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Vocé é Feliz? O desmascaramento completo do tipo mais comum na face da Terra: o egoista, ou narcisista. Para vocé se livrar mesmo dele — e ser feliz. Flavio Gikovate Pema Flavio Gikovate nasceu em Sao penn ey kd E médico, formado pela USP umes Foi Assistente Clinico no Institute of Psychiatry na London DOF res AAI @ isacclcage: eye rem eons ant Mes Ue dedica-se essencialmente ao trabalho de psicoterapeuta, ja tendo atendido a mais CelroM UU Oe Ianto Atualmente dirige o Instituto de Psicoterapia de Sao Paulo, Além de autor consagrado no Brasil e editado também EW Atanlti eM aueiarsnunice muito solicitado, tanto para atividades académicas como para as que se destin: Fete pita) tweens 0:1 Em 199], comecou a apresentar © programa “Canal Livre”, na Rede Bandeirantes de Televisao, com transmissao para todo o pais. RTE ae ante hole ec NOLO by Pecettententantarest even Reon oa) eee ctor nar (eras) na outra dobra deste liv FICHA CATALOGRAFICA (preparada pelo setor de catalogagao de MG Editores Asociados — Bibliotecdria Diva Andrade) Gikovate, Flavio. Vocé € feliz? Uma nova introdugao ao narcisismo, ‘SGo Paulo, M.G. Editores, 1978. 129 p. 1. Narcisismo. 2. Personalidade |. Titulo. CDD - 152.22 Producao: Florentino Marcondes D'Angelo | Revisdo: Nilza Iraci Silva Capas: CC&C - Cabral, Criagdio & Comunicagao (SP) Foto: Vic Parisi (Manchete) © desta edigdo MG Editores Associados Ltda. Alameda Itu, 1597 CEP 01421 Sao Paulo - SP 18 edigdo: Julho de 1978 Flavio Gikovate Vocé é Feliz? comum na face da Terra: 0 egoista, ou narcisista. Para vocé se livrar mesmo dele — e ser feliz, J INDICE 1. NARCISISMO E ODIO POR SI MESMO....... dome. 1% 2. DESCRICAO DO NASCISISMO 19 a) Egocentrismo e egofsmo 20 b) Desenvolvimento das aparéncias in 28! c) Baixa tolerancia a frustragdo. . 26 d) Incoeréncia légica, imoralidade . ee ee e) Pensamento concreto, sem imaginagao. Pessimismo .... 31 4) Admiracao e inveja de pessoas generosas & PAOOISEIVAS on. one tein weenie PA Rie Hie Re Hee erese eee 33 g) Compromisso com 0 momento histérico e sua realidade h) Improdutividade (relativa); medo de critica e perfeccionismo . i) Racionalidade camuflada por alta “sensibilidad emetividade’’:; isc. coe pcage ae x4 ne Ee AU WIO GN Ss 43 4, NARCISISMO PRIMARIO E SECUNDARIO . 5. NARCISISMO E AMOR . a) Conceito de amor b) Amor por diferenca ¢) Amor por semelhanca . 6. NARCISISMO E SEXUALIDADE . 7, NARCISISMO E PSICOTERAPIA . 1. NARCISISMO E ODIO POR SI MESMO! Escasseiam aqui, de modo horr{vel, as pessoas de- centes, . .Os tratantes gostam de pessoas honradas. .. no o sabia o senhor? Diga-me 0 senhor, com toda a consciéncia, por que todos tém-me em conta de tratante?. ..£ que tom- bém eu me tenho em conta de tratante. F.M, Dostoievski (0 Idiota) O tema tem que ser retomado com energia, pois as mudangas ocorridas no comportamento e modo de pensar do homem ocidental sdo enormes neste século. As coisas esto muito diferentes dos tempos em que ud publicou sua “Introdugéo ao Narcisismo” (1914). Muitas das condutas atribuidas, na época, a estados neu- cos francamente divergentes, hoje séo procedimentos habituais da grande maioria das pessoas. E até visivel- mente estimuladas pela cultura atual, através de um dos seus recursos favoritos que é a publicidade. A utilizagéo de recursos altamente egocentrados para estimular a venda de produtos de toda a natureza vem rapidamente substituindo proposigdes mais gene- rosas; em vez de “dé presentes”, a formula atual é “se ouide”’, “n&o se esqueca de vocé”’! A regra 6: “seja vocé 8& Flavio Gikovate mesmo o seu melhor amigo; dé a ele (vocé). . .” Atitudes antes entendidas como ego/stas — e esta palavra continua’ tendo uma conotacgdo moral negativa, apesar de tudo — hoje sao entendidas como “‘cuidar de si mesmo” e tem uma conotacdo francamente virtuosa — moralmente aceitavel, e mesmo boa, E ébvio — e isto significa que se torna desnecessé- ria demonstragéo — que esté havendo uma profunda alteracéo no julgamento moral de certas condutas, de tal forma que uma pessoa que cuida apenas de si, de seus interesses pessoais (ainda que as vezes exista a neces- sidade de certos disfarces) é hoje entendida como uma Pessoa normal, se comportando de uma maneira légica, e sendo honesta e boa. Esta mesma criatura, ha 50 anos atrés (ou menos) seria vista como extremamente egoista, apenas interesseira, sem menhuma Preocupacado pelos problemas coletivos e, portanto, desonesta e ma. E estas mudancas — que pretendem dar validade e dignidade ao egoismo como expresséo mais profunda e verdadeira na natureza humana, do que condutas ge- nerosas — estdo, é claro, francamente comprometidas com uma visdo pessimista e negativa do ser humano. Em outras palavras, 0 homem é essencialmente mau. E muitos dos argumentos usados na demonstracdo desta tese derivam de observacSes empiricas feitas em certos grupos de mamiferos superiores (certas sub-espécies de macacos € seus comportamentos sociais, por exemplo) Apesar da obvia md intenc&o presente neste tipo de ar- gumento, penso que vale a pena algumas reflexdes que ajudem a reconstruir um modo de pensar mais rigoroso e honesto. Sabe-se que um dos meios mais comuns de se conseguir provar como verdadeiros os pensamentos falsos (sofisma) dar énfase as semelhangas entre duas coisas para provar sua igualdade, ao mesmo tempo que se negligenciam as diferencas. E este tipo de erro — ou VOCE E FELIZ? 2 ma f6 — jé os sofistas (em geral comprometidos com a politica, ou seja, com a luta pelo poder) gregos de antes de Cristo tinham desenvolvido como sendo um dos pi- fares para a demonstracio de falsas hipéteses (sempre Comprometidas com interesses pessoais). As Obvias seme- Ihangas (até mesmo na aparéncia fisica) podem ajudar @0s menos avisados a aceitar como proprio da natureza do homem, fatos e condutas descobertas na natureza de certos tipos de macacos, E se forem descobertas mais @ mais semelhancas, um dia se vai provar, finalmente, que o homem é macaco! Mas até af nao se chega, apenas se demonstram certas semelhancas, exatamente aquelas que, num determinado momento, convém. A diferenca fundamental que torna o ser humano Unico e incom- pardvel, € 0 desenvolvimento da razao, produto sofis- ticado e inexplicével do alto desenvolvimento cerebral, Nossa época tem se empenhado ao méximo em desva- lorizar a razo e a racionalidade — hoje o importante 6 sentir, dar vazdo as emogées espontaneas, etc. - justamente o que distingue o homem como espécie. Depois 0 compara com macacos maus (hd me sacos bons!) © prova que o ser humano é mau. E realmente muito simplorio;’é desprezar 5,000 anos de tentativas de re- solucao do problema da moral; a solucdo encontrada foi acabar com a nogSo de humano e sua singularidade.? Negar a raz8o humana e sua importancia capital para a definigao da espécie € a mesma coisa que negar ao homem seus instintos, pois a razdo é um elemento bio- légico, organico, tanto quanto estes. (A auséncia de Gertas dreas cerebrais torna o homem incapaz de racio- cinar.) As comparacgdes para provar algo acerca da na- tureza humana ndo levam a nada de verdadeiro. Con- Gluise © que se quer: quem quer provar que 0 homem —____ 1, Cook, JM. — In Defense of Homo Sapiens, Dell, Publ, Co., Nova Torque, 1975. 10 Flavio Gikovate & leal, dedicado e generoso que o compare com o co; quem quer concluir que ele é egoista e interesseiro, que 0 compare com o gato! E é bom nunca esquecer que estes dois tipos opostos de animais sdo os preferidos Para o convivio mais (ntimo com os homens. O comportamento basicamenté egoista e o seu modo sofista de pensar (argumento falso, porém con- vincente, em causa prépria), falar, escrever e discursar nao é de modo algum, uma novidade. O novo é o seu elogio, sua pregacdo, e a sua avaliacéo como conduta moralmente aceitavel. Me parece que a quebra dos com- promissos do ocidente com o cristianismo tem facili- tado este processo de tornar aparente uma conduta até entao camuflada. E claro que o “abrir-se o jogo’’ deverd tender (e isto, a0 meu ver, jé ocorre) para desfazer alguns freios exigidos na situagdo anterior, o que levard ao agra- vamento da situagao. O jogo de interesses pessoais nao € novo, mas parece que dar a ele validag3o moral tendera a tornd-lo mais ativo, intenso e “sujo”. O que era “‘pri- vilégio’’ de um pequeno grupo (pessoas que “entendiam” que a pregagdo crista era s6 para ser seguida pelos opri- midos e que nunca tinham sido verdadeiramente as re- gras que governavam as relacSes humanas em nivel “‘su- perior’’, em nivel das classes que detém o poder) passa @ ser a pratica coletiva. O processo é oposto ao que foi a converséo dos barbaros em cristéos. Agora trata-se de “converter” os cristdos em pagdos! Ao que parece, esta nova conversdo esté se dando com muita facilidade e rapidez; e isto nos faz supor que os verdadeiros princfpios da moral nunca foram pro- fundamente apreendidos pela grande maioria das pes: soas. Ao contrério, que estas se governam antes de tudo pelas sugestées e proposigdes do meio. Entendidas as coisas deste modo, fica muito facil entender que o de- senvolvimento da sofisticada e rica cultura ocidental tem estranhas contradigGes, sendo uma delas (a mais voce E FELIZ? 1 falada porque a mais inconveniente para os responsdveis Por estas mudancas) 0 aumento rapido da violéncia crimi nal, especialmente a do tipo gratuito. No mundo “bér- baro” que passamos a viver, tudo 6 vdlido! E muitas Outras surpresas deste tipo deverdo ter sua aparigdo em breve. A idéia de Freud de que a cultura tinha sido capaz de desenvolver um sistema repressivo (de comportamentos contrérios ao interesse social-coletivo) intra-psiquico de tal modo a facilitar a organizagio do homem em so- ciedades maiores e mais complexas; parece que n&o vai se confirmando. A repressdo interna é muito mais frouxa @ superficial do que ele supde, de modo que rapidamen- te tudo volta a um estado muito especial (&, de certo modo, imprevisto de desordem. A conseqiiéncia natural e inevitdvel (talve até mesmo a desejada) é que haverd necessidade de se aumentar os esquemas repressivos externos. O totalitarismo € o Unico meio de controle @ governo possivel para os povos barbaros, desde que se pretenda manter algum tipo de organizagao social! Pensamento moral se confundiu com processo re- pressivo, ildgico, da sexualidade. Alteracdes inevitaveis na conduta sexual se acompanharam de uma tendéncia a entender tudo que sejam regras restritivas como pre- conceitos, ou seja, como conceitos impostos, inveridicos e desnecessdrios. Com a onda da liberacdo sexual se de- sorganizou toda a preocupacdéo moral. A amoralidade pareceu a saida, uma vez que suponho que se entendeu que a funcao da moral era apenas a de reprimir a sexuali- dade. E uma das minhas intencdes é mostrar que isso nao 6 verdadeiro, e sugerir que a constru¢ao de um novo Conjunto de regras — mais adequadas para os tempos modernos — é uma condic¢éo fundamental para a feli- cidade humana. A cultura que prega para o homem uma vida cada vez mais egocentrada, cada vez mais apenas em causa 12 Flavio Gikovate propria, ainda tem seus pudores. Nao gosta, por exem- plo, de ser chamada de individualista. Que outro nome dar a estes comportamentos? Bem, sdo procedimentos que defendem a individualidade, o espago de cada um, os direitos de cada um, os interesses de cada um. Em defesa da sua individualidade as pessoas podem consi- derar inconvenientes as intimidades afetivas maiores, especialmente porque elas contém elementos — ineren- tes e inevitaveis — de cidmes e outras ‘‘possessividades’’. Entende-se por possessividade toda tentativa de pene- trar e participar da vida e pensamento intimo de uma outra pessoa com quem se quer partilhar a vida. Em defesa de sua individualidade, um numero crescente de mulheres acha mau e inconveniente ter filhos (as criancas sé muito exigentes e determinam restricdes a liberdade da mulher, o que é uma invasdo injusta!). A defesa da individualidade, que hoje é confundida com a busca da liberdade individual, é 0 elogio da solidéo do homem sem compromissos e vinculos maiores com outros homens, grupos, idéias, etc... Para o meu dis- cernimento nao hd a menor distingao entre individua- lismo e individualidade, que séo a mesma coisa, na pra- tica. O que parece que est4 ocorrendo,ié um lamentd- vel jogo de palavras em que um comportamento defini- do por uma palavra conotada negativamente se mantém como tal; apenas passa a ser definido por outra palavra (semelhante a anterior) esta sim comprometida com o bom, 0 novo, o evolutivo. Uma idéia que acompanha a todos nds quase que continuamente 6 a de que as coisas novas, modernas, sio um aperfeigoamento em relag3o ao antigo. E uma nocao fatalista de que a evolugdo é sempre positiva, que tudo esté continuamente se encaminhando para melhorar as condigdes de vida do homem na terra.” 2. Monod, J. — O Acaso e a Necessidade, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1972 VOCE E FELIZ? 13 E claro que a partir deste conceito tudo o que aparecer de novo encontra imediatamente uma boa receptividade, inclusive determinando um empobrecimento do julga- mento critico. Assim, ninguém esté muito preocupado com a pergunta fundamental: esté o homem moderno mais feliz? O que 6 a felicidade? Se sente hoje melhor, mais 4 vontade, mais completo do que no passado? Estas questdes sao muito diffceis de se responder, pois envolvem uma avaliagdo subjetiva (felicidade e bem estar) @ jamais poderemos saber exatamente como se Sentiam nossos antepassados. E importante réssaltar também, que 6 bem provdvel que os homens em geral nunca se sentiram muito felizes; mas que no passado 0s problemas concretos ligados 4 luta pela sobrevivéncia fisica eram to mais fundamentais que estas questdes @ram menos essenciais e s6 preocupavam a uns poucos. Talvez — principalmente para se evitar polémicas infin- daveis e de pouca valia — a pergunta correta seja: E o homem de hoje feliz? Nossa cultura, tdo eficiente no sentido de melhorar as condigdes objetivas de grandes parcelas da populagdo,'desenvolveu condigées também para que os homens se sintam mais felizes, mais alegres? Apesar da simplificagéo, ainda restam outras di- ficuldades. O préprio desenvolvimento tecnoldégico cria Novas tensGes, 4s quais cada vez mais se atribuem o poder de gerar infelicidade. O crescimento de centros urbanos, © transito, a poluicdo, a vida prdtica cada vez mais com- petitiva, o desemprego; enfim o subproduto do aprimo- ramento industrial que trouxe os bens de consumo mais fartos e responsdveis pela melhoria das condi¢des de vida so insatisfacSes novas e de avaliac&o ainda diffcil. Sao @stas as causas maiores dos evidentes sinais de insatis- fagio humana (aumento da incidéncia de doengcas pre- coces, aO menos em parte determinadas por uma vida inumana, incidéncia crescente do uso sistematico de drogas de todos os tipos, inclusive o dlcool, etc. . .), ou 14 Flavio Gikovate a insatisfagao decorre desta postura global cada vez mais - individualista que nega e superficializa as relagGes huma- nas em geral? E a diffcil vida das grandes cidades que afasta as pessoas umas das outras (uma das fungGes dos centros urbanos era para se obter exatamente o oposto do que ocorreu!), ou uma filosofia de vida que prega a solid’o — agora chamada de liberdade — em nome de cada um cuidar apenas de si mesmo? Pode o homem solitario ser feliz? A experiéncia clinica e pessoal me sugere a abso- luta impossibilidade de uma pessoa se sentir plena, com- pleta, em si mesma. E mesmo as tentativas mais deses- peradas (orientalismos, elogio das drogas, indiscrimina- ¢&0 sexual absoluta, consumismo, negacdo do consumo — 0 famoso Jess is more da Califérnia de hoje — nao tém sido bem sucedidas, a nfo ser como fonte de fas- cinio de duragdo muito efémera. A impresséo que eu tenho é que q individualismo busca qualquer safda para no ter que por em xeque a si mesmo, E uma ten- déncia para incorporar qualquer ilusio de salvagdo como Possivel, desde que nao se questione o principio bdsico, que € o da existéncia da felicidade solitéria, individual. O ser humano que segue os princfpios individua- listas da cultura atual € 0 tipo cada vez mais comum. E, em geral, uma criatura que se assemelha muito ao tipo que Freud descrevia como sendo o narcisista, ape- sar de existirem claras distincSes. O narcisista como tentarei explicar posteriormente € muito comprome- tido com a realidade externa tal como ela é, de modo que é 0 retrato, em nivel psicolégico, de uma dada cul- tura e de uma dada época. Assim, terd que ser redefi- nido em cada momento, e esta € uma das minhas pre- tensdes neste trabalho. E claro que pretendo também esclarecer alguns elementos teéricos que envolvem o problema, fundamentalmente relacionados com a psi- cologia humana normal. VOCE E FELIZ? 15 © termo narcisista 6 preservado porque descreve com muita propriedade uma das caracter/sticas aparen- ‘tes mais importantes deste tipo de ser humano, hoje nor- mal, que é a de serem profundamente comprometidos com cuidados pessoais, de modo a que se pense, a pri- meira vista que sdo pessoas que verdadeiramente amam a si mesmas. E é deste modo que Freud entendia o pro- blema: retragdo de afetos de modo que a libido se con- Gentrasse inteiramente em si mesmo. Criaturas empenha- das essencialmente em se cuidar, em receber afeto e outros beneficios e absolutamente nada dispostas a dar. E importante repetir que este tipo de comportamento & hoje louvado e tido como sendo o normal, o que néo ocorria no inicio do século. Havia, jé, porém, no tex- to de Freud, um certo fascfnio por este tipo humano, @§pecialmente se fosse mulher e atraente (condicao em que 0 narcisismo era mais comum, como ainda hoje acontece). Da andlise de centenas de pessoas cuja conduta Goincide parcialmente com a descricdéo de Freud e com © tipo que detalharei nas paginas seguintes, uma coisa muito importante me chamou a atencao, e cuja impor- tancia 6 fundamental: a auto-avaliag¢do destas criaturas 6 muito dibia, sendo muitos os momentos em que elas declaram claramente que se odeiam! E isto a primeira vista 6 muito diffcil de acreditar, pois tais criaturas pas- Sam a maior parte do seu tempo a cuidar de si mesmas, @specialmente de sua aparéncia externa, a falar bem de si mesmas, a louvar as coisas que fizeram (até mes- mo existindo uma tendéncia a aumentar a importancia dos feitos). Noutros momentos dizem que se gostam, que estéo satisfeitos consigo mesmas, que absolutamen- te n&o gostariam de mudar. Aqui ja as idéias parecem @m sintonia com o que se pode observar, Esta falta de coeréncia na auto-avaliagdo é parte de uma incoeréncia mais geral, da qual falarei depois, 16 Flévio Gikovate Aqui, o problema é decidir qual das duas afirmagdes (6dio ou amor por si mesmo) & mais profunda, mais consistente, E evidente que nao se pode excluir a hipé- tese de que nenhuma delas seja mais verdadeira, o que nos levaria @ crenea de que so criaturas que afirmam apenas 0 que convém: quando algo n&o dé certo, dizem que se odeiam; quando tudo vai bem, se amam. Apesar de que a conveniéncia é uma caracteristica do homem moderno narcisista, penso haver indicios sugestivos de que 0 elemento fundamental é de édio por si mesmo. Vale registrar que sendo isto verdadeiro, o homem mo- derno € essencialmente infeliz, ainda que nao possa afirmar que ele seja mais infeliz do que seus antepassa- dos (se bem que talvez até isso seja poss(vel supor, em funcao de argumentos que ainda apresentarei). A primeira prova da baixa auto-estima como sendo a predominante deriva mesmo da tendéncia j4 descrita estas pessoas de se cuidarem muito e de louvarem demais Os seus feitos. Parece um desejo continuo de mostrar a todo o mundo uma aparéncia muito positiva; a hiper- trofia da importancia da aparéncia, ao menos como esta- mos acostumados a pensar, teria que estar a servico de camuflar um mundo interior do qual a pessoa nao se orgulha absolutamente. O desejo de aparecer aos olhos dos outros sempre bem, 0 continuo problema de se preo- cupar demais com a opinifo dos outros a seu respeito, de tentar agradar as pessoas para que tenham deles um bom jufzo, é indfcio significativo de auto-avaliagdo ne- gativa, Outro argumento, talvez mais importante, no mesmo sentido, & derivado do fato de que o narcisista 6, em geral, um tipo humano especialmente invejoso. E a in- veja recai particularmente sobre as pessoas mais gene- rosas; Ou, em outras palavras, essencialmente diferentes deles. Sendo a inveja um sentimento que deriva da ad- VOCE E FELIZ? 17 miragéo (impossfvel invejar verdadeiramente a alguém que néo se admire), uma Pessoa que realmente se ama, que estd, de fato, bem consigo mesma, nao deveria sentir tal emogao. E sendo o narcisista o tipo que mais padece de inveja, s6 se pode concluir que ele n&o s6 nao se ama, como tem de si um conceito muito negativo, E, mais uinda: a existéncia da inveja significa a capacidade de perceber a virtude do outro que ndo se possui. A ad- Mirag&o pelo outro significa reconhecer sua superioridade 0m dreas bem definidas e conscientes, o que vale dizer Gonhecer a prépria inferioridade. Sendo assim, nao se pode nem mesmo aceitar um grau relativo de incons- ciéneia (0 inconsciente ndo poderia admirar, e nem, portanto, invejar) no narcisista, de modo a ele se amar mesmo sem ser possuidor de grandes virtudes. N&o 6 a hora de estender este tipo de argumenta- flo, mas creio que vale a pena apontar, desde ié, que © tipo humano narcisista essencialmente egofsta, inveja basicamente as pessoas verdadeiramente mais generosas, © especialmente por reconhecer nelas esta virtude. O que, em outras Palavras, significa que ele reconhece que © egofsmo € um defeito, mesmo quando esté sendo louvado pela cultura (como Ocorre nos tempos de hoje) © praticada pela pessoa como modo de viver. Neste caso, © ddio por si mesmo se impée, assim como o sentimento. de inferioridade, que de fato deve ser entendido como Inferioridade real! Sentimento de inferioridade € um tormo que s6 deveria ser usado Para baixa avaliagao de 4] mesmo, injustificada; quando uma pessoa admira a fjenerosidade e age como egoista, est se comportando dé um modo realmente desaprovado por ele mesmo; Inferior de fato. Freud tomou o termo narcisismo de Nacke (1899), uU@ © usava para descrever um tipo de auto-erotismo. O conceito usado por Freud inclufa mais caracteris- 18 Flavio Gikovate ticas psicolégicas ligadas ao ego do que 4 atividade se- xual, pois na época ele estava particularmente envolvi: do com uma dualidade de instintos que inclufa como um deles os “instintos do ego”. A descricéo é primo- rosa, e se percebe em cada linha o profundo e impecé- vel observador da natureza humana. O modo como des- creveremos 0 ser humano mais comum do nosso tempo (e, portanto, no dominio da psicologia normal) tem suficientes semelhan¢as com o por ele descrito, de modo que acho vdlido continuar usando 0 mesmo termo, ainda que com ressalvas. O projeto é pretencioso: descricao a mais completa poss/vel do narcisista, hipétese acerca de sua origem, que envolvem o desenvolvimento de al- gumas teorias acerca da estrutura da razdo humana; de- senvolvimento da idéia de Freud sobre o antagonismo entre narcisismo e amor (e sua expressdo no campo da sexualidade humana); anotagdes sobre o tratamento psicoterdpico do narcisismo, suas relagdes com a moral e com o problema da felicidade humana. E claro que se trata apenas de uma “nova introdu¢&o ao narcisis- mo’, pois um tema deste porte nao pode se esgotar com tanta simplicidade. 2. DESCRIGAO DO NARCISISMO © senhor é, na minha opinigo, simplesmente um homem vulgarfssimo, como costumam ser os ho- mens, com a diferenca unicamente de ser algo débil de cardter € algo carente de originalidade. Diz 0 senhor que sou um homem pouco original. Olhe, meu caro principe, nada hd de mais ofensivo para um homem de nosso tempo do que dizer-Ihe que nao é original e que é débil de cardter, que carece de talentos especisis, que 6 um homem vulgar. O senhor nem sequer quiz considerarme um velhaco de primeira ordem e saiba que, por causa disso estive hd pouco a ponto de baterthe....Assim que tiver dinheiro, saiba o senhor. .. passarei a ser um ho- mem sumamente original. isto o mais vil eo mais odioso que tem o dinheiro: até confere talento. FM. Dostoievski (O Idiota) A descricgo de tipos humanos 6 sempre uma ta- refa multo dificil. Se descobre, desde o inicio, que cos- turmamos usar termos com os quais jamais nos preocu- amos seriamente, no sentido de precisar os seus signi- fieados; e 6 claro que isto apenas gera mais confusdes # Mal entendidos, Por outro lado, ao tentar definir con- Geltos, encontramos uma brutal dificuldade, talvez até por falta de traquejo para este tipo de atividade hoje to donprezada. Apesar de tudo e com todas as ressal- 20 Flévio Gikovate vas, tentarei. Outro problema, mais de natureza liter4- ria; ao se evitar certas repeticdes, se perde a seqiiéncia do pensamento e a clareza da idéia que se pretende trans- mitir; 20 mesmo tempo as repeticdes Parecem cansa- tivas e de mau gosto. Diante desta contradigdo, opto pela maior clareza possivel das idéias, em prejufzo do estilo. O narcisista serd descrito conforme suas carac- terfsticas principais, uma de cada vez. A énfase 6 dada Para a situagao extrema, quase caricatural, a) Egocentrismo e egoismo O egocentrismo pode ser definido como uma forma de apreender 0 mundo, a vida e a condi¢éo humana ba- sicamente governada pela senso-percepcao direta (infor- magées recebidas pelos érgdos do sentido, especialmen- te visio e audic&o). Voltarei mais detalhadamente ao assunto posteriormente. Aqui gostaria apenas de escla- recer o seguinte: do ponto de vista da visdo, por exemplo, para qualquer lado que uma pessoa dirija sua aten¢do, tudo serd visto sempre tendo o observador como 0 centro de uma circunferéncia que o rodeia (0 mundo exterior), Do ponto de vista puro da senso-percepcdo, era légico que os primeiros astrénomos entendessem a Terra como 0 centro do universo! A decorréncia maior deste tipo de apreensio do mundo é que a énfase maior é dada sempre para coisas que afetam diretamente a pessoa. Os acontecimentos imediatos so mais importantes do que os distantes, ainda que haja Obvia desproporcdo de magnitude. Para uma Pessoa egocéntrica, um terremoto em algum pais dis- tante, com milhares de vitimas € menos grave do que um pequeno acidente pessoal de automédvel! (E claro que haveré uma certa vergonha relacionada com isso © as pessoas tenderéo a demonstrar interesses por as- VOCE E FELIZ? 21 Suntos gerais, de modo a ndo parecerem mesquinhas.) & isto porque no tem a menor capacidade de valorizar, @ntender, aquilo que néo véem ou ouvem. E claro que através de leituras podem saber que fatos ocorreram, mas os distantes nunca ganham importancia_priorité- tla, E isto se percebe mais claramente através dos te- mas favoritos de conversa destas pessoas: acontecimen- 108 pessoais, especialmente os mais pitorescos e engra- Gados, conversa sobre a vida de pessoas conhecidas delas, @specialmente eventos concretos (mudancas de habitagao, alteragées na aparéncia fisica, mudancas na vida amo- Tosa, étc...), problemas com os objetos de uso cotidiano, problemas praticos relacionados com a vida do bairro, © transito, e coisas todas de mundo a determinarem beneficios ou preju(zos pessoais e imediatos. O ego- centrismo assim entendido ndo envolve nenhum elemento de avalia¢do moral; apenas uma decorréncia da énfase Na senso-percep¢ao. O egofsmo & problema bastante mais complexo, pois envolve o problema moral, do qual a psicologia “clentifica” tem tentado se livrar. Corresponde, segundo antendo, a um procedimento arbitrério, no qual o indi- Viduo se atribui mais direitos do que aqueles atribufdos #08 que o cercam. A confusdo a respeito do tema se deve ao fato de confundir egofsmo — conduta com- prometida com arbitrariedade em causa propria — com # tendéncia normal das pessoas de preservarem a pré- pria vida e seus direitos (instinto de autoconservacdo"’, fa linguagem de Freud; veja-se a seguinte expressao, na Introdugé0 a0 Narcisismo. . . “egoismo que atribuimos justificadamente, em certa medida, a todo ser vivo"). Se se confunde cuidar da propria sobrevivéncia e inte. fesse, com egoismo, se cria outra vez a situacdo ideal para mal entendidos, uma vez que se esté usando a mesma palavra com dois sentidos diferentes. Cuidar de si ‘em Gerta medida’ é justo e normal; e a isto se chama de 22 Flavio Gikovate ego{smo derivado do instinto de auto-conservacao. Além de uma “certa medida’ é psicolégico e anormal e a isto também se chama de egojsmo! E mais, qual 6 a “me- dida’’ que torna o cuidar de si justo, e a partir de onde se torna injusto? e por que chamar de ego{smo ao cui- dar de si justo? Talvez agora eu possa ser mais claro: a “medida” que torna a conduta humana justa é aquela que atribui iguais direitos aos outros e a si mesmo. Nestas condicGes, cuidar de si néo deve ser chamado de egoismo. O egofs- mo € um comportamento arbitrario onde a pessoa se atribui mais direitos do que a outros. Segundo entendo, 6 uma decorréncia da visio egocéntrica do mundo, por Parte de uma pessoa que se considera fraca, insegura. E esta é a condicao habitual da crianga pequena, por varios anos muito dependente do meio Para sobreviver. Se vendo como o centro, e insegura, tenderé a proce- dimentos de reasseguramento que a levam ao desejo de ter mais para si; seria um comportamento em que a crianga se sente amada (seu desejo arbitrdrio foi satis- feito!) e, de certo modo poderosa (é capaz de desequi- librar a relacdo interpessoal em seu favor!). A educagao habitual em nossa cultura aceita de uma maneira muito benevolente este tipo de comportamento infantil, tido como normal. E claro que as criancas assim “vitoriosas”, tendem a perpetuar tal atitude, o que apenas em certos momentos provoca a reacdo negativa dos adul- tos. Se nao ocorrer nenhum evento importante no pro- cesso psiquico, néo hé nenhuma raz4o para que tal com- Portamento deixe de existir na vida adulta. E é o que ocorre com o narcisista, adulto arbitrdrio, continuamente desequilibrando as relacdes interpessoais a favor de si mesmo. Um fato curioso é que a razdo atribuida pelo préprio individuo para se sentir com mais direitos é voce E FELIZ? 23 f existéncia de determinadas “‘inferioridades” (assim dizem) imediatamente relacionadas com “traumas” exis- tentes na sua vida passada. Ou seja, em decorréncia de inferioridades vividas (antigas ou atuais) 0 individuc fi@ considera como merecedor de direitos especiais, di- reitos estes que nao atribui aos que 0 cercam. E as expli- gugSes da psicologia servem fundamentalmente para ite fim! Para justificar arbitrariedades. E a concluso feria mais ou menos a seguinte: os fracos e inseguros tom direitos especiais sobre os mais seguros; os mais fortes est&o no mundo para servir aos mais fracos! Se Gontinuarmos nesta linha absurda de raciocinio (que ape- sar de tudo, é muito mais comum do que se possa supor), teremos que concluir que é conveniente ter “traumas”, fer fraco e neurdtico, pois a estes 6 dado todo o poder, todos os direitos; e isto seria o reforco da fraqueza (que # fecompensada fartamente) e 0 desestimulo ao desen- volvimento humano mais sadio e digno. E, segundo eu volo, 6 assim que as coisas acontecem. b) Desenvolvimento das aparéncias: Como jé foi dito sumariamente na Introducdo, uma Garacter{sticas fundamentais do narcisista é a exces- silva preocupacéo com a imagem ptiblica que eles pro- wm, Jé disse também que é deste comportamento am particular, que deriva a idéia de que tais pessoas se aman @ que o exagero com estas preocupagées é algo f@ MOS leva a supor exatamente o contrdrio, ou seja, 4m profundo desprezo por si mesmo, que tem que ser famuflaco de todo o modo. A vaidade ligada 4 aparén- fin felea @ um dos aspectos que mais chama a atencio, especialmente no caso das mulheres. Nos homens este supeeto @ menos 6bvio porque nossa cultura ainda 6 Mult® Gontraditéria quanto a se os homens devem ou 24 Flévio Gikovate nao ter uma preocupag3o com a aparéncia similar & das mulheres; neste caso, eles se Preocupam, mas de um modo que isto nao seja por demais percebido — tais criaturas n&o suportam qualquer tipo de critica. Nao quero ser entendido erroneamente; a vaidade feminina, © se fazer atraente para os homens, me parece ser um fato biolégico indiscutfvel. As mulheres se sentem muito bem — e até mesmo sexualmente excitadas — ao desper- tar © desejo sexual nos homens. E ao exagero desta fun- ¢20 normal que eu estou me rete indo. No caso dos ho- mens,a situagdo 6 mais complexa ainda, porque o corpo masculino por sf,; néo desperta nas mulheres sensagado de desejo similar 4 que uma mulher desperta nos ho- mens; desta forma, a vaidade masculina estaria menos validada pela natureza, sendo hoje estimulada por uma cultura igualitaria que n3o leva em conta as diferengas basicas entre os sexos. Tal problema ainda é muito novo € meus pontos de vista a respeito sio absolutamente incompletos; mas acho importante registré-los, ainda que s6 de passagem. De todo o modo, e resumindo, o narcisista (homem ou mulher) € pessoa comumente de boa aparéncia fisica, e que trata de desenvolver esta aparéncia da melhor maneira Possivel, as vezes exage- rando em cuidados pessoais, especialmente aqueles que chamam a atenc&o; mais mesmo do que os que teriam uma relaedo direta com o aprimoramento da satide, A preocupacao com a aparéncia se estende para todas as coisas materiais diretamente relacionadas com @ pessoa: aspecto da habitacdo, do automédvel, dos mé- veis e utensilios. O desejo é sempre o mesmo, ou seja: chamar a atencdo favoravelmente. E o possuir coisas de indicutivel valor material e valor estético conven- cional (outra vez o medo da critica torna estas pessoas muito timidas quanto a grandes inovagdes obviamente desaprovadas por um bom niimero de pessoas), enten- VOCE E FELIZ? 25 dido como tal, o que se considera belo num determina- do momento e uma determinada cultura. Vivendo num pals como o Brasil, gostam muito de saber o que jd esté Indo usado em locais que langam as modas, de modo 4 serem os primeiros a fazé-lo aqui, e com isto pareceraio precursores, inovadores, coisa que decididamente nao fio, mas que gostariam muito de ser. Quanto ao comportamento social, correspondem 410 tipo comumente chamado de extrovertido. Sdo muito falantes, relativamente féceis no trato com as pessoas, Gspecialmente com desconhecidos; tem sempre um caso ra contar, sempre’ algum acontecimento pessoal curio- #0, Marrado com muitos detalhes — em geral pouco importantes — e com o maior empenho possivel para ferem engragados (e isto muitas vezes é verdade). As onversas sdo sempre muito superficiais, onde proble- mas e dificuldades pessoais nunca sio reveladas; sdo pessoas para quem tudo esté sempre bem, pois mostrar dificuldades € sinénimo de mostrar fraquezas e isto di- minui a imagem que os outros tém deles, além de tor- ni-los mais vulnerdveis a eventuais ataques (“nunca se deve deixar que os outros conhegam os nossos pontos fracos'’, seria uma expresso comum). Os temas prefe- ridos séo sempre amenidades, assuntos gerais onde nin- guém tem que se comprometer com nada; 6 a isso que Gorrespondem as habituais conversas de bar, ou as reu- ni6es sociais, onde tais pessoas sio as que mais se so- bressaem. Um importante fator inibidor 6 estarem numa Gondigio onde se sintam socialmente inferiorizados. A superioridade ou inferioridade 6 entendida aqui em fungllo das aparéncias, ou seja, do que 6 valorizado na- Guele ambiente (em uns seré o poder econémico, nou- {ros a beleza e a juventude, noutros os dotes intelec- tuais @ a cultura). Quando se considera em inferioridade, fica calado e timido; quando em superioridade, é até oxtravagantemente socidvel; e isto é muito légico para 26 Flévio Gikovate quem se preocupa tanto com as aparéncias. Duas con- seqiiéncias também légicas deste fato: o narcisista se empenharé 20 maximo para conseguir uma condigao de superioridade segundo critérios da cultura e do am- biente em que viva; e também preferird se relacionar com pessoas tidas como inferiores, sobre as quais po- derd reinar e com as quais se sentird mais a vontade, desenvolvendo até mesmo certas condutas de aparen- te preocupagao e generosidade, ¢) Baixa tolerancia a frustragéo: Abordo aqui um dos aspectos mais tfpicos e carac- teristicos do narcisismo: a intoleréncia a frustracéo. E € bom deixar claro que em momento algum eu estou querendo dizer que os outros tipos humanos tenham um prazer especial com o sofrimento ou a contrarie- dade. Ninguém gosta de ser frustrado, de que as coisas nao ocorram conforme o previsto ou o desejado; nem mesmo quando a frustragao deriva de algum fator inde- pendente da atitude de qualquer ser humano (é o caso, por exemplo, de alteragdes Metereoldgicas; se se deseja um tempo bom para um fim de semana é claro que se fique contrariado se houver chuva). Porém, a reacdo. diante da frustragdo, da dor, é que € muito distinta. Para algumas pessoas é mais facil aceitar o sofrimento; para outras é absolutamente imposstvel. Aceitar o sofri- mento néo é sinénimo de resignacdo e docilidade; as vezes é apenas a percepcdo de que, naquela situacao determinada, nada hd a fazer senio aceitar a coisa como ela se apresenta; tais criaturas podem ser muito ativas € corajosas em outras ocasides, quando acham que va- le a pena o esforco, quando reconhecem que a situa- ¢d0 poderd ser modificada pelo desempenho pessoal, VOCE E FELIZ? 27 © narcisista toma qualquer frustragao como uma grave ofensa pessoal! Ao menos 6 o que parece, pelo tipo de reago que se pode observar: a hostilidade vio- lanta se manifesta imediatamente; as lamentagdes e mani- fostagSes de dio séo desproporcionais e prolongadas. Acusa imediatamente a alguém, pelo evento, mesmo quando isto ndo é Idgico e nem mesmo Possivel (no oxemplo citado da frustrag3o metereolégica, haverd ma substituicdo, para uma outra contrariedade qual- quer insignificante e que envolva um ser humano, que fd © objeto do édio e a causa da infelicidade), Sobre © acusado recaem as mais graves acusagées, todas elas Vverbulizadas em clima de rancor e légica apenas aparen- 10; silo situagdes em que relembram todas as outras Trustrag6es do passado, determinadas pelo acusado; as lombrangas mostram um édio muito vivo € recente, mesmo Hara acontecimentos muito antigos, Tudo se dé de um modo muito similar mesmo quan- 0 4 verdadeira razdo do fracasso de um empreendimento (que gerou a frustrag%o) se deve a condutas inadequa- do narcisista. Este nunca reconhece sua culpa, nunca #@ V8 © responsdvel por nenhum erro (isto seria uma prove da exist8ncia de imperfeicdo em si mesmo, coisa tii como inaceitdvel). Usa de todos os recursos possi- Welt para inverter @ situagdo e, de vildo, tornar-se vitima. Quando sfo pessoas inteligentes e boas na manipulag3o da palavra — © convivendo com tipos humanos opostos, ‘ompre prontos a assumir culpa por crimes que nio co- Mmoteram — muitas vezes sdo bem sucedidos nesta tarefa. Quando nfo hd meio de conseguir isto, desandam em tm diseurso de auto-comiseracao (‘eu sou uma porcaria, 4) nllo presto para nada mesmo, eu deveria morrer’’, ft...) de modo a, pelo menos, despertar muita pena taquele que, na situagao de fato, era a vitima. A vitima ® vé obrigada, portanto, até mesmo a consolar o vilgo! Flévio Gikovate O narcisista costuma atribuir esta conduta franca- mente infantil e inconveniente (é sempre bom lembrar que as criancas pequenas lidam muito mal com a frus- trago, reagindo violentamente quando contrariadas) a uma alta ‘‘sensibilidade”, de tal modo que ‘‘nele tudo & sentido com mais intensidade, provocando, portanto, maior sofrimento”, o que justificaria e explicaria a ébvia desproporeao entre acontecimento real e reagado objeti- vada. Esta argumento nos obrigaria a concluir que este tipo humano 6 o mais sensfvel, 0 mais sofrido. Mais tarde tentarei mostrar que eu nao considero as coisas deste modo; por hora fica ressaltado apenas o fato de que este raciocinio transforma um comportamento injusto, numa conseqiiéncia inevitével de temperamentos “mais sensiveis’’, excepcionalmente dotados da capacidade de sofrer por pouca coisa, 0 que nao é verdade. Tais pessoas sd so “mais sensiveis’’ quando a situacdo os prejudi- ca diretamente e isto € muito importante para um jul- gamento mais correto da condi¢do, Além do mais, é bom que se diga desde j4, que existem enormes diferen- gas de reac&o a frustragdo, quando a situagdo objetiva impede a resposta explosiva (e isto desqualifica ainda mais a explicagao a si mesmo, dada pelos narcisistas). Cito o seguinte exemplo muito comum: um homem explodiré, em sua casa, com a mulher (e eventualmen- te com os filhos); mas jamais o faré deste modo com o seu chefe, no trabalho (a menos que exista o desejo de ser mandado embora), ou em outras situacées sociais onde tal conduta o desmoralizaria (0 que nao deixa de ser uma importante prova de que a criatura tem plena cons- ciéncia do seu comportamento arbitrdério, e da inopor- tunidade de exercé-lo em certas condigdes ptiblicas). voce E FELIZ? 29 d) Incoer&ncia légica, imoralidade: J&é esté mais ou menos claro, do que foi descrito, que © pensamento do narcisista padece de certas falhas, todas elas relacionadas com o desejo de mascarar suas préprias fraquezas e limitagdes e com a necessidade de 4@ mostrar mais forte, mais bem sucedido, mais capaz, is virtuoso. A busca nao é a da verdade, mas sim do argumento que Ihe dé razao. Alids, o narcisista é extre- mmamente fascinado por uma idéia corrente de que tudo 4 relativo, e que, portanto, as verdades absolutas nao existem, sendo tudo uma questao de opiniao pessoal, dependente da dtica, do modo como se encara o pro- blema. N&o é ainda hora para uma discussdo deste pro- blema, mas o fato a ser ressaltado 6 que em nome desta falatividade total dos conceitos, o narcisista sempre advoga ei causa prépria. Encontra sempre um modo aparen- tamente légico para se beneficiar de todas as situagdes 4 que a balanca sempre se desequilibre em seu favor. 1 para isso vale tudo; uma frase dita hd pouco j4 no # mals verdadeira (“nao é bem isso que eu queria dizer’) \i@ vez que se mostrou inconveniente e o oposto pode- 14 wer afirmado agora como sendo a verdade. Tudo é felativo mas as suas opinides sdo sempre as mais cor- fotos @, principalmente, aquelas que devem prevalecer. J& vimos que em virtude da “alta sensibilidade”’ que determina a baixa tolerancia 4 frustrag&o, tudo de- vera sor feito no sentido de se evitar qualquer tipo de oontrariedade para tais pessoas. E para isto basta que todos a seu redor aceitem suas exigéncias, que sero (ada vez maiores; e esta situagdo tirénica é entendida como légica, pois o privilégio Ihes é devido “em reparo 4 frustragSes! do passado, ou algum sentimento de infe-

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