principalmente, a


pensar enquanto conversamos, para que as perguntas sejam úteis e direcionadas ao que nos
interessa. Superada essa fase, passaríamos por novos desafios visando a desenvolver a
segunda ferramenta mais poderosa da propedêutica: o exame físico.

Treinando os cinco sentidos

Estávamos sentados na enfermaria da cirurgia geral esperando pelo professor para mais uma
aula de propedêutica cirúrgica. A equipe de residentes daquela enfermaria era muito
gozadora. Fingindo que nem notara nossa presença enquanto cumpria suas obrigações, o R1
perguntou ao R3:

- Eu retirei a bolsa coletora do dreno abdominal daquele paciente que foi operado do
intestino.

Mostrando a bolsinha com seu conteúdo amarronzado, ele continuou:

- Qual será a origem desta secreção? É claro que nessa hora todos queríamos aprender
também. Fingindo não estar prestando atenção na conversa, afinamos nossos ouvidos.

O R3 pegou o coletor em suas mãos, olhou atentamente para seu conteúdo (previamente
preenchido com leite achocolatado) e, didaticamente, proferiu:

- Você se lembra da importância de nossos sentidos. Olhe! Tem cor de fezes.

- - Cheire. Tem cheiro de fezes! - Hã, hã! E, então, rápida e simultaneamente, ao sorver o
líquido, concluiu: - Se tem gosto de fezes, só podem ser fezes! O R1 agradeceu a explicação e
foi embora caminhando, como se tivesse assistido à coisa mais normal do mundo. Ficamos
boquiabertos...
Aprender a realizar o exame físico é muito interessante, pois acaba sendo um treinamento
para os cinco sentidos. Aqueles residentes sabiam que os alunos no terceiro ano eram ávidos
por essas descobertas. Ficávamos ansiosos como se fôssemos aprender a utilizar
superpoderes ainda ignorados.

Os olhos são tão treinados para enxergar cada nuance que eu ficava imaginando como alguém
havia reparado naquilo pela primeira vez. Depois de notar que determinada lesão é um pouco
mais cinza ou granulosa do que a outra, a diferença parece saltar aos olhos!

Algumas alterações são quantificadas em cruzes. Anemia uma cruz (+) é mais leve do que
quatro cruzes (++++). Para se aferir isso, só na prática.

Os ouvidos são treinados para diferenciar um sopro cardíaco causado pelas diferentes válvulas
do coração. É "tunsshhtá" ou tunshhhá"?

Começamos a reconhecer o cheiro de uma apendicite perfurada, distinguir o odor de um


sangramento nas fezes originário do estômago ou do intestino e até de uma secreção no
curativo causada por diferentes tipos de bactérias.

O tato é fundamental para perceber um fígado aumentado, febre, rigidez muscular ou a


textura de algum órgão doente.

Vários outros detalhes nos vão sendo ensinados, sem que o percebamos. Que força devo fazer
para palpar um fígado? E para fazer uma massagem cardíaca? Qual será o tônus normal de um
músculo abdominal?

Eu não me esqueci do paladar, mas, por sorte, inventaram o exame de glicemia. Não
precisamos mais pesquisar diabetes experimentando a urina para ver se está docinha. Hoje só
bebe urina o crédulo em urinoterapia.

Da mesma forma que a anamnese, o exame físico é padronizado e focado na queixa do


doente. Quando bem realizado, é um importante instrumento para confirmar, mudar ou
acrescentar hipóteses diagnósticas. Além disso, pode nos mostrar o grau de repercussão que a
doença está causando, eventualmente mudando a sequência das condutas terapêuticas e ou
diagnósticas.

Visando à prática do exame físico, os professores de propedêutica nos levavam a várias


enfermarias todos os dias. O objetivo era examinarmos casos já em tratamento, com
diagnósticos e achados bem típicos ao exame físico. Alguém internado com hepatite
provavelmente seria examinado pelos alunos para aprender como detectar uma icterícia
(olhos amarelos, urina cor de coca-cola e fezes com a cor de massa de vidraceiro). Um
indivíduo com pneumonia teria os pulmões auscultados e assim por diante.

No começo, a realização do exame físico também não é automática e, às vezes, esquecíamo-


nos de pesquisar algo. Ou pior, pesquisávamos a mais.

Lembro-me de uma paciente com tosse, de quem examinei tudo, menos o sistema
respiratório... E de quantos outros com queixas simples, mas em quem realizávamos até testes
neurológicos minuciosos ou exame do ouvido...

Com o tempo, o futuro médico aprenderá como realizar um exame mais dirigido, não se
esquecendo de observar os pontos fundamentais de determinada doença. Não é preciso
examinar a orelha de. quem está com unha encravada, mas não podemos abolir o toque
vaginal na suspeita de infecção ginecológica!

Esse treinamento vai sendo realizado nas diferentes especialidades. Não era incomum sermos
submetidos a exames e procedimentos, servindo assim de cobaia voluntária para o
aprendizado dos outros alunos.

Fui cobaia na maioria desses testes, o que acabou me rendendo um check-up peculiar, mas
gratuito. Auscultaram-me, colheram meu sangue, urina, fiz eletrocardiograma, radiografia de
tórax, eletroencefalograma e, até, exame de fundo de olho. Aliás, diga-se de passagem, houve
o caso de um colega que, por ter olhos claros, foi o escolhido para ser examinado na aula de
oftalmologia. Logo notaram algo estranho em seu fundo de olho. Para tirar as dúvidas,
chamaram o professor que, ao examiná-lo, diagnosticou um melanoma na retina. Este é um
câncer agressivo que, graças ao diagnóstico precoce, pôde ser curado através da retirada do
seu olho. Pelo menos em mim, não acharam nada.
Após dominarmos a realização dos testes de exame físico, precisamos aprender a interpretá-
los. Um achado em determinado paciente pode ser relevante ou não. Muitas vezes, os
próprios testes não podem ser universalizados.

Vivi um bom exemplo disso com um teste comumente realizado para avaliar doenças
neurológicas, como demência e outras alterações cognitivas (Mini Mental). Nele, são
solicitadas pequenas tarefas em que o desempenho do paciente será analisado em relação à
orientação (espacial e temporal), à memória de palavras e à linguagem. Dependendo das
alterações encontradas, podem ser indicadas provas específicas.

O paciente que entrevistamos possuía uma rara alteração neurológica. Ele foi trazido ao
hospital universitário após ter sido atendido em vários outros serviços, sem que lhe fizessem
pelo menos um diagnóstico. Ainda estava em investigação. Na aula, o professor sugeriu que
realizássemos nele alguns testes, incluindo o Mini Mental. Num desses, meu colega pediu ao
paciente para que falasse o nome de todos os animais que conseguisse, durante um minuto. E
este começou:

- Vaca, jegue, cavalo, cachorro, galinha, porco,... tatu, calango!... Vaca, jegue, cavalo,
cachorro, galinha, porco, ...tatu, calango!... Vaca, jegue, cavalo, cachorro, galinha, porco,...
tatu, calango!

Ficamos empolgados com a descoberta de algo errado em seu teste. Seria uma demência,
algum déficit de memória?

Não, não era nada disso. O paciente morava no meio da caatinga desde que nascera. Ele não
conhecia nenhum outro bicho além daqueles cujos nomes repetia sem parar - e sem novas
opções! Seus testes eram normais e logo percebemos como devemos ser prudentes na
interpretação de qualquer avaliação.

Muitas vezes a história e o exame físico não fornecem o diagnóstico. O que fazer então?

Uma das possibilidades é a observação clínica. Assim como tempo, incubação e características
de apresentação inicial, as doenças também possuem uma evolução esperada. Uma dor
abdominal que desaparece não pode ser uma perfuração intestinal. A febre de uma gripe não
dura três meses...
Às vezes, a observação clínica nos fornece dicas para chegar ao diagnóstico muito mais
rapidamente do que imaginávamos.

Um paciente procurou atendimento por acessos de tosse e vômitos havia meses. Era um
japonês bem magrinho e recatado, beirando os seus setenta anos. Sempre trabalhou na roça
e falava muito pouco em português, com um forte sotaque. Durante a história clínica, tive
muita dificuldade em conversar, dado o seu escasso vocabulário. Mesmo quando ele entendia
a pergunta, muitas vezes eu não compreendia a sua resposta.

Enquanto tentava colher a história clínica da melhor forma possível, tive a impressão de que a
sua pochete se movia. No começo parecia ser só um palpite, mas com o tempo percebi que os
movimentos continuavam.

O mistério da bolsinha, que parecia estar viva, começou a me intrigar muito mais do que o
diagnóstico do doente.

Eu ainda não tinha grandes hipóteses diagnósticas quando resolvi examiná-lo. O paciente tirou
a camisa e a deixou, com a pochete, em cima da escrivaninha. Postada, se mexeu. Não tive
mais dúvidas, era animada!

Em Medicina, dentro do possível, tentamos juntar todos os fatos e sintomas na mesma


síndrome. Mas terminei o exame físico sem chegar a um diagnóstico. Seriam necessários
exames complementares.

Nesse caso, porém, a breve observação clínica mostrou o seu potencial ao esclarecer o
enigma.

Enquanto preenchia um formulário para requisição de exames, tentava organizar meus


pensamentos a fim de discutir o caso com o médico assistente. Durante esse breve período, o
paciente teve um forte acesso de tosse. Tossiu, tossiu, tossiu e começou a regurgitar várias
lombrigas.
Pediu desculpas e, com toda a simplicidade do mundo, cuidadosamente recolheu os vermes do
chão e os guardou em sua pochete. Afinal, cuspir lombrigas no chão é falta de educação.

Não havia mais necessidade de raciocinar nem de pedir exames. O paciente estava
superinfestado por vermes...

Mas a observação clínica também falha. Aí, lançamos mão da quarta e, atualmente, mais
alardeada ferramenta.

Os exames complementares

É curioso notar que parte das pessoas não percebe existir um sentido lógico na investigação
médica. Ele existe e é fundamental.

Após realizar a anamnese, o médico faz suas hipóteses diagnósticas e busca um maior
detalhamento pelo exame físico. O bom profissional costuma fazer várias suposições, embora
deva se focar nas mais prováveis ou emergenciais. Caso o diagnóstico ainda não seja
confirmado, entrarão em cena os exames complementares. O objetivo deles será confirmar
ou afastar as hipóteses.

Entendo que, com a desmoralização da profissão em razão de médicos incompetentes e


negligentes, pelos baixos salários, pela segmentação do paciente em especialidades e pelo
glamour com que a moderna tecnologia é anunciada na mídia, os pacientes acreditem que os
exames possam ser mais importantes do que a anamnese. Isso não é verdade.

Os exames são fundamentais, mas não deixam de ser complementares. Eles complementam a
história clínica e o exame físico, jamais podendo substituí-los. Muitas vezes, após vários
exames sofisticadíssimos que não levaram a nenhum diagnóstico, resolvemos conversar
novamente com o doente para ver se captamos alguma dica do que está acontecendo!

Por isso, para irritar qualquer médico, basta dizer: "Não precisamos nem conversar. Vim aqui
porque quero um "raios X'!".
Com tal atitude, o paciente anula toda essa parte de conhecimento e raciocínio e nos
transforma instantaneamente em escriturários solicitadores de exames. Ao mesmo tempo, nos
força a funcionar de um modo a que não estamos habituados, o que diminui nossa eficácia e
segurança. Apesar disso, continuaremos sendo responsáveis pelos nossos atos, o que nos
trará certo desconforto.

Não demorou muito para que eu passasse por algo parecido... Após cumprimentar o paciente,
iniciei o interrogatório. Tudo bem que no início éramos meio prolixos, mas ele logo me
interrompeu, dizendo que estava com tosse. Não queria ficar no lero-lero, precisava de raios
X do peito e pronto! Essa é uma típica postura desestimulante para qualquer estudante
ansioso por realizar exames físicos, raciocinar e chegar a diagnósticos.

Nesse caso, o residente também ficou incomodado com a abordagem do paciente, mas
acolheu a sua ordem. Achei estranho; nem conversar ou nem examinar o paciente? Apenas
pediu o exame.

Existem várias formas de se realizar uma simples radiografia de tórax. Cada uma delas tem
detalhes técnicos que diferem de acordo com o objetivo do examinador.

Se a indicação da radiografia for por causa de uma pneumonia, deverá ser realizada nas
incidências ântero-posterior e perfil; para descartar um pneumotórax, o melhor momento será
durante a expiração; para analisar uma fratura no esterno, a carga de radiação precisa ser
mais intensa. Que tipo de radiografia o médico solicitaria, uma vez que desconhecia o seu
objetivo? Será que a radiografia era mesmo necessária ou apenas corresponderia a uma
amostra grátis de radiação?

Fiquei angustiado. E se o paciente estivesse infartando? Não deveríamos tê-lo alertado sobre
a necessidade de um eletrocardiograma? Ele poderia morrer no setor de RX esperando um
exame inútil por nossa causa!

Quando a chapa ficou pronta, o residente lhe entregou educadamente o envelope, virou as
costas e saiu do recinto. O senhor ficou meio perdido e perguntou pelo resultado. Foi a deixa
para o R-3 perguntar ao paciente se ele desejava uma radiografia ou uma avaliação. Afinal, ele
não saberia interpretá-la sem antes examiná-lo. Então, realizou uma consulta decente (na
visão do médico) e cheia de lero-lero (na visão do paciente). Tratava-se apenas de um
resfriado, sem a menor necessidade de radiografia...
Os exames complementares são uma das maravilhas da medicina moderna. Hoje, por
exemplo, é quase uma piada fazer diagnóstico de inflamação da vesícula com o ultrassom
(mas não podemos nos esquecer de que, às vezes, indicamos cirurgia a pacientes com
diagnóstico clínico de colecistite, mesmo com o ultrassom normal. Afinal, nenhum exame
alcançou a acurácia diagnóstica das bolas de cristal).

A ultrassonografia é um recurso que não existia em nenhum hospital há meros vinte anos. E,
quando existia, até o radiologista demorava a entender o que via, dada a baixa qualidade da
imagem. Na atualidade, as imagens são fantásticas, apesar de ainda necessitarmos daquele
gel gosmento.

Não pedimos bexiga cheia nem passamos gel à toa. O objetivo é facilitar o exame, uma vez
que o ultrassom não atravessa nem a fina lâmina de ar entre o aparelho e o seu abdome. Caso
você ainda tivesse dúvidas, isso, na minha opinião, provaria que a saga de J. J.
Benitez"Operação Cavalo de Troia"é uma ficção. Nela, o herói realiza uma ultrassonografia à
distância de Jesus, sem lambuzá-lo, enquanto ele é crucificado.

Com a evolução tecnológica, os exames ficaram tão sensíveis e específicos que algumas vezes
tendem a atrofiar nosso cérebro. Apesar de não ser a regra, em várias circunstâncias o médico
pode ser tentado a se fazer o seguinte questionamento: "Pára que executar uma minuciosa
propedêutica neurológica, chegando ao diagnóstico em uma hora, se posso solicitar uma
tomografia sem queimar meus neurônios?".

Realmente é uma tentação. Mas quem segue esse raciocínio deixará de promover uma
interação adequada entre o quadro clínico e os exames complementares; uma hora,
fatalmente, cairá do cavalo...

Um rapaz deu entrada num hospital com queixas neurológicas incomuns, iniciadas havia
poucos minutos. O neurologista o examinou superficialmente e solicitou uma série de exames.
Após tomografia, liquor e ressonância normais, ele recebeu alta com a suspeita de uma
manifestação de fundo emocional.

O paciente, insatisfeito, pois ainda apresentava os sintomas, procurou outro hospital. Dessa
vez, por meio de uma boa anamnese e um exame físico detalhado, o neurologista chegou ao
diagnóstico.
O paciente estava intrigado, pois seus sintomas começaram justamente após comemorar um
gol do seu time. Nessa hora, ele estava sentado na arquibancada quando, subitamente,
levantou-se estendendo os braços e a cabeça para trás. Ao ouvir o relato desse movimento, o
neurologista logo suspeitou de uma lesão arterial (rompimento do revestimento interno da
artéria obstruindo parcialmente o seu próprio fluxo), que foi posteriormente confirmada e
tratada por arteriografia. Nesse exame, o médico estuda os vasos injetando um líquido que se
molda às suas paredes e é visível aos raios X. O procedimento é diagnóstico e pode ser
terapêutico (um exemplo famoso seria o cateterismo cardíaco). Não existe o menor sentido
em se pedir rotineiramente esse exame, mas ele foi fundamental para confirmar a suspeita
clínica nesse caso. Talvez, com uma história adequada desde o início, dinheiro, tempo e
adrenalina tivessem sido economizados.

Existem vários motivos para pedirmos exames. Mas se eles acrescentam alguma informação,
então por que não pedi-los sempre?

Por algumas razões:

1. Se o exame não vai mudar a conduta médica, não tem utilidade!

Esta é uma regra muito simples. Imagine um menino com história típica de apendicite e exame
clínico com evidentes sinais de irritação interna do abdome, que tornam a indicação de uma
intervenção cirúrgica obrigatória. Para que o cirurgião pediria nesse caso um ultrassom, se
independentemente do seu resultado a abordagem cirúrgica será inevitável?

Lembre-se de que não existe bola de cristal e, com certa frequência, vemos exames normais
nos pacientes com apendicite.

2. Os exames podem aumentar custos sem trazer vantagens adicionais.

Se a radiografia simples de abdome mostrou perfuração do intestino com indicação cirúrgica,


por que realizar uma tomografia? Aumentaria o custo, o tempo de pré-operatório e não
alteraria a conduta definitiva.

3. Às vezes os exames podem atrapalhar, desviando o foco do problema e causando males


desnecessários.
Neste contexto, foi descrita a "VOMIT syndrome", ou "Victim Of Modern Image Technology"
(vítima da tecnologia de imagem moderna)!

Um grande exemplo disso ocorreu quando a ressonância magnética ainda engatinhava. A


ressonância, hoje em dia, é um exame imprescindível em ortopedia. É tão sensível que
detecta lesões até onde não deveriam ser vistas. Digo isso porque algumas vezes, apesar de
existirem, não possuem significado clínico nem precisam de tratamento. Entretanto, antes de
os médicos se acostumarem à utilização do método de forma mais criteriosa, algumas lesões
foram superestimadas e operadas sem necessidade. É a típica situação em que o médico trata
o exame e não o doente.

As vítimas da síndrome também se incluem entre os pacientes em que o médico procurando


(às vezes desnecessariamente) alho, acaba pedindo exames e encontra a suspeita de bugalho.
Bugalho este que o leva a pedir outros testes, submetendo o paciente a uma série de
procedimentos, no final das contas, inúteis.

4. Os exames podem fazer mal.

Estava assistindo a uma aula sobre esôfago de Barrett. Trata-se de uma alteração que
aumenta a incidência de câncer do esôfago em seus portadores. Quando diagnosticada, os
pacientes devem submeter-se a endoscopias de rotina para detecção precoce do câncer, caso
este venha a se desenvolver. Discute-se qual seria o melhor intervalo de tempo entre os
exames. Mais endoscopias talvez pudessem prevenir mais cânceres, mas certamente
aumentariam os custos. O inverso também poderia ser verdadeiro.

O professor, jocosamente, defendia a opinião de que o intervalo entre as endoscopias fosse


ampliado, alegando que apenas um paciente do seu ambulatório especializado havia morrido
por causa do Barrett. Mesmo assim, de forma indireta.

Esse paciente estava esperando a sua condução para ir ao hospital realizar a endoscopia de
rotina (prevenção de câncer no Barrett), quando foi atropelado por uma ambulância e
morreu. Talvez, se pedissem menos exames, ele ainda estivesse vivo.
É cada vez mais raro ver complicações dos exames, mas existem e podem ser previsíveis. Ou
não, como a que foi relatada.

Das "esperadas", podemos citar a reação anafilática ao contraste da tomografia, a perfuração


acidental do intestino durante a colonoscopia, o hematoma no cateterismo e as mutações
causadas por radiação... A lista é interminável. Também considerável é a lista das complicações
imprevisíveis. Delas, além das anteriormente citadas, também poderíamos asar como exemplo
o caso do bário contaminado, utilizado nos exames de enema opaco que mataram pessoas em
Goiás em 2003.

5. Exames custam caro e sempre há alguém pagando por eles.

Como na maioria das vezes são os convênios que pagarão os exames, alguns pacientes têm
aquela ideia de que "como pago caro, vou fazer bastantes exames"! É o que chamo de o
raciocínio da churrascaria-rodízio. Mas quando não existe indicação médica trata-se de um
desperdício de dinheiro. E se quem paga o exame é o convênio, saiba que o número de
exames estará diretamente relacionado às suas futuras mensalidades ou à impossibilidade de
ajuste dos honorários médicos. Se for o Estado, saiba que as verbas mal geridas têm fim e,
eventualmente, poderiam ter sido mais úteis. Se o dinheiro for seu, talvez seja mais agradável
gastá-lo na mesa de um restaurante do que num tubo de pomada para assaduras, após a
colonoscopia.

Apesar de tudo o que escrevi, o fato é que as pessoas gostam de exames. Muitas vezes alguns
questionamentos do paciente nos ajudam a abrir o leque de possíveis diagnósticos e podem
até mudar a condução do caso. O grande problema é que sem ter um adequado embasamento
teórico, o paciente muitas vezes "ordena" exames ou tratamentos inconvenientes e
desnecessários.

Quando o doente é mandão, pode ser muito mais fácil acatar todas as suas ordens e se livrar
logo dele do que discutir os porquês de cada exame. No fim, quem sairá perdendo será o
próprio paciente.

Antigamente havia quase uma imposição médico-paciente. Quando o médico precisava


amputar a perna de alguém, ele não conversava com o doente; simplesmente avisava. Muitas
vezes o paciente nem sabia o porquê da cirurgia. Essa relação foi ficando mais saudável e
equilibrada, mas, depois, infelizmente, começou a pender para o outro lado. Surgiu a
imposição paciente-médico, explicando essa atitude tão comum em nossa prática diária.
Essa parte humana do atendimento é um dos nossos maiores desafios. Atender pessoas
educadas, atenciosas e compreensivas é fácil. Difícil é atender pacientes famintos, com dor,
após terem aguardado durante horas em fila de espera e, principalmente, com a falsa
sensação de conhecimento médico...

Aprendemos a pedir provas e análises de forma acadêmica, quando poderão mudar a conduta
ou ajudar a decidir entre diagnósticos e tratamentos diferentes.

Lembro-me de um senhor que havia sofrido um infarto e estava com muita dor abdominal.
Ficamos em dúvida entre duas hipóteses para justificá-la: infarto intestinal e diverticulite
aguda. Se fosse infarto do intestino e não o operássemos, ele morreria. Se fosse diverticulite e
o operássemos, aumentaríamos a gravidade do problema cardíaco. A tomografia indicou o
segundo diagnóstico e evitamos uma cirurgia, naquele momento, desnecessária e muito
arriscada.

Foi um ótimo exemplo de como utilizar a tecnologia disponível, mas no dia a dia existem
indicações para se pedir exames que não são, propriamente, médicos. Dou a mão à
palmatória. Às vezes são solicitados para nos defendermos juridicamente, deixar o paciente
feliz, aliviar a sua (ou a nossa) angústia, demonstrar o potencial diagnóstico de determinada
instituição e, finalmente, para convencer um interrogante de algum diagnóstico. Tipo de
paciente que fica olhando o médico meio de lado, com um ar de descrença: é o que mais
realizará exames desnecessários.

A linguagem médica

"Proparoxítona! Isto tem cura?"

Paciente angustiado, após ter sido corrigido pelo docente quanto à acentuação da palavra
"ínterim".

Embora não tivesse importância alguma do ponto de vista estritamente curricular, uma das
atividades acadêmicas mais disputadas era o "Show". Trata-se de uma apresentação de teatro
criada há mais de cinquenta anos e realizada anualmente pelos alunos da Faculdade de
Medicina. O espetáculo, besteirol puro, era dividido em três segmentos que se alternavam. No
Balé, os alunos mostravam suas "delicadas" coreografias; no Coral, as suas músicas; e, nos
Quadros, a sua arte cênica, todos parodiando a vida na faculdade e no hospital.

No primeiro ano da faculdade não entendi quase nada do que apresentaram no "Show",
embora tenha sido muito engraçado: Os principais motivos para não ter compreendido alguns
quadros foram o desconhecimento da rotina do hospital e, principalmente, da linguagem e da
cultura médicas. Para exemplificar, um dos quadros era sobre um vilão querendo destruir o
hospital com uma bomba de prótons (em vez de nêutrons), a bomba H+! Então chamaram um
super-herói para defender a humanidade. Seria o Super-homem? O Homem-Aranha? Não:
era o Homeemm-prazol!

Todos riram e eu fiquei "boiando". Era um trocadilho de omeprazol, medicação que bloqueia
as bombas de hidrogênio no estômago para reduzir a sua acidez. Ninguém seria mais
adequado contra uma bomba H+ do que o Homem-prazol...

Após aprendermos como interrogar e examinar, precisávamos aprender a comunicação


médica, seja entre os próprios médicos seja entre estes e os pacientes, coisa que
incorporamos totalmente pela prática.

Ao nos integrarmos à vida hospitalar, incorporamos, além da linguagem técnica, as gírias, as


abreviações e os epônimos - Aquele ou aquilo que dá o seu nome a qualquer coisa ou pessoa
(Houaiss).

Lentamente, vamos criando um linguajar próprio, nem sempre compreensível pelo leigo.

Os termos técnicos podem facilmente tornar um diálogo indecifrável, fazendo com que as
pessoas se sintam da mesma forma que eu quando levo o meu carro ao mecânico. Devemos
saber dosá-los principalmente com os pacientes, um detalhe que alguns médicos esquecem
com frequência.

Os epônimos também podem atrapalhar bastante. Apesar de estarem sendo gradualmente


substituídos, alguns, consagrados pelo uso, dificilmente sairão de moda. Ninguém pede um
dreno laminar: pede, sim, um dreno de Penrose, nome de quem o descreveu pela primeira
vez. O uso de epônimos é tão comum que não é raro ver um médico conversando, com
naturalidade, de modo incompreensível:
- O tumor era um Bormann 3 e acabamos fazendo uma Billroth 2, depois de soltar o duodeno
com uma manobra de Kocher...

Existe uma tendência em abandoná-los, pois, muitas vezes, nem os médicos sabem o que
significam.

Quanto às gírias, variam de hospital para hospital. No primeiro dia de internato, qualquer um
ficaria totalmente perdido. Apenas citando alguns exemplos, não era incomum ouvir
expressões do tipo: -Traga o "buchômetro", "cave" o exame, colha o "internograma". Calma,
calma! Eu posso explicar... Quando passamos uma visita médica em uma enfermaria, esta
pode ser didática ou "buchativa". Na didática, um professor é inteirado dos casos por meio
dos internos ou residentes e dá sua opinião sobre eles, ensinando sobre suas doenças. Com
isso, os alunos aprendem como passar um caso e sobre as patologias. Na visita "buchativa", os
residentes interam-se da evolução clínica por meio dos internos e orientam o que deve ser
feito para cada paciente. É uma passagem que tem por objetivo primário definir condutas
médicas e não o ensino (embora nela o aluno também aprenda como enrolar o professor na
visita didática). A agenda que registrava quem ficaria em jejum, faria tomografia, mudaria de
antibiótico ou receberia alta era o "buchômetro". Cada uma dessas tarefas era designada
"bucha".

"Cavar" é tentar fazer algum exame antes do prazo habitual ou em cima da hora. Tentávamos
encaixá-los, quando havia maior urgência, na já abarrotada agenda do médico responsável
pelo procedimento desejado. Isso não é fácil e, para aumentar as nossas chances de sucesso,
existiam vários métodos que iam desde o emprego de técnicas avançadas em dramaturgia até
o recrutamento de colegas do sexo feminino, digamos, bem agraciadas pela mãe natureza.

"Internograma" é o nome do conjunto de exames de sangue que mais comumente


solicitamos.

Assim como as gírias que variavam de hospital para hospital, existiam novos epônimos, criados
em cada instituição. A "Mostificação" da alça intestinal, o ponto de Aninha e a manobra de
Diba eram alguns do meu meio.

Todos têm uma história interessante. A manobra de Diba, por exemplo, surgiu no
atendimento de um paciente alcoolizado que sofrera um acidente de auto e fora trazido ao
pronto-socorro pelo resgate. A sua avaliação estava sendo realizada por uma residente do
primeiro ano de cirurgia. Era uma japonesa baixinha que passava um ar de delicadeza e
fragilidade. Fazia parte dessa avaliação o toque retal. Apesar da explicação em linguagem bem
acessível de que realizaria esse exame, o paciente não deve tê-la compreendido. Ao perceber
seu início, ele agarrou o braço da médica e começou a torcê-lo, enquanto dizia: - Aqui só sai!
Mesmo tendo abortado o exame, o acidentado continuava torcendo-lhe o braço de forma
muito agressiva. Dr. Diba estava ao seu lado e tentou soltá-la do golpe, sem sucesso. Vendo
que o bêbado era mais forte do que ele e que estava realmente machucando a colega, não
teve dúvidas: agarrou e apertou com toda força o saco escrotal do paciente, até que ele soltou
a médica. Que eu saiba, ela nunca precisou ser repetida, mas ficou conhecida como a "eficaz
manobra de Diba".

Como você deve ter percebido, temos que tomar muito cuidado para sermos compreendidos,
o que, às vezes, pode não ser fácil. Tenho, por exemplo, muito mais dificuldades em dar uma
aula para leigos do que para médicos. Entretanto, muitas vezes, o motivo de não sermos
compreendidos é surpreendente. Colecionei alguns "causos" que exemplificam bem essas
situações esdrúxulas da comunicação médico-paciente.

Eu quase apanhei no estágio de dermatologia. Nessa especialidade é fundamental olhar e


tocar. Para aprendermos, tínhamos de ver várias lesões. Para isso, nesse estágio, havia as
checagens. Nelas, vários pacientes passavam em sequência por um professor para que ele
conferisse os diagnósticos dos residentes. Assim, os internos aproveitavam para acompanhá-
lo e ouvir os seus comentários. Em poucos minutos, passavam lúpus, hanseníase, micose,
herpes, líquen plano, escabiose, desidrose...

Numa dessas ocasiões, entre esses doentes, quase consecutivamente e por coincidência,
houve três casos de grandes eczemas de contato (lesões dermatológicas causadas ou por um
agente irritante ou quando o paciente é alérgico).

O primeiro e o segundo pacientes explicaram que teriam sofrido as alterações após uso tópico
de chá de picão (Bidens graveolens - aquela sementinha de mato envolta por espinhos). Eu
nem sei pra que serve o chá de picão e desconheço a sua popularidade. Mas quando vi o
terceiro caso na sequência, igualzinho, não me contive e, antes de ouvir a história do paciente,
declarei:

- É chá de picão!
O paciente ficou revoltado. Gritou comigo achando que eu estava duvidando de sua
masculinidade. Só não houve agressão física por ele ter sido contido.

Em boca fechada não entra mosquito.

Durante o estágio de cirurgia plástica, acompanhei um paciente que se recuperava de um


reimplante do braço após uma amputação traumática. Todo santo dia eu narrava a sua
evolução clínica na visita que o professor passava. Meu relato seguia uma padronização,
começando com o nome do paciente e em qual pós-operatório (PO, no jargão médico) ele se
encontrava:

- Seu João, 3º P. O. do reimplante, blá-blá-blá. Lá pelo quinto dia da evolução médica, o


paciente começou a soluçar e chorar no meio da visita. Apreensivos e curiosos, perguntamos
o porquê de seu repentino desespero, ao que ele respondeu:

- Apesar de o doutor todo dia me falar que estou melhorando, desmente na visita, falando
que estou cada vez pior. Já estive no primeiro pior, segundo pior, e já estou no quinto pior, não
sei onde isto vai parar...

Outras vezes a comunicação não funciona porque o médico não entende o paciente. Isso pode
ocorrer, entre outros motivos, devido à existência de dialetos regionais ou pelo
desconhecimento do significado de termos utilizados por eles. A lista de expressões
idiomáticas é tão grande quanto a imensidão geográfica brasileira. Como, em nosso país, a
saúde não anda tão bem assim, era frequente recebermos pacientes vindos de tudo quanto é
canto do Brasil para resolvermos seus problemas:

- Doutô, faz cinco dia que num Obro. Sai vento, mas tenho umas coxada na pança que parece
que a tripa grande qué cume a tripa pequena. Fora um fastio danado e os gômito!

Mesmo desconsiderando as gírias e os regionalismos, alguns diálogos interessantes surgem a


toda hora:

- A senhora já foi submetida a alguma cirurgia? - Sim, doutor. Tiraram meu pênis. - O que?
Seu pênis? - Sim, doutor, ele já estava "estupurado" (ao mesmo tempo que apontava para a
cicatriz de uma cirurgia de apêndice).
- O senhor toma alguma medicação? - Sim, o Vio vinte. - Vio vinte? Vio vinte... ah! O Vioxx!

A escrita também faz parte da comunicação e todos conhecemos a fama da caligrafia dos
médicos, que nem eles mesmos entendem. Assim como a linguagem falada, a nossa caligrafia
também acaba sendo modificada durante o internato. Nesse caso específico, acho que a
culpada é a pressa. Quando atendemos um paciente passando mal, queremos ajudá-lo o mais
rápido possível. Uma das formas de fazê-lo é abreviando o tempo da escrita. Tal fato, somado
a certo desleixo, acaba por deformar nossa letra. Surge, então, aquela situação em que muitas
vezes precisamos do especialista em caligrafia de médico: o farmacêutico.

Mas mesmo esse coitado pode cometer erros e quem vai sair perdendo é o doente.

Em qualquer área de atividade, a comunicação é fundamental, mas posso dizer que na


medicina é, literalmente, vital.

Um jovem foi transferido para a enfermaria, onde faria a sua recuperação de uma cirurgia por
tiro na barriga.

Na mesma noite, o plantonista foi chamado, com urgência, pela enfermagem. O paciente do
tiro subitamente havia parado de respirar. Estava em coma e roxo.

O médico não entendeu o porquê daquilo, mas, rapidamente, inseriu um tubo na traqueia do
doente e, ventilando-o com o aparelho manual, voltou a oxigená-lo adequadamente. Poucos
minutos depois, ele começou a recobrar os sentidos. Quando acordou por completo, o
residente pôde tirar o tubo de sua boca. Aí, ele relatou o que havia ocorrido.

A enfermeira teria aplicado uma injeção e logo depois, apesar de ter se mantido consciente,
ele não conseguia mais se mexer ou respirar. Tinha sido horrível...

Por sorte, este era um paciente "vivedor" (para variar, mais uma gíria). Existem os pacientes
"morredores" e os "vivedores". Brincamos entre nós que os morredores são aqueles que,
mesmo com todo o tratamento impecável, morrerão. Já os vivedores, como este, são os
"Highlanders"; referência ao filme de mesmo nome, no qual a única forma de matar o herói
era a decapitação, já que eram imortais.

Graças a Deus o paciente ficou bem e sem sequelas. O colega não sabia qual medicação a
auxiliar havia aplicado, mas ficou claro que a culpa era do fármaco. Como o paciente era um
jovem muito inconveniente, o médico inferiu que a enfermeira teria aplicado algum tipo de
sedativo para ambos poderem dormir, sossegados, no plantão (dormindo, ele pararia de
conturbar o ambiente). Quem sabe ela tivesse exagerado na dose?

Caso a sua teoria estivesse correta, algo muito sério teria ocorrido. Sorrateiramente, colheu
amostras de sangue e urina para encaminhar ao laboratório de toxicologia. Quando estava
guardando os tubos, a enfermeira perguntou quais exames seriam aqueles. Todo
constrangido, ele se enrolou e deu uma desculpa qualquer. Percebeu que ela tinha notado
algo estranho no ar.

Ele se recolheu para dormir no quarto da enfermaria, mas ainda estava pensando na sua
teoria da sedação. Se tivesse aplicado algum medicamento no doente, que quase o matara, e
os exames confirmassem tal fato, ela iria, no mínimo, perder o emprego. A enfermeira devia
desconfiar que os exames seriam enviados à toxicologia. E se, enquanto estivesse dormindo,
ela decidisse injetar nele a mesma substância? Aí ela não perderia o emprego! Afinal, se
aplicou o sedativo num paciente, por que não nele?

No outro dia de manhã, ninguém conseguiu abrir o quarto do residente, apesar de não possuir
tranca na porta. Bateram e fizeram barulho, mas nada de ele acordar.

Depois de muito tempo, o médico acordou e saiu do quarto. Ninguém conseguiria abrir sua
porta. O medo de morrer dormindo foi tão grande que ele havia construído uma barricada de
móveis atrás da porta de seu quarto... Imagine a paranoia.

Não foi preciso um exame de toxicologia para entender o ocorrido. Bastou conferir as ampolas
utilizadas e o mistério foi desvendado. É evidente que a enfermeira não tinha a menor
intenção de matar ninguém.

Graças à caligrafia do médico, ela havia aplicado Quelicin (curare de ação rápida) em vez de
Keflin (antibiótico). O curare é uma medicação que utilizamos durante a anestesia geral para
relaxar os músculos do doente, o que facilita, em muito, o ato operatório. Imagine se, durante
a anestesia, o paciente ficasse se virando de um lado para o outro ou fosse sonâmbulo
(brincadeirinha, afinal anestesia não é só induzir o sono). Ele não é um sedativo nem reduz a
consciência ou a lucidez, mas impede qualquer movimentação muscular voluntária, como
piscar os olhos, mexer um braço e respirar. É por isso que apenas o utilizamos durante a
anestesia geral, enquanto os índios o aplicavam nas pontas das flechas. Ao serem atingidos
pelo veneno, os animais simplesmente caíam, imóveis, e morriam por asfixia. Prático, não?

INTERNATO

Preparo emocional

Após assimilarmos os vocábulos e as técnicas imprescindíveis para nossa atuação, estávamos


ávidos por praticá-las. Porém, antes de exercer a medicina, o aluno precisa aprender a tolerá-
la...

Fui colher a história de um paciente que estava com pneumonia. Entre várias outras
perguntas, questionei se a sua tosse tinha catarro. Como a resposta foi afirmativa, pedi para
descrevê-lo, o que é típico de estudante. Naquele caso, nada mudaria se o catarro fosse verde
ou amarelo. O paciente achou mais didático dar uma catarrada em vez de perder tempo
lembrando-se dos detalhes de sua secreção. Após aqueles barulhos guturais típicos, ele
expectorou.

Quando vi aquela bola de tênis úmida e gosmenta em suas mãos, senti as pernas ficando
bambas, a visão sumir e... "catapimba", lá estava eu, estirado no chão.

O desmaio, na verdade, é um mecanismo de defesa contra a pressão baixa. Ao presenciar algo


chocante, por exemplo, podemos desencadear um reflexo. Este leva a uma queda súbita da
pressão arterial, diminuindo de forma abrupta a quantidade de sangue que chega ao
encéfalo. O cérebro para de funcionar, perdemos a força nas pernas e caímos ao chão. Passa a
ser muito mais fácil para o coração levar sangue aos neurônios na horizontal que na vertical,
protegendo-os, assim, de um eventual dano irreversível.
Não é raro que a pressão baixe tão rapidamente, a ponto de a pessoa desmaiar antes que
possa se escorar em algo ou, até mesmo, proferir alguma frase.

Como os desmaios dos alunos são muito comuns em nossa formação, é mister aprender a
controlá-los. Mas no começo não é nada fácil. Lembro-me de dois exemplos bem marcantes.

Ninguém sai operando gente assim, sem mais nem menos. Antes de mais nada, precisávamos
praticar em cadáveres e em animais. Para isso, tínhamos as aulas de técnica cirúrgica. Nelas,
operávamos cachorrinhos anestesiados, realizando assim os procedimentos mais
elementares.

Sempre adorei os bichos e, antes que um ardoroso defensor dos animais rasgue este livro,
gostaria de justificar tal treinamento, uma vez que estão cada vez mais em voga os ataques,
muitas vezes radicais e infundados, a qualquer experimento que envolva animais. Na minha
época, o vira-lata de rua, que"viraria sabão', era operado pelos alunos e, depois, sacrificado.
Atualmente, devido à pressão exercida pelas sociedades protetoras dos animais, os alunos
operam porcos (quanta ignorância a minha. Eu nem sabia que um porco vale menos que um
cão!). Apesar de concordar com a opinião de que alguns procedimentos pudessem ter sido (na
teoria) ensinados sem utilizá-los (na prática), creio que o treinamento de algumas operações
teria sido impossível sem os animais de laboratório. Nenhum boneco, por melhor que seja,
consegue simular textura, consistência, umidade, viscosidade, peristalse, tensão, pulsação,
sangramento, coagulação e muitas das várias outras características inerentes aos seres vivos.
Para quem ainda não se convenceu da sua importância, gostaria de mencionar que várias
técnicas cirúrgicas revolucionárias e salvadoras só puderam ser criadas e desenvolvidas por
meio de intervenções em animais. Poucos sabem, mas a primeira cirurgia de transplante do
coração, por exemplo, ocorreu no Brasil, após o sacrifício benéfico de 68 cães.3 Dessa forma,
quando assisto a agressivas argumentações em prol dos animais, penso em quanto faz falta
uma "associação defensora dos animais humanos" Esta deveria lutar pela exigência de que o
cirurgião só pudesse tratar das pessoas depois que comprovasse ter operado, no mínimo, uns
dez cães.

*3. ZANTUT, L.F. C. Vida por um segundo. Atheneu, 2008.

Na primeira vez que meu amigo cortou a barriga do cachorrinho e viu suas tripas, sentiu um
suor frio. Disse que estava passando mal e que precisava se sentar. Saiu andando e, antes de
alcançar o banco, sumiu por completo do nosso campo de visão. Olhamos ao redor sem
confirmar nenhum vestígio de sua presença!
Intrigados, fomos esclarecer a causa do seu desaparecimento súbito. Ao sair andando, ele
perdeu os sentidos e caiu dentro do hamper. O hamper é uma espécie de saco de lixo grande,
onde os cachorros eram colocados depois de sacrificados. Quando ele caiu no sacão e ficou de
ponta cabeça, os seus sentidos voltaram. Mas ele demorou a entender o que estava fazendo
num saco, tendo ao lado um cachorro morto...

Mais impressionante que ver as tripas de um animal era assistir a uma cirurgia. Não é por
menos que iniciávamos o nosso treinamento no ambulatório da pequena cirurgia que, pelo
mesmo motivo, foi por nós apelidado de "ambulatório da pequena iatrogenia" - Empregado
frequentemente para designar os erros da conduta médica (Houaiss).

Nesse local eram realizados procedimentos de pequeno porte, com anestesia local e
executados por residentes menos graduados ou por alunos da faculdade.

Passávamos em grupos de três. Cada um desses grupos era tutorado por um professor. O
paciente do nosso grupo seria submetido à ressecção de um pequeno tumor benigno de
gordura localizado nas suas costas. A anestesia seria apenas na pequena incisão. Um dos
alunos faria a cirurgia sendo guiado pelo professor. Os outros dois também ficariam
paramentados em campo para poder participar do procedimento.

O paciente deitou-se de barriga para baixo e aplicamos o antisséptico no local que seria
operado. Colocamos os lençóis estéreis (campos cirúrgicos) ao redor do tumor e o professor
aplicou a anestesia. Apontou, então, em silêncio para o bisturi, como que nos perguntando
"quem se candidataria?".

Ninguém queria ser fominha e, ao mesmo tempo, todos estavam com medo de assumir a
posição de cirurgião. Assim, cada um ficou oferecendo o lugar para o outro. Sem ter a menor
noção do ridículo, resolvemos tirar na sorte para definir quem interviria. Para a incredulidade
do professor e do paciente, começamos o tradicional "dois 0000uuu ummm" sobre seu dorso!
Minha amiga ganhou e assumiu o bisturi. Olhou para os gestos do professor e incisou a pele.

Imediatamente, o paciente ouviu um "turn". Era o corpo dela caindo ao chão. Enquanto um
auxiliar ajudava a doutoranda desmaiada, o professor, objetivamente, passou a lâmina para
outra aluna. Ela conseguiu se escorar no paciente, mas também desmaiou do outro lado. Tum!
O paciente transformou-se em impaciente, começou a se ajeitar constantemente na maca
com pequenos movimentos. A situação piorou quando ele me ouviu dizendo que não queria
tentar, pois estava com a mão muito trêmula. O tutor não quis mais arriscar e assumiu o
bisturi. Para o alívio do paciente, retirou o tumor rapidamente e com maestria.

Nunca mais tive um desmaio, mas, embora consiga me controlar, uma coisa ainda me nauseia:
miíase.

Ela ocorre quando uma mosca coloca seus ovos no corpo humano. Os ovos costumam eclodir
em tecidos de viabilidade duvidosa, como numa perna com gangrena ou num tumor de pele
apodrecido. Em poucos dias, surgem larvas parecidas com aquelas da goiaba, que ficam
passeando e se alimentando por pequenos túneis nos tecidos. No caso, o corpo humano é a
goiaba. Entretanto, as larvas também podem ser úteis. Por distinguirem os tecidos viáveis dos
inviáveis e ter preferência alimentar pelos últimos, podem ser utilizadas para remover tecidos
mortos sem cirurgia. Segundo os defensores dessa "limpeza" biológica, elas conseguem
remover os tecidos inviáveis com grande eficácia e maior precisão que os médicos. Cirurgiões
são piores que as larvas!

Úteis ou inúteis, as minhoquinhas não são nada agradáveis. Com o tempo, aprendemos a nos
controlar melhor e, agora sim, poderíamos praticar.

A prática

"A prática faz o mestre."

Em todo começo de ano, tinha contato com residentes vindos de vários cantos do Brasil, que
iniciavam a sua especialização no hospital. Sempre surgiam alguns gênios que conheciam a
resposta para qualquer pergunta e se lembravam até dos rodapés de livros médicos. Mas
algumas vezes, sendo provenientes de faculdades desprovidas de bons hospitaisescola,
ignoravam a lida com pacientes. Não tinham treinamento em anamnese, exame físico e
procedimentos, pela simples inexistência de um curso adequado. Apesar da grande bagagem
teórica, bastava colocálos diante de um doente para que descobríssemos a falta de traquejo
deles. Exerciam uma medicina de baixa eficácia. Deixavam de perceber am.a massa palpável,
uma arritmia cardíaca ou qualquer outra alteração sutil. Pensavam nas coisas mais
improváveis e pediam vários exames inúteis; não resolviam nada...
Em medicina, além de um bom corpo docente, é fundamental que a faculdade propicie
condições adequadas de ensino e treinamento. No nosso hospital, doenças não faltavam. Para
evitar aquelas deficiências de formação, fomos submetidos a uma grande imersão hospitalar
chamada "internato". Ele se inicia no quinto ano da faculdade, dura dois anos e consiste num
amplo rodízio pelas enfermarias, na forma de estágios e plantões. Vivemos um aprendizado
intenso, voluntário e involuntário.

Todos podem decorar livros para depois esquecê-los (embora não demoremos a perceber que
nada é tão certinho como os tratados dão a entender). Entretanto, ao se responsabilizar por
um paciente sofrendo de determinada doença, ela deixa de ser apenas umas "letrinhas em
um parágrafo" e passa a existir. Torna-se real e palpável. Tem nome e sobrenome. Isto nos
motiva a ler sobre aquela patologia e seu tratamento. A experiência é ainda mais intensa que
nas aulas de semiologia, porque agora há envolvimento emocional.

Quando alguém me fala dos diagnósticos diferenciais de apendicite, para exemplificar, lembro-
me do "homem-pus" e não da página 1.345 de um compêndio de cirurgia.

Seu nome era Lazarino. Ele foi operado por suspeita de apendicite que não se confirmou na
cirurgia. Fizeram um cortinho do lado direito, mas o seu apêndice era normal. A conduta
nesses casos é, mesmo assim, retirá-lo. Caso contrário, o paciente poderá sofrer nova dor no
futuro e ser novamente operado, ou pior, deixar de ser operado supondo-se que já retirou o
apêndice.

Segundo o relato do médico que cuidou dele, não havia nenhuma alteração no abdome que
sugerisse outra doença cirúrgica e o tratamento consistiu apenas em analgesia e observação.
No outro dia, estava sentindo-se bem e recebeu alta precocemente.

Sete dias depois, ele voltou ao pronto-socorro com febre alta, pus no pulmão, no abdome e,
até, ao redor do coração! Seguindo o antigo ditado atribuído a Hipócrates, Ubi pus ibi evacuai
(Onde há pus, deve-se drená-lo), resolvemos operá-lo. Drenamos todas as regiões e
descobrimos, logo no início do quadro, que a causa fora uma perfuração do intestino por uma
espinha de peixe.

Como o furo era pequeno e na parede posterior do intestino, ele não pôde ser visualizado
pelo acesso cirúrgico habitual. Sem o tratamento ideal, a infecção se alastrou por vários
órgãos. Após várias intervenções e a perda de mais de vinte quilos, ele sobreviveu.
O caso de Lazarino, vivido há quase duas décadas, prova como a prática é importante em
nosso aprendizado. Mas não era apenas a teoria que reforçávamos com o exercício da
medicina. Aprendíamos coisas impossíveis de se captar apenas com a leitura, como a pressão
manual a ser exercida pelo médico para estancar uma hemorragia pela compressão direta
sobre o local do sangramento, a força para se reduzir uma luxação de ombro, a cor de uma
cianose ou a tensão correta de um fio de sutura.

Além do aprendizado desse conteúdo eminentemente prático, aprimorávamos, sem perceber,


um conjunto de qualidades e habilidades não tangíveis, que acredito ser o mais interessante
do internato. O internato reforçava a ciência e, principalmente, lapidava a ARTE. Nela, incluo
os conhecimentos indiretos e subjetivos que adquirimos pela simples companhia dos outros
médicos.

Exemplificarei com o breve caso da Maria José. Essa criança tinha um ano de idade quando
seus pais a levaram ao ambulatório de urologia pediátrica. Era um caso raro de intersexo.
Como não era possível definir o seu sexo pelos órgãos genitais externos, sua mãe a chamava
de "Maria José" e a criava como menina. Entretanto, o pai insistia no "Zé Maria" e o
estimulava como um menino. Imagine a confusão!

Como o médico deveria agir em relação a essa questão? Como abordá-la? Qual linguagem? A
decisão do "futuro sexo da criança" deveria ser estritamente científica ou abordar o contexto
familiar e social? Envolver-se ou manter distância? Como eu poderia aprender a melhor
conduta nesse caso, apenas lendo um capítulo?

É vivendo com os médicos que aprendemos a ser médicos. Somos inseridos em um hábitat
completamente diferente daquele ao qual estamos acostumados, quer em termos
acadêmicos, quer em termos didáticos. Nesse novo ambiente desafiador, passamos a conviver
com muitas emoções intensas, sejam elas de estresse, alegria ou frustração. Percebemos
nossas limitações. Ajudamos e atrapalhamos. Aprendemos a falar, gesticular, explicar, ocultar,
acolher e a nos relacionar com os pacientes e os colegas, como profissionais. Somos forçados
a trabalhar em equipe sob rígida hierarquia e nos tornamos mais responsáveis. Seremos,
gradualmente, inseridos na engrenagem do hospital até sairmos do curso com um canudo
debaixo do braço.

Na teoria, tudo parece relativamente fácil. Mas, assim que começou o quinto ano, em menos
de uma semana, pude perceber minha falibilidade.
Não é muito agradável para o paciente, mesmo em uma instituição de ensino, saber que será
usado para o aprendizado de outrem (o velho medo de ser cobaia). É lógico que ninguém vai
demonstrar para 15 alunos, individualmente, como fazer um exame de toque vaginal. Assim,
tentamos não constranger ou assustar o doente durante o nosso aprendizado, mas nem
sempre isso é possível. Se você deseja ser atendido por um médico experiente, lembre-se de
que sua experiência não caiu dos céus.

Só aprenderemos a fazer fazendo. E, se a experiência leva aos acertos, sabemos que ela surge
com os erros!

Apesar de parecer, iatrogenia não é necessariamente um erro médico, e, sim, um dano ou


alteração provocados por um diagnóstico ou tratamento. Por exemplo, a radioterapia para o
tratamento de câncer do útero pode curá-lo, mas também pode causar sangramento anal por
agredir o intestino adjacente. Desde que a dose de radiação tenha sido respeitada, não se
evidencia um erro, e, sim, um efeito deletério secundário ao tratamento. Mas pequenos erros
também estão inseridos na definição e não poderia esquecer-me da minha primeira
iatrogenia. Afinal, a primeira iatrogenia a gente também nunca esquece...

Já tinha visto alguém tirar sangue umas mil vezes, mas eu mesmo nunca havia colhido. Seria a
primeira vez e achei que o paciente não gostaria de sabê-lo.

Se já não é confortável para o paciente saber que será vítima da primeira execução de algum
procedimento por um jovem aluno, pior ainda deve ser ouvir frases como:

- Não, aí não. Mais pra cima, mais para a direita, cuidado com o nervo! Deste jeito vai coagular
lá dentro...

Normalmente, nessa situação, o responsável acompanha o colega menos graduado tentando


interferir o mínimo possível, mas orientando o procedimento.

Então, antes de abordar o paciente, solicitei uma pequena revisão ao atarefado R2. No meio
da correria, ele não teria como me acompanhar nessa tarefa tão básica, mas relembrou:

- Colocar o garrote, passar algodão com álcool em cima da veia, puncionar e depois comprimir
o local com um algodão seco.
Por conveniência, o "Opus 1" (como denominamos a primeira vez que executaremos uma
operação qualquer) é sempre selecionado. Nunca me deixariam picar a primeira veia numa
criancinha ou em alguém fazendo quimioterapia. Como eu não possuía a habilidade daqueles
auxiliares que acham veia até em orelhão telefônico, me indicaram um senhor que possuía
vasos extremamente dilatados e visíveis.

Apresentei-me como interno e fiz todos aqueles procedimentos sem problemas, tentando
demonstrar a maior tranquilidade e segurança possível. Dei sorte e, satisfeito, levei as
amostras ao laboratório. Pouco tempo depois, quando retornei, vi o braço do paciente todo
ensanguentado.

"Putisgrila"! Havia me esquecido de tirar o garrote! O que eu deveria dizer?

Fiquei muito constrangido. Tive vergonha de falar para o paciente sobre o meu esquecimento.
Não é fácil assumir os erros e eu tinha acabado de cometer um básico.

Acabei tomando uma atitude que hoje abomino, mas que vi muitos fazerem.

Postado na frente do paciente, olhei calmamente para o relógio e declarei:

- Acho que já dá para tirar o garrote. Abri o elástico, limpei o seu braço e saí, como se aquilo
fosse a coisa mais normal do mundo...

Infelizmente, esses deslizes fazem parte do jogo. No nosso caso, cedo ou tarde, praticaremos
com pessoas. Não são somente os alunos que praticam com os pacientes. Como o médico
precisa, continuamente, aprender novos métodos e atualizar-se, o exercício nunca acabará.

Embora esses pequenos erros ocorram, os pacientes, na maioria das vezes, não são muito
prejudicados. Outras vezes, porém, isso pode ocorrer...

Apesar daquele evento, não fui eu o vencedor do troféu "Dr. Iatros". Informalmente criado
pelos alunos, oferecíamos esse título ao interno autor da iatrogenia mais absurda.
Henry Louis Mencken dizia: "Consciência é a voz interior que nos adverte de que alguém pode
estar olhando". Como se não bastasse o peso da própria consciência e a desaprovação dos
outros, aquele era mais um jeito de sermos punidos por nossa indelével natureza humana.

E o vencedor do Dr. Iatros foi... O acadêmico sabia como introduzir a sonda urinária e havia
assistido ao procedimento várias vezes, mas nunca tinha inserido uma delas pessoalmente.
Essa sonda de borracha possui na ponta um pequeno balão, que enchemos de água após
passá-la pelo canal da urina. Estando cheio, ele aumenta o diâmetro do cateter, ancorando-o
dentro da bexiga.

O aluno explicou para a velhinha sobre a necessidade do procedimento e como o faria. Deitou-
a de costas com as pernas abertas, deixando-a parcialmente coberta por um lençol. Aplicou
antisséptico na região genital, afastou os grandes lábios vaginais, lubrificou a sonda e a inseriu
no orifício. Após enfiá-la por uns 15 centímetros, insuflou o seu balão e conectou-a num
sistema coletor.

Como não estava vindo urina, resolveu tracioná-la levemente, pois poderia estar dobrada.
Mas ela continuou sem débito urinário. Puxou um pouco mais forte e... PLUFT!

A sonda rompeu algo e exteriorizou-se. Perplexo, o acadêmico perguntou à paciente: -


Caramba! A senhora era virgem? - Como assim, era? - Não, nada não. Então o aluno
percebeu que a sonda não fora passada na uretra, e, sim, um pouco mais abaixo, num orifício
que em determinadas circunstâncias pode ser bem estreito, como numa vagina outrora
virgem...

Como não fazer um parto

Às vezes, é mais importante saber o que não devemos fazer do que o que devemos fazer.

No internato fomos divididos em grupos de quinze alunos. Os grupos usualmente são


designados como panelas. Essas panelas passam alternadamente por váriosestágios num
esquema de rodízio.
O trabalho em equipe foi uma experiência muito interessante. Ao passar, por exemplo, na
enfermaria da pediatria, nossa equipe ficava responsável por todos os leitos. Assim, era
necessário dividir tarefas entre nós. Claro que, com o passar do tempo, muitos se tornavam
mais integrantes que amigos e vice-versa. Muitas brigas já começavam na divisão de plantões
e de funções.

Quem iria trabalhar no domingo, na final da copa do mundo? Quem cuidaria daquele paciente
chato?

Se um casamento traz dores de cabeça, imagine um poligâmico com quatorze pessoas! Por
sorte, o meu grupo era muito divertido, trabalhador e integrado.

Nosso primeiro estágio foi na obstetrícia. Rodaríamos pela enfermaria, ambulatório, pronto-
socorro e centro obstétrico. Este último seria particularmente interessante, pois teríamos de
realizar, no mínimo, vinte partos.

Aquela ansiedade em se tornar médico começa a ser saciada com pequenas amostras grátis
do nosso futuro. Mesmo no internato, precisamos ser expostos a demonstrações
gradualmente mais complexas. Assim, um bom lugar para começar é nos ambulatórios.

Neles, os pacientes não apresentam emergências e o número de consultas é limitado. Com


isso, o atendimento pode ser realizado com mais calma e ser bem didático. Além de
discutirmos os casos com assistentes e residentes, podíamos ir pegando o jeitão da coisa sem
muito estresse. Mesmo assim, não era nada fácil chegar ao corredor, enfrentar todos aqueles
olhares apreensivos e chamar por um paciente, que estava ansioso, torcendo por ouvir o seu
nome. Tinha gente que vinha de muito longe, da periferia da cidade e até de outros estados.
Contudo, não acredito que recordaria deste dia, se não fosse pelo nome e pelo que ocorreu
com a minha primeira paciente: Dilícia da Costa!

As pessoas acharam que eu estava de gozação, mas não foi essa a primeira vez em que me
deparei com nomes diferentes: lembro-me dos gêmeos Indigo Blue e Blue Jeans, do Ri Mein
(He Man), Letisgo (pronunciava-se Let's Go). Isso, para não falar dos Mdicou Douglas Pereira e
Micaellequisson da Silva.
Lá estava a Dona Dilicia vindo à sua primeira consulta de pré-natal. Ela era linda e trabalhava
como modelo fotográfico. Estava radiante, pois, após descobrir a gravidez, fora pedida em
casamento pelo namorado.

O obstetra a avaliou clínicamente e depois realizou seu primeiro exame de ultrassom.

O exame ultrassonográfico do primeiro trimestre é muito importante. Entre outras


informações, traz com uma boa margem de segurança o tempo de gestação e a provável data
do parto.

O feto estava saudável e sem sinais de malformações. Entretanto, ao ouvir do médico a idade
do feto em dias, a futura mãe discordou. Para ela, a data citada era impossível. Tinha de ser
uns vinte dias antes para estar correta. Para a minha surpresa, o médico, muito seguro de si,
foi taxativo:

- Me desculpe, senhorita, mas a data está absolutamente correta! Desolada, a paciente


exclamou: - Merda de camisinha! Merda de camisinha! Entreolhamo-nos discretamente, sem
nada entender. Então a coisa piorou ainda mais:

- Doutor, dá pra ver aí no exame a cor da criança? Pelo que entendi, seu ex-namorado
angolano a visitou justamente no dia em que havia brigado com o seu atual namorado. A data
dessa visita coincidia com a do ultrassom...

Não acompanhei o parto do Diliciosinho, mas achava que fazer o primeiro parto teria um
gosto especial, o que posteriormente pude confirmar.

Estava empolgado com a evolução clínica da minha primeira gestante em período expulsivo.
Acompanhei todo o seu período pré-parto, quando aprendi a primeira lição do estágio: "Jamais
segure a mão de uma gestante em trabalho de parto!".

Nos filmes, ver o médico segurando a mão da grávida pode parecer muito meigo. Mas se a
cena for verídica, preste maior atenção nas feições do médico. Durante as cólicas, elas
apertam tanto a nossa mão que causam a sensação de ter quebrado algum osso.
E o pior é que, nessa situação, elas sempre lhe estendem a mão. Como recusar?

Depois dessa primeira experiência, quando me estendiam o braço, em vez de ignorá-las, eu


checava o seu pulso e depois, delicadamente, acomodava a sua mão de volta ao abdome...

(Lição número dois: "Carregue sempre uma bolinha de borracha no bolso, caso não obtenha
êxito nessa manobra".)

Quando constatei que a dilatação era suficiente, deitei-a na mesa de cirurgia e realizei
novamente o toque vaginal para definir a posição do bebê. Conhecendo a posição da criança,
poderia auxiliar em sua saída pelo canal vaginal realizando movimentos de rotação. Tudo
estava indo muito bem.

Assim que a cabeça da criança apareceu, comecei a rodá-la do modo que havia estudado.

Não obstante, para meu estresse, a criança não vinha e comecei a suar. Tentei girá-la
levemente, um pouco mais forte e ainda mais forte, sem sucesso. Em poucos (mas eternos)
segundos, já estava molhado de suor, enquanto o obstetra preparava-se para assumir o meu
lugar. Angustiado com a possibilidade de a criança encalacrar logo no meu primeiro parto,
soltei as minhas mãos para pedir auxílio ao médico assistente. Exatamente nesse momento o
bebê descreveu sozinho o movimento correto e nasceu.

Saiu mais lubrificado que um quiabo e quase o deixei cair do meu colo.

Toda essa dificuldade e estresse (meus) ocorreram por um motivo muito simples: estava
rodando o nenê para o lado errado! Bastou que eu parasse de atrapalhar para que a natureza
fizesse o seu trabalho, expulsando-o pelo canal de parto...

Rapidamente adquiri os macetes para acompanhar a dilatação, as contrações uterinas e o


traçado eletrocardiográfico do nenê. Depois disso, os outros partos passaram a ser bem mais
tranquilos, mas nem por isso deixei de viver situações interessantes e inusitadas no estágio.
Iniciamos também os plantões nas enfermarias. E como em qualquer estreia, desconhecemos
algumas coisas básicas que, no segundo plantão, passam a ser óbvias. De acordo com uma
amiga, o primeiro aprendizado no plantão foi jamais utilizar o seu despertador de galinha em
um dormitório coletivo. Quando este, subitamente, começou a cacarejar a 100 decibéis - có,
có, cocoricó - o residente tomou um susto tão grande que caiu do beliche!

Precisamos nos acostumar com a coletividade e com certa praticidade.

Ainda hoje tenho dificuldade para pegar no sono quando dou plantão, por ficar adrenalizado.
E quando o outro plantonista ronca? Pior ainda ocorre quando um colega não tem o menor
"simancol" e, ao entrar no quarto de madrugada, liga a televisão ou acende a luz.

Pelo menos, ao subir na escala hierárquica, cresce o respeito. Quando íamos de madrugada
acordar os assistentes, utilizávamos lanterninhas de examinar garganta.

Podemos ser chamados de urgência a qualquer hora e devemos estar prontos para isso. Não é
muito conveniente atender a uma parada cardíaca de baby-doll, como uma outra amiga pode
perceber. As vestes precisam ser práticas, o que explica, mais uma vez, o uso dos pijamas-
uniformes.

Uma das peças de vestuário que mudei após dar meus primeiros plantões foram os sapatos.
Passei a usar os sem cadarços para não ter que ficar amarrando e desamarrando, cada vez que
me acordavam.

Além desses detalhes, as condutas mais emergenciais precisam ser automáticas para
podermos agir mesmo com muito sono e o cérebro tentando pegar no tranco. Como
costumamos dizer, por brincadeira, elas têm de estar na medula (ser reflexas) e, não, no
cérebro.

Certa vez o assistente foi chamado no meio da madrugada para orientar o atendimento num
caso de emergência. Ele estava num sono tão pesado que, após levantar na correria, teve de ir
ditando as condutas enquanto tapava os olhos com as mãos devido à claridade.
Imagine abrir os olhos no meio de um sonho e ter de enxergar detalhes, embaixo das potentes
luzes de um foco cirúrgico. Se a pupila ainda nem tinha se contraído, pense como devia estar o
seu raciocínio!

Ainda na obstetrícia, muitos colegas procuraram estágios em maternidades, onde exerceram


atividades extracurriculares. Nelas, pelo que me contaram, puderam ter o seu primeiro
contato com atitudes e comportamentos antiéticos. A parte mais proeminente era a dos
abortos.

O aborto, legalmente falando, é de natureza criminosa na maioria das situações que


vivenciamos no pronto-socorro: meninas querendo se livrar de uma gravidez indesejada.

Independentemente do que acreditamos, não podemos ser cúmplices. Isso acaba sendo
complicado para os médicos. Por saberem que é crime, as pacientes tentam inventar as
histórias mais malucas para ocultar ou, eventualmente, justificar o abortamento.

Existe um ótimo remédio para estômago de homens, pois é abortivo. Deve ser um dos
medicamentos mais vendidos no mercado negro, uma vez que atendi algumas moças que o
teriam utilizado.

A apresentação era sempre a mesma. Uma jovem entrava no pronto-socorro pálida e com
muita cólica no baixo-ventre. Nunca contava uma história muito coerente e enquanto
investigávamos o que estaria acontecendo, de repente, ela eliminava um feto. Sempre negava
o uso de abortivos, mas aposto que este era a causa da expulsão fetal na maioria das
pacientes com histórias pouco claras.

Um desses casos me marcou. Era uma moça de dezesseis anos. Mesma história sem nexo, mas
com uma gravidez bem mais avançada que as habitualmente "abortáveis". Enquanto eu fazia a
anamnese, o feto saiu na maca. Eu o peguei e, com as minhas mãos, pude sentir seu coração
batendo rapidamente. Não era um feto de idade viável; sei que, de um jeito ou de outro,
morreria. Por ainda ser desproporcional, parecia com aquelas ilustrações de extraterrestres.
Assim que amarrei o cordão umbilical, senti o seu coração parar. Isso me deu uma péssima
sensação de aperto no peito, como se eu o tivesse matado. Talvez a mesma que os
anestesistas sentem quando desligam os aparelhos que mantêm a respiração e os batimentos
cardíacos do corpo de uma pessoa em morte encefálica e anotam a "hora do óbito", ao
término da retirada dos órgãos que serão doados.
Estamos acostumados a salvar, e não "a matar". Estava habituado a ver abortos em que a
jovem eliminava coágulos junto ao pequeno embrião ou algo ainda irreconhecível. Mas este
doeu...

A hierarquia

"Em uma situação de risco, hierarquia é muito mais eficiente que democracia."

FRANS DE WAAL, BIÓLOGO ESPECIALISTA EM CHIMPANZÉS.

O professor de cirurgia do fígado era extremamente dedicado, rigoroso e exigente. Passava


visita na enfermaria todos os dias, inclusive aos sábados e domingos. Tinha por volta de
sessenta anos, um metro e noventa de altura e olhos claros, inquisidores. Embora não fosse
grosseiro, era incisivo. Tinha o poder de, com algumas palavras, fazer-nos sentir seres
insignificantes. Não seria difícil imaginá-lo utilizando um daqueles capacetes alemães com
uma ponta afiada no topo, gritando ordens aos soldados.

Havia muitos pacientes internados por transplante hepático, que necessitavam de um


acompanhamento complexo e trabalhoso. Assim, cada paciente submetia-se, diariamente, a
vários exames e a um controle constante dos seus parâmetros vitais. Os dados eram tantos
que os registrávamos, dia após dia, em gráficos traçados em cartolinas do tamanho de um
jornal aberto, chamadas "folhões". Apesar de a enfermaria comportar por volta de vinte
pacientes, o nosso chefe parecia saber de cor todos os dados e exigia o mesmo de nós, reles
mortais. Para não falarmos bobagens ou dados contraditórios (o que fatalmente seria notado,
e seríamos repreendidos), antes da visita fazíamos um treinamento.

Esse estresse pré-visita era o estímulo para que a preparássemos da forma mais perfeita
possível. Apesar de muito tentar, não somos perfeitos, e o professor sempre achava algum
erro para nos detonar na frente dos pacientes. A equipe foi se aperfeiçoando, com o objetivo
de passar pelo menos uma visita sem broncas até o final do estágio. Finalmente, chegou o
grande dia, houve a visita em que não tínhamos incorrido em nenhuma gafe, até o penúltimo
paciente. O último seria a Dona Maria.

Ela era uma senhora de aproximadamente 70 anos, que estava internada por um câncer que
obstruía o canal da bile. Apesar de estar amarela como um canarinho, era gordinha e
extremamente bemhumorada. Muito simples e bastante simpática, nos tratava como
netinhos, sempre distribuindo balinhas a todos nós. Eu relatei o seu caso com precisão.

Empolgado com o nosso sucesso, quis encerrar com chave de ouro: - De novidade, a paciente
desenvolveu uma pitiriase versicolor. Esta é uma micose que se manifesta por manchas
brancas na pele, mas não de um dia para outro, ainda mais dentro de uma enfermaria. Nessa
hora, a paciente me corrigiu:

- Ih, doutor, essas manchinhas? Foi não! Eu as tenho há meses... Foi a deixa para o professor.
Ele nos deu uma tremenda bronca, por não termos examinado adequadamente a paciente e
por desconhecermos a fisiopatologia da micose. Foi uma baita frustração.

Ao término da visita, ela me contou que percebera as consequências da "besteira" que


cometera e pediu desculpas. Acalmei-a, mas pedi que durante a próxima não se manifestasse.

O dia seguinte seria o último do estágio. Nossa oportunidade derradeira de passar uma visita
inteira sem repreensões. Ela transcorria melhor ainda, com todos os casos sem furos. Ao
chegar à última paciente, Dona Maria, o professor a cumprimentou. Conhecendo toda a sua
animação, ele estranhou que ela tivesse apenas respondido com um "hum-hum". Perguntou
se estava tudo bem e ouviu um novo "hum-hum".

- Tem certeza de que não está nada errado? - Hum-hum! Pediu então que ela estendesse as
mãos para verificar tremores, típicos de quando o fígado, por algum motivo, tem uma piora
no seu funcionamento. "Será que ela está em insuficiência hepática?", deve ter pensado.

Mãos firmes. - Mas por que não está falando? A senhora está se sentindo bem? - Sim, doutor,
eu estou bem. É que o doutor pediu para eu não falar mais nada na visita e estou quieta...

Ficamos brancos de medo, mas foi a primeira e única vez que vi o professor gargalhar.

Essa forma de relação entre alunos e professores era muito comum. Nós os respeitávamos
muito, mas mais que isto, os temíamos. No ensino médico existe essa hierarquia por mérito e
admiração, que em alguns locais pode ser bem rígida, quase militar.
Um assistente decano me contou um exemplo desses extremos. Segundo ele, antigamente
havia no serviço de cirurgia um médico que não se relacionava com os internos e R-menos
(residentes dos 14 e 22 anos). Para ele, simplesmente não existiam. Quando um residente
queria falar com ele, tinha que ser no mínimo R3 (de terceiro ano). Aí, cenas surreais
ocorriam. Imagine os três médicos juntos, R1, R3 e assistente. O R1 perguntava qual seria a
conduta em determinado caso (assistente com cara de paisagem). O R3, então, repetia a
pergunta e, de forma solícita, o assistente respondia (ao R3). Este, por sua vez, repetia a
resposta ao R1. Se o R1 ainda tivesse alguma dúvida, teria que perguntar novamente por meio
do R3 ao assistente e assim por diante... Que bagunça!

Ainda hoje, o interno reporta-se ao residente de primeiro ano. Se este tiver dúvidas, dirige-se
ao R2 e, assim por diante, até o médico assistente. Embora essa sequência em geral seja
seguida, não existe uma obrigatoriedade. Faz parte do treino do residente orientar seus
subordinados.

Todo trabalho em plantões, ambulatórios ou enfermarias era realizado pelos internos,


residentes e assistentes. Os internos são os médicos em formação, enquanto os residentes, os
médicos em especialização. Os internos são orientados pelos residentes e estes são
supervisionados por assistentes. Os assistentes são os médicos especialistas que prestam
serviços de atendimento e ensino em cada estágio. Estes, por sua vez, são coordenados por
professores, doutores e livre-docentes. Mas o chefão supremo, próximo a Deus, é o professor
titular (e, como corre nas piadas do meio médico, se achando acima de Deus está o
neurocirurgião).

Apesar de sempre ter sido muito rígido, o código hierárquico, com o passar do tempo, vem
amolecendo. Antigamente seria impensável sair de uma cirurgia para comer ou para urinar
caso a pessoa mais graduada não o tivesse feito. Sair da cirurgia porque o plantão acabou e
trocar a equipe com a barriga do paciente aberta? Tá maluco!

Isso já ficou um pouco mais humano, embora ainda pegue mal... Vivendo nessa cultura, pude
sentir na pele as vantagens desse comportamento.

Ao sairmos da faculdade, estamos (teoricamente) preparados para atuar nas grandes áreas
básicas de clínica geral, pediatria, ginecologia. Sabemos como lidar com as doenças mais
frequentes. Por outro lado, parecemos peixes fora d'água quando iniciamos a especialização
em cirurgia, anestesia ou oftalmologia, por exemplo. Nessas áreas é muito importante que a
conduta seja definida pelo seu superior hierárquico. É claro que na clínica isso também é
importante, embora um pouco menos. Numa pneumonia, o R1 de clínica sabe muito bem o
que fazer. Seu superior terá muito mais experiência, mas não mudará grande coisa nesse caso
corriqueiro. Na cirurgia, mesmo uma apendicite simples não poderá ser operada pelo R-1
sozinho. O resultado pode ser catastrófico. Como a experiência dele, nesses casos, é próxima a
zero, ele poderá operar o paciente apenas por controle remoto, como brincamos entre nós
(corte aqui, amarre ali, cuidado com este vaso, empurre o músculo para cá).

Muitas vezes, as pessoas têm opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos e é mister que a
mais experiente (em geral, com a razão) tenha o comando das decisões para que as possíveis
complicações de uma conduta inadequada sejam minimizadas.

Além disso, ao ficar na cirurgia até o seu final, independentemente do horário, mostramos
compromisso para com o doente, aprendemos e vemos os detalhes da cirurgia do começo ao
fim. Assim, fica muito mais fácil prever e entender possíveis alterações e complicações no pós-
operatório. A pior coisa que existe é alguém responsabilizar-se pelo acompanhamento de um
paciente no período de pós-operatório se não o operou ou não esteve presente na cirurgia.

Por outro lado, esse código hierárquico também causava malefícios. Um amigo estava no
quinto ano da faculdade e, apesar de estar com diarreia e um pouco de náuseas, seria
inadmissível faltar àquela cirurgia. Ela seria realizada pelo seu professor titular e ele estava
escalado para auxiliá-lo. Tomou um remédio para enjoo e se paramentou. Começou a sentir
muitas cólicas durante a cirurgia. Devido à hierarquia, ele estava se segurando do jeito que
dava para não sair do campo operatório. Não aguentando mais as dores, resolveu soltar um
silencioso pum. Infelizmente, para o seu azar, embora silencioso, não foi só o pum que saiu.

Nesse momento, a cirurgia já estava terminando, faltava apenas fechar o abdome do


paciente. E ele, coitado, estava todo melado. O avental cirúrgico escondia o aspecto de suas
calças, mas não o cheiro nem a sua vergonha. Se a situação já era constrangedora, imagine na
frente do catedrático!

Ao sentir o cheiro de fezes, o professor ficou preocupado e começou a procurar alguma lesão
no intestino do paciente. A cirurgia transcorrera de forma muito tranquila, embora o cheiro
não deixasse dúvidas; deveria existir alguma lesão intestinal despercebida! O cheiro não
passava e, pensando na perfuração intestinal, o professor revisou todos os passos da cirurgia.
Após várias revisões infrutíferas, o titular ainda não desistira da procura por uma lesão.
Constrangido pelo prolongamento inútil do tempo de anestesia, o interno se manifestou:
- Professor, o senhor já olhou várias vezes, não há lesão intestinal! - Calma, meu filho,
devemos ser persistentes. Uma lesão intestinal despercebida pode ser catastrófica para este
doente.

- Me desculpe, professor, mas não há essa possibilidade. Na verdade, fui soltar um pumzinho
e...

Mas de nada adiantaria um rígido código hierárquico, se uma supervisão contínua não
existisse. Por isso, os mais graduados serão cada vez mais supervisores, enquanto a linha de
frente ficará aos cuidados dos supervisionados, internos e residentes.

A supervisão

"E Jesus disse: - Um cego pode guiar outro cego? Naão! Porque irão

cair na mesma cova!

LUCAS 6.36

O "golpe precordial" consiste em um soco com o punho cerrado, na parte anterior do tórax,
imediatamente à frente do coração. Trata-se de uma manobra clássica em caso de parada
cardíaca. Ela pode funcionar mas, sem dúvida, é menos eficaz do que os aparelhos de
desfibrilação. Hoje, com a proliferação dessas máquinas, inclusive em áreas públicas, o
"golpe" praticamente desapareceu.

Na UTI, os pacientes ficam com vários monitores, inclusive o do coração (ECG). Às vezes, este
último pode sofrer algum tipo de interferência, comumente traduzida por irregularidades em
seu traçado. Estas costumam logo desaparecer, não há uma correlação com o estado clínico
do doente e nada precisa ser feito. Não trazem maiores preocupações, pois o clínico
experiente as reconhece facilmente.

Num plantão na UTI, a acadêmica que acabara de fazer estágio teórico de cardiologia notou
que o traçado do ECG de um paciente estava irregular. Ele dormia placidamente, o que a
levou à errônea interpretação de que estivesse ocorrendo uma parada cardíaca.
Ela não teve dúvidas. Graças ao seu conhecimento recentemente adquirido, deu um soco no
peito do paciente. Ele acordou agitado pela dor e, enquanto se refazia do susto, ouviu o
seguinte comentário da "médica" agressora:

- Que bom, o senhor voltou! Teve uma arritmia, mas agora melhorou graças ao golpe no peito.

A aluna saiu sorridente. Como era de madrugada, achou que não valeria a pena acordar o
residente para contar o ocorrido. Afinal, ele estava melhor! Por via das dúvidas, resolveu
observar de perto o monitor por mais um tempo. Nesse ínterim, o doente adormeceu e o
eletrodo, que estava parcialmente descolado, voltou a dar interferência. Ela não hesitou e
esmurrou novamente o paciente, que acordou assustado e assistiu à mesma cena.

Não é preciso dizer que nenhum dos dois conseguiu mais dormir. O paciente tinha medo de
adormecer novamente, ter arritmia e levar pancada. A acadêmica tinha receio de abandoná-lo
e não perceber outra arritmia antes que fosse tarde.

Eles foram encontrados pela manhã roncando profundamente. A aluna estava sentada numa
cadeirinha de frente para o leito, enquanto o paciente estava deitado, mas com um
travesseiro sobre o seu peito...

Qualquer médico ouvindo esse relato chegará à conclusão de que não ocorreu, de fato, uma
arritmia, e, sim, uma interferência no monitor. Em outras palavras, não existiria a menor
necessidade dos golpes precordiais.

O que ocorreu? Faltou supervisão! Por isso que, no aprendizado médico, a supervisão é
fundamental e deve ser ininterrupta. Entretanto, os alunos, muitas vezes, por sentirem-se
seguros de sua conduta ou constrangidos em abordar seus superiores com dúvidas "tolas"
acabam não recorrendo à sua orientação, o que aumenta a incidência de erros e
complicações.

Por vezes, o ritmo do PS é tão puxado que o nível dessa supervisão diminui. Os residentes
podem estar atribulados, cercados de pessoas passando mal, urgências e reclamações.
Facilmente percebemos que este não seria o melhor momento para ensinar algo. Nessa hora,
os acadêmicos ficam um pouco mais livres. É neste cenário que acabam, às vezes, fazendo
bobagens. É claro que não são intencionais, mas não é fácil no meio do caos ficar o tempo
todo fazendo perguntas básicas e interrompendo o atendimento. Assim, os internos ficam
constrangidos e podem tomar decisões que, para eles, parecem corretas.

Um exemplo interessante ocorreu com uma acadêmica que, no meio da confusão, perguntou
ao médico o que deveria fazer. Estava atendendo uma paciente em crise de pressão alta e
gostaria de uma opinião sobre a medicação. Ele apenas disse (ao mesmo tempo que
gesticulava):

- Coloque uma nifedipina (medicação anti-hipertensiva) embaixo da lingua e fura!

Virou-se e continuou atendendo os outros pacientes. Ela pegou a cápsula e colocou sob a
lingua da paciente, mas ficou em dúvida quanto ao furo. Seria com uma agulha grossa ou fina?
Na dúvida, pegou uma agulha intermediária.

Como o residente poderia prever que a acadêmica, após colocar a medicação embaixo da
lingua da paciente, não furaria a cápsula, e, sim, a língua dela?

A doente não deve ter entendido nada, mas pelo menos a sua pressão abaixou. Espero que ela
não ensine esse truque para seus conhecidos, uma vez que melhorou devido à medicação, e,
não, ao sangramento...

Embora seja essencial, a supervisão deve ser dosada, pois, quando em excesso, pode levar a
insegurança, dependência ou ser interpretada como pressão.

Por mais absurdo que possa parecer, muitas vezes, a simples presença de outro profissional
pode intimidar o médico, afetando negativamente o seu desempenho.

Nunca gostei muito daquela ideia de parto humanizado. Nele, o pai entra na sala de cirurgia
para assistir ao nascimento. Na maioria dos casos, não há interferência e todos acham tudo
muito bonitinho. Mas penso em algumas daquelas situações raras e inusitadas, porém
existentes, nas quais a atuação do obstetra é definitiva para minimizar os riscos do nenê ou da
mãe. Será que nessa situação emergencial, com a presença do pai na sala, o médico agiria da
mesma forma e com a mesma competência?
Sinceramente? Acredito que não. Dou graças a Deus por ainda não terem inventado a moda
da cirurgia de emergência humanizada. Uma pessoa não treinada e inserida no ambiente
cirúrgico, se não ajuda, atrapalha. Sem mencionar a possibilidade de contaminar algum
material ou tropeçar num cabo elétrico, a presença do estranho, muitas vezes, acaba por
modificar as condutas habituais do cirurgião. O que foge do habitual, dificilmente, sairá tão
bem. É o tal do "já que o parente está aqui, vou fazer um corte menor". Parece bobagem, mas
não é.

Certa vez uma moça que trabalhava como atriz submeteu-se a uma cesárea. Além do
obstetra, também estava na sala de cirurgia o cirurgião plástico para fechar a sua pele. Ambos
tentariam minimizar ao máximo a cicatriz da cesárea. Assim, o corte foi um pouco menor que
o habitual e, na hora de retirar a criança, ela não passava pelo orifício. Foi um tremendo
estresse, pois a incisão precisou ser prolongada imediatamente e a criança acabou nascendo
com rebaixamento do Apgar (escala que avalia as repercussões do estresse sofrido pelo
recém-nascido durante o processo do parto). Ainda bem que os pediatras a recuperaram
rapidamente, pois caso contrário teríamos mais uma criança com paralisia cerebral por causa
de uma baboseira. O obstetra certamente sofreu interferência em sua conduta pela simples
presença do cirurgião plástico na sala.

Conheci um professor de cirurgia que era considerado por todos um verdadeiro gentleman.
Além de ser muito habilidoso, todos admiravam a sua calma e educação. Para se ter uma ideia
de quão sereno era o seu comportamento, certa vez, seus colegas de plantão convenceram-
no a realizar uma tomografia de crânio, simplesmente porque estava falando muitos
palavrões...

E não é que a tomografia veio alterada! Seu comportamento mudara devido a um


sangramento cerebral indolente, resultado de uma pancada na cabeça que havia sido
negligenciada por ele mesmo alguns dias antes. Foi tratado e voltou ao seu normal.

Esse mesmo professor, anos antes, realizou uma cirurgia que foi transmitida por
videoconferência em tempo real. Era a moda nos congressos da época. Casos de doenças
coincidentes aos temas do evento eram selecionados, operados, e sua cirurgia era
demonstrada, ao vivo, para outros médicos daquela área. No caso, uma plateia repleta de
cirurgiões que, de imediato, podiam opinar e discutir as suas dúvidas.

Não era nenhum caso diferente daqueles aos quais ele estava acostumado. Eu era interno e
instrumentei na sua cirurgia.
Tudo transcorreu perfeitamente, sem nenhum percalço. Entretanto, pude perceber o seu
estresse muito acima do habitual. Ele transmitia aquela sensação de tensão a todos nós na
sala. Sabia que não ficaria bem aplicar um nó mais frouxo ou um ponto um pouco assimétrico,
pois todos na plateia notariam.

Tenho certeza de que o estresse por ele passado não afetou o resultado da cirurgia. Mas o
contrário poderia ter acontecido.

Postura de médico

"O importante é termos a capacidade de sacrificar aquilo que somos para ser o que podemos
ser."

CHARLES DUBOIS

Imagine a seguinte situação: sua avó, com 90 anos, está internada na UTI. O caso é gravíssimo.
Seus pulmões e rins estão funcionando à custa de aparelhos. Toda a medicação foi trocada e
ela continua a piorar, apesar da cirurgia.

O médico pode chegar para a família e dizer que o caso não tem mais cura e a dignidade já se
foi. Restaria apenas amenizar o seu sofrimento e abreviar sua agonia. Ou pode preferir outra
abordagem: dizer que, apesar do péssimo prognóstico, existe uma pequena luz no fim do
túnel. Não podemos desistir! Devemos transferi-la para uma clínica nos Estados Unidos, onde
será cuidada por um "papa" de determinada área e assim por diante.

Acredito que algumas pessoas preferirão a primeira abordagem. Outras se sentirão mais
tranquilas com a segunda. Mas qual abordagem eu, como médico, deveria seguir?

Este é apenas um dos inúmeros desafios com que lidamos constantemente no trato com os
pacientes: como se vestir, como falar, de que forma abordar os males e seus tratamentos,
qual grau de liberdade e envolvimento emocional dispensar.
A maioria das pessoas fica mais à vontade quando o médico se aproxima da imagem da
fantasia que elas possuíam dele.

O profissional que aparece nas propagandas de hospitais ou de planos de saúde, com certeza,
reflete a imagem que a maioria das pessoas espera do seu doutor. Eu nunca vi um comercial
de TV em que o médico seja um punk cabeludo com piercing, ou um gordão todo tatuado.
Mesmo as pessoas mais modernas parecem ser um pouco caretas quando escolhem o seu
doutor. Não deve ser muito tranquilizador saber que o profissional que irá cuidar da sua mãe
é um cirurgião bem doidão!

Não há uma disciplina de etiqueta médica e, na grade curricular, nunca tive aulas com
expoentes das boas maneiras.

Foi por meio da educação familiar e da observação dos vários médicos com comportamentos
diferentes que acabei burlando e incorporando o meu próprio estilo. Procurei buscar uma
postura que agradasse à maioria dos indivíduos, sem perder a minha identidade.

Não deixamos de ser garotões aos vinte anos, mas começamos a nos vestir de forma menos
desleixada, a fazer a barba com mais frequência, falar menos gírias e a exercer as nossas
funções com um pouco mais de responsabilidade. Em outras palavras, a essa altura, mudei a
casca e tentava lentamente ir mudando o conteúdo. É claro que este último é essencial, mas,
se a aparência não fosse digna de nota, ninguém gastaria dinheiro com marketing.

É muito mais fácil acreditar no tratamento de um médico de meia-idade, carismático, bem-


vestido e com um lindo consultório repleto de diplomas do que no de um jovem com roupas
amassadas e trabalhando numa espelunca. Pude atestar essa verdade em várias ocasiões.

Quando você ingressa numa Faculdade de Medicina sem ter repetido um ano sequer na
escola, terá 17 ou 18 anos. Após seis anos de curso, terá 23 ou 24. Com mais quatro anos de
residência, 27 ou 28. Nessa idade, os médicos ainda têm cara de menino, mas já estão
treinados para atuar em suas áreas. Aí começam as perguntas dos pacientes:

- Tão novinho e já é médico? - Nossa! Já é cirurgião? Incomodados, muitos colegas começam


a deixar a barba crescer, a usar cavanhaque ou, até mesmo, a andar de gravata. Com o tempo,
a face vai envelhecendo e a confiança do paciente vai aumentando. Aí, raspam o bigode,
tiram a gravata e submetem-se a cirurgias plásticas rejuvenescedoras...
Existe uma lógica no comportamento dos pacientes. O médico mais velho deve ser mais
experiente. É claro que o amadurecimento conta e, em geral, eles estão corretos. Mas a
experiência vem com o número de atendimentos e não com a idade.

Alguns alunos entram na Faculdade de Medicina bem mais velhos do que a média dos
estudantes. Acabam sendo utilizados pelos próprios colegas para determinados propósitos.
Um deles, como já mostrado, era o da aula trote. Outro, atender pacientes inseguros. Quando
isso ocorria, o profissional com a face mais madura, independentemente de sua patente
acadêmica, era o escolhido para comunicar a conduta.

Para se ter uma ideia da importância de nossa casca, vi em um programa de televisão


chamado Zoo Humano (ou algo assim) uma experiência muito simples. Colocaram um ator no
meio da rua, trajando roupas esportivas e simulando um mal súbito. A câmera escondida
mostrou que ninguém parava para ajudá-lo, embora todos o notassem e ficassem olhando.
Poucos dias depois, o mesmo ator, no mesmo local, repetiu exatamente a mesma atuação, só
que de terno e gravata. Todos pararam para ajudá-lo!

Depois desse dia, a minha esposa finalmente me convenceu a usar gravata no consultório.
Mesmo que seu uso não fosse efetivo em termos de marketing para a clientela, pelo menos
alguém me socorreria caso eu passasse mal na rua...

Mais interessante do que o vestuário isoladamente ou a aparência é a postura do médico em


relação a seus pacientes. Embora seja óbvio, é interessante notar que colegas de estilos
divergentes atraem pacientes diferentes. Assim, conseguimos algumas vezes até descobrir
quem é o médico de determinada pessoa, baseando-nos apenas no seu comportamento.
Doutores intolerantes e apressados costumam atrair pessoas com as mesmas características.
Existem exceções, mas é mais comum um halterofilista comprar um pit bull, que um
minipoodle (ou, pelo menos, eles escondem o cachorrinho).

Uma das ferramentas que ainda exercito na medicina, para agir de uma forma ou de outra, é
muito simples. Tento me colocar no lugar do paciente. Pelo menos os pacientes parecidos
comigo apreciarão o meu atendimento. Espero estar incluído na média.

É claro que os exemplos que vivi foram muito úteis. Alguns fugiam muito do habitual, mas,
curiosamente, havia procura para todos os estilos.
Talvez o personagem hors concours tenha sido um professor de dermatologia. Todos nós,
alunos, o adorávamos, dada a sua atenção e dado o seu carinho, embora alguns o
considerassem excêntrico.

Seu visual, assim como seu jeito, não era nada convencional. Tinha um cabelo que me
lembrava o He Man, embora grisalho. Comumente usava avental, mas sem camisa por baixo.
Em vez de anel de esmeralda (anel de médico cada vez mais em desuso), portava um com a
caveira do Fantasma, herói que marcava sua presença em várias gravuras do consultório. Não
tinha secretária. O primeiro paciente que chegava ficava encarregado de aguar as plantas,
fazer o chá e servir os outros que fossem chegando. Não atendia a convênios, o preço era
livre. Orientava para que pagassem o que pudessem. Adorava estudar. Conhecia a história da
medicina, língua portuguesa, latim, física, química e não perdia as aulas dos telecursos uma
manhã sequer. Classificava as árvores que encontrava na rua. Sabia o nome científico de
todas. Em suma, nós o achávamos adoravelmente maluco.

Ele havia escolhido fazer dermatologia, pois, diferentemente de todas as outras


especialidades médicas, o exame físico é mais importante do que a anamnese. Entretanto,
assim como um de seus heróis prediletos (Sherlock Holmes), ele tentava imprimir seu
raciocínio e sua perspicácia a cada simples diagnóstico. Enquanto a maioria dos
dermatologistas olhava para a lesão e proferia o diagnóstico, ele, aplicando seus
conhecimentos adquiridos em um curso de detetive que havia feito em Londres, abordava
todo o contexto da patologia para depois chegar à mesma conclusão. Podia ser menos prático,
mas era interessante observá-lo utilizando a sua lupa em busca de vestígios.

Por pensar assim e abordar as doenças dessa forma, muitos o ignoravam ou debochavam de
suas condutas. Mas os seus poucos diagnósticos, que eu havia presenciado e verificado com
outros dermatologistas, estavam corretos.

Exemplificarei o seu modo de agir citando alguns episódios.

Especialistas em dermatologia se reuniram em um evento para discutir seus diagnósticos e


tratamentos diante de vários casos clínicos que seriam apresentados. O clima era bem formal.

No primeiro caso seria discutida a melhor conduta em relação a um paciente com uma
extensa e grave inflamação dos pelos nas nádegas.
Após uma breve introdução, os slides mostraram uma fotografia do paciente, de costas, com
as calças abaixadas e mostrando o seu bumbum. Terminada a apresentação, o caso foi à
discussão. Não havia dúvidas quanto ao diagnóstico. Todos na mesa concordaram tratar-se da
mesma doença.

Então, um especialista de cada vez daria a sua opinião em relação à melhor abordagem
terapêutica. Um preferiu determinado antibiótico, pois seu custo é baixo, enquanto outro
ressaltou seus frequentes efeitos colaterais e sugeriu outro fármaco, e assim por diante.

Quando chegou a vez do nosso herói, ele pediu para que apresentassem novamente a imagem
da lesão. Para o espanto dos ouvintes, declarou:

- Reparem no uniforme azul do indivíduo e na conformação de suas lesões (só faltou falar da
unha grande do dedo mindinho). Olhem o tamanho do bumbum. Provavelmente esse homem
é motorista de ônibus ou cobrador. Se ele deseja mesmo melhorar, deveria emagrecer um
pouco. Além disso, alguém tem que avisar esse rapaz para parar de fazer curvas tão drásticas.
Deste jeito, ele fica chacoalhando as nádegas de lá para cá e nunca vai melhorar!

Desnecessário dizer que, enquanto eram proferidas essas palavras, o professor titular que
presidia a mesa apenas balançava a cabeça lentamente, de lá pra cá e de cá pra lá, com uma
expressão de desânimo...

O paciente era mesmo motorista e o tratamento, apesar de inusitado, correto.

No mesmo encontro se discutiu a melhor conduta no tratamento do rubor facial.

Existem várias situações em que podemos ficar com o rosto avermelhado, como quando
estamos envergonhados, enraivecidos ou em um ambiente muito quente. Algumas pessoas
ficam muito mais coradas do que o habitual, mesmo não estando expostas a essas situações,
o que pode atrapalhar suas atividades sociais e profissionais. Você não tem nenhum amigo
apelidado de tomate ou cereja?
Pois bem, imagine esse seu amigo apresentando um telejornal ou, como presidente de uma
empresa, dando uma entrevista.

Após a descrição do caso clínico, vários profissionais foram dando a sua opinião sobre o uso
de fármacos e até mesmo de cirurgias para o controle do rubor facial. Chegou a vez do nosso
herói.

Ele perguntou em qual situação o paciente ficava ruborizado. O expositor explicou que o rubor
acentuava-se quando o paciente estava constrangido. Para ilustrar qual seria a sua abordagem
terapêutica, relatou um caso que teria atendido no seu consultório.

O paciente também se ruborizava pelo mesmo motivo. Dada a baixa eficácia das medicações e
a agressividade da cirurgia, chegou à conclusão de que a melhor abordagem seria tratar o
constrangimento e não sua consequência. Para tanto, propôs a terapia de exposição, que
pode ser utilizada em várias circunstâncias, como no medo de avião. O paciente vai sendo
gradativamente exposto à situação desencadeante, enquanto aprende lentamente a controlar
o seu medo. Existem até cenários que imitam o ambiente do avião, com ruídos, personagens e
trepidação.

Para aplicar a terapia, agendou algumas consultas. Nelas, fuzilava o paciente com as piadas
mais sujas que conhecia. Após algumas seções, o paciente teria perdido totalmente o pudor e,
com isso, o seu rubor. Nesse momento o professor titular continuava o seu movimento da
cabeça, agora ruborizada...

Nesses casos não havia nenhuma doença mais séria. Mas o que ocorre quando há uma
doença grave? Eu tinha as minhas dúvidas.

Devo conversar sobre o caso com a família demonstrando maior gravidade do que realmente
acredito? Ou devo minimizar a gravidade?

Alguns médicos sabem jogar com isso de forma muito produtiva, diminuindo a ansiedade e o
sofrimento tanto da família quanto do paciente. Como não acredito que tenha tal habilidade,
tento sempre explicar o que está ocorrendo em linguagem acessível e otimista, mas sem tirar
os pés do chão.
Nenhuma das abordagens é errada, desde que não sejamos desonestos. A abordagem
suavizante pode diminuir a angústia da família e dar um pouco mais de esperança, devendo
ser utilizada eventualmente. Já a abordagem que maximiza o problema pode diminuir as
expectativas, apaziguando o sofrimento e a surpresa no caso de uma evolução desfavorável.

Esta última é jocosamente conhecida como "colocar o gato no telhado"; pode também dar
margem à safadeza.

A origem desta expressão vem da anedota a seguir.

Assim que Joaquim chegou em casa, contou ao Manoel: - Sabe o gato que você pediu para eu
cuidar? - Sim. - Ele morreu! O amigo, então desesperado, lamentou: - Como você me dá uma
notícia desta forma? Da próxima vez, me conte de forma mais branda. Fale que o gato subiu
no telhado. Depois, que escorregou. Que o levou ao veterinário. Só aí, quem sabe, que não
resistiu e morreu. Poucos dias se passaram e o amigo recebeu uma nova ligação do Joaquim: -
Manoel, sua mãe subiu no telhado!

Ao colocar o gato no telhado, o médico pode posar de herói e vítima ao mesmo tempo, o que
pode ser muito confortável e, às vezes, desonesto.

Imagine um paciente que foi operado por causa de uma apendicite leve. Apesar de não ser
grave, o cirurgião dramatiza. Conta para a família sobre a infecção gravíssima que estava
escondida no abdome, com pus e fezes espalhadas. Orienta que o quadro é delicado e há
possibilidade de morte. Aproveita para descrever sua incrível e ímpar perícia ao operá-lo. Pede
à família para agradecer aos céus por ter colocado o caso em suas mãos e não nas de qualquer
outro médico.

Como, na verdade, o caso não era complexo, a probabilidade de sucesso será muito grande e o
médico sairá como o herói da história. Apesar de pesados, os seus honorários serão
justíssimos: afinal, uma vida foi salva!

Por outro lado, se algo sair errado, não será nada mais que o esperado: o médico já havia
alertado sobre a gravidade da doença. Era uma apendicite terrível!

Em outras palavras, se tudo der certo, é mérito do médico. Se der errado, culpa do destino...
Na medicina há casos típicos e atípicos. Na maioria das vezes o quadro clínico será
intermediário. Estima-se que as doenças manifestem-se de forma totalmente "típica" em
apenas 30% das vezes. Aprendi que quase não existem o branco nem o preto. Bem mais
comuns são o cinza-claro e o cinza-escuro.

Quando o caso é cinza, apesar dos exames complementares, e a incerteza permanece,


realizamos a conduta que acreditamos ser mais segura para o paciente. Isso pode significar
uma cirurgia, mesmo na dúvida: "In dublo pro reo."

Por isso, uma das cirurgias de barriga que indicamos com frequência é a laparotomia
exploradora. Em palavras mais simples: abrir, entender e resolver o que está lá dentro. Nessa
situação, nós não sabemos o que encontraremos nem o que faremos. Isso não é muito fácil de
ser assimilado pelo leigo.

Independentemente de minimizada ou maximizada, será fundamental uma explanação médica


adequada para que o doente compreenda e ajude a solucionar seu problema. Porém,
dependendo da postura do médico, seu paciente ficará totalmente tranquilo ou
completamente apreensivo com as suas justificativas. Um exemplo desse tipo de habilidade,
ou inabilidade, ocorreu com uma paciente de oitenta anos, que foi flagrada ao tentar fugir do
hospital. Tudo isso devido ao breve diálogo entre ela e o residente de primeiro ano que iria
operá-la:

- Me desculpe fazer estas perguntas, doutor, mas é que eu nunca fui operada. Com você será
a minha primeira vez.

-Toque aqui! - estendendo a mão, alegremente, para cumprimentar a paciente. - Também será
a minha primeira vez...

Outro aspecto marcante da postura médica que precisávamos incorporar era a


responsabilidade.

Ser responsável não quer dizer apenas chegar no horário e cumprir suas tarefas. É se
comprometer com os problemas dos pacientes. Trabalhar, cuidar, ajudar. Se houver dúvida,
estudar, discutir o caso com outros colegas, ouvir diferentes opiniões, correr atrás de
respostas. Quando nada funcionar, começar tudo de novo.

Há uma tendência em segmentar o doente. Em um grande hospital universitário é muito fácil


nos diluirmos naquele bando de profissionais que serve o doente. Um pode deixar alguma
dúvida para o outro, que deixa para um terceiro e não se resolve nada. Já diz o ditado:
"cachorro que tem dois donos morre de fome".

Por isso, aprendi que cada paciente deve ter seu "dono". Na verdade, foi mais uma
doutrinação do que um ensino. Devemos nos responsabilizar pelo doente e defendê-lo com
unhas e dentes. Não podemos abandoná-lo.

Operei, certa vez, um paciente que precisaria de reserva de sangue para a sua cirurgia. Seu
sangue era tipo O negativo e, para variar, estava em falta. Necessitaríamos apenas de mais
uma bolsa e eu não queria suspender a cirurgia. Doei meu sangue (O-), comi o sanduíche de
presunto com suco de laranja e fui operá-lo. Concordo que houve certo exagero de minha
parte, mas é tudo culpa dos meus professores. Esta era a sua ideia de responsabilidade e
compromisso.

Ouvindo e absorvendo intensamente as várias situações, comecei a adquirir uma postura que
teria como objetivo final o bom relacionamento médico-paciente.

Apesar de, nem sempre, as pessoas valorizarem, o relacionamento médico-paciente é a parte


mais importante de qualquer tratamento. Se não confiarmos em nosso médico, as
possibilidades de um determinado tratamento ser efetivo serão mínimas.

O bom relacionamento é aquele em que há, literalmente, uma boa relação! Não consigo
entender como ainda existem pacientes que se deixam operar por médicos de quem nem
sabem o nome! Por outro lado, entendo, mas também me frustro com a existência de colegas
que se prostituem para fazer tudo o que seus pacientes mandam.

Num bom relacionamento, o médico orienta as opções e, com o paciente, traça o seu caminho
avaliando os riscos e os benefícios. Existe uma confiança do paciente no médico e do médico
no paciente. O jogo deve ser aberto, não burocrático. Há respeito dos dois lados e um
consentimento falado. O paciente sabe que o médico é humano e tem as suas limitações.
Este, por outro lado, deve se empenhar no tratamento, buscando estar atualizado e dando
sempre o melhor de si.

Mas quanto mais intenso for o relacionamento maiores tenderão a ser os laços emocionais.
Para que isso não nos atrapalhe, treinamos outras habilidades.

A empatia e o escudo protetor

"Ser empático não é ser simpático. A simpatia pressupõe solidariedade, a empatia pressupõe
compreensão. A simpatia cria um envolvimento emocional, que pode prejudicar o julgamento.
A empatia estabelece comunicação eficiente."

EUGENIO C. MussAx

Muitas vezes as pessoas se surpreendem com a falta de sensibilidade dos médicos, quando
estes assistem a pessoas com dor ou morrendo. Excluindo os raros profissionais realmente
insensíveis, esta é uma verdade parcial. Se existe uma coisa que me incomoda muitíssimo, por
exemplo, é presenciar um indivíduo com dor sendo tratado por alguém que anda arrastando
os chinelos. Mas nós somos seres extremamente adaptáveis. Depois de ver alguém cortado ao
meio por um trem, dificilmente ficaremos chocados com um pequeno corte na cabeça, mesmo
que seja na cabeça do próprio filho. Assim como no contato com cadáveres, a repetição levará
ao hábito. E o habitual deixa de chocar ou, pelo menos, minimiza o choque emocional. Uma
manchete de jornal noticiando "Bala perdida mata criança" deve ter maior impacto na
Finlândia do que em Uganda! Caso nós nunca nos acostumássemos, depois de presenciarmos
a décima morte, provavelmente também nós nos mataríamos.

Além da influência exercida pela força do hábito, também somos treinados para ter empatia.
Em outras palavras, tentamos compreender o que a pessoa está passando para podermos
ajudá-la da melhor forma possível. Mas, apesar de nos importarmos com os pacientes, não
devemos nos envolver no seu sofrimento como se fôssemos seus familiares. Deve existir uma
distância, pois sem ela o nosso raciocínio poderia ficar comprometido e desapareceria parte
de nossos poderes. Assim, vamos criando uma espécie de escudo protetor emocional, o que
não é fácil, embora seja fundamental.

A empatia e o escudo se desenvolvem com o treino e é evidente que no início, por ainda
sermos crus, as surpresas e os insucessos tendem a causar mais sofrimento. Nessa fase, há
maior tendência em se envolver emocional, em vez de profissionalmente. Quanto maior a
ligação emocional, maior será a nossa angústia e, consequentemente, maior será a dificuldade
em raciocinar.

Lembro-me de um cirurgião muito competente que resolveu operar o próprio pai. A cirurgia
foi muito tranquila, mas no pós-operatório a evolução mostrou-se insatisfatória.

Em vez de melhorar, ele começou a vomitar, a mencionar dor e a apresentar distensão


abdominal. O caldo entornou quando um líquido estranho começou a vazar pelas suas
incisões. O médico sentiu-se totalmente inseguro e perdido. Não conseguia discernir se suas
decisões estavam sendo embasadas em dados racionais ou emocionais.

Nessa altura, desesperado, o filho chamou outro cirurgião para avaliar seu pai.

Para seu amigo, era evidente que estava se desenvolvendo uma infecção grave e que havia a
necessidade de uma nova operação. Acharam uma perfuração no intestino em decorrência da
primeira cirurgia.

Afligiu-o um sentimento de culpa e indignação por um fato que, embora raríssimo, pode
ocorrer. A perfuração foi corrigida e a sua vida, salva. O mais curioso é que esse médico, com
certeza, tomaria as decisões corretas caso seu escudo protetor fosse à prova de emoções
envolvendo os seus familiares. Até a simples interpretação do líquido que vazava foi difícil:
"Será que é apenas um líquido mais espesso e estou achando que é intestinal por ser no meu
pai?".

Não pense que com o tempo acabamos ficando imunes ao sofrimento dos nossos pacientes.
Sofremos. E muito. Ainda bem que, ao contrário do caso anterior, a maioria dos tratamentos
dá certo. É sempre muito gostoso dizer que a cirurgia foi um sucesso ou que a resposta ao
tratamento vem sendo excelente. Mas, infelizmente, existem muitas exceções. Más notícias e
insucessos também precisam ser relatados para os que não gostariam de ouvi-los. Aí, o
escudo aparece novamente, para nos salvar.

Nunca me esquecerei de um casal que estava no saguão do pronto-socorro numa sexta-feira à


noite. Ela, de vestido longo azul e com o cabelo todo armado. Ele, de smoking. Ambos
aparentavam uns cinquenta anos.
No meio daquela bagunça com pacientes sangrando, baleados e enfaixados, estavam
destoantes. Em harmonia com o ambiente, apenas as suas feições. Ambos com medo,
desespero e angústia.

Não era por menos. Seu filho dependurou-se em um cabo de alta-tensão que, em decorrência,
rompeu-se. Ele caiu de uma altura razoável e, depois, pegou fogo. O espetáculo pirotécnico
grotesco teria ocorrido em plena festa de formatura!

O seu smoking estava derretido e aderido ao corpo. Ele ainda tentou brincar com um dos
médicos, sobre como seria inesquecível a sua colação de grau...

Apesar de estar consciente e com os sinais vitais estáveis, sabíamos de antemão que morreria.
Era apenas uma questão de tempo, tendo em vista o prognóstico das suas lesões.

Horrível. Mas sem o escudo, como ficaríamos? Como olharíamos para a cara dos seus pais?

Você conhece algum bom jeito para ser despedido? Excluídas as performances grotescas, não
existem ótimas formas de se contar péssimas notícias.

Na primeira vez em que anunciei uma morte, os parentes demoraram cinco minutos para
entender o que eu dizia. Tudo isso porque eu fiquei enrolando, devido ao meu medo de usar a
palavra "morreu".

Dificuldade similar pode existir na revelação diagnóstica de alguma doença grave. A família,
em geral, não quer revelar o diagnóstico ao paciente com o argumento de que este não o
suportaria. Por outro lado, a emparia nos permite avaliar quando dizer e como contar ao
paciente. Às vezes, não posso negar, as nossas suposições estão redondamente enganadas...

O prédio do hospital possuía vários andares. Cada andar tinha quatro corredores dispostos
como os lados de um quadrilátero. Externamente a estes ficavam os ambulatórios das diversas
especialidades. As partes internas dos lados delimitavam um grande vão aberto, que se
estendia do teto ao térreo.
Certa vez, após ouvir as más notícias de seu médico e descobrir sua doença incurável, o
paciente se jogou pelo vão. Ele caiu de vários andares e se esborrachou no chão. A narrativa
do anestesista que passava pelo térreo, neste momento, é inacreditável.

Para começar, o paciente quase o atingiu. Tudo o que percebeu foi um ventinho próximo à
sua orelha, imediatamente seguido por um "turn" seco ao seu lado. Antes que ele pudesse
compreender o ocorrido, começou uma chuva estranha pelo mesmo vão; eram gazes,
ataduras, tubos e cateteres que despencavam de diversos ambulatórios.

Os servidores que presenciaram a tentativa de suicídio jogavam pelos andares tudo o que
podiam para tentar servir o médico. O anestesista coletou as provisões e começou a atender o
paciente do jeito em que ele estava, estirado no chão. Parecia uma instrumentação cirúrgica
a distância. Ele gritava "laringoscópio" e alguém jogava um, do setor de endoscopia. "Tubo de
intubação" e voava uma cânula do terceiro andar... Com isso, ele pôde inserir um tubo na
traqueia do doente e fazer curativos compressivos. Mas, mais tarde, as lesões se mostrariam
incompatíveis com a vida.

Embora essas catástrofes possam ocorrer, na maioria das vezes o paciente quer, e deve, saber
do diagnóstico. Só assim ele entenderá e permitirá os tratamentos; e poderá eventualmente
até reprogramar a sua vida. Você não mudaria nada em seu dia a dia, caso soubesse que
morreria em três meses?

Percebemos que quando o paciente não quer saber o diagnóstico ele não pergunta. Então,
não dizemos.

Apesar de ser útil a tentativa de nos colocarmos no lugar do paciente, só ele sabe o que se
passa em sua cabeça. Eventualmente, ao ocultarmos informações, podemos estar privando os
pacientes de coisas que jamais imaginaríamos. É justo?

Acompanhei um paciente portador de uma grave doença degenerativa que gradualmente ia


minando as suas forças. Não havia tratamento específico e a musculatura ficara tão fraca que,
além de não conseguir se movimentar, respirava com o auxílio de um aparelho portátil. Ele
estava internado e nunca mais receberia alta.
Não havia a possibilidade de home care nem se dispunha da variedade de aparelhos que
existem hoje. Por isso, o paciente utilizava um respirador que, para nós, era um velho
conhecido. Tratava-se de um aparelho de respiração compacto e que dispensava energia
elétrica. Para funcionar, bastava conectá-lo a uma fonte de oxigênio sob pressão. Um
engenhoso sistema de ímãs fazia o restante do trabalho. Apesar de ser muito prático, volta e
meia alguma de suas mangueiras se soltava e ele parava. Por serem extremamente úteis, os
hospitais mantinham os aparelhos funcionando durante décadas sem aposentá-los. Embora o
pessoal da manutenção se esforçasse, era relativamente comum nos depararmos com
alguma pane da máquina.

É muito angustiante perceber que o paciente parou de respirar e que vai ficando cada vez
mais roxo. Enquanto isso, o coitado do médico, desesperado, fica procurando a causa do
problema.

Mas aquele homem estava tão habituado à sua maquininha que, quando algo parava de
funcionar, ele mesmo detectava o problema e nos orientava sobre como proceder.

Sua doença estava em fase terminal e, frequentemente, ele adquiria infecções respiratórias
que deterioravam ainda mais a sua delicada condição. Quando notou uma nova piora,
perguntou-me sobre o seu prognóstico. Eu não sabia o que dizer e desconversei.

Fui pedir orientação ao médico assistente, que me disse para ser franco e lhe contar a
verdade. Quando ele me procurou pela segunda vez naquele dia, revelei nossas
preocupações. Não lhe restaria muito tempo de vida.

Como poderíamos prever o que ele faria a seguir?

Ninguém havia cogitado aquela hipótese, mas ele, no mesmo dia, resolveu se casar!

Sua parceira de muitos anos ficou emocionada com a ideia. Imediatamente, no outro dia após
a tomada de decisão, a cerimômia foi celebrada pelo capelão do hospital.

Casou-se na enfermaria. De um lado, o seu aparelho. Do outro, o seu amor. Sob a bênção do
padre e rodeado de seus companheiros, pôde realizar o seu último sonho.
Exatamente vinte e quatro horas depois, ele faleceu.

O jogo de cintura

"Tudo seria fácil se não fossem as dificuldades." APPARÍCIO F. DE B. TORELLY (O BARÃO DE


ITARARÉ

Além de tolerância, boa postura, escudo protetor e empatia, é muito importante que
desenvolvamos outra característica...

Apesar das desculpinhas esfarrapadas, como na da minha primeira coleta de sangue,


"tivemos" de mostrar um pouco de jogo de cintura.

Precisamos lidar com pessoas que, muitas vezes, não estão no seu melhor dia e em situações
para as quais não existe um manual de condutas preestabelecidas. Nessas horas, a ginga pode
ser salvadora. Assim como qualquer outro colega de profissão, passei por várias "saias justas"
durante a fase de minha formação; acredito que os próximos exemplos serão bem didáticos
para exemplificá-las.

O "causo" ocorreu no interior do Amazonas. Entraram no ambulatório o pai enraivecido -


gritando pelo médico - e a mãe tentando acalmá-lo, ao lado de uma moça barriguda. De um
lado, o senhor dizia que ia matar a filha caso "a vagabunda estivesse prenha", ao mesmo
tempo que lhe aplicava alguns cascudos na cabeça. Do outro, trajando um vestido longo como
seus cabelos, a mãe repetia que a filha era virgem. Sua religião não permitia o ato carnal'antes
do casamento. A menina estava tão nervosa que não parava de soluçar nem conseguia
verbalizar direito.

Imediatamente, o médico pegou a primeira radiografia que viu por perto e começou a analisá-
la, aparentemente alheio à situação. Poucos instantes depois, denunciado pela enfermeira, o
médico, que ainda olhava para uma radiografia sem saber como agir, concluiu que essa
desculpa não se prolongaria por muito tempo. Identificou-se e pediu à menina que entrasse
em seu consultório. Solicitou ao pai que parasse de agredi-la e esperasse do lado de fora, pois
teria que examiná-la. Pelo menos ganharia uns minutos...
Ele não conseguiria mais trabalhar se não resolvesse rápido o caso dessa família, pois estavam
conturbando todo o atendimento.

Ao examiná-la, podia auscultar os batimentos cardíacos do nenê, palpar sua cabeça e


membros. O diagnóstico de gravidez no terceiro trimestre era evidente. Começou a pensar
como acalmaria o pai, pois a filha realmente estava prenha e, provavelmente, ele não
aceitaria nenhuma explicação envolvendo boto do igarapé ou anjo Gabriel. Como prevenir,
então, o duplo homicídio?

O médico, ansioso, ficou matutando sobre o que deveria fazer. Pelas atitudes que vinha
demonstrando, o pai provavelmente mataria a filha. Tendo visto a postura dele, achou que
valeria a pena tentar uma abordagem alternativa.

Com um semblante de preocupação, chamou os parentes e lhes disse: - Estou muito


preocupado. Ou ela está grávida - pausa de alguns segundos enquanto o pai fazia cara de "eu
sabia!" - ou está com um câncer em estágio muito avançado - nova pausa enquanto a
expressão facial paterna mudava para "meu Deus, como fui injusto e intolerante". -
Precisamos fazer um ultrassom de urgência!

- Mas, doutor, e se for câncer? - Muito grave. Disseminado. Mas gostaria de conversar sobre
isso somente após ter certeza.

Levantou-se e saiu caminhando em direção ao radiologista. Não é preciso dizer que o pai ficou
pálido e a mãe, pasma. Agora, era ele quem tentava acalmá-la.

Foi realizado o exame. Por se tratar do primeiro ultrassom desta gestação (e que deveria ser o
terceiro), o exame demorou um pouco mais que o normal. Os pais observaram o radiologista
sair da sala com uma cara séria e levar o laudo ao outro médico. A tensão não parava de
aumentar, até quando o médico e a enfermeira, sorridentes, cumprimentaram os pais no meio
do corredor:

- Não é câncer. É um machão e está perfeitamente saudável! Foi quando os pais, em prantos,
abraçaram a filha: - Graças a Deus, minha filhinha, graças a Deus...
O médico estava passeando pelo pátio do bucólico hospital psiquiátrico, quando avistou um de
seus pacientes em cima da torre da caixa-d'água. Visivelmente agitado, ele gritava que iria
"avoar". Estava em surto psicótico. O psiquiatra não tinha a menor ideia de como ele subira
lá. Independentemente de como ocorrera, criou-se uma situação muito delicada. O paciente
acreditava poder voar e não deixava ninguém se aproximar da escada. Não era possível
medicá-lo sem uma zarabatana, nem trazer algo para amortecer sua queda caso ele
realmente não saísse planando. Vários enfermeiros e auxiliares aglomeraram-se no local da
cena, perguntando-se o que fazer. Preocupado, o médico tentou estabelecer contato com o
doente:

- Manoel, é o doutor Carlos. Desça daí. Você pode se machucar! - Doutor, eu posso "avoar".
Vou descer "avoando". - Ah! Voar dai é fácil, qualquer um faz. Eu quero ver é você voar daqui
de baixo até aí em cima!

- Você duvida? Vou mostrar! Confrontado, o.paciente desceu pela escada e, ao lado do
médico, pôs-se a bater vigorosamente os braços. Enquanto tentava, arduamente, burlar as
leis da física, os enfermeiros o restringiram...

Não são só as tiradas geniais que salvam alguns profissionais ou pacientes. O médico às vezes
também precisa ser ator. Ouvi uma história que confirma essa tese.

Uma senhora que não andava muito bem do ponto de vista emocional acabou fraquejando e
pensou em trair o marido. Mas, antes que fosse tarde, ela se arrependeu e decidiu voltar para
casa. Enquanto retornava, sua consciência começou a pesar tanto que se tornou um fardo
insuportável. Ela era muito religiosa e não teve dúvidas; embora 'fosse tarde da noite, dirigiu-
se à igreja que frequentava. Não sossegaria enquanto não confessasse sua tentação.

Quando chegou à paróquia, pôde verificar que esta, obviamente, estava fechada. Tentou abrir
as portas, mas, mesmo com toda a sua gritaria, não obteve êxito. E, após a tentativa
infrutífera, seu desespero aumentou. Quase em pânico, resolveu pular as grades que
circundavam a igreja.

Ao tentar transpô-las, acabou tendo o punho transfixado por uma das lanças e, ali, ficou
dependurada. Já em surto, delirando, gritava o mais alto que podia:
- Começaram! As chagas de Cristo! Com todo aquele escarcéu, alguém resolveu chamar o
resgate, que, prontamente, a socorreu. Segundo os bombeiros, apesar do "estigma" no braço
esguichando sangue, ela recusava qualquer atendimento que não fosse de um padre. Vendo
que sua hemorragia era muito grave, arrastaram-na para o hospital mesmo contra a sua
vontade.

Chegando ao PS, não deixava ninguém atendê-la, pois queria se confessar. Estava nitidamente
fora de si, o que fez com que os médicos tramassem sua sedação à força para estancar logo o
sangramento. Porém, antes de agarrá-la, um colega com um nome bem conveniente para a
situação - Bento - teve um plano. Uma das formas de abordar um delirio é passar a fazer parte
dele.

Expôs o crucifixo do seu colar por cima da camisa e caminhando, calmamente, em direção à
paciente, identificou-se:

- Boa-noite, irmã. Tenho formação religiosa e estou cursando Medicina. Me chame de padre
Bento. Posso ajudá-la?

Para ela, aquilo foi uma bênção, em todos os sentidos. Dessa forma, ele pôde acalmá-la, ao
mesmo tempo que lhe salvava o corpo - comprimindo o punho ferido - e a alma - ouvindo-lhe
os pecados.

Evitando entrar em detalhes, ele a perdoou e orientou para que rezasse dez "pais-nossos" e
cinco "ave-marias".

Peço desculpas ao leitor, mas, assim como ele, também desconheço a equação que define o
número de rezas de acordo com a gravidade do pecado.

Com a paciente bem mais calma, puderam ocluir a artéria e corrigir suas lesões de nervos e
tendões. Graças ao tratamento multidisciplinar (ortopédico, fisioterápico, psiquiátrico e
religioso), a paciente recuperou-se muito bem.

Pouco tempo depois, ela voltou ao ambulatório para acompanhamento. Muito satisfeita,
redigiu uma carta de agradecimento encaminhada a todos, mas, principalmente, ao padre
Bento...
3 - A RESIDÊNCIA BÁSICA (1º E 2º ANOS)

A inspiração e a seleção

O generalista é o médico que sabe um pouco de tudo e o especialista, o que domina tudo
sobre quase nada.

- Dário, como funcionam aquelas próteses comandadas pela mente? - Não tenho a menor
ideia. Nunca ouvi falar. - Como não sabe, se está quase terminando a faculdade? - Maldito
Discovery Channel! - murmurei.

Ao final do sexto ano, o conhecimento teórico do graduando é o mais amplo possível em


termos de generalidades médicas. Sabemos o básico da psiquiatria à cardiologia e da
neurologia à proctologia. Mas não é fácil chegar ao fim do curso e perceber que aquela ideia
de que dominaríamos a medicina por volta do quinto ano não se confirmaria nem no epílogo
do sexto (... quem sabe um dia).

Mesmo assim, a impressão dos leigos, incluindo os alunos menos graduados, é de que o sexto-
anista tem que saber absolutamente tudo de tudo. O que é impossível. O nosso conhecimento
é a cada dia mais amplo e mais complexo.

O interessante é que imediatamente depois de me formar nenhum familiar ou amigo me


procurava mais para questionar suas dúvidas médicas. Sabe por quê? Porque, ao contrário do
sexto-anista, dizem que médico recém-formado não sabe nada... É uma injustiça! Sabendo
bastante ou sabendo pouco, o fato é que no sexto ano estudávamo muito, pois sabíamos que
logo chegaria a hora de abandonar o gerún dio doutorando e virar doutor. Que frio na barriga!

Por mais esburacado que seja um caminho, costuma ser mais confortável manter-se nele que
optar por desvios e bifurcações. Depois de seis anos caminhando na inércia da faculdade,
surgiu uma encruzilhada: ou eu entrava numa boa residência, ou teria que cair na vida até as
provas do ano seguinte. As duas perspectivas pareciam-me assustadoras.
O destino seria definido pelo segundo vestibular que enfrentaríamos. Se no primeiro tínhamos
que estudar química e matemática, agora teríamos que saber clínica, cirurgia, obstetrícia,
ginecologia... A área de estudos era muito maior. O pior é que nas faculdades mais puxadas o
tempo disponível para se estudar era exíguo. Sabia que o internato de algumas escolas
terminava cinco meses antes do da nossa. Seus alunos teriam muito mais tempo livre para
estudar.

Como se não bastasse, inventaram os cursinhos para residência médica. Caso você não tivesse
a sorte de ter estudado numa boa faculdade, poderia sanar suas deficiências tendo aulas
específicas para concursos de residência com professores extremamente didáticos. Passaria
na "decoreba".

Não vejo esses cursinhos com maus olhos. Talvez até preparem um pouco melhor os futuros
médicos. Mas, como frutos dos seus próprios objetivos, reduzem as vantagens que os alunos
de boas faculdades naturalmente teriam numa prova teórica. Nivelando essa balança, deixam-
nos apreensivos. Da minha parte, o que poderia fazer é estucar.

Quanto ao concurso de residência, talvez, por levar em consideração essas desvantagens, foi
determinada a realização de uma prova prática. Alguém pode decorar as causas de perfuração
intestinal, mas se nunca tiver visto os sinais radiográficos dessa complicação, de nada valerão
os seus conhecimentos teóricos. Então, por que não questionar sobre radiografias ou
fotografias de lesões, para valorizar o conhecimento prático?

Estava um pouco mais tranquilo com o surgimento desse novo tipo de avaliação, mas ainda
teria que decidir sobre qual especialidade seguir.

Há uma piada que indica uma das formas de diferenciar o clínico do cirurgião:

- Basta vê-los tentando impedir o fechamento, já avançado, das portas de um elevador.

O clínico sairá correndo e tentará pará-las esticando as suas mãos. Mas o cirurgião, por outro
lado, jamais se arriscaria a machucar os seus preciosos dedos. Ele projeta-se para frente,
mergulhando e parando as portas com a cabeça...
Eu decidi parar elevadores com a cabeça. Na verdade, vinha ensaiando essa opção desde o
quarto ano, época em que me apaixonei pelas emergências cirúrgicas. Talvez consiga até
determinar a hora em que alguém plantou a semente no meu cérebro...

Urgência denota uma condição grave que exige tratamento em horas, enquanto a
emergência, em minutos.

Uma jovem colidiu seu veículo com uma árvore. Estava sem o cinto de segurança e bateu o
pescoço no volante. Foi trazida às pressas pelo resgate, pois estava roxa e com muita falta de
ar. Sua respiração era ofegante e fazia um ruído incrível, como se 90% da sua traqueia
estivesse obstruída. E estava. Foi quando presenciei o que considero um dos mais
angustiantes desafios para o cirurgião.

Após administrar oxigênio por máscara facial, o médico tentou inserir um tubo na traqueia
através da boca. Mas não conseguiu visualizar nada, pois havia muito sangue no local. Aspirou
o quanto pôde daquele sangue, mas de nada adiantou. O coração estava quase parando.
Palpou o pescoço dela para tentar fazer uma cricotireoidostomia, mas a anatomia estava tão
destruída pelo trauma que não sabia onde cortar. A única saída seria uma traqueostomia de
emergência.

A cricotireoidostomia é um procedimento cirúrgico que, desde que alguns pontos da anatomia


do pescoço possam ser palpados, permite um acesso às vias aéreas com muita rapidez. Foi o
que realizaram, ainda na pista, de emergência, num grande herói da Fórmula-1. A
traqueostomia é bem mais trabalhosa, mas, a médio e longo prazo, traz complicações menos
sérias que as da cricotireoidostomia.

Ela estava em torpor, mas ainda consciente, agitada pela falta de oxigênio e, com isso,
dificultando terrivelmente a atuação do cirurgião. Ele contou com a ajuda de outros dois
médicos para segurar os braços dela. A cena era medieval. A pressa era tanta que o médico
pareceu degolá-la. Na hora em que ele abriu a traqueia, todo o fluxo de ar começou a passar
por ali. Formou-se um aerossol, borrifando o sangue que escorria dos vasos seccionados.
Todos na sala pareciam ter contraído uma forma aguda de sarampo coletivo, mas a jovem
conseguiu respirar melhor e foi salva.

Esse estresse durou pouquíssimos minutos, embora tivessem parecido uma eternidade. Todos
os que participaram desse atendimento enfrentaram um check-up cardíaco grupal. Adrenalina
pura misturada com ciência, habilidade e uma pitadinha de sangue.
Se algumas vezes a cirurgia de emergência é frustrante, em outras é extremamente
gratificante. Seus resultados são quase imediatos. Apesar de protocolos, estudos e discussões,
as surpresas ocorrem a todo momento. Há uma variável tão grande de lesões, manifestações
clínicas e combinações destas que o cérebro do cirurgião passa a ser constantemente
exercitado e a uma velocidade estonteante. Isso me empolgou e prestei exames para cirurgia.

A prova teórica foi superada. A prática também se mostrou exequível, reforçando o meu
escore. Lembro-me da única questão que errei com certeza. Pediram para que eu identificasse
o nome de um instrumento cirúrgico. Fácil! Era uma tesoura de dissecação, mas na hora de
escrever o seu nome: Metzenbaum...

Superada a etapa da prova de residência de cirurgia geral do hospital, começou um novo


desafio.

Serei um boneco-cabeção de Olinda?

"O cirurgião tem uma arma na mão. Não pode ser afoito." SÉRGIO ALMEIDA DE OLIVEIRA

No início da faculdade não tinha a menor ideia sobre qual área me especializaria. Após
experimentar o pout-pourri de ensinamentos, não tinha dúvidas da minha opção.
Diferentemente daquela vacilante escolha do vestibular, agora estava convicto em prestar
cirurgia. Dentro de todo contexto, não conseguia me ver como um especialista de
hemorroidas, ou de varizes, ou de vesícula. Na contramão do desejo da maioria dos
formandos em Medicina, gostaria de exercê-la como generalista.

Certamente, o cirurgião geral de hoje não é mais como era no passado. O pai de um grande
amigo me contou que, antigamente, não era raro o médico anestesiar seu paciente e, depois,
operá-lo. O cirurgião geral fazia quase tudo. É claro que os casos mais complexos ficavam
para algum profissional que estivesse mais habituado a tratá-los, mas estes representavam
uma pequena minoria.

O cirurgião geral de hoje acaba atuando de forma mais ativa nas cirurgias do trato digestivo e
nas urgências. Apesar de existir uma pressão crescente da sociedade e do Estado pela
formação de mais generalistas, os próprios médicos preferem que existam os especialistas, o
que facilita, em muito, a sua vida.

A maioria das cirurgias realizadas pelo cirurgião de cabeça e pescoço, por exemplo, é a retirada
de tireoide. Um bom cirurgião geral as fazia com o pé nas costas e, se hoje continuasse a fazê-
las, certamente o número de especialistas nesta área poderia ser bem menor. Restariam
alguns poucos para realizar as cirurgias mais complexas.

Mas a maioria dos médicos não deseja ser generalista e ter que conhecer e operar várias
outras doenças, o que seria bem mais difícil e, como se não bastasse, menos reconhecido.

Explica-se então a pressão para que todos os procedimentos, inclusive os mais simples, sejam
realizados por especialistas específicos, desta ou daquela área. Intervenções de diferentes
especialidades cirúrgicas, como as drenagens pleurais da cirurgia torácica, as varizes da
vascular, hemorroidas da proctologia, vesículas da gastrocirurgia e cistos de ovário da
ginecologia poderiam ser (e muitas vezes são) realizadas pelo cirurgião geral.

Não devemos radicalizar para um lado ou para o outro. Os especialistas em órgãos ou sistemas
são absolutamente necessários, mas deveriam ser mais raros que os generalistas (não
podemos nos esquecer de que o verdadeiro cirurgião geral é um especialista como qualquer
outro, mas o é em cirurgia geral).

O campo da geral contraiu-se com a criação de outras disciplinas, mas ainda é, entre as
especialidades cirúrgicas, o mais amplo. Além disso, entre os cirurgiões, o generalista é o
profissional que possui a visão mais holistica do doente. Exatamente o que eu procurava.

Para percorrer minha nova trilha, cursaria dois anos um curso básico em que todos os
cirurgiões precisam passar antes de se especializarem. Nesses anos, rodaríamos por várias
áreas cirúrgicas aprendendo os seus procedimentos mais simples. Depois, caso fosse feliz num
terceiro e quarto vestibulares, poderia cursar mais três anos, finalmente me especializando
em cirurgia geral.

No passado, o residente era assim denominado porque morava dentro do hospital. Cada
clínica tinha um quartinho, onde, literalmente, habitava o médico que se especializava
naquela área. Graças a alguns colegas com complexo de Princesa Isabel de Bragança, foram
mudando essa regra, até transformar a residência no que é atualmente. Ainda existem os
quartinhos e os senhores de engenho. Entretanto, o dia a dia aproximou-se da realidade
extra-hospitalar.

Lembro-me de quando alguns residentes entraram em greve por melhores condições de


trabalho. Entre as reivindicações estava a limitação das horas de jornada. Achei isso meio
ridículo e explicarei por quê.

O residente é um médico em especialização buscando aprender o máximo possível na área


escolhida. Destarte, alguns hospitais descobriram outra vantagem em lidar com residentes,
que é a mão de obra barata. Surgiu, então, um ofício quase escravo, com baixa remuneração
e péssimo aprendizado. Para esses residentes, uma redução das horas seria justificável, mas
para os das boas instituições, acredito que não.

Quando a residência é de qualidade, o aluno se esforça para ficar o maior tempo possível
aprendendo e mantendo contato com os pacientes dos seus estágios.

Eu nunca saí de uma cirurgia mais cedo porque "tinha terminado o horário comercial"! Antes
de ir embora, dava uma passada na enfermaria, para ver se estava tudo bem. Ficaria
desapontado se aparecesse algum bedel para me expulsar, argumentando que não poderiam
pagar hora extra.

Quanto mais tempo maior conhecimento; é um aprendizado de imersão. Nessa época somos
ávidos por informação e pela prática.

A primeira coisa que percebi ao entrar na residência foi o peso da responsabilidade, que
aumentou muito. Além disso, temos que aprender a nos virar sozinhos.

Quando o professor solicita um exame de cintilografia, ele não fornece o manual de como,
onde e com quem marcar o exame. Não ministra uma aula instantânea sobre a doença e seu
tratamento. Precisamos estudar e correr atrás das coisas. É um período em que nos tornamos
ainda mais autodidatas. Mas não fique aflito, ninguém sai fazendo experiências in anima
nobile (no ser humano). A supervisão e a hierarquia acentuam-se ainda mais. É nessa hora que
se inicia a nossa verdadeira curva de aprendizado.
Mais uma vez, sempre haverá um primeiro caso. Nele, o corte será maior, assim como o
tempo de cirurgia. Ninguém deixará o cirurgião júnior ultrapassar os seus limites ao enfrentar
algo que suas condições técnicas não permitam, mas, mais uma vez, esses limites serão
imprecisos.

A residência de cirurgia representava um desafio inédito. Vários problemas parecidos com os


do internato seriam enfrentados. Evidentemente, em boa parte deles a superação viria por
uma simples questão de empenho. O que mais me preocupava é que, talvez, mesmo com
muita dedicação, eu nunca viesse a ser hábil o suficiente. Aquele velho papo de precisão
cirúrgica me assombrava. Seria eu coordenado o suficiente ou teria a "precisão cirúrgica" das
bombas na primeira guerra do golfo? Sempre me achei um desastrado.

Certa vez, marquei um encontro com uma nutricionista. É claro que gostaria de impressioná-
la. Esse desejo costuma exacerbar algumas de nossas características positivas e negativas.
Além disso, devia estar num dia especial.

Assim que nos sentamos frente a frente, à mesa do barzinho, puxamos as nossas cadeiras
simultaneamente para dar aquela ajeitadinha. Ao nos inclinarmos, batemos nossas cabeças.

Logo após, gesticulando e contando algum "causo" com empolgação, esbarrei no seu copo de
cerveja e derrubei-o. Quase indo embora, fiz qualquer brincadeira sobre como voltar para
casa. Ao fingir estar pedindo uma carona, sem querer, enfiei o dedão no olho dela.

Foi um pastelão inesquecível. Não é preciso dizer que, além de não conquistá-la, nunca operei
sequer um único paciente que fosse por indicação sua.

Seria eu, no balé cirúrgico, o equivalente a um boneco cabeçudo do carnaval de Olinda, em


meio aos seus ágeis dançarinos de frevo?

Poderia eu, operando uma vesícula, esbarrar no bisturi elétrico e queimar o estômago? Ops!

Além de estabanado, era distraído. Esqueceria uma compressa a cada cirurgia realizada?
Se uma pessoa é desatenta, para diminuir a possibilidade de esquecê-las dentro da barriga do
doente, basta seguir a técnica de prendê-las com pinças e conferi-las ao final da cirurgia.

Quanto à habilidade, para a minha sorte (e dos meus pacientes), descobri que ela provém em
sua maior parte não do talento, mas sim do treino. Muuuito treino.

Apenas para exemplificar, existem vários tipos de nós cirúrgicos que precisamos dominar. No
início não era nada fácil, pois tínhamos que fazê-los de forma rápida, com a tensão adequada,
sem afrouxar, sem arrancar as estruturas envolvidas pelo fio e sob o olhar impaciente de
alguém mais experiente.

Antigamente, os cirurgiões em treinamento recebiam pequenas madeiras com pregos para


treinar os seus nós, apelidadas de barquinhos. Eu não tinha um barquinho, mas bastava achar
um fio e lá estava eu dando os nós. Só meus pais saberão dizer quantos milhares deles eu
treinei em cordinhas de varal, fios de costura, barbantes, laços e cadarços. Às vezes, essa
obsessão em aperfeiçoar a técnica dos nós cirúrgicos podia ser tão grande que, por causa
dela, um colega acabou se metendo em uma grande fria.

Ele era residente de cirurgia e estava voltando de férias no Nordeste brasileiro. Entediado no
avião, começou a treinar nós no cadarço que amarrava a sua bermuda. Fazia um nó após, e
sobre, o outro, sem desmanchar o nó anterior e terminava por entrelaçar os dois ramos do
cadarço em toda a sua extensão até ficarem muito curtos e não ser mais possível amarrá-los.
Nesse ponto os soltava um a um e, num ritual repetitivo, começava tudo de novo. Em dado
momento, enquanto desfazia uma longa sequência de nós, percebeu um reflexo intenso dos
acarajés que havia ingerido, traduzido por uma dor de barriga monumental. Pálido, os pelos do
seu braço eriçados, saiu correndo até o toalete do avião que, por sorte, estava livre. Ao sentar
no vaso, já em pânico, descobriu que a bermuda não saía, por maior esforço que fizesse.
Tentou desmanchar os nós o mais rápido que conseguia, mas não foi hábil o suficiente e
acabou evacuando dentro dela e nas paredes do toalete. Além de jogar suas roupas na lixeira,
viu-se na difícil tarefa de limpar as paredes do banheiro, durante turbulências, com papéis de
seda e aquela torneira econômica intermitente. Deve ter sido a primeira vez que, apesar dos
apelos de aeromoças, comissários e até do comandante da aeronave, alguém pousou sentado
na privada e depois fez check-out enrolado em um "pareô da companhia aérea"...

Assim como nos nós, tudo na cirurgia tem um jeito certo e um errado. Aprendíamos como
segurar uma tesoura, quando usar alguma pinça, que fio escolher, quando se movimentar e
muitos outros detalhes técnicos. É evidente que existem pessoas mais jeitosas, mas a técnica
é um bom modo de nos nivelar. E por mais habilidosa que a pessoa seja, se fugir da técnica,
fará bobagem. Mas pior, muito pior, pode ocorrer quando a técnica ainda não está
estabelecida e vem sendo aprimorada.

Um velho jargão médico já dizia: "Grandes cirurgiões, grandes incisões". O tamanho do corte
não poderia limitá-lo no exercer de sua arte. O paciente deveria pagar o tributo necessário
para que a sua cirurgia fosse benfeita. Um doloroso pós-operatório era justificável desde que
as costuras ficassem lindas! E isso dentro do abdome, pois do lado de fora... A estética ainda
era algo secundário, muito distante.

Hoje todo cuidado voltou-se no sentido de minimizar o sofrimento do paciente, mesmo que
para manter a cirurgia linda o cirurgião sofra mais. Isso porque, algumas vezes, as cirurgias
minimamente invasivas podem ser muito mais trabalhosas do que as clássicas. Nelas,
realizam-se os mesmos procedimentos (que antes seriam efetuados por grandes cortes)
através de pequenos e limitantes orifícios ou incisões. O trabalho em campo cirúrgico pode
ser maior, mais delicado, exigir mais treino e também mais paciência, inclusive para aguentar
um anestesista reclamando da morosidade. Mas, em contrapartida, compensa pelo resultado.

Muitas vezes os convênios e os próprios colegas não compreendem a lógica de perdermos


mais tempo, trabalharmos mais e utilizarmos recursos caros para corrigirmos algo que poderia
ser tratado de forma mais simples, rápida e barata. Existe lógica nesse raciocínio e, em
algumas vezes, eles têm razão, mas o cirurgião não pensa apenas no ato cirúrgico ou
anestésico, ele inclui o pós-operatório. Nesse período, seja a curto ou a longo prazo, o
anestesista e os convênios não costumam perceber a diferença entre os resultados das
diferentes técnicas. Sabemos que sendo menos invasivos (desde que com a técnica adequada),
poderemos obter melhores resultados.

Uma cirurgia de vesícula, por exemplo, pode ser realizada por uma grande incisão ou pelos
furinhos da laparoscopia. O material necessário nesta última técnica é mais caro que na
tradicional. Desta forma, a princípio, ela parece representar uma desvantagem para o pagador
que, na maioria das vezes, será o convênio ou o Estado. Para que gastar mais, se os
resultados serão similares?

Simples, os resultados não serão similares. Como a dor e a agressão cirúrgica geradas pela
laparoscopia são menores, a recuperação acaba sendo mais rápida (essa diferença é nítida em
alguns procedimentos, mas em outros não é tão clara assim. Já contraindiquei cirurgias por
laparoscopia acreditando que naqueles casos seriam mais agressivas que a tradicional ou que
os seus custos não seriam justificados pelos benefícios).
O paciente ficará mais satisfeito, pois sofrerá menos. Recuperando-se mais rapidamente, ele
voltará a trabalhar mais cedo e com menor desconforto. Usará menos medicamentos, ficará
internado por menos tempo e não precisará se pendurar na previdência social. Assim sendo, o
custo hospitalar pode até ser maior, mas o custo social, menor.

Indubitavelmente, a introdução da videolaparoscopia nos anos 1990 representa um dos


grandes avanços na cirurgia. Ela é mais conhecida pelos leigos como "a cirurgia a laser que a
vizinha fez da vesícula". Na verdade, não tem nada a ver com laser. São pinças e tesouras
como na cirurgia convencional, orientadas por uma microcâmera. Entretanto, o material é
adaptado para ser utilizado através de pequenos portais que atravessam a parede abdominal.

Eu acompanhei os primeiros passos da laparoscopia no início do meu internato. Como


qualquer avanço na medicina, a técnica seguiu os estágios habituais:

- Inicialmente foi desprezada. Diziam que só serviria para aumentar os ganhos dos fabricantes
do material específico. Depois, graças aos bons resultados, começou a ser aceita. Finalmente,
a maioria dos seus críticos começou a dizer ter previsto, desde o início, que seria um excelente
método!

Também podemos enxergar as fases desta forma: - Não serve para nada! -Tem as suas
indicações. -Serve para tudo! - Serve para a maioria das coisas.

Nas primeiras intervenções por vídeo, o tempo de cirurgia era enorme. Uma cirurgia de
vesícula durava três horas; depois de toda aquela trabalheira, o resultado era pior que o
habitual. O problema não era do método, e, sim, da falta de treino. Ninguém estava adaptado.

Surgiram as caixas-pretas, que simulavam a cavidade abdominal. Nelas, os cirurgiões podiam


treinar seus movimentos. Afinal, não era fácil operar em duas dimensões e com o tato
atenuado. O desempenho foi melhorando e as complicações diminuindo. Nessa época, a
minha impressão de laparoscopia era a mesma da primeira fase: "Não serve para nada!".

Passados poucos anos, coincidindo com o início de minha residência, a experiência começou a
mostrar suas grandes vantagens. O pós-operatório era bem melhor, mas ainda possuía suas
restrições. Aí começou a moda de indicar laparoscopia para resolver qualquer problema
cirúrgico. Serve para tudo!
Assim que indicações esdrúxulas começaram a surgir, vieram acompanhadas de iatrogenias e
complicações escabrosas. Finalmente, os médicos começariam a descobrir as diferenças entre
o que podia e o que devia ser realizado por laparoscopia. Opa, não serve para tudo!

Entretanto, a evolução não para. Muito material foi desenvolvido e aperfeiçoado. Com o
grande know-how adquirido, as recomendações puderam voltar a ser ampliadas num ritmo
mais saudável. A laparoscopia é um exemplo típico da curva de aprendizado coletiva.

Tive sorte de aprender laparoscopia durante a minha residência com médicos já treinados,
seguindo os passos habituais do ensino de qualquer outra cirurgia. Comecei como
instrumentador, depois como segundo auxiliar, primeiro auxiliar e, finalmente, como cirurgião
principal. Foi muito mais difícil para quem teve que aprender a laparoscopia em cursinhos de
dois ou três dias e depois se virar sozinho. O mercado pediu a laparoscopia e quem não
soubesse fazê-la estava fora.

Este é só um exemplo de como o médico precisa ser autodidata e ter uma noção muito boa do
que deve, ou não deve fazer, principalmente se estiver sozinho.

O hipotálamo maluco e a cueca molhada

"Sofrimento pode ser necessário, desnecessário ou voluntário." ROBERT FRIPP

Para percorrer os estágios do curso básico de cirurgia geral, formávamos grupos de três
residentes. Esses grupos se alternavam num programa de rodízios pré-estipulados, de forma
que cada estágio estivesse sempre preenchido por um deles. Os três residentes que faziam
parte de cada uma das equipes deveriam trabalhar juntos em todos os plantões, durante os
dois anos seguintes.

Tive uma evolução muito boa em técnica operatória, apesar de, volta e meia, ao gesticular,
continuar enfiando o dedo no olho de minhas namoradas. A prática cirúrgica era muito
intensa. Alguns estágios eram tão puxados que eu não conseguia adaptar o meu ritmo' de
sono a eles. No pronto-socorro de cirurgia, por exemplo, trabalhávamos noite sim, noite não.
Não podíamos dormir nenhum minuto durante o plantão e, muitas vezes, nem nos
sentávamos. No dia seguinte ainda, tínhamos que ir ao ambulatório, assistir a aulas ou
preparar reuniões. Após três meses, não éramos mais seres humanos normais.

Essa pressão para não dormir era tanta que, quando alguém pegava no sono, acabava sendo
vítima de alguma armação dos que continuavam trabalhando. Uma das formas de escapar do
flagra era dormir um pouquinho e escondido. Alguns cochilavam até dentro de armários, mas
na maioria das vezes não íamos dormir: caíamos no sono. E aí...

Certa vez eu estava tão cansado que peguei no sono sentado numa cadeirinha de metal no
meio do saguão daquele agitado PS. Estava tão esgotado que nem ouvi aquela máquina de
lavar o chão que passava de madrugada fazendo o maior barulho e inundando tudo. Não era à
toa que chamávamos esse evento de "a pororoca".

Enquanto estava dormindo, um colega aqueceu soro glicosado e colocou a ponta daquele
caninho de plástico que fica conectado ao frasco (equipo) dentro do meu bolso. O soro ficou
pendurado em um mastro ao meu lado, gotejando lentamente. Como estava aquecido,
demorei a perceber. Quando acordei, percebi algo estranho em minha roupa. Tive a sensação
de ter urinado nas calças. Instintivamente, ao colocar a mão no molhado, senti que estava
melado. Uma delícia; aquela sensação de refrigerante seco em todo o meu corpo.

Aos poucos fui despertando e enquanto pensava na improbabilidade de uma enurese noturna
(emissão involuntária de urina), notei o esquema. A sorte é que eu estava com o uniforme de
plantão: um pijama do centro cirúrgico. Tomei banho e troquei de roupa, mas naquele dia,
tive que ir à reunião sem cueca.

É estranho ouvir falar de médicos agindo de tal forma. Mas essas brincadeiras não eram
incomuns entre os residentes. Não sabia mais se dormia de noite ou de dia nem quando devia
me alimentar. Tentei inverter o ciclo de vigília, acordar mais cedo, fazer sesta, mas foi tudo
em vão. Com todo o estresse e falta de sono, meu hipotálamo (centro regulador das funções
vitais, como sono, fome, temperatura) ficou maluco e, assim como ele, todos nós também
começávamos a ficar meio alterados. As brincadeiras serviam como uma válvula de escape
para toda essa tensão.

A privação do sono não acomete apenas os residentes. Hoje em dia, o médico tem que
trabalhar muito mais se quiser ganhar, aproximadamente, o equivalente ao que recebia em
épocas passadas. Um dos métodos para alcançar esse objetivo é dar plantões. Não é raro que
algum colega trabalhe 36, 48 ou até 72 horas seguidas e, não tendo um horário de descanso,
lute contra o sono em algum momento. Isso mina insidiosamente o seu poder de concentração
e de raciocínio. Por essa razão, de forma geral, os hospitais proíbem que o médico trabalhe
ininterruptamente por mais de 12 horas. O que ele faz? Simples! Trabalha durante vários
períodos de 12 horas, um após o outro, só que em lugares diferentes!

Eu mesmo dou o "plantão da meia", esporadicamente, de 24 a 36 horas. Como nesse período


fico alternando 12 horas em cada hospital, vestindo uniformes próprios, brinco que só troco
de meia (e de cuecas).

Colaborando para piorar ainda mais o funcionamento do nosso centro do sono, há outra
peculiaridade, muito comum, entre os jovens médicos. Chama-se o "furor".

Furor operandi

"Anestesista é igual a pernilongo. Está sempre picando a veia ou enchendo o saco de alguém."

RESIDENTE DE CIRURGIA EM FUROR OPERANDI.

Segundo uma pesquisa, o médico treinado em videogame teria maior facilidade em realizar
cirurgias videolaparoscópicas. Nunca passei em um estágio de fliperama na residência de
cirurgia, embora pudesse ter adorado uma ideia desse tipo. Na verdade, só se aprende a
operar operando!

O treinamento em cirurgia não inclui apenas o desenvolvimento de técnicas e habilidades


psicomotoras; envolve o raciocínio constante em situações dinâmicas e imprevisíveis. Há
pequenos truques e soluções que só compreenderemos quando formos expostos a problemas
muito particulares.

Certa vez, enquanto raspava, com uma haste, amostras da lesão na virilha de um paciente nu,
a residente quase foi a nocaute. Uma rápida ereção peniana atingiu-a no queixo como se
fosse um golpe cruzado de esquerda! Nunca imaginei que isso fosse tão comum. Com certeza
não havia nada no livro de micoses que a pudesse auxiliar naquele momento, mas uma
experiente professora lhe ensinou: "Quando for raspar o exame micológico na região genital,
afaste o saco escrotal para o lado, valendo-se de um algodão embebido com éter. Ele é tão
gelado que frustrará qualquer indício de ereção!".
Embora nunca tenha passado por situação similar, seja como médico, seja como
"embolorado", aprendi vários truques durante a residência: como aplicar a primeira camada
de pontos na cirurgia do esôfago, como achar uma trompa uterina que não é palpável, como
estancar rapidamente o sangramento de uma facada no coração... Esses são apenas alguns
exemplos do que chamamos de "o pulo do gato". Ou seja, manobras eficazes e pouco
conhecidas, voltadas para situações específicas. A forma mais fácil de aprendê-las é assistindo
a alguém mais experiente em ação.

A expressão originou-se de uma fábula. O gato ensinou todos os seus métodos de caça para a
onça. Em determinado momento, valendo-se de todo o seu aprendizado, a onça o atacou.
Entretanto, ele conseguiu escapar graças a um mirabolante salto. A onça, frustrada,
surpreendeu-se com essa manobra que ele nunca havia ensinado. Afinal, era o seu segredo: - o
pulo do gato.

Quando iniciei a especialização, estava ansioso para começar o treinamento, aprender os


vários pulos do gato e aprimorar minhas habilidades. Entretanto, é muito importante que
dominemos a clínica cirúrgica antes de sairmos incisando alguém, o que faremos depois,
durante toda a residência. Em outras palavras, devemos saber quando indicar uma cirurgia,
como conduzir um pós-operatório e que exames solicitar no pré-operatório, antes de operar
propriamente. Porém, não queríamos saber de aprender pré e pós-operatório, embora
estivéssemos cientes da importância de conhecê-los. Em vez disso, ficávamos o tempo todo
com uma terrível coceira nos dedos, querendo cortar tudo o que passasse pela nossa frente. O
nome que demos a esse comportamento é "furor operandi".

Se você gosta de fazer tricô e depois ver como a roupinha ficou bonita, imagine só como é
gostoso fazer uma bela cirurgia e perceber com isso o benefício propiciado ao doente. Operar
pode ser o inferno, mas na maioria das vezes, além de ser recompensador, é literalmente
muito gostoso. Costurar, cortar, fazer desvios, dissecar na "espuminha de Túlius" era muito
bom.

Mais um epônimo regional. Veio de um médico, o Dr. Túlius. Ele tinha uma saudável obsessão
por dissecar nos planos cirúrgicos adequados. Estes são separados por uma "espuminha
frouxa" que, por mérito, foi batizada com o seu nome.

Além de adorar operar, tínhamos uma sede sem igual para sorver dessa fonte ainda
inexplorada.
Os procedimentos cirúrgicos eram divididos entre os residentes, de acordo com a sua
complexidade. Uma hérnia inguinal seria realizada pelo R-1, uma retirada de vesícula, pelo R-2,
do estômago, pelo R-3, e assim por diante. Como trabalhávamos em panelas de três, cada
cirurgia era realizada por um de nós, denominado a "bola da vez".

Brincávamos que a pior situação para o paciente num hospital universitário era ter uma dor
em flanco direito. Ou seja, nem abaixo das costelas nem no pé da barriga, mas no meio do
caminho e à direita. Nesse caso, o R=1 - salivando - sempre tenderia a achar que se trata de
uma inflamação em um apêndice "meio alto", enquanto o R-2 - amolando o bisturi - pensaria
em uma inflamação na vesícula "um pouco baixa". Uma vez possuídos pelo furor, cada um
tendia a puxar o diagnóstico para a patologia que se encaixasse nas cirurgias contempladas
pelo seu grau técnico. Na dúvida, o assistente examinaria o caso e bateria o martelo
estabelecendo a conduta definitiva. O furor operandi na maioria das vezes acaba sendo
saudável, pois demonstra interesse e determinação. Porém, deve ser utilizado com
moderação...

Algumas patologias, por serem mais emergenciais, deverão ser operadas independentemente
do horário. Outras, não urgentes, podem ser abordadas em períodos mais adequados, com a
equipe descansada e completa. Nós não queríamos saber disso. Com uma energia inesgotável,
fazíamos cirurgia de apêndice às duas da manhã para depois encaixar o caso do esôfago às
três, do cólon às quatro e assim por diante. Já os assistentes, conhecendo as suas limitações e
cansados de saber que o índice de complicações aumenta nas cirurgias da madrugada,
reservam para esse período só os casos de extrema necessidade. Nesta hora, surgia um
conflito entre a nossa vontade e a sua prudência. Para suplantá-la, alguns residentes com
maior furor criaram métodos não muito ortodoxos, mas bastante criativos.

Uma das complicações mais temidas das úlceras gástricas é o sangramento. Quando a lesão se
aprofunda, pode erodir os vasos que nutrem a parede do estômago, causando grandes
hemorragias. O paciente pode vomitar sangue ou defecá-lo em volumosa quantidade e, se
nada for feito, correrá o risco de morrer rapidamente.

Hoje em dia, a endoscopia digestiva consegue coibir o sangramento na maioria dos casos,
restando a necessidade de cirurgia apenas aos casos refratários. Há uns vinte ou trinta anos, a
endoscopia não era disponível como hoje em dia. Além disso, só servia como um instrumento
para diagnóstico e não para terapêutica. Por isso, nos casos que voltavam a sangrar apesar
das medidas iniciais, a indicação cirúrgica era bem mais liberal.
Quando esses pacientes chegavam ao PS, entre outras medidas, passavam uma sonda pelo
seu nariz até o estômago (sonda nasogástrica). Por ela, infundiam soro e depois aspiravam o
conteúdo várias vezes para lavar o sangue do estômago. Após o débito ficar incolor, era fácil
perceber uma recidiva do sangramento.

Independentemente do motivo de indicação, se o sangramento pela sonda cessasse, a cirurgia


poderia ser postergada, o que permitiria melhor preparo do paciente. Não representava mais
uma emergência. Mas a visão dos residentes era outra. Como seu plantão é de 12 horas, caso
o paciente fosse operado pela manhã, seria tratado por outra equipe. Perderiam essa
oportunidade?

Foi exatamente num desses casos com a sondagem de conteúdo claro, sem sangramento
ativo, mas com indicação de cirurgia decretada, que um grupo de residentes dominados pelo
furor teve uma ideia maquiavélica.

A noite estava tranquila, sem baleados ou outras urgências. O caso il seria operado, mas como
não estava com sangramento em atividade, ficaria para o período da manhã. Aborrecidos, os
residentes colheram sangue para exames de controle do ulceroso e... Eureca!

Aproveitaram para introduzir alguns mililitros do sangue colhido na sonda nasogástrica. Esta
ficou vermelha novamente. Chamaram o 1 assistente e o alertaram para o fato de estar
ocorrendo uma nova hemorragia. Este, apesar de verificar que os sinais vitais (pulso, pressão i
arterial) não tinham se alterado, achou prudente intervir antes que isso pudesse ocorrer e o
paciente foi encaminhado para a sala de operações.

Excluídas as histórias mais apimentadas, o furor operandi ajuda mais do que atrapalha. Mas há
um grupo, com quem convivemos diariamente, que sempre se julga prejudicado: os
anestesistas.

Anestesia e anestesistas

"Aqui jaz W. T G. Morton, o descobridor e inventor da anestesia. Antes dele, cirurgia era
sinônimo de agonia. Por ele foram vencidas e aniquiladas as dores do bisturi. Depois dele, a
ciência é senhora da dor."
INSCRIÇÃO NA LÁPIDE DE WILLIAM THOMAS GREEN MORTON

A invenção da anestesia moderna pôde mudar toda a história da cirurgia. Ela possibilitou a
transformação do barbeiro em cirurgião e abriu as portas para que saíssemos da era medieval
e penetrássemos no mundo moderno. A sua história é muito interessante e cheia de percalços,
mas irei resumi-la em poucas linhas.

Primeiro descobriram o gás hilariante (N20). Trata-se de um gás com propriedades


analgésicas, mas, antes de lhe perceberem essa qualidade, haviam constatado outra que lhe
valeu o nome: provoca o riso.

Consequentemente, surgiram nos Estados Unidos reuniões em que o N20 era utilizado para
diversão. Era uma espécie de lança-perfume lícito da época. Em um desses encontros ocorreu
um pequeno acidente que poderia ser considerado corriqueiro: um participante escorregou,
bateu a perna num móvel e a machucou. Entretanto, sob o efeito do gás, não sentiu dor!

Enquanto todos gargalhavam daquela "videocassetadossaura", um dentista, Horace Wells,


que estava presente, vislumbrou, a partir desse fato, aplicações muito mais úteis.

Wells estava acostumado a causar dor, pois diariamente extraía dentes dos seus pacientes.
Aquilo parecia bom demais para ser verdade. Então resolveu ser sua própria cobaia em um
experimento.

Inalou o gás e permitiu que lhe extraíssem um dente. Para a sua surpresa, não sentiu nada.
Começou a realizar cirurgias com o gás, mas justamente no dia em que exporia a sua
descoberta numa faculdade o tiro saiu pela culatra. O paciente gritou e ele foi taxado de
impostor.

Os norte-americanos não deviam ser muito caretas, pois, além do NO, também existiam
festinhas regadas a éter, as ether parties. Mas, dessa vez, outro dentista valeu-se de métodos
mais acadêmicos para achar uma nova substância. Por meio de discussões com um químico
chegou à indicação do éter. Dessa vez, a demonstração funcionou. Em 1846, William Thomas
Green Morton realizou a primeira anestesia oficialmente, criando definitivamente essa
disciplina e seus especialistas. O seu epitáfio é merecido.
A anestesia evoluiu e ficou muito segura. Uma vez em curso, chega a ser até entediante
(brinca-se que os próprios anestesistas, quando acordados, costumam concordar com essa
afirmativa). Mas não pense que tudo é um mar de rosas. Há surpresas que demandam desses
mestres do Sudoku, tratamento emergencial, como mostra o ditado: "Anestesistas são
médicos quase dormindo tomando conta de pacientes quase acordados. Mas não se iludam!
Numa anestesia existem horas de grande marasmo e minutos de enorme terror".

O problema desses minutos é que, na correria, se não houver muita calma e experiência, tudo
começa a dar errado. Sob estresse, já vi um anestesista aplicar anestésicos na borracha do
estetoscópio pensando ser a do equipo de soro, ou no próprio dedo ao errar de alvo, e até
ficar travado, sem reação.

Algumas complicações podem ser completamente inusitadas e, independentemente de sua


gravidade, também exigir do anestesista rapidez de raciocínio.

Antes da anestesia propriamente dita, podemos aplicar um sedativo para diminuir o


sofrimento psíquico dos pacientes. Algumas vezes, esses remédios anestesiam a autocrítica e
nossa lingua pode nos trair...

Um desses pré-anestésicos foi aplicado na esposa de um médico. Quando ela entrou no


centro cirúrgico, onde o seu marido se encontrava, para assistir à cirurgia, estava "pra lá de
Bagdá". Não sabia da presença dele e, mirando o anestesista, começou a relatar os seus
desejos sexuais, digamos, não muito convencionais. Nesse momento, o marido caminhava em
direção à sala de cirurgia. O anestesista, percebendo que dispunha de poucos segundos para
salvar um casamento antes que o esposo chegasse, de súbito inseriu um tubo à força na
traqueia dela, imobilizando suas cordas vocais (mais rápido do que levaria para preparar
qualquer medicamento). Antes que o marido pudesse ouvir os comentários ou entender o
ocorrido, o colega lhe explicou:

- Ela ia vomitar e tive de induzir imediatamente para proteger os seus pulmões...

Os pré-anestésicos realmente são fantásticos. Acalmam o paciente, diminuem sua carga de


hormônios do estresse e até regularizam a pressão arterial. Um efeito que costumam causar,
muito conveniente, é a amnésia. Esta é muito bem-vinda já que a maioria das pessoas prefere
não se lembrar do centro cirúrgico, mesmo tendo ficado acordada antes ou ao longo da
cirurgia. O efeito costuma ser muito intenso. Por outro lado, quando por algum motivo ela
não ocorre, as lembranças podem ser bem desconcertantes.
Houve casos de pacientes que saíram do plano anestésico e lembraram-se da desagradável
sensação de imobilidade involuntária devido ao curare (aquele veneno dos índios) e até de
palavrões ditos pelos seus cirurgiões.

Uma paciente me contou que teria ouvido as queixas do seu médico durante a cirurgia. Não
gostou nada dos comentários que ele usara referindo-se à sua gordura intra-abdominal. Eu
estivera presente ao procedimento e só acreditei no seu relato quando ela reproduziu as
palavras do cirurgião (e que eu ouvira):

- Ela diz que só come peixe e faz natação o dia inteiro. Com essa banha toda só pode ser uma
baleia. Uma baita cetácea!

Quem causa ou resolve todas essas questões é o anestesista. Como cirurgiões, convivemos
com eles e dependemos deles. Não é raro que percebamos atritos nesse relacionamento,
principalmente quando envolve os residentes de cirurgia. O motivo, segundo estes, é simples:
não existe furor anestesiandi. Como residentes, nós queríamos operar tudo a toda hora e a
qualquer hora, enquanto os anestesistas queriam anestesiar o estritamente necessário. O
conceito de necessário não é tão simples.

Os anestesistas trabalhavam exclusivamente no centro cirúrgico, bem menos expostos à


pressão dos pacientes. Eles não vivenciavam o caos do PS nem a enorme fila de candidatos à
cirurgia que lotavam as nossas macas. Podiam ser casos menos ou mais graves, mas todos
necessitavam de cirurgia com certa urgência. Algumas vezes, quando indicávamos
intervenções em um desses casos menos urgentes, eles tentavam barrigar (empurrar com a
barriga, deixar para o plantão seguinte; sinônimo de "vamos hidratar mais um litro", "melhorar
um pouquinho o potássio" e "repetir um exame de coagulação").

Apesar de exercerem as suas funções com extrema competência e dedicação, não têm o
mesmo relacionamento e, por isso, o mesmo compromisso que os cirurgiões possuem com os
seus pacientes. Não é por má vontade. Afinal, o cirurgião que atendeu o doente, fez o seu
diagnóstico, internou, indicou o tratamento cirúrgico e é quem acompanhará o seu pós-
operatório, seja hospitalar ou ambulatorial. Os anestesistas serão apenas um, embora
indispensável, elo dessa corrente.

Eles têm outros empregos em que não podem chegar atrasados e, frequentemente,
emendam plantões de 24 ou 36 horas. Precisam de descanso e pontualidade. Anestesiar um
monte de casos eletivos poderia minar as suas forças ainda nas primeiras 12 horas. Além
disto, como disse um sábio professor: "Cirurgia tem hora para começar, mas não tem hora de
terminar", o que pode lhes causar problemas nos outros empregos.

Quanto a nós, residentes de cirurgia, estávamos lá para aprender. Não havia tempo a perder
nem outro trabalho para ir depois das cirurgias. Desta forma, era comum assistir a um
residente puxando a brasa da sardinha para o seu lado, dizendo que a inflamação na vesícula
é uma emergência, enquanto o anestesista levava para o outro, argumentando que não se
tratava sequer de urgência.

Aprendi que quando há uma boa relação entre os cirurgiões e anestesistas todos têm a
ganhar. Assim como com as enfermeiras, a equipe funcionará bem melhor se estiver
entrosada.

Enquanto no papel de cirurgiões, não visamos apenas a uma boa cirurgia, e, sim, a um bom
tratamento, o que inclui a anestesia. São os nossos pacientes que sofrerão mais, ou menos,
dependendo da qualidade da anestesia. O indivíduo que fica vomitando no pós-operatório
imediato tende a relacionar isso com a cirurgia e não com o anestesista. Se não vomitar nada,
o cirurgião é excelente!

Em outras palavras, nós servimos aos anestesistas propiciando-lhes clientes (ninguém vai ao
consultório do anestesista) e tentando fazer a cirurgia da melhor forma possível. Eles, por
outro lado, também nos servem. Nada melhor que um colega competente que saiba aplicar
uma boa anestesia, aliviar as tensões do ambiente ao contar piadas e, segundo os mais
maldosos, ajustar o foco cirúrgico.

"As" xerifes

Nota explicativa: Eu estudava inglês em um grupo formado por mim e por mais duas alunas. O
professor se referia a nós, "meninos". Três meses depois, uma moça juntou-se ao grupo,
quando o professor passou a nos chamar de "meninas". O coletivo, na proporção de três para
um, mudou de gênero. Cansei de ser chamado de "meninas". Peço desculpas aos Niltão,
Rangelzão, Diegão, entre outros, mas como a proporção de enfermeiras é maior, mantendo a
regra, os chamarei de "enfermeiras".
Além dos anestesistas, havia outro grupo de profissionais com que convivíamos ou, mais uma
vez, segundo os mais maldosos, sobrevivíamos...

Trabalhar bem-vestido em um pronto-socorro que atenda a emergências não é fácil nem


seguro. Era muito comum assistir a alguma acadêmica indo ao seu primeiro plantão no pronto-
socorro de cirurgia (PSC) com lindas melissinhas e voltando ao segundo plantão de galochas.
Os clínicos brincavam que essa sigla foi assim designada por conter as iniciais dos problemas
mais atendidos: pus, sangue e cocô! Todos já tinham perdido bonitos calçados ou casacos que
acabaram ficando sujos devido a, pelo menos, uma das possíveis combinações desses três
problemas.

Tive de jogar fora as minhas cuecas em mais de uma ocasião. E não foi por encharcá-las de
soro glicosado: foi com sangue. Por isso, a minha esposa dizia que o cirurgião de urgência,
para evitar Aids, devia operar de preservativo.

É claro que existem óculos de proteção e aventais impermeáveis. As vezes, entretanto, eles
podem ter acabado ou, simplesmente, não há tempo hábil para vesti-los. Nessas
circunstâncias, era habitual que o sangramento abundante acabasse ensopando as nossas
vestes.

Basta ver o cenário de guerra com que fica se parecendo uma sala de emergência após o
atendimento de um acidentado grave, para entender por que é comum fornecerem uniformes
de serviço aos profissionais dessas áreas.

No hospital-escola onde estagiei, os médicos usavam as roupas do centro cirúrgico para atuar
na emergência.

Apesar de muito práticas, tais roupas eram proibidas fora do centro cirúrgico. Porém, os
médicos insistiam em desafiar essa regra visando a poupar as próprias vestes. Com o tempo,
aquelas que sempre nos repreendiam nos ajudaram - finalmente - a fazer um uniforme próprio
para o pronto-socorro. Elas podiam ser as nossas fiéis escudeiras ou as nossas piores inimigas:
as enfermeiras.

O termo "enfermagem" abrange as auxiliares de enfermagem e as enfermeiras. As


enfermeiras cursaram faculdade; há especialização, mestrado e doutorado, igualzinho aos
médicos. Já as auxiliares têm uma formação técnica (às vezes também com especializações).
Ao contrário do que eu achava (e acredito que a maioria das pessoas), os cuidados imediatos
ao paciente são funções da auxiliar de enfermagem. Embora as enfermeiras também o façam,
seu trabalho é muito mais administrativo do que assistencial.

O funcionamento adequado de qualquer serviço médico seria impossível sem a enfermagem.


Elas são as xerifes dos hospitais. Como administradoras, precisam deixar as engrenagens
rodarem com a maior sincronia possível, aliando suas habilidades reguladoras e de
planejamento ao conhecimento da área médica. Esta é uma responsabilidade delas e, para
isso, as regras e protocolos ajudam muito.

Nós, médicos, por outro lado, detestamos qualquer forma de controle. Talvez por
trabalharmos quase sempre com a incerteza, precisamos ser muito maleáveis. Além disso,
sendo profissionais liberais, ainda não percebemos que a nossa época de patrão já terminou.
Somos empregados de luxo, mas ainda não engolimos esse fato e, por isso, detestamos seguir
normas a toda hora. Mas elas existem e, para a lubrificação das engrenagens, devem ser
seguidas. Em algum momento, porém, podem se chocar com as intenções e as atitudes dos
médicos, independentemente de estarem certas ou erradas.

É impossível fazer alguma regra que valha para o infinito leque de situações em que vivemos.
Quando o maleável se defronta com a rigidez, surgem as faíscas e brincadeiras entre nós.

Por isso, um cirurgião resumiu o currículo do curso de enfermagem da seguinte forma:

- No primeiro ano se aprende a fazer escalas de plantão. No segundo, a trancar a caixinha de


medicações psicotrópicas - remédios controlados, sedativos. No terceiro, a perturbar os
médicos e a enquadrá-los nas regras. Finalmente, no quarto e último ano, há uma revisão
geral dos temas previamente abordados.

Esta é, obviamente, uma brincadeira, mas pelo simples fato de irritar, continua sendo
disseminada entre os médicos...

Quando um colega brincou citando o "curso avançado de como perturbar o médico" do


terceiro ano, baseou-se em fatos reais. Não que exista essa cadeira, mas todos sabem que a
enfermeira pode ser ou uma bênção ou uma "infernagem" na vida dos médicos. O auxiliar
idem.

Conhecemos auxiliares que, de tanto viverem no PS, apenas de olhar na cara do doente já
sabem o seu diagnóstico. Quantas vezes nos ajudavam quando éramos residentes. Suas
sugestões podiam nos fornecer a luz que faltava na condução de um caso. Mas se o auxiliar
não fosse com a nossa cara, poderia criar um grande pesadelo. Qual médico nunca foi
acordado às quatro, às cinco e às seis da manhã com a célebre pergunta: "Doutor, o paciente
do leito dois também está com febre. Posso dar o antitérmico prescrito?".

A utilização da massa cinzenta pela enfermagem é diretamente proporcional ao apreço que


tem por nós.

Logo no início de nossa prática, começamos a perceber que não somos uma ilha. Para que o
tratamento funcione, uma equipe inteira existe para ajudar-nos. Não é nada agradável
trabalhar em um grupo em que um dos participantes é mal-educado ou metido a besta.
Quanto mais integrada estiver a equipe melhor para todos e, principalmente, para o paciente.

Quando o médico não respeita a enfermagem, esta faz o que tem de fazer e de cara feia. Mas
se ele a respeita ela faz tudo o que pode fazer. É bem diferente.

Alguns acreditam que talvez seja esta a explicação para a diferença de sorte entre o primeiro e
o segundo piloto de uma certa escuderia. Para o segundo, algo sempre dava errado: quebrava
o câmbio, acabava a gasolina na última volta, o pé do mecânico entrava na frente do pneu...

Embora os pacientes também os chamem de enfermeiros, não posso me esquecer dos


fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos... Hoje em dia é quase impossível instituir um
tratamento mais complexo sem uma equipe multidisciplinar. Os doentes começam a perceber
tal fato, embora ainda não estejam totalmente acostumados com ele. Não é raro
confundirem, injustamente, as fisioterapeutas com massagistas ou as nutricionistas com
copeiras.

Apesar dos grandes avanços alcançados graças a esses profissionais, o médico não pode se
esquivar da condução do caso. Um maestro pode não saber tocar violino tão bem, mas é
necessário para reger o conjunto. Da mesma forma que o maestro, com uma visão mais ampla,
entra o médico para reger o conjunto.
Ao interagir com todos esses profissionais, aprendíamos a trabalhar em equipe e, aí sim,
podíamos subir mais um degrau na nossa formação.

4 - A RESIDÊNCIA AVANÇADA

(3º, 4º E 5º ANOS)

O dia do raio e algumas superstições

"De todos os meios que conduzem à sorte, os mais seguros são a perseverança e o trabalho."

LOUIS REYBAUD

O curso básico de cirurgia geral (Ri e R2) havia terminado. Fiel aos meus ideais, optei por
também me especializar em cirurgia geral.

Mais uma prova abriu as portas para o R3 e o R4, cujos estágios seriam concentrados na área
que eu escolhera. No fim das contas, acabaram sendo mais três anos, o último deles
exclusivamente em emergências cirúrgicas.

Durante a residência, o nosso dia a dia é muito rico e intenso; acabamos entrando em contato
com diversas situações num curtissimo espaço de tempo. A experiência cirúrgica do R2 para o
R4 dá um salto gigantesco. Muito maior que do R15 para R20, caso existissem.

A transição do R2 para o R3 pode ser uma experiência enigmática. Quando alguém termina o
R2 para dias depois começar o R3, não vive nenhum mistério. Não foi o meu caso. Eu vivi o
obscuro dia do raio.

Esse dia ocorre quando, trabalhando sem pausa e sob o mesmo teto, à meia-noite, uma força
sobrenatural instantaneamente nos transforma de ignorantes e inexperientes residentes do
segundo ano em experientes e sábios residentes do terceiro ano. Chamamos essa força de "o
raio". Como poderia esquecer a minha própria metamorfose?

Eu era um R2 ignorante e inexperiente dando o último plantão do ano no PS de cirurgia. Por


falta de sorte, fui aprender a fazer uma colostomia apenas nesse último plantão. Todas as
colostomias tinham sido realizadas pelos outros da minha panela. O R3, tendo feito várias, me
orientou sem maiores dificuldades.

Após as doze badaladas da meia-noite, acabou o meu último plantão como R2 e, no mesmo
estágio, imediatamente, começou o meu primeiro como R3: "Shazam!".

O raio caiu e logo notei que meu conhecimento tinha se multiplicado. Havia me tornado
experiente e sábio. Subitamente os "R menos" passaram a me temer e pedir orientações, que
lhes fornecia graças aos meus grandes conhecimentos adquiridos do cosmos.

Nesse dia, por coincidência, atendi outro paciente que precisaria de uma colostomia. Três
horas após aprender a tal cirurgia, ensinei o novo R2 a fazer a sua primeira. Evidentemente
não foi difícil, graças à "grande" experiência que eu já possuía...

É exatamente assim que os residentes se sentiam quando subiam de "R menos" para "R mais"
(R3, R4), o que, no começo dos estágios, dava dores de cabeça para os assistentes. Afinal, a
coragem muitas vezes provém da ignorância. Intrepidez aliada a inexperiência costuma
resultar em catástrofe. Se esse médico não for supervisionado, poderá transformar-se num rei
Midas às avessas. Como brincávamos, um médico que onde tocasse brotaria pus...

É claro que a história do raio se trata de uma fantasia, mas grande parte das pessoas é
fantasiosa. Você pode não acreditar, mas se der para evitar passar embaixo de uma escada,
aposto que evita.

Talvez a sorte e o azar realmente existam. Basta lembrar o senhor que escapou de um tiro no
coração graças à caneta do seu bolso ou, no sentido oposto, da história de Mr. Ray Sullivan,
um guarda-florestal dos Estados Unidos que, sem virar R3 ou R4, foi atingido por raio sete
vezes!
Quando alguém nasce sem esôfago, possui uma agenesia de esôfago. Pois bem, este moço
devia ter agenesia de anjo da guarda.

Mas, diferentemente dos pacientes, o médico, de forma geral, é cético. Ele precisa acreditar
no seu tratamento e, para isso, deve ser científico. Tenta pensar sempre com lógica. É
necessário confiar na lógica, caso contrário a medicina deixa de ser racional para virar um jogo
de adivinhação. Sorte ou azar.

Se com todo o rigor técnico, os seus resultados dependessem exclusivamente da boa ou da má


sorte ou de uma força sobrenatural incontrolável, os médicos ficariam loucos, além de
prejudicar seus pacientes.

Se eu acreditasse que o sucesso cirúrgico depende da cor das minhas meias, fatalmente ficaria
inseguro em atender a alguma emergência, se estivesse com meias sem a tonalidade
adequada. A insegurança piora nosso desempenho e é justamente dele que dependem nossos
pacientes. O bom cirurgião precisa ser ágil no raciocínio e seguro do que faz. Dizemos que ele
até pode tomar uma decisão errada, desde que depois a corrija. O que não pode é ficar em
dúvida "galinhando", parado, enquanto se deterioram as condições do paciente.

Sabemos que a medicina não é uma ciência exata. Por melhor que sejam aplicados os pontos,
o resultado da costura dependerá de um número imenso de fatores, muitos deles
imprevisíveis. Mas seria muito complicado unir segmentos do intestino com uma sutura
malfeita e ficar pedindo ao Senhor que interceda num milagre multiplicador dos fibroblastos
(células responsáveis pela cicatrização). Independentemente de existir uma crença - ou da
ausência dela -, os cirurgiões preferem costurar direito e contar com uma ajuda lá de cima, em
vez de, simplesmente, rezar pela boa cicatrização. Seria uma imprudência, da mesma forma
que dificilmente o mais ardoroso fiel pularia de uma ponte para provar que Deus o salvaria.
Por essas e outras, não conheço nenhum médico muito supersticioso.

Muitas vezes vemos um jogador dando uma ajoelhadinha para afagar a grama, fazendo o sinal
da cruz e batendo três vezes na madeira do banco de reservas para, finalmente, entrar em
campo. Não é comum assistir de um cirurgião rituais similares, a não ser, quem sabe, numa
pelada de futebol. De qualquer modo, existem algumas superstições que mesmo os médicos
temem. Temos muito medo de falar, por exemplo, "o plantão está tranquilo". A consequência
não costuma demorar.

Outras são clássicas e irei destrinchá-las um pouco mais. If anything can go wrong, it will!
É impressionante como se aplica a lei de Murphy no meio médico. Se algo pode dar errado,
vai dar errado!

O capitão Edward Murphy, ao testar os efeitos da desaceleração no ser humano (ele era a
cobaia), proferiu a célebre frase, posteriormente intitulada como a primeira lei de Murphy.
Todos nós tememos essa lei; há até estudos a seu respeito, como no pitoresco artigo
intitulado Tumbling toast, Murphy's law and the fundamental constants.4

Quem nunca foi acionado para a única emergência do dia na hora dos pênaltis? Por que a
anatomia resolve ser anômala nas cirurgias demonstrativas?

Mais do que medo, essa lei criou nos médicos o saudável hábito de checar tudo antes de
executar qualquer procedimento. Se algo pode dar errado, conseguirei prevenir? Desde que
possível, mesmo nas situações de emergências, tentamos checar tudo. Será necessário
intubar a traqueia do doente? Então antes devemos confirmar se a cânula funciona, se a
lâmpada do laringoscópio não está queimada e assim por diante.

"Os males vêm aos pares."

É a famosa lei de Velpeau. Já passei por situações em que ela se aplicou muito bem.

Fui chamado para avaliar duas senhoras octogenárias em coma na UTI. As duas estavam com
uma infecção grave de provável origem

*4. MATTHEWS, R. A. J. Tumbling toast, Murphy's law and the fundamental constants.
European Journal of Physics 1995;16:172-176. (Fiquei imaginando onde o pesquisador
conseguiu verbas para realizá-la.)

abdominal. Precisei operar as duas no mesmo dia, devido ao mesmo diagnóstico: inflamação
da vesícula com perfuração e bile espalhada por todo o abdome!

Exemplos não faltariam.


"A gravidade do ferimento é inversamente proporcional à maldade da vítima."

Um tiro no peito do bandido provavelmente passará ao lado do esôfago, atrás da aorta, dará a
volta no coração e sairá sem nada lesar. A mesma bala, mas num policial, vai furar tudo e,
ainda, encontra um jeito de ricochetear para depois atingir o cérebro.

Não é fácil matar bandido; uma colega até bolou uma interessante teoria para explicar tal
fato. Segundo ela, a própria sobrevivência até a idade adulta em um ambiente altamente
hostil já teria selecionado os duros de matar.

Faltou discorrer sobre outra superstição: - O médico, quando doente, tem doença rara e de
apresentação atípica.

Porém, por ser um tema muito amplo e associado a outras características bastante curiosas,
preferi discuti-lo em um subcapítulo específico.

Cuidando de um médico doente, sendo um doente médico

"O que os olhos não veem, o coração não sente."

Dr. José era um médico de 50 anos com cento e sessenta quilos e um metro e setenta de
altura, que começou a sentir dor na parte inferior direita do seu abdome. Tomou vários
medicamentos acreditando que a dor passaria. Cogitou a possibilidade de apendicite e incluiu
na lista um antibiótico, conduta que não leva à cura e dificulta ainda mais o diagnóstico dessa
doença. Como piorou muito em poucas horas, resolveu procurar ajuda.

A intensidade da dor chamou a nossa atenção. O paciente suava frio, ficava nauseado e
pálido.

Poderia até ser uma cólica "de rim". Mas, apesar da obesidade dificultar muito, o seu exame
físico não sugeria dor de origem renal. Havia sinais de irritação interna do abdome, mas muito
leves e desproporcionais à sua dor para pensar em apendicite. Ele realizou exames de sangue
e de urina com resultados inconclusivos. Sua ultrassonografia não conseguia visualizar nada
além da camada de gordura.

Uma laparotomia branca lhe traria sérias complicações. Não operá-lo poderia ser pior. Se
corrêssemos, o bicho pegaria, se ficássemos, o bicho comeria.

Laparotomia branca ou não terapêutica: cirurgia que indicamos suspeitando de uma condição
que necessitaria de tratamento cirúrgico obrigatório, mas que acaba não se confirmando
durante o procedimento. Passa então, somente a posteriori, a ser chamada de"não
terapêutica"

Optamos por realizar uma tomografia de abdome, porém a máquina do hospital não
suportaria seu peso e o engenheiro proibiu o exame. Segundo ele, além de o exame não
poder ser finalizado, quebraria a máquina de milhões de dólares por mau uso. Angustiados,
fomos à enfermaria de obesos mórbidos, a fim de perguntar onde realizav as suas tomografias
naquela condição, embora soubéssemos da resposta não faziam.

Falamos com o residente de plantão, um novato que me deixo com algumas dúvidas sobre a
sua resposta.

O paciente era muito educado e simpático; não seria muito agradável revelar-lhe a
possibilidade de o exame vir a ser feito no jóquei. Mas, como ele precisava, ligamos para o
local. O atendente não sabia dizer se lá havia uma tomografia e sugeriu outra opção.

Mas como eu explicaria ao médico que o seu exame poderia ser realizado no zoológico?

- Dr. José, conseguimos! Seu exame será às quatro horas, depois da girafa...

Após muita conversa, conseguimos marcar o seu exame em um hospital privado, cuja
máquina era mais resistente.

Jim
Sendo ele médico, não podia deixar de sugerir algo. Assim, pediu para que não fosse
administrado contraste na veia durante a tomografia. Sendo portador de pressão alta e
diabetes, ele estava com medo de vir a sofrer complicações renais em decorrência da sua
toxicidade. Apesar de acreditarmos que naquela situação os benefícios suplantariam os riscos,
seu pensamento era lógico e acabamos cedendo contra a nossa vontade. Por azar, justo no
caso dele, o diagnóstico só teria sido possível com o uso do contraste. Sem este, o resultado
foi normal e não nos ajudou.

Como os sintomas persistiram, sugerimos uma laparoscopia exploradora. Introduziríamos, sob


anestesia, uma microcâmera em seu umbigo para enxergar por dentro do abdome. Assim foi
feito. Encontramos um segmento intestinal infartado próximo ao apêndice. Abordamos a
doença por uma pequena incisão orientada pela câmera. Retiramos o pedaço comprometido
e costuramos os dois cotos remanescentes. Por mais que pesquisássemos, não encontramos
nenhuma explicação para o infarto. A causa da doença permaneceu misteriosa.

Ele evoluiu no pós-operatório com um rompimento da costura na parede abdominal e teve


que ser abordado novamente. Sofreu uma série de complicações, mas sobreviveu.

Esta é apenas uma das histórias que envolvem o médico na condição de paciente (ou como
brincamos, com fator CRM positivo), mas ilustra bem as suas características.

Para começar, ele costuma ser um tigre. Essa é a nossa gíria para imprudente, inconsequente
e desleixado com o próprio tratamento.

Nos CRM positivos, parece que a lei das probabilidades se altera. Os sintomas típicos de uma
apendicite num médico, provavelmente, corresponderão a um infarto intestinal com
manifestações atípicas.

Como se não bastasse, o médico é um dos pacientes mais difíceis de lidar. Antes de ser
doutor, é pessoa, marido ou filho. Dessa forma, é natural que em situações de estresse por
doença própria ou de seus familiares aja como marido ou filho e não como profissional. O
maior problema ocorre quando ele não se dá conta dessa mudança.

Passa a funcionar emocionalmente, mas, inteligente que é, racionaliza seus sentimentos.


Muitas vezes cita dados técnicos de trabalhos científicos para explicar e nos induzir a
concordar com suas condutas e diagnóstico. Mas o raciocínio muitas vezes está distorcido e ele
nil percebe.

Sob efeito desse raciocínio deformado e camuflado, tornam-se frequentes as suas solicitações
por mudanças nas condutas ou por exames inúteis, apenas por "desencargo de consciência".
Como tem um conhecimento muito maior do que o leigo sobre eventuais complicações ou
confusões diagnósticas, fica fosforilando sobre milhares de consequências negativas
esdrúxulas que poderiam ocorrer na condução do seu tratamento. Prolonga, assim, o caminho
da investigação e do tratamento, pois exames desnecessários são, na maioria das vezes,
desnecessários!

Os pacientes leigos têm uma grande vantagem em relação aos pacientes médicos: ainda
preferem nos ver como um supermédico: infalível, sábio, adivinho.

Essa ignorância (no bom sentido) é muito tranquilizadora, mas o colega sabe que isso não é
verdade. O seu médico pode errar. O tratamento pode complicar. Pode vir a morrer.

Tudo isso aumenta a sua angústia, que passa a ser multiplicada quando ele se recorda de que,
para piorar, também acredita na superstição dos doentes CRM+.

É claro que se trata de uma caricatura, mas todos nós vivemos isso principalmente do lado do
médico e não do paciente.

Quando tomamos ciência da existência de alguma doença, passamos a temê-la. Seja após o
conhecimento em alguma aula ou descobrindo algum conhecido que a desenvolveu. Somos
humanos, portanto isso é natural. O problema ocorre quando passamos a senti-la. Sensações
normais passam a ser, por nós próprios, distorcidas e interpretadas como sintomas "leves" das
doenças que tememos. Mesmo eu, durante a minha formação, várias vezes somatizei algum
sintoma que os professores explicavam. Lembro-me de ter achado a minha urina muito
espumosa após as aulas de fisiologia renal. Seria uma perda de proteínas anormal na urina? E
aquele desconforto no tórax depois da aula de tumores da parede torácica? É claro que não
eram nada!

Esse fenômeno é facilmente verificável quando alguma personalidade famosa fica doente.
Quando um cantor sertanejo teve uma dor torácica e descobriu um tumor de mediastino, ou
quando uma artista de televisão declarou seu câncer no ânus, houve uma enxurrada em
nossos consultórios. Todos os pacientes estavam preocupados com "sintomas iniciais" que
teriam sentido e que, "certamente", relacionavam-se com tais doenças. Queriam fazer, de
qualquer forma, algum exame para atestar que não possuíam essas doenças.

Os médicos também não escapam desse fenômeno que ocorre com os leigos. Num momento
qualquer e a qualquer momento, também poderemos ficar doentes e, apesar de ninguém
gostar disso, pelo menos tem o seu lado bom.

Sentir uma ardência para urinar é diferente de imaginar uma ardência para urinar. A doença
na própria pele é uma das formas mais didáticas de se aprender. Um professor sempre dizia
que os alunos, ao se formarem, deviam ter uma de suas pernas quebradas para saberem o
que é a dor (não era o Dr. Mengele quem dizia isso).

Graças a Deus, não adquiri amplos conhecimentos advindos de experiências em ficar doente,
mas nunca me esquecerei de quando me autodiagnostiquei, equivocadamente, um tumor de
testículo.

Após várias palpadas, confirmei e reconfirmei a existência do tumorzinho. Como médico, sabia
que, independentemente do diagnóstico, nada mudaria nas oito horas seguintes. Poderia
conversar pela manhã com um amigo urologista e fui dormir.

Mas quem disse que eu consegui adormecer? Após muito rolar na cama, prá lá e pra cá,
peguei no sono. Ao acordar, a primeira coisa que fiz foi palpar o testículo; é claro que o nódulo
ainda estava lá.

Encontrei-me com o urologista. Após um breve questionário e exame físico direcionados,


disse tratar-se de um cisto. Um pouco mais endurecido que o normal, mas um simples e
inofensivo cisto.

Naquele instante, ao retirar o peso das minhas costas, meu amigo não parecia o meu amigo e,
sim, uma espécie de entidade divina, superior. Estava mais alto e brilhante do que o normal.
Agradeci pela gentileza e também pelo diagnóstico, como se ele pudesse ter escolhido a
minha patologia, e fui embora. Com esse acontecimento, pude entender um pouco melhor
algumas visões do paciente.
Seja exagerando ou minimizando os nossos sintomas, algumas vezes fazemos
autodiagnósticos. Mas, pior do que isso, é não perceber quando estamos doentes. Uma de
nossas características mentais mais importantes é a autocrítica. Quando a perdemos,
perdemos o discernimento.

O microcirurgião, por exemplo, não poderá se dar ao luxo de continuar reimplantando dedos
quando o seu mal de Parkinson se tornar incontrolável. Se ele não perceber isso, quem irá
alertá-lo?

Eu frequentava uma reunião do departamento de cirurgia cujo objetivo era discutir os casos
clínicos que não haviam evoluído satisfatoriamente. Conhecia todos os médicos participantes,
menos um novato que começou a acompanhar nossas conferências.

Embora aparentasse ter uns 50 anos, possuía uma aparência frágil em razão de sua
bengalinha que sempre o acompanhava. Era muito educado, mas extremamente reservado.
Dificilmente conversava e nunca se manifestou publicamente, seja para emitir alguma dúvida,
alguma opinião ou para questionar alguma conduta. Assíduo, sentava toda

reunião sozinho e no mesmo local. Eu sabia apenas se tratar de um cirurgião plástico com
louvável interesse em cirurgia de emergência.

Era final de dezembro quando o professor do departamento anunciou, ao término da reunião,


uma festa de encerramento das atividades anuais. Todos estavam convidados. Agradeceu ao
corpo clínico e deu o endereço do local da comemoração, que seria na casa de um dos
médicos do serviço.

Fomos à festa. Lá estava o misterioso cirurgião plástico, que passaria despercebido se não
fosse por um interessante acontecimento.

Como a casa era muito grande, havia um canil com dois rotweillers que, por serem muito
ferozes, ficariam presos durante o encontro. Um grupinho observava o comportamento dos
cães quando alguém comentou sobre sua agressividade. Nesse momento, o senhor da
bengalinha se manifestou:
- São apenas animais. Basta saber lidar com eles. Deixe-me entrar no canil e mostrarei como
acalmá-los.

Todos se entreolharam incrédulos. Conhecendo suas feras, o dono da festa não permitiu a
arriscada façanha.

Cinco dias depois fomos novamente a uma reunião, quando notamos que o cirurgião plástico
não estava presente. Começamos a nos perguntar sobre o motivo da sua inesperada ausência
e um dos colegas cochichou:

- Vocês não leram os jornais, não assistiram ao noticiário? Ele está preso!

- Preso? - É! Dizem que matou e estripou uma de suas pacientes no próprio consultório!

Como aquela pessoa de aparência tão inocente, que sentava todos os dias ao nosso lado
naquele fórum de mestres e doutores, seria capaz de tamanha barbaridade?

Ficamos boquiabertos até que um dos médicos, sempre muito espirituoso, deu uma bronca no
colega que havia sido o anfitrião da festa:

-Tá vendo? Você devia tê-lo deixado entrar no canil. Teria evitado esse homicídio!

Ao que o outro respondeu: -Você está louco?! Ele também teria matado os meus
cachorrinhos...

Pronto-socorro

"O pronto-socorro é uma organização desorganizada que desorganiza qualquer organização."

Apesar de sempre parecer uma bagunça, o pronto-socorro era a nossa melhor escola. Um
local onde os professores nos cobravam o seguimento de protocolos teóricos rígidos de
tratamento e diagnóstico (o que certamente nos torna muito mais eficazes). Mas a infinidade
de quadros clínicos, com apresentações das mais malucas possíveis, nos forçava a fugir de
regras e a raciocinar. Um cenário para se viver descobertas, gambiarras e situações inusitadas,
pois era extremamente dinâmico e imprevisível. Isso exigia dos seus funcionários bastante
praticidade e maleabilidade, aliadas a uma grande capacidade de decisão e resolução. Dentro
da medicina, acredito que a cirurgia de urgência seja o segmento que mais se encaixa nessas
características. Em outras palavras, se você tiver um quadro cirúrgico de urgência, fuja de um
cirurgião que lhe pareça muito burocrático. Pode se tratar de uma questão de sobrevivência.

As características dos pronto-socorros mudam de hospital para hospital, mas


independentemente do tipo de instituição, a correria é sempre a mesma. Quando vejo uma
daquelas placas de "não buzine" na frente do hospital, reflito sobre a sua inutilidade, uma vez
que a maioria da bagunça - gritaria, buzinas, barulhos e alarmes - é intrínseca ao PS, 1 às UTIs
e aos seus aparelhos.

Mas é claro que existem diferenças entre os diversos tipos de PS. Pacientes, doenças, queixas
e tratamentos são diferentes.

O movimento cai durante o carnaval num hospital particular. Ele fica vazio, pois todos foram
viajar, restando as queixas psicossomáticas dos solitários e algumas urgências. No hospital
público, o movimento pode aumentar em razão do álcool e dos acidentes.

As doenças raras aparecem mais nos hospitais públicos, mas há problemas bem incomuns que
só serão vistos nos privados. Explicarei melhor.

O único caso de doença da vaca louca de que eu já vi foi num hospital público. Mas, por outro
lado, foi no privado que um colega meu atendeu uma família extremamente angustiada
trazendo o seu filho ao serviço de urgência, por este ter se declarado homossexual!? Ou,
ainda, um jovem que esperou mais de uma hora para passar por uma consulta de urgência,
apenas querendo a ajuda do médico para solucionar uma dúvida no seu trabalho de fisiologia
da Faculdade de Medicina!

A geografia e a localização também interferem. Um hospital de periferia atende a tentativas


de homicídio, o central, a acidentados de moto, e assim por diante.
A minha maior experiência naquela época era do PS de um hospital-escola público. Penso que
este seja o ambiente hospitalar mais dinâmico existente. Talvez os melhores exemplos do que
vivi no hospital sejam os atendimentos de diversas catástrofes: queda de um avião de
passageiros, desabamento do teto de uma igreja, do teto de um supermercado, isso sem
contar a explosão de um shopping center. Toda a equipe era mobilizada para o atendimento
da ocorrência. O PS era evacuado, acionava-se o sistema de triagem das vítimas,
estabelecíamos pontos diferentes para o tratamento de pacientes com gravidades crescentes.
Fechávamos o movimento das salas do centro cirúrgico e avisávamos os bombeiros para
direcionar pacientes menos graves para outros hospitais. Tudo isso resultava em uma bela
bagunça.

Apesar disso, na primeira tragédia citada antes, infelizmente não tínhamos a quem socorrer,
pois morreram todos na queda do avião. No caso da igreja, tivemos vítimas, mas não muito
graves. Difícil mesmo foi lidar com aquele monte de gente passando mal ao lado de outros
tantos orando em voz alta para que se recuperassem.

Na do shopping, como se não bastassem suas vitimas, chegaram ao mesmo tempo mais dois
baleados. Certa bagunça administrada se estabeleceu. Não é raro que tenhamos que lidar com
essas situações. Neste dia, um dos médicos assistentes subiu em cima de um banquinho da
sala de emergência e, imitando uma free speech area com um cone de papel na boca, gritava:

- Dr. Luís, entube o paciente 1. Dr. Alberto, drene o tórax do lado direito do paciente 2. Dr.
Flávio, disseque logo a veia do paciente e peça sangue O negativo. Dr. Cláudio, comprima esta
lesão com mais força...

Parecia um diretor filmando alguma cena de batalha. Conseguia priorizar o atendimento das
vítimas ao mesmo tempo que supervisionava toda a cena.

Já que falei em cinema, às vezes precisamos fazer a "escolha de Sofia" às avessas - romance de
William Styron que narra o dilema de uma mãe judia forçada por um oficial nazista da SS a
escolher entre um dos seus dois filhos para ser morto. Na catástrofe, em que os recursos são
limitados, paradoxalmente, as prioridades se invertem. O paciente em parada cardíaca deixa
de ser uma emergência absoluta, para virar apenas mais um óbito. É uma"crueldade"
necessária para salvar mais vidas.

Tentando minimizar os erros, além de os pacientes serem etiquetados


de acordo com a sua gravidade, escrevíamos seus nomes, suas lesões e seus dados vitais neles
mesmos ou em seus lençóis. Não seria muito difícil tratar a coisa errada na pessoa errada na
linha de frente daquela guerra. Por isso, tão importante quanto o estetoscópio passou a ser a
caneta esferográfica.

Assim treinados a atender a desastres, nunca imaginamos que teríamos de enfrentar uma
catástrofe ocorrida dentro do próprio hospital.

Era véspera de Natal, época em que tentamos a todo o custo passar os plantões. Mas como eu
não havia conseguido, excluindo, talvez, um muçulmano ou budista, acho que era o único
médico não judeu no hospital.

Estava operando um baleado nessa noite atípica para essa forma de agressão, quando a luz do
foco cirúrgico se apagou. Antes que pudéssemos praguejar contra a manutenção, começou a
sair uma fumaça preta pelo ar-condicionado e extinguiram-se as luzes da sala e as de
emergência. Instalou-se de forma súbita um silêncio absoluto, possibilitando que eu
percebesse a infinidade de barulhos que escutamos normalmente sem perceber. Foi como se
várias geladeiras parassem de refrigerar ao mesmo tempo.

O centro cirúrgico não possui janelas e deu-se um completo breu, perfumado por plástico
queimado. Aquilo era inédito, pois, mesmo no "apagão", o gerador deu conta do recado muito
rapidamente. Dessa vez, além de a luz não voltar, caiu a pressão da rede de oxigênio, fazendo
com que todos os aparelhos de respiração travassem. Algo muito estranho acontecia e eu
ainda não sabia o que era.

O paciente estava com a barriga aberta sangrando de vários pontos e sem respirar, mas não
conseguíamos enxergar nem as próprias mãos. Foi com a ajuda da luz emitida pelos teclados
de alguns celulares que começamos a achar os instrumentos mínimos necessários para tentar
salvá-lo. Enquanto o anestesista pegou o fole de respiração manual e reiniciou a ventilação,
prendemos pinças hemostáticas em tudo o que era foco de sangramento, enfiamos
compressas na barriga e a fechamos com apenas uma presilha cirúrgica.

Nessa hora ouvimos alguém gritando: "Fogo!!!". Era só o que faltava! O hospital em chamas?!
Com a iluminação dos celulares e de um laringoscópio, mudamos o paciente para uma maca e
começamos a empurrá-lo para fora do centro cirúrgico. A situação ficou realmente perigosa
quando percebemos que a luz dos celulares não conseguia transpor a fumaça e iluminar o
mínimo necessário. Os olhos ardiam e respirar fundo era impossível, sem desencadear um
acesso de tosse que se retroalimentava. Depois de colidir a maca e nossas cabeças algumas
vezes contra a parede, conseguimos chegar à luz dos corredores da outra ala.

Lembramos que havia várias enfermarias lotadas e começamos a evacuá-las. Se não é fácil
esvaziar um cinema, imagine um hospital com vários pacientes confusos, enfraquecidos,
amputados, conectados a soros e aparelhos. Os doentes de todos os locais foram
encaminhados ao saguão do pronto-socorro, o que multiplicou instantaneamente o trabalho
das enfermeiras. Depois de todo esse esforço, nos ocorreu que estávamos operando alguém.
Mas para onde teria sido levado o baleado?

Precisamos localizar o anestesista pelas alas do hospital para depois atravessar a rua
empurrando o paciente com a barriga aberta, suplicar à enfermeira do outro bloco que nos
deixasse entrar no seu centro cirúrgico e terminar a cirurgia. Não foi nada fácil, mas o
paciente sobreviveu e não desenvolveu nenhuma infecção!

Embora tenha espalhado muita fuligem e gases pelo sistema de ar-condicionado, o incêndio
queimou apenas uma pequena parte do hospital. Assim que os bombeiros liberaram os
elevadores e as enfermarias, os pacientes iriam voltar para os seus andares. Mas quais
andares? Ninguém sabia de onde tinham vindo e precisávamos devolvê-los logo, pois havia,
em algum lugar, prescrições a serem cumpridas.

Criamos, então, uma junta médica muito esquisita, cujo objetivo era descobrir a origem dos
pacientes. Com um rápido questionamento e exame físico, tentávamos chegar a um
diagnóstico de endereço:

- Este deve estar com um tumor de pâncreas, vai para a enfermaria das vias biliares.

- Este pode ser um aneurisma de aorta, encaminhe para a da vascular. - Não tenho a mínima
ideia. Deve ser da reumatologia... Agora entendo a existência das pulseirinhas de
identificação, mesmo porque não é preciso nenhuma catástrofe para ocorrer uma troca de
pacientes.

Você deve se recordar do paciente que seria avaliado pelo otorrinolaringologista num posto
de saúde e acabou sendo vasectomizado:
-'Eu chamei Aldemar. Valdemar entrou, o médico confirmou o nome dele e começou a
cirurgia', explicou a atendente Já para o paciente, não havia nada de anormal. "Eu achei que a
dor de ouvido tinha virado caxumba e tinha descido e não perguntei mais nada

Vivi outros tipos de bagunça no PS que não dependiam muito do número, mas do tipo de
pacientes. Uma delas ocorreu no dia em que houve aquela famosa briga em um estádio de
futebol. De cada lado do corredor havia torcedores dos dois times, se xingando e com cortes
no rosto e na cabeça. Todos tinham tomado pauladas. Ao questionar o que teria ocorrido, as
explicações variavam apenas de time, filho e prostituta. Não foi fácil conter os ânimos.

Se os jogos de futebol movimentam o PS de cirurgia, as paradas do orgulho gay costumam


lotar o de clínica médica. A regra era chegar todo mundo alcoolizado ao cair da tarde. Devem
ter servido algum drinque de vinho com morango que, graças aos vômitos, empesteou o PS.
Todo tipo de tribo homossexual ou simpatizante estava ali representada. Não deixava de ser
engraçado ver uma drag queen abanando um travesti, uma fortona tatuada amparando um
bigodudo delicado, e assim por diante. Todos muito extrovertidos no meio de velhinhos
doentes e horrorizados.

Como disse um médico, e você deve ter percebido, "basta um caderninho e alguns dias de
pronto-socorro para que possamos escrever um livro". Assim sendo, dedicarei os próximos
subcapítulos aos clientes habituais do PS e às situações inusitadas que vivenciamos
continuamente.

*5. TV Globo/MG.

Cliente habitual: o motobói

"Motobói - espécie de contínuo (de banco, empresa comercial, farmácia, pizzaria etc.) que faz
entregas rápidas de motocicleta."

Houniss

Cada região do País possui um padrão diferente de traumatismos.


Os habitantes da Amazônia, na sua maioria, têm cabelos lisos e compridos. Seu principal meio
de transporte é fluvial. Muitas vezes o motor de popa de seus barquinhos não possui aquela
tampa de proteção. Assim, houve vários casos de pessoas que foram escalpeladas por terem
mechas de cabelos presas nas engrenagens do motor.

No Pará, dizem que é comum atender vítimas de queda do açaizeiro. No litoral do Nordeste é
relativamente frequente o trauma craniano por queda de coco na cabeça da vítima.

No hospital, apesar de já ter atendido até uma vítima de queda de jaca na cabeça, era muito
mais usual a ocorrência de queda da moto ou da laje.

Embora seja um tipo de acidente corriqueiro na periferia, a queda da laje perde de longe para
a de motobói nos hospitais centrais. Assim, lhes dedicarei alguns comentários, começando por
um paradoxo.

Quando solicitamos uma pizza e ela demora a chegar, esfria e acaba com o nosso prazer de
comê-la quentinha. Entretanto, quanto mais rápido ela chegar, maiores serão as chances de o
entregador cometer maluquices no trânsito e recebermos uma "meia oito queijos e meia sem
recheio". Também detestamos isso.

Os motobóis nos amedrontam no trânsito por uma exigência indireta de nós mesmos. Esses
personagens são cada vez mais frequentes em nossas vidas, exercendo uma ampla gama de
serviços (e, às vezes, desserviços) por nós solicitados. Embora a sua presença seja essencial
nas grandes cidades, poderia não ser nos hospitais.

Há uns quinze ou vinte anos era muito comum atender um acidentado que fosse trazido ao PS
no fosquinha do vizinho. Hoje, esses pacientes chegam pelo resgate, como dizia um colega,
devidamente "embalados para presente". Todos já se acostumaram com aquela cena da
vítima presa a uma prancha rígida com tirantes, usando colar cervical, ataduras e enrolada no
lençol térmico prateados.

Essa mudança de perfil no atendimento foi fundamental para aumentar as chances de


sobrevivência após algum trauma mais grave. Por outro lado, o número de acidentes
automobilísticos se multiplicou em razão, entre outros fatores, dos motobóis. As estatísticas a
seu respeito são sempre impressionantes:
- Há um estudo sobre os acidentes de motocicleta ocorridos apenas no município de São
Paulo. Ele mostra um total de 4.480 vítimas, das quais 166 faleceram. Sabe quando?

Apenas durante o ano de 1982!6 - Segundo outro estudo regional, em 1993 houve 23.300
acidentes de moto.'

Sabe onde? Somente nos arredores de Goiânia! As estatísticas do hospital seguiam a mesma
tendência e eu não poderia deixar de ressaltar o aspecto mais curioso da pesquisa que ainda
realizo, pessoalmente, com esses pacientes:

- Todo dia morre algum motociclista e se quebram outros tantos, mas sempre, sempre a culpa
é de uma mulher que os fechou!

Independentemente do tipo de acidente, a culpa nunca é deles. Outra pergunta que faço é se,
apesar de terem sido fechados pela tal mulher hipotética, estavam dirigindo muito rápido ou
de forma imprudente.

A resposta é uma negativa em 100%. Fantástico! Tudo indica que, ao contrário do que eu
imaginava, os acidentes só ocorrem com motobóis prudentes e vagarosos em razão de mulher
barbeira?

Talvez apenas com o simples reconhecimento, ainda que parcial, de sua culpa, o número de
acidentes com motobóis parasse de aumentar. Infelizmente, parece que isso é mais difícil do
que eliminar a fictícia mulher-navalha. Enquanto isso, meu filho vai acabar aprendendo que
andar de moto entre duas faixas é normal. Dirigir com a buzina acionada, perfeitamente
coerente. Arrancar retrovisores? Sem maiores problemas, desde que transitando numa tal de
faixa cidadã...

*6. KoizuMi, M. S. Acidentes de motocicleta no município de São Paulo, SP (Brasil): 1.


Caracterização do acidente e da vítima. Revista Saúde Pública 1985;19:475-489.

*7. Site do corpo de bombeiros.


Os motobóis queixam-se de que muitos motoristas não os respeitam. Acredito nisso, mas
considero ainda maior a falta de respeito por parte deles. Boa parte não dirige de forma que
considero prudente nem prima pela educação. É óbvio que não podemos generalizar, mas
existe uma pressão constante para que se tornem assim. Afinal, queremos a pizza cada vez
mais rápido. Para que sejam eficientes e nutram as nossas exigentes expectativas enquanto
consumidores de seus produtos e serviços, precisam ser audazes e velozes. Quanto maior for
a velocidade menor será a sua margem de segurança.

Curiosamente, uma das formas de se vangloriar de sua audácia é a comparação entre eles de
quantas vezes caíram ou precisaram ser atendidos em algum PS.

- Eu tenho um pino aqui do primeiro acidente e dois ali do segundo e terceiro...

- E eu que tenho um parafuso aqui e outro acolá... Bom, o que eles não falam (ou, pelo menos,
do que não se vangloriam) é de quantas vezes sofreram toque retal ou passagens de sondas
desconfortáveis; passos obrigatórios no atendimento de acidentados graves. De quantos dias
se afastaram de seus afazeres, de quantas pessoas machucaram e de quanto pagamos com o
seu evitável atendimento.

Os acidentes com motobóis, além das lesões gravíssimas que causam, atingem uma parcela da
população bem específica. Você já viu algum motoaged, ou motoold? Eles são jovens
trabalhadores que morrem aos 20, 30 anos de idade. E mesmo que não morram, correm o
risco de ficar com sequelas nessa idade precoce. Representam um enorme ônus à saúde
pública.

Cliente habitual: o bêbado

"O fígado faz muito mal à bebida."

APPARÍCIO E DE B. TORELLY, O BARÃO DE ITARARÉ

Quando analisamos os gastos com saúde, também devemos considerar o álcool, pois os seus
usuários são personagem assíduos nos serviços de emergência. O motivo da procura por
atendimento médico inclui um amplo leque de problemas. V o desde as intoxicações agudas e
os acidentados até dermatite, hepatite, pancreatite e abstinência, só para começar.
Independentemente da manifestação clínica, os pacientes serão atendidos como qualquer
outra pessoa. Entretanto, existe um subgrupo que pode nos causar muita dor de cabeça: o
dos bêbados impertinentes.

O bêbado impertinente é o que chega ao PS com alguma queixa não urgente, mas que, a seu
ver, requer tratamento emergencial e, como se não bastasse, preferencial. Não consegue
andar direito ou articular palavras, mas grita, xinga, desrespeita a enfermagem e cria caso.

Atendê-lo é um desafio, uma vez que dificilmente se estabelecerá uma comunicação


adequada. Esse personagem pode ser um prato cheio para o residente naquela fase de
estresse e grande cansaço, como pude comprovar ao ouvir algumas histórias antiéticas,
porém engraçadas...

Ouvi relatos de médicos que teriam fingido tirar uma radiografia apenas acendendo e
apagando a luz de um megatoscópio, e simulado uma ultrassonografia passando o feixe de
uma ponteira a laser por alguma parte do corpo. Mas a situação mais inusitada parece ter
ocorrido com outro senhor que insistia em medir a sua pressão de dentro da cabeça.

O paciente teria lido em alguma revista que o álcool pode elevar esse tipo de pressão. Como
tinha bebido muito, chegou à conclusão de que seria necessário aferi-la. Mais uma vez
conturbando o ambiente, acabou virando prioridade.

As causas de hipertensão intracraniana são bem específicas, assim como as indicações para
medi-la. Para tal, colocamos um cateter dentro do cérebro através de neurocirurgia. Nenhum
médico deste mundo faria uma punção encefálica só porque o paciente quer!

Ele estava nitidamente alcoolizado, mas não apresentava nenhuma alteração sugestiva de
hipertensão intracraniana. Entretanto, rejeitou "um não" como resposta. Como "sabia dos
perigos" e queria descartá-los, rechaçou todas as explicações do médico.

Sem vislumbrar outra saída, o colega calmamente pegou o esfigmomanômetro (aparelho para
aferir pressão arterial) e o ajustou ao redor da cabeça do paciente como se fosse um turbante.
Encostou o estetoscópio no pescoço do bêbado e insuflou lentamente o aparelho, sob o olhar
incrédulo dos que aguardavam por atendimento.
Esvaziou o manguito e, resmungando as palavras "doze por oito", dispensou o cliente.

É claro que esse procedimento não permite a medida de nada. Mas foi o jeito de acalmar a
fera e, sem maiores traumas, resolver o problema.

O alcoolista (antigo alcoólatra) costuma fazer uso diário do etanol. Tremedeiras e náuseas
surgem quando o organismo acusa seu baixo nível na circulação. Assim, não é difícil flagrá-lo
pela manhã tomando uma dose de destilados para aliviar o seu mal-estar. Uma pausa
prolongada na ingestão de bebidas poderia levá-los a uma grave síndrome de abstinência.
Nesta, além dos sintomas descritos, somam-se vários outros, inclusive alucinações. Quando
ocorrem, enriquecendo ainda mais esse quadro clínico, caracteriza-se o delirium tremens.

Caso este se manifestasse, por falta de álcool, o tratamento mais "lógico" seria repô-lo! Se os
sintomas melhoram ao ingerir vodca, o desodorante do vizinho ou as bisnagas de álcool a 70%
da enfermaria, por que não o fariam com uma poção alcoólica específica?

Nesse intuito existia, extraoficialmente, a poção de Todd. Sua formulação varia de acordo com
a criatividade das nutricionistas e eu desconheço o motivo desse nome. Alguns dizem que por
ser uma mistura de pinga com achocolatado, outros por ter sido criada pelo lendário
psiquiatra, "sir Todd". Independentemente da razão, hoje sabemos que oferecer álcool não é
o tratamento mais adequado, e, sim, o uso de sedativos específicos.

Um paciente sendo tratado por abstinência no pronto-socorro entrou em delirio. Como ele
estava muito agitado, as enfermeiras o "restringiram ao leito" - expressão chique utilizada
pela enfermagem para designar "amarrar o indivíduo na cama com os próprios lençóis".

Graças às medicações, a sua agitação foi diminuindo, mas ainda estava confuso. Antes gritava
e esperneava; agora estava melhor: pedia, educadamente, a todos que passavam, um facão
para se soltar...

O professor de psiquiatria que estava dando uma aula prática para os seus alunos resolveu
aproveitar esse caso para discussão.

Antes que pudessem se aproximar do paciente, este voltou a se agitar e começou a gritar:
- Barata! Barata! Tirem esta barata de mim!

O psiquiatra ficou empolgado com o momento "oportuno" daquele sintoma. Poderia


aproveitar o evento para discutir sobre as alucinações no delirium tremens.

Começou a discorrer sobre as alucinações liliputianas (anões e coisas pequenas) até que o
desconforto do paciente passou a incomodá-lo. Como não parava de gritar, ele pediu à
enfermagem que preparasse mais uma dose do sedativo. O paciente continuou berrando até
que o auxiliar de enfermagem chegou com a medicação e viu a barata que, de fato, passeava
sobre o paciente.

Bastou espanar a alucinação liliputiana do seu peito que o delirium voltou a melhorar sem
fármaco algum...

Cliente habitual: o bandido

"Antes só que mal acompanhado."

Não poderia deixar de discorrer sobre os bandidos, mas antes vale a pena lembrar uma
historinha.

Uma moça foi presa por matar seu bebê com cocaína na mamadeira. O caso foi amplamente
veiculado na mídia, gerando muita revolta fora e dentro da cadeia, onde espancaram a
"assassina". No final se comprovou que o pó não era cocaína e que a mãe tinha sido presa sob
uma acusação inverídica, alardeada pela mídia indignada. A mídia se retratou de forma
discreta, mas nada apagaria as lembranças da injustiça, do espancamento e de uma caneta
sendo enfiada em sua orelha até perfurar o tímpano.

Guardo esse exemplo comigo para tentar não prejulgar as pessoas. Mas mesmo que o faça, os
bandidos e mocinhos serão atendidos da mesma forma, o que às vezes não é fácil.
Um tio meu havia sido assaltado, com ameaça de estupro de sua filha e todos os outros
comemorativos. No mesmo dia, tive de avaliar um assaltante de residências, baleado,
capturado pela polícia. Confesso que atendê-lo não seria nada fácil para mim e pedi para que
outro médico o fizesse. Mas isso foi uma exceção. Em geral, há respeito e empatia, mas às
vezes também existe o medo.

Há muitos anos, um médico operou um famoso bandido que havia sido baleado pela polícia.
Depois da intervenção cirúrgica, ele ficou algemado à maca.

Ainda no pós-operatório imediato, um policial da escolta teria perguntado ao cirurgião na


frente do paciente:

- Doutor, quando poderei dar uma surra nesse safado? - Mas por que bater no coitado? -
Coitado, doutor? Ele já matou 32 pessoas! Ao que o bandido, ainda meio sedado, apontou
para os dois e lhes disse:

-Vocês aí: 33 e 34... Na maioria das vezes, os bandidos são muito bem tratados. Mas nem
sempre é assim. Ouvi relatos de médicos que teriam judiado de bandidos ou até pior. Diziam
que um anestesista teria matado um bandido por submetê-lo a uma cirurgia apenas com
curare, após reconhecê-lo como o foragido estuprador de sua esposa. Mas pelo que sei, não
passavam de lendas. Mesmo sentindo uma dorzinha no estômago, não deixamos de seguir o
juramento de Hipócrates. E se já não é fácil segurar nossa vontade, às vezes podia ser ainda
mais difícil segurar o ímpeto de alguns policiais dentro da sala de emergência. Entretanto,
nunca vi um policial agredindo um paciente. O máximo que ouvi foram histórias de sugestões
maldosas...

Um bandido chegou ao PS após uma troca de tiros com a polícia e precisaria ser submetido a
uma cirurgia. Ao entrar na sala de emergência, o policial perguntou ao cirurgião se ele não
poderia "dar um jeitinho" durante a intervenção do rapaz. Indignado, o médico respondeu:

-Vocês não fazem o serviço direito e agora querem que eu resolva o problema?

Esse moço foi operado e no mesmo dia voltou para o pronto-socorro, onde se recuperaria da
cirurgia, algemado e escoltado pelo mesmo policial.
Poucas horas depois, o bandido começou a ficar pálido, ofegante e sofreu uma parada
cardíaca. O militar não sabia o que fazer e começou a procurar uma enfermeira. Quando
chamou, já era tarde. Frustrado com a morte inesperada do paciente, o cirurgião voltou-se ao
policial'. e perguntou:

- Puxa vida, você não ouviu os alarmes? Por que não ligou o oxigênio ou nos chamou
prontamente?

- Eu? Vocês não fazem o serviço direito e agora querem que eu resolva o problema?

Dizem que, em tempos passados, após balear um bandido, a polícia passeava com ele por
toda cidade para depois chegar ao PS, quando a chance de salvá-lo seria mínima. Isso quando
o ladrão não morria "debatendo-se sozinho", como dizem que faleceu o sequestrador do
ônibus, ou sofria uma "recidiva de FAF" (ferimento por arma de fogo): o paciente chegava com
um tiro e era salvo pelos médicos. Assim que saía do hospital era imediatamente readmitido
com outro tiro, dessa vez letal.

Lidar com bandidos internados é uma situação muito complicada para o emergencista. Além
de todos os outros comemorativos, ainda existe o risco de resgate. Assim, quando um bandido
mais "importante" passava a noite no PS, nós o deixávamos propositalmente numa maca bem
próxima à saída...

Os médicos também podem entrar em contato com bandidos fora do hospital, quando a
profissão pode ajudar ou complicar a nossa vida. Já houve vários casos de sequestros de
médicos para que pudessem atender bandidos baleados nas favelas. Mas, se naqueles casos
os médicos foram sequestrados por serem médicos, neste o médico foi liberado por ser
médico. Quando surgiu o sequestro-relâmpago, o colega foi uma das suas primeiras vítimas.
Apesar do clima de violência, ele conseguiu estabelecer um diálogo com os algozes. Relatou
quantas vezes teria ajudado companheiros dos meliantes aliviando suas dores e salvando-os
em situações críticas como facadas, acidentes, maus-tratos e, até, tiros da polícia. Eles ficaram
tão sensibilizados com os seus múltiplos salvamentos que resolveram soltá-lo. Devolveram a
sua carteira, o seu carro e até acenaram na hora de partir.

As suas histórias não eram inverídicas, tanto é que pouco tempo depois ele foi matéria de uma
reportagem publicada numa famosa revista semanal em que a repórter o enaltecia,
destacando as duas mil vidas que ele teria salvado.
Como consequência dessa matéria, os residentes instituíram o "salvavidômetro": um livro em
que registravam um escore com quantas vidas cada residente teria salvado ou deixado de
salvar. O personagem entrevistado encabeçava o placar com 2.001 vidas, seguido de perto
pelo catedrático da disciplina. Na lanterninha, com cinco vidas negativo, estava um dos
residentes mais azarados.

O caso vivido pelo colega mostrou o poder de sua lábia e o amadorismo de alguns bandidos.
Mas eles evoluíram...

O paciente sofreu um ferimento por arma de fogo. Foi levado a um pronto-socorro em estado
grave, onde um cirurgião realizou uma pequena cirurgia para drenar seu tórax. Ele ficou
internado sob os cuidados desse colega por quatro dias. Quando em condições, recebeu alta.
Uma semana após, esse médico foi assaltado naquelas redondezas. Não demorou muito para
que ele reconhecesse o ladrão. Era o paciente do tórax!

-Você não está lembrado? Fui eu que o salvei do tiro no peito há poucos dias! - falou
indignado.

- Puxa vida, é verdade! Obrigado doutor, mas... amigos, amigos, negócios à parte!

E roubou a carteira do médico. Devia ser o típico ladrão profissional. Dificilmente o vemos,
uma vez que não são amadores. Assaltavam com duas camisas para poder mudar a cor de
suas roupas em uma perseguição. Vestiam sunga e sempre estavam em jejum para caso
fossem apanhados e necessitassem de uma cirurgia de urgência. O kit incluía um santinho no
pescoço ou uma oração de corpo fechado no bolso da calça.

Pude atender um deles. Ainda estava com uma dessas orações no que restou do seu jeans. Ele
havia roubado um banco e estava fugindo com seu carro, quando a polícia iniciou uma
perseguição. Para tentar se livrar, o ladrão jogou uma granada na viatura que o perseguia.
Entretanto, não percebeu que o vidro do seu carro estava fechado. A granada ricocheteou na
janela e caiu no seu colo, onde explodiu. O que sobrou dele ainda chegou vivo no hospital,
mas a granada foi mais potente que a sua oração e ele não resistiu.

Cliente habitual: a histérica - DNV


"... Naquelas mulheres, os espaços encontrar-se-iam mais vazios que ordinariamente, o útero
ressecado e mais leve deslocar-se-ia em direção aos vários órgãos. Quando este se lançava
sobre o fígado, causava uma sufocação súbita que interceptava a via respiratória "localizada
no ventre". Nestas ocasiões, os olhos se reviravam, a mulher tornava-se fria e lívida, cerrava
os dentes, salivava abundantemente e assemelhava-se aos epilépticos em crise. O prognóstico
era bom e o ataque sobrevinha em plena saúde. O útero também podia lançar-se sobre outros
órgãos, como o coração, a vesícula etc. A sintomatologia era variada: vômitos, afonia, dores
de cabeça, esfriamento das pernas etc."

HIPÓCRATES (377 A.C.)

O meu plantão de interno estava tranquilo quando, de repente, uma jovem foi trazida à sala
de emergência. Estava cercada por vários parentes assustados e angustiados. Não respondia
aos seus chamados; parecia algo muito sério!

Hoje, apenas de olhar aquela cena, saberia o seu diagnóstico. Afinal, não se desmaia e fica em
pé. Além disso, por mais que tentássemos, ela não permitia que abríssemos os seus olhos a
fim de verificar suas pupilas. Ninguém desacordado faz força para fechar os olhos!

Todo médico já viu essa cena. É o que às vezes chamamos de peripaque, piti, crise histérica ou,
de modo menos depreciativo, distúrbio neurovegetativo (DNV).

A história da histeria na medicina é muito curiosa. Acreditava-se que as crises de DNV


ocorriam apenas nas mulheres. Isso explica a origem do nome "histeria", proveniente do latim
histerus (útero). A teoria era de que, quando subaproveitado, o útero deslocava-se pelo
organismo danificando o funcionamento de outros órgãos. Para colocá-lo em seu devido
lugar, várias manobras poderiam ser tentadas. Dependendo do estado civil, o tratamento
poderia consistir no aumento da quantidade (ou qualidade) das relações sexuais ou num
consolo. Os médicos da antiguidade não eram nem um pouco politicamente corretos! Imagine
o que aconteceria se um médico, na atualidade, ao atender uma jovem desmaiada, pedisse
para que introduzissem algo em sua vagina ou receitasse um coito de oito em oito horas...
Mesmo que esse tratamento venha a funcionar, devemos agradecer aos céus pela evolução
da medicina.

Essa situação é muito frequente no PS, principalmente em jovens do sexo feminino, sempre
causando grande comoção nos leigos, mas sem apresentar agudamente alguma gravidade.
Faz parte de um capítulo da psiquiatria, cujas síndromes têm como fator comum a imitação de
doenças orgânicas. Os pacientes podem simular sintomas de uma patologia que não existe ou
exacerbá-los em caso de doença. Fazem parte desse grupo as manifestações psicossomáticas,
fadiga crônica, síndrome de Münchausen (queixas dramáticas inventadas pelo paciente, por
motivos conscientes ou não), distúrbios conversivos, entre outros.

Apesar da imitação, caracteristicamente, nesses distúrbios os sintomas não respeitam a


anatomia e neurofisiologia, e, sim, o que o paciente inconscientemente acredita ser o seu
funcionamento neurológico. Assim, é comum vermos falsas convulsões, desmaios, tremores e
paralisias; "teatrinhos" ora conscientes, ora inconscientes, que, claramente, desobedecem às
características esperadas nos quadros clínicos que pretendem simular (o que facilita o seu
diagnóstico).

Voltando ao caso da jovem, os parentes contaram que, após uma discussão feia com o seu
namorado, ela teria desmaiado. Já tinham dado sal para a pressão e como não houve
resposta, ofereceram açúcar. Não vendo melhora, trouxeram-na rapidamente para o pronto-
socorro antes que alguém tentasse outro condimento (pimenta talvez curasse esse caso, pois
a aplicação de um "choque" às vezes pode alterar uma crise histérica. Seria a "versão em pó"
do velho tapa na cara da pessoa que grita descontroladamente na novela das oito).

O colega pediu uma maca para deitá-la e a chamou pelo nome, sem resposta. Começou a
verificar os seus sinais vitais, que estavam normais. Levantou um de seus braços para realizar
um teste e, ao soltá-lo, para a surpresa dos familiares, este não respondeu à lei da gravidade.
A moça ficou com o braço duro, estendido no ar. A mesma coisa ocorreu com o outro
membro. Parecia aquela posição de sonâmbulo, mas deitada.

Então ele fez algo totalmente inesperado. Achei que aplicaria um sedativo ou algo assim. Nada
disso! Acalmou os parentes e falou para que todos ouvissem, inclusive a paciente, que a
curaria após alguns movimentos terapêuticos. Com uma postura de segurança e impo sição,
disse que tais movimentos sempre curam 100% desses casos. Fiquei pensando... Eu não me
lembrava de nenhuma manobra tão' milagrosa. Na verdade, não se tratava de nenhum
exercício preestabelecido. Ele, simplesmente, inventou uma massagem nas mãos da paciente
que, lentamente, recuperou-se. Para a alegria e espanto dos acompanhantes, ficou curada! O
colega conversou com a família e explicou o ocorrido. Todos se acalmaram e foram embora
satisfeitos. Fiquei boquiaberto!

É bem verdade que ele, de fato, usou uma manobra: a sugestão. Por meio dela, fez a paciente
acreditar que restabeleceria os seus movimentos e conseguiu. Apesar de parecer enganação, é
um instrumento que pode ser aproveitado sem os efeitos colaterais dos medicamentos. A
sugestão é muito útil em várias situações.

Segundo a ciência, muitos "milagres" que acontecem em cultos podem servir de exemplos do
seu poder e eficácia. Não me surpreende que a dor ou a incapacidade de alguém realmente
desapareçam.

Lembro-me de um hipnotizador que conseguia criar bolhas na pele de um sujeito induzido a


acreditar ter sido queimado! Moleza? Pois saiba que há um estudo científico demonstrando
ser possível matar alguém apenas com a simples sugestão!8 Ele foi realizado na Índia com um
condenado à morte, obviamente quando ainda não existiam as comissões de ética. Explicando
muito resumidamente, fingiram ter cortado os seus punhos e sugeriram que ele estava
perdendo todo o seu sangue. Minutos depois, o paciente morreu!

Esse tipo de paciente ainda é visto de forma equivocada por alguns médicos. Não o
consideram um quadro psiquiátrico, e, sim, "frescurite" aguda. Encarando dessa forma, eles
acabam se aborrecendo: "Por que esta chata veio me atordoar com tais fingimentos no meio
de tanta gente realmente doente?".

*8.YAGwER, N. S. As emoções como causa de morte rápida e súbita. Archives of Neurology and
Psychiatry, 1936;36:875.

A partir dessa visão míope, tratamentos inadequados podem surgir. Médicos se fazendo de
exorcista e mandando sair o capeta, aplicando diuréticos em quem acredita estar catatônico e
forçando-os, dessa forma, a acordar ou a se urinar... Nunca presenciei nenhuma dessas
maldades, mas lembro-me de um caso em que o médico foi sádico, mas muito criativo.

Chegou um paciente desmaiado ao pronto-socorro. Todos os testes clínicos mostraram se


tratar de um DNV. O médico tentou acordar o paciente pela sugestão, sem efeito. Tudo que
tentava para acordá-lo não dava certo. Teve então uma ideia. Teria que deixar o paciente na
sala de atendimento sozinho e, para isso, retirou a maca com o outro doente que estava ao
lado. Enquanto empurrava essa maca, explicou em voz alta para que todos ouvissem:

- Precisamos evacuar esta área imediatamente. Está vazando gás de um dos bicos (toda sala
de emergência possui bicos de ar comprimido, oxigênio e vácuo na parede). Ele é altamente
inflamável!
Logo após retirar a outra maca, sem que o DNV percebesse, abriu a torneira da fonte de ar
comprimido ao máximo. Para quem não conhece, o barulho é um assovio infernal. Começou,
então, a gritar enquanto corria para fora da sala:

-Vai explodir, vai explodir, salve-se quem puder! Nesse momento, mais rápido que o médico,
o paciente desmaiado levantou e saiu correndo. Ao deixar a sala, os médicos o
cumprimentaram:

- Parabéns, você está curado!

Pequeno manual de situações inusitadas

"Mais importante que o conhecimento é a imaginação."

ALBERT EINSTEN

Mesmo que não atendamos nossos "clientes preferenciais", coisas inusitadas continuaram a
aparecer no PS. Algumas podem ser bem esquisitas, mas, num mundo com mais de seis
bilhões de pessoas, elas acabam acontecendo. Caso contrário, não haveria artigos científicos
intitulados "Acute Management of the Zipper-Entrapped Penis"9 ou "Transmission of
Gonorrhea Through an Inflatable Doll"10, por exemplo.

Eu já tinha ouvido muitas histórias estranhas, mas uma, envolvendo bolsinha de colostomia,
me marcou.

Certa paciente, ao contrário do habitual, parecia fazer de tudo no sentido de postergar a


operação para o fechamento da sua colostomia. Mais adiante, viemos a descobrir que, na
verdade, era o seu marido que a impedia de fechar sua bolsinha, pois praticava sexo naquele
orifício!"

Atendemos a vários casos de anéis entalados no dedo, drops no ouvido, camisinha dentro da
traqueia, gilete no esôfago, garfo no estômago, pálpebra presa na braguilha...
Na maioria das vezes, aprendemos com os mais experientes algumas manobras que, talvez,
nem foram descritas. Dificilmente encontraremos discussões específicas desses temas nos
tratados de medicina. Para sanar essa falha, criei este capítulo.

A supercola Ao chegar em casa do trabalho mais cedo do que habitualmente, um homem


ouviu barulhos estranhos em seu quarto. Assustado com a possibilidade de um assalto em
curso, pegou o seu revólver e foi, lentamente, observar o que ocorria. Surpreendeu a sua
esposa com o vizinho, ambos completamente nus e entrelaçados. Tomado pela raiva, teve
um acesso de criatividade. Sob sua mira, ordenou-lhes que aplicassem uma famosa cola;
primeiro na mão da esposa e depois no

*9. NOLAN, J. E; STILLWELL, J.; SANDS JR., J. P. Tratamento agudo do pênis preso no zíper. J
Emerg Med. 1990; 8: 305-7. (Minha esposa vomitou ao ler este parágrafo.)

*10. KLEIST, E.; Moi, H. Transmissão de gonorreia por meio de uma boneca inflável.
Genitourinary Medicine 1993;69:322.

*11. A minha esposa também vomitou ao ler este parágrafo.

pênis do vizinho. Solicitou, então, que ela voltasse a segurar aquilo que havia soltado.

Horas depois o casal entrou num PS, grudados pela paixão. O homem usava camisa e calça,
esta com a braguilha aberta por onde entrava a mão da mulher. Ela também usava calça, mas
não conseguira vestir a blusa totalmente devido ao braço direito, que estava preso ao
homem. Por cima do braço da mulher havia um lençol dobrado. Este acabava servindo mais
para chamar a atenção, do que para esconder qualquer coisa.

A quantidade de cola usada foi enorme. A palma e os dedos da mão estavam completamente
aderidos à pele do pênis. O médico nunca tinha visto nada igual e, infelizmente, teve que fazer
experiências in pênis nobile. O que removeria aquela cola?

Colocou álcool, vaselina, éter, benzina, acetona, até que saiu a cola. Assim, se você der o azar
de ser "o vizinho", não vá ao pronto-socorro. Saiba que o mesmo fabricante das supercolas
também fabrica os superdescolantes.
A rodinha do carrinho de rolimã Um rapaz criativo resolveu se masturbar com um rolimã (um
daqueles rolamentos de aço com bolinhas, utilizados como rodinhas nos carrinhos). Introduziu
o seu pênis dentro do orifício central do rolamento de aço para que, com a movimentação
deste, pudesse simular um coito. Ao término de sua diversão percebeu que não conseguia
mais retirar seu falo de dentro do rolamento. Muito angustiado, procurou o pronto-socorro.

Teria de passar inicialmente pela triagem médica. Estava esperando num saguão com vários
pacientes, quando ouviu o seu nome. Dirigiu-se para o balcão conjunto, onde três médicos de
especialidades diferentes atendiam, de pé, três indivíduos ao mesmo tempo. Ombro a ombro
com os outros pacientes ouviu:

- Seu José, qual o seu problema? - Estou com dor na virilha - disse quase sussurrando. - O
quê? - Dor na virilha - repetiu ainda em murmúrio.

Percebíamos muito rapidamente quando o paciente tinha algum problema urológico


exatamente por essa postura de falar pouco, genericamente e bem baixinho. O médico o
colocou para dentro do PS evitando prolongar desnecessariamente o seu constrangimento.

Um clínico o atendeu. Notou que a glande estava muito inchada, impedindo a saída da peça
mesmo com a tração. Tentou, então, lubrificar o pênis e puxar o rolamento, sem sucesso.
Chamou o cirurgião.

Ele aplicou uma anestesia na base do pênis e depois apertou por alguns minutos a glande para
reduzir o edema. Mesmo assim não deu certo. Cada insucesso atraía mais gente ao redor do
rapaz que, por sua vez, ficava mais preocupado e constrangido.

Veio, então, o urologista. Puncionou a glande com uma agulha calibrosa e aspirou o sangue do
pênis, que murchou muito pouco, mas não saiu.

Enquanto fazia um "a-ham", o urologista coçava o queixo e tentava fazer cara de


tranquilidade. Queria passar aquela impressão de "mais um simples caso de rolamento". Por
dentro, entretanto, estava desesperadamente em pânico, pensando o que mais poderia fazer.
Qual seria o passo seguinte? O caso já tinha sido visto por clínico, por cirurgião, por
urologista. Seria ele último elo daquela cadeia de profissionais? Daria para serrar o rolimã?
Não, é claro que não...
A movimentação deixou curioso um antigo professor de cirurgia que estava passando visita no
local. Este se aproximou da rodinha de médicos. Naquele instante, a discussão era sobre o que
deveria ser feito e qual especialista seria acionado. Tinham duas dúvidas.

A dúvida menor era sobre quem poderia ser chamado para reimplantar o pênis por meio de
microcirurgia, uma vez que não conseguiram libertá-lo. Alguém sugeriu o cirurgião vascular.
Outro achou melhor chamar alguém da plástica ou da cirurgia de mão (as quais possuem a
microcirurgia como especialidades).

Mas havia uma outra dúvida muito maior: "quem cortaria o pênis?" Depois, se não fosse
possível o reimplante? Quem assumiria a conduta? Quem diria ao paciente o famoso
"desculpe aí, hein"?

Foi quando o antigo professor, com toda a sua sapiência, calmamente sugeriu:

- Se for para chamar alguém, acionem o técnico da manutenção. Nessa hora todos olharam na
sua direção com um ar de interrogação. Existe um "ali catão" apelidado "bernardão" que
utilizamos para cortar anéis que não podem ser removidos por outras técnicas mais sutis.
Usaria o bernardão? Uma serra? Martelo?

Não, nada disso. Ele explicou o seu raciocínio que, posteriormente, foi confirmado pelo
técnico: o rolimã é de um aço muito duro. Ele não deforma, quebra.

Dissolvida a junta médica, o paciente surpreendeu-se com quem chegou. Para seu desespero,
não era outro médico engravatado qualquer, e, sim, um homem robusto usando um macacão
azul sujo de graxa.

O técnico ouviu a história dos médicos e, após algumas ponderações, orientou a utilização de
uma prensa hidráulica. Ao ouvir a conversa, o paciente estava quase infartando.

Para acalmá-lo, os médicos explicaram que estava tudo bem (é em cada hora que a gente diz
que está tudo bem!). Iriam "apenas" colocar o seu pênis numa prensa hidráulica e comprimir
o rolamento com toda pressão possível. Tranquilo, né?
Com muita calma, colocaram o pênis e o rolimã dentro da prensa. Esta foi lentamente
aumentando a pressão sobre o rolimã, assim como sobre todos os presentes. O paciente
suava frio. Os médicos suavam frio. O técnico suava frio, e sempre que reviso este texto
também suo frio.

Quando a pressão estava em seu ápice, ouviram um "deck", seguido por um "aí-minha-
mãeeezinhaaa".

O rolamento se partiu e o pênis foi liberado de sua prisão, apenas com sequelas emocionais.
Viva a experiência!

Mansa de cupim Um estranho conjunto chegou ao PS. Tratava-se de uma moça ruborizada e
arqueada para trás, tentando segurar, às suas costas, algo que parecia estar conectado a elas.
Não era possível identificar a "bagagem", pois estava coberta por um lençol. Apesar disso, o
médico percebeu um estranho movimento rítmico balançando o pano de um lado para o
outro.

Ela entrou na sala de atendimento visivelmente constrangida e demorou a explicar o que


ocorrera. Não seria necessário, bastava levantar o lençol para ver o simpático cachorrinho
abanando a cauda. Estavam engatados após uma relação sexual havia mais de uma hora!

O plantonista nunca estudara nada a respeito disso, apenas conhecia dados da "sabedoria
popular". Sabendo que não deve ser nada fácil juntar a coragem necessária para aparecer
dessa forma em um pronto-socorro, intuiu que ela já havia se molhado com um balde de água
fria, eliminando essa possibilidade terapêutica. Assim, começou a pensar no que fazer.

Ele poderia puncionar o pênis do cão para murchá-lo mais rapidamente, mas ficou com medo
de levar uma mordida. O mesmo ocorreria se jogasse éter. Lembrando-se de que os cachorros
nunca vivem engatados o restante de suas vidas, deixou-os deitados em observação. Acabou
tendo que prescrever um calmante para a jovem, pois a angústia dela aumentava a cada
minuto que transcorria sem a resolução do quadro. Foi ótimo, pois o pênis só murchou depois
de uns vinte minutos!

Mais tarde, a dona do cãozinho pôde conversar com um veterinário, que teria lhe explicado:
- Quando o cachorro ejacula, um bulbo na base do seu pênis se enche de sangue, aumentando
subitamente de diâmetro. Esse bulbo ancora o cão à cadela com o objetivo de manter o
esperma no canal vaginal. Esse inchaço no pênis dura em média uns trinta minutos, mas pode
persistir por mais de uma hora.

Excalibur Um paciente entrou caminhando calmamente no pronto-socorro. Após ser


questionado pelo médico sobre qual seria o seu problema, ele se virou e apontou para o cabo
de uma faca, enfiada na parte posterior do seu tórax.

Em geral, não encontramos nesses casos lesões internas muito graves. Curiosamente, há dois
motivos para isso. Primeiro, porque se a lesão interna fosse mais grave, o paciente
certamente não chegaria andando. Segundo, se a faca não tivesse ficado bem presa (e bota
presa nisso!), o agressor a teria enfiado outras vezes.

Chamamos essa condição de síndrome de Excalibur, pois, assim como no poema de Robert de
Baron, apenas o Dr. Artur conseguirá retirá-la. Tal qual o fenômeno da tampa emperrada de
maionese, nem sempre o Dr. Artur é o mais forte.

Fenômeno da tampa emperrada de maionese é quando uma criança ou alguém muito fraco
consegue retirar a tampa da maionese que estava emperrada, após múltiplas tentativas
infrutíferas de pessoas bem mais fortes.

Porém, além de exigir grande força para extirpá-la, é necessário muito cuidado, pois, ao
movimentarmos a faca, podemos desencadear um sangramento que estava previamente
tamponado. Assim, só o fazemos no centro cirúrgico e sob anestesia. A anestesia exige uma
intubação da traqueia, que habitualmente é realizada com o paciente de barriga para cima.
Aqui, esse paciente trazia um novo problema: como intubá-lo - passo imprescindível para o
procedimento - de bruços?

Os médicos tentaram de um lado, do outro, pelo nariz e com o auxílio de um endoscópio, sem
conseguir. Por sorte, apareceu Dr. Merlin com a solução.
Colocaram duas macas em paralelo e deitaram o paciente de barriga para cima, de modo que
o cabo ficasse exatamente no vão entre elas. Superado esse passo, o terceiro médico que
tentou, sagrou-se Dr. Artur.

O prego Após deliciar-se com um famoso refrigerante, o paciente resolveu divertir-se também
com a garrafa e introduziu-a no ânus, a partir do gargalo, onde ela ficou entalada. Por mais
que tentasse, o vácuo que havia se formado não permitia a sua retirada. Estava muito
angustiado pois, se sua esposa descobrisse, seu relacionamento ficaria estremecido. Ela
jamais aceitaria o ocorrido.

Como metade da garrafa estava para fora do ânus do paciente, tentamos puxá-la de várias
formas, sem sucesso. Explicamos, então, a ele sobre a possível necessidade de aplicar uma
raquianestesia para retirar o corpo estranho.

Sua primeira reação foi de desespero. Não poderia ser internado; seria muito difícil explicar
para a esposa o porquê de uma cirurgia.

Fomos discutir o caso com um cirurgião mais experiente. Ele ouviu os detalhes e nos orientou
a procurar dois misteriosos artefatos: - um prego e um martelo.

- Precisam ser estéreis? - perguntei. - Não, pode ser até enferrujado - foi a resposta. A solução
foi muito interessante. Se você reparar na parte inferior da garrafa de vidro, perceberá em sua
borda lateral um pequeno ponto arredondado onde o vidro é mais frágil. Bastou bater o prego
neste local, com firmeza.

O vidro se partiu apenas nessa porção, permitindo a entrada de ar na garrafa. O vácuo se


desfez e pudemos retirá-la com facilidade.

Esta é mais uma dica de utilidade pública...

O ninja manquitola e outros seguidores de Vlad Diferentemente de um hospital escandinavo,


a pluralidade dos pacientes que entravam e saíam do PS dificilmente desviaria a atenção para
alguma pessoa específica. Até que um estranho "ninja" destacou-se naquela multidão.
Naquele calor, alguém com roupas negras e com um gorro de esquiador só poderia ser um
assaltante, desde que excluído um pequeno detalhe: ele não caminhava normalmente.

Basculava o seu corpo de um lado para o outro com o tronco e as pernas rígidas, de forma que
uma ficasse ligeiramente anterior à outra a cada oscilação. Ao locomover-se, emitia um
misterioso grunhido.

Em pouco tempo, o enigma foi solucionado. O paciente havia "caído" em cima de um espeto
(bipartido) de assar linguiça. O cabo estava preso em seu ânus e cada ponta do espeto,
escondida numa das pernas da sua calça de moletom. Andar devia doer muito, explicação
mais provável para os seus gemidos.

Embora possa não ser uma situação inusitada, o empalamento continua sendo algo que
desperta a curiosidade, dada a variedade de apresentações existentes. Esta era uma forma de
tortura, muito apreciada por Vlad III, "O Empalador". Ele matava seus desafetos introduzindo-
lhes estacas de madeira pelo ânus ou os empalava após tê-los executado, exibindo-os como
troféus para intimidar os inimigos. De lá pra cá, as coisas mudaram e ocorrem muito mais
devido a práticas masturbatórias pouco convencionais do que à tortura, embora esta também
possa ocorrer.

Comumente somos procurados por pacientes com objetos introduzidos em suas cavidades
naturais. Existem histórias sobre os mais diversos objetos que se possa imaginar, desde
cenouras a botinas natalinas de cerâmica.

A situação é sempre muito constrangedora. Assim, os pacientes acabam procurando o pronto-


socorro apenas em algumas circunstâncias extremas.

Embora seja raro, o objeto pode ter sido introduzido contra a vontade, seja por tortura, seja
acidentalmente. Na maioria das vezes, entretanto, o objeto é introduzido voluntariamente. Aí
o paciente procura o médico somente quando se machuca ou fica entalado.

A pior situação, sob o nosso ponto de vista, ocorre quando o paciente introduz algo que
perfura o reto. Muitas vezes com vergonha de contar o ocorrido, ele procura o serviço médico
por dor abdominal e oculta o fato de ter se "autoempalado", o que dificulta sobremaneira o
diagnóstico. Uma dor leve e inespecífica associada a uma história inverídica acaba retardando
o diagnóstico e piorando o prognóstico. Não é raro ter de indicar uma cirurgia exploradora por
uma dor abdominal estranha e descobrir uma perfuração no reto. É comum verificarmos após
a intervenção que, ao ser indagado, a cirurgia curou não só a perfuração, mas, também a
"amnésia" do paciente.

Quando a pessoa nos procura com o objeto ainda in loco, não há como ocultar a causa do
problema. Contudo, a história costuma envolver um azar fenomenal e é sempre muito
parecida. Dificilmente alguém relataria estar se masturbando, por exemplo. Então preferem
dizer algo como:

- Estava pelado, fazendo exercício de barra no meu banheiro, quando ela se soltou e caí em
cima de uma cenoura...

Às vezes a história pode ser ainda mais inusitada. Lembro-me de um senhor que referia ter
engolido um pepino sob efeito de drogas ilícitas. Teria o legume de vinte e cinco centímetros
passado pelo esôfago, estômago, intestino delgado, cólon e ido entalar justamente no ânus?!

Se você fosse um investigador de polícia, acreditaria nos relatos desses azarados?

Você poderia chegar à conclusão de que essas pessoas são azaradas de verdade caso não
fosse pela típica resposta a uma perguntinha maldosa, que já ouvi sendo formulada algumas
vezes:

- Seu fulano de tal, preciso saber se o senhor introduziu o xampu ou se foi uma queda mesmo,
afinal o tratamento é completamente diferente para cada caso (quando na verdade não muda
em nada).

Com frequência, o paciente responderá: - É verdade, eu caí. Mas pode tratar como se eu
tivesse enfiado! Nunca vi uma profissional da área ou um homossexual assumido empalados.
A maioria dos casos de empalamento ocorre no ânus, em homens casados, de meia-idade e
com família constituída.

Já tinha me questionado quanto ao porquê disso algumas vezes; afinal, sou um homem
casado, de família constituída, um dia alcançarei os 50 anos e não quero chegar empalado em
nenhum hospital! E a resposta é relativamente simples: jamais atendi alguém entalado com
um consolo de borracha específico para este fim!
Não sei se algum instituto respeitável, como o Inmetro, avalia e regulamenta os "consolos" (e
se os avalia, como será que o faz?), mas os fabricantes devem ter suas preocupações.

Mesmo que não venha um manual de instruções anexo, os pênis industrializados, com
certeza, não soltam a glande ou farpas, não esfarelam, não grudam nem criam vácuo. Possuem
uma base larga como um cálice e imagino que talvez possam até ser feitos de material
"testado e aprovado" por alguma associação específica. Dificilmente criarão problemas -
problemas ocorrem quando se introduz um objeto adaptado, uma gambiarra sexual.

Em outras palavras, se eu fosse um homem casado e com vontade de conhecer o meu "lado
B", dificilmente compraria um vibrador de borracha. Como explicaria ao meu filho ou esposa,
caso eles descobrissem o artefato?

- É o novo brinquedo do cachorro? Seria complicado explicar. É mais fácil evitar esse risco com
o cabo da piaçava, a escova de dente elétrica da esposa ou algum legume. Depois, bastará
lavar e devolver ao local de origem.

Às vezes, o empalamento ocorre não por diversão, mas a trabalho (e não me refiro aos pilotos
de prova dos institutos de pesquisa). Não é nova a ideia de se introduzir papelotes de cocaina
no ânus, ou celulares na vagina, para entrar em presídios. Entretanto, como o espaço interno
desses orifícios não é lá grande coisa, quando se quer esconder algo maior no trato digestivo,
fica mais fácil engoli-lo.

Avestruzes Atendemos pessoas que deglutiram coisas estranhas com uma frequência maior
do que a dos empalamentos (e olhe que não estou incluindo os consumidores de
churrasquinhos nos estádios de futebol ou os chineses e seus insetos). Devido a distúrbios
psiquiátricos, o paciente pode comer moedas, pilhas, garfos, bolas de bilhar e até cabelos! Já
vi algumas obstruções de estômago de tanto que o paciente comia os próprios cabelos
(tricobezoar). Observe os fios úmidos que às vezes se acumulam no ralo do seu banheiro. O
tricobezoar é um pouquiiiinho maior!

Contudo, na maioria dos casos que vi, a ingestão ocorrera por uma tentativa frustrada de
contrabando. Essas pessoas que engolem papelotes de cocaína são apelidadas de "mulas"
pelos policiais. Como se há de convir, é um bom apelido.
Sempre tive curiosidade em saber como os policiais faziam para descobrir tais pessoas.
Segundo um deles, entre outras estratégias, eles tinham conhecimento das rotas mais
utilizadas (países da África Subsaariana) e das características habituais dos mulas. Em geral,
são jovens solteiros sem condições financeiras, que desconhecem a nossa lingua e não
possuem familiares no Brasil. Sempre apresentam alguma desculpa esfarrapada para sua
entrada no país. Além disso, há sempre um policial à paisana infiltrado na fila dos passageiros.
Volta e meia, ele esbarrava "sem querer" na barriga dos suspeitos. Como os mulas tomam
várias medicações para ficarem constipados (evitando evacuar a carga em trânsito, pois,
quando isso ocorre, eles acabam reingerindo os papelotes melecados), sempre estavam com
gases ao término de sua jornada. Quando um deles se incomodava mais do que seria o
esperado com o esbarrão, levavam-no para ser submetido a uma radiografia de abdome. Era
um método tupiniquim, mas parecia funcionar.

Certa vez, estava passando visita nos pacientes do pronto-socorro na qualidade de R3 e o R1


começou a descrever o caso de um jovem negro, que havia chegado naquele dia da Nigéria.
Tinha vindo diretamente do aeroporto, com dor e distensão abdominal. Sua história clínica
era esquisita e havia dificuldade de comunicação, pois ele compreendia muito pouco a nossa
lingua. O residente ainda não havia chegado a um diagnóstico conclusivo.

Quando nos acontece de atender uma mulher obesa que já passou dos 40 anos de idade, que
teve mais de uma gestação e se queixa de dor abdominal do lado direito, um grupo de
neurônios se agita compulsivamente para nos alertar sobre a hipótese de inflamação na
vesícula biliar. Não se trata de um conjunto de células preconceituosas, estão apenas se
lembrando de dados estatísticos que qualquer aluno de terceiro ano conhece: os problemas de
vesícula são muito prevalentes quando se juntam os quatro "F" (female, forty, fat, fertile -
mulher, acima dos 40, obesa, fértil).

Enquanto ouvia o relato do R1, lembrei-me da descrição que o policial havia me dado dos
"mulas". Ele se encaixava nos "4F" dos mulas e perguntei ao residente se ele havia solicitado
uma radiografia de abdome, com o intuito de descartar a possibilidade dos papelotes.

Ao meu lado, estava uma moça que ouviu minhas suspeitas e, em inglês, contou para o
paciente. Este ficou indignado, enquanto a mulher (que era brasileira) gritava que eu era
racista e assim por diante. Só não fui agredido graças à turma do deixa disso que, por sorte,
incluía o investigador de polícia do plantão.

Até hoje não sei se estava certo (como suspeitou o investigador, dada à resposta exaltada do
paciente seguida de sua evasão) ou se fui um "preconceituoso infeliz".
Ao menos biologicamente, segregar alguém por ser"diferente" me parece idiotice. Vejo, por
exemplo, a cor da pele, como resultado de um breve período sob ação da seleção natural.
Precisamos da vitamina D para incorporar o cálcio aos nossos ossos e evitar doenças como a
osteoporose. Para que a pele possa sintetizá-la, necessita da radiação da luz solar. Por outro
lado, muito ultravioleta induz queimaduras solares e câncer de pele. Para bloquear o excesso
de luz solar, a pele produz um pigmento escuro chamado melanina. Assim, é natural que os
menos pigmentados estivessem em desvantagem nos trópicos, pois sofreriam queimaduras
terríveis. Teriam de caçar em horários em que a radiação fosse menor e morreriam muito
precocemente por infecções ou câncer de pele. Nas regiões temperadas, por outro lado, os
mais pigmentados sofreriam com osteoporose e fraturas frequentes, uma vez que não existia
um suplemento vitamínico pré-histórico.

Algum desses espécimes passa a ser mais puro ou mais digno por causa dessa simples
adaptação bioquímica à luz solar? Por pensar dessa forma é que encaro alguns termos
politicamente corretos como babaquice. "Afio-americano"é o indivíduo cujos pais são negros
angolanos ou brancos egípcios?

Todos são "afro-descendentes", parentes de Lucy. A única diferença é que os negros saíram
de lá, no máximo, há uns quinhentos anos, enquanto os antepassados dos brancos já haviam
migrado para a Europa e Oriente Médio havia cinquenta mil anos.

Desculpe-me, mas um"ministro da igualdade racial" apoiado pelas"comunidades negras"


parece só piorar o problema. Deveria ser "ministro da igualdade" apoiado pela "comunidade".

Um desabafo...

Geneticamente, os homens, independentemente de qualquer característica a ser comparada,


são 99,9% idênticos. A variação no nosso código genético é mínima: duas vezes menor do que
a do genoma dos, absolutamente iguais, pinguins!12

*12. WATSON, J. D.; BERRY; A. DNA: o segredo da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

5 - O DESMAME DO HOSPITAL
O peso da profissão

"Podemos escolher o que semear, mas somos obrigados a colher o que plantamos."

DITADO CHINÊS

Há cinco anos, eu vivia mergulhado no hospital. No pouco tempo livre que dispunha, acabava
saindo com os amigos da residência. Agora resolvera me casar, antes disso, queria me
encontrar com os velhos colegas do colegial.

Sempre que encontrávamos antigos conhecidos, num bate-papo informal, surgiam questões
relacionadas às suas curiosidades sobre o corpo humano e suas doenças. Muitas vezes esses
temas embalavam a conversa por horas, confirmando o ditado "para estragar uma festa,
basta chamar dois médicos". Dessa vez, sendo eu o anfitrião do encontro, o papo foi 100%
medicina. Mas, embalados pelo chope, começou uma discussão engraçada. Um amigo
advogado me perguntou algo que o intrigava: - Dário, anus ebrium nec dominus cit?

- O quê? - Cu de bêbado tem dono?

Dei risada; mas que dúvida! Essa questão pode nos assolar há tempos, mas nunca teria
coragem de formulá-la, ainda mais bebericando numa roda de amigos!

De qualquer forma, surpreendeu-me a curiosidade que todos demonstraram ao esperar pela


minha resposta; talvez temessem um dia se embebedar... Mas antes que pudesse dar o
veredicto, ele exclamou:

- Do ponto de vista médico, não sei, mas existe jurisprudência. E citou as conclusões de um
tribunal de justiça no julgamento do caso de um homem que acreditava ter sido sodomizado
numa orgia enquanto alcoolizado.

"...3. Quem procura satisfazer a volúpia sua ou de outrem, aderindo ao desregramento de um


bacanal, submete-se conscientemente a desempenhar o papel de sujeito ativo ou passivo, tal
é a inexistência de moralidade e recto neste tipo de confraternização;
4. Diante de um ato induvidosamente imoral, mas que não configura crime noticiado na
denúncia, não pode dizer-se vítima de atentado violento ao pudor àquele que ao final da orgia
viu-se alvo passivo do ato sexual;... "13

Eu nunca perdi tempo discutindo ou estudando tais besteiras durante a faculdade. Mas não
ficaria surpreso se descobrisse algum artigo tipo "o estudo da sensibilidade anal após ingestão
de etanol em macacos-prego". Existem pesquisas médicas das mais esquisitas e criativas que
você possa imaginar: - Elucidation of chemical compounds responsible forfoot malodour; the
effect of country music on suicide; impact of wet underwear on thermoregulatory responses
and thermal comfort in the cold...14

Não conheço nenhuma publicação científica a respeito do tema abordado, mas a resposta
para a questão é simples: tudo depende de quão bêbado esteja o indivíduo.

*13. Tribunal de Justiça de Goiás. Transcrição literal.

*14. KANDA, F;YAGI, E.; FUKUDA, M.; NAKAJIMA, K.; OHTA,T.; NAKATA, O."Elucidação dos
componentes químicos responsáveis pelo mau cheiro dos pés". British Journal of Dermatology
1990; 122: 771-6. STACK, S.; GUNDLACH, J. "Estudo do efeito da música country na incidência
de suicídio". Social Forces 1992; 71: 211-218. BAKKEVIG, M. K.; NEILSEN, R. "Estudo do
impacto da cueca molhada na resposta termorregulatória e no conforto térmico em
ambientes frios". Ergonomics. 1994; 37: 1375-89.

Um professor dizia que acidentes não acontecem, são provocados. Sei que pode cair um
meteoro na sua cabeça e a culpa será apenas do seu desatento anjo da guarda. Mas, na
maioria das vezes, uma colisão ocorre por causa de um motorista sonolento, falta de
manutenção do carro, ultrapassagens proibidas e excesso de velocidade. Portanto, não e de
se surpreender com o fato de o álcool estar intimamente associado a todo tipo de morte
violenta. Alguns estudos mostram a sua participação em 13%, 27% e até 40% dos acidentes.
Tenho a impressão de que essa porcentagem é bem maior.

Quando atendemos algum paciente de emergência, um dos primeiros passos será a verificação
do seu nível de consciência. Este pode variar do alerta e estar orientado ao coma profundo.
Sua avaliação é fundamental para guiar o tratamento. Se o paciente está em coma, por
exemplo, deverá ser imediatamente intubado na traqueia para respirar adequadamente e
proteger as vias aéreas. O nível de consciência pode ser aferido de forma objetiva com um
teste simples e rápido. Para iniciar o teste, realizamos uma simples pergunta como: "O senhor
está bem?" ou "Qual o seu nome?".

Quando o paciente não responde ao chamado verbal devido a um rebaixamento do seu nível
de consciência, o passo seguinte do teste será o estímulo doloroso. Este pode ser realizado ao
torcer o mamilo ou pressionando com os nós dos dedos a região do esterno. Assim,
verificamos se o paciente acorda, se fala algo conexo ou desconexo, se emite sons e, ainda, se
localiza a dor ou tem movimentos inadequados. Para cada resposta a cada item é atribuído
um valor numérico. No fim, a soma desses valores dará o nível de consciência.

A escala do nível de consciência, Escala de Glasgow varia de 15 (normal) a três (sem função
cerebral detectável). Alguém em confusão mental estará de nove a catorze. Se estiver em
coma, de três a oito. Parece difícil, mas não é.

Durante o atendimento emergencial de um acidentado é muito comum que quatro ou cinco


médicos estejam atendendo o paciente simultaneamente. Muitas vezes, enquanto um deles
está avaliando a consciência, outros estão retirando-lhe as vestes, auscultando o tórax,
aferindo a pressão arterial, fazendo o toque retal e passando sondas. O toque retal é
fundamental para avaliar uma série de quesitos. Como o atendimento é simultâneo, o nível de
consciência pode estar sendo testado quase ao mesmo tempo que se pratica o toque no reto.

Atendi alguns acidentados tão alcoolizados que, devido aos efeitos do álcool, não respondiam
ao estímulo verbal nem ao doloroso. Academicamente, poderiam ser classificados como
inconscientes e necessitariam de intubação. O indivíduo que não fala, não abre os olhos e não
se movimenta, mesmo sob a ação de estímulos dolorosos, até que se prove o contrário,
também não respira adequadamente. Enquanto o material de intubação traqueal era
preparado, alguém realizava o exame retal. Para a surpresa de todos, nesse momento, o
paciente abria os olhos, se mexia e verbalizava:

- Aí não, chefia! Epa, epa, olha a sacanagem! Então, a intubação passava a ser desnecessária.
O teste de Glasgow deveria ser interpretado com cuidado, pois reagiam mais à dor moral do
que à física.

Portanto, a conclusão final é sim. Na maioria das vezes, ânus de bêbado tem dono!
O encontro foi muito divertido, mas me deixou um pouco deprimido. Será que o tempo todo
eu voarei ao redor da medicina como uma mariposa ao redor das lâmpadas? Estava cansado e
precisando dar um tempo. Após me formar, passei cinco anos sem tirar férias de verdade.
Estar o dia inteiro no hospital-escola era a minha rotina e eu precisava quebrá-la. A minha lua
de mel viria bem a tempo.

Queríamos nos desligar do mundo e curtir. Recém-casados, fomos para uma ilha onde
teríamos um descanso merecido! Havia, no arquipélago, um controle de entrada dos turistas.
Entre outras, perguntas a respeito da minha profissão. Médico. Logo em seguida,
perguntaram-me de qual especialidade. Achei estranho. O mesmo ocorreu com a minha
esposa.

Dois dias depois, curtindo o nosso tão sonhado repouso, resolvi ir a um passeio de barco,
mergulhar com tubarões. Apesar de saber que são inofensivos, ela ficou muito apreensiva e
preferiu ficar na pousada esperando pelo meu regresso (de preferência intacto).

O barco atrasou e retardou o meu retorno. Passadas algumas horas, minha angustiada esposa
ouviu o telefone do nosso quarto tocar. Quem ligaria para aquele desconhecido número
telefônico?

A pessoa se identificou como sendo a telefonista do hospital local. Imagine o susto que minha
esposa levou quando a moça lhe avisou que a aguardavam no hospital!

- Ai, meu Deus! O meu marido está bem? Foi atacado? O que aconteceu?

- Seu marido? Não tem nada a ver com ele! Estou avisando que já marcamos as consultas do
SUS para a senhora atender.

Ainda atordoada com o estresse que passara me imaginando como aperitivo de tubarão, ela
não conseguia acreditar no que ouvira.

- Como é? Tem consultas marcadas para eu atender? Hoje? No segundo dia da minha lua de
mel? (Afinal, no primeiro só se dorme...)
- Não há dermatologistas residindo na ilha, eles vêm apenas uma vez por mês. Então, quando
aparece algum turista de uma especialidade que precisamos, nós marcamos as consultas.

Há lógica, mas o Conselho Federal de Medicina só permite que os médicos atuem fora do seu
estado em urgências. Nesse caso, não teríamos maiores constrangimentos em burlar a regra
por questões humanitárias. O que irritou a minha já fragilizada cônjuge foi o fato de a
telefonista simplesmente avisar o horário das consultas. Ela nem perguntou se poderia fazer
uma gentileza e, para piorar, ainda explicou que, como não se tratava de urgências, ela até
poderia remarcar as consultas para mais tarde.

Irritada, ela se negou a comparecer ao hospital. Uma coisa é convocar o padeiro a fazer pães,
pois há farinha e fome. Outra coisa é convocá-lo, pois o povo quer croissant o mais rápido
possível, de graça, infringindo a lei e na hora que a padaria já fechou. Pensei: "Da próxima vez
vou dizer que sou escritor de romances ou fiscal da receita...".

Apesar de acostumado com a profissão na residência, ainda não tinha percebido o fardo que
carregava. Como não possuía pacientes particulares ou outros empregos, ao chegar em casa e
tirar o meu avental, tinha a impressão de que podia deixar de ser médico. Na verdade, nós o
somos durante o tempo todo e, mesmo nas horas mais impróprias, não podemos nos eximir
de nossas obrigações e responsabilidades.

Um dos meus colegas viveu uma situação que exemplifica, claramente, esse aspecto da nossa
escolha.

Ele estava em um 747 voltando da Inglaterra, quando ouviu a famosa solicitação: "Há algum
médico a bordo?".

Era residente de cardiologia e, como qualquer outro médico, temia enfrentar algo diferente
do habitual e num cenário hostil.

Contou-me, meio envergonhado, não ter se mobilizado sob o pretexto de que deveria haver
mais algum colega naquele enorme avião. Mas se é que havia um outro médico na aeronave
este deve ter pensado em alguma desculpa semelhante, pois anunciaram novamente. Dessa
vez, a consciência falou mais alto.
Ainda prostrado de sono, foi ao local que orientaram. Ao chegar lá, notou um senhor no chão,
com muita dor no peito. Foi fácil diagnosticar a angina.

Havia um bom arsenal de medicamentos disponíveis. O médico selecionou o remédio e


ofereceu ao paciente, aliviando a sua dor prontamente. Satisfeito e orgulhoso por ter sido útil,
o colega pensava: "não foi tão difícil assim. Da próxima vez, acordarei ao primeiro
chamado...".

Nesse momento apareceu o comandante da aeronave procurando o médico. Após lhe


agradecer, o piloto explicou que ainda poderiam aterrisar em Dacar (Senegal). Porém, em
poucos minutos ultrapassariam um ponto a partir do qual seria impossível retornar, mesmo
que o paciente precisasse... Conduziu-o até um cantinho reservado e perguntou:

- E então doutor, devemos prosseguir o voo? - Prosseguir com o voo? Eu preciso decidir se o
senhor deve prosseguir com o voo?

Por essa ele não esperava! Olhou para as cadeiras daqueles trezentos passageiros dormindo
tranquilamente com tapa-olhos e provavelmente sonhando com a volta ao lar. Imaginou-se na
posição do gigante Atlas, tentando sustentar sobre os ombros um 747.

Ele sabia que a dor poderia voltar e até mesmo desencadear um infarto, mas constrangido em
atrapalhar a vida de centenas de passageiros, sugeriu prosseguir o voo.

O comandante deve ter ligado o piloto automático e ido dormir tranquilo. Mas ele ficou a
noite inteira ao lado do paciente, estréssado com cada ronco diferente que o cardíaco emitia.
Além da insônia, quem quase infartou de tanto estresse foi o médico.

Posteriormente, ele ponderou que talvez não tomasse mais tal decisão. Mesmo que os riscos
fossem mínimos, o estresse que sofreu com a possibilidade de o paciente vir a infartar e até
morrer por não ter descido em Senegal teria sido injustificável. A responsabilidade seria
inteiramente dele, que tinha entrado na história de gaiato. Como é fácil passar de bom
samaritano a médico incompetente! Pelo menos recebeu uma carta de agradecimento da
companhia aérea...
Alguns colegas talvez tivessem uma vontadezinha de se omitir, caso soubessem o desenrolar
dessa experiência. Mas às vezes isso é impossível, mesmo que se queira.

Costumamos nos vestir de branco. Quando ocorre algum acidente ou mal-estar súbito na rua,
o povo não quer saber se você é pai de santo, dentista ou cabeleireiro. Se estiver de branco é
médico e com ampla experiência no atendimento de emergências. Mas mesmo sendo
doutores, encontramos inúmeros desafios nesses cenários. O leque de situações a que
estamos expostos e de habilidades que gostaríamos de ter para contorná-las é imenso. E não
incluem apenas pessoas doentes ou passando mal.

Um médico do interior me contou que fora ao velório de um paciente para prestar


condolências à família do falecido. Estava de branco. Antes que pudesse ir embora do
cemitério, foi puxado e arrastado para dentro de um saguão onde ocorria outro velório.
Simplesmente, o raptaram. Embora fosse, mesmo, um velório, o ambiente não lembrava, em
nada, o de um funeral. Todos gritavam e abanavam o caixão da falecida desesperadamente.

A filha da defunta, inconformada com a morte da mãe, levara um espelhinho na sua bolsa.
Segundo ela, ele teria ficado embaçado ao ser colocado debaixo do nariz do cadáver.

Antes que o médico pudesse se perguntar o porquê do espelhinho, eles o forçaram a atender o
corpo. Morto. No caixão. Ao tentar verificar os sinais vitais da morta, ele percebeu que isso
seria impossível devido ao rebuliço que a filha, dona do espelhinho, causava. Pediu aos
parentes mais calmos que a retirassem do local.

Ao seu exame, o diagnóstico parecia óbvio. Ela não respirava, não tinha pulso, estava fria. Ele
até podia ver as marcas da autópsia!

Quando o médico se voltou para a plateia, lenta e solenemente, todos o questionaram:

- E aí, doutor... e aí? E ele, para o alívio de todos, proferiu a notícia de uma forma inédita:

- Calma, gente, está tudo bem. Graças a Deus, ela morreu. - Obrigado, doutor! A paz voltou a
reinar e todos voltaram a rezar e a se lamentar... Essas situações nos relembram a maravilha
da invenção dos hospitais. Mas mesmo fora desses ambientes, continuamos sendo médicos e
os pacientes, a surgir. Independentemente da situação, o médico sempre se expõe. Sem as
medidas de proteção e as condições adequadas de atendimento, corre o risco de contrair
alguma doença e, até, de passar a ser uma vítima a mais do mesmo incidente.

Não é nada fácil, podemos até ser linchados. É comum encontrar a vítima de algum acidente
envolta por um bando de curiosos. A pressão para pegar o acidentado e o transportar para um
hospital é enorme e raramente será a melhor escolha. Quando aparece um médico, o povo
exige que ele faça algo, mesmo que sirva só para amainar a própria angústia e a sensação de
impotência. Mas em boa parte das vezes, não existe algo a ser feito, e, sim, muito a ser
evitado.

Já houve emergências extra-hospitalares em que colegas realizavam manobras fúteis apenas


para fingir estar tratando de algo, enquanto o resgate não aparecia. Caso contrário, eles
seriam agredidos pela população ansiosa. É o que alguns chamam de teatrinho de
sobrevivência...

Eu estava de branco caminhando para pegar o metrô, quando ouvi um segurança gritando
para que chamassem uma ambulância. Alguém fora baleado!

Corri para o local e vi um senhor caído. O segurança berrava, quase em pânico, que as tripas
estavam saindo. Criou-se um rebuliço.

Ao me aproximar, notei suas roupas esfarrapadas e sujas, compatíveis com as de um morador


de rua. Não havia sangue algum na cena do suposto acidente. Havia, no ar, um forte odor de
pinga e ele estava bem sonolento. Seus parâmetros vitais eram bons, exceto pelo leve
rebaixamento do nível de consciência, provavelmente devido ao álcool.

O homem mantinha uma das mãos apoiada sobre o abdome e, sob essa mão, eu podia ver um
segmento de alça intestinal e um pouco de fezes. Ao examiná-lo com mais rigor, percebi que
aquilo não se tratava de um ferimento recente por tiro ou facada. Era uma colostomia!

O indivíduo, embriagado, perdera a bolsinha em algum lugar. Como estava caído e sonolento,
o segurança intuiu que teria sofrido algum ferimento naquele instante.

Mesmo tendo entendido a situação, não vi ninguém calmo o suficiente para que pudesse
explicar coerentemente o ocorrido. O frenesi era imenso, com todos gritando e dando
opiniões diferentes. Eu era o doutor e precisava fazer alguma coisa para salvá-lo. Achei que,
de uma forma ou de outra, seria interessante levá-lo para um hospital. Pelo menos receberia
uma hidratação, vitaminas e glicose. Assim, tentei acalmar as pessoas dizendo que ele
aguentaria o tiro e ordenei que discassem para "193, sem ficha".

Como no restante da medicina, até estas decorebas evoluíram. Na primeira vez que eu
participei de um curso de primeiros-socorros, aprendi que, ao constatar a inconsciência da
vítima, a primeira coisa a fazer seria gritar: "Por favor, chamem um médico!" Com o tempo
vieram os cursos de atualização e esse pedido genérico evoluiu para uma ordem dirigida a
uma pessoa específica: "Você aí, chame um médico!" Percebendo que não era tão fácil assim
achar um médico a frase foi reformulada: "Ligue 192, sem ficha!': Aí surgiu o resgate e a nova
atualização: "Ligue 193, sem ficha!" Hoje não existem maisfichas telefônicas e a ordem
mudou novamente: "Traga um desfibrilador!"

Todos gritavam para apertar o local, o que fiquei fazendo levemente com um pano (foi um
teatrinho que, provavelmente, acabou por salvar a minha vida). Não pude deixar de sujar as
minhas mãos, pois, para cada segmento de fezes que escapava, ouvia-se um "ohhh, aperte
mais!".

O resgate veio rápido. Expliquei ao bombeiro e este o levou ao hospital, onde o paciente se
recuperou da bebedeira e ganhou nova bolsinha.

A pressão moral exercida pelos que me cercavam foi imensa. A quantidade de bobagens que
falavam, procurando me orientar, maior ainda: "Dê sal, abane, levante, comprima mais, põe
pano na boca, puxa a lingua...".

Graças à encenação, pude ajudar e não sofri ameaças. Mas agora entendo por que alguns
colegas, ao flagrarem um acidente na rua, pensam duas vezes antes de ajudar. Se chegarem à
conclusão de que só farão teatrinho, nem aparecem.

Todos esses relatos demonstravam, sem que eu percebesse, quão intrincada a minha vida ia
ficando com a medicina. Essa tendência nunca mais seria modificada...

A vitrine da loja
"Voce nunca tem uma segunda chance de causar uma primeira impressão."

AARON BURNS

Um assistente da cirurgia sempre nos falava sobre a sua teoria da vitrine. Para ele, nosso
trabalho durante a residência ocorria dentro de uma vitrine, como as das lojas de roupas, por
exemplo. Os clientes do estabelecimento assistiriam à exposição e escolheriam os seus
produtos baseando-se em seus defeitos e qualidades.

Nós não sabíamos, mas muitos dos chefes de departamento em diversos hospitais eram os
nossos próprios médicos assistentes ou conhecidos deles. Quando precisavam de algum novo
médico em seu serviço, podiam escolhê-lo simplesmente observando-os na vitrine. É claro
que provas e análises de currículos são importantes, mas o que seria melhor para um
selecionador do que ter ciência prévia do temperamento, comportamento e conhecimento
dos seus candidatos em cenários parecidos aos que iriam trabalhar?

As tarefas da residência eram muito árduas e sempre tentei executá-las da melhor forma
possível. Sem me dar conta, eu fazia uma espécie de networking.

Quando decidi fazer medicina, um experiente ortopedista me disse que pouco importaria a
área que eu escolhesse, desde que fosse o melhor. Evidentemente, ser competente é muito
importante. Mas não acredito que ser "o melhor" seja essencial.

Esse conceito de "o melhor", quando visto de perto, é nebuloso. No fim das contas, todos
buscam o sucesso. Mas este também pode ser interpretado por uma série de ângulos
diferentes. Muitos médicos de sucesso que conheço não são nem de longe os melhores, mais
ricos ou mais felizes com a profissão.

Não nego a validade do conselho, mas aprendi a importância do contato. Em outras palavras,
quando meu filho me perguntar o que fazer para se dar bem na vida, direi: "Seja ético, faça
algo que o sustente e que lhe dê prazer, pois assim ficará mais fácil ser competente e
dedicado. E tenha QI - é muito importante!".

Q I, na nossa gíria, quer dizer "quem indica", ser bem relacionado. Quase todos os meus
empregos surgiram graças a indicações. Estando em uma renomada instituição de ensino,
demonstrando dedicação e competência, além de um bom relacionamento, meu nome
chegou aos ouvidos de alguns chefes.

Os empregos que precisavam de uma entrevista ficavam mais acessíveis se o chefe conhecesse
o entrevistado. Outros serviços escolhiam os seus candidatos por meio de provas escritas.
Também ficavam mais tangíveis se, além de conseguir uma boa nota, você fosse um dos que
soubesse a data da prova. É claro que nada era escondido, mas também nunca vi um anúncio
na capa de uma revista divulgando a data da prova do hospital. Era comum ser avisado por
algum daqueles personagens: "Haverá uma seleção de médicos plantonistas no hospital X, na
data Y. Você teria interesse?". Eu tive, mas demorou...

Dez anos após terem ingressado em outras faculdades, todos os meus amigos estavam
advogando, construindo, projetando, arquitetando e tendo filhos. Eu, dez anos após ter
ingressado na Faculdade de Medicina, ainda continuava às voltas com a residência de cirurgia.
Apesar de ela requerer período integral, a cada ano que passava o número das propostas de
emprego aumentava, assim como a minha vontade de cair na vida. Entretanto, os PFs
(plantões fora) eram malvistos pelos professores. Tínhamos de fazer esquemas para que não
atrapalhassem o nosso curso e que, ao mesmo tempo, fossem compatíveis com o nosso grau
de conhecimento.

Os residentes de primeiro e segundo anos, por vezes, começavam a dar plantões de remoção
de ambulância. Eram plantões mal pagos, mas também tranquilos para que pudessem
descansar. Com o passar dos anos, a segurança ia aumentando e criávamos coragem para
enfrentar plantões como clínico geral emergencista. Mais tarde perdíamos essa intrepidez em
clínica, mas ganhávamos pujança em cirurgia. Aí, passávamos a dar plantões como cirurgião
de emergência em hospitais periféricos.

Porém, foi apenas ao finalizar a preceptoria (quinto ano de especialização em cirurgia geral)
que comecei, de fato, a me inserir no mercado de trabalho e descobri que a vida era bem
diferente do que eu imaginava.

O cirurgião geral, por melhor que venha a ser, carrega, indevidamente, uma imagem de
profissional de segunda linha. Não deveria ser assim. Entretanto, acaba sendo, pois a maioria
dos cirurgiões gerais é constituída por médicos que cursaram apenas os dois anos básicos de
cirurgia ou nem isso. Às vezes foram apenas estágios não reconhecidos pelo Ministério da
Educação. Não há vagas de residência para todos os que se formam. Infelizmente, somos uma
minoria de, aproximadamente, 50%. Conheço vários colegas que não tiveram essa sorte e são
extremamente competentes, mas é claro que não representam a regra. Quanto melhor for o
preparo melhor tenderá a ser o profissional.

Para escapar um pouco desse rótulo, prestei a prova de especialista em cirurgia do aparelho
digestivo e virei o que chamam de "gastro". Ainda assim, pude ver a realidade dos que me
cercavam. Cirurgiões competentes, com títulos acadêmicos, formados havia mais de vinte
anos, dando plantões para conseguir complementar a sua renda. Seus consultórios eram
quase que virtuais, vítimas de uma concorrência brutal com muitos outros médicos e
especialistas em qualquer coisa. A carga horária era sempre abusiva e a responsabilidade,
enorme. Trabalhavam em ambiente insalubre, com remuneração indigna.

Cheguei à conclusão de que, para vencer na vida, poderia cursar trajetos pedregosos ou pegar
alguns atalhos, como grudar em alguém famoso e ser o seu assistente. Tornar-me um
superespecialista referência de insulinomas da cauda do pâncreas ou de qualquer outra
doença exótica. Criar uma empresa para explorar médicos recém-formados. Ou, como ouvi
numa dica na rádio, candidatar-me a vereador. Segundo a paródia, seria um ótimo emprego:
mais fácil de entrar do que na Faculdade de Medicina, com estabilidade, baixíssima exigência
intelectual, carga horária inspirada no livro O ócio criativo, bom salário, décimo terceiro, jeton
e, até, mensalão (como ficou conhecido o escândalo do esquema de compra de votos de
parlamentares).

Quanto a esses possíveis atalhos, sempre quis ser o doutor e não o assistente do doutor. Sou
honesto, gostaria de operar um pouco de tudo e nunca quis ser um burocrata. Embalado por
essas dúvidas, comecei a procurar emprego.

Atestados

De boas intenções o inferno está cheio!

O meu primeiro emprego foi em um hospital simples, cujo público-alvo consistia em


beneficiários de planos de saúde básicos fornecidos pelas empresas. Em outras palavras, 90%
dos atendimentos envolviam funcionários e seus respectivos familiares. A primeira coisa que
me chamou a atenção nesse emprego foi a quantidade de atestados que eles solicitavam. Um
número de atestados que quase alcançava o de receitas!
Sei como é desagradável trabalhar doente. Imagine um DJ tocando com enxaqueca ou um
motobói dirigindo com crise de hemorroidas! É claro que as doenças podem ainda ser piores
e, para que possamos gozar dos nossos direitos quando aparecem, lançamos mão do atestado
médico. Além disso, os empregados tinham o dever de comprovar sua ida aos doutores e
justificar eventuais afastamentos por motivos de saúde às suas firmas. Esses fatores
explicariam uma enorme demanda pelo documento, mas descobri que algumas pessoas
também o solicitavam sem a devida retidão, o que acabava nos criando um grande incômodo.
Por quê? Por vários motivos que irei abordar.

Uma das coisas que mais me frustravam era a solicitação de atestados por queixas tolas.
Quantas vezes ao darmos plantão gripados, com febre ou muito cansados, atendemos alguém
que solicita um "atestado para dois dias", pois o nariz está escorrendo? Esses "atestados
bobinhos" eram solicitados com maior frequência pelos funcionários de menor patente. Essa
relação inversamente proporcional à hierarquia do cargo parecia ser uma aplicação, na CLT,
da velha lei de Gérson.

Segue a Lei de Gérson a pessoa que "gosta de levar vantagem em tudo", no sentido negativo
de se aproveitar de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com questões
éticas ou morais.

WIKIPÉDIA

Outra coisa complicada era enfrentar um indivíduo que deseja resolver os seus problemas
pessoais com atestados. Não é raro ouvirmos a solicitação de um "atestado para o dia todo",
quando essa pessoa apenas passou pelo médico das oito às nove da manhã e para trazer
exames. Nesses casos, a justificativa costuma ser assim: "Doutor, já que eu viria aqui,
aproveitarei para ir ao banco, à casa da minha prima e ao cartório. Gostaria que o senhor
justificasse o meu dia inteiro".

Se nos recusamos a dar esse atestado, ainda passamos por antipáticos e injustos!

Como em qualquer lugar, os atestados para gripe, diarreia e outras afecções corriqueiras são
comuns. Entretanto, esse número se multiplicava drasticamente em circunstâncias suspeitas,
como na véspera de Natal e após o Ano-Novo. Por que as pessoas ficavam mais doentes
nessas épocas?
Lembro-me do ortopedista que atendeu um paciente queixando-se de dor no tornozelo.
Examinou e solicitou uma radiografia. Paradoxalmente, o moço não queria se submeter aos
raios X (normalmente eles querem, mesmo que não sejam necessários). Por fim, o indivíduo
pediu um atestado. O médico afastou qualquer patologia mais séria, passou algumas
orientações e deu o atestado. O paciente agradeceu e saiu mancando da sala. Ao se despedir,
o ortopedista notou que a esposa e as filhas do atendido o aguardavam ansiosamente na sala
de espera. Até aqui não haveria nenhuma novidade, se não fosse pelo fato de ser véspera da
Páscoa e as crianças estarem em trajes de banho e segurando baldinhos para brincar na areia.

Curioso, ele resolveu espiar aquela família indo embora. Não é que o pai parou de mancar ao
se aproximar de seu carro! Teria ele ganho um fim de semana na praia em troca de alguns
minutos de embromação, uma pitada de radiação e um atestado médico?

Para viajar, às vezes as pessoas fazem coisas bem piores. Uma delas era conhecida no pronto-
socorro como "síndrome da desova do velhinho enrolado no cobertor". Isso se caracterizava
pelo abandono de um idoso, com demência, no serviço de emergência, na véspera do
feriado, alegando sintomas inespecíficos: "Ele está mais apático do que o habitual e teve suor
frio ontem".

O médico examina, não acha nada (pois não há nada) e resolve interná-lo para exames.
Quando se toca, a família foi embora e só voltará no domingo à noite para recolhê-lo...

No caso ortopédico era evidente a simulação. Isso muitas vezes não é tão fácil de se descobrir,
pois precisamos confiar no doente. Os sintomas são subjetivos e, assim sendo, podemos ter
muita dificuldade para definir a veracidade de algumas queixas. Se a pessoa não se comunica,
como no caso do velhinho, fica ainda mais difícil. Como posso avaliar uma piora de apatia?

Além disso, não é fácil deixar de medicar alguém que me diz estar sofrendo de dor. Ainda não
inventaram um aparelho medidor de sofrimento!

Sabemos que a dor é um sintoma difícil de se avaliar. Que o mesmo procedimento cirúrgico
pode causá-la com maior intensidade em alguns pacientes do que em outros. Que a
sensibilidade individual é variável e precisa ser respeitada (uma jovem adolescente costuma
reclamar mais de uma martelada no dedo do que um ancião japonês).
Mas, para ter um atestado, alguns indivíduos inventavam ou amplificavam os seus sintomas
mesmo que os problemas fossem muito tênues. Essa desonestidade nos irritava, pois, de
modo geral, podemos perceber quando alguém está com muita dor ou gravemente doente. A
pessoa não fala, fica lívida e sudoreica, com expressão de desespero. Não quer conversa nem
explicação, quer solução. Não ordena, implora.

É bem diferente de quando atendemos alguém que nos faz um entediante relato de uma dor
insuportável, mas que não quer nenhuma medicação ou tratamento, apenas o atestado.

Depois de ver várias pneumonias fica mais fácil reconhecê-las, e isso vale para a identificação
dos embromadores em busca de atestados falsos. O reconhecimento deles começava assim
que entravam no consultório.

As pessoas que vinham ao hospital para pedir um atestado duvidoso apresentavam um


comportamento diferente das que realmente precisavam dele. Agiam de forma singular e
padronizada.

A maioria dos pacientes, quando chamados, simplesmente entrava na sala e se sentava. O


cumprimento se restringia a um bom-dia. Os que tentariam forjar um atestado entravam na
sala com a mão estendida para nos cumprimentar, sendo desproporcionalmente simpáticos.
Tentavam criar um vínculo por meio desse comportamento. Nessa hora já acendia a minha
luzinha de alerta, que brilhava ainda mais quando os indivíduos falavam: "Doutor, eu vou ser
sincero com o senhor."

Relatavam uma história esquisita cujos dados, ao destrincharmos os seus detalhes, não
batiam. Indagações sobre sintomas associados eram prontamente confirmadas, mesmo que
fossem apenas armadilhas arquitetadas por nós. O exame físico invariavelmente era normal ou
escancaradamente teatral e recusavam-se a realizar exames. Ao iniciar a explicação do
tratamento que seria adotado, percebia que os pacientes não prestavam muita atenção ao
que eu dizia e notava a angústia deles. Eles queriam me dizer algo, mas eu não lhes dava
oportunidade propositalmente.

Ao lhes entregar a receita, eles nem olhavam direito e já iam me pedindo um atestado para
dois ou três dias...
O limite entre o verídico e o inverídico não é fácil de ser estabelecido e, na dúvida, o médico ao
menos fingirá acreditar no que o paciente lhe diz. Algumas histórias tristes não são inventadas
e realmente ficamos muito comovidos com elas. Mas nem por isso podemos "roubar um
banco" ou "fornecer atestados falsos" para ajudá-los. Os pacientes precisam entender que
isso é ilegal, além de, certamente, estar prejudicando alguém. Gostaria de ilustrar os seus
possíveis malefícios com duas breves histórias.

Um senhor contou ao médico que a sua madrinha falecera em Minas Gerais e queria vê-la
antes do sepultamento. Não poderia faltar ao emprego, pois seu patrão era muito rigoroso e
tinha medo de ser despedido. Confessou ao médico que não estava doente e, explicando a
sua triste história, pediu um "atestado de três dias". Assim poderia se despedir da falecida. O
plantonista ficou sensibilizado e forneceu o atestado.

Imediatamente, esse mesmo senhor dirigiu-se ao diretor clínico do hospital e contou o


ocorrido exigindo uma punição. Ele não fez isso apenas para sacanear o médico. Na verdade,
esse senhor era dono de uma pequena fábrica que, além de estar indo mal das pernas, tinha
funcionários que, a toda hora, apareciam com atestados do mesmo doutor. Assim, ficou
demonstrado que aquela tradicional expressão "não custa nada" custava o rendimento da
fábrica e custou o emprego desse colega...

O porteiro do prédio notou que o seu Nicolau não descia à portaria havia dois dias. Apesar de
ser bem idoso e de morar sozinho, ele não era o tipo de velhinho que se enclausurava em
algum canto. Raramente deixava de aparecer na portaria para pegar correspondências, dar
uma caminhada e bater um papo com o zelador.

Estranhando tal atitude, o porteiro interfonou ao seu apartamento, mas não obteve resposta.
Tentou mais tarde, também sem sucesso. Preocupado, telefonou para o filho do seu Nicolau e
lhe explicou o ocorrido.

Pouco tempo depois o filho, Nelson, chegou ao prédio e tocou a campainha do apartamento
que, novamente, não foi atendida. Eles chamaram um chaveiro e abriram a porta.

Ao entrarem no pequeno apartamento, puderam ver o seu Nicolau caído de bruços no chão da
cozinha. Estava pálido e imóvel. Nelson tentou chamá-lo chacoalhando o tronco e gritando
pelo seu nome, mas o velho não parecia esboçar nenhum sinal de vida. Triste e aturdido, o
filho tentou pensar no que fazer.
Todo mundo um dia morrerá, mas nunca estamos preparados quando isso acontece. Ele não
sabia se ligava para o instituto médico legal, serviço de verificação de óbitos ou resgate.
Telefonou para o serviço funerário, que orientou não poder fazer nada sem um atestado de
óbito.

Como conseguiria um atestado de óbito? Teria de ir ao Instituto Médico Legal (IML)? Ao


Serviço de Verificação de Óbitos (SVO)?

Nelson resolveu ligar para um médico que era seu amigo desde os tempos de ginásio. Explicou
o ocorrido e perguntou se ele não poderia emitir um atestado de óbito para o seu pai. O
médico conhecia muito bem Nelson e sua relação com o seu Nicolau. Ele jamais duvidaria de
seu amigo ou suspeitaria de assassinato, ainda mais em se tratando daquele velhinho
simpático e educado, com carinhosos e cativantes olhos azuis.

O médico sabia que, naquelas circunstâncias, o correto seria enviá-lo ao IML. Realizariam uma
necropsia para determinar a causa mortis, afastando morte violenta. Ponderando sobre a
situação do amigo, ele disse que não havia necessidade em perder tempo levando o corpo a
lugar algum. Já houvera sofrimento demais por um dia. Como o seu Nicolau era cardiopata,
ele preencheria um documento colocando como causa da morte um infarto do coração, bem
provável naquela situação. Mesmo que o diagnóstico não fosse o correto, achou que esse
pequeno desvio ético seria justificável para ajudar o seu amigo.

Havia, no entanto, um detalhe. Ele não poderia ver o seu Nicolau tão cedo. Estava de plantão
no pronto-socorro de um hospital privado e só sairia às 19 horas. Para não atrasar os trâmites
do funeral, perguntou ao Nelson se ele poderia mandar alguém pegar o atestado no plantão.
Não haveria problema algum, afinal o hospital era apenas a duas quadras de distância.

Uma vez em poder do documento, o filho chamou o serviço funerário para buscar o corpo.
Nelson saiu do recinto assim que chegou o funcionário da funerária com o caixão escolhido.
Enquanto telefonava para os seus irmãos e parentes em um cômodo contíguo àquele onde
estava o falecido, o rapaz da funerária deu início aos seus serviços. Assim que desvirou o
defunto, percebeu que algo estava errado.

Acostumado a ver cadáveres, notou que o corpo, apesar de pálido e imóvel, não estava frio
nem duro (rigor mortis). Intrigado, prestou mais atenção e notou que o cadáver às vezes
respirava, muito superficialmente.
- Meu Deus, ele está vivo! - correria para cá e para lá. - O que vamos fazer?

O funcionário descobriu que o seu Nicolau ainda estava vivo e temia que se ninguém fizesse
algo, e rápido, ele realmente passaria a ser seu cliente.

- Precisamos levá-lo ao hospital! - Mas como o removeremos? Não é fácil carregar um adulto
desfalecido por dois quarteirões! Resolveram o problema do jeito mais prático e rápido
possível. Jogaram o seu Nicolau dentro do caixão e colocaram no carro funerário.

Juntos, o funcionário e Nelson tocaram o carro o mais rápido possível para o hospital mais
próximo, justamente aquele onde estava de plantão o amigo médico. A cena seguinte,
segundo relatos da enfermagem do hospital, foi surreal.

O plantão não estava mais movimentado do que o habitual. De repente soou a campainha da
emergência, alertando que iria chegar uma ambulância em alta velocidade. Nessa hora toda a
enfermagem se mobilizou e o corre-corre acabou chamando a atenção dos pacientes que
ainda estavam na sala de espera. Mas, em vez de uma ambulância, entrou um carro funerário
a toda velocidade! Será que alguém teria passado mal num velório? Não! A surpresa ficou
ainda maior!

As enfermeiras e os pacientes da sala de espera assistiram a um apressado agente funerário


retirar o caixão do carro fúnebre, colocá-lo em cima de uma maca e empurrá-la velozmente
em direção à sala de emergência, gritando: "O falecido está morrendo! Alguém nos ajude!".

Cada um que chegava à sala de emergência surpreendia-se com aquela cena: um paciente
sendo reanimado dentro de um caixão mortuário! Todo médico que por ali passava ficava
curioso ao ver aquele defunto com máscara de oxigênio, soro e punções. Até que fosse
transferido para um leito, foi um rebuliço.

Seu Nicolau ainda não tinha morrido. Sofrera um derrame e ficara em coma por várias horas
até ser atendido, mas depois de alguns dias veio a falecer.

Um dos médicos que foi acionado para atender à urgência foi o próprio amigo do Nelson, que,
além de sofrer com o desespero do amigo, ainda teve de suportar algumas brincadeiras de
mau gosto, quando seus colegas descobriram o atestado. Ele nunca mais quis dar um, do que
quer que fosse, sem antes confirmar pessoalmente o ocorrido.

VIP

"Que os pobres continuem saudáveis e que os ricos continuem a pensar que estão doentes..."
ou, se preferir: "Enquanto há dinheiro, há esperança..."

O QI funcionou e, pouco tempo depois de trabalhar naquele hospital dos atestados, comecei a
dar alguns plantões em um bom hospital, de renome. Lá pude entrar em contato com outra
realidade. Embora fosse uma exceção mesmo naquele local, atendi alguns pacientes VIP.

Diferentemente do CPX (cupincha de alguém importante) e do "vipoide" (com delirio de VIP),


a VIP é very important person, ou seja, parte dos pacientes socialmente importantes, famosos
ou endinheirados. Digo parte, pois muitos (talvez a maioria) dos very important person são
extremamente frugais e discretos, como pude comprovar ao atender, por exemplo, a esposa
de um ex-presidente da república. Estes, para a sua própria sorte, passam a ser atendidos no
grupo dos standard.

Os caminhos para o diagnóstico e o tratamento das doenças podem ser diferentes. Esse fato,
associado à fragmentação do paciente de acordo com as especialidades, me faz lembrar de
um ditado: "Paciente que tem dois médicos tem meio médico. O que tem três médicos tem
um terço de médico. O que tem quatro médicos não tem nenhum...".

Essa frase foi dita por um médico que estava doente. É extremamente sábia e representa um
fato ainda mais verdadeiro quando aplicado ao paciente VIP.

Julgando-se mais importante do que os demais, ele solicita mais serviços, exames e
profissionais do que o paciente comum.

Mas o grande segredo, por eles desconhecido, é que, apesar de ricos ou famosos, continuam
sendo homo sapiens sapiens. Pasmem, mas a fisiologia e a anatomia são idênticas às dos
standard! Incrível, não? A única coisa que muda será a sua investigação e o seu tratamento.
Para o azar dosVlPs, na maioria das vezes eles serão mais caros e dispendiosos, embora
atendidos com a mesma eficácia e, talvez, com um pouco mais de complicações. Mas oVIP
não se preocupa, pois desconhece os riscos e pode pagar pelos exames. Dá até status falar que
foi "submetido a uma colonoscopia no Memorial, em Boston"!

Grande porcaria. Poderia ter se submetido ao mesmo exame escolhendo entre dezenas de
profissionais competentes, aqui mesmo e com muito mais facilidades...

Ainda que perdulário, pelo menos o atendimento costuma ser honesto. Mas se existir alguma
margem para desonestidade, eles serão os pratos prediletos. Ao ouvir esses pacientes
conversando sobre exames e terapias de última geração para resolver os seus corriqueiros
problemas, sempre me lembro de quando tirei férias em uma praia.

O lugar era lindo e não demorou muito para que os turistas descobrissem seus encantos.
Também não demorou muito para que os locais descobrissem como explorar os seus turistas.

Um amigo me alertou para que tomasse cuidado com os rapazes que dirigiam, na praia, as
charretes para os turistas. Espertos, eles davam nó em pingo-d'água. Seria prudente combinar
os preços dos passeios previamente.

Estava com a minha esposa caminhando à beira-mar, quando passou por nós uma daquelas
charretes. Cauteloso, perguntei, antes de embarcar numa canoa furada, quanto ele cobraria
pelo passeio, para nos levar até o fim da praia. Sabia que o preço habitual seria de 30 reais e
ele disse exatamente esse valor.

Mostrando a minha perícia, certifiquei-me de que aquele valor seria o do frete e não por
pessoa, como acabara pagando o amigo que me havia alertado. Como o rapaz confirmou que
o valor seria pelo veículo, topei. Porém, quando retornamos ao local de partida, o moço me
cobrou sessenta reais. Indignado, perguntei:

- Mas não era trinta para os dois? - Sim, mas trinta para ir e trinta para voltar... O paciente VIP
corre o risco de encontrar médicos que fizeram cursos com aqueles condutores de charrete...

Para que eu possa exemplificar a diferença entre o atendimento VIP e o standard, contarei
uma história parcialmente inventada.
Caso Standard - Jovem advogado colidiu seu Sedan médio contra uma árvore em uma avenida
qualquer há duas horas. Estava com cinto de segurança, a uma velocidade de quarenta
quilômetros por hora quando bateu. É trazido pelo resgate ao pronto-socorro. O médico o
examina atentamente e não há nenhuma queixa ou alteração importante ao exame físico.
Suas lesões são apenas superficiais. Mesmo assim, ele fica em observação por algumas horas
e vai para casa com orientações. Dois dias depois, sentindo-se bem, volta às suas atividades
habituais.

Considere agora a mesma espécie, com o mesmo trauma e as mesmas lesões, mas em outro
contexto:

Caso VIP - Jovem pagodeiro colide seu Sedan alemão contra uma árvore, em um balneário
elegante, há duas horas. Estava com cinto de segurança a uma velocidade de quarenta
quilômetros por hora, quando bateu. É trazido pelo resgate ao pronto-socorro. O médico o
examina atentamente e não há nenhuma queixa ou alteração importante ao exame físico.
Suas lesões são apenas superficiais. Mas o colega reflete: "E se justamente nele aparecer
depois alguma lesãozinha?". Ao mesmo tempo, o paciente quer que sejam realizados "todos
os exames". Sua família, muito angustiada, gostaria que especialistas o avaliassem. A mídia
cobra um boletim médico informando seu estado clínico.

Sentindo o clima ao seu redor, o plantonista solicita um ultrassom de abdome, uma tomografia
de crânio e radiografias do corpo inteiro. Chama o neurocirurgião, que comprova a
normalidade da tomografia de crânio, anteriormente avaliada pelo radiologista. Ele orienta
um analgésico simples e retorno a seu consultório dentro de sete dias, para reavaliação e
tomografia de controle. O cirurgião torácico não vê alterações significativas nas radiografias,
prescreve outro analgésico e inalações com soro fisiológico. O cirurgião do abdome não ficou
muito satisfeito com o ultrassom que sugeria um pequeno "borramento" no fígado. Solicita,
então, uma tomografia de abdome. Esse exame confirma uma pequena lesão hepática

que não causaria nenhum problema (médico) caso não fosse identificada, uma vez que, pelas
suas proporções, é inócua. Mas, já que foi vista, o paciente ficará acamado por sete dias.
Assustada com a lesão do fígado, a família cobra a avaliação de um hepatologista. Não há
nada a fazer, mas para não parecer inútil, ele receita vitaminas e pede exames da função
hepática, que obviamente estarão normais. O ortopedista não detecta lesões ósseas, mas
acha melhor realizar uma ressonância da coluna cervical. Com tantos analgésicos, ele não pode
mais descartar a presença de uma lesão pelo seu exame clínico.
Cada exame, uma angústia! E graças a Deus... mais um exame normal! Sugere então um anti-
inflamatório.

Passada a avaliação inicial, a família decide mudar de hospital, pois quer ir para um mais
famoso. Vão de helicóptero. Nesse novo hospital os médicos concluem que os exames
realizados não eram da melhor qualidade e resolvem repeti-los com seu maquinário de
última geração. Mostram, então, para a família as lindas imagens de reconstrução em três
dimensões da pequena lesão hepática. Opa, opa, parece ter havido um erro; a lesão não era
de dois, e, sim, de três centímetros! Trocam de analgésico X por Y e mantêm o paciente em
repouso por cinco dias. O médico aproveita para comentar que o colega do litoral devia estar
desatualizado, pois no último congresso europeu mostrou-se que o remédioY é 1% melhor do
que o X.

A medicina é assim mesmo. Primeiro dizem que manteiga faz mal e depois contradizem
afirmando que a margarina é a vilã. Açúcar faz mal, depois é o adoçante etc.

O paciente recebe alta após várias picadas nas veias, com gastrite medicamentosa e dor nas
costas devido à cama do hospital. Vai para a casa a salvo, "graças aos vários exames de última
geração que realizou", feliz com a atenção que os vários médicos lhe dispensaram, satisfeito
com "a cura". Foi caro, mas fazer o quê? Precisava, né!

Resta apenas retornar aos consultórios dos especialistas, caso ainda se lembre do nome deles,
levando suas cinco receitas para não esquecer o nome dos medicamentos. Após um mês de
repouso, o paciente retornará às suas atividades habituais, ainda com medo de o fígado voltar
a sangrar...

É evidente que eu forcei um pouco a barra ao expor esse caso hipotético, mas foi só um pouco.
Os médicos são humanos e podem ficar acuados como qualquer outra pessoa. Naturalmente,
quando inseguros, pedirão mais exames e tentarão dividir suas responsabilidades com outros
colegas. Ao tratar dos VIPs, muitas vezes é assim que se sentem.

Dessa forma, se você for um paciente VIP, agradeça a Deus pelas possibilidades de escolha de
que dispõe. Mas aconselho que, quando precise, procure um bom hospital e principalmente
um bom médico. De preferência, solicite referências de fontes mais confiáveis do que de
outro paciente VIP E mais importante ainda: finja ser standard!
Caindo no mercado de trabalho e se espatifando...

"É fácil apagar as pegadas; difícil, porém, é caminhar sem pisar no chão."

LAO TS

Eu já tinha trabalhado em vários locais na qualidade de plantonista, mas agora arranjei uma
forma de trabalho que ainda era inédita para mim: a retaguarda de cirurgia.

Considerando que o hospital ficava do outro lado da cidade, era, literalmente, um plantão à
distância. Porém, os clínicos me acionariam apenas quando chegasse algum paciente
necessitando de uma avaliação cirúrgica.

Assim que começou o emprego, iniciou-se a pior semana da minha vida.

Se me chamassem, levaria, no mínimo, uma hora para chegar ao hospital. Caso pedisse algum
exame para definir a conduta, eu teria como opções esperar pelo resultado ou gastar mais
três horas no trânsito (voltar + ir + voltar). Se a avaliação não resultasse num procedimento
cirúrgico qualquer, ganharia apenas 30 reais (que só receberia após dois ou três meses). Se
incluísse uma intervenção, receberia o que o convênio pagasse por ela. Paradoxalmente,
rezava para que não me ligassem. E estava certo. A primeira vez já bastou para me convencer
a largar o emprego.

Seu Alberto foi a primeira chamada. Era um jornalista de 40 anos que, apesar de obeso, não
possuía nenhum antecedente médico de importância. Chegou com um quadro sugestivo de
apendicite. Realizou uma tomografia de abdome e exames de sangue que apontavam para o
mesmo diagnóstico. Baseado nesses dados, conversei com a família e indiquei uma cirurgia.

Fiz um cortinho do lado direito e, apesar de ter encontrado pus, o apêndice era normal. Então,
abri a sua barriga pelo meio e descobri uma diverticulite aguda no cólon. Como o seu cólon
era muito comprido, ele repousava do lado direito, em vez de fazê-lo à esquerda, e acabou
simulando uma apendicite perfurada.
Explicar o motivo das duas incisões e de uma colostomia, para o meu primeiro paciente, que
acreditava sair apenas com um cortinho, não foi fácil. Mas, pelo menos, não pecaria por
negligência. Visitava-o duas vezes por dia sem, no entanto, parar com as outras atividades.

Depois de uma semana, ele recebeu alta e eu pedi afastamento. Eu estava mais emagrecido e
esgotado do que o doente. Não seria possível exercer a atividade com a qualidade que eu
desejava sem destruir minha saúde ou acabar com os outros empregos.

Não posso negar que uma das minhas preocupações era justamente com a profissão do
paciente. Jornalista, ele poderia aumentar ainda mais a minha dor de cabeça caso divulgasse
uma versão fria e inconformada dos fatos. Segundo o jurista Saulo Ramos: "Jornalismo,
quando é bom, assegura a tomada de consciência do povo em todos os assuntos. Mas,
quando é ruim, saia de perto! Nada existe de mais maléfico. Informa errado, insiste no erro,
parte em busca de prova para mostrar o certo

e erra de novo; não se retrata, falsifica fatos, inventa entrevistas, difama, injuria e autoelogia.
É um desastre sem remédio".

Ao contrário do que temia, o jornalista operado compreendeu o ocorrido e tivemos um


excelente relacionamento, pautado em sinceridade e transparência. Mas bastaria um pouco
de desinformação para me criar um problema enorme.

Lembro-me, por exemplo, de uma denúncia na televisão sobre o suposto roubo de órgãos no
SVO, os quais teriam sido vendidos para transplante. A moça narrava sobre a retirada das
vísceras e a sua substituição por serragem. Não é agradável assistir a uma necropsia nem sei
como essa pessoa teve acesso a isso. Mas esta é a rotina. E os rins estarão tão mortos quanto
o paciente. O doador cadáver precisa ter a morte encefálica comprovada enquanto seus
outros órgãos vitais ainda não morreram, pois, só assim, servirão para transplantes. Caso
contrário, não precisaríamos ficar andando de madrugada com aquelas malinhas térmicas à
procura de potenciais doadores em hospitais...

Isso teria ocorrido no SVO e a repercussão foi maciça. A mídia, leiga, veiculou essa bobagem.
Como consertar o estrago?

Explicar algo a um jornalista pode não ser fácil mesmo no nosso ambiente.
Certa vez, uma conceituada revista semanal resolveu fazer uma matéria sobre o hospital.
Nessa ocasião eu era o residente-chefe da cirurgia e estava de plantão no pronto-socorro. O
resgate trouxe uma criança de nove anos que havia caído do quinto andar de um edifício. Ao
entrar na sala de emergência, ela ainda apresentava sinais vitais, porém eles desapareciam
rapidamente. O atendimento foi realizado por cinco médicos e quase dez auxiliares
comandados por mim. Precisamos intubar a sua traqueia, drenar os dois lados do seu tórax,
dissecar duas veias e passar sondas, enquanto administrávamos concomitantemente soro e
sangue.

A despeito de todas as manobras terapêuticas, o coração parou. Sabíamos que, nesse


momento, a chance de salvá-la era praticamente zero. Mas não deixaria aquela criança morrer
sem batalhar um pouco mais. Ao mesmo tempo que abri seu tórax para coibir hemorragias no
local e massagear seu coração segurando-o em minhas mãos (forma mais eficiente do que a
tradicional massagem externa), orientei outro colega a abordar o abdome e estancar a
hemorragia hepática. Mas, como era de se esperar, apesar de todo o nosso esforço, a criança
morreu. Embora a sala de emergência esteja preparada para tais atendimentos, ao seu
término o cenário é chocante.

Declarei o seu óbito e olhei lentamente para os lados, vislumbrando o cenário de destruição ao
nosso redor. No chão havia compressas ensanguentadas, pares de luvas descartados, bolsas
de transfusão vazias, equipos, seringas, pinças cirúrgicas e uma enorme poça de sangue ao
redor da criança. Tudo parecia ser vermelho ou róseo, exceto o corpo da criança; pálido,
retalhado e iluminado pela potente luz do foco cirúrgico, que evidenciava aquela tragédia.

Notei que algo destoava naquele cenário. Num dos cantos da sala, um jovem de cabelos
compridos (não muito comum entre os alunos da época) parecia estar tão branco quanto o
seu avental, talvez o único sem manchas de sangue. Pasmo, segurava nas mãos trêmulas um
caderninho e um lápis. Eu não o conhecia. Dirigi-me até ele e perguntei-lhe se estava bem.
Respondeu que sim e identificou-se como repórter da famosa revista.

Por sorte, era um repórter de uma revista séria e não de um jornal sensacionalista qualquer.
Eu já estava imaginando uma manchete mais ou menos assim: "Médico carniceiro opera
criança em maca do pronto-socorro sem anestesia!".

Se a interpretação de um texto pode ser tão variada, imagine a de uma cena destas. Porém,
poucos dias depois, li a reportagem na revista e, para o meu alívio, ele não fez nenhuma
colocação ignorante ou maldosa. Havia entendido a lógica do atendimento. Surpreendeu-me
a sua habilidade em captar detalhes, como a minha angústia, por exemplo. Não foi fácil
decidir e indicar todos aqueles procedimentos, bem como comandar a condução desse caso.
Ele descreveu a atuação dos vários médicos simultaneamente, mas com detalhes individuais!

Meu medo finalmente se dissipou. Embora soubesse que não houvera nenhum erro no
atendimento da criança, aos olhos de um leigo poderia existir. Daí pra frente, até provar que
focinho de porco não é tomada...

A mídia, como qualquer outra área de negócios, tenta vender produtos que acredita serem
vendáveis. Expõe o que dá audiência. Em medicina, três coisas costumam dar muita audiência:
grandes avanços tecnológicos, tratamentos exóticos e erros médicos.

Desde que ajam de forma responsável, não vejo maiores problemas na seleção desses temas.
A grande questão é que, às vezes, a mídia veicula como sendo grotesco e inaceitável algo que
nem sempre é um erro (afinal, errinhos bobinhos não dariam "Ibope").

Falar que um médico operou mil hérnias sem problemas é muito

mais insosso do que mostrar um caso dele que tenha evoluído com hematoma. Faz-se tanto
alarde que essa previsível complicação sofre uma metamorfose aos olhos dos espectadores;
transforma-se em um erro horrível. Após a divulgação do fato, a reputação do profissional
ficará injustamente maculada. Na maioria das vezes, mesmo quando ele estiver eximido da
culpa, ela nunca ficará completamente limpa.

Sofri muito no caso do "apêndice" do jornalista. Pude sentir na pele, de uma só vez, uma série
de experiências. A angústia e a frustração do erro de diagnóstico, a insegurança, o peso de ser
"o" médico do caso, a importância fundamental do bom relacionamento médico-paciente,
nossa fragilidade, nossa falibilidade. Tudo isso multiplicado pela nossa "jornalistofobia".
Enquanto tratei desse indivíduo, cansei de meditar, frustrado, sobre a "injustiça" de acontecer
um erro daquele justamente no meu primeiro paciente privado! O tempo me mostrou que, na
verdade, os erros são muito mais frequentes do que gostaríamos que fossem. Aparecem no
terceiro paciente, no sétimo, no vigésimo, no milésimo...

Complicações
É complicado ter complicações!

"Urologista perfura intestino ao tentar retirar pedra do canal da urina!" Erro médico sempre é
terrível, mas vamos analisar esse caso, aproveitando o fato de desconhecer seus detalhes.

Uma jovem foi submetida à retirada de um cálculo renal por intermédio de uma microcâmera
introduzida pelo canal da urina e... faleceu devido a uma perfuração intestinal!

O meu primeiro impulso foi de indignação e revolta. Como alguém que estudou anatomia
pode furar o cólon entrando pela uretra? Se fosse parente da doente e leigo ficaria revoltado.
Como não sou, tenho o privilégio de poder analisar o caso com menos paixão e de forma mais
racional.

Muitas vezes, o cálculo é grande ou está muito aderido ao ureter (onde a pedra se localizava),
o que dificulta a sua retirada. Nesses casos, pode ocorrer a sua perfuração em até 6% das
vezes.' Isso quer dizer que inclusive o melhor profissional do mundo (para quem costumam
ser encaminhados os casos mais complicados e "perfuráveis") não escapará para sempre do
risco de cometer uma lesão. Como o ureter passa diretamente sob o intestino grosso, este
também poderá ser lesionado. Se sua ocorrência não for percebida, o que não é impossível, a
evolução clínica inadequada no pós-operatório deverá chamar a atenção do urologista.

Não posso atestar até aqui nenhum erro médico, apesar de você provavelmente encarar essa
complicação como tal. Se tudo foi realizado da maneira preconizada e, mesmo assim, houve
uma perfuração, trata-se de uma complicação. Haveria erro se a perfuração tivesse ocorrido
por imperícia ou imprudência. Imperícia, caso descobríssemos que o colega não era habilitado
a realizar o procedimento. Imprudência, se ele houvesse realizado a intervenção às pressas,
sem as condições mínimas de segurança, ou após ter dilatado suas pupilas em alguma consulta
ao oftalmologista, horas antes. Apesar disso, não descarto que tenha ocorrido um dos erros
mais comuns. Se a paciente evoluiu mal e o médico menosprezou seus sintomas ou não a
socorreu de forma adequada, incorreu em negligência. Como você pôde perceber, às vezes
não é tão fácil identificar um erro. E muito mais diúcil será erradicá-los.

*15. Projeto diretrizes, da Associação Médica Brasileira, 2001.

As complicações e os erros continuarão existindo, assim como a dificuldade em distingui-los.


Essa diferenciação é importante e tentarei explicá-la um pouco melhor.
Um paciente no pós-operatório de uma apendicite supurada evoluiu com uma infecção de
ferida cirúrgica. Abri os pontos da incisão cirúrgica, drenei o pus e receitei antibióticos.

Meses depois, ao nos encontramos em uma festa, ele me perguntou: - Doutor, numa boa:
aquilo foi uma infecção hospitalar, não foi? Por definição, era uma infecção hospitalar.
Embora se admita que em até 40% das cirurgias desse tipo possa aparecer uma infecção da
ferida operatória, na interpretação do paciente ela teria ocorrido em decorrência de um erro
meu ou do hospital.

Após eu ter respondido afirmativamente, ele me deu uma cutucada, como se estivesse
pactuando:

- Tranquilo... Ficará apenas entre nós dois... Às vezes é difícil para o leigo entender que uma
infecção possa surgir apesar de toda a higiene. Mas elas aparecem e, desde que não tenha
ocorrido uma quebra da técnica operatória (não usou antisséptico, coçou o nariz durante a
cirurgia...), não caracterizam um erro, e, sim, uma complicação. Nós as detestamos. Além do
trabalho extra "evitável" que trazem, refletem nossas imperfeições e as limitações da
medicina, geram dúvidas e especulações nos pacientes e em seus familiares.

Quando comecei a operar, tive a doce ilusão de que nada sairia errado se realizasse tudo com
capricho e carinho. Ingênua ilusão... Por mais que apliquemos a melhor conduta cirúrgica
possível e que imploremos, aos tecidos biológicos, com muita educação, jamais adestraremos
as células e seus mecanismos de cicatrização. É evidente que complicações serão maiores e
mais frequentes nos cirurgiões irresponsáveis e incompetentes, mas nunca deixarão de
aparecer nas melhores mãos, o que também não deixa de ser bom. Complicações, pelo
menos, são didáticas e o aprendizado em sua decorrência é muito mais sólido do que com os
acertos. Assim como com os erros, elas possuem um grande poder "humildogênico". Por isso é
que um dos melhores locais para controlar o insuflado ego do cirurgião é o pronto-socorro.
Ali, pacientes desnutridos e com doenças graves chegam precisando de tratamento
emergencial, impedindo a realização de um preparo pré-operatório adequado. Nestes, é claro
que os resultados serão piores. Haverá mais infecções, vazamentos, sangramentos e, claro,
óbitos. As vezes ficamos tão deprimidos e inseguros com as mortes e complicações
sequenciais que passamos a operar apenas casos simples por algum período. Assim, a
probabilidade de algo sair errado é menor e o nosso ego pode voltar a crescer. Quando atinge
determinado tamanho e eleva a nossa autoestima, o ciclo se repete e voltamos a operar casos
graves.
Independentemente do estado psíquico ou de suas habilidades, qualquer procedimento de
qualquer médico em qualquer instituição tem a sua taxa de complicações. Juntando essa
constatação à medicina defensiva, da qual em breve falarei, surgem coisas esdrúxulas, como
uma das conclusões de um simpósio do qual participei: "Não há benefícios médicos que
justifiquem o uso obrigatório de antibióticos nas cirurgias de hemorroidas. Mas é melhor
receitá-los, pois se, por azar, aparecer alguma infecção, o juiz não entenderá o porquê de não
terem sido administrados preventivamente".

Lamentável... O consenso médico deveria servir de anteparo às eventuais críticas e resguardar


as boas condutas médicas, principalmente quando ocorrem complicações. Aqui, o que ocorreu
foi o contrário. Se algum médico azarado tiver um paciente com uma infecção no pós-
operatório de hemorroidas, não poderá buscar proteção no consenso (desta reunião), que, cá
para nós, não foi nada científica. Saí do anfiteatro pensando: "Estes médicos estão mais
preocupados com o próprio ânus do que com os dos seus pacientes...".

Mas, afinal, pensando em complicações, que mal poderia existir em se aplicar um antibiótico?

Excluindo o fato de que o inútil é desnecessário, das questões de custo e da seleção de


bactérias resistentes, não podemos nos omitir dos efeitos colaterais e idiossincrásicos. Idi-o-
quê? Às vezes, tentando evitar problemas, criamos outros piores...

Uma paciente foi internada com um tumor no crânio e a sua cirurgia foi um sucesso. Os
neurocirurgiões prescreveram, corretamente, um antibiótico para prevenir infecções. Devido à
medicação, ela desenvolveu um terrível quadro de Stevens-Johnson. Trata-se da manifestação
de uma resposta extremamente exagerada do sistema imunológico do indivíduo, devido a
uma hipersensibilidade pessoal e imprevisível, que pode ser desencadeada por vários
fármacos. Nela, a pele do corpo todo e boa parte do revestimento das mucosas se solta pela
formação de bolhas, deixando a pessoa em "carne viva" como se fosse um grande queimado.
Ela quase morreu; ficou internada por dois meses. Ainda bem que essa complicação é muito
rara, mas seria um erro caso o antibiótico fosse desnecessário.

Chamamos de Intracate o cateter que inserimos nas veias próximas ao coração, designadas de
veias "centrais". Esse acesso venoso possui várias vantagens, de modo que basta entrar numa
UTI para ver pacientes com esses caninhos no pescoço. Existem algumas técnicas para inseri-
los, todas orientadas por pontos anatômicos preestabelecidos (mamilo, borda do músculo do
pescoço, entre outros), pois essas veias não podem ser palpadas ou visualizadas. Assim,
estimamos a sua posição por meio dos reparos anatômicos (e um pouco de arte) para
conseguirmos puncioná-las "às cegas".
Nem sempre é fácil. Quantas vezes senti a falta de uma forquilhinha nos kits de lntracate,
como aquelas que utilizam no agreste para achar água no subsolo...

As taxas de sucesso são grandes, embora, como em tudo na medicina, essas punções também
apresentem suas desvantagens. Podem furar o pulmão ou uma artéria que é praticamente
aderida à veia, por exemplo.

Quando eu era R5 de cirurgia, só me chamavam para passar esse tipo de cateter quando os
R1, R2, R3, R4 não tinham conseguido; algo totalmente inusual. Esses pacientes acabavam
ficando cheios de furos pelas tentativas prévias, o que lhes conferia o apelido de "peneiras".

Claro que os peneirados sofriam consequências. Neles, apesar da supervisão, grande


experiência e cuidado, fiz algumas lesões. Também fiquei sabendo de outras complicações,
como perfurações pulmónares, hemorragias gravíssimas e até morte. Esses casos críticos são
raros, mas ficam bem guardados na memória.

Uma situação terrível ocorreu na troca de um desses dispositivos. Para minimizar os riscos de
uma nova punção, a substituição é realizada por meio de um fio-guia. Nesse método,
inserimos um fio-guia que lembra a corda de um violão por dentro do cateter e, depois, o
retiramos. O trajeto da punção é orientado pelo guia, que é então envolto pelo novo cateter.
Este vai sendo empurrado para dentro da pele até atingir o local original. No fim, o fio-guia é
retirado. Uma das táticas descritas para verificar se o fio está no local adequado consiste na
observação de uma espicula no traçado do monitor cardíaco, assim que ele entra na veia e
cutuca o coração.

Um paciente estava com febre diária. Pensando em uma contaminação do cateter, optaram
por trocá-lo. A técnica realizada foi exatamente a descrita e realmente houve uma espicula.
Mas esta desencadeou uma arritmia irreversível que culminou com a morte do indivíduo!
Uma complicação.

Erros

"Experiência é o nome que cada um dá a seus erros."


OSCAR WILDE

Quando iniciam uma anestesia, muitas vezes os anestesistas demonstram a eficácia de suas
medicações fazendo alguma brincadeira com o paciente. Lembro-me de um anestesista que,
durante a indução anestésica, falou ao paciente:

- Começarei a injetar no Intracate e, antes que o senhor possa contar até dez, já estará
dormindo.

- Um, dois, três... - o anestesista começou a injetar o anestésico pelo cateter. - ... quatro,
cinco, seis...

- ... sete, oito, nove... - continuou injetando, sem nenhum efeito! Incrédulo, injetou mais uma
ampola. - ... vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco... Antes que o paciente chegasse ao
número 200 sem qualquer indício de sono, o anestesista estranhou e resolveu puxar o êmbolo
de uma seringa conectada ao cateter para verificar a sua posição. Ficou surpreso, pois não
refluiu sangue (o que aconteceria caso estivesse dentro da veia), e, sim, o equivalente a duas
ampolas de anestésico branquinho... O cateter estava dentro do tórax, onde a absorção do
anestésico é muito lenta para surtir efeito. Isso não teria ocorrido caso o anestesista testasse
a localização do cateter como manda o figurino, antes de administrar medicamentos. Isso foi
um erro médico.

Os famosos "imperícia, negligência e imprudência" deverão ser combatidos a todo custo. Mas,
apesar de todo o afinco, boa parte dos erros continuará inevitável, pois não fará parte,
necessariamente, de nenhum desses conjuntos ou das complicações. Muitos acontecimentos
só poderão ser classificados como inadequados após o desfecho do caso, como no meu
primeiro paciente (aquele jornalista com diverticulite). Apesar de ter seguido, corretamente,
todos os passos para o diagnóstico e tratamento da sua dor abdominal, descobri depois,
amargamente, se tratar de uma diverticulite. Se, logo no início, fosse possível prever esse
diagnóstico, a conduta certamente teria mudado para melhor.

Batizarei esses tipos de equívocos, muito presentes em nosso dia a dia, de "erros informais".

Talvez você se pergunte indignado: "Os erros informais são tão frequentes assim? Com toda a
tecnologia disponível nos dias de hoje, ainda existem dúvidas a respeito de determinada
conduta ou diagnóstico?".
Os erros formais e os informais devem ser divulgados para que sejam estudados e, dentro do
possível, reparados, mas, principalmente, evitados no futuro. Com esse intuito, nós e os
assistentes nos engalfinhávamos semanalmente em uma reunião em que expúnhamos as
complicações e os óbitos do serviço. Nela, não cabia nenhuma manobra do gato, pois o
objetivo consistia em analisar os casos "encacados" para tentar chegar a um veredicto do que
teria sido certo ou errado em sua condução.

Manobra do gato, ou cat's maneuver. os bichanos, após evacuarem, escondem as fezes sob a
areia. Desculpe-me pelo linguajar chulo, mas quando um cirurgião faz alguma "cagada"e a
esconde, está aplicando a manobra do gato.

Não pense que havia unanimidade entre os especialistas. Uniformizar algumas condutas e
evitar novos erros informais é muito mais difícil do que parece. Os vários colegas que
frequentavam essas reuniões tentavam alcançar esse objetivo havia mais de trinta anos, mas
continuávamos a ter nossas dúvidas e a errar diariamente, sem, no entanto, incorrer nos erros
formais. Por quê?

Para começar, sabemos que toda evolução tem o seu preço. "O bumerangue não foi
inventado partindo da compreensão dos princípios da aerodinâmica... Esses e outros
mecanismos foram alcançados por tentativa e erro..."(Paul Davies). Embora na medicina não
seja bem assim, apesar de toda a ética e de toda a precaução, criamos e inovamos
constantemente. E quem inova está sujeito a se enganar, como já discorri sobre o início das
cirurgias laparoscópicas ou sobre o surgimento da ressonância magnética. Mas mesmo que
não sejamos ousados, equívocos sempre estarão presentes.

Segundo A. Gawande, um cirurgião, o funcionamento das pessoas está em algum ponto da


escala entre os previsíveis cubos de gelo e os imprevisíveis furacões. Apesar do emprego dos
mais avançados computadores calculando milhares de operações por segundo, jamais
saberemos com antecedência se os atingidos serão haitianos ou dominicanos. O mesmo
ocorre com alguns aspectos da nossa fisiologia.

O médico não é mecânico nem você é uma torradeira! O médico não estabelece um prazo de
garantia nem o paciente vem procurá-lo portando um manual de instruções.

Cada pessoa é um ser individual com características exclusivas e inter-relacionadas. Um


protocolo até pode estabelecer como tratar uma úlcera hemorrágica, mas nunca orientará
como tratar um senhor sangrando com câncer de pâncreas, esofagite grave, úlcera gástrica,
insuficiência cardíaca e com o banco de sangue fechado!

Não existem dois casos iguais e qualquer abordagem jamais estará imune a críticas.
Entretanto, depois que o paciente morre na cirurgia, todo mundo fala - com rara convicção -
saber desde o início que o melhor tratamento seria não operá-lo. Veja como é fácil ser "o
médico do dia seguinte"...

O código de ética médica considera o ato de acobertar um erro médico antiético. Mas,
infelizmente, alguns médicos adoram difamar e criticar outros médicos, mesmo quando o que
houve não constitui um erro, e, sim, uma complicação ou fatalidade inevitável. Por isso, há um
ditado que diz: "Deus criou o médico e o diabo criou o colega'."

Além dos milhões de variáveis humanas, às vezes ocorre algum problema tão inusitado, que
nunca pensaríamos, antecipadamente, em como evitá-lo.

Por exemplo, hoje existem várias soluções antissépticas. O álcool é uma delas e o iodo-
povidine, outra. Por que não associá-las? Surgiu, então, o iodo-povidine alcoólico, um
excelente antisséptico. Como é amarelado, costumávamos usá-lo antes de um procedimento
cirúrgico, para pintar o paciente no local em que seria operado.

Depois de extrair o útero e fechar a barriga da paciente, o cirurgião se lembrou de uma


pequena lesão dérmica que ela queria retirar na mesma ocasião, aproveitando a mesma
anestesia. Como tinha saído do campo operatório, ele pediu ao seu auxiliar que o fizesse.
Tratava-se de um procedimento muito simples, uma verruguinha na coxa. O cirurgião auxiliar,
com toda a sua maestria, passou o antisséptico alcoólico com uma mão e cortou a verruga
com a outra. Delicadamente, aproximou-se com a caneta do bisturi elétrico e, para cauterizá-
la, a acionou com um leve toque. Mas o álcool ainda não tinha evaporado e - BUM! - a
pequena faísca explodiu numa labareda que subitamente atingiu a perna da paciente e a face
do cirurgião. Ele conteve o incêndio rapidamente, mas não evitou queimaduras de primeiro
grau. No outro dia, a paciente estava ótima, mas intrigada:

- Doutor, eu queria saber por que a cirurgia da verruga dói bem mais que a do útero...

Porém, o cirurgião só soube responder após encontrar com o seu auxiliar. A face avermelhada
nacarada e o cheiro de sobrancelhas queimadas o denunciaram. Seus amigos tentaram
consolá-lo brincando que, pelo menos, não ocorreria infecção no pós-operatório. Afinal,
nenhuma bactéria resistiria àquela flambada...

Não somos infalíveis. Apesar de muito estudo e dedicação, existem situações em que
simplesmente nos enganamos, esquecemos, escorregamos. Somos humanos. Quantos
tumores posso ter deixado passar despercebidos, quantos remédios prescrevi por menos ou
mais tempo, quantas doenças em que não pensei ou simplesmente desconhecia? Quantas
condutas recomendei e, posteriormente, a mediciná passou a desconsiderá-las?

O diagnóstico da maioria das doenças é dado de acordo com um colorido e amplo quadro
clínico. Em outras palavras, a mesma doença jamais se manifestará de forma idêntica,
exatamente com as mesmas queixas e alterações. Uma pneumonia pode dar febre ou não. Ter
catarro ou não. A radiografia de tórax pode estar alterada ou não. Em geral, juntando a
história clínica, o exame físico e os resultados dos exames complementares, chegaremos a um
mosaico de informações sugerindo um diagnóstico. Às vezes, entretanto, o quadro não é tão
claro e um exame falso-positivo ou um falso-negativo (tendo em vista que nenhum exame é
perfeito) pode sugerir a conduta errada.

Certas doenças possuem exatamente a mesma manifestação clínica em sua fase inicial.
Muitas vezes, apesar dos exames complementares, apenas a evolução clínica possibilitará o
diagnóstico. Como não se enganar?

Não leve em conta o caso do interno que confundiu uma gestante em período expulsivo com
uma cólica renal e, ao contrário disso, pegue dois renomados professores. Discuta com eles,
separadamente, um caso atípico de dor abdominal. Cada um pode achar uma coisa diferente.
Mas, em geral, mesmo que raciocinando por caminhos opostos, chegarão ao mesmo
diagnóstico. Os resultados podem ser diferentes, mas, em geral, similares. Um dos dois deve
ter se enganado na suspeita diagnóstica inicial, mas nenhum dos dois errou na conduta
referente à sua hipótese. Se não acertou, reparou-a a tempo de não prejudicar o paciente.
Essas pequenas "correções de rumo" ocorrem a toda hora, pois também cometemos errinhos
constantemente. Entretanto, são praticamente inócuos e, algumas vezes, como você pôde
perceber, inevitáveis.

Não presenciei com frequência casos de negligência, imperícia ou imprudência, mas vivenciei
vários erros informais. Sendo humano, dispondo de métodos limitados e atuando na
incerteza, encaro isso racionalmente. Todos erram em medicina, exceto os mentirosos e os
que não têm a menor experiência clínica. Entretanto, sempre tentamos indicar condutas que,
mesmo consideradas "erradas" a posteriori, prejudicarão o menos possível. Mais uma vez, é
melhor operar um apêndice "branco" do que postergar a cirurgia e encarar um perfurado.
Alguns apêndices normais pagarão o preço dessa postura, contudo salvaremos mais vidas.

Algumas doenças que não necessitam de cirurgia podem simular um quadro de apendicite. Se
fossem diagnosticadas antes da intervenção, poderíamos não ter operado. Mas às vezes,
apesar de todos os exames, é impossível sabermos disso até que abrimos a barriga e vemos
um apêndice normal (branco).

Se sabemos que continuaremos errando, como deveremos abordar o tema com as nossas
vítimas?

É muito mais fácil o paciente processar um médico mal-educado ao descobrir que este o
operou de apendicite "desnecessariamente"do que fazer o mesmo com outro médico que
expôs as suas angústias ao não conseguir descartar o diagnóstico e explicou a necessidade de
uma cirurgia exploradora para minimizar os riscos de uma intervenção tardia. Mesmo assim, a
situação pode ser bem mais delicada. Sendo cirurgião, vou falar um pouquinho de compressas
e outros objetos...

Aviões não são feitos para cair, mas, apesar dos experientes pilotos, da mais moderna
tecnologia, de rigorosos protocolos e da supervisão por competentes controladores de voo
(não estou sendo irônico), eles caem. Esquecer algo na barriga de um paciente durante uma
cirurgia pode parecer absurdo e, até mesmo, abstrato para quem não é do ramo. Como um
profissional bem treinado pode deixar um pano branco de 30 centímetros no meio das tripas?
Bom, isso é mais comum do que a queda de aviões...

Marcamos, prendemos as compressas, evitamos o emprego de gazes dentro do abdome,


conferimos o número de panos e revisamos os passos do procedimento cirúrgico ao finalizá-
lo. Entretanto, o cansaço, os sangramentos, os erros de contagem, as gazes embebidas com
sangue, o revezamento de equipes, as incisões pequenas, a barriga-d'água e uma série de
outros fatores jogam contra o médico. Essa é uma preocupação tão constante que nos
atrapalha até o sono.

Lembro-me de estar no conforto médico esperando pela minha paciente, quando o médico ao
meu lado acordou do seu cochilo, gritando:
- Putisgrila, deixamos uma compressa atrás do fígado! Ele, sabe-se lá por que, recordou e
acordou a tempo de voltar à cirurgia e retirá-la, antes que seus auxiliares fechassem o
abdome...

Mesmo com todo o cuidado do mundo, o aumento do número de "horas cirúrgicas de voo"
contribuirá para que isso, em alguma ocasião, aconteça.

Quando esse experiente cirurgião procurou o decano professor para compartilhar a


frustração, em vez de uma repreensão, percebeu compreensão: "Bem-vindo ao clube...".

Segundo esse catedrático, todo cirurgião experiente teria participado de algum evento
parecido, direta ou indiretamente.

Ao ocorrer um desses problemas, os médicos revelam ou mentem ao paciente, seja


distorcendo os fatos, seja ocultando-os. A decisão será individual ao avaliar sua consciência.

Um cirurgião esqueceu uma compressa na barriga do seu paciente durante uma cirurgia de
emergência. Exames no pós-operatório demonstraram a existência do corpo estranho e o
médico relatou a descoberta ao doente, explicando a necessidade de um novo procedimento
para sua retirada. É evidente que o relacionamento entre os dois era muito bom. Alguns
médicos poderiam preferir abordar dizendo ter descoberto qualquer outro problema que
necessitasse de uma nova intervenção, mas estariam mentindo. No pós-operatório, ao visitar
seu paciente na enfermaria, o médico começou a narrar os detalhes da última cirurgia,
quando foi interrompido pelo próprio doente:

- Pshhh. Fale baixo! Percebendo a perplexidade do médico, explicou: - Esqueceu-se de que


sou advogado? Se o vizinho souber que o senhor esqueceu um pano em mim, vai questionar
por que eu não o estou processando!

Outras vezes, aplica-se a manobra do gato e nada é comentado... O plantão no pronto-socorro


era muito movimentado. A toda hora chegava um baleado. Diziam que se você jogasse alguém
para cima e atirasse no indivíduo, pouco importaria o ângulo do disparo ou a posição da
vítima, pois a equipe já teria operado algum paciente com um trajeto de bala similar. Nesse
dia, porém, ocorreria algo inédito.
Chegou um homem praticamente morto, com um tiro na região do coração. A equipe inteira
se mobilizou para tentar salvá-lo. Enquanto enfermeiras pegaram veias para dar soro, um
médico intubou a traqueia e outros iniciaram uma toracotomia de emergência. Em outras
palavras, abriram o seu peito do lado esquerdo até acessar o coração e os pulmões em
questão de segundos. Essa manobra é indicada em casos extremos, pré-óbito, muito longe das
condições ideais. Precisa ser rápida e eficaz, sem frescuras. Diferentemente das cirurgias a que
estamos acostumados a ver, não ache que o cirurgião irá se escovar, se paramentar, pintar
com antisséptico o tórax do doente, fixar os campos, testar o foco, o bisturi elétrico e o
aspirador para, finalmente, começar a incisão. Na maioria das vezes, ele calça uma luva, veste
um avental, pega a lâmina do bisturi na mão e corta o tórax de uma só vez. Se conseguir
salvar o paciente, depois verá o que fazer.

A situação é tão dramática que me lembro claramente da primeira vez em que salvei alguém
com uma toracotomia de emergência, o que é muito raro. Abri o tórax, costurei o coração e,
para a minha surpresa, o paciente começou a reagir. Nessa hora, fiquei meio perdido me
perguntando: "E agora, e agora, o que eu faço?" É curioso, mas normalmente depois de ter
feito tudo o que descrevi, o paciente morria. Era com isso que eu estava acostumado. Mas e
agora que o paciente viveu; o que eu faço?

Voltando à história, o baleado começou a dar sinais de vida após as manobras de reanimação
com o peito aberto. Rapidamente o transferiram da sala de emergência para o centro
cirúrgico, onde outros da equipe estavam preparados para recebê-lo. Em campo cirúrgico
foram revisadas e reforçadas todas as costuras confeccionadas na sala de emergência. Os
cirurgiões se preparavam para fechar o peito do doente, quando ouviram uma pergunta vinda
da porta da sala de operações, muito estranha para aquele momento:

- Pessoal, alguém viu o meu relógio por aí?

Era o médico da sala de emergência, preocupado com o presente que recebera havia poucos
dias de sua noiva. Ele o perdera durante o atendimento emergencial. Como fizera a massagem
cardíaca segurando o coração com as mãos (massagem intratorácica) na sala de emergência,
quem sabe algum dos colegas teria visto seu relógio...

A pulseira do relógio se abriu durante a toracotomia e, no meio da confusão, ele caiu dentro
do tórax, ficando escondido atrás do coração.
Não sei quem se espantou mais: o cirurgião em campo, ao encontrar o relógio, ou o da sala de
emergências, ao ouvir a resposta: "Por acaso é este prateado, aqui no saco pericárdico?".

O paciente foi salvo e, para o restante de sua vida, sua ausculta cardíaca continuou: "Tum-Tá,
Turn-Ta". Mas poderia ser "Tic-Tac, Tic-Tac"...

Não acredito que haveria algum benefício em contar o ocorrido ao paciente, como também
não vejo nenhum malefício em ter ocultado. Minha postura geralmente é revelar o que ocorre,
independentemente do que tenha sido, mas, como viram, pode não ser a regra.

Como já disse, em algumas ocasiões o médico, preocupado com problemas legais, acaba
mentindo ao paciente. Contudo, às vezes, mentir torna-se quase impossível.

A delicada cirurgia fora um sucesso. O paciente recebeu alta sentindo-se muito bem.
Entretanto, ainda relatava uma estranha queixa. Ao se curvar para frente, sentia uma pontada
no estômago. Era como se nessa posição algo o pressionasse. Por outro lado, ao se inclinar
para trás (o que normalmente repuxa os pontos), não sentia dores. Inicialmente, essa
reclamação não mereceu muita atenção. Ele sobrevivera, o que em seu caso já teria sido um
grande mérito.

Era um paciente muito simplório, típico de hospital público. Tímido, quietinho e sempre
agradecido com a melhora dos sintomas que a cirurgia havia lhe proporcionado. Vê-lo no
ambulatório era sempre prazeroso... até ouvir no fim da consulta a sua persistente queixa:

- Doutor, eu continuo sem poder me abaixar para amarrar os meus calçados. Dá uma
pontaaada no estômago!

Nas vindas subsequentes ao ambulatório, contava que a cirurgia estava ótima, cada vez
melhor. Mas a queixa persistia. Finalmente intrigado e incomodado, o médico resolveu pedir
raio X de abdome. Para sua surpresa, a grotesca imagem da sapata aparecia lá.

O que vem a ser isso? Quando o abdome está com suas alças intestinais muito distendidas,
podemos ter dificuldade para fechá-lo. Os pontos responsáveis pela contenção das vísceras
são aplicados num tecido firme (aponeurose) que circunda os músculos anteriores do
abdome. Para passar esses pontos sem correr o risco de furar as alças distendidas com a
agulha de sutura, podemos utilizar a sapata. A sapata é uma espátula de metal na forma e do
tamanho de uma sola de sapato que pode empurrar as alças para baixo. Estando por detrás
dos músculos, a agulha raspará nela e não no intestino. Próximo ao término da sutura,
retiramos a espátula e redobramos nossa atenção ao dar os pontos. Naquele dia, o médico
deve ter se distraído e esqueceu-se de retirá-la!

Se já foi inusitado esquecê-la, a situação ficou ainda mais pitoresca com a história que o
médico inventou.

Dizem que a melhor defesa é o ataque. Pois bem, antes que o paciente pudesse perceber o
que ocorrera, levou uma bronca do seu doutor:

- Seu João, o senhor ainda não devolveu a sapata? Olha ela aqui dentro da sua barriga. Não
tem como mentir, eu sei que o senhor a levou para casa! Como o senhor pôde ficar com ela
tanto tempo assim? Não sabe que outros pacientes também precisam? Pelo amor de Deus!
Vamos removê-la o quanto antes!

O paciente pediu mil desculpas pelo incômodo. Jurava que não havia sido avisado e estava
disposto a ajudar. Foi operado novamente e recebeu alta. Ao se despedir do médico, para
mostrar o benefício dessa última intervenção e provar sua gratidão, curvou-se como um
japonês e foi-se embora...

Algumas consequências negativas...

"Uma anastomose não realizada não apresentará vazamento."

A. MoosA

e acredito, até, que aumentarão. Isso se explicaria pelo fato de cada vez mais médicos terem
uma formação precária e segmentar. Além disso, paradoxalmente, a maior quantidade de
exames solicitados pode distanciar os doutores de seus pacientes, aumentando as
possibilidades de erros. Estes serão mais divulgados e explorados. Não digo isso apenas em
função da liberdade de expressão, da internet ou de outros avanços. Alguns segmentos
adorariam que fôssemos, em certos aspectos, iguais aos norte-americanos. Por exemplo,
seguros contra erro médico.
Juridicamente, acho que os nossos maiores problemas, parcialmente inflados pela mídia, são a
imagem de infalibilidade a nós atribuída, a inexatidão de nossa ciência, a confusão entre erro
e complicação e o desconhecimento a respeito da existência de erros inevitáveis.

Há um estudo que analisou as várias causas de aumento no número de processos contra


médicos nos Estados Unidos.16 Duas me chamaram a atenção:

• O desaparecimento do médico generalista de família, que possuía um relacionamento com


os seus pacientes muito melhor do que os doutores atuais (na maioria dos casos o processo
decorre de problemas no relacionamento médico-paciente).

• O próprio surgimento de seguros para médicos contra má prática!

Você conhece os norte-americanos. Nos Estados Unidos, até a capa da fantasia de Super-
homem precisa ter uma mensagem alertando sobre os riscos de tentar voar.17 Deve ter
ouvido falar da norte-americana Stella Leibeck (81 anos), que se queimou com café enquanto
bebia e dirigia ao mesmo tempo - ela ganhou uma indenização milionária do McDonald's por
isso. Ou talvez do norte-americano Terence Dikson que, acidentalmente, ficou preso durante
oito dias na garagem de uma casa que assaltava, comendo ração de cachorro e bebendo
refrigerante

As complicações e os erros informais continuarão a surgir, permitindo que nos aperfeiçoemos.


Os erros clássicos e grosseiros também seguirão

*16. FRIEDNBERG, R. M. "Malpratice Reform". Radiology 2004;231:3-6. 17 NorrmcvrrT,W. O


prêmio Darwin: a evolução em ação. Rio de Janeiro: Frente, 2001.

quente - ele recebeu quinhentos mil dólares de indenização por angústia mental indevida!

Nesse mesmo país, um dos parâmetros legais para se estabelecer má prática é a ocorrência de
um efeito adverso relacionado a um tratamento. Oras! Todos os tratamentos têm, em maior
ou menor grau, algum efeito adverso! Nunca seria médico lá. Basta aparecer alguém mal-
intencionado e teremos processos até em tratamento de frieira!
Nos casos que vão a julgamento nos Estados Unidos é muito comum que o júri enxergue o
paciente como vítima. Ao mesmo tempo, vê o médico como alguém segurado por alguma
grande empresa que poderá arcar com as indenizações sem maiores problemas. Para se ter
uma ideia, no caso do clínico geral, o preço do seguro contra má prática subiu 17% em 2000,
10% em 2001 e 25% em 2002! Os processos envolvendo indenizações maiores do que um
milhão de dólares subiram de 34%, em 1996, para 52% em 2000. É muito mais fácil ficar
milionário processando médicos norte-americanos do que trabalhando honestamente! Antes
de 1960, apenas um a cada sete médicos seria processado durante sua carreira inteira.
Atualmente, um a cada sete médicos é intimado a cada dois anos!

Esses dados assustadores trouxeram algumas consequências positivas. Os advogados ficaram


mais ricos, as seguradoras criaram um novo nicho de atuação, cresceram e geraram
empregos. Talvez mais justiça tenha sido feita. Mas também houve consequências negativas.
A pior delas incidiu justamente sobre os pacientes: o surgimento da medicina defensiva.

Em vez de ajudar o paciente, o seu objetivo primário é defender o médico de eventuais


"pepinos" legais. Com o aumento da cobrança e da intolerância aos erros médicos (mesmo
para com os inevitáveis), é natural que o profissional tente se proteger gastando seu dinheiro
com seguros e o do paciente com exames desnecessários.

Com a medicina defensiva, os médicos deixaram de procurar uma doença para o paciente e
passaram a excluir diagnósticos que poderiam complicar juridicamente a vida deles, médicos.
Se é que procuram por alguma moléstia, isso inclui apenas o grupo de patologias que faz parte
do seu "rol de atuação" (afinal, são especialistas!).

Uma dor de cabeça que poderia ser um tumor em apenas 0,1% das vezes deveria receber,
segundo a medicina clássica, um analgésico. Mas, com a defensiva, o raciocínio se altera: esse
sintoma deverá ser amplamente investigado, afinal em 0,1% haverá um tumor (e se eu apenas
receitar um analgésico, serei processado!). Por isso, fica cada vez mais comum ouvirmos
"excluímos esta possibilidade" em vez de "suspeitamos de tal doença". Desse modo, ninguém
mais dá um passinho sequer fora de sua superespecialidade.

Passamos a presenciar um neurologista que afasta causas cerebrais de dor de cabeça e "se
livra" do paciente, encaminhando-o ao bucomaxilo, o qual descarta causas dentárias com
novos exames e o encaminha ao otorrino, que descarta sinusite e o encaminha ao oftalmo...
até que um aluno de medicina resolve examiná-lo e, ao medir a sua pressão arterial, fica
surpreso com um alarmante vinte e dois por dezessete!
O maior número de médicos avaliando o mesmo paciente, com um número cada vez maior de
exames, não aumenta necessariamente a taxa de sucesso do tratamento, mas certamente
eleva o seu custo. Quem paga, no fim, é o doente.

... e algumas consequências positivas

"No ano passado, quase 100 mil pessoas morreram de erros médicos e, em metade dos casos,
a causa foi banal: médicos que não foram claros e escreveram com letra ilegível a receita,
levando o paciente a tomar doses erradas de um remédio". TOMMY THOMPSON,
SECRETÁRIO DE SAÚDE DOS ESTADOS UNIDOS NO PRIMEIRO GOVERNO DE GEORGE W. BUSH.

Independentemente da definição, a preocupação com a incidência de malefícios iatrogênicos


e gastos "evitáveis" está cada vez mais em pauta.

Algumas pesquisas falam em 180 mil mortes por erros médicos, por ano, nos Estados Unidos,
dando um prejuízo anual de quatro bilhões de dólares. Embora seja factível, não é tão fácil
matar alguém com o dobro do analgésico, a metade do anti-hipertensivo ou com mais dias de
algum antibiótico. Garimpar erros médicos é uma tarefa consideravelmente árdua, pois, além
de não serem divulgados e uma vez excluídos os extremos, o seu conceito é muito relativo.

Ao analisar a metodologia dessas pesquisas, veremos que são pouco precisas e sempre
recheadas das expressões "provavelmente", "estima-se", "acredita-se". De qualquer forma,
será sempre louvável qualquer tentativa de minimizar os erros e os gastos com suas
consequências. Uma das formas mais eficazes para reduzi-los é por meio das padronizações.

Há alguns anos fiz um curso de paraquedismo. Entre várias outras coisas, alguns detalhes me
chamaram a atenção. Os comandos dos paraquedas são colocados rigorosamente nos mesmos
locais e têm formatos similares, independentemente da marca ou do modelo. Isso,
obviamente, inclui o manete de abrir e o de descartar o paraquedas. Ao puxar a cordinha da
esquerda, o indivíduo não descartará por engano o paraquedas, mesmo sendo um modelo
japonês ou italiano. Padronização universal!

Ao saltar do avião, tínhamos que verificar a adequação de cada passo da abertura do velame.
Eles poderiam simplesmente nos enumerar os itens a serem conferidos quando o paraquedas
se abrisse, mas isso não seria prático e o resultado variaria muito de pessoa para pessoa.
Assim, todos precisavam decorar e seguir os passos da checagem como se fosse uma reza,
para fazer tudo igualzinho e sem esquecimentos: "Velame retangular, cordas esticadas e
desembaraçadas, slider baixo, flair!".

Tente guardar na memória as palavras: hoje, nosso, dia, cada, pão. Não é mais fácil decorar
"pão nosso de cada dia"? Check list!

Até hoje, não me esqueço da frase em caso de pane: "Olha a bananinha, olha o punho, puxa a
bananinha, puxa o punho e volta à posição". ("Bananinha" era a manopla para descartar o
paraquedas principal e "punho", o responsável por abrir o reserva) nem do que fazer se os
cabos do velame estivessem torcidos: "Chuto para o lado, chuto para os lados até destorcer"...
Protocolos de conduta!

Os paraquedas eram conferidos antes que entrássemos no avião, assim como o nosso nome.
Esse rigor num hospital poderia evitar aqueles procedimentos em que pacientes foram
trocados, assim como foi trocado o lado de suas intervenções. Rechecagens e identificação
rigorosa!

Tudo foi padronizado porque, quando algo dava errado no processo evolutivo do
desenvolvimento dos paraquedas, as vítimas. não voltavam mais para explicar o que falhara.
Muitos devem ter morrido até que a bananinha fosse padronizada!

Apesar de tudo isso, só parei de pular de paraquedas por um motivo: o avião do aeroclube
caiu. Pelo que fiquei sabendo, a sua asa teria soltado em pleno voo! A causa teria sido falta de
manutenção...

Você já reparou que o plugue do mouse não encaixa na tomada da impressora? E que suas
cores são diferentes? Por que não fazer algo assim na medicina como um todo?

Não faz muito tempo que as padronizações começaram a surgir na medicina. Já relatei
histórias de troca de medicamentos. A tendência agora é que as ampolas sejam de cores
diferentes. Medicamentos que não podem ser misturados vêm em kits que não permitem
conexões inadequadas. A mangueira de oxigênio é verde e não se conecta ao bico de ar
comprimido, que é amarelo. Estamos padronizando tudo o que é possível e impossível, a
começar pelos processos de acreditação hospitalar. Embora exista uma tendência em
estandardizar o atendimento médico, suas rotinas e condutas, este ainda é o passo mais
difícil. De qualquer forma, essa caminhada já começou e um dos seus primeiros passos foi
com o ATLS.

ATLS significa advanced trauma life suport (suporte avançado da vida no trauma). É um curso
para médicos de todas as especialidades, que tem como objetivo aprimorar o atendimento
emergencial das vítimas de traumatismos (queda, atropelamento etc.). Considerando que o
trauma é a terceira maior causa de mortes, incidindo principalmente sobre a população jovem
e produtiva, podemos perceber a sua importância.

A história do ATLS é interessante. Em 1976, J. K. Styner, um ortopedista, sofreu um acidente


com o seu avião numa zona rural de Nebrasca, Estados Unidos. Sua esposa faleceu na hora e
ele sofreu sérias lesões, assim como seus filhos. Sendo médico, percebeu quão inadequado foi
o atendimento prestado à sua família. Não por erros, mas por falta de unl protocolo
específico. Decepcionado, porém decidido, resolveu criar uma forma lógica, eficaz e universal
de lidar com essas situações. Com a ajuda de clínicos, ortopedistas e cirurgiões, ele plantou a
semente desse curso, que hoje é aceito e difundido no mundo inteiro. Além do enorme me,"
rito por ter criado uma forma altamente eficaz no atendimento do trau ma de qualquer
natureza (o atropelado, baleado, queimado são atendidos com as mesmas prioridades), o
curso foi pioneiro em seu formato. Dife- rentemente dos tradicionais, incluía a prática por
meio da simulação de vítimas em cenários de trauma. Voluntários maquiados eram orientados
para simular determinadas lesões e sintomas enquanto eram atendidos pelos médicos em
treinamento. Para se ter uma ideia, até atores passando por parentes desesperados ou
representando o papel de padres surgiam nos cenários. Esse pequeno truque mostrou
favorecer um altíssimo índice de retenção dos conhecimentos.

Assim como no paraquedismo, o ATLS começou a difundir algumas "rezas", como o famoso
ABC do trauma (Air way, Breathing e Circulation), seguido pelo "choca e checa, choca e checa"
do curso de suporte avançado em cardiologia (aplicar o choque no coração e checar se o pulso
voltou). Essas novidades foram, sem dúvida, muito vantajosas para os pacientes e também
para os médicos, que passaram a trabalhar seguindo um mesmo formato.

Muitas dessas estandardizações surgiram após complicações extremamente didáticas.

Na maioria das paradas cardíacas, o coração entra num ritmo que I chamamos de fibrilação
ventricular. Quando olhamos para um coração nesse ritmo, ele parece tremer como uma
gelatina ao ser chacoalhada. Isso ocorre porque, apesar de suas células musculares ainda
estarem contraindo e relaxando, perderam a sincronia. Assim, o coração não bate, ele vibra e
o sangue não circula. A forma mais efetiva para devolver a sincronia é aplicando um choque no
coração (desfibrilação elétrica). O choque não faz as células voltarem a se contrair. Ele
simplesmente as paralisa por um breve momento, permitindo que voltem a se mexer de
forma compassada. Mas o choque pode levar a arritmias graves se empregado quando não há
frbrilação.

Certa vez, após diagnosticar fibrilação ventricular, o médico aplicou um choque no peito do
paciente. Para a sua surpresa, o coração voltou a bater ao mesmo tempo que o outro médico,
que o auxiliava, caiu no chão desfalecido. Ao socorrê-lo, percebeu que também se tratava de
uma parada cardíaca!

Por uma breve distração, esse auxiliar não se afastou da maca na hora da descarga elétrica. A
corrente o atingiu fazendo com que as suas células cardíacas se desorganizassem e entrassem
em fibrilação. Deve ter sido muito estranho para os pacientes que assistiam ao evento ver o
médico chocar o paciente e depois chocar o seu próprio colega de trabalho!

Por sorte, ele imediatamente voltou à consciência e ainda queria ajudar na reanimação do
primeiro paciente. Graças à competência do médico, ambos foram salvos, mas os dois
poderiam ter morrido. Devido a esse e a outros relatos similares, antes de aplicar o choque, é
obrigatório dizer: "Todos afastados? Um, dois, três e já!".

Parece bobagem termos que memorizar algumas dessas frases, mas na hora do estresse, a
coisa tem de sair por reflexo e fluir sem barreiras. Não adianta todos estarem acostumados a
essa sequência e quem for aplicar o choque gritar: "Todos afastados? Um, dois já!" - o correto
é "Um, dois, três e já!

Todo esse esforço com cursos, uniformizações, reciclagens, controle de qualidade é excelente,
mas basta viver uns dias como médico para perceber que desastres acontecem das formas
mais inusitadas e imprevisíveis, os quais muitas vezes são inevitáveis.

Num antigo pronto-socorro, existiam várias células, cada uma com dois leitos. Como eram
retangulares e tinham paredes ornadas de azulejos azuis que lembravam um banheiro, esses
ambientes foram apelidados de boxes.

Em um dos boxes, havia dois pacientes. Um deles, alcoolizado, caíra da própria altura,
batendo a cabeça, e estava confuso. O outro sofrera um trauma craniano por acidente de
carro e mantinha-se em coma. Como esse paciente comatoso não respirava adequadamente,
foi conectado a um aparelho de respiração. O respirador era (para variar) o velho aparelhinho
já descrito antes.

A localização dos boxes era estratégica, pois davam de frente para o sofá do médico, onde ele,
ou alguém da enfermagem, vigiava os pacientes. Isso era muito importante naquela época,
quando os monitores eram raros e insuficientes.

Um residente estava sentado no sofá escrevendo quando percebeu que o alarme do monitor
conectado ao paciente com traumatismo estava apitando. Parada cardíaca!

Ao se aproximar do leito, notou que o barulho do respirador havia mudado do cíclico "tunsch-
tá...tunsch-ti" para um "tunchhhhh" contínuo. Algum tubo havia se desconectado.

Mobilizou rapidamente a equipe de enfermagem e, juntos, começaram a reanimar o paciente.


Infelizmente, era tarde demais.

Nessa hora, desolado, o residente apontou para o aparelho e desabafou: - Merda de


respirador! Não podia ter parado de "ciclar" e... Quando o bêbado da maca ao lado se
manifestou: - É uma merda mesmo. Não parava de fazer barulho e não me deixava dormir.
Mas agora que eu soltei essa mangueirinha pelo menos o barulho melhorou!

O ambiente nunca será totalmente seguro, como pode ter comprovado algum paciente
hipotético ao ser atendido no ambulatório cinco estrelas cheio de credenciais do World Trade
Center em 11 de setembro de 2001. Mas de nada adiantarão todos esses esforços de
prevenção e melhorias se um pequeno elo dessa corrente não for de boa qualidade...

6 - ENCARANDO A REALIDADE

Novas faculdades...

Médico é igual a sal: branco, barato e tem em todas as esquinas.


Durante uma palestra de um renomado infectologista sobre "Avanços e tendências na
infecção intra-hospitalar", um ouvinte levantou a seguinte questão:

- Professor, em sua opinião, qual seria o elemento ou a ação mais contundente para alterar a
evolução das infecções hospitalares?

Satisfeito com a questão, o professor devolveu a pergunta à plateia de médicos, que arriscou
propostas diferentes:

- Antissépticos mais potentes, isolamento de doentes infectados, comissão de infecção


hospitalar, alta precoce, enfermagem bem treinada, menor invasão do paciente...

Nessa hora, não pude deixar de me lembrar de um professor que dizia ser preferível gastar
um pouco mais com sabonetes de luxo perfumados do que comprar antibióticos de última
geração. Assim, também arrisquei:

- Lavar as mãos. Todos os elementos citados são importantes, mas a resposta do professor foi
ainda mais interessante:

- Um médico competente! Se o fator mais importante é o médico, não seria interessante


aumentar o seu número?

A proporção de médicos por habitantes no Brasil corresponde ao dobro do recomendado pela


Organização Mundial de Saúde (um médico para cada mil habitantes). Mas o país continua
carente nesse aspecto devido à sua má distribuição, pois 70% dos médicos brasileiros
trabalham no Sul ou no Sudeste. Como dizia, coberto de razão, o meu homônimo,"50% das
UTIs brasileiras ficam na Região Sudeste. Destas, 50% ficam no Estado de São Paulo. Destas,
50% ficam na cidade de São Paulo. E, destas, 50% ficam na Avenida Paulista! Isto não é
normal!"

O Brasil não precisa de mais um monte de doutores, e, sim, que eles estejam mais bem
distribuídos pelo território nacional. Para se ter ideia, a sua disponibilidade para cada mil
habitantes é quatro vezes superior à de enfermeiros. Além disso, o número de médicos quase
duplicou de 1997 para 2001, saltando de 1,35 para 2,08 por mil habitantes!18
Recebemos a visita de um Presidente da República na Faculdade de Medicina. Talvez
desconhecendo esses dados, ele se mostrou muito animado com a possibilidade de abrir
novas escolas médicas no Nordeste. Mas nada mudará enquanto o generalista não for
valorizado. Independentemente de onde o doutor se formar, continuará ocorrendo o êxodo
para o Sudeste com o objetivo de buscar a especialização e um nicho de emprego. Grande
parte dos residentes do hospital vem do Norte e do Nordeste justamente por esse motivo. E
quase ninguém vem para estudar clínica geral.

De qualquer forma, esse fenômeno cria uma falsa ilusão de que não há médicos. Uma vez
iludido, qualquer um acreditará que a solução para esse problema está na abertura de novas
faculdades. De fato, o seu número vem aumentando. Atualmente (devo estar desatualizado)
são 169 Faculdades de Medicina no Brasil. Mais do que nos Estados Unidos e na China!

*18. Brasil: o perfil do Sistema de Serviços de Saúde. Organização Panamericana de Saúde,


2005.

Como eu já disse, volta e meia alguém descobre um novo filão relacionado à medicina.
Sabemos que nós, apesar de desvalorizados, ainda ganhamos mais do que boa parte dos
outros profissionais de áreas diferentes. Assim, aplicar dinheiro numa faculdade dessas será
um bom investimento para os alunos e, principalmente, para os donos das instituições.

O comércio começa no vestibular. As propagandas para os concursos dessas faculdades


costumam ser parecidas com as de lojas de móveis populares. Você pode começar a pagar
apenas na Páscoa, marcar a data da prova quando quiser... Mas não para por aí. Ouvi relatos
de alunos que entraram nos concursos dessas faculdades após depositar uma quantia
razoável na conta de pistolões, o que não é novidade. A polícia já desmantelou algumas
quadrilhas que vendiam vagas nessas instituições e houve, até mesmo, o caso do calouro-
fantasma.

Um aluno presta vestibular para Medicina. Passa na primeira fase e falta realizar a segunda
prova. Apenas para constar, pois sua vaga estava garantida. Pouco antes da segunda prova, ele
sofre um acidente automobilístico e falece. Entretanto, parece que nem todo mundo fica
sabendo, pois ele é aprovado no vestibular! Seu amigo que prestou o mesmo concurso, sem
sucesso, notou a palhaçada e divulgou o fato.

Mas esta é uma exceção. Novas escolas serão boas para o povo! Qual povo?
Um amigo me contou que paga uma mensalidade de R$ 3.800,00 para o filho que cursa o
sexto ano em uma Faculdade de Medicina privada. Uma bagatela! Quem possui R$ 273.600,00
(R$ 3.800,00 mensais X 6 anos) para pagar uma faculdade? Ao mesmo tempo, vejo no jornal
uma proposta de emprego para clínico geral. São 20 horas semanais para ganhar R$ 1.500,00
por mês.

Esse é um problema, mas me preocupo com outra questão bem mais grave.

Se existe um curso que não pode ser realizado por correspondência é o de médico. Muitas das
escolas médicas que estão proliferando possuem qualidade questionável. Para uma formação
adequada, precisamos atender doentes, o que é impossível sem o apoio dos hospitais-escola
universitários. Quantas dessas novas escolas os possuem?

Uma solução será associar-se a hospitais privados. Mesmo assim, na maioria das vezes não há
uma grande variedade de doentes e patologias, fundamental para a boa formação. Além de
esses hospitais não serem grandes o bastante, muitas vezes não possuem vocação para o
ensino. São particulares onde o primeiro, o segundo e o terceiro objetivos principais podem
estar relacionados ao lucro. Os alunos, nesse aspecto, podem atrapalhar. Quem pedirá ao seu
paciente privado que permita a um interno repetir o exame de toque retal?

Não será de se estranhar a baixa qualidade dos profissionais que essas instituições tenderão a
formar, independentemente da boa vontade dos formandos.

Os políticos poderão se gabar de quantas faculdades abriram aqui e acolá, mas, ao ficarem
doentes, continuarão vindo ao melhor hospital... Piorando ainda mais as perspectivas da
sociedade, há brasileiros que se aventuram a estudar em faculdades da América Latina, por
não terem sido aprovados no vestibular nacional. É evidente que existem ótimas faculdades
em países vizinhos, mas em geral não são nestas que os brasileiros se matriculam.

Talvez você acredite que, mesmo com uma formação deficitária, os médicos não terão muitas
deficiências graças à tecnologia disponível. Será?
Eles precisam possuir um bom conhecimento sobre as doenças mais prevalentes em todas as
áreas. A maioria delas é simples e não requer grandes investimentos diagnósticos ou
terapêuticos, mas precisam ter sido vistas pelo profissional.

As pessoas tendem a valorizar os locais muito equipados e com ambiente físico sofisticado,
mas, na verdade, sabemos que a fool with a tool, is still a fool, ou seja, um tolo com uma
ferramenta continua a ser um tolo! Basta lembrar que as melhores escolas do mundo, na
Finlândia, têm como maior patrimônio a qualidade dos seus professores.

O fator humano ainda é o mais importante e assim continuará sendo, enquanto o aparelho
diagnosticador do doutor McCoy (médico da série Jornada nas estrelas) não for uma realidade.
Pensando bem, mesmo quando for, o paciente continuará preferindo que o médico pegue
em sua mão. Afinal, quem controla o aparelhinho do Dr. McCoy continua sendo o Dr. McCoy!

Muito pior do que não possuir uma tomografia é ter alguém que a solicita ou a interpreta sem
o preparo adequado.

Lembro-me de um cirurgião de determinado serviço que raramente pedia exames de


ultrassom em seu hospital. Quando lhe perguntei o motivo, ele explicou: "De que adianta
possuirmos excelentes aparelhos de ultrassom se quem os aplica é a dupla de radiologistas
que apelidamos de Steve Wonder e Ray Charles?".

Talvez ainda mais grave que a síndrome de Vomit (Victim of Modern Image Technology), ou a
baixa acurácia de alguns radiologistas, seja a síndrome de BARF (Brainless Application of
Radiological Findings - aplicação descerebrada dos achados radiológicos). 19

Para citar um breve exemplo de perigos similares, contarei um caso ocorrido no plantão
controlador.

Esse plantão gerencia os encaminhamentos inter-hospitalares. Seu funcionário (um médico)


orienta para onde o paciente do hospital X deve ser conduzido caso necessite de uma
avaliação pelo profissional Y, e assim por diante. Para isso, os detalhes dos casos clínicos
devem ser discutidos entre o médico do plantão controlador e o do hospital que o solicitou.
O colega do controlador atendeu à ligação de um médico pedindo a transferência de seu
paciente. Ele teria sido vítima de um acidente de carro e necessitava de uma avaliação
neurocirúrgica. Ao pesquisar os dados do acidentado, o funcionário do controlador começou a
perguntar sobre os sinais vitais.

- PA (pressão arterial)? - Catorze por nove. - Frequência cardíaca? - Oitenta. - Glasgow?


(Caso você, leitor, não se lembre, é aquele teste simples para quantificar o grau de consciência
do paciente.)

- Entenda, Dr. Fulano, aqui é um hospital muito simples e nós não dispomos de aparelhos para
medir o Glasgow...

*19. Disponível em: wwwtrauma.org/archive/radiology/VOMITtai.html

Oras bolas, o único aparelho que necessitamos para medir o Glasgow de alguém é o nosso
próprio cérebro, de preferência em G15 (nota máxima desse escore). Se ele não dispunha
deste, aquele hospital realmente era preocupantemente escasso em recursos; o caso passou a
ser uma prioridade e imediatamente se autorizou a transferência em regime de urgência
máxima.

Infelizmente, este pode ser justamente o tipo de profissional que sairá das faculdades
deficitárias, atrapalhando qualquer tentativa de melhorar a qualidade dos serviços prestados
e, como veremos a seguir, contribuindo para a redução dos nossos salários.

... novas dificuldades

"O médico cuida de pessoas, mas o mundo se tornou materialista. Atualmente o que vale não
é o que as pessoas são, e, sim, o que elas têm. Elas perderam o seu valor, assim como quem
cuida delas."

ADIB JATENE
Durante a faculdade, aprendemos a pensar e a agir como médicos. Porém, quando
terminamos a especialização e começamos a procurar emprego, descobrimos o quanto somos
despreparados para questões triviais da nossa profissão. Além disso, na hora de pagar aluguel
e outras despesas por conta própria, percebemos o custo desse sacerdócio. Quando atendi
aquele jornalista com diverticulite aguda, pude sentir o quanto somos mal remunerados. Os
meus honorários referentes ao seu caso foram insuficientes para pagar o que gastei com
gasolina durante o seu tratamento!

A diversão tinha acabado. Dei-me conta de que deixara de ser amador para me tornar
profissional e que isso ninguém havia me ensinado. Antes, o trabalho fazia parte do meu
aprendizado e treinamento. Agora, precisaria trabalhar para ganhar dinheiro e me manter.

Nessa fase inicial, não sabia como me comportar, seja como empregado, seja como patrão.
Como tive o privilégio de me dedicar exclusivamente aos estudos, finalizei-os com 28 anos
sem ter nunca visto um holerite! Desconhecia coisas como "pessoa jurídica", tabela AMB90,
repasse, CLT, cobertura, classificação hierarquizada, guia de RPA e muitas outras coisas.

Sabia diagnosticar e tratar um câncer, mas não tinha a menor ideia de quanto cobrar por isso
nem como fazê-lo! Descobri que tinha vergonha de cobrar o que sempre havia realizado "de
graça", quando, na verdade, eu é que estava aprendendo "de graça".

Um colega me contou, nostálgico, sobre o seu primeiro paciente particular, o que ilustra bem
essa dificuldade:

- Era um amigo dos tempos de escola. Procurou-me queixando-se de uma hérnia. Operei-o na
mesma semana e a cirurgia foi um sucesso! Naquela época meu professor me parabenizou,
empolgado com o início de minhas atividades profissionais. Ele me perguntou se tudo correra
bem. Respondi que sim, mas que estava em dúvida se deveria ou não cobrar os meus
honorários. Nessa hora, o professor me interrompeu orientando para que eu cobrasse, como
se esta fosse a conduta mais óbvia do mundo. Ponderei que era um amigo do ginasial, quando
ele novamente me interrompeu: "Mas você precisa cobrar. Afinal, nunca irá operar inimigos!".

Dizem que saber cobrar é uma arte. Arte ou não, testemunhei algumas técnicas meio
esquisitas de fazê-lo. A estratégia de um cirurgião ao combinar o preço de uma cirurgia, por
exemplo, era mais ou menos assim:
- O custo médico da cirurgia será de dois mil reais. Nesse momento, ele fazia uma pausa em
suas explicações e analisava a reação dos familiares. Se fosse de espanto: "Dois mil reais! Ai,
meu Deus!", ele prosseguia, dizendo:

- Calma. Esse é o custo da equipe toda, incluindo meu auxiliar, o anestesista e eu...

Porém, se os familiares reagissem com tranquilidade: "Dois mil... Beleza!", o preço mudava:

- Mas esta é a minha parte, ainda tem o honorário do anestesista, e o do meu auxiliar...

Outro médico explicava como seria o pós-operatório, apenas para investigar o cacife do
paciente:

- Doutor, poderei comer normalmente? - Na primeira semana você manterá uma dieta leve,
mas depois poderá comemorar com um bom prato! Qual restaurante que você gosta de
frequentar? - Se a resposta fosse um restaurante chique da moda, o preço subia. Se fosse o X-
burguer qualquer coisa, caía. Isso para não contar sobre a estratégia de descobrir, vendo no
monitor do circuito interno da clínica, qual é o veículo do paciente...

Contudo, constatei que a maioria dos médicos estabelece o seu preço avaliando o grau de
dificuldade, tempo e risco que envolverão o tratamento. O custo do consultório, das viagens
para congressos e cursos de atualização, assim como tabelas da Associação Médica Brasileira,
ajudam a estipular os honorários. Eles também levam em conta se o tratamento será
emergencial ou eletivo. Uma apendicite num jovem levará o colega a perder menos horas e
fios de cabelo do que uma úlcera perfurada em um idoso na véspera de Natal.

Ouvi falar de uma ortopedista que, além desses fatores, avaliava também o "adicional
chatice". Ou seja, se o paciente fosse chato, pagaria mais caro.

Excluindo os colegas de grife a quem, assim como roupas, você também pagará mais caro, os
médicos em geral cobram um preço aceitável. Alguns clientes acham salgado, mas se
esquecem de compará-lo ao do marceneiro, encanador ou cabeleireiro. Não quero
menosprezar suas profissões, mas basta lembrar-se da responsabilidade e do investimento
técnico em cada caso. Porém, é claro que existem abusos.
Certa vez, um médico teria cobrado por uma neurocirurgia o valor equivalente a 353 salários
mínimos. Indagado por um colega sobre como chegara ao incomum valor, ele apenas
respondeu:

- É o que faltava para quitar o meu apartamento... Alguns pacientes, por outro lado, também
agem de forma curiosa. Guardado o senso do ridículo, ficam indignados quando médicos
cobram pelos seus honorários em qualquer situação que seja:

- Não é um sacerdócio? Como podem explorar justo quem está doente, ou com dor?

Um colega me contou da indignação de uma senhora idosa quando ela ficou sabendo que teria
de pagar pela consulta e que não conseguiria desconto para aposentado. Puxa vida, como ele
poderia dar desconto para aposentado, se a sua especialidade era geriatria?

Ela achava um absurdo cobrar pela consulta. Este explicou que, se preferisse, ele não cobraria,
mas lhe enviaria suas contas pessoais de água, luz e gás num valor similar...

Pior ainda é ser chamado de madrugada para ir de urgência na casa de alguém que, após o
atendimento, prontamente lhe estende a carteirinha do convênio com uma expressão de "não
pense que me esqueci de lhe pagar" (como se andássemos com uma daquelas maquininhas
ou atendêssemos convênios nas casas das pessoas).

Antes de qualquer coisa, a medicina de hoje é uma profissão. Não é para amadores. E, como
profissionais, precisamos ser remunerados! Mas por que recebemos tão mal?

"A remuneração do médico nada mudou nas últimas décadas. Em 1975, quando operava uma
apendicite, cobrava o preço de um fusquinha. Passados vinte anos, continuo cobrando o preço
do fusquinha. O problema é que se trata do mesmo fusca, já desvalorizado e envelhecido
trinta anos..." (Comentário de um professor de medicina).

Em primeiro lugar, focando um pouco na cirurgia geral, as pessoas pagam pelo que desejam
(uma plástica) e não pelo que precisam (uma apendicectomia).
Em segundo lugar, remunera-se melhor o especialista que o generalista. Em minha opinião, o
especialista em clínica geral ou cirurgia geral deveria ser um dos médicos mais respeitados e
bem remunerados. Entretanto, a tendência ainda caminha no sentido oposto. Sabemos que o
bom clínico pode resolver de 80% a 90% de todos os casos clínicos e que o mesmo ocorre com
o cirurgião geral e as doenças cirúrgicas. Isso se aplica ainda melhor no pronto-socorro, onde
precisamos de alguém com muita vivência e amplos conhecimentos, pois nenhum hospital terá
de corpo presente especialistas em dermato, otorrino, cárdio, oftalmo, proctologia... Destarte,
as patologias mais corriqueiras dessas especialidades podem ser facilmente tratadas pelo
emergencista: micoses, otites, hipertensão arterial, conjuntivite, hemorroidas. Além disso,
trabalhar em emergência é muito pesado e difícil, técnica e socialmente falando. É um
ambiente hostil e insalubre. O paciente está sofrendo e desamparado, não conhece nem
escolheu o médico que o socorre. Não há tempo disponível para se estabelecer uma boa
empatia. São grandes os desafios e limitados os exames. Fácil, não? Mas, paradoxalmente, o
clínico geral e, principalmente, o emergencista são os profissionais menos valorizados. Por
quê?

Ao associar um trabalho pesado e insalubre com uma baixa remuneração, afastam-se os bons
profissionais. Explica-se, então, por que os verdadeiros clínicos abandonam a emergência e
acabam sendo substituídos por recém-formados que não entraram na residência ou por
residentes nos seus primeiros anos, em busca de qualquer salário. Excluindo-se os verdadeiros
apaixonados pela área, sobram também os médicos que por algum motivo não tiveram sorte
em seu consultório privado e que, com a crescente degradação da profissão, passaram a
necessitar daquela fonte de renda.

Aqui também vale a lei da oferta e da procura. Com vários médicos em início de carreira
procurando esse tipo de emprego (afinal, não podem trabalhar como cirurgiões, anestesistas,
endoscopistas...), cai o valor do salário. Diminuindo o valor, perde-se a qualidade. Nesse ciclo,
o maior prejudicado acaba sendo o paciente. Como sempre.

Em razão dessa distorção, entre outras diversas causas, criou-se a cultura de pagar melhor ao
especialista que ao generalista, como se este não fosse especializado no que faz. O clínico
geral verdadeiro também fez especialização, levando três ou quatroanos para tanto.
Acontece que, hoje, quem ainda não fez uma residência, acaba ficando conhecido como
"clínico geral".

O mesmo ocorre com o cirurgião geral emergencista. Este é mais uma vez desvalorizado, o
que faz com que os novatos assumam esse tipo de cargo, quando deveria pertencer ao mais
tarimbado dos profissionais. É ali que os casos mais complexos precisam ser enfrentados com
o menor número de recursos e maior precisão.

Mas, olhando para a profissão como um todo, há outros motivos para a nossa desvalorização.

Trinta ou quarenta anos atrás, o médico era uma raridade. Munido apenas do estetoscópio e
de seu conhecimento, responsabilizava-se pelo diagnóstico, pelo tratamento e pelo
conhecimento de boa parte da cultura médica vigente. Foram os anos de ouro dessa
profissão, em que ser médico era sinônimo de status social, cultural e econômico.

Além de ser bem remunerado nos serviços públicos, ele podia cobrar o valor que julgasse
adequado para suas atividades privadas em quase todos os casos. Poucas pessoas tinham
acesso à medicina privada. Por outro lado, graças aos seguros sociais e aos pacientes
particulares, o médico ganhava bem e podia se dar ao luxo de atender os necessitados sem
onerá-los.

Gradualmente, os cursos de medicina proliferaram, aumentando de forma significativa o


número de profissionais. O conhecimento cresceu de forma exponencial, criando as
especialidades e as novas profissões (nutricionista, fisioterapeuta...). Os instrumentos para
diagnóstico e tratamento foram criados e aperfeiçoados. Os custos multiplicaram-se.

Recebemos de acordo com a nossa raridade, e não nossa importância. Com o maior número
de médicos a oferta aumentou e o preço caiu. O conhecimento expandiu tanto que nenhum
médico conseguiu mais, individualmente, abranger o conhecimento global da medicina.
Surgiram mais especializações, que segmentaram o homem, assim como os seus problemas.
Para um mesmo paciente, o número de profissionais aumentou. O paciente deixou de ter o
seu médico para ter o seu cardiologista, seu endócrino, seu ginecologista...

O diagnóstico não é mais exclusividade do médico com o seu estetoscópio. Passou a ser
dividido com todos os outros aparelhos hoje disponíveis. O conhecimento democratizou-se e o
atendimento popularizou-se.

Graças a tudo isso e a uma série de outros fatores sociais, o valor do médico foi caindo,
caindo, a ponto de ele ser comparável ao sal. De repente, surgiu uma brilhante opção: os
convênios. Por estes, entende-se medicina de grupo, autogestão e seguro-saúde, além das
próprias cooperativas médicas. Os pacientes particulares estavam minguando e, segundo os
vendedores dos planos de saúde, a solução para os doutores seria trocar preços altos por
quantidade. De certa forma, optamos por trocar qualidade por quantidade. Os custos também
empurraram a favor dessas mudanças, assim como a crescente, porém insuficiente,
abrangência do sistema único de saúde.

Passados alguns anos, os convênios universalizaram o atendimento médico privado,


transformando os pacientes particulares em uma raridade. Hoje, atendemos pacientes
particulares que têm reembolso dos seguros de saúde e os "particuloides": pessoas que não
têm dinheiro para pagar um convênio e juntam as suas economias para pagar uma consulta
ou uma cirurgia. Com isso, atender a convênios transformou-se na regra absoluta para a
maioria dos médicos. E o que parecia interessante, pois realmente trouxe algumas vantagens
para os pacientes, também ajudou, em parte, a desgastar nossa profissão.

Não podemos negar que o segmento da "saúde suplementar" abriu as portas da saúde para
40 milhões de brasileiros e permitiu que a tecnologia médica se disseminasse rapidamente
pela nossa nação. Mas, ao mesmo tempo, apresentou ao médico, de forma intensa e penosa,
as leis de mercado.

Enquanto algumas operadoras de saúde focaram na sua diferenciação, qualidade da gestão da


saúde, promoção, prevenção e gerenciamento de doenças, outras focaram exclusivamente na
competição suicida por mensalidades cada vez mais baixas. Se a arrecadação da empresa for
baixa, a única forma de alcançar o lucro, diante dos custos crescentes da medicina, será por
meio de remunerações ainda menores.

Fatalmente, o valor dos procedimentos médicos foi caindo vertiginosamente. Chegamos ao


valor de 20 a 40 reais por consulta médica (quanto foi que cobrou o seu cabeleireiro na última
revisão?). Durante vários anos, por falta de união e de unidade, os médicos nada
reivindicaram e, aos poucos, foram sendo fagocitados pelos convênios. Não faz muito tempo,
havia algumas seguradoras que não aumentavam os honorários médicos havia mais de dez
anos!

A tabela para remuneração de procedimentos estipulada por grande parte dos convênios
ainda é a AMB 90 (tabela da Associação Médica Brasileira de 1990!). Essa tabela cita
procedimentos que nos dias de hoje raramente são solicitados e não menciona outros em
vigor, pois inexistiam em 1990 quando foi atualizada.
A relação médico-paciente modificou-se, passando a incluir um terceiro elemento: o auditor
do convênio. É ele que, ao fim das contas, determina o que pode - ou não - ser realizado,
quando, onde, com quem e com quais materiais. Além disso, o paciente não procura mais um
médico, e, sim, um prestador de serviços credenciado. E o médico não atende mais um
paciente, e, sim, um associado.

Os convênios mudaram indiretamente o nosso modus operandi. "Precisamos" operar com o


material que eles autorizam ou apesar do que não autorizam. Com o menor pagamento, o
médico trabalha demais, não tem tempo ou forças para estudar e se atualizar. Acaba
realizando consultas breves para que possa atender um maior número de doentes. Adquire
menos dados clínicos e, por isso, solicita mais exames. Por que gastar mais dez minutos
tentando diferenciar uma gastrite de uma cólica biliar, se posso em dois minutos fazer um
pedido de ultrassom e de endoscopia? O próprio paciente pede isto, afinal é o convênio quem
vai pagar! Novamente, é o típico raciocínio do restaurante de rodízio que coloca o médico na
rodinha do rato: anda, anda e não sai do lugar. Faz o convênio gastar mais com exames e este,
por sua vez, hesita em aumentar os repasses aos prestadores, evitando que suas despesas se
tornem insustentáveis.

Mas não são apenas alguns dos convênios que pagam mal. Ponderando o peso da carreira
médica, posso dizer que tanto os empregos públicos como os privados remuneram
inadequadamente. Após verificar nossas ofertas de empregos nos jornais e compará-las a
carreiras como a jurídica, secretária bilingue e técnico em informática, penso que você
concordará comigo. Para se ter uma ideia dessa distorção, saiba que algumas seguradoras
repassam ao médico obstetra valores próximos a 200 reais por uma cesárea. Nos mesmos
hospitais, os serviços de filmagem dos partos não saem por menos do que o dobro desse
valor!

Com essa dificuldade toda, é natural que encontremos clínicos gerais inserindo-se na medicina
estética, na ortomolecular ou em outros ramos ainda não reconhecidos pelo Conselho Federal
de Medicina e que, por isso, não possam ser cobertos por planos de saúde (renderão
pacientes particulares).

Infelizmente, o baixo reconhecimento e a escassa remuneração podem fazer com que alguns
colegas se aproximem de atividades irregulares, cuja distinção com as atividades honestas
pode ser uma linha bem tênue.

É fácil convencer um leigo de que ele precisa ser operado, mesmo não havendo a real
necessidade. Alguns diplomas na parede e uma elegante gravata podem enganar muita gente.
E, após terem sido operados, a recuperação desses pacientes será ótima, já que nem doentes
estavam.

Isso para não falar naquelas histórias que já ouvimos, nos jornais e na TV, de médicos que
indicavam cirurgias, pois ganhavam comissão dos fabricantes de materiais utilizados nos
procedimentos.

Apesar disso tudo, não podemos desanimar. Ainda é possível ajudar honestamente muita
gente e nos sustentarmos com certa tranquilidade.

Quando as coisas apertam ainda mais, o médico sempre dá um jeito. Na cirurgia, a


laparoscopia foi um grande diferencial. Os pioneiros ganharam muito dinheiro. O método se
difundiu e virou carne-seca. O mesmo ocorreu com a cirurgia de obesidade, ela mesma
realizada por video, a cirurgia para diabetes e, finalmente, a cirurgia por orifícios naturais.
Vivenciei vários filões sendo criados para depois se diluírem, mas sempre inovamos.

Fui para uma ilha do Caribe em 1997 e voltei da viagem deprimido. Acredito que o principal
motivo tenha sido o fato de ter encontrado por ali pessoas altamente educadas e instruídas
vivendo na pobreza. Normalmente, associamos a miséria à falta de instrução ou de
oportunidade. Mas lá, apesar de a maioria ter o terceiro grau completo, não possuía dinheiro
para comprar um simples sabonete. Vi as aeromoças escondendo alguns sanduíches do avião e
levando-os para consumo próprio. Percebi a felicidade das pessoas quando as
presenteávamos com um xampu ou um creme dental. Descobri que comida de verdade é
arroz e feijão, pois presenciei senhores realizando turismo sexual com mocinhas que se
prostituíam em troca de chocolate, um luxo supérfluo. Mocinhas estas, formadas em
advocacia, odontologia e pedagogia.

Mas voltando à viagem, essa ilha possuía vários contrastes e um deles me interessou. Lá, o
generalista era muito mais valorizado do que aqui. A medicina preventiva era levada a sério,
mesmo porque não havia muitas verbas para os remédios caros da medicina curativa. Cada
médico generalista acompanha algumas dezenas de pessoas regularmente, visando a prevenir
o aparecimento de doenças. Existe um estímulo para que o médico evite a doença em seus
clientes e, mesmo assim, continue ganhando para se sustentar. Quando os pacientes precisam
ser internados, eles os acompanham, ajudando o eventual especialista a tomar suas decisões.

Contrariamente, aqui vivemos um curioso paradoxo. Como médicos, devemos promover a


saúde, mas somos remunerados pela doença.
Não podemos promover doenças, mas se os pacientes não forem ao consultório, morreremos
de fome. O que fazer? Precisamos aumentar o nosso mercado de trabalho! Mas como?
Simples! Vamos incluir as pessoas saudáveis em nossa clientela. Podemos fazer com que elas
temam as doenças que não possuem.

E assim o check-up virou o novo filão. É óbvio que, em muitas situações, ele é valioso e útil,
para não dizer essencial. Negar esse fato me colocaria contra os reconhecidos e merecidos
méritos do pré-natal e da puericultura.

Além disso, até por uma simples questão de autossobrevivência, os convênios deveriam se
tornar planos de saúde e não de doença - o que fazem na atualidade. Basta analisar as
pirâmides etárias projetadas para os próximos anos pelo IBGE20 para perceber a importância
de se investir em centros voltados para a promoção da saúde em vez de em hospitais, caso
não queiram falir.

Mas qual o sentido de comparecer ao médico a cada seis meses (salvo em casos excepcionais)
para acompanhar uma "gastrite endoscópica"? Por que dosar anualmente o colesterol de
alguém saudável com 20 anos de idade? Solicitar a centenas de milhões de humanos,
anualmente, dosagens de ácido úrico após os 40?

Nessa hora, alguns pacientes e médicos deviam se lembrar do Jaguar, famoso cartunista,
desabafando: "Gastei uma fortuna em exames médicos e no final não tinha nada. Podia ter
gasto esse dinheiro em aperitivos..:'.

O consultório particular

"Dans la medicine et dans l'amour, on ne dit pas ni jamais ni toujours." (Na medicina e no
amor, não se diz nem nunca nem sempre.)

A essa altura do campeonato eu havia experimentado algumas formas de trabalho e


remuneração. Tinha dado plantões como clínico,
*20. wwwibge.govbr/home/estatistica/populacao/projecao_da
populacao/piramide/piramide.shtm

cirurgião, feito uma breve retaguarda de cirurgia e ajudado alguns professores em cirurgias
particulares. Era hora de decidir qual rumo tomar, antes que o alargamento das raizes me
fixasse definitivamente e impedisse grandes mudanças. Até que eu tinha bons empregos com
seis anos de formado, mas sempre em plantões e, como a maioria dos iniciantes, nos. finais
de semana. Trabalhava quase todas as sextas, sábados e domingos, mas ficava livre no meio
da semana. Com o passar do tempo seria natural a inversão, uma vez que os mais novos são
designados para os piores turnos. Mas era isso o que eu desejava para o meu futuro? Correr
daqui pra lá, trabalhar 12, 24, 36 horas, sempre me deparar com pacientes estranhos e nunca
acompanhá-los no pós-operatório?

Convivia com outros excelentes cirurgiões, bem mais velhos, ocupando os mesmos nichos.
Independentemente de isso ser bom ou ruim, se eu deixasse o tempo correr e nada fizesse,
viraria o seu substituto natural. Já que não me candidatei a vereador, comecei a cogitar uma
mudança um pouco mais radical: abandonar minha cidade natal.

Procurei empregos em Goiás, Tocantins, Paraná e Santa Catarina. Todos tinham os seus
encantos e desencantos, mas uma cidade no meu próprio estado me chamou particular
atenção. Ela ficava a apenas uma hora de viagem de São Paulo e a oportunidade de trabalho
parecia excelente. Poderia realizar uma transição gradual, sem deixar todos os meus
empregos de uma só vez.

Essa mudança foi realizada de forma muito mais suave que o esperado. Tive muita sorte em
encontrar pessoas íntegras, maleáveis e dispostas a ajudar, o que pode não ser a regra
quando um médico de fora chega a uma cidade do interior. De qualquer forma, o sacrifício
inicial sempre é grande.

Trabalhei alguns anos como clínico emergencista em um serviço onde tirar os sapatos durante
cinco minutos, mesmo às três da manhã, representava uma completa exceção. O estresse era
tanto que eu desenvolvi uma urticária maldita por alguns meses. Apesar de controlada com
medicações, a coceira e as manchas só sumiram quando comprei a sala em que iniciaria o meu
consultório. Eu precisava me credenciar a convênios médicos. Sem eles e sendo desconhecido,
a minha procura seria nula. Existem pessoas que alegam possuir contatos que facilitariam o
nosso credenciamento com alguns planos de saúde. Evidentemente, elas cobram pelos seus
serviços. Mas mesmo sem pagar propinas, consegui me vincular a alguns planos e iniciei o meu
atendimento privado.
Trabalhar no consultório tem um lado bom, pois é onde realmente nos sentimos profissionais
liberais, determinamos o horário, a dinâmica de trabalho e, dentro de certos limites, as nossas
próprias regras. Mas há o lado penoso da inserção, ainda mais profunda, no mundo adulto do
exercício da Medicina.

Dei-me conta, mais uma vez, que ninguém havia me ensinado nada na faculdade sobre
consultórios. Como geri-lo, quais impostos pagar, que material possuir, como obter licença da
vigilância sanitária, alvará... Percebi como pode ser delicado lidar com funcionários e com os
próprios planos de saúde.

Ao abrir o meu próprio negócio, descobri que até podia ser um ótimo médico, mas era um
péssimo empresário. De que adiantaria ser um excelente profissional, se tivesse uma
recepcionista mal-educada, uma secretária com Alzheimer avançado, trabalhasse ao lado de
um barulhento estádio de futebol e não me relacionasse bem?

Não demorei a perceber quão importante seria ter uma recepção competente.

Era fim de expediente quando eu, extenuado, interfonei à recepcionista recém-contratada e


perguntei se havia sobrado algum paciente na sala de espera. Ela respondeu que ainda havia
um casal. Suspirei e pedi para que ela os colocasse para dentro. Não via a hora de pôr os
meus pés para cima e queria atendê-los logo.

Os dois entraram e comecei a abordagem pelo rapaz, que parecia mais apreensivo. Este,
entretanto, disse que teria vergonha em revelar o seu problema. Procurei acalmá-lo
explicando sobre o profissionalismo de minhas atitudes e continuei a entrevista, não dando
muita bola ao seu pudor. Mais conformado, ele contou que havia surgido uma lesão em seu
pênis e que esta não teria desaparecido com uma pomada do farmacêutico. Resolvi examiná-
lo e ele, mais uma vez muito envergonhado, acabou cedendo aos meus argumentos e tirou a
roupa.

Após verificar que se tratava de uma doença sexualmente transmissível (condiloma


acuminado), expliquei a necessidade de esclarecer algumas questões que poderiam ser um
pouco constrangedoras. Perguntei a data de sua última relação sexual, se realizara sexo oral e
assim por diante. Como a sua esposa não se manifestou e mantinha a cabeça abaixada, não a
questionei nesse momento.
Após ouvir as respostas, expliquei-lhes, olhando para a mulher, que aquilo passava pela
relação sexual e que, por isso, precisaria examinar também a sua vagina. Foi quando ela se
levantou indignada:

- A minha não. Eu não. O senhor está maluco? Eu tentei acalmá-la, explicando-lhe os riscos
que corria e a necessidade de um exame, mesmo que fosse pela sua ginecologista.

- Mas eu não preciso deste exame! -Veja bem, na mulher as lesões podem ser internas... -
argumentava eu, quando ela me interrompeu pela segunda vez:

- Doutor, eu nem conheço este homem! O senhor está completamente maluco!

- Me desculpe, mas não são casados? - Casados? Nunca o vi antes. Sua secretária é que nos
mandou entrar juntos!

Como em qualquer outra atividade, o dia a dia me mostrava as matizes dessa faceta do
atendimento médico. Era bem diferente a minha atuação na clínica privada, quando
comparada aos ambulatórios do hospital...

Durante a residência, costumávamos frequentar ambulatórios de doenças previamente


selecionadas. Eram dias específicos para hérnias, ou para tumores ou para outras patologias
quaisquer. Ao iniciar o consultório de cirurgião geral e do aparelho digestivo, naturalmente
esperava o mesmo tipo de movimento. Estava afiado e pronto para atender vários pacientes
com úlceras, cânceres, mas logo, ao fim do primeiro dia, lamentei: "Mas que engano...".

Quando o primeiro paciente entrou, chutei em pensamento o diagnóstico: "Será uma


hérnia!". Mas a queixa foi "lingua branca e boca amarga". Ainda confiante, tentei adivinhar o
problema do segundo: "Pedra na vesícula!". Errei de novo: era mau hálito.

A queixa do terceiro eu jamais adivinharia: - Eu tenho uma dor que volta e meia faz que vai
doer, mas não dói. Não pude deixar de pensar: "Então leve este comprimido. Faça que vai
tomar, e não tome...".
Embora estivesse um pouco mais desanimado, quando notei o comportamento da quarta
paciente ao entrar, não pude deixar de chutar a sua queixa e... errar novamente.

Assim que entrou no consultório, antes que minha recepcionista pudesse puxar a porta da
sala, a própria paciente já a fechou, com uma expressão misturada de timidez e apreensão.

"Típico comportamento de quem reclamará das hemorroidas", pensei. Mas, na verdade, a


paciente só me procurou para esclarecer uma dúvida:

- Doutor, sexo anal faz mal? Caramba! Nunca estudei um parágrafo sequer sobre o assunto.
Como poderia emitir uma opinião técnica, se o meu conhecimento a respeito disso advinha
mais de uma mistura de história da antiguidade, religião e revistinhas pornográficas do que de
aulas de proctologia? E não foi por falta de curiosidade médica.

Lembro-me do congresso de cirurgia em que um professor italiano demonstrou a sua nova


técnica para operar hemorroidas. Ele desenvolveu um aparelho especial que, ao ser acionado
dentro do ânus do paciente, ressecava todo o tecido excedente das hemorroidas. Ao mesmo
tempo que o aparato seccionava, grudava as bordas remanescentes por meio de vários
grampinhos que ficavam aderidos no local. A porção extirpada de mucosa lembrava uma
rodela de lula frita (médicos adoram essas comparações nojentas). Uma vez retirado o
aparelho, terminava o procedimento. Simples, prático e genial.

Ficamos estupefatos. Enquanto eu ainda estava em transe, um colega me cutucou e perguntou


baixinho:

- Tudo bem que o método é excelente, mas será que depois de prender todos estes
grampinhos no reto, o paciente poderá fazer sexo anal?

Tendo ouvido a dúvida, os médicos ao redor também ficaram curiosos. Não é incomum
operarmos homossexuais. Eles certamente nos questionariam sobre isso. Ficamos intrigados,
mas, no meio daquele auditório imenso, ninguém teve coragem de expor a dúvida. De
qualquer forma, quando recebemos um folhetinho do congresso questionando sobre a
qualidade das exposições e pedindo sugestões de novos temas, escrevemos: visão médica do
sexo anal. O congresso é anual, mas até hoje nunca houve uma palestra a respeito; acho que
não levaram a nossa sugestão a sério.

Voltando a falar sobre o consultório, constatei que para cada caso atendido de pedra na
vesícula, atendia uns vinte casos de mau hálito ou de lingua branca. Para cada obstrução
intestinal por tumor, vinte distensões abdominais por origem emocional.

Tive de estudar tudo de novo, pois, durante a residência, para cada hora de estudo nos
capítulos de hérnias ou úlceras, devo ter gasto um segundo nos capítulos de mau hálito,
lipoma ou flatulência. Eram coisas que nenhum residente de cirurgia tinha o menor interesse
em aprender e que, agora, movimentavam o meu consultório!

Isso ocorre em qualquer área. O cardiologista não vai encontrar na clínica privada nenhuma
síndrome de Wolf-Parkinson-White. Vai atender a pressão alta e colesterol elevado. O
endocrinologista não verá acromegálicos, e, sim, gordinhos diabéticos.

Como cirurgião, acreditava que sairia operando a torto e a direito, mas estava parcialmente
enganado. Tendo em vista as queixas que abordava, apenas uma minoria acabava sendo
submetida a tratamentos cirúrgicos. E dos procedimentos que indicava, a maioria não tinha o
menor glamour. Deixei a residência querendo enfrentar casos desafiadores. Entretanto, antes
que eu pudesse me tornar um pouco mais conhecido como cirurgião de vísceras, virei
referência em unha encravada!

Existe um sábio aforismo em cirurgia que diz"o ótimo é inimigo do bom': Muitas vezes, ao
querermos limpar um pouquinho mais uma artéria (o que seria tecnicamente lindo, mas
desnecessário), acabamos lesando-a e perdendo um templo para estancar a hemorragia. É na
área do agrião que nossos auxiliares nos relembram desta frase, alertando-nos para não tentar
melhorar o que já é suficientemente bom. As manicures que não conheciam esse aforismo
acabavam, em busca da perfeição, encravando as unhas e me gerando clientes.

Logo no início da clínica, pude constatar que, além da parte médica, havia a administrativa.
Tive que ordenar e estipular como seria o agendamento das minhas consultas e em qual dia
operaria. Decidir se faria encaixes de atendimento e como os faria, quando receberia os
propagandistas, pagaria as secretárias e até como tiraria férias. Curiosamente, alguns
pacientes não viam com bons olhos médicos que tiravam férias. Para evitar esses
aborrecimentos, alguns colegas as juntavam com viagens de eventos ou simplesmente
batizavam as suas férias de "congresso". É muito mais chique dizer para os pacientes que o
médico foi dar aulas num simpósio da Bahia do que "está relaxando na Bahia". Essa
constatação faz parte do próximo item que discutirei da clínica privada e que acredito praticar
muito mal.

Passei por algo muito peculiar no meu consultório: um senhor solicitou um check-up anal!

Fiz várias perguntas relacionadas a possíveis doenças e sintomas anais, sendo todas as
respostas negativas. Após a história clínica, fui examiná-lo. Não encontrei nada de anormal.
Durante essa avaliação, o paciente resolveu contar o que o angustiava:

- Doutor, na verdade o procurei pois o meu parceiro disse que sou largo, frouxo. Será que o
senhor poderia dar uma apertadinha?

Apesar de existirem cirurgias para incontinência anal, não domino essas técnicas. Mas mesmo
que as dominasse, nunca vi nenhuma indicação com esse propósito sexual-estético. Eu
conhecia o "ponto do marido", que aproxima os músculos da vulva após incisão que alarga a
vagina durante o parto normal. Que eu saiba, não existe um ponto do marido gay e eu
contraindiquei uma intervenção cirúrgica. Para que ele não ficasse muito frustrado, orientei
alguns exercícios para fortalecer sua musculatura local.

Quando cheguei em casa, comentei o caso com a minha esposa que, apesar de também ser
médica, não é cirurgiã. Ela me perguntou:

- E por que você não o operou? Se você fizesse a cirurgia, poderia virar referência na região!

Quem diria! Bastaria adaptar algumas técnicas de cirurgia anal para esse propósito e, com um
bom marketing, poderia ficar rico!

Expliquei os motivos para que ela também entendesse o porquê de não tê-lo operado, mas
não pude deixar de imaginar como seria o meu consultório caso acatasse a sua sugestão:
pôsteres da Golden Gate Bridge, bandeiras com arcos-íris e a minha sala de espera lotada...
O marketing entre médicos ainda é muito malvisto, pois facilmente nos colocará diante de
dilemas éticos. Há plásticos que anunciam suas cirurgias colocando fotos de antes e depois,
dermatologistas que produzem e vendem seus próprios cosméticos e muitas outras
infelicidades similares. Eu não divulgava resultados maquiados das minhas cirurgias, não
inventava cartas de agradecimentos nem ligava para as rádios da cidade fingindo ser algum
paciente agradecido. Não pagava matérias em revistas, não comprava medalhas de supostas
homenagens, não dependurava os certificados dos milhares de cursinhos tolos que fizera
durante o internato nem distribuía panfletos nos semáforos alertando para os riscos de possuir
uma pedra na vesícula. Não interrompia as minhas consultas fingindo atender a um
telefonema do governador, não botava a culpa em outros colegas ou em Deus quando as
coisas iam mal. Não aumentava a gravidade da doença para depois exaltar minhas vitórias.
Não tirava fotos ao lado de grandes personalidades da cirurgia como se fossem meus amigos
íntimos.

Excluindo as condutas antiéticas, sei que marketing é fundamental e que poderia ter feito
muito mais. Sempre me esquecia de fornecer meus cartões, não mandava cartão de Natal
perguntando como estava o estômago dos meus doentes, não passava o dia tomando café na
cantina do hospital e deixava o conceito de vitrine um pouco de lado. Mas, na verdade, isso
também fazia parte de uma estratégia.

Os pacientes e os colegas precisam saber o que fazemos e como fazemos. Que somos
responsáveis, cuidadosos, atenciosos e competentes. Acredito que, por não ficar me
pavoneando, por não dificultar o trabalho de outros colegas (seja por meio de reserva de
mercado, seja denegrindo-os injustamente) e por tratar adequadamente meus pacientes, isso
funcione como uma boa publicidade. Entretanto, percebi que os pacientes e os próprios
colegas têm dificuldade em separar o joio do trigo.

Lembro-me de ter lido uma interessante reportagem em uma revista semanal sobre "os
médicos que os médicos indicam". Se o objetivo da revista era, com essa estratégia, descobrir
os melhores especialistas,

poderia ter errado. A questão mais adequada para esse fim seria "os médicos que os médicos
indicam quando a mãe deles fica doente".

Isso porque os colegas encaminham seus pacientes para quem eles gostam ou lhes trará
alguma vantagem e não, obrigatoriamente, para quem é o mais competente. Apesar disso a
lista, a meu ver, cumpriu com o seu objetivo, mas fica aqui a minha recomendação para a
próxima reportagem...
Com o consultório, voltei a dar plantões de retaguarda da cirurgia. Dessa vez de uma forma
muito mais viável e numa cidade que não registra diariamente dezenas de quilômetros de
congestionamento. Não precisaria mais ficar duas ou três horas no trânsito para ver cada
paciente. E nem por isso o estresse desapareceu. À medida que ganhava reconhecimento,
atendia a casos mais complexos e minhas dúvidas aumentavam.

Um mar de dúvidas

"Só sei que nada sei."

SÓCRATES

Sempre que inauguramos uma etapa em nossa vida, evidenciam-se novas dúvidas e há,
naturalmente, certa insegurança. Isto é ainda mais nítido para quem passa a trabalhar sozinho
e com uma ciência inexata; exatamente o meu caso ao deixar um ambiente universitário e
inaugurar a clínica privada.

Foi necessário muita garra para suportar a responsabilidade de possuir pacientes particulares e
viver na incerteza amplificada pelo desamparo, na ausência de superiores hierárquicos e do
seu conhecimento acolhedor. Às vezes, tinha a impressão de que não sabia nada. Não por
falta de estudo; quanto mais lia, melhor compreendia a nossa ignorância. Trabalhamos com
algo que "não podemos errar", desconhecendo a sua totalidade. O resultado só pode ser a
incerteza, com quem não é fácil de conviver, ainda mais na minha especialidade que lida com
o abdome (essa palavra deriva de abdère, que significa afastar, ocultar, esconder). O médico é
um grande apostador e o paciente pode ser, como brincavam os residentes, um grande Kinder
Ovo - chocolate em forma de ovo que contém um brinquedinho de montar no seu interior.
Como William Osler dizia, "a medicina é a ciência da incerteza e a arte da probabilidade".

O fardo ao conduzir um caso que foge do arroz com feijão e vai se complicando cada vez mais
é terrível. Essa situação ocorre com frequência, pois cada caso é um caso, o que dificulta a
nossa vida, mas, ao mesmo tempo, confere uma beleza inigualável à medicina.

Lembro-me dos arrepios que sentia quando era solicitado a avaliar um caso de "dor
abdominal atípica" na enfermaria da reumatologia. Parecia estar tratando de um ser de outra
galáxia. Talvez um homo reumatologensis ou algo assim. Eram pacientes diferentes, pois
envolviam uma mistura de distúrbios relativamente incomuns acometendo portadores de
doenças raras. O resultado era sempre um caso esquisito e inédito.

Os corticoides são potentes anti-inflamatórios que podem melhorar algumas doenças mesmo
que desconheçamos a sua causa. Por isso brincávamos: "É nessas horas que deixamos de
prescrevê-los por via oral e passamos a indicá-los por via das dúvidas...". Não haverá um
caminho certo e bem delimitado a seguir. Seremos guiados pela experiência, pelo bom senso,
pela comparação a problemas similares e corrigidos, diariamente, pela evolução clínica do
doente. Nessa condição, a arte impera e a nossa angústia precisa ser controlada. Quando o
desenrolar dos fatos não está a contento, mesmo atuando com empatia, continuaremos
ruminando sobre hipóteses diagnósticas ou abordagens terapêuticas alternativas. Ficamos
insones, tensos e irritadiços. Para que você possa sentir um pouco do nosso drama, gostaria
de narrar alguns desses casos excepcionais.

Dona Ariana era colombiana e trabalhava no Brasil como professora de física. Foi despedida e
resolveu voltar ao seu país. Estava sem convênio médico quando sofreu um acidente de carro
no trajeto para o aeroporto e precisou ser operada. Depois de dez dias, recebeu alta e por
estar passando muito mal, procurou pelos meus serviços com uma suspeita tomográfica de
possuir um segmento intestinal necrótico, por falta de sangue.

Eu a operei e quebrei a cara com uma peritonite encapsulante. Trata-se de uma condição em
que as alças intestinais ficam tão aderidas que é praticamente impossível liberá-las sem furá-
las. E foi exatamente o que ocorreu, até que eu pudesse descartar a hipótese de infarto
intestinal. Costurei tudo, mas ela desenvolveu uma obstrução do intestino que não
melhorava nem com reza brava. Ficou internada por dois meses, tendo febre e vomitando.
Todas as tentativas de tratamento falhavam ou criavam situações paralelas que pioravam
outras partes do seu problema. Um remédio ajudava na infecção, mas atacava os rins. O
cateter a nutria, mas piorava a febre. O soro a hidratava, mas encharcava os pulmões...

O sofrimento da paciente era incomensurável e não pretendo compará-lo ao meu. Mas


acredite, sofria a cada dia com as nossas frustrações. Segunda a domingo, dias e noites, tudo
sendo aventado e nada funcionando semana após semana. Nas minhas costas estavam a
responsabilidade de tomar decisões sem o apoio da experiência de casos anteriores (pois
inexistiam naquela apresentação), o medo da paciente, o estresse de seus conhecidos e, para
piorar, o controle dos seus limitados recursos financeiros. Eu sabia de quanto ela dispunha e
tentava, a todo custo, solicitar o mínimo necessário de exames e procedimentos, para evitar a
sua falência orgânica e financeira. Agora pare, decore o livro inteiro de cirurgia e clínica
médica e me diga o que fazer.
Todos os dias, quando chegava à minha casa, pensava no que poderia estar indo errado.
Discutia o caso com outros médicos. Estudava. Não podia parar e continuava operando outros
doentes, fazendo plantões e dando atenção à minha família. Não é nada fácil. A única coisa
que me contentava era lembrar-me da máxima dos plantonistas: "Plantão pode ser terrível,
mas uma hora sempre finda!". Dito e feito.

Acabamos por descobrir que ela vinha sofrendo uma infecção generalizada por fungos
resistentes às medicações habituais. Ela não precisou de uma nova cirurgia, mas ficou vários
dias na UTI restabelecendo as suas funções vitais. Graças a todo o nosso esforço e,
principalmente, à sua persistência e paciência, curou-se. Ela perdeu uns vinte quilos e eu, três.
A diferença é que ela estava infectada e em jejum, enquanto eu comia umas vinte barras de
chocolate para, todo santo dia, aliviar as minhas angústias.

Dona Ariana foi um caso único, mas existem outros ainda mais inusitados. Um desses casos
sem precedentes ocorreu com o seu Rui. Verifiquei toda a literatura médica disponível e não
havia nada igual!

Ele sofreu uma sequência de eventos que dificilmente será reproduzida, assim como a sua
consequência. Primeiro, ele foi vítima de um tiro no peito que o atravessou da direita para a
esquerda, com o projétil indo se alojar no seu abdome. Segundo, de um médico que resolveu
não operá-lo naquela ocasião.

Fantasticamente sobreviveu, mas depois de dez anos desenvolveu uma comunicação anormal
entre o pulmão e o estômago. Ele aspirava para o pulmão tudo o que comia e, se respirasse
muito fundo, enchia o seu estômago de ar e não parava de eliminar flatos. Era uma coisa tão
estranha que demoramos a pensar na hipótese que, antes dele, inexistia. Como o caso era
inédito, também o seria seu tratamento. Tínhamos dúvida se operaríamos primeiro o tórax ou
o abdome, os dois juntos, antes ou depois de nutri-lo, só para citar algumas questões.

Como podem perceber, a falta de evidências científicas pode complicar em muito as nossas
vidas. Mas pode ser ainda pior quando há um excesso de clarividências pseudocientíficas.

A medicina baseada em clarividências


"Eu não me sinto obrigado a acreditar que o mesmo Deus que nos deu os sentidos, a razão e o
intelecto quis que abdicássemos de seu uso."

GALILEU GALILEI

Contei alguns casos vividos na clínica privada que aguçaram a minha curiosidade. Mas muito
maior espanto me causava a "medicina alternativa". Isso porque, no meio acadêmico, essas
práticas quase inexistiam.

Lembro-me da época em que a minha panela de internato estava no estágio de pediatria. Um


dos meus colegas tinha acabado de relatar a evolução clínica do seu pacientinho, de forma
muito formal e acadêmica, quando a professora perguntou quais medicamentos ele vinha
recebendo. Sua resposta foi mais ou menos assim:

- Cefalosporina, betabloqueador, dipirona e florais. A professora, naquele ambiente formal e


alopático, levou um tremendo susto:

- Florais? Quem prescreveu isso? Na verdade, era a mãe do paciente que vinha dando o
produto. Nenhum médico prescreveria florais naquela enfermaria e todos deram risadas.

Esse breve relato serve para demonstrar como éramos instruídos a ser quadradinhos e
acadêmicos na faculdade. Se ainda existe muita controvérsia a respeito da eficácia da
homeopatia, imagine como encarávamos qualquer coisa que fugisse do habitual.21 Porém,
pude confirmar em algumas ocasiões que boa parte dessas terapias, realmente, não passa de
crendice ou charlatanice.

Seu César desenvolveu várias bolsas - divertículos - na parede do seu cólon que inflamaram
algumas vezes. Como as suas crises de dor eram frequentes, ele procurou um cirurgião. Este
sugeriu ressecar o segmento afetado, evitando, assim, futuras inflamações de gravidade
imprevisível. Mas no intuito de se esquivar de uma cirurgia convencional e suas possíveis
consequências, seu César optou por procurar um médium, a quem eu batizei, aqui, de Doutor
Wolfgang.
Sempre impressiona um nome germânico, principalmente no Brasil (eu não me surpreenderia
se na Alemanha o médium tivesse o nome de"Pajé amazônico Arapuca Açu Babaquara"- Do
Tupi- armadilha- grande-tolo).

Ele me contou que, após explicar o seu problema, o "doutor" indicou uma cirurgia espiritual.
Esperava apenas uma massagem no local da dor ou algo parecido, mas, para o seu espanto, o
médium retirou uma parte de seu intestino com as próprias mãos! E não foi necessária

*21. LINDE, K; Joins, W Are the clínical effects of homoeopathy placebo effects? The Lancet
2007;366:2081-2.

nenhuma incisão na pele. Sem dor alguma, lá estavam as suas tripas doentes extirpadas,
escorrendo fezes e ainda sangrando.

Não é preciso dizer que isso o impressionou muito e, curiosamente, suas crises cessaram por
um bom tempo. Mas, como voltaram, ele procurou novamente um médico que, desta vez, era
eu.

Os seus exames do intestino eram muito antigos e resolvi repeti-los. É evidente que sua
doença ainda estava ali, igualzinha a antes. Enquanto eu comparava os exames, surpreendi-
me ao perceber que o paciente tinha ficado admirado pelo fato de seu intestino ainda estar
dentro da sua barriga, tudo como era antes:

- Mas ele não retirou? O que ocorreu? Dizem que crença não se discute ou que não é muito
elegante que seja discutida. Não entrando no mérito dessa questão, gostaria de convidá-lo a
raciocinar um pouco.

Embora eu não acreditasse em cirurgia espiritual, sabia que ela poderia trazer benefícios ao
paciente principalmente em decorrência do efeito placebo. Mas, tentando levar o
procedimento a sério, como se, realmente, o intestino fosse ressecado, comecei a filosofar
sobre algumas questões envolvidas no tratamento empregado.

Antigamente, quando ainda não existia anestesia, o cirurgião precisava ser muito rápido.
Atualmente, isso não é mais uma necessidade e quanto mais apressado for o cirurgião, mais
"bifadas" - quando cortamos algo errado ou na dose errada - e sangramentos ocorrerão. Por
isso, um colega sempre me dizia: "Vamos devagar para acabar rápido!". Para que uma cirurgia
fique boa, não arrancamos nada. Devemos operar segundo os rigores da técnica: dissecar os
tecidos com delicadeza, imprimir o menor trauma possível, realizar um bom controle de
sangramentos e uma hermética sutura dos órgãos.

Quando tudo isso é realizado, a peça cirúrgica sai do paciente com todos os seus vasos
amarrados e não vazando sangue ou fezes. Se o doutor Wolfgang simplesmente arranca um
naco de intestino, imagino que dentro do abdome as tripas também fiquem sangrando e
vazando. Ele deve ser, no nosso linguajar, um "baita tigrão"!

Os divertículos mantiveram-se após a cirurgia espiritual. A ressecção fora incompleta? Teria ele
ressecado um segmento do lado errado?

Tendo retirado uma porção do intestino, ele deve ter costurado as extremidades
remanescentes. Será que nunca houve um vazamento da sutura, nos casos de maior risco,
quando, habitualmente, colocamos drenos? Aliás, nunca vi um paciente sair com dreno de
nenhuma cirurgia espiritual.

Dr. Wolfgang, segundo dizem, seria a reencarnação de um grande cirurgião alemão. Isso quer
dizer que ele já morreu; viveu no passado. E deve ter sido há muito tempo, pois já se
esqueceu do seu idioma (não compreende palavras da sua lingua materna quando atende
descendentes de alemães no Brasil). Não acredito que ele tenha frequentado cursos de
atualização no Além. Assim, seria de se esperar um desconhecimento das doenças mais
recentes (como a Aids) e das técnicas cirúrgicas modernas. Suas condutas seriam antigas e
defasadas. Há poucos anos, por exemplo, uma costura de intestino grosso sem a completa
eliminação prévia do seu conteúdo era totalmente proscrita. Mas também nunca vi uma
colostomia para evitar uma costura de risco ou orientações para um esvaziamento intestinal
antes de uma cirurgia espiritual.

De qualquer forma, esse Dr. Wolfgang devia ser muito bom mesmo. Espero que opere com a
destreza que possuía no auge da sua carreira cirúrgica e não como nos seus últimos anos de
vida, acometido por tremores e vista cansada...

Eu poderia fazer essas e outras várias indagações sobre os seus procedimentos. Mas penso
que a questão fundamental é: vale a pena enganar o paciente para se obter o efeito placebo?
Vários médicos agem dessa forma em casos de distúrbio neurovegetativo (DNV), como já
discorri. Entretanto, nenhum deles fala que o paciente está curado ou que poderia jogar fora
suas muletas, caso a doença ainda continue presente. Nesses episódios, pessoas com doenças
graves poderiam perder as chances de ser tratadas com seriedade e, eventualmente, curar-se,
acreditando em um alívio temporário graças ao efeito placebo (caso a doença não se cure
sozinha).

Sem hipocrisia, é claro que a volta das dores não correspondia a uma complicação da cirurgia
espírita. O que ocorreu foi estudado anteriormente. Se o paciente ficou impressionado com a
cirurgia, ficaria mais impressionado ainda em saber que o intestino extirpado não era
humano!

Certa vez um cético se deu ao trabalho de ir a uma dessas sessões e coletar as tripas e cálculos
que eram extirpados pelo médium durante suas manobras. Todo o material foi encaminhado
para exame laboratorial. Não é de se surpreender que os intestinos fossem provenientes de
porco ou galinha e os cálculos, de sal grosso ou de minerais inexistentes no corpo humano...

César não viu onde estavam as vísceras antes de elas serem retiradas, e o médium certamente
não lhe mostrou suas mãos vazias antes do procedimento. Eu não me surpreenderia se em
vez de uma tripa tivesse retirado um coelho ou cartas de baralho. A diferença é que nesses
casos não haveria efeito placebo e a dor não teria melhorado.

A medicina tradicional não é uma panaceia e é compreensível que as pessoas busquem outras
opções para resolverem os seus males, pois quando estão doentes e com problemas graves
ficam especialmente susceptíveis a tratamentos e terapeutas de todas as espécies. Os
alternativos não são regidos pelo juramento de Hipócrates e muito menos regulamentados
por algum órgão competente, como ocorre conosco. Voltam-se muito aos sintomas e pouco às
doenças, e para qualquer terapia deve existir ao menos uma hipótese diagnóstica (caso
contrário poderão estar tirando a dor de cabeça de alguém que precisa, na verdade, extirpar
um tumor cerebral). As suas condutas são baseadas em dogmas e não em pesquisas. Para
piorar, encontraremos nesse segmento, com maior frequência do que no meio médico, os
charlatões mal-intencionados e os crédulos bem-intencionados, embora incompetentes.

Quem os procura correrá riscos de se submeter a tratamentos ineficazes nem por isso inócuos.
Há possíveis malefícios, mesmo que advindos da ausência de benefícios.
Diferentemente de outras profissões, o médico ao se graduar não promete, ele jura. E um dos
primeiros aforismos que aprende será: "Primo non nocere" (em primeiro lugar, não lese);
portanto, não posso me sentir muito bem quando ouço alguém falar em tratamentos
alternativos. Já vimos besteiras terríveis demais e pretendo exemplificá-las.

Seu Woo, um senhor de 70 anos, era saudável até o momento em que começou a sentir
cólicas abdominais e parou de evacuar. Não conseguia mais eliminar gases e seu abdome, em
poucas horas, inchou como um balão. Procurou um terapeuta que lhe aplicou várias ventosas
no dorso. Como não houve melhora, no outro dia iniciou um tratamento com chás de ervas
naturais (qual erva não é natural?), mas a distensão abdominal piorou. O terapeuta insistiu no
tratamento, mas ele não aguentou. Estava vomitando fezes quando resolveu procurar o
pronto-socorro. Ao examiná-lo, era óbvia a necessidade de uma cirurgia de urgência.

Um pequenino tumor havia causado uma obstrução em seu intestino grosso. Este foi se
dilatando até que estourou, disseminando fezes por todos os lados. Apesar da cirurgia, ele
morreu pela infecção.

O terapeuta tratou sem sucesso dos sintomas e adiou o diagnóstico de uma doença que seria
operada e curada sem grandes dificuldades, desde que pelo profissional adequado. A terapia
"natural", que à primeira vista parecia simpática e inocente, revelou seu potencial perigo ao
postergar um tratamento consagrado.

É comum flagramos pacientes associando o natural com saudável e seguro.

Para começar, a barreira entre algo natural e artificial nem sempre é nítida. Penicilina era
fabricada por um fungo, assim como alguns fármacos que diminuem o colesterol. A dipirona e
a aspirina são originárias de árvores, e criamos fibras de colágeno em laboratório. O que é
artificial?

Além disso, nem tudo que é natural é seguro. Ingredientes corriqueiros em nossa alimentação,
como a noz-moscada e a mandioca, podem matar. Não estou me referindo a uma
"mandiocada" na cabeça, mas sim a envenenamento! Aquele inócuo Ginkgo biloba que a sua
vizinha recomenda pode agravar de forma importante uma hemorragia. E quem nunca ouviu a
história da vovó que foi achada cantarolando e lavando o seu televisor no tanque de lavar
roupas, após tomar inadvertidamente um copo de chá de cogumelos?
As pessoas precisam tomar cuidado com essa associação. Cocaína, tabaco e fezes têm origem
natural, mas, se ingeridos, fazem mal. E qual água é mais saudável: a dos rios ou a
engarrafada? De vez em quando é preciso refletir.

Amanda era um nenê lindo, simpático e sorridente que começou a ser acompanhado por um
pediatra "não muito ortodoxo".

Um pouco alternativo demais, parece ter permitido que a mãe fizesse algum tipo de
tratamento natural que substituiria o uso das vacinas. Esse tratamento deve "funcionar",
afinal, a maioria das pessoas não desenvolverá tétano, difteria ou hepatite B. Mas, nesse caso,
para o azar de todos, e principalmente da criança (que como a mãe, ainda não possuía o
discernimento para definir se deveria ou não ser vacinada), ela desenvolveu uma meningite,
para a qual existe, e é recomendável, a imunização.

A menina sobreviveu, mas ficou surda e sequelada para sempre, assim como a coitada da
mãe. Espero que o seu pediatra também sinta o peso das anomalias cujo aparecimento
facilitou, pois isso não ocorreu apenas em uma ocasião e parece continuar acontecendo
graças a um modismo pouco sustentado em se evitar a vacinação infantil.

Ouvi argumentos de pessoas que não estariam vacinando os seus filhos "porque as vacinas
teriam efeitos colaterais", "deixariam de estimular naturalmente o sistema imunológico",
seriam "desnecessárias" ou "trocariam doenças agudas por crônicas"!

Certamente existem os efeitos colaterais, mas são muito bem estudados para que seus
malefícios sejam suplantados pelos benefícios. Prefiro que meu filho tenha dois dias de febre
após uma vacina de meningite (evidenciando o seu estímulo ao sistema imunológico) do que
sequelas dessa doença para o restante da vida (se sobreviver).

O organismo humano não tem como distinguir se o estímulo é natural ou induzido. A prova
disso é que, uma vez imunizado, ele atacará, inclusive, o germe natural para o qual a vacina foi
concebida... Os que desejam tudo de natural para os seus filhos deveriam reavaliar seus
conceitos, pois acredito que habitem em casas com energia elétrica, saneamento básico e
desfrutem de tudo o que é industrializado.

Imunizações podem ser "desnecessárias" em um ambiente onde todos os outros são


vacinados, mas, certamente, fizeram muita falta em várias epidemias não muito distantes.
A maior prova de que funcionam está exatamente no último e mais estranho argumento: a
troca de doenças agudas por crônicas. Em primeiro lugar, as doenças crônicas não possuem
vacina, caso contrário seriam evitadas. Em segundo, quem adquiria tétano ou varíola não
desenvolvia osteoporose ou Alzheimer simplesmente por que morria antes!

Como médico e humanista, não posso deixar de me aborrecer com a divulgação de algo
sabidamente danoso à sociedade, como se fosse uma grande descoberta ou revelação. Se
essa corrente acredita que as crianças não devam ser vacinadas, então cabe a ela provar
cientificamente a sua teoria antes de aplicá-la. Essa é a diferença entre crença e ciência.

Muito comumente ouvimos alguns pacientes dizendo que não querem ser cobaias dos
médicos ou que estes são muito céticos. Pois bem, o bom profissional deve ser cético
justamente para que seus pacientes não sejam cobaias! Quando indicamos determinado
tratamento, muitos se esquecem do imenso número de conhecimentos e estudos que o
antecederam.

Para aplicarmos qualquer terapia, o primeiro passo consiste em conhecer o funcionamento


normal de determinado órgão ou sistema (fisiologia), para depois entender o mecanismo de
determinada doença que o acomete (fisiopatologia). Conhecendo esses dados, podemos
procurar o tratamento por meio do raciocínio lógico: "Se determinado fator causa falta de ar
por inchaço dos brônquios, qual substância diminuiria esse edema?".

Apesar disso, devo admitir que muitas descobertas surgiram com uma ajudinha do acaso. Ao
investigar uma droga antidepressiva, por exemplo, constatou-se que boa parte dos seus
usuários deixava de fumar. Hoje, a droga tem mais indicação contra o tabagismo do que
contra a depressão.

Ainda nessa linha, descobriu-se outra das mais lucrativas drogas. O Viagra estava sendo criado
para ser um anti-hipertensivo. Durante o seu desenvolvimento, constataram que os pacientes
estavam muito mais satisfeitos com o seu efeito colateral do que com a queda em seus níveis
de pressão arterial. Com isso, a indicação passou a ser empregada em casos de impotência
sexual, enquanto, ao menos na bula do medicamento, hipotensão virou efeito colateral!

Exemplos não faltam. Porém, independentemente do acaso ou do raciocínio, o importante é


que depois, em ambos os casos, tudo será testado em pesquisa científica. Esta se inicia em
tubos de ensaio, passa para animais de experimentação e, só então, chega ao homem.
A medicina procura abandonar cada vez mais o empirismo individual e se basear em
evidências. Estas são graduadas em vários níveis de solidez, de acordo com a sua fonte. Indicar
algum tratamento porque funcionou na avó do vizinho, por exemplo, é uma evidência de
solidez maria-mole. Sabemos que as melhores possíveis são as oriundas de diferentes
trabalhos multicêntricos, randomizados e duplo-cegos. Calma, não pule a página. Vale a pena
entender como se faz uma pesquisa séria!

Estudos multicêntricos são dirigidos por grupos distintos, o que diminui a chance de
manipulação dos resultados, além de incluir um número maior de pacientes. Muitas vezes os
grupos são rivais e têm pontos de vista diferentes. Cada um tentará provar, dentro dos limites
da ética, que está certo no que pressupõe. Assim, essa competição acaba sendo muito
saudável, pois no final das contas o que se cria é uma parceria. É esta união de várias
entidades diferentes que apontará para o que é, ou não, verdade, ainda que transitória, pois
sabemos da volubilidade delas. Sempre deixaremos espaços para dúvidas, questionamentos e
novas teorias, coisa que a medicina alternativa, com os seus dogmas, repudia.

Em relação ao número de indivíduos testados, sabemos que quan- to maior mais


representativo será. Precisamos observar o mesmo fenômeno algumas vezes para aceitá-lo,
diferentemente dos crédulos que, com um único resultado, criam verdades imutáveis.

Para analisar um tratamento, precisamos avaliar os seus resultados e compará-los aos de um


grupo controle que utilizou outra medicação. Esse grupo precisa ser compatível. Não dá para
comparar os resultados de um remédio para crescimento aplicado em crianças na caatinga
brasileira com outro administrado a meninos noruegueses. Visando à homogeneidade, a
seleção dos pacientes de cada ramo deve ser aleatória, randomizada.

Para que o pesquisador possa analisar os dados com maior idoneidade, nem ele nem os
pacientes devem saber se estão utilizando a substância A ou B. Isso somente deverá ser
revelado ao final do estudo. Dessa forma, a análise será duplo-cega.22

*22. Parece bobagem? Então leia a pesquisa publicada em The Lancet. 2006;367:449-450 por
Iain

Além disso, os estudos devem ser preferencialmente prospectivos e, para finalizar, nem
teriam começado sem passar antes pelo crivo de uma comissão de ética.
Pelo fato de os cosméticos não serem considerados medicamentos, no Brasil, as suas
pesquisas podem ser bem menos rígidas. Assim, a sua esposa pode estar gastando um
dinheirão num creme antirrugas testado e aprovado, e que não funciona! Mas você ainda
acredita que a beleza da modelo na propaganda é mérito do produto? Se assim fosse, o
fabricante imediatamente divulgaria os seus benefícios adicionais: o creme também deixa as
íris azuis, emagrece, elimina celulite e turbina as mamas!

Agora me diga: quantos trabalhos multicêntricos, randomizados, duplo-cegos e prospectivos


aquele moço da TV realizou ou estudou, antes de falar sobre os fantásticos resultados da sua
nova invenção para o tratamento da calvície?

Mesmo assim, você achou o tratamento muito interessante e vai realizá-lo. Parabéns, você
será mais uma cobaia e, talvez, mais um trouxa!

Pode ser que neste instante você esteja olhando para este livro meio de lado, ao recordar de
como funcionou aquele chá de ervas naturais em seu caso: "Esse doutor é bitolado. Claro que
a medicina alternativa funciona!".

Não estou dizendo que não funciona! Não é possível nem aconselhável colocar tudo o que se
chama de medicina alternativa no mesmo balaio. Mas o que realmente é eficaz e comprovado
por pesquisas sérias deixa de ser alternativo e passa a ser tradicional, como ocorreu com a
acupuntura. A medicina tem todo o interesse do mundo em englobar diferentes formas de
tratamento, desde que realmente efetivos. Muitos métodos ainda não foram estudados e,
provavelmente, terão sua validade comprovada no futuro. Mas enquanto isso ainda não
ocorre, não irei arriscá-los em meus pacientes. E quanto ao fato de a mandinga ter
funcionado em seu caso, gostaria de alertá-lo sobre alguns aspectos.

Chalmers e Robert Matthews: What are the implications of optimism bias in clínical research?

Em primeiro lugar, você pode ter se autoenganado, achando que melhorou, para não se sentir
tapeado. Essa reação é muito comum e os psiquiatras a chamam de negação, um poderoso
mecanismo de defesa do ego.
Certa vez, minha esposa se surpreendeu com o fato de a minha barra de chocolate ainda
existir, enquanto a dela já tinha sido devorada havia dias. Expliquei que eu estava comendo
um pedacinho por vez, quando ela exclamou: "Detesto gente comedida!" Na verdade, ela
detestava a própria incapacidade de ser comedida e, lançando mão de outro mecanismo de
defesa do ego (a projeção), para não se frustrar, projetou sua frustração em mim.

Em segundo lugar, muitas doenças são autolimitadas. Um resfriado, por exemplo, melhora
após alguns dias com ou sem remédios. Suponhamos que você estivesse resfriado e tivesse
tomado dipirona na terçafeira, sem melhora. Trocou então por paracetamol na quarta e,
cansado de sofrer, mesmo se arriscando a ser preso pelo Ibama, arranjou um jabuti e o
deixou embaixo da sua cama na quinta-feira, quando melhorou! Será essa simpatia poderosa
ou o resfriado que se curaria de qualquer forma?

Vejo a segunda hipótese como bem mais plausível, embora a primeira seja muito mais
charmosa e aventada. O ser humano tem a interessante capacidade de associar fatos e uma
surpreendente incapacidade de perceber que apenas agrega os que lhe convém. Se eu fosse
místico, apostaria que a melhora adveio não da presença do réptil, mas da passagem de
Marte pela casa de Júpiter...

Em terceiro lugar, apesar de raras, as regressões espontâneas podem ocorrer até em doenças
incuráveis, ainda sem uma explicação científica individual muito convincente. Achei muito
interessante uma colocação de Carl Sagan, quando discorria sobre os milagres ocorridos em
Fátima.23 Quando estes acontecem, a própria Igreja de encarrega de estudá-los e, por que
não, divulgá-los. Considerando o número

*23. SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.

de visitantes a Fátima com determinada doença e o número de curas espontâneas relatadas


naqueles casos, ele constata estatisticamente ser mais fácil ter uma regressão da moléstia em
casa que no local sagrado. Então, contraindica a ida à Europa com esse objetivo...

Em quarto lugar ficam os acontecimentos isolados. As fontes de evidências que consideramos


mais frágeis são os relatos de caso. O que ocorreu em um único paciente, por mais
interessante que seja, não pode ser tomado como regra geral. Na maioria das vezes, funciona
apenas como curiosidade ou lembrete sobre determinado aspecto. Isso vale, por exemplo,
para o seu vizinho que, realmente, curou-se de uma úlcera bebendo, diariamente, a água
quente do chuveiro...

Em quinto lugar e mais importante, existe o efeito placebo. Este atrapalha ainda mais a
interpretação dos fatos pelos leigos.

Se quisermos testar determinado remédio estimulador da memória, o ideal seria selecionar


dois grandes grupos aleatórios e submetê-los a provas específicas. Testes similares seriam
então reaplicados após a ingestão da droga a ser testada. Entretanto, uma metade receberia a
substância a ser estudada e a outra tomaria comprimidos sem poder terapêutico, por
exemplo, de farinha (seria o placebo). As pílulas deveriam possuir a mesma aparência. Tanto
os médicos quanto os pacientes não poderiam saber distingui-las. Sabe o porquê disso?
Porque mesmo com o placebo existirá uma resposta positiva!

O remédio será considerado eficaz somente se sua atividade for estatisticamente superior à
do placebo. Nessa pesquisa, a memória provavelmente melhoraria com o uso de qualquer um
dos dois. Resta saber qual deles seria o melhor.

Compreenda a importância deste último parágrafo. Quando o paciente acredita que o seu
tratamento é eficaz, a resposta costuma ser maior. Caso ele confie em seu médico, a melhora
pode beirar os 30% ou até 40% apenas com farinha!

Quanto mais convincente for o doutor ou o charlatão, mais impressionantes poderão ser os
seus resultados. Isso explica as "melhores previsões" desvendadas por uma vidente envolta
por todo um ambiente misterioso, quando comparadas às de uma máquina eletrônica do
shopping com um desenho de faraó. É mais provável que a dança do pajé melhore a dor de
cabeça do índio do que a do cara pálida. O inverso também pode ser verdadeiro, mesmo que
com um comprimido de algum conhecido analgésico.

O placebo reflete o poder de nossa própria mente e nunca deve ser subestimado. Quando
alguém percebe alivio de determinada doença (em geral psicossomática) com algum
tratamento esquisito, provavelmente o mérito caberá a si próprio (graças à sugestão do
terapeuta) e não às emanações transcendentais do amuleto mágico, da energia cósmica
liberada pela lama sulfurosa do Tibete ou às areias de algum rio sagrado. Mas nem todos
concordam comigo. Muitos desses terapeutas têm como objetivo, na verdade, o
compartilhamento de determinada crença.
São pessoas que adoram falar e não conseguem ouvir. Tentam convencer-nos por meio de
argumentos "lógicos". Entretanto, a sua lógica costuma ser ligeiramente distorcida, pois
quando realmente aplicada desbanca seus próprios argumentos. Adoram divulgar dados
científicos favoráveis às suas crenças, mas quando isso não ocorre argumentam que seus
métodos não podem ser aferidos cientificamente.

Tendo em vista esse estranho funcionamento mental, fico um pouco menos espantado com a
quantidade de bobagens pseudocientíficas que vejo em tudo quanto é coisa.

Você já ouviu falar da água magnetizada? Pois bem, valendo-se do seu senso comum,
raciocine se não seria muito mais lucrativo para os hospitais investir no monopólio dos
bebedouros de água magnetizada (que curariam desde depressão até tuberculose) do que em
médicos ou em aparelhos caríssimos de diagnóstico. Para que indicar medicamentos e sofrer
com os seus efeitos colaterais quando a água magnetizada cura tudo? Para que pagar um
médico se, ao passar mal, você poderia tomar alguns goles dessa aguinha e ficar saudável?
Qual o sentido em discriminar diagnósticos se ela resolve qualquer coisa? Por que a medicina
reluta em usar algo tão maravilhoso?

Falando em coisas fantásticas, relembrei-me da historinha do zoológico de Havana.

As placas orientavam: "Por favor, não alimente os animais" Com a dissolução da União
Soviética, as ajudas externas minguaram e veio a crise. As placas precisaram ser alteradas
para: "Por favor, não coma a comida dos animais" Com o agravamento da economia houve
uma nova correção: "Por favor, não coma os animais!"

Esta fábula não teria existido com a ajuda de algumas belas moças que vi na televisão. Elas
diziam se alimentar apenas da luz solar. A medicina também precisaria aprender tal método!
Para viver do sol, elas teriam de realizar a fotossíntese como as plantas. Talvez eu acreditasse
nessa história se alguma delas tivesse a mesma tez de cor verde do incrível Hulk. Mas, na
verdade, o que mais me intrigou nessas moças foi o egoísmo. Eu as enxergo como verdadeiras
assassinas! Cadê a sua responsabilidade social? Se se nutrem apenas de luz, por que não
ensinam aquelas crianças desnutridas da África a fazer fotossíntese? Não perceberam como
poderiam ser úteis ao governo inserindo suas maravilhosas técnicas no programa"Fome
Zero"?

Enquanto houver quem acredite, alguns continuarão a inventar técnicas e tratamentos


esdrúxulos, que, na maioria das vezes, serão ineficazes (eficácia igual à do placebo). Mas,
mesmo que ineficientes, boa parte desses tratamentos é charmosa e convidativa. Um banho
de pétalas vermelhas no ofurô, por exemplo, pode não curar o câncer, mas deve ser uma
delícia! Porém, que tal um tratamento com irrigações intestinais? Humm!

As lavagens intestinais existem há muito tempo e ainda possuem suas indicações. Nelas,
introduz-se uma sonda pelo anus, através da qual se injeta água ou outras medicações visando
ao amolecimento do bolo fecal e à sua eliminação. Mas alguém resolveu ressuscitar a ideia de
sua vovó, que acreditava ser necessário o uso de laxantes para nos livrar das impurezas.

O anúncio falava sobre "limpeza de detritos acumulados por anos" (ou seria pelo ânus?),"
limpeza de toxinas" e até "alívio de enxaqueca"! "Métodos já consagrados nos Estados
Unidos"... Afinal, algo que é consagrado na América deve ser muito bom para a saúde; talvez
como bacon no café da manhã! Mas irrigação intestinal a esmo não é consagrada nos Estados
Unidos.

Detritos acumulados por anos! Até parece que alguém realizou um teste do carbono 14!

Como pode haver detritos acumulados há anos, se o revestimento celular do intestino se


renova constante e completamente em menos de dez dias? Se mesmo assim algo se acumula,
como DDT ou metais pesados, será que os removeremos com uma mangueirinha e água
morna?

As pessoas têm muito medo das toxinas e, por isso, todo mundo adora citá-las em anúncios
sobre terapias. A boa notícia é que, para nos livrarmos delas, fomos presenteados pela seleção
natural com alguns mecanismos depuradores. Ninguém nasce com um kit de lavagem
intestinal acoplado na placenta ou gêmeo siamês de uma enfermeira especialista em
hemodiálise. Fazemos cocô sozinhos e nascemos com rins, fígado e uma série de mecanismos
antioxidantes que se os terapeutas conhecessem ficariam maravilhados (aliás, sempre que
você ouvir alguém falando em toxinas, sugiro que pergunte: "Quais, especificamente?". Nunca
saberão responder. Dirão apenas: "Toxinas, ué...".)

A expressão "enfezado" também denota alguém cheio de fezes. Se você já passou por essa
situação após ficar vários dias sem evacuar, poderá se sentir distendido, empanturrado, mal-
humorado e até com dor de cabeça. Talvez o seu tratamento seja uma lavagem intestinal. Mas
ficar fazendo lavagens rotineiramente e sem uma indicação precisa não tem o menor
cabimento. E o pior, tem seus riscos! Não sei quem o dono da clínica contratará para fazer
seus enemas. Mas gostaria de lembrar que, mesmo no hospital, onde os enfermeiros
adquirem enorme experiência com tal procedimento, vi casos de perfuração intestinal pela
sonda da lavagem.

Esse anúncio era tão pitoresco, que me lembrou a história do homem que ficou rico vendendo
maçãs de Chernobyl.

No início acharam que ele estava louco ao exaltar a origem de suas frutas. Afinal, quem
soubesse que sua fazenda era em Chernobyl jamais compraria as suas maçãs! Certo?

Surpreendentemente, o homem vendeu mais que todos os outros lavradores juntos e ficou
milionário! O segredo do seu sucesso é que todo mundo comprava caixas e mais caixas para
presentear entes não muito queridos. Havia encomendas para chefes, politicos, ex-mulheres...
Talvez o indivíduo que inventou a terapia das lavagens intestinais também fique rico de forma
similar. Você não se dá bem com a sua sogra? Que tal presenteá-la com uma tarde inteira
naquela clínica, submetendo-se a lavagens intestinais intensivas? Não seria interessante que
ela se livrasse de suas toxinas regularmente?

Caro leitor, existe uma regra universal em ciência: a explicação mais simples deve ser a mais
correta. Quando ouvir alguém falar sobre um novo tratamento qualquer, utilize o senso
comum, racidcine um pouquinho e busque sempre a explicação mais singela. E não se
esqueça: alegações excepcionais demandam provas excepcionais!

A medicina virou um negócio da China!

"... O fato mais espantoso acerca de 2002 é que os lucros dos dez laboratórios farmacêuticos
na Fortune 500 (US$ 35,9 bilhões) foram superiores aos lucros somados de todas as outras
490 empresas (US$ 33, 7 bilhões)... "24

MARCIA ANGELL

Se boa parte da "medicina" alternativa é estatisticamente ineficaz, por que ainda existe e é
tão procurada?
Trabalhei alguns anos no pronto-socorro com um cardiologista extremamente competente,
mas dotado de um péssimo humor. Reclamava de tudo a toda hora, fazendo jus ao seu apelido
de garoto-enxaqueca. Apesar disso, atendia os pacientes com atenção e carinho, o que só era
possível graças aos seus corriqueiros desabafos com os colegas: "É o décimo maluco de hoje!
Ainda não vi um doente de verdade! O único jeito de diminuir a procura por esse pronto-
socorro é pedir à prefeitura que acrescente antidepressivos à água encanada! No SUS, atendo
doentes; aqui, faço teatrinho! Precisamos criar a ONG "Abrace um paciente com
fibromialgia'!".

Eu simplesmente sorria e continuava trabalhando, mas, às vezes, os seus desafogos


despertavam a minha curiosidade:

- Deus do céu, precisamos de um biotério! - Biotério no pronto atendimento - fiquei intrigado


-, pra quê? - Sabe quando você atende uma paciente de 50 anos cheia de dores esquisitas e
"insuportáveis", com vários exames absolutamente normais, tomando medicamentos sem
alívio dos sintomas, em pleno domingo e acompanhada pelo pai mal-humorado? É a síndrome
da mulher mal-amada.

- Acho que desta vez você está exagerando. De qualquer forma, onde entra o biotério?

*24. ANGEL, M. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos. Rio de Janeiro: Record, 2007.

267 - Não adianta dar remédios para suprir carência afetiva. Ao liberá-la do pronto-socorro
não deveríamos fornecer uma receita e, sim, um tíquete: "vale um porquinho-da-índia".

Fiquei imaginando as pacientes saindo do PS com uma interrogação na face e carregando um


saquinho com um porquinho-da-índia, peixinhos dourados ou algo parecido...

Além de se valer desses descarregos para, segundo ele mesmo, não "surtar", sonhava
ansiosamente com o seu último plantão. Quando não precisasse mais do seu salário para
sobreviver, abandonaria o emprego de PS e faria do último plantão "o dia da verdade". Nesse
dia fatídico, nada de mentir, atenuar, confortar ou minimizar. Falaria apenas as verdades:
"Seu diagnóstico é hipocondria. É um caso típico de falta de bom senso! A senhora está gorda
porque come demais. Isto são horas de vir ao pronto-socorro por causa de um resfriado? Você
procurou o médico por causa disso? Teria sido melhor procurar a sua avó...".
Por sorte, o colega foi despedido antes que o dia da verdade se concretizasse e algum
paciente viesse a formular a perigosíssima questão:

- Doutor, o que o senhor acha? Lembrei-me dessa história não pelas maluquices do colega e,
sim, pelo desconforto que lhe trazia o atendimento de pacientes com queixas emocionais e
psicossomáticas. Para quem trabalha numa unidade coronariana, acompanha traçados
eletrocardiográficos e pessoas conectadas a respiradores devido a doenças graves e agudas,
atender a queixas psicossomáticas crônicas pode parecer uma bobagem. Mas não é.

Elas representam boa parte do nosso atendimento, comprovando que as pessoas são seres
humanos e, não, um conjunto de órgãos, como a medicina tende cada vez mais a enxergá-las.
Se os médicos tratam somente de órgãos acometidos em vez de indivíduos adoentados, é
natural que estes procurem alguém que faça o contrário. Este alguém, hoje, acaba sendo um
terapeuta alternativo...

Porém, existem outros motivos que também deixam a desejar na medicina atual. Embora
dentro do lícito, a medicina virou uma espécie de comércio, desvirtuando ainda mais o
relacionamento do médico com os seus pacientes. O cuidar virou simplesmente tratar. E da
forma que um terceiro estipulará, para que seus lucros sejam viabilizados. Apesar de ainda ser
a peça central, o paciente virou uma espécie de instrumento para se alcançar o lucro.

Propagandistas de laboratórios farmacêuticos também frequentavam a minha clínica. São


profissionais cujo óbvio objetivo reside na divulgação dos produtos de sua empresa. A sua
sobrevivência depende da venda destes por meio da prescrição dos médicos. Essa relação
médico-propagandista costuma ser saudável, com eles mostrando as vantagens de seus
produtos de um lado e nós tentando ajudar nossos pacientes com a administração destes por
outro. Entretanto, como em tudo, existem os extremos.

De repente, entrou um propagandista no meu consultório e disse: - Doutor, muito prazer. O


senhor é o médico na cidade que mais prescreveu nosso medicamento. Por isso, gostaríamos
de presenteá-lo com este videocassete!

Eu havia prescrito a medicação porque era a que usávamos na faculdade e não vi,
inicialmente, muitos problemas em ter ganho um brinde do fabricante. Nem sabia que isso
poderia ocorrer e, realmente, existia indicação médica quando receitei o seu produto. Mas
fico muito apreensivo quando percebo relações um pouco mais mercantilistas. Nestas, o
médico pode abusar do seu receituário prescrevendo medicações desnecessárias em troca de
vantagens.

Existe um trabalho em Minnesota, Estados Unidos, que estudou as prescrições de drogas


antipsicóticas a crianças durante o período de 2000 a 2005.25 Coisa séria! Nesse período, o
valor dos pagamentos das indústrias farmacêuticas responsáveis por tais medicações a
médicos que atuavam em palestras e outras atividades didáticas aumentou seis vezes. Mau
negócio? Não. A venda desses medicamentos cresceu nove vezes no mesmo período! É claro
que as crianças não ficaram nove vezes mais doentes. São dados para se refletir.

*25. "Link Between Industry Payments and Use ofAntipsychotics in Children Probed".
Physician's First Watch May 11, 2007.

O comércio muitas vezes fomenta algumas doenças transformando-as em verdadeiros


modismos, o que, infelizmente, pode ser alcançado até mediante a manipulação de resultados
em pesquisas científicas.

Chegou a ser moda, por exemplo, o Helicobacter pylori (Hp). Essa bactéria foi descoberta por
Waçery Jaworski, na Cracóvia, em 1899. Naquela época, ninguém devia dar muita bola para a
Polônia, porque foi somente em 1981 que Robin Warren e Barry Marshall começaram a
estudá-lo. De lá para cá, os conhecimentos aumentaram em progressão geométrica.
Conseguiram relacionar a sua presença com o desenvolvimento de úlceras pépticas e até
câncer gástrico. Fantástico, realmente digno de um prêmio Nobel!

Porém, ao perceber que em alguns locais a prevalência da infecção pela bactéria beirava os
40%, os laboratórios farmacêuticos começaram a salivar. Se 40% da população mundial
convive com o Hp e se cada tratamento custar cinquenta dólares, bastará convencer o mundo
a erradicá-lo (o que, independentemente dos nossos esforços, nunca ocorrerá), para
ganharmos 132 bilhões de verdinhas (6,6 bilhões de habitantes x 40% da população X preço
atual aproximado do tratamento)!

Mas até onde sabemos, nem todas as pessoas infectadas (ou seria melhor dizer, pessoas que
coexistem com a bactéria?) se beneficiarão com o tratamento. Claro que não é essa a ideia
divulgada aos médicos e leigos pelos laboratórios. Passam uma impressão de que, ao detectar
uma bactéria, precisaremos eliminá-la a qualquer custo, como se não convivêssemos com
milhares delas em nossa boca, na pele ou nos intestinos. Ocorre que, se o médico decidir não
tratar o Hp (ainda há controvérsias quanto à indicação de sua erradicação em casos de simples
dor de estômago, por exemplo), gastará mais tempo explicando ao paciente o porquê de não
fazê-lo, do que, caso fosse necessário, dar explicações sobre o seu complicado esquema de
erradicação.26

*26. DANESH, J.; LAWRENCE, M.; MURPHY, M.; ROBERTS, S.; COLLINS, R. Systematic review of
the epidemiological evidence on helicobacter pylori infection and nonulcer or uninvestigated
dyspepsia. Arch Intern Med 2000;160:1192-8. LAHEIJ, R. J. E; VAN RossIM, L. G. M.;VERBEEK,A.
L. M.; JANSEN, J. B. M. J. Helicobacter pylori infection treatment of nonulcer dyspepsia: an
analysis of meta-analyses. J Clin Gastroenterol 2003;36:315-20. MALFERTHEINER, P.;
MEGRAUD, E; O'MoRAIn, C.; BAZZOLI, E; EL-OmAR, E.; GRAHAM, D.; HUNT, R.;
ROKKAS,T.;VAKIL, N.; KUIPERS, E. J. The European Helicobacter Study Group. Current concepts
in the management of Helicobacter pylori

- Mas, doutor, eu tenho uma bactéria no meu estômago que vai virar câncer!

E por acaso 40% da população morre de câncer de estômago? Existem estudos mostrando
que a bactéria poderia aumentar um pouco essas chances, principalmente em famílias em que
a incidência de tumores é alta. Mas álcool não dá cirrose? Poluição não aumenta doenças
respiratórias? Sol não dá câncer de pele?

Os consensos médicos restringem as indicações do tratamento para a bactéria, mas a


indústria farmacêutica não poderia ficar para trás e começou a procurar outros motivos que
também nos levassem a combatê-la. Há pouco tempo ouvi mais dois, que exemplificam a sua
brilhante criatividade: urticária crônica e mau hálito!

Estupendo! A maior causa de alergia na pele é medicamentosa. Entre os desencadeantes, no


topo da lista, estão analgésicos e antibióticos. Tentaremos controlá-la com amoxacilina e
claritromicina, os antibióticos principais contra o Hp?

E quanto ao mau hálito? Sabemos, há muito tempo, que 90% de suas causas são orais. Mas é
uma ótima estratégia dos laboratórios. Afinal, basta realizar o teste descrito por um famoso
pensador e o mundo inteiro precisará de tratamento!

Estique a sua língua para fora o máximo que conseguir e lamba o antebraço. Abane para secar
e cheire. Gostou? Este é o odor da sua boca.
Para que escovar os dentes? Mate o Hp! Não quero tirar o crédito da bactéria em algumas
patologias nem minimizar o valor dos seus estudos, mas creio que muita importância
descabida lhe tem sido atribuída com objetivos, talvez, escusos. Se tudo é verdade ou não, o
tempo dirá.

Não sou socialista nem simpatizante dos movimentos que derrubam plantações de eucalipto
alegando que este não é comestível, mas

infection: the Maastricht" III Consensus Report. Gut 2007; 56: 772-781. (Mesmo os consensos
estão cada vez mais liberais; o mais recente é o de Maastricht III. O quanto a indústria
farmacêutica estaria atrás disso, só no futuro saberemos.)

ficaria muito decepcionado se realmente me provassem que os laboratórios buscam o lucro de


forma tão voraz e inconsequente como alguns temem. Porém, não descartaria essas
hipóteses, principalmente após me lembrar de uma das histórias que vivi no início da
videolaparoscopia.

Naquela ocasião, ainda sofríamos com uma série de obstáculos técnicos. Na cirurgia de
apendicite, por exemplo, a maior dificuldade residia no ponto que aplicávamos no intestino.
Suávamos para dar aquele mísero laçinho, até que um especialista em nós, escoteiro,
marinheiro ou quem sabe carrasco, resolveu nosso problema. Inventou uma haste de plástico
que possibilitava a introdução, no abdome, de um pequeno nó da forca pré-confeccionado
para amarrar o intestino. Assim, dispensávamos o sofrido ponto com uma gambiarra
extremamente simples e eficaz. A invenção era tão útil que os kits com o nó foram muito
vendidos pelas indústrias do ramo. Mas, após alguns anos, sumiram do mercado.
Curiosamente, isso ocorreu na mesma época em que surgiram os grampeadores
laparoscópicos para apêndice, que custam, no mínimo, 100 vezes mais caro e são fabricados
pelas mesmas companhias...

Estas, algumas vezes, dão a entender que há muito mais interesse em pesquisar um remédio
para tratar a impotência sexual do que para tratar a malária (uma doença de país pobre). Ou
para medicar doenças crônicas (de uso contínuo e prolongado) em vez das agudas, ou, ainda,
que promovam o alivio temporário dos sintomas em vez de a cura definitiva da doença.

Mais contundentes ainda são os dizeres de Dra. Marcia Angell, exeditora-chefe do New
England Journal of Medicine: "Foram-se os tempos em que os laboratórios farmacêuticos
anunciavam medicamentos para tratar doenças. Agora frequentemente é o inverso. Eles
anunciam doenças para encaixar seus medicamentos". Talvez ela esteja sendo muito dura,
mas realmente vale a pena discutir algumas de suas ideias.

Cada vez que puxam mais para baixo os valores de normalidade da glicemia, pressão arterial e
colesterol, mais "doentes" são incluídos na lista de usuários dos remédios, a ponto de nos
questionarmos: "Existe alguma mulher com mais de 50 anos sem um grau leve de
osteoporose? (e que, portanto, não faz uso de algum fármaco?)".

Novas síndromes surgem a toda hora e, apesar de algumas vezes discutíveis, são
extremamente prevalentes, com um tratamento muito bem estabelecido: doença do refluxo,
síndrome do intestino irritável, pré-hipertensão, disforia pré-menstrual, joelhos inquietos,
disfunção erétil, transtorno da ansiedade social, da ansiedade generalizada... Não é estranho?

Evidentemente, existe doença do refluxo gastroesofágico, mas o que vem muitas vezes
acontecendo é que alguém com uma queimação esporádica passa a ser rotulado como um
portador dessa síndrome! Se outrora o seu tratamento seria orientação dietética e um
antiácido eventual, passa a ser, no mínimo, seis semanas de bloqueadores de bombas de
prótons em dose plena, endoscopia, pHmetria esofágica... Se um homem "falhar" uma só vez,
será encaixado no grupo de disfunção erétil leve e assim por diante.

Como disse Maureen Dowd, do The New York Times, "Quanto mais ansiosos os laboratórios
ficam em relação aos seus lucros, mais generalizados tornam-se os transtornos de ansiedade
generalizada".

Mas espere aí! Não há um trabalho científico multicêntrico e bláblá-blá orientando o que seria
verdade e o que seria mentira para que os médicos possam se orientar?

Sim, mas não podemos nos esquecer de que quem os escreve e pesquisa também é humano.
Existem os honestos e os desonestos, os cuidadosos e os relapsos. Podem existir interesses
pessoais envolvidos em determinados resultados, inclusive se o patrocinador da pesquisa for
algum laboratório gastando milhões no seu desenvolvimento. Por isso, devemos sempre
analisar vários estudos e suas fontes. Há inúmeros trabalhos científicos sobre qualquer
assunto que você quiser imaginar, chegando a resultados díspares. Poderia citar vários deles
com conclusões contraditórias e suspeitas, mas para melhor exemplificar essa afirmativa
talvez seja interessante citar o trabalho que discorre sobre "A inabalável descoberta de que a
nicotina não vicia!". Será que o fato de todos os autores trabalharem para empresas de
cigarro teve alguma influência?

Como se não bastassem todos esses fatores atrapalhando o nosso exercício, existe uma outra
profissão que é indispensável para o bom andamento da medicina comercial e que algumas
vezes nos deixa loucos: o auditor de convênio.

Para que um plano de saúde funcione adequadamente, entre outros profissionais burocratas,
ele contará com a ajuda de médicos auditores. Estes funcionam como uma espécie de ponte
entre os administradores e prestadores, controlando quais procedimentos devem ser
realizados, ou não, tendo como base a literatura médica e as regras da empresa para a qual
trabalham. Afinal, a vida não tem preço, mas tem custos que precisam ser administrados.
Nessa função, o ideal seria que os auditores fossem dotados de amplos conhecimentos
médicos e uma incrível ética. Porém, plagiando um jornalista, um médico do interior já dizia:
"Justiça, auditoria médica e salsicha é bom não ver como se faz". Espero, sinceramente, que
esteja enganado.

O auditor pode negar a autorização de determinado exame para o qual o convênio ofereça
cobertura, desde que acredite não existir indicação médica para tal. Aqui começa o problema.
Qualquer auditoria não deve ser tecnicamente fácil nem agradável. O auditor vive de um
emprego em que, de um lado, prestadores brigam por coisas caras e, do outro, sua chefia luta
por contenção dos custos. Ele só conseguirá ajudar na redução destes negando ou glosando
os pedidos dos médicos, sejam eles corretos, sejam abusivos. Isso é ainda mais difícil na
medicina, na qual vários limites são imprecisos. Conheço excelentes auditores e sei que eles
sofrem muito com três tipos de prestadores: os incompetentes, os perdulários e os
desonestos.

Puxando a brasa para os auditores, compreendemos a necessidade da sua existência e as


dificuldades que enfrentam. Sem o seu controle, médicos incompetentes seguem caminhos
diagnósticos ainda mais caros e tortuosos, sem falar em tratamentos ineficientes. Os
perdulários, por sua vez, muitas vezes abusam da tecnologia, realizando cirurgias com o
emprego de novos aparelhos que, naqueles casos, poderiam ser completamente dispensáveis.
Utilizar grampeadores laparoscópicos e bisturis ultrassônicos em uma cirurgia de apendicite
não complicada, por exemplo, na maioria das vezes multiplica o seu custo sem aumentar a
sua segurança ou eficácia. Outros pedem tantos exames de sangue que correm o risco de
serem acusados de vampirismo.
Algumas vezes os próprios conveniados parecem abdicar do bom senso e precisam ser
controlados, como um jovem que solicitou ao seu plano de saúde uma ambulância para levá-lo
a um pronto-socorro, pois estava gripado e o seu carro não poderia ser utilizado naquele dia
devido ao rodízio veicular...

Mas os piores problemas são decorrentes de prestadores desonestos. Há muitos anos, dois
colegas foram chamados para auditar os procedimentos cirúrgicos de um hospital. Chamou-
lhes a atenção um dado esquisito: a biópsia dos apêndices extirpados era normal em 70% dos
casos.

Como já disse, apesar de toda a competência técnica e disponibilidade de exames modernos,


sempre há casos em que a dúvida persiste e acabam sendo operados "desnecessariamente".
Entretanto, a literatura médica tolera que apenas 10% dos casos sejam "brancos" (quando foi
retirado o apêndice, mas não havia apendicite, e, sim, outra doença que a simulava). Estaria
havendo influência de honorários na indicação de cirurgias?

Para resolver o mistério, os colegas decidiram que só pagariam aos cirurgiões pelos casos em
que o exame de anatomia patológica confirmasse o diagnóstico de apendicite. Parece incrível,
mas o índice de cirurgias brancas, em um mês, caiu de 70% para 15%...

Apesar desse tipo de fraude, as contravenções mais frequentes são as tentativas de turbinar o
contracheque. Já que os convênios pagam pouco, por que cobrar apenas pela retirada da
vesícula, quando posso fingir que costurei o intestino e desfiz algumas aderências?

"Ao colocar tudo na ponta do lápis, essas práticas fraudulentas consomem de 5% a 6% da


receita das operadoras de planos de saúde."27 Mas há o lado dos servidores, do qual faço
parte. Também existem os auditores antiéticos, ignorantes em medicina, que recusam exames
necessários, empacam procedimentos apenas para desestimular a sua

*27. Co1uÉA, Lúcia Helena; GONÇALVES, Roberta. "Saúde privada na UTI". Decision Report
13/10/2006.

solicitação, glosam tratamentos sem uma justificativa admissível e que são regularmente
espetados através do meu boneco vodu.
Algumas vezes agem de forma tão estranha que, para esse comportamento, só restariam
como justificativas a sua incompetência ou a desonestidade.

Nesses casos específicos, sinto na pele a desconfortável sensação de ser fraudado em muito
mais que em míseros 5% ou 6%. Não dá para saber quem é o ovo e quem é a galinha, mas
certamente existe uma relação de causa e efeito entre os auditores e os servidores
mentirosos, criando uma politica de total desconfiança que acaba por prejudicar,
infelizmente, as pessoas honestas. Nessa qualidade, fico doido quando solicito e realizo
exatamente os procedimentos que descrevo, mas os convênios os glosam supondo que não
existiram ou, talvez, que não vou perceber a glosa. Decretam um calote e ainda me chamam
de mentiroso!

É na hora da contabilidade que percebo as, quem sabe, traquinagens e preciso de remédios
para dor de cabeça. Frequentemente detecto glosas completamente sem sentido, como
procedimento não autorizado (a autorização foi grampeada à guia), sem senha (anexada à
guia), especialização não cadastrada...

Veja que absurdo. Sou credenciado em vários convênios como cirurgião geral. Certa vez
operei, de emergência, uma senhora baleada no baixo ventre. O projétil perfurou o seu ovário
direito, bexiga e veia iliaca. Todas as lesões foram corrigidas e ela sobreviveu. Apesar da
minuciosa descrição de cirurgia anexada ao pedido de autorização do procedimento, não me
pagaram nada. Por quê? Porque para a auditora, na qualidade de cirurgião geral, não poderia
ter operado aqueles órgãos. Deviam ter sido abordados por um ginecologista, um urologista e
um cirurgião vascular...

Espero que essa senhora auditora nunca seja baleada. E, se assim for, que possa solicitar ao
meliante quais órgãos perfurar de acordo com a cobertura do seu plano, pois não existe
sequer um hospital privado com todos esses especialistas de corpo presente. Mesmo que,
optando por fugir da vingança dos prestadores do seu plano de saúde, procure um complexo
hospitalar universitário com todos esses especialistas, será operada por um cirurgião geral.

Mas fique tranquila, pois, se eu for o escolhido, a atenderei de forma completamente


diferente da que a senhora transparece. Para começar, não me esquivarei da responsabilidade
dizendo que é contra as regras do pronto-socorro deixá-la conversar com o médico para tirar
as suas dúvidas nem a deixarei ouvindo a "musiquinha do gás" por vinte minutos antes de
qualquer atendimento. Não verificarei se o seu plano é o Great Platinium Universal ou o Hiper
Higienic Paper, pois, a meu ver, isso não muda a conduta operatória. Acalme-se. Não tentarei
convencê-la de que não se trata de uma urgência e jamais me omitiria de suturar todas as
suas perfurações intestinais só porque o convênio pagará apenas uma. Relaxe. Não solicitarei
um extenso relatório justificando cada analgésico que precisar, adiando assim a sua
administração, enquanto estiver com dor. Impedirei qualquer exame que os seus auditores
solicitarem apenas com o objetivo, antiético, de comprovar se costurei ou não as suas tripas. E
não se preocupe, pois, depois que tiver alta, curada dos seus males físicos, mesmo que não
me pague, poderei ajudá-la a frequentar algum curso médico que melhore a sua formação e
abra as portas para exercer o que já havia esquecido: a essência de ser médico.

Gostaria de pedir desculpas à maioria dos auditores, honestos e competentes, mas parece que
alguns dos seus colegas fizeram aquele curso do terceiro ano junto às enfermeiras: como
perturbar médicos.

7 - EPÍLOGO

O ensino

"Na vida, o que aprendemos mesmo é a sempre fazer maiores perguntas."

GUIMARÃES Rosa

Surgiu um concurso público para assistente do pronto-socorro de cirurgia em um hospital


universitário. Prestei e passei, expondo-me, mais uma vez, a novos desafios.

Apesar de plenamente satisfeito com as minhas atividades privadas, a saudade do ambiente


acadêmico nunca me abandonou. Jamais desejei ser professor titular ou ostentar vários títulos
acadêmicos, mas é muito empolgante dar aulas e ensinar os residentes. Eles estudam
intensamente nessa fase, estando muitas vezes mais atualizados em alguns tópicos do que
nós, seus professores. Acabam nos trazendo novidades e desafios, mas não possuem
experiência. Esta última nós tentamos transmitir. Com isso, a toda hora somos testados por
eles e por nós mesmos.

A versatilidade dos pacientes atendidos em hospitais universitários é enorme, o que nos


empolga a estudar, continuamente, para tentar solucionar nossas novas dúvidas. Há um
exercício constante de raciocínio, ótimo para desenferrujar o nosso cérebro e controlar a
humildade. A complexidade dos casos pode ser tão grande que aprendemos a enxergá-los por
diferentes ângulos, uma vez que vários especialistas acabam sendo acionados para ajudar no
mesmo problema. Além disso, tratar de casos muito difíceis nos traz um curioso efeito
colateral. Ao atendermos na clínica privada uma perfuração do esôfago (o que já é raro e
gravíssimo), não ficaremos intimidados com a gravidade do diagnóstico. Pelo contrário,
ficaremos aliviados pelo fato de não estar ocorrendo numa paciente com várias outras
doenças associadas, entupida de milhares de medicamentos e associada a uma extensa
queimadura de terceiro grau...

Os pacientes mais complexos que já atendi foram no pronto-socorro universitário. Nunca me


esqueci de um paciente que trazia em um resumo de alta as siglas das suas doenças. Eram
nada menos que 18 CIDs!

CID é o nome da classificação internacional das doenças. Cada doença possui um código
diferente. O seu objetivo seria a padronização de siglas para facilitar a comunicação dentro do
meio médico. É utilizada em atestados, guias para convênios e seguros, controle de doenças e
infecções hospitalares, entre outros fins. Apesar de útil, às vezes me parece meio estranha.
Por exemplo: K-81- Colecistite aguda, R-46.1 - Aparência pessoal bizarra, 7-59.8 - Problemas
com credores, X-35.3 - Vítima de erupção vulcânica durante a prática de atletismo, V-61 -
Ocupante de veículo pesado traumatizado em colisão com veículo a pedal...

O movimento cirúrgico é muito grande e também aprendi a gerenciar as salas de operação


que, ao contrário dos pacientes, eram limitadas. Todas as clínicas cirúrgicas precisam utilizá-
las para cuidar dos seus doentes, incluindo cirurgia geral, aparelho digestivo, tórax, cabeça e
pescoço, urologia, vascular, ginecologia, plástica, transplante, entre outras.

Disponibilizarei a sala existente para um trauma craniencefálico, uma apendicite perfurada ou


um cálculo renal obstrutivo num paciente com rim único? Levarei para cirurgia a criança com
bom prognóstico ou o velhinho quase morrendo?

Quem deve ser abordado antes: um paciente que complicará em poucas horas caso não venha
a ser operado ou um indivíduo em morte encefálica, que dentro de poucas horas não poderá
mais doar os seus órgãos e deixará de beneficiar vários doentes?

Também tive de aprimorar a arte da coexistência com os colegas. Médicos, enfermeiras e


funcionários de todos os tipos: mandões, apressados, preguiçosos, irresponsáveis,
incompetentes... Apesar de toda a hierarquia, às vezes não era fácil até com os residentes. Eu
também fora contaminado pelo furor operandi. Agora, porém, estava do outro lado,
trabalhando no que gostava, mas também precisava sobreviver. Entendia melhor aquela
antipática frase de boa-noite que alguns assistentes nos diziam ao ir se deitar: "Qualquer coisa
me chame, mas não me chame para qualquer coisa!".

Precisávamos operar as urgências, mas também tínhamos de nos poupar para o dia seguinte.

Acredito que tenha conseguido conciliar as duas coisas para não prejudicar ninguém.
Trabalhar dessa forma deixa o ambiente bastante agradável. Existindo o respeito e a
organização, todos se ajudam e dois mais dois viram cinco.

Entretanto, o PS está muito distante do que acreditamos ser um mar de rosas; nem todos
agem dessa forma salutar.

Os interesses e as necessidades dos médicos da linha de frente podem ser diametralmente


opostos aos dos especialistas requisitados para realizar uma ou outra intervenção em nossos
pacientes. Quantas vezes esses colegas, distantes da realidade vivida por nós e pelos doentes
da emergência, se negam a fazer um procedimento simplesmente por não o considerarem o
ideal para aquela doença, quando naquelas situações o ideal simplesmente inexiste! Por outro
lado, muitas vezes os residentes solicitam exames e intervenções dispensáveis.

Quando não houver diálogo, presenciaremos especialistas chamando os residentes de


ignorantes e residentes desqualificando os especialistas, dizendo que não são médicos nem se
lembram do que é um paciente, ou que tudo o que sabem é passar roto rooter (apelido para
qualquer aparelho que o médico introduza no paciente para algum fim terapêutico).

Esses atritos, na maioria das vezes desprovidos de vilões e de mocinhos, me ensinaram a ouvir
os dois lados antes de tomar uma posição, melhorando um pouco as minhas precárias
qualidades diplomáticas. Por sorte, tudo costuma acabar em pizza.

Literalmente, pois o tipo de comida mais solicitada nos plantões é a pizza. Depois de comer,
todo mundo fica bonzinho. É uma ótima sugestão para o leitor empreendedor: abrir uma
pizzaria perto de um hospital e batizar os sabores com os apelidos dos chefes da instituição.

Mais uma vez senti a responsabilidade aumentar; é muito mais difícil prestar contas pelo
atendimento dos outros que pelo nosso. É evidente que os aprendizes serão mais susceptíveis
a complicações ou erros e precisamos estar ali para evitá-los ou corrigi-los, mas nem sempre
isso será possível. O lado bom dessa peculiaridade é que fui forçado a aprender não só a
tratar de determinadas lesões, mas, também, as iatrogenias decorrentes dos seus
tratamentos. O lado ruim era ter que me responsabilizar pelos problemas criados por alunos
desinteressados, "quebra-mão" - irresponsável, não cumpre com seus horários, falta no
plantão, chega atrasado - ou acometidos pela síndrome de professor titular.

Este último é o mais perigoso, pois "já sabe de tudo". O residente que assume desconhecer
determinada conduta perguntará a alguém mais graduado sobre sua dúvida. O que não
percebe sua ignorância somente será curado dessa síndrome à custa de seus resultados
negativos, pois adotará condutas incorretas sem ao menos se questionar sobre o cabimento
destas.

Para citar um exemplo bem leve dos possíveis efeitos dessa síndrome, recordo o que ocorreu
quando um professor, orientando o seu aluno, pediu que aplicasse uma ampola de vitamina
B12 no paciente. O aluno solicitou a medicação à enfermeira, porém, como estava em falta,
ela perguntou se havia algo que pudesse substituí-la. Sua brilhante resposta foi: "Troque
então por duas ampolas de B6...". Como se duas vezes piridoxina (B6) fosse igual a uma vez
cianocobalamina (B12)!

Outro, um pouco pior, se deu na ortopedia. Certa paciente sofreu uma fratura no pescoço. O
residente, ao diagnosticar a sua lesão, indicou a aplicação de um halo para tração craniana.
Raspou os cabelos da moça, executou todo o preparo apropriado para esse procedimento e
foi mostrar o caso para o seu chefe, a fim de indicar a cirurgia. Entretanto, este último, ao
olhar as radiografias, declarou que o melhor tratamento seria o uso de um simples colar,
específico para a imobilização do pescoço. A paciente recebeu alta com o colar,
desnecessariamente careca, e revoltada...

O que mais admiro no meio universitário não é a produção científica, não é estar na vanguarda
ou promover atividades didáticas ou, ainda, ajudar cabeções de Olinda a se transformarem
em Barishnikovs, e sim o fato de que, no final das contas, quanto mais ensinamos, mais
aprendemos. Em Medicina, esse aprendizado nunca possuirá limites.

Porém, não podia deixar de me perguntar: "Estou ensinando algo em extinção?".

O fim do homo cirurgicus


"Nosso dever como médicos não é curar, mas sim tratar das pessoas."

PATCH ADAMS

A evolução é implacável. Há 65 milhões de anos, os dinossauros desapareceram do planeta e


agora, dois milênios após Cristo, o "homo sapiens cirurgicus" está se extinguindo...

Certa vez, li o ensaio de um experiente cirurgião discorrendo sobre a extinção da nossa classe.
Embalado no título do livro de Thorwald Jurgen, ele discutia melancolicamente sobre o fim do
século dos cirurgiões.28

Uma enorme fatia do bolo de doenças que necessitavam de tratamento cirúrgico foi engolida
por outras modalidades de tratamento, seguindo a tendência irreversível do progresso
tecnológico. Um cálculo renal que antigamente levaria à sala de cirurgia, hoje pode ser
quebrado com ondas de choque. As biópsias cirúrgicas foram trocadas por punções com
agulha fina, inclusive em órgãos internos como o pulmão e o fígado. O sangramento de uma
grande lesão do fígado muitas vezes poderá ser estancado por cateterismo vascular, mesma
modalidade que permite a angioplastia e inserção de stents evitando grande parte das
cirurgias de ponte de safena. Uma úlcera do estômago que sangrar

*28. THORWALD, J. O século dos cirurgiões. São Paulo: Hemus, 2002.

poderá ser cauterizada por endoscopia. Aliás, graças aos medicamentos atuais, quase não
existem mais úlceras que necessitem de cirurgia. Um linfoma gástrico, cujo tratamento era
eminentemente cirúrgico, poderá ser curado com quimioterapia. Os tumores de colo uterino
desaparecerão com a vacinação para o virus HPV. Nos casos remanescentes, a radioterapia
poderá dar conta do recado. A colonoscopia retira os pólipos colônicos que um dia
transformar-se-iam em tumores do intestino. Há pomadas para câncer de pele e, até, para
fimose!

Imagine o que acontecerá quando as células-tronco substituírem os transplantes, a terapia


genética prevenir e remediar doenças hereditárias!
Apesar de a cirurgia também ter evoluído muito, acredito que nossa atuação será cada vez
mais restrita. E, como se não bastasse, o remanescente cirúrgico poderá ser operado por
robôs que, assim como as larvas de mosca, serão mais precisos do que nós.

Depois disso fica fácil entender a charge em que se vê um cirurgião sentado ao lado de uma
Van com os dizeres: "Faço de tudo: cirurgia geral, jardinagem, limpeza...".

Como se não bastasse o desaparecimento gradual do cirurgião, percebo insistir num caminho
em que a densidade de seus andarilhos diminui a cada dia. Não por culpa ou mérito deles
individualmente; é a atual tendência mundial abrangendo quase todos os setores.

A arte está perdendo terreno para a tecnologia. Há uma tentativa, impossível, em transformar
a nossa ciência inexata em exata. Em razão de uma intolerância crescente, estamos deixando
de ser humanos e virando robozinhos. Teoricamente, muito teoricamente, desapareceriam os
erros, mas também se extinguiriam o humanismo e a própria humanidade.

Não se confia mais em palavra, apenas em consentimento por escrito. O "marketing de


empurra" é mais importante do que o conhecimento. A casca, do que o conteúdo. Deixamos
de cuidar de pacientes e passamos a atender clientes. Pode ser uma palavra mais bonitinha,
tipo colaborador em vez de funcionário, mas perde o sentido da coisa. Cliente está mais para
negócio, enquanto paciente, para diligência. Cliente deve ser atendido, mas não precisa ser
tratado, diferentemente de paciente, termo que deriva justamente de pathos, patologia,
doença.

Cada vez mais tentaremos curar sem cuidar. Imagine que num dos maiores encontros
internacionais de cirurgia no mundo (American College os Surgeons), em 2007, um dos temas
mais discutidos foi o atendimento virtual, em que, por correio eletrônico, o médico receberia
as queixas e os exames dos pacientes para "tratá-los" a distância.

Não sou anglo-saxão, mas percebo o quanto eles se surpreendem ao serem tratados por
médicos brasileiros. O contraste não se dá pela capacidade científica propriamente dita, mas
pelo carinho, atenção e acolhimento que esbanjamos e, a meu ver, fazem parte da nossa
técnica. Se eu estivesse doente, também preferiria ser tratado por um doutor amigo do que
por um "matemático" frio. Essa antiga postura do médico não pode acabar, mas é cada vez
mais rara.
O médico está virando um técnico prestador de serviços. Um funcionário associado,
assalariado. Os protocolos, que muitas vezes são extremamente úteis, estão deixando o
raciocínio médico cada vez mais míope. O aluno não demorará muito para perceber que os
algoritmos, com setinhas indicando quadradinhos de sim ou não, na maioria das vezes são
incompletos. Nessa hora terá dificuldade de pensar e definir o caminho a seguir, procurando
pelas opções "mais ou menos", "duvidoso", "mal-estar" e "não consigo explicar direito".

Os exames muito sofisticados estão nos tornando preguiçosos. Quantas vezes auscultamos o
tórax do doente apenas após visualizarmos a sua pneumonia na tomografia? Estamos nos
deixando ir pela contramão! Será que essas e outras tendências correspondem aos melhores
caminhos?

Por ora, o encanto que a medicina me propicia ainda não desapareceu e, apesar de todas as
frustrações que vivo na rotina de meu trabalho, ainda acredito estar realizando uma das mais
empolgantes e bonitas profissões. A medicina é linda e talvez as suas maiores belezas estejam
exatamente na sua imperfeição, nos seus mistérios e na nossa eterna busca para solucioná-
los.

Que as lagartixas, agora sem cauda, e sua arte, vivam para sempre!

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