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Atrás da porta verde

Eles se encontram pela primeira vez em um lugar pouco usual.


Janice não era de frequentar vernissages, estava ali porquê o gerente do banco lhe havia dito que adquirir
quadros de pintores com potencial de valorização poderia ser um bom investimento para o futuro. Achara os
quadros uma porcaria, os canapés razoáveis e o vinho medíocre. Estava pronta para deixar a galeria de arte
com alguns canapés embrulhados em guardanapo e atirados na bolsa. Vinte e cinco anos, pálida, maquiagem
feita em casa, coisa de quem não se sente à vontade em salões de beleza, vestido e sapatos de muito bom
gosto que contrastam com um chaveiro-brinde de plástico ganho em um posto de gasolina que ela levava às
mãos e ficava manipulando quando nervosa.
Igor ganhara a entrada para a exposição de um professor do MBA. O cara iria viajar e perguntou para a
turma se alguém queria o convite. Igor levantou a mão e pegou. Foi mais por curiosidade. Gostava de Miró,
um pouco de Edward Hooper, mas seus conhecimentos de Arte não iam muito além disto. Achou que seria
interessante e foi. Trinta e um anos, formado em Administração de Empresas, mas trabalhava com os pais na
Agência de Viagens da família, ganhava pouco e não havia a mais remota possibilidade de assumir o negócio
já que o pai tinha uma saúde de ferro, duraria mais uns 20 anos, no mínimo.
Meio sem querer, ele olha para a mulher de dedos rápidos surrupiando sanduíches em miniatura.
Sorri.
Resolve abordá-la.
- Faz sempre isto ?
- Ás vezes, estes de pasta de salmão e azeitonas pretas estão divinos.
- E se alguém pegar você ?
- Eu digo que sou cleptomaníaca, devolvo e pago. Ninguém chama a polícia por uma bobagem destas.
- Eu poderia chamar a polícia.
- E assim que eu saísse da Delegacia, eu ligaria para um ex-namorado que é professor de MMA e você iria
parar nos esgotos, sem que ninguém retirasse as tampas do bueiro.
- Fica calma, não vou fazer nada. Pode levar o seu lanchinho.
- Que bom que mudou de idéia.
[ Silêncio. ]
- É... Eu acho que é melhor a gente começar de novo. Eu sou o Igor.
Ela agarra os dedos do sujeito, balança um pouco e responde:
- Janice. Acho que a primeira captura na sua árdua luta contra o crime.
- Gosta de Arte ?
- Um pouco, vim mais porquê o gerente de investimentos do meu banco me sugeriu que diversificasse um
pouco o meu portfólio e era ou visitar esta galeria ou um leilão de gado Nelore que ele recomendou.
- Então você tem muito dinheiro...
- E um ex-namorado que é professor de MMA e vai adorar que eu deva qualquer tipo de favor para ele.
- Entendi. E que você faz, entre a abertura da bolsa de Tóquio e o fechamento de Wall Street ?
- Boa esta.
Sorri.
- Eu trabalho com lapidações de diamantes e rubis industriais. Uma das empresas que me emprega é sub-
contratada do Departamento de Defesa Norte-Americano produzindo lasers que podem cortar um porta-aviões
ao meio do espaço.
- Deve ganhar bem.
- Ganho mais do que eu posso gastar, mas tem suas inconveniências: não posso sair de São Paulo em
hipótese alguma, não há férias ou qualquer tipo de registro trabalhista: ordens dos contratantes ditadas pela
Inteligência Militar do Departamento de Defesa.
- Tipo... A CIA ?
- Acho que coisa pior.
- Entendi. Você é a menina rica que não pode tirar férias.
- Não é tão mal assim. Eu jogo videogame.
Ele sorri. Igor não era idiota, aquela garota parecia uma cebola: camadas e camadas de mentiras
sobrepostas com precisão e um sorriso de nerd tímida para disfarçar. Mas, contrariando todos os seus alertas
internos, Igor entrou no barco.
Conversaram a noite toda. Marcaram um jantar para o meio da semana. Depois teatro, cinema, corrida de
cavalos, motel, leilão de gado Nelore, cinema...
Igor percebia claramente que ela estava escondendo alguma coisa, mas somente um fato lhe deixava
absorto em pensamentos paranóides sobre tudo que há de ruim que se pode imaginar:
Janice jamais mostrara ao namorado sua casa.
E o namoro já estava para completar oito meses.

* * * * *

Após trinta e dois meses, casaram-se.


Casamento religioso, civil, festa e embarque imediato para a lua de mel de 2 dias em uma pousada no
litoral do Paraná, após uma árdua negociação entre a noiva e seus misteriosos empregadores para compensar a
quebra de contrato que significava a ausência de São Paulo.
Findas as 48 horas, voltam.

* * * * *

Hall do Aeroporto. São Paulo.


Igor, impetuosamente, inquere a jovem esposa.
- Agora vamos para sua casa ?
- É. E eu agradeço de você ter parado de me perguntar sobre isto.
- Eu não entendo.
- Não é para entender. Vamos.
O taxi chega. Embarcam. Partem.

* * * * *

Morumbi.
Um muro cinza gigantesco, uns 8 metros.
Uma garagem com porta blindada e só, como se fosse a casamata de Osama Bin Laden ou um bunker de
algum ex-oficial da SS nazista foragido e nonagenário.
O carro para. Ele paga a corrida e, com a ajuda do motorista retira as malas de dentro do carro preto. Ela se
atrapalha com duas valises pequenas, sai do carro e, com um controle remoto abre a porta da garagem,
aparentemente, a única entrada ou saída possível da casa.
O taxi parte.
Ela entra garagem a dentro, carregando as valises Hermés, olha para trás e indaga o marido:
- Vamos ?
- É isto que você estava escondendo ?
- O que eu estou escondendo está lá dentro, no interior de um quarto que você nunca vai entrar.
Ela sorri. Gostava de brincar com as expectativas dos outros. Gostava de brincar com os medos dos outros.
Gostava de brincar.

*****

Ele entra. Arrastando e soltando as três malas: as duas Louis Vuitton dela e a sua Primícia surrada de
guerra.
Saem da garagem. Um jardinzinho com grama mal-cortada e algumas petúnias plantadas ao largo do muro.
A casa não tinha nada de extraordinário: parecia mais uma residência confortável de classe média alta dos
anos 70 do que uma estrutura que precisasse de um muro de 8 metros para guarnecê-la.
Ela abre a porta. Entra. Ele penetra o interior do imóvel e tenta colocar as idéias em ordem: milionária
excêntrica, um pouco irrequieta demais, mas não parecia do tipo que assa coelhinhos vivos no microondas.
Será ?
Ela fecha a porta e mergulha de costas em uma puff preto e surrado.
- E aí ? Gostou ?
- Então o segredo é este ? Você mora em uma mansão no Morumbi ?
- Amor... Isto não é uma mansão. Sorri.
- Reformulo, então. O segredo é você morar em uma casa agradável no Morumbi com petúnias no jardim ?
- Não gostou das petúnias ? Eu posso mandar a faxineira plantar outra coisa.
- Cínica.
Ele se abaixa, a beija rapidamente nos lábios, a segura pela cintura e a suspende do puff.
- É só isto que você está me escondendo, afinal ? A casa, e que, provavelmente você é muito mais rica do
que eu imaginei ?
- Não sou tão rica assim. Eu só ganho muito mais do que eu consigo gastar. E eu já te falei: tem um quarto
aqui que você nunca não vai entrar em toda a sua vida.
- Você é o quê ? Traficante ? Terrorista ? Espiã ? A estória da sua vida tem mais lacunas que o discurso
de posse de alguém com Alzheimer.
- Escuta, amor... Eu assinei contratos de confidencialidade em 6 línguas diferentes. É coisa importante, por
isto pagam tão bem. Sabe o que é C4 ?
- Um explosivo.
- Dentro daquele quarto que eu te falei tem uma carga suficiente para explodir esta casa facilmente. E...
Delicadamente, ela começa a abrir a blusa, até desnudar totalmente o colo translúcido atravessado por um
soutien meia-taça negro e uma cicatriz.
- Está vendo a cicatriz, anjinho ?
- A da tua cirurgia cardíaca ?
- Nunca houve cirurgia cardíaca nenhuma. Eles me obrigaram a instalar um marca-passo com um
transmissor que tem seu respectivo detonador instalado dentro do quarto que você não pode entrar. Quando eu
morrer, o marca-passo para e explode tudo.
- Isto é piada ?
- Segurança Nacional.
- Dos EUA ?
- Deve ser... Mas as vezes vem uns caras junto com eles falando uma língua que parecem grunhidos de
uma ornitorrinco parindo.
- Não sabe nem ao menos quem são “Eles” ?
- Mais ou menos.
- Mais para mais ou mais para menos ?
- Mais para menos.
Ela estava mentindo.

*****

A vida dele.
O cara acorda.
Deixa a mulher dormindo na cama e vai para a cozinha tomar café. Leite quente, café solúvel, duas
colheres de açúcar e um pão de trigo com qualquer coisa: geléia, patê fajuto da Sadia, salaminho...
Após o banho, pega o carro e vai para a agência. Trabalha a manhã inteira, almoça com o pai e , ás vezes,
algum cliente em qualquer restaurante a quilo das redondezas. Ocasionalmente, a esposa aparecia para
almoçar junto.
A tarde normalmente era mais divertida: visitava universidades e escolas técnicas para tentar vender os
pacotes de viagem de formatura da agência. Não era difícil.
Chega em casa. Toma banho. Encontra a esposa de banho tomado atirada no sofá ou à toa no videogame.
Jantam comida de microondas. Sexo. Dormem.
Ela acorda. Normalmente 9:30... 10:00.
Enche de sucrilhos uma vasilha de plástico e joga leite por cima. Come na frente da Tv assistindo o
primeiro jornal que encontra. Toma banho lentamente em uma banheira enorme projetada por um escultor
búlgaro famoso que ela comprara em um leilão e que chamava carinhosamente de Dilminha. Era o lado bom
de ter dinheiro: comprar coisas bonitas e ficar olhando.
O lado ruim começaria agora.
Descansada, enjuta e alerta liga o computador. Faz a ronda diária: The Wall Street Journal, Financial
Times, Forbes, Fortune, Wired, a versão em inglês do Pravda e os 5 Cavaleiros do Apocalipse de sempre:
Folha, Estadão, O Globo, Jornal do Brasil e o Valor Econômico.
Costumeiramente, não era nostálgica, mas sentia saudades da Gazeta Mercantil e do Jornal do Brasil de
papel, com direito à Revistinha de Domingo e ao obituário detalhado que simplesmente desaparecera na
versão online. A falência da Gazeta Mercantil havia sido um inconveniente, o ocaso do Jornal do Brasil de
papel uma amputação.
Achava a versão em inglês do Pravda um doce. O inglês da equipe que fazia a tradução era tão britânico
que você podia sentir o cheiro de peixe frito com batata frita entrando pela janela. Em absoluto era pessoa
preconceituosa, já tivera amigas e até um namorado negro, mas costumava implicar com o inglês e o sotaque
dos texanos: punham “yall” em tudo, só que “yall” tem uns 30 significados diferentes dependendo do sentido
da frase, da entonação de quem fala e do desejo de quem estar falando de ser entendido ou não.
Yall.
Todo dia ela faz tudo sempre igual... [blá, blá, blá...] ... e me beija com a boca de hortelã.

*****

Toda quarta-feira, religiosamente às 17:30 ela atravessava a porta verde. Voltava na quinta quase de
manhã.
Toda sexta-feira, religiosamente às 17:30 ela atravessava a porte verde. Voltava no sábado quase de
manhã.
Não importava quanto o marido perguntasse, afinal, o que ela fazia, como se fosse um dos cãezinhos de
Pavlov, totalmente condicionada. Janice se limitava a repetir:
- Segurança Nacional. Não posso dizer mais nada.
Com o tempo, a resignação surge e Igor não toca mas no assunto, mas ficava a dúvida:
- Segurança Nacional de quem ?

*****

Por mais que Janice fantasiasse que este dia nunca chegaria e que ela e o marido viveriam felizes para
sempre, no intimo, ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, Igor sucumbiria à curiosidade e tentaria arrumar
uma maneira de penetrar na intimidade mais secreta da esposa: o que estava por detrás da porta verde.
E, para variar, ela estava certa.

*****

Quarta-feira seguinte.
17:30, com a precisão de um relógio atômico, Janice entra no quarto verde.
17:45, o Bentley negro da moçoila deixa a garagem.
De alguma forma, o misterioso aposento tinha alguma conexão com a parte de baixo da casa, e
consequentemente, com a garagem. O enigma é que, na garagem, não havia qualquer vestígio de porta secreta
ou alçapão para desespero de Igor que já havia esquadrinhado o recinto umas 40 vezes. Que ela entrava na
garagem estava óbvio, mas como ?
18:00 DING DOM !
Igor corre até a garagem, havia de ser rápido. E se ela volta ?
Por dentro, abre a porta da garagem.
Encontra o chaveiro com um ar de assustado.
- Vocês não tem porta, só a garagem ?
- É que a casa foi construída por um arquiteto totalmente paranóico para sua própria moradia.
- Que doido ! Mas e se faltar luz, vocês abrem a porta da garagem como ?
- Minha esposa instalou um gerador a diesel do lado da cozinha.
Com um pé atrás e outro também o chaveiro entra. Aquilo era muito, mas muito estranho. Passou pela sua
cabeça que a casamata fosse um depósito de traficantes de droga, instalado em um local bem pouco habitual
para não levantar suspeitas. Faria o serviço e sairia imediatamente. Vai que a polícia aparece ?
Igor, desconfortável, leva o chaveiro até a porta verde.
- O senhor quer que eu faça o quê ?
- Abra sem deixar marcas.
- Sem arrombar ?
- Exato. Pode fazer ?
- Claro, é uma fechadura Papaiz comum. Tenho uma “chave micha” dela pronta nas minhas coisas. Este
modelo é tão vulnerável que existe até tutorial para fazer “chave micha” de Papaiz no Youtube.
- Que bom.
Caio, o chaveiro, remexe sua bolsa caqui-amarelada, encontra uma caixinha de metal, escolhe uma chave,
a penetra na fechadura da porta verde e... Voilà !
- Quatrocentos reais !
- Quatrocentos ? Mas você tinha dito duzentos !
- Sou bobo não, tem alguma coisa muito errada nisto aí. Você está nervoso demais. Vou fazer de conta que
não te vi, que nunca vim aqui, mas eu quero 400 paus no meu bolso. E não me chama mais !
- Eu não tenho que lhe dar explicações, esta é a minha casa !
- Me paga e eu caio fora, falô ?
Igor arranca a carteira do bolso, puxa 4 notas azuis de 100 reais, e, verde de raiva, as coloca no bolso da
camisa de Caio, o chaveiro apavorado.
- Vaza !
- Agora mesmo.
Honesto, Caio deixa a chave micha sobre uma estante de mogno, o móvel mais próximo da porta
misteriosa. Os dois descem a escada até a garagem sem trocar uma palavra. A porta da garagem é aberta e o
chaveiro desaparece no bréu esfumaçado da noite paulistana.

*****

Igor vai até a cozinha, lava o rosto. Sabia que o que estava fazendo era muito, muito errado e que sua
curiosidade poderia destruir seu casamento. A amava, mas não confiava nela. Não se surpreenderia se
encontrasse algo como um depósito de armas químicas por detrás da porta verde. Janice era a pessoa mais
escorregadia que já havia conhecido, não imaginava que pudesse existir alguém que desviava uma conversa
sobre sua família para uma análise antropológica do Muppet Show ou críticas enraivecidas ao Sistema de
Saúde Canadense. Ela sempre falara somente sobre o que queria falar e revelara somente o que queria
revelar. E Igor, como macho, achava isto insuportável.
Sobe a escada.
Abre a porta recém-violada e... Nada. Ou quase nada.
Um quarto vazio, retangular, com uma porta de cofre de banco prata reluzente de umas 20 toneladas em
uma das extremidades.
Acabara de descobrir porquê a esposa vivia enchendo o carrinho do supermercado com latas e latas de
polidor de metais.

*****

2:00 – Igor pega a máquina fotográfica e tira dezenas de fotos do mastodonte que dividia a casa com ele e
a esposa sem que desconfiasse. Aço maciço, talvez uma 25 toneladas. Talvez fosse possível identificar o
modelo comparando com fotos de sites de ferro-velhos. É aonde estas coisas terminam quando o banco que as
comprou encerra o processo de falência.
Tinha ainda umas 3 horas para terminar o serviço, voltar para a cama e se fazer de surpreso quando a
esposa surgisse junto com o amanhecer. Ás vezes trazendo pão quentinho da padaria. Primeira fornada.

*****

Duas horas, doze minutos e vinte e oito sites de ferro-velho depois Igor percebe que estava caminhando
para um beco sem saída. Mesmo que identificasse o modelo do cofre, como iria encontrar alguém que
soubesse abrir a coisa ? Seu banco de dados de criminosos contratáveis estava limitado a um cara meio-hacker
que desbloqueava celulares comprados no Paraguay por um preço módico e um médico abortista de São
Miguel Paulista que aparecia para jogar Poker com seu pai às quintas-feiras. Arrombador de cofre só se
ligasse para o PT.
E sua mente começa a girar, em um “brainstorm” que destruiria seu casamento, mas mataria a curiosidade
que o consumia.
A mesma curiosidade que costuma matar gatos.

*****
E se a seguisse ?
Não funcionaria. Ela dirige como uma velhinha. Qualquer um percebe qualquer movimento quando está a
40 por hora.
E se furasse a parede por fora com uma marreta, driblando o cofre ?
Muito arriscado. Se fosse verdade que havia explosivos dentro do quarto como Janice dissera meter uma
marreta na parede externa poderia gerar uma cratera do tamanho de um estádio de futebol.
Parecia mais seguro segui-la do que invadir o quarto, mas como ?
Aí Igor lembrou do homem-aranha, que jogava no inimigo um micro-transmissor e depois simplesmente
seguia o sinal. E Igor nem precisaria comprar nada já que seu telefone celular de última geração estava
equipado com um serviço de “GPS tracking” conectado 24 horas ao site da empresa, o que permitia que pais
seguissem os filhos, pizzarias seguissem motoboys e, agora, possibilitaria que o grande mistério da vida de
Igor fosse desvendado, Orwellianamente.

* * * * *

5:02 – Ela chega.


Vai até o quarto, vê o marido dormindo. Arruma o cobertor que, desalinhadamente se estende sobre Igor.
Fecha a porta e vai para a cozinha. Antes pega o pãozinho quente embrulhado na sala. Não pensa em nada.
Só, metodicamente, arruma o salaminho, o presunto e o queijo no pão. Enche o copo de requeijão cremoso
Poços de Caldas de Coca-Cola e resmunga...
- É uma boa vida.
E de fato era.

* * * * *

Sexta-feira.
Igor falta ao trabalho no período da tarde. Para garantir vai ao shopping e gasta uma pequena fortuna com
o A.I.Phone 35S Security Edition, projetado especialmente para pais bisbilhotarem os filhos sem que estes
possam fazer nada para evitar. A caixa do bicho era assustadora: uma garota loirinha de uns 14 anos, cercada
de três negões mal-encarados em um beco, um deles fumando maconha, o outro com um rádio enorme no
ombro e o terceiro abrindo o ziper da calça e olhando libidinosamente para a inocente impúbere prestes a ser
deflorada. Em cima da foto, o slogan: “Seus filhos, nossa responsabilidade.”. Simplesmente aterrador.
Já em casa, instalar o aparelho não seria uma tarefa fácil: teria que configurar o celular com o satélite da
empresa e personalizar todo o software que seria instalado no computador para realizar o monitoramento em
um mapa 3D. Coisa de primeiro mundo, só que, pelo preço daria para importar umas 5 loirinhas suecas de
Estocolmo.
Tudo instalado, Igor prega o celular com “silver tape” por detrás do pára-choque traseiro do Bentley negro
da esposa e fica esperando Janice retornar do cinema.

* * * * *

- E aí, matão ? Faltou ao trabalho ?


- Mais ou menos, estão detetizando. A agência vai ficar fechada com cheiro de veneno até amanhã de
manhã.
- Baratas ?
- Cupins.
- Que horrível ! Teu pai tem uma escrivaninha linda de mogno na sala dele, tomara que os bichos não
comam.
- Tomara, [Silêncio]. E o filme, foi ver o quê ?
- Blade Runner, 30 anos depois. Alguma coisa assim...
- Bom ?
- É meio chocante ver o Harrison Ford velho. Quer dizer... Ver o Han Solo velho e o Indiana Jones velho.
Engraçado que eu não achei chocante ver o Leonard Nimoy idoso na tela.
- É que quando você vê um vulcano velho na tela você lembra que os vulcanos envelhecem e isto não te
afeta, mas quando você vê humanos velhos , você se lembra que você envelhece !
- Meio-vulcano.
- Hã ?
- O Spock é só meio-vulcano, a mãe dele era humana.
- Mas quem sabe destas coisas ?
- Todo mundo.

* * * * *

Distraída, deixa Igor vendo TV na sala e sobe para o quarto. Toma banho. Fica no computador um tempo
pagando umas contas. Se arruma para o trabalho, come dois danettes na cozinha, volta na sala e dá um
beijinho rápido no marido.
- Estou indo então.
- Te cuida.
A porta verde se abre.
E ela some.

* * * * *

Era a luta entre o medo de perder a esposa e o medo dela estar envolvida em algo grande e ilegal que
pudesse fazer com que ele acabasse na cadeia como cúmplice. O confronto entre o amor que sentia por Janice
e a raiva por ela jamais ter confiado nele para dizer uma só palavra sobre seu ofício. Na realidade, ela disse,
mas Igor se recusava a acreditar naquela baboseira de rubis industriais e empresas sub-contratadas do
Departamento de Defesa Norte-Americano.
Sairia de casa com a moto somente quando o sistema de “GPS tracking” indicasse que Janice havia
atingido o destino final. Isto evitaria que ela o avistasse seguindo o Bentley.
O carro já partira faziam uns 2 minutos.
A tensão era insuportável.
E, da caixa do celular, a loirinha de 14 anos o encarava, com um olhar acusador.

* * * * *

Morumbi.
Vila Sonia.
Pegou a 116.
Vila Santa Luzia.
Parque Esplanada.
Jardim Lavorato.
Vila Carmem, O que esta peste está fazendo em Embu das Artes ?
Parque Paraíso.
Entrou em Itapecerica da Serra.
Zona rural de Itapecerica da Serra.
Parou.
Em algum lugar no meio do nada na zona rural de Itapecerica da Serra.
Com as coordenadas, Igor checa o Google Street View. Nada. Nenhuma referência visual.
- Que bosta !

* * * * *

Igor transfere o mapa do PC para o celular usando um aplicativo de Bluetooth, coloca-o no bolso, pega a
moto, fecha a garagem e cai na estrada.
Uma hora e doze minutos depois, a moto chega até o último ponto antes de deixar o asfalto e entrar na
estrada de terra que penetraria na zona rural sem postes e sem tráfego, a Itapecerica da Serra profunda, o
buraco onde o Judas perdeu as botas.
Nada.
Nada
Um boteco de beira de estrada.
Nada.
Outra estrada de terra.
Nada.
Nada.
Pasto dos dois lados.
Escuridão absoluta.
Um portão de madeira e arame.
Dentro da propriedade, ao longe, uma casa com luzes acesas.
E era lá o último ponto que marcava o mapa do “GPS Tracking”.
Teria de invadir.
Estava preparado para isto. Empurra vagarosamente a moto até o muro de arame farpado que separava a
propriedade da fazendola do vizinho. Tira o alicate de dentro da mochila. Entra e vai empurrando a moto,
margeando o arame farpado sujo e enferrujado.
Apesar da escuridão, já era possível ver alguma coisa:
Carros. Carrões. Uma mercedes conversível, uma ferrari mais antiga, uma maserati e vários carros nacionais
de top de linha: carros para velhos, mas velhos com muita grana. E o Bentley preto de Janice estacionado na
parte de trás do terreno junto com um Prius prata e um Volvo “Station Wagon”. E duas motos, um pouco mais
para trás. Estranho, porquê não estariam juntos dos outros carros ? A resposta era meio óbvia: porque carro de
empregado não se mistura com carro de patrão, mas o detalhe sociológico passara despercebido de Igor.
Na frente da casa, dois mastodontes marombados de terno e gravata, segurando escopetas, parados em
frente à porta principal. Um fumava, o outro parecia absorto com os sons da noite.
Igor passa ao largo, gira a moto em direção à estrada, preparando sua provável fuga. Encosta o veículo em
uma mangueira carregada e começa a rastejar pelo chão, buscando encontrar uma janela de onde pudesse ver
o que ocorria dentro da casa.
Basicamente, a construção era um sítio de final de semana, com uma piscina cheia de musgo verde boiando.
De frente para a piscina, uma sala realmente ampla. Aliás, um dos dois únicos cômodos iluminados da casa. O
outro, pela chaminé da coifa, provavelmente era uma cozinha. Todo o resto estava em trevas absolutas.
Rastejando militarmente, junto à casa, Igor encontra o que queria: um ponto de observação do que ocorria
no recinto: uma brecha na persiana vertical que separava a sala da piscina.
Avista Janice.

* * * * *

Corselet preto, avental, liga preta nas pernas e arquinho na cabeça. Uma gracinha. Mais duas moças com a
mesma fantasia de criada francesa servindo bebidas e anotando algo para umas 20 pessoas espalhadas em uma
grande mesa que formava uma ferradura com uma bancada de cozinheiro profissional no centro, que aliás,
estava vazia. Em uma das pontas, um relógio cronômetro destes usados em partidas de xadrez.
Bem, o mistério dos três carros estacionados em separado estava resolvido, e as motos, deviam ser dos
trogloditas na porta, mas, o que era aquilo ?

* * * * *

Blue moon tocava de fundo. Igor pensa que deveria haver algum tipo de sistema de som, só que parecia
impossível vê-lo, com o ângulo de observação que possuía.
Os homens de Black-tie. As mulheres trajadas para algum evento inimaginavelmente exclusivo.
A maioria casais. De todos os tipos: homem beirando 60 com mulher beirando 60, homem beirando 60 com
mulher beirando 30, homem beirando 70 com mulher beirando 21, duas mulheres sozinhas e um sujeito
igualmente só, que tentava chamar a atenção de uma das garçonetes, mas era fragorosamente ignorado pela
bela serviçal que havia recebido ordens expressas de se limitar à sua função e se abster de qualquer contato
com a platéia. Ruivas... Ou chamam a atenção ou chamam a atenção.
Com precisão absoluta, as voluptuosas serviçais deslizam rapidamente colocando água mineral nas mesas,
algumas taças de vinho branco ou whisky. Para Igor aquilo só podia significar três coisas: era um jantar ou
uma degustação de alto nível ou algum tipo de orgia coletiva que misturasse comida com atraentes jovens
vestidas de criadas francesas. Se envolvesse putaria, estava determinado a pedir o divórcio assim que
chegasse em casa.
Mas ficaria olhando.
* * * * *

Alguém pega o microfone.


Se levanta e se posiciona em frente da bancada com os apetrechos de cozinha.
Magro, uns 50 anos, entradas avançando pelo crânio adentro.
Aqui, em nosso pequeno universo paralelo, ele se chama James. Lá fora, não importa.
- Todos com seus cadernos, tablets e gravadores para anotar ?
As bolsas se abrem e surgem cadernetas de anotações, tablets, palmtops (PDAs) e até um Newton, que é
uma espécie de tablet pré-histórico da Apple só que, quem tem não desgruda nunca, pois aquilo é um tanque,
pode cair no chão à vontade que não quebra. Ao contrário de qualquer “gadget” fabricado em 2018.
Quando o chefe de cerimônias vê que todos já estão com seus meios de anotação nas mãos, chama a
atração da noite:
- Esta noite, teremos aqui nosso amigo Louis que vai nos ensinar alguma coisa que ele vai dizer depois.
Riem.
Janice entra com um globo cheio de bolinhas com números.
- Mas, antes do chef da noite precisamos determinar quem serão os dois chefes da próxima semana.
James gira o globo, retira a esfera e grita o resultado:
- Margot ! Já pode nos adiantar o que você vai nos apresentar na quarta ?
- Não sei... Estou indecisa... Mas vai ficar bom. Eu garanto.
Ela aperta a mão do marido, que acaricia seus cabelos grisalhos em um terno momento de carinho
geriátrico.
James escolhe outra bola. Vê rapidamente na tabela ao lado que nome é o correspondente ao número.
- Bernardo !
E Bernardo se lavanta:
- Finalmente ! Já estava achando que este sorteio era uma mutreta !
James olha para o relógio. Sinaliza para Janice retirar o globo com as bolinhas e agarra novamente o
microfone:
- Já estamos meio atrasados... E hoje é dia do Louis !
Louis entra, com uma das serviçais empurrando um carrinho coberto com um pano.
Um pouco tímido, o chef recebe de James o microfone e se dirige à platéia:
- Este prato é um pouco complexo considerando a dificuldade de encontrar os ingredientes, mas quando
termina é uma delícia.
Inquieto, James arremata o microfone do chef do dia e ferozmente, indaga:
- Afinal, você vai preparar o quê ?
- Sopa de olhos humanos com pedaços de cérebro gratinados.
A platéia aplaude. Todos sabiam que era um prato exótico de sabor refinado e marcante. Como cada porção
leva pelo menos 8 olhos, fora necessário matar no mínimo 80 pessoas para o banquete daquela noite.
Louis realmente estava com vontade de impressionar !

* * * * *

Igor não entende bem o que estava ouvindo.


Não esboça reação.
Até a hora em que Janice levanta o pano do carrinho e Louis retira de uma panela uma cabeça masculina
em excelente estado, talvez decapitada naquela mesma tarde.
Ao lado da cena, Janice entediada, boceja.
E a platéia, excitada, toma nota de tudo para repetir a receita em casa.
- Os olhos, você pode ir coletando e guardando no freezer, mas o cérebro tem que ser fresquinho, se você vai
fazer o prato para o almoço, nove horas no máximo você já deve ter a cabeça decapitada na sua cozinha, ou
“espaço gourmet” se morar em prédio.

* * * * *

Apavorado, Igor tenta rastejar mentalmente até a moto.


Cada movimento é um espasmo de pânico e terror.
Mas que diabos era aquilo ? Um Clube Gourmet de canibais ?
Rastejantemente, o marido curioso alcança a moto.
Dá a partida.
Dispara em direção ao buraco feito na grade.
E tem a roda dianteira destruída por um tiro de escopeta.
- BUM !
Os dois seguranças correm e pulam sobre Igor que fora arremessado uns 3 metros a frente.
Como não tinham algemas, amarram o intruso com os cadarços de seu próprios sapatos.
Igor tenta gritar, leva um chute na cabeça e desfalece.
Lá dentro, o preparo da sopa prosseguiu normalmente. Em nenhum momento, os culinaristas perceberam o
que ocorrera fora de seu universo paralelo.
Pagavam e pagavam muito caro para isto. Ser parte de outro mundo. Ser membro de um clube tão seleto
que para entrar, só ser rico não bastava, era necessário uma habilidade especial no fogão. Mesmo que algum
dos “sócios” resolvesse deixar o Clube e contar para as autoridades, ninguém acreditaria. Empresários,
Deputados, um Bispo da Igreja Pluriuniversal, duas juízas lésbicas, um ex-embaixador soviético... Ninguém
acreditaria que pessoas deste nível pudessem estar envolvidas em tamanho ato de vilania. E, se alguém
acreditasse, seria morto. Existem meios para silenciar quem ousa olhar atrás dos véus do que existe além da
imaginação.

* * * * *

Igor nunca mais foi visto.


Ao faltar seguidamente ao serviço, a ausência provocou uma visita do pai à Janice, que, muito bem
orientada por “Eles”, disse que o marido a abandonara após uma briga e levara só a moto e uma mochila.
O pai de Igor chama a polícia que investiga e chega a lugar nenhum com em uma explicação vaga: “parece
abandono de lar, não há provas para dizer que foi outra coisa e o cara não quer ser encontrado”.
Os pais de Igor nunca mais procuraram Janice. Nem ela os ex-sogros.

* * * * *

Janice foi perdoada por “Eles”. Não tinha culpa, não havia qualquer ato de negligência de sua parte,
observara todas os protocolos de segurança que lhe impuseram, o erro foi que ninguém havia pensado na
possibilidade de rastreadores eletrônicos. Era vista como confiável, nem precisou se desculpar formalmente
ou algo assim.
Simplesmente continuou sua vidinha de sucrilhos, bolsas caras e videogame.
Vez ou outra, mantinha alguma vida social: noites de autógrafos, vernissages, leilões beneficientes... Ficava
na sua. Saia mais para não ficar sozinha em casa do que por qualquer outro motivo. O casamento com Igor a
havia traumatizado, mas estava aberta a um novo amor, se valesse a pena.
Sempre na defensiva, sempre emocionalmente enrolada sobre si mesma e sempre empunhando na mão
esquerda o indefectível chaveiro de plástico que balançava como um chocalho.
Ah... E o Igor ?
NHOC !
REFERÊNCIA VISUAL

Isto é um Apple Newton. É bem primitivo, se comparar com o iPad, mas tem uma grande vantagem: foi
projetado para suportar choques, ou seja: cai no chão e não quebra. Quem tem, funcionando, não vende.

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