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Mathieu Marion é, desde 2003, Wittgenstein é, com Frege e Russell, um dos fundadores da filosofia Neste pequeno ensaio, o leitor
professor da Universidade do analítica. Única obra publicada em vida, o Tractatus é o ponto de encontrará uma exposição
Québec em Montréal. Doutorou-se partida de sua filosofia. Como ele rapidamente rejeitou a maior parte tão completa e clara quanto
pela Universidade de Oxford em das teses dessa obra, costuma-se ignorá-la ou julgá-la a partir de sua possível do Tractatus logico-
1991, com uma tese (orientada “segunda filosofia”. Mas algumas delas, como aquelas relativas à philosophicus. As ideias centrais
por Michael Dummett) sobre dessa obra são apresentadas,
a filosofia da matemática de
matemática e à natureza da filosofia, ou a importante distinção entre MATHIEU MARION como de costume, por referência
Wittgenstein, publicada como o que se diz e o que se mostra, não foram abandonadas, enquanto LUDWIG WITTGENSTEIN ao pano de fundo incontornável
“Wittgenstein, Finitism, and the outras, como a definição da tautologia, foram adotadas de modo das reflexões de Frege e de
Foundations of Mathematics” definitivo na lógica matemática. Russell, mas sem perder de
(1998), e foi pesquisador nas Por outro lado, cabe ler essa primeira filosofia em seus próprios termos, INTRODUÇÃO AO vista sua unidade profunda,
universidades de St. Andrews antes de passar aos textos posteriores. Este ensaio apresenta os TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS fornecida pelo fio condutor da
(onde trabalhou com Crispin temas abordados por aquela obra não sob a ótica da segunda filosofia, distinção entre proposições
Wright) e de Boston (onde mas a partir de seu contexto, especialmente a partir dos trabalhos de dotadas de sentido e
trabalhou com Jaakko Hintikka) Frege e de Russell. Serão tratadas questões de ontologia, de análise contrassensos. Evitando a leitura
antes de ensinar na Universidade da linguagem, de lógica matemática e ética, bem como do estatuto “retrospectiva”que consiste
de Ottawa de 1994 a 2003. da metafísica. em ler o Tractatus a partir do
Organizou a publicação de “segundo Wittgenstein”, o
diversas coletâneas de artigos, autor situa o leitor no debate
números especiais de revistas, entre os comentadores, não
publicou dezenas de artigos apenas expondo as leituras
sobre filosofia da matemática e alternativas das diversas seções
LUDWIG WITTGENSTEIN
da lógica, dos quais boa parte da obra, mas também tomando
sobre Wittgenstein. claramente posição nesse
debate.
INTRODUÇÃO AO
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
COLEÇÃO FILOSOFIA E LINGUAGEM
Direção: Marcelo Carvalho, Bento Prado Neto e João Vergílio G. Cuter
Conselho Editorial: André Porto, Arley Moreno, Danilo Marcondes, David Stern, João
Carlos Salles, Luiz Carlos Pereira, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Mathieu Marion,
Mauro Engelmann, Philippe Narboux, Silvia Altmann
INTRODUÇÃO AO
TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
ISBN 978-85-391-0462-8
CDU 101
CDD 100
LUDWIG WITTGENSTEIN:
INTRODUÇÃO AO TRACTATUS LOGICO-PHILOSOPHICUS
Conselho Editorial
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Alessio Ferrara
© Mathieu Marion
Introdução 11
O campo de problemas:
da análise lógica da linguagem aos “problemas da vida” 15
A análise da proposição 55
Problemas ontológicos 69
Bibliografia 123
Ao lado de coisas boas e originais, meu livro,
o trat. log.-phil., tem também seu lado kitsch.
L. Wittgenstein
INTRODUÇÃO
E
ste estudo tem a ambição de introduzir o leitor ao Trac-
tatus Logico-Philosophicus1, único livro que Ludwig Wittgen-
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tenha publicado em vida. Engenheiro de formação, �����
Witt-
genstein inscreveu-se em Cambridge em 1912 para estudar filosofia
sob a orientação de Bertrand Russell. Em 1913, ele se isola às margens
de um fiorde norueguês para ali dar continuidade a suas reflexões. G.
E. Moore irá visitá-lo na primavera de 1914; Wittgenstein então lhe
dita notas destinadas a Russell (NL). Quando a guerra é declarada, em
1914, Wittgenstein alista-se no exército austríaco. Durante o período
que vai de sua estadia na Noruega até o final da guerra, Wittgenstein
preenche seis cadernos de notas, dos quais três foram conservados
(NB). Uma versão preliminar de seu livro, o Prototractatus (PT), será
12
do Tractatus, e, portanto, a apresentar uma imagem deformada
de sua primeira filosofia3.
Procurarei expor as ideias centrais do Tractatus nos termos mais
claros possíveis e também pressupor o mínimo possível por parte do
leitor. No entanto, a obra de Wittgenstein participa da renovação
que as questões e conceitos fundamentais da filosofia receberam sob
o impacto da lógica moderna – esquece-se com excessiva frequência
que a tradição metafísica desdobrou seu discurso sobre a base da
silogística, concebida como propedêutica; não é, portanto, possível
expor suas ideias a um leitor que não se armou previamente de algu-
mas noções elementares de lógica formal4.
Segundo a única nota de rodapé da obra, que acompanha a primeira
proposição, os números decimais associados a cada proposição indicam
seu “peso lógico”, isto é, sua importância na exposição. Wittgenstein
escreveu mais tarde que “a clareza e a nitidez do livro em seu conjunto”
repousam sobre essa numeração, sem a qual “ele só poderia aparecer
como uma barafunda ininteligível” 5. Infelizmente, Wittgenstein não
a respeita: de que proposições, por exemplo, o 2.01 ou ainda o 3.001
podem ser o comentário, uma vez que o 2.0 e o 3.00 não existem?
Além disso, o “peso lógico” de certas proposições não parece de modo
algum ser refletido por sua posição. Para nos atermos a um só exemplo,
aquilo que Wittgenstein chama seu “pensamento fundamental” vem
enunciado no 4.0312 ! Embora não devamos conceder muita atenção
a essa numeração, é preciso guardar no espírito a regra que quer que as
proposições 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7 ocupem uma posição privilegiada.
13
O CAMPO DE PROBLEMAS: DA ANÁLISE
LÓGICA DA LINGUAGEM AOS
“PROBLEMAS DA VIDA”
N
o prefácio do Tractatus, Wittgenstein anuncia de maneira
aparentemente imodesta ter “resolvido” os problemas da
filosofia “de vez”. Segundo ele, a formulação destes “re-
pousa sobre uma má compreensão da lógica de nossa linguagem”.
Essa ideia será retomada no texto em 4.003: “A maioria das questões
e proposições dos filósofos provém de não entendermos a lógica de
nossa linguagem”. Ainda no prefácio, Wittgenstein resume seu livro
nos seguintes termos: “Tudo o que se pode em geral dizer, pode-se
dizer claramente; e sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se
calar. O livro pretende, pois, traçar um limite para o pensar, ou me-
lhor – não para o pensar, mas para a expressão dos pensamentos”.
Com efeito, traçar um limite implica a existência de um além desse
limite, mas isso não pode se dar no caso do “pensável”, uma vez que
“deveríamos poder pensar os dois lados desse limite (deveríamos,
portanto, poder pensar o que não pode ser pensado)”. Em 4.114,
Wittgenstein diz também que a filosofia “deve limitar o pensável
e, com isso, o impensável” e que ela “deve limitar o impensável de
dentro, através do pensável”. Em suma, uma vez que não se pode
pensar o impensável, não se poderá traçar o limite senão no interior
da linguagem, delimitando o que pode ser dito (claramente, com
sentido); conseguir-se-á assim, portanto, delimitar o impensável a
partir de dentro, isto é, a partir do pensável, ou, o que dá no mes-
mo, por meio do que pode ser expresso. O objetivo principal da
obra é, portanto, o de traçar um “limite” para a “expressão dos pen-
samentos”, e o traçado desse limite só poderá ser realizado quando
a lógica de nossa linguagem tiver sido bem compreendida. É então
que os problemas da filosofia se revelarão não ser mais que o fruto
de uma “incompreensão da lógica da linguagem”.
Essas observações encerram duas ideias fundamentais. A primeira
encontra sua origem nos trabalhos de Frege e de Russell. É a ideia se-
gundo a qual uma boa compreensão da “lógica de nossa linguagem”
nos permite abordar de modo palpável os problemas filosóficos, e
também resolvê-los. Frege foi o primeiro a adotar essa abordagem,
que se costuma chamar de “virada linguística”, nos Fundamentos da
aritmética (1884). Após ter criticado, entre outras coisas, o uso da
noção de intuição a priori na análise da aritmética por Kant e a ten-
tativa de Mill de fundar as verdades aritméticas sobre generalizações
empíricas, Frege recorre a seu “princípio do contexto”: “Como nos
pode pois ser dado um número, se não podemos ter dele nenhuma
representação ou intuição? Apenas no contexto de uma proposição
as palavras significam algo. Importará portanto definir o sentido de
uma proposição onde ocorra um termo numérico”1. Uma vez que a
significação de uma expressão não pode ser determinada senão por
intermédio da significação dos enunciados nos quais ela comparece,
é da determinação da significação destes que provirá o esclarecimen-
to filosófico. Uma curta explicação do uso que Frege faz de sua má-
xima mostrará seu interesse. Segundo Frege, um enunciado do tipo
“Júpiter tem quatro luas”, no qual intervém um termo numérico,
versa sobre um conceito, o de “lua de Júpiter”, ao qual se atribui o
número quatro. Frege, no entanto, teve a preocupação de mostrar
que, na verdade, os termos numéricos agem no interior dos enun-
ciados não como uma espécie de predicado de predicado, mas como
16
termos singulares da forma “o número que pertence ao conceito ‘lua
de Júpiter’”. Uma vez que, na linguagem ordinária, os termos sin-
gulares (entre os quais os nomes próprios) denotam objetos, Frege
rejeita a ideia, sustentada por inúmeros filósofos antes dele, segundo
a qual os números são propriedades; trata-se antes de objetos abstra-
tos. Não é necessário discutir mais profundamente essa tese contro-
versa2, o que cabe guardar desse exemplo é a ideia de que um “ex-
curso” semântico pode fazer progredir a reflexão filosófica sobre um
dado problema. Embora não concordasse em muitos pontos com
Frege, Wittgenstein inseriu-se na esteira de sua “virada linguística”,
dizendo no prefácio que o limite será traçado “na linguagem” e, no
4.0031, que “Toda filosofia é ‘crítica da linguagem’”. Nesse trecho,
ele precisa o sentido de sua “crítica” negando todo parentesco entre
seu projeto e o do vienense Fritz Mauthner3 e fazendo, ao contrário,
alusão à teoria das descrições definidas de Russell: “O mérito de
Russell é ter mostrado que a forma lógica aparente da proposição
pode não ser sua forma lógica real” (4.0031).
O próprio Russell irá adotar sensivelmente a mesma atitude que
Frege, mas irá rejeitar, assim como Wittgenstein, seu platonismo da
significação e irá procurar conciliar essa “virada” com uma episte-
mologia empirista, no que ele não será seguido por Wittgenstein.
Voltarei a essa importante questão. Por enquanto, cabe assinalar a
teoria das descrições definidas (desenvolvida por Russell precisa-
mente por ocasião de sua crítica de Frege, no importante artigo
“On denoting”4) como um exemplo marcante do que Wittgenstein
entende por uma melhor “compreensão da lógica de nossa lingua-
gem”. Para Wittgenstein, essa teoria é o que há de “mais importante
17
na obra de Russell”5. Mais uma vez, uma curta explicação se
impõe.
O ponto de partida de Russell é outra tese de Frege, que diz
respeito aos enunciados como “Ulisses profundamente adormeci-
do foi desembarcado em Ítaca”6. Segundo um princípio semântico
sustentado por Frege, se uma expressão contém outra que não tem
denotação, então ela é, ela própria, desprovida de denotação7. Por-
tanto, se a expressão “Ulisses” não tem denotação, então o enun-
ciado “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em
Ítaca” não tem denotação. Além disso, Frege sustentava a tese, à
primeira vista estranha, de que os enunciados, a exemplo dos no-
mes, têm uma denotação, e que esta não é um estado de coisas,
mas o valor de verdade mesmo do enunciado; em outros termos, os
enunciados denotam um objeto (necessariamente “abstrato”): ou o
Verdadeiro ou o Falso. (Nesse sentido, os enunciados são análogos
aos nomes próprios). Isso equivale a dizer que o enunciado “Ulisses
profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”, por não
ter denotação, não é nem verdadeiro nem falso. Essa última tese
corresponde, decerto, à intuição que alguns podem ter acerca de
enunciados desse tipo. Mas Russell partilhava a opinião segundo
a qual a ausência de denotação da expressão “Ulisses” torna falso o
enunciado “Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado
em Ítaca”. Em seu artigo “On denoting”, ele mostra que a concepção
de Frege põe inúmeros problemas. O que dizer, para tomar um só
exemplo, do enunciado “Ulisses não existe”? Segundo Frege, este
não seria nem verdadeiro nem falso, o que realmente não é satisfa-
tório. Russell propõe então sua teoria das descrições definidas. Estas
se apresentam como sendo termos singulares, ao mesmo título que
os nomes próprios; o célebre exemplo de Russell sendo “O atual rei
da França”. Toda a teoria de Russell repousa sobre uma paráfrase dos
18
enunciados como “O atual rei da França é careca”, que deve ser lida:
“Há um e um único x que é o atual rei da França e esse x é careca”,
ou, em símbolos lógicos:
8 Ibid., cap. 9.
9 Utilizo, daqui para frente, quase que indiferentemente “proposição”
e “enunciado”. Utilizarei no entanto “proposição” quando for falar
especificamente das teses do Tractatus.
10 G. Frege, Kleine Schriften, Hildesheim, Georg Olms, p. 350.
19
4.002 – A linguagem usual é parte do organismo
humano, e não menos complicada que ele.
É humanamente impossível extrair dela, de modo
imediato, a lógica da linguagem.
A linguagem é um traje que disfarça o pensamento.
E, na verdade, de um modo tal que não se pode in-
ferir, da forma exterior do traje, a forma do pensa-
mento trajado; isso porque a forma exterior do traje
foi constituída segundo fins inteiramente diferentes
de tornar reconhecível a forma do corpo.
20
A segunda ideia fundamental contida nas observações citadas no iní-
cio dessa seção já se encontra nos Prinzipien der Mechanik do físico Hein-
rich Hertz, obra cuja Introdução, em particular, influenciou fortemente
Wittgenstein ao longo de toda sua carreira12. Ele a menciona duas vezes
no Tractatus (e várias vezes nos Notebooks), em especial no 4.04, onde
retoma de Hertz uma noção central de sua obra, a de “modelo”. Pode-
se resumir assim o empreendimento de Hertz: no século XIX, surgiram
alguns problemas no interior do quadro da mecânica newtoniana, pro-
blemas que estavam ligados ao uso do conceito de “força”; o que Hertz
propôs foi uma nova formalização da mecânica, livre de toda contradição
e com um poder de expressão que rivaliza com o das formulações prece-
dentes, mas que não recorria a essa noção problemática de “força”. Assim,
segundo Hertz, os problemas ligados a essa noção se “dissipam”, uma vez
que ele mostrou que podemos nos passar desse conceito graças a uma
formulação alternativa que não recorre a ele.
O Tractatus traz um exemplo desse método. Nas proposições
6.02-6.03 e 6.241, Wittgenstein define os números naturais e as ope-
rações aritméticas elementares que se efetuam sobre estes (a adição e a
multiplicação) em termos de “operações”. No 6.031, ele anuncia que
a teoria das classes é “inteiramente supérflua” na matemática. Voltarei
a essas questões na seção sobre a lógica e a aritmética. Por enquanto,
notemos que a noção de “classe” desempenha um papel central no
projeto “logicista” de Frege e de Russell de fundar a matemática em
um sistema axiomático de lógica. Infelizmente, a axiomática proposta
por Frege permitia a formulação de um paradoxo, descoberto por
Russell. Nos Principia Mathematica13, para evitar esse paradoxo, Rus-
sell empregou uma teoria dos tipos que engendra, por sua vez, proble-
mas de outra ordem. A observação de Wittgenstein no 6.031 só tem
sentido porque ele acaba de oferecer, nas proposições precedentes,
21
o que se poderia a rigor descrever como um “modelo” da aritmética
que não recorre à noção de classe. Mostrando que se pode oferecer
tal “modelo”, Wittgenstein produziu uma peça de filosofia da ciência
à la Hertz, e se pode afirmar sem hesitação que ele acreditava que as
dificuldades ligadas à noção de classe seriam assim “dissolvidas”.
Esses problemas de filosofia da matemática não podem ser consi-
derados como a totalidade daqueles que Wittgenstein, no prefácio,
havia dito que havia resolvido “de vez” e acerca dos quais ele anun-
cia que se deve, todas as contas feitas, guardar silêncio. Sobre o que,
então, se deve guardar o silêncio?
Pode-se dizer que Russell, excessivamente ocupado em desenvol-
ver a lógica – a teoria dos tipos – como utensílio para os fundamen-
tos da matemática, não havia prestado atenção suficiente à essência
mesma da lógica; Wittgenstein não se preocupará muito com as
questões mais técnicas, e seu livro versa antes sobre a essência da
lógica. Mas Wittgenstein também tratou ali de questões existenciais
no interior do quadro lógico e filosófico que ele desenvolveu na es-
teira dos trabalhos de Frege e de Russell. O próprio Wittgenstein irá
escrever em 1916: “Meu trabalho na verdade se desenvolveu a partir
dos fundamentos da lógica até a essência do mundo” (NB, p. 79).
Vale evocar aqui uma carta a Ludwig von Ficker, na qual Witt-
genstein diz, acerca do prefácio de sua obra, que
14 Sobre as questões dos limites e do silêncio, cf. F. Latraverse, “Ce que se taire
veut dire. Remarques sur la question du silence dans le Tractatus”, in Corps
écrit, n. 12, Paris, PUF, 1984, p. 39-54.
22
Como essa observação o indica, os verdadeiros problemas, para
Wittgenstein, são os da ética e ele pode afirmar, por outro lado, no
finalzinho do prefácio do Tractatus que, uma vez resolvidos todos
os problemas filosóficos, percebemos “como isso importa pouco”;
de fato, não se tocou nos verdadeiros problemas – os “problemas
da vida” (6.52) –, mas apenas se mostrou que eles não foram atin-
gidos. Seria portanto equivocado associar de forma rápida demais
o Tractatus com a cruzada antimetafísica do Círculo de Viena. De-
certo, as últimas proposições do Tractatus constituem uma crítica
da metafísica que será retomada pelos “positivistas” (dentre os quais
Carnap, sob as espécies de sua distinção entre o modo material e o
modo formal de expressão), mas essa crítica se aplica aos físicos tan-
to quanto aos filósofos profissionais que falam “para não dizer nada”
– Wittgenstein falará mais tarde em “tagarelice sobre a ética” – e ela
não toca o que Wittgenstein percebe como “o essencial do que está
em jogo” na ética (WWK, p. 69).
Pode-se evocar aqui uma carta de Wittgenstein a Engelmann (9 de
abril de 1917) para sustentar essa observação. Wittgenstein dizia ali,
acerca de um poema de Uhland do qual gostava, que “se somente não
tentamos exprimir o que é inexprimível, então nada se perde. Muito
pelo contrário, o inexprimível está – inexprimivelmente – contido no
que é expresso” (L, 209). O inexprimível é portanto indiretamente
comunicado naquilo que é expresso. (A ideia de uma comunicação
indireta é retomada de Kierkegaard.) Vê-se então que Wittgenstein
não queria rejeitar a ética como equivalente à metafísica, isto é, como
um discurso desprovido de sentido, mas antes traçar um limite para
a expressão dos pensamentos que mostrará que todo discurso filo-
sófico sobre a ética não é mais que “tagarelice”. Rejeitar o Tractatus
como uma obra “positivista” é não ver a admirável conjunção que
Wittgenstein opera entre uma crítica da metafísica pela via da análise
da linguagem e uma ética essencialmente estoica da renúncia, que ele
herda muito provavelmente pelo intermédio de Schopenhauer e que
lhe permite trazer uma solução para os “problemas da vida”.
O campo de problemas fundamentais do Tractatus está portanto
ligado ao traçado do limite para a expressão dos pensamentos. De
23
um lado, muitas questões de filosofia da linguagem, da lógica e da
matemática são resolvidas enquanto se traça esse limite. Esse traça-
do sustenta as críticas endereçadas, por exemplo, à teoria dos tipos
de Russell, mas o benefício desse limite é também, de outro lado,
a possibilidade de resolver problemas de ordem ética ou religiosa,
graças a uma hábil utilização da ética estoica. Em suma, Wittgen-
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stein procurou resolver de um só golpe todos os problemas que o
preocupavam.
A resolução dos problemas da filosofia passa portanto por uma
correta compreensão da lógica de nossa linguagem ou, o que parece
dar no mesmo, pelo traçado do limite para a “expressão dos pen-
samentos”, acerca do qual Wittgenstein nos diz que ele “só poderá
ser traçado na linguagem, e o que estiver além do limite será sim-
plesmente um contrassenso”. O limite servirá portanto de linha de
demarcação entre as proposições “dotadas de sentido” (sinnvoll) e o
“contrassenso” (Unsinn). Tal será nosso fio condutor. Assim, nem é
preciso dizer que cabe começar por explicitar as condições necessá-
rias para que uma proposição tenha um “sentido”. Para consegui-lo,
será preciso no entanto primeiro compreender a herança de Frege
e de Russell, cujas ideias constituem o ponto de partida da refle-
xão de Wittgenstein. Fato significativo, são os únicos autores que
ele menciona em seu prefácio. Após a publicação, nos anos 70, do
livro A Viena de Wittgenstein15, de Alan Janik e Stephen Toulmin,
muito se falou da importância do meio cultural vienense para o
desenvolvimento do pensamento de Wittgenstein. A chave da obra,
no entanto, encontra-se no traçado do limite para a expressão dos
pensamentos e é a herança de Frege e de Russell, e não a de Kraus,
Weininger, Schopenhauer e Kierkegaard que nos permite compre-
ender esse traçado. O papel deste últimos decerto não é negligenci-
ável, mas se situa em outro patamar da obra.
24
SIGNIFICAÇÃO, FIGURAÇÃO E JUÍZO
É
com Russell que Wittgenstein começou a terçar lanças em
filosofia, entre 1912 e 1914, antes de partir para a guerra e
escrever seu Tractatus. A reputação de Russell veio a se des-
vanecer no meio do século XX, de modo que não percebemos mais
hoje em dia a imensa importância de suas inovações e de seu papel
no desenvolvimento da filosofia nesse século. É preciso libertar-se
desses preconceitos ridículos; sua influência sobre a obra do jovem
Wittgenstein – que se referirá frequentemente a “nossos problemas”
(CL, p. 19, 110 e 111) ou a “nossa teoria” (CL., p. 21) – é sem igual,
a ponto de o Tractatus muitas vezes só se esclarecer como reação,
positiva ou negativa, às ideias de Russell1. Já mencionei a teoria das
26
análise completa da proposição” (3.25).) Um nome próprio tal
como “Bismarck” possui uma denotação (no caso, o objeto que foi a
pessoa de Bismarck) e um sentido, que Frege descreve sumariamen-
te como o “modo de apresentação” ou de “doação” da denotação. O
predicado “calça 43”, por sua vez, exprime um sentido, que não é
nada além da propriedade de calçar 43, e denota uma função, que é
definida da seguinte maneira. Toda função, segundo Frege, tem por
domínio o universo – ou seja, o conjunto de todos os objetos, con-
cretos ou abstratos – e cada função é definida pelo conjunto dos va-
lores que ela associa aos objetos do domínio. No caso de “___ calça
43”, o valor é sempre um valor de verdade, o Verdadeiro ou o Falso
(o que faz dessa função, segundo Frege, um conceito). Suponhamos
que Bismarck calçasse de fato 43, então a função “___ calça 43” tem
por valor “Verdadeiro” quando toma como argumento “Bismarck”.
Em último lugar, Frege considerava que o enunciado “Bismarck cal-
ça 43” exprime um sentido, que ele chama muito simplesmente o
“pensamento” (Gedanke) de que Bismarck calça 43, e denota seu
valor de verdade; este último, segundo Frege, é um dois seguintes
objetos: o Verdadeiro ou o Falso. O nome próprio e o enunciado
têm portanto o mesmo modo de significação, a denotação. A objeção
de Wittgenstein a essa tese é um dos fundamentos do Tractatus.
Russel consignou suas críticas às concepções de Frege em seu
artigo “On denotation”, no qual sua teoria das descrições (apresenta-
da na seção precedente) desempenha um papel muito importante.
Os termos singulares são descrições definidas ou nomes próprios e,
para Russell, que nisso segue a teoria de John Stuart Mill, os nomes
próprios não têm “sentido” que lhes seja associado: eles denotam
diretamente um objeto, um pouco como uma etiqueta. Se assim é,
então o problema de Frege, isto é, o da distinção entre “Héspero é
Fósforo” e “Héspero é Héspero”, permanece intocado, uma vez que
a solução de Frege é rejeitada. Com sua teoria das descrições defini-
das, Russell conseguia parafrasear os usos contextuais das descrições
definidas de tal modo que a expressão denotativa desaparecia, e sua
resposta ao problema de Frege consiste portanto em dizer que ao
menos um dos termos, “Héspero” ou “Fósforo”, deve na verdade
27
ser uma descrição definida disfarçada. Haveria então “nomes logi-
camente próprios” (logically proper names) que não são descrições
disfarçadas, mas não os conhecemos antes da análise. Como vere-
mos, essa ideia é particularmente importante em Wittgenstein, para
quem as noções de “nome” e de “objeto simples” são aparentadas
à de “nome logicamente próprio”. Reencontramos, por exemplo,
o “isto” (this), que é um dos egocentric particulars de Russell, nos
Notebooks: “O que parece nos ser dado a priori é o conceito do isto.
Idêntico ao conceito de objeto” (NB, p. 61).
Segundo Russell, os “nomes logicamente próprios” denotam de
modo imediato “particulares”. Constituem de certa forma as unida-
des fundamentais, os “átomos” da significação, de onde a expressão
“atomismo lógico”, que Russell irá utilizar para descrever sua filo-
sofia:
28
Minha concepção no Tractatus Logico-Philosophicus
era falsa [...] pois eu pensava também que a análise
lógica deveria trazer à luz coisas escondidas (como a
análise química e a análise física) (PG, p. 210).
29
sa oposição (assim como daquela entre as concepções de Russell
e as de Wittgenstein) serão tema das seções seguintes. Talvez seja
útil mencionar aqui uma das consequências mais importantes da
oposição de Wittgenstein a Frege. Para este último, os conectivos
lógicos tais como “e” ou “ou” são termos que denotam funções cujo
domínio é constituído por pares de valores de verdade e o contra-
domínio pelos valores Verdadeiro e Falso. Para Frege, portanto, os
conectivos lógicos são tão somente funções como quaisquer outras.
Mas Wittgenstein, em 5.44, irá rejeitar a tese segundo a qual as
funções de verdade são “funções materiais”. Na verdade, segundo
ele, os conectivos lógicos não são sequer funções; são “operações”
– as “operações de verdade” (Warheitsoperationen) –, ao passo que
as funções de verdade são o resultado da aplicação de operações
de verdade às proposições elementares (5.3-5.32). Wittgenstein irá
opor então à semântica “funcional” e conjuntista de Frege uma Ars
combinatoria leibniziana, uma combinatória6 de inspiração nitida-
mente mais construtivista, que será apresentada na seção sobre a
lógica e a aritmética.
Quando Wittgenstein encontra Russell em 1911, este acaba de
terminar a redação de um pequeno livro, Problemas de filosofia7, que
constitui sua primeira investida no campo da teoria do conheci-
mento. Esta, tal como a podemos reconstituir a partir dos diversos
textos da época, está essencialmente fundada em duas teses sobre
estas relações cognitivas que são o “conhecimento direto” ou “co-
nhecimento por familiaridade” (knowledge by acquaintance) e o ju-
ízo. Nos dois casos, um “ato” está implicado. A rigor, pode-se falar,
como Russell o faz por vezes, de “sujeito”, mas sob a condição de
lembrar que Russell compartilhava a tese de Hume (A Treatise on
Human Nature, book I, part IV, sec. VI) segundo a qual a intros-
pecção não nos oferece nunca uma apreensão de um “eu” isolado,
30
independente de seus atos. No caso do conhecimento por familia-
ridade, esse sujeito está em relação com um único objeto, e assim
a relação se dá entre dois termos, ao passo que no caso do juízo ele
está em relação com vários objetos, e a relação é dita “múltipla”8. O
objeto do conhecimento por familiaridade é o “sense-datum”, ex-
pressão introduzida por Moore, mas que Russell irá popularizar nos
Problemas de filosofia9. O sujeito está portanto em relação direta,
imediata com esses objetos, cujo estatuto permanecerá aliás obscuro
tanto para Moore quanto para Russell. (Estão eles na mente ou no
cérebro? Ou na superfície dos objetos?, etc.) Isso implica que não há
conhecimento direto (conhecimento por familiaridade) dos objetos
físicos, mas apenas um conhecimento indireto: eles estão de certa
forma por trás dos sense-data, com os quais estariam em relação cau-
sal. É o que Russell irá exprimir ao dizer: “A mesa real, se ela existe,
não é imediatamente conhecida por nós, mas deve ser o resultado de
uma inferência a partir daquilo que é imediatamente conhecido.”10
A teoria do conhecimento deve portanto mostrar como chegamos a
um conhecimento (knowledge) dos objetos que povoam o “mundo
exterior” – e das outras mentes (other minds) – com base naquilo
que conhecemos diretamente, isto é, com base nos sense-data, que
são particulares, e nos universais (propriedades e relações), que Rus-
sell irá também admitir como objetos do conhecimento por familia-
ridade. O princípio que Russell irá seguir a partir de 1913 será o de
substituir, sempre que possível, “construções lógicas” às entidades
das quais só se pode inferir a existência11.
A teoria do conhecimento de Russell, que pode ser considerada
um dos florões do empirismo britânico, está intimamente ligada
à sua filosofia da linguagem. Com efeito, ele já havia enunciado
nos Problemas de filosofia o “princípio fundamental” da análise da
31
proposição, segundo o qual: “Toda proposição que podemos com-
preender deve ser composta unicamente de constituintes dos quais
temos um conhecimento por familiaridade.”12 A palavra “análise”
deve ser aqui tomada no sentido tradicional da decomposição de
um todo em suas partes. É o programa da redução ao conhecimento
por familiaridade, que na verdade não é mais que a contraparte do
programa de “construção lógica” dos objetos do mundo exterior13.
Russel havia avançado uma distinção entre conhecimento “ por fa-
miliaridade” e conhecimento “por descrição”. Nenhum de nós tem
um conhecimento por familiaridade de Júlio César, só temos dele
um conhecimento por descrição do tipo “o homem que foi assassi-
nado por ocasião dos Idos de Março”, etc. Mas este conhecimento
se baseia em última instância em elementos dos quais temos um
conhecimento por familiaridade (o livro que eu li, etc.). O conhe-
cimento por descrição nos permite “ultrapassar os limites de nossa
experiência privada”14, mas ele deve desaparecer com a análise que
explicitará sua significação:
12 Ibid., p. 80-81. Esse princípio já está estabelecido desde 1905, no artigo “On
denoting”, op. cit., p. 55-56.
13 O que não deixa de lembrar a dualidade redução/constituição em Husserl.
Sobre os numerosos paralelos entre o programa de Russell e de Husserl, cf. J.
Hintikka, “The Phenomenological Dimension”, in B. Smith e D. Woodruff
Smith (org.), The Cambridge Companion to Husserl, Cambridge, Cambridge
University Press, 1995, p. 78-105.
14 B. Russell, The Problems of Philosophy, op. cit., p. 92.
32
ridade]. É uma descrição que temos na mente [...]
nossa afirmação não tem exatamente a significação
que parece ter, mas sim uma que envolve, em vez de
Júlio César, alguma descrição dele que é composta
unicamente de particulares e de universais dos quais
temos [conhecimento por familiaridade]15.
15 Ibid., p. 91-92
33
por notar que o objeto da crença de Otelo é uma proposição, “Des-
dêmona ama Cássio”, mas é também um “complexo” (na época, a
distinção entre proposição e complexo não estava clara para Rus-
sell), que podemos nomear “Desdêmona-está-em-relação-de-amor-
com-Cássio”, e simbolizar, a partir da forma “xRy” das relações bi-
nárias, do seguinte modo: “dAc” (com “d” para Desdêmona, “c”
para Cássio e “A” para o universal ou relação “amor”). Em 1904,
Russell publicou um longo artigo na revista Mind sobre a teoria
de Meinong16. Segundo Meinong, a todo juízo corresponde um
complexo, um “objetivo” (Objektiv)17: a um juízo verdadeiro corres-
ponde um objetivo subsistente, a um juízo falso, um objetivo que
não subsiste18. Russell ainda estava próximo do ponto de vista de
Meinong e concluía seu artigo dizendo que a verdade e a falsidade
são propriedades (de proposições) que não podem ser analisadas e
que não podemos fazer mais que apreender (apprehend), exatamen-
te como há rosas que são brancas e rosas que são vermelhas19. Mas
muito rapidamente ele veio a julgar tal posição “intolerável”20, em
particular porque ela não respeita o princípio de não-contradição,
e ele irá abandoná-la já no ano seguinte, em “On denoting”. Mais
tarde, ele irá escrever em “On the Nature of Truth and Falsehood”:
34
o verdadeiro e o falso. Sentimos que, quando nosso
juízo é verdadeiro, deve haver fora de nosso juízo uma
entidade que lhe “corresponde” de um modo ou de
outro, ao passo que quando nosso juízo é falso, ne-
nhuma entidade semelhante lhe corresponde21.
35
em 5.541-5.542, uma teoria do juízo que está longe de ser vaga e
incompleta, uma vez que ela pode até mesmo ser formalizada24� e
que se opõe de modo essencial à de Russell. O leitor desatento pode
não notar a alusão à “teoria de Russell” no 5.5422. Cumpre dizer
que se trata de uma alusão a um manuscrito de Russell, Theory of
Knowledge, de 1913, que só foi publicado em... 198425 – Russell
abandonou seu projeto sob o golpe de uma crítica de Wittgenstein
que o havia “paralisado” (CL, p. 29 e 33). Portanto, só a partir dessa
época foi possível compreender o sentido dessa alusão (assim como
as numerosas alusões nos Notebooks) e a importância das críticas
de Wittgenstein para a compreensão de seu próprio “pensamento
fundamental” (4.0312).
A análise de Russell tal como a apresentei defronta-se com obje-
ções elementares. Com efeito, deve-se poder explicar a diferença en-
tre “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio” e “Otelo crê que Cássio
ama Desdêmona”, ou seja, entre dAc e cAd. Quando a crença é con-
cebida como uma atitude proposicional, isto é, como uma relação
entre um sujeito e uma proposição, essa diferença não é problemá-
tica, mas no caso da teoria da relação múltipla, os elementos são os
mesmos e não estão em relação entre si mas em relação com Otelo.
Pior, nada na teoria permite evitar o contrassenso Adc ou “Otelo
crê que ama Desdêmona Cássio”, uma vez que o universal “amor”
já não comparece ali como uma relação que liga os elementos, mas
simplesmente como um objeto ligado pela relação de crença. Essa
questão irá preocupar no mais alto grau Wittgenstein – por aqui
voltamos à questão da limitação do contrassenso –, como o atesta
sua carta a Russell de 16 de janeiro de 1913:
36
Toda teoria dos tipos deve ser tornada supérflua por
uma teoria adequada do simbolismo. Se eu analiso
a proposição Sócrates é mortal em Sócrates, mor-
talidade e (∃x, y)ε1(x,y), preciso de uma teoria dos
tipos que me diga que “Mortalidade é Sócrates” é
um contrassenso porque se eu trato “Mortalidade”
como um nome próprio (o que acabo de fazer) não
há nada que me impeça de fazer a substituição ao
contrário... (CL, p. 24-25).
37
de “Otelo crê que Desdêmona ama Cássio”, a forma lógica seria a das
relações binárias xRy, da qual dAc seria uma instanciação. Em suma, a
análise desse enunciado teria aproximadamente a forma:
C = {O, d, A, c, xRy}
38
não estiver estipulado que (na terminologia dos Principia Mathema-
tica) d e c são indivíduos, que A é uma relação de primeira ordem
e que xRy é a forma das relações binárias de primeira ordem. Por
que não aceitar tais premissas? É que o juízo asserindo que d e c são
argumentos possíveis de uma relação binária de primeira ordem é
ele próprio um juízo de ordem superior, o que vai de encontro ao
espírito mesmo dos Principia Mathematica, cuja teoria só funciona
se os juízos de uma ordem dada estiverem fundados na obtenção
prévia dos juízos de ordem inferior28.
Uma das principais motivações do Tractatus, como vimos na
seção precedente, era a crítica da teoria dos tipos de Russell e, por-
tanto, de todo o projeto dos Principia Mathematica. Isso sobressai
claramente de uma carta de Ramsey, escrita por ocasião de sua visita
a Wittgenstein na Áustria em 1923, na qual ele narra que Wittgen-
��������
stein estava “um pouquinho irritado pelo fato de Russell preparar
uma nova edição dos Principia, pois ele acreditava ter mostrado a
Russell que [o próprio projeto dos Principia] estava de tal modo
equivocado que uma nova edição seria fútil”29. A principal crítica
aos Principia Mathematica, em 3.331-3.333, articula-se em torno
daquela que acabamos de ver: o erro de Russell “revela-se no fato de
ter precisado falar do significado dos sinais ao estabelecer as regras
notacionais” (3.331). Wittgenstein faz aqui uso da distinção a mais
original e a mais “fundamental” (NB, p. 130) de seu livro e talvez
mesmo de sua obra, entre “o que se diz” e “o que se mostra” (4.12-
4.1212): não se pode falar dos tipos, e os símbolos “mostram” (NL,
p. 108) aquilo que a teoria dos tipos procura mas não consegue
“dizer”. Voltarei a essa distinção na próxima seção.
Em sua Autobiography, Russell reproduz uma carta na qual ad-
mite que essa crítica foi de primeiríssima importância: “Vi que ele
tinha razão e vi que já não podia esperar realizar algum trabalho
39
fundamental em filosofia”30. Isto é evidentemente um exagero, mas
Russell abandonou sua teoria do juízo como relação múltipla e, des-
se modo, a esperança de dar um fundamento epistemológico a sua
teoria dos tipos. Em sua Philosophy of Logical Atomism de 1918, o
conhecimento por familiaridade das constantes lógicas terá também
desaparecido.
Wittgenstein precisará portanto livrar-se da teoria de Russell e
propor a sua, nos § 5.541-5.542:
40
a realidade o mesmo tipo de relação que as palavras” (NB, p. 130). São
portanto esses elementos do pensamento que formam um fato ‘p’, que é
coordenado com um fato p no mundo “por meio da coordenação de seus
objetos”. Voltarei à noção de “pensamento” na seção seguinte.
O que é do papel das “constantes lógicas”, “indefiníveis”, etc? Um
dos textos mais antigos que conheçamos de Wittgenstein, a saber,
uma das primeiras cartas de Wittgenstein a Russell, datada de 22 de
junho de 1912, já menciona a ideia-mestra segundo a qual “NÃO
há constantes lógicas” (CL, p. 14). De fato, os “simples” de Russell
são desprovidos de toda forma, portanto desprovidos de toda indi-
cação quanto à sua possibilidade de combinação com outros simples
para formar complexos, etc. Russell via-se portanto obrigado a fazer
intervir a forma como uma entidade distinta, cujo papel metafísico
seria, de certo modo, o de “colar” de modo apropriado os simples.
Russell era profundamente realista, tendo rejeitado as doutrinas de
Kant e de Green, e nunca teria aceitado que fosse o “sujeito” o res-
ponsável por essa atividade estruturante. Essas formas tornavam-se
portanto automaticamente entidades “platônicas”, com relação às
quais ele se viu obrigado (como Husserl) a postular que as percebe-
mos de um modo ou de outro. O último capítulo da primeira parte
da Theory of Knowledge contém um argumento revelador: ainda que
confessando que seria difícil dizer o que é um conhecimento por
familiaridade de formas abstratas tais como a forma xRy das relações
binárias, Russell considera que um tal conhecimento por familiari-
dade deve a despeito de tudo ocorrer, pois ele é pressuposto em toda
compreensão de enunciados tais como “Desdêmona ama Cássio”.
Tudo isso era inaceitável para Wittgenstein, cuja solução, como
mostrou David Pears31, consistiu, de certa forma, em deslocar as for-
41
mas abstratas de Russell de sua espécie de topos hyperouranos platônico
a fim de torná-las, ao modo aristotélico, imanentes. Esse deslocamen-
to tem duas consequências. Primeiro, os objetos devem possuir sua
própria forma, isto é, sua própria possibilidade de combinação:
42
LINGUAGEM, MUNDO E PENSAMENTO
O
limite que Wittgenstein se propõe traçar no prefácio do
Tractatus irá servir, como eu indiquei, de linha de demar-
cação entre as proposições dotadas de sentido e o “contras-
senso”. Cabe portanto procurar elucidar as condições necessárias à
posse do “sentido”. Pode-se dizer sem excessiva simplificação que o
Tractatus tem sua raiz na explicação do fato de que, para que uma
coisa – uma proposição, um desenho, uma fotografia, hieróglifos,
etc. – possa “estar por” algo na realidade, digamos uma situação,
essa coisa deve ter algum ponto comum com essa situação.
44
além da linguagem e do mundo, o “pensamento” (Gedanke)2. O
Tractatus não se reduz a uma reflexão sobre as relações entre a lin-
guagem e o mundo. Seria, com efeito, esquecer o “pensamento”,
que aparece em duas das proposições principais: “A figuração lógica
dos fatos é o pensamento” (3); “O pensamento é a proposição com
sentido” (4). Quando vejo, por exemplo, que um desenho represen-
ta um fato que eu observo, é porque ele possui elementos, digamos,
uma mesa, um vaso, maçãs vermelhas, e porque estes estão arruma-
dos do mesmo modo que os verdadeiros objetos da cena diante de
mim. Nos Notebooks, Wittgenstein irá dizer (o grifo é meu): “É pela
correspondência que estabeleço entre os componentes da figuração e
os objetos, e apenas por ela, que a figuração representa então um
estado de coisas e que ela é correta ou não” (NB, p. 33-34). O papel
do pensamento parece essencial e incontornável. Com efeito, se o
pensamento não tivesse nenhum papel a desempenhar, então uma
figuração deveria estar em condições de representar sua própria for-
ma de representação, mas isso não se dá (2.171-2.174). Do mesmo
modo, uma proposição não pode por si mesma enunciar o fato de
que ela partilha sua forma lógica com um estado de coisas. O que
leva Wittgenstein a enunciar a mais importante distinção de seu
livro3:
45
Para podermos representar a forma lógica, devería-
mos poder-nos instalar, com a proposição, fora da
lógica, quer dizer, fora do mundo.
4.121 – A proposição não pode representar a forma
lógica, esta forma se espelha na proposição.
[...]
A proposição mostra a forma lógica da realidade.
[...]
4.1212 – O que pode ser mostrado não pode ser dito.
46
posição. Isso se mostra, sim, no próprio sinal desse
objeto. (O nome mostra que designa um objeto; o
numeral, que designa um número, etc.)
47
ceptível (sinal escrito ou sonoro, etc.) como projeção da situação
possível” e, um pouco adiante, em 3.14, ele acrescenta: “O sinal
proposicional é um fato.” Wittgenstein distingue também entre “si-
nal” e “símbolo” da seguinte maneira: “O sinal é aquilo que é sensi-
velmente perceptível no símbolo” (3.32). Para reconhecer o símbolo
no sinal, é preciso “atentar para seu uso significativo” (3.326) e dois
símbolos podem portanto compartilhar o mesmo sinal (3.321). As-
sim, quando fala de “sinal proposicional”, Wittgenstein refere-se ao
aspecto físico do sinal, quer as marcas de tinta no papel, quer os sons
da linguagem falada. De outro lado, ele enuncia também no 3.11
que “o método de projeção é pensar o sentido da proposição”. As
observações 3.1 a 3.13 do Prototractatus mostram à saciedade que o
“método de projeção” é efetivamente “o modo de empregar o sinal
proposicional”:
48
Uma rápida observação terminológica impõe-se. Na escola de
Brentano, fala-se de bom grado de “intencionalidade” em vez de
“pensar o sentido da proposição”. De fato, não é inútil notar o pa-
ralelo com a noção de “intenção de significação” (Bedeutungsinten-
tion) na primeira das Investigações lógicas4. Não se trata obviamente
de instaurar uma leitura “fenomenológica” do Tractatus: cabe sim-
plesmente ver que Wittgenstein fala realmente de “intenção”5. Aliás,
ele irá utilizar esse vocábulo a partir de 1929, por exemplo nestes
trechos das Philosophische Bemerkungen:
49
a uma leitura “diádica” do Tractatus, onde apenas importa a relação
linguagem-mundo – o “grande espelho” do 5.511 –; estamos antes
diante de uma “tríade”: o sinal proposicional, a proposição e a si-
tuação. Essa “tríade” permite lançar um novo olhar sobre a questão
da prioridade; ela sugere antes, como o mostrou François Latraverse,
que não há nenhuma assimetria e, portanto, nenhuma primazia de
um elemento sobre o outro, uma vez que nenhum de seus elementos
desempenha um papel privilegiado8. Pelo contrário, esses três elementos
são inseparáveis uns dos outros e não podem ser pensados separadamente.
De modo inverso, Norman Malcolm sustenta em Nothing is
Hidden a tese de uma prioridade do pensamento9, fazendo uma
leitura dos Notebooks e do Tractatus que coloca Wittgenstein numa
tradição “ideacionista” que vai de John Locke (An Essay Concerning
Human Understanding, livro III, cap. 2, seção 1) até Jerry Fodor e
sua tese de um “sistema interno de representação” ou “linguagem
do pensamento”10. E é fato que Wittgenstein nos diz nos Notebooks:
50
3.03-3.32, ou em 5.61 ) no sentido de que não há “pensamento” ali
onde não há expressão clara na “linguagem”; isto é, observações que
estabelecem uma espécie de identidade entre o que é pensável e o
que podemos dizer. É realmente o sentido da última observação do
5.61: “O que não podemos pensar, não podemos pensar; tampouco
podemos dizer o que não podemos pensar.” Limitar-se a interpretar
o Tractatus procurando ver nele uma teoria da “linguagem do pen-
samento”, é procurar ler o Tractatus contra a “segunda” filosofia e
correr o risco de uma leitura parcial11. É verdade que a distinção en-
tre o aspecto físico e o aspecto intencional está presente no Tracta-
tus, sob a forma da distinção entre os dois elementos da proposição
que são o sinal proposicional e o método de projeção. Mas é preciso
guardar-se de ver ali mais do que isso: Wittgenstein não desenvolve
uma concepção “substancial” do pensamento no Tractatus: ali, o
pensamento é coextensivo à proposição dotada de sentido e não tem
propriedades separadas12. A intencionalidade não pode portanto
ser “reduzida” a um processo do “pensar” que seria independente13.
O pensamento também não pode ser concebido como a fonte do
sentido, na medida em que Wittgenstein nega categoricamente a
existência de um “sujeito” no sentido forte do termo: “O sujeito que
pensa, representa, não existe” (5.631). É por isso que Wittgenstein
cuidará de distinguir seu projeto daquele da psicologia:
51
sencial para a filosofia da lógica? No mais das vezes,
eles só se emaranharam em investigações psicológi-
cas irrelevantes, e um perigo análogo existe também
no caso do meu método.
52
O que eu faço com as palavras da linguagem (na me-
dida em que as compreendo) é exatamente a mesma
coisa que eu faço com os sinais de um cálculo: eu
opero com elas (WWK, p. 169).
53
Uma das dimensões menos bem compreendidas do Tractatus é a
da distinção entre o que se poderia chamar o estático e o dinâmico.
Como mostrarei na seção sobre a ontologia, a do Tractatus é uma
ontologia dos “objetos simples” e dos “estados de coisas”, das “situ-
ações” e dos “fatos”; é uma ontologia do estático. Há decerto fatos
que são “pensamentos”; no entanto, vimos que há um “pensar” o
sentido da proposição, uma “projeção” do sinal proposicional, etc.
Em outros termos, há “atos”, manipulações ou “operações”, que não
são capturados na ontologia formal do Tractatus; o “pensar o senti-
do da proposição” é um ato cujo resultado é visto de modo estático
como um “pensamento”, um fato15.
54
A ANÁLISE DA PROPOSIÇÃO
E
m que consiste afinal esse “pensar o sentido da proposição”?
É a “análise” da proposição que nos fornecerá a resposta1.
Mais uma vez, a palavra “análise” deve ser tomada aqui no
sentido tradicional de decomposição de um todo em suas partes,
que Wittgenstein retoma dos Principles of Mathematics de Russell:
As proposições 3.2 a 3.22 nos dizem que tipo de coisa deve ser
uma proposição “completamente analisada” segundo Wittgenstein:
podemos conceber uma proposição na qual “o pensamento pode
toma como exemplo a análise do espaço em pontos, o que será criticado por
Wittgenstein, cf. (NL, p. 93).
3 Para Leibniz, no entanto, o complexo ou composto não é mais que um
“amontoado ou aggregatum de simples”. Cf. G. W. Leibniz, La monadologie,
Ed. De E. Boutroux, Paris, Delagrave, 1978, p. 141-142. Para Wittgenstein,
os complexos não podem ser apenas um “amontoado”, mas devem ser
estruturados.
4 A. Maslow, A Study of Wittgenstein’s Tractatus, Los Angeles, University of
California Press, 1961, p. 38-40; E. Stenius, Wittgenstein’s Tractatus, op. cit.,
p. 84-85.
56
ser expresso de tal modo que os objetos do pensamento correspon-
dam aos elementos do sinal proposicional” (3.2). Esses elementos
do sinal proposicional são chamados “sinais simples” (3.201) e são
“nomes” (3.202) que significam (bedeuten) (3.203) ou “substituem”
(vertreten) (3.22) o objeto, ao passo que a configuração dos sinais
simples na proposição corresponde à configuração dos objetos na
situação (Sachlage) (3.21). A proposição deverá possuir o mesmo
número de elementos, isto é, a mesma “multiplicidade lógica” (a
expressão é de Hertz) que a situação que ela representa (4.04). Tal
proposição é dita “completamente analisada” (3.201).
Infelizmente, Wittgenstein não fornece, em seus textos, ne-
nhum exemplo. Na verdade, seus Notebooks mostram à sacieda-
de que ele não tem nenhum caso particular em mente. A falta
de clareza nesse assunto está na origem de diversos problemas
de interpretação. Wittgenstein só reflete sobre as condições de
possibilidade da análise da proposição; essa reflexão dá assim
ao projeto de Wittgenstein uma coloração kantiana 5. Os se-
5 Desde o livro de Stenius (Wittgenstein’s Tractatus, op. cit., cap. XI), muito se
falou dos paralelos entre Wittgenstein e Kant. Na verdade, estes se resumem
essencialmente ao fato de que esses dois filósofos querem limitar as esferas
da ciência (4.113) e da filosofia, esta última sendo concebida como uma
“atividade” que tem por objetivo limitar os excessos da metafísica (4.112,
6.53). Não se deve no entanto esquecer que a crítica da metafísica em
Wittgenstein pode ser vista como procedendo em linhagem direta da tradição
vienense de filosofia da ciência, de Carl Menger a Ludwig Boltzmann, que
não é muito “kantiana”, e não se deve exagerar tais paralelos em detrimento
dos aspectos francamente antikantianos do pensamento de Wittgenstein – de
sua ontologia realista à sua ética estoica. Cf. H. Visser, “Wittgenstein as a
Non-Kantian Philosopher”, in E. Morscher e R. Stranzinger (org.), Ethics,
Foundations, Problems, and Applications, Viena, Hölder-Pichler-Tempsky,
1981, p. 399-405. Jaako Hintikka também notou um aspecto kantiano
em Wittgenstein, vinculado à sua concepção da linguagem como meio
universal, segundo a qual não se pode “sair” da linguagem para dela falar “de
fora”. Wittgenstein dizia, ele próprio: “O limite da linguagem mostra-se na
impossibilidade de descrever o fato que corresponde a uma proposição (que
é sua tradução) sem, justamente, repetir a proposição. (Defrontamo-nos aqui
57
guintes trechos dos Notebooks dão uma ideia das reflexões de
Wittgenstein:
58
Algumas linhas adiante, Wittgenstein irá responder pela negati-
va, uma vez que, a seu ver, “o mundo deve ser justamente o que ele
é, ele deve ser determinado” (NB, p. 62). Essa intuição metafísica –
pois só pode se tratar disso – vai se revelar muito importante, uma
vez que ela implica que o sentido seja “determinado”: “a exigência
das coisas simples é a exigência da determinação do sentido” (NB.,
p. 63) e (3.23). Que o mundo seja “determinado”, Wittgenstein irá
exprimi-lo desde as primeiras frases do Tractatus:
59
sidade é lógica –, percebe que as proposições versando sobre graus
de qualidades (cores) devem fazer intervir números já no nível das
proposições elementares e que isso quer dizer que essas proposições
se excluem mutuamente, que elas não são independentes (SRLF, p.
33)7. Uma vez repudiada a independência lógica das proposições ele-
mentares, é toda a concepção da análise do Tractatus que irá desabar.
A análise deve assim terminar em um nível no qual os elementos
são apenas os simples. Estes últimos são portanto postulados como
condição de possibilidade da análise, que assumirá as seguintes fei-
ções: uma proposição complexa deve ser decomposta em “propo-
sições elementares, que consistem em nomes em ligação imediata”
(4.221, 5.5562); uma proposição elementar é um “encadeamento”
de nomes (4.22, 5.55). (Várias proposições elementares serão com-
postas numa proposição complexa, por vezes chamada “molecular”,
com a ajuda dos conectivos lógicos).
Os nomes “estão por” objetos (3.22), substituem-nos, mas po-
deriam os objetos em questão ser complexos, ou devem eles ser
“simples”? Wittgenstein irá se opor a Russell acerca dessa questão
aparentemente anódina ao desenvolver um argumento do qual já
se disse ser o mais importante do Tractatus8. Ambos utilizam como
exemplo de objeto complexo um objeto com três partes, a, R e b, tal
que a mantém a relação R com b. Como vimos, Russell chama um
complexo desse tipo “a-mantém-a-relação-R-com-b”9.
Em 2.0201, Wittgenstein escreve:
60
(cf. NL, 93 e 101). Nos Notebooks, Wittgenstein havia proposto
a seguinte definição:
61
“Ulisses profundamente adormecido foi desembarcado em Ítaca”
não tem valor de verdade. Para Wittgenstein, o fato de que ela pode
ser verdadeira ou falsa é uma propriedade essencial da proposição.
Eis por que ele apreciava a teoria das descrições definidas de Russell,
que permitia dar conta de proposições contendo expressões não de-
notativas como sendo falsas. A análise dos complexos de Wittgen-
��������
stein tem consequências inteiramente similares: se [aRb] não existe,
então a descrição “aRb” na definição que reproduzimos acima não
afigura nada. Portanto, segundo essa definição, φ[aRb] é falso. É o
que ele indica em 3.24: “A proposição em que se fala de um com-
plexo será, caso ele não exista, não um contrassenso (unsinnig), mas
simplesmente falsa”. Wittgenstein irá confessar ele próprio poste-
riormente que ele tinha em mente “algo do mesmo tipo que a de-
finição oferecida por Russell para o artigo definido” (PG., p. 211).
No entanto, essa concepção da análise já não é a de Russell. Com
efeito, as descrições definidas de Russell são símbolos incompletos,
que não podem ser inexatos como em 3.24. Em “A vassoura encon-
tra-se no canto”, a análise de Russell consiste em deslocar “vassoura”
da posição de sujeito para a de predicado, o que daria algo como :
62
eu não queira dizer que “relógio” é um complexo que contém engre-
nagens, etc. Wittgenstein abordou essa questão nos seus Notebooks:
63
pel, então entrará em jogo na proposição uma gene-
ralização, cujas formas fundamentais, na medida em
que elas nos são dadas, serão completamente determi-
nadas (NB, p. 63-64).
64
a tese segundo a qual se trata na verdade de uma “tríade” e que não
há nenhuma prioridade de um dos elementos sobre os outros. A tese
“realista” segundo a qual o mundo impõe sua estrutura, sustentada,
por exemplo, por Pears e por Malcolm, não deixa de ter bases textu-
ais – pode-se pensar, por exemplo, nas observações de Wittgenstein
em Some remarks on logical form sobre a necessidade de “uma inves-
tigação lógica versando sobre os próprios fenômenos” (SRLF, 30) –,
mas permanece por si mesma difícil de compreender, pois podemos
nos perguntar em que consistiria uma investigação de verdades ló-
gicas no mundo. E, quando Malcolm afirma que “a sintaxe de um
nome é derivada do objeto”11, temos o direito de perguntar o que
ele entende por “ser derivada do objeto”. Além disso, essa tese vai de
encontro ao fato inegável de que Wittgenstein insiste na autonomia
da lógica: “A lógica deve cuidar de si mesma” (5.473).
Mais difícil de ser refutada é a ideia de que somos nós que, por
meio da linguagem, atribuímos uma forma ao mundo. Essa inter-
pretação, por vezes qualificada de “antirealista”, foi defendida por
Hidé Ishiguro12. A seu ver, há prioridade da sintaxe no sentido de
que um símbolo não pode denotar um objeto estável sem ter um
uso estável13 e de que a identidade do objeto só pode ser deter-
minada por meio da determinação do sentido das proposições nas
quais ele comparece; os nomes não são portanto mais que dummy
names14. Apoiando-se na retomada do princípio de contexto de Fre-
ge em 3.3, onde vem dito que “é só no contexto da proposição que
um nome tem significado”, Ishiguro considera, na contramão da
tese realista, que não se pode sair em busca de um objeto, isto é, da
denotação de um nome simples, independentemente do uso deste
último em proposições. Essa crítica no entanto erra seu alvo, uma
vez que os nomes simples só aparecem no momento em que a pro-
65
posição é “completamente analisada” (2.021 e 3.2) : portanto, está
fora de questão de partir da proposição não analisada para, depois,
procurar a denotação dos nomes simples. Por outro lado, não se
deve subestimar o fato de que a sintaxe da linguagem deve refle-
tir as possibilidades combinatórias dos objetos; do mesmo modo,
essa leitura não dá conta do fato de que os objetos são a substância
do mundo (2.021), eles são o que subsiste (2.024): a substância é
“forma e conteúdo” (2.025). Brian McGuinness, que subscreve a in-
terpretação de Ishiguro15, chega mesmo a dizer que os objetos estão
“para além da existência” (beyond being) e que é um engano acredi-
tar que Wittgenstein foi realista a seu respeito16. Decerto, Wittgen-
��������
stein não pode “dizer” que um objeto “existe”, pois isso equivaleria
a transgredir a distinção entre “o que se mostra” e “o que se diz”,
mas sua existência vem a ser implicitamente reconhecida pelo fato
de que “só havendo objetos pode haver uma forma fixa do mundo”
(2.026; cf. 2.023): uma vez que o mundo tem uma forma fixa, os
objetos devem portanto existir! Aliás, se não existissem, então não
seria possível formar qualquer figuração, seja verdadeira ou falsa, do
mundo (2.0212).
É preciso que os significados dos sinais simples “nos sejam expli-
cados para que os entendamos” (4.026), e isso só pode ser feito por
“elucidações”:
66
tos simples e as correlações seriam “como que as antenas [...] com
as quais [a figuração] toca a realidade” (2.1515). Isso implicaria no
entanto que possamos antes obter a significação dos nomes para
depois compreender as proposições nas quais eles comparecem17. A
noção de elucidação é um tanto aparentada à de Russell, no *1 dos
Principia Mathematica:
17 A esse respeito, Ishiguro tem razão, as elucidações não podem ser definições
ostensivas; cf. H. Ishiguro, “Use and Reference of Names”, op. cit., p. 33.
No entanto, ela considera as elucidações como proposições que especificam
as propriedades internas dos objetos, o que não pode ser o caso, pois isso
implicaria o uso de um conceito formal como se se tratasse de um conceito
material. Além do mais, isso implicaria que toda proposição fosse uma
elucidação de seus constituintes.
18 A. N. Whitehead e B. Russell, Principia Mathematica, op. cit., vol. 1, p. 91.
67
PROBLEMAS ONTOLÓGICOS
R
aciocinar na ausência de exemplos é um defeito infelizmente
muito disseminado na filosofia, do qual Wittgenstein não
escapa: ele não avança nenhum exemplo de análise “com-
pleta”. O resultado disso é uma falta de clareza em suas teses e em
sua terminologia – encontram-se mesmo algumas incoerências me-
nores1. Essa obscuridade está na origem de diversos problemas de
interpretação, tanto acerca dos complexos quanto dos simples; exa-
minarei alguns desses problemas na presente seção.
Norman Malcolm relata a seguinte conversa, de 1949:
1 Cf., por exemplo, a incoerência encontrada por Fogelin em 2.04, 2.06 e 2.063.
Tomadas conjuntamente, essas observações implicam que a totalidade dos
estados de coisas existentes é equivalente ao conjunto formado pela existência
e pela inexistência de estados de coisas. Cf. R. Fogelin, Wittgenstein, 2ª ed.,
Londres, Routledge, 1987, p.13.
lógico e que não era tarefa do lógico decidir se essa
coisa é uma coisa simples ou um complexo, isso sen-
do uma questão puramente empírica2!
70
mente entre Russell e Meinong. Ele guarda da crítica de Meinong
por Russell a ideia de que a tese segundo a qual a uma proposição
verdadeira corresponde um objetivo subsistente e a uma proposição
falsa corresponde um objetivo não subsistente é indefensável, pois o
princípio de não-contradição não é então mais respeitado, uma vez
que algo corresponde a toda proposição; para Wittgenstein, assim
como para Russell, é preciso poder dizer que a uma proposição ver-
dadeira corresponde algo e que nada corresponde a uma proposição
falsa. Mas Wittgenstein não pode seguir Russell na via em que este
se engajou, a via da teoria do conhecimento: vimos que ele rejeita a
teoria do juízo como relação múltipla e a necessidade de um conhe-
cimento por familiaridade da forma lógica. A indecisão de Wittgen-
��������
stein é palpável em seus Notebooks, no outono de 1914:
4 A tradução desses termos em inglês fez correr muita tinta. Cf. a discussão
detalhada por Max Black já em 1964, em A Companion to Wittgenstein’s
Tractatus, op. cit., p. 39-45. As opiniões, mais uma vez, estão divididas;
71
diferença entre Tatsache e Sachverhalt, Wittgenstein respondeu:
72
se deve esquecer que ele é atômico, uma vez que ele não é o produto
de fatos mais simples. Se uma proposição elementar é falsa, então a
não-existência (nichtbestehen) de um Sachverhalt é um fato negativo
(atômico). Mas as proposições elementares não podem afigurar ape-
nas fatos positivos (atômicos), pois seriam então todas verdadeiras.
É preciso portanto introduzir uma outra classe de entidades que
possam ser representadas pelas proposições elementares indepen-
dentemente de seu valor de verdade: é esse o papel desempenhado
pelas situações (Sachlagen). Estas devem portanto ser identificadas
com a possibilidade da existência ou da não-existência dos estados
de coisas, isto é, com a possibilidade de fatos positivos ou negativos.
(Wittgenstein se aproxima portanto em última instância dos “obje-
tivos” de Meinong...)
Muitos se perguntarão por que Wittgenstein introduziu as situ-
ações, se ele já tinha os fatos positivos e negativos como “verifica-
dores” (truth-makers)6. É preciso notar de início que ele distingue
“afigurar” (abbilden) e “representar” (darstellen): uma proposição
“afigura” um fato ou a realidade, mas “representa” uma situação.
Essa diferença é particularmente visível no 2.201: “A figuração afi-
gura (abbildet) a realidade ao representar (darstellt) uma possibilida-
de de existência ou inexistência de estados de coisas.” Ao introduzir
assim as “situações”, Wittgenstein resolve o outro problema que ele
tinha em vista: as proposições, sendo a figuração de uma situação,
“representam” seu sentido (2.221) independentemente de seu va-
lor de verdade (2.22). Retomando a metáfora dos Notebooks, eis
aí a “sombra” que a figuração projeta sobre o mundo (NB, p. 27 e
30)7. A projeção dessa “sombra” é também o “pensar o sentido da
73
proposição” do 3.11, que vimos na seção sobre linguagem, mundo
e pensamento.
De outro lado, as situações permitem introduzir a noção de “es-
paço lógico”: “A figuração representa (vorstellt) a situação no espaço
lógico, a existência e inexistência de estados de coisas” (2.11). É o
espaço lógico que irá permitir por sua vez a elaboração da combina-
tória das tabelas de verdade8.
Outro problema espinhoso é o do estatuto “categorial” dos
“objetos simples”. A escolástica distingue entre os particulares e os
universais (que são as propriedades e as relações). Podemos por-
tanto nos colocar a pergunta: seriam os “objetos simples” tão so-
mente particulares ou Wittgenstein admite também os universais
como “simples”? Em outros termos, o Tractatus é de inspiração
nominalista ou realista9? Os Notebooks e as inúmeras observações
74
sobre essa questão em 1929 mostram que Wittgenstein admitia
propriedades e relações como objetos. Nos Notebooks, encontra-
mos inúmeros trechos em que Wittgenstein diz explicitamente
que “Relações, propriedades, etc, são também objetos” (NB, p. 61).
Por exemplo:
75
Poder-se-ia pensar – e eu mesmo pensava outrora
– que um enunciado que exprime o grau de uma
qualidade seria analisável em um produto lógico de
enunciados quantitativos simples e em um enuncia-
do suplementar que os completasse (SRLF, p. 32).
Sem entrar nos detalhes desse trecho, cabe reconhecer que �����
Witt-
genstein ali enuncia claramente que uma propriedade – a saber, a
“qualidade” da qual falam os “enunciados quantitativos simples” –
entra na composição das proposições elementares. Além disso, ao
dizer: “Eu mesmo pensava outrora”, Wittgenstein só pode estar se
referindo ao Tractatus!
No interior do Tractatus, há vários trechos que se prestam a dis-
cussão. Só examinarei alguns. Em primeiro lugar, o 3.1432, no qual
Copi se apoia10:
76
Seja como for, nada proíbe à análise de terminar em três objetos
a, R, b que se mantêm juntos como os elos de uma corrente (2.03).
Por outro lado, outros trechos fornecem um apoio sem reserva para
a tese realista, tais como 5.5261, onde Wittgenstein, ao usar a ex-
pressão “(∃x,φ)( φx)”, admite como variáveis ligadas pelos quantifi-
cadores, que mantêm “relações designativas com o mundo, como na
proposição não generalizada”, além das variáveis de indivíduos, tais
como x, as de propriedades, tais como φ.
Por outro lado, duas doutrinas fundamentais do Tractatus mili-
tam contra a abordagem nominalista. Em primeiro lugar, Wittgens-
tein opõe-se mais uma vez a Frege em 2.0121-2.0122. Para Frege,
uma função distingue-se de um objeto pelo fato de que este é “satu-
rado” e aquela é “insaturada”, o que significa que ela exige um obje-
to como argumento a fim de ser “saturada”. É o que Frege exprime
ao escrever a função com uma lacuna: “F( )”11. Para Wittgenstein,
“Não podemos pensar nenhum objeto fora de sua ligação com ou-
tros objetos” (2.0121); em termos fregianos, os objetos do Tracta-
tus são todos “insaturados”. A identificação destes com indivíduos
(saturados) é portanto impossível. Em segundo lugar, Wittgenstein
assevera em 1.1 que “o mundo é a totalidade dos fatos” e em 1.11
que “o mundo é determinado pelos fatos, e por serem todos os fa-
tos”. Como observa Maury, é estranhíssimo que os partidários da
interpretação nominalista não observem que um nominalista que
rejeita os universais não deveria no entanto ter simpatia particular
pelos fatos12.
Será que, como pensa Griffin13, a análise dos complexos em seus
simples proíbe nomes tais como [aRb] e, portanto, a possibilidade
de que relações sejam objetos? Wittgenstein não via as coisas desse
modo:
77
Minha dificuldade consiste certamente nisto: em to-
das as proposições que me ocorrem, nomes se apre-
sentam, mas que devem desaparecer sob o efeito de
uma análise ulterior. Sei que tal análise é possível,
mas não estou em condições de levá-la a cabo. A
despeito disso, aparentemente sei que, se a análi-
se fosse levada a cabo, o resultado deveria ser uma
proposição que ainda conteria nomes, relações, etc.
(NB, p. 61)
78
leitura “extensionalista” do Tractatus foi criticada de modo convin-
cente por André Maury e, na sua esteira, por G. H. von Wright16,
em um artigo aliás muito importante para o desenvolvimento das
leituras “ontológicas” do Tractatus17. Maury mostrou que a essência
da proposição “dotada de sentido” é de poder ser verdadeira e de
poder ser falsa, o que exprimimos, na esteira dos Notebooks, falando
de “bipolaridade” da proposição. A própria noção de significação
proposicional é portanto modal.
O único trecho do Tractatus no qual Wittgenstein oferece, de
passagem, exemplos de “objetos” acerca dos quais se pode concluir,
com base nos Notebooks, que se trata de “simples”, é o 2.0131:
79
de Hertz não são nem mesmo minima sensibilia20. É evidente que os
objetos do Tractatus não podem ser sense-data. Já mostrei, na seção
sobre a significação e o juízo, que Wittgenstein havia rejeitado a teoria
do juízo de Russell e que isso o havia de certo modo forçado a conce-
ber seus simples como possuindo sua forma, isto é, sua “possibilidade
combinatória”. Os sense-data de Russell não possuíam tais formas.
Por outro lado, Russell e Moore descreviam os sense-data como os
“objetos” da percepção e não os objetos reais que são as mesas, cadei-
ras, etc., dos quais Russell dizia, como vimos, que cumpre dar uma
“construção lógica”. Não há tal metafísica no Tractatus, onde não en-
contramos distinção entre conhecimento “direto” dos sense-data e co-
nhecimento “indireto” dos objetos físicos. Os objetos simples “cons-
tituem a substância do mundo” (2.021) e, ao contrário dos sense-data,
que são objetos efêmeros, são “fixos” e “subsistentes” (2.027-2.0271).
Mas os objetos simples não são dados na experiência imedia-
ta? Mais uma vez, o texto do Tractatus não nos ajuda em quase
nada. Os paralelos que eu explicitei entre o princípio da redu-
ção ao conhecimento por familiaridade de Russell e a análise, em
Wittgenstein�������������������������������������������������
, da proposição complexa em proposições elementa-
res, que consistem em um encadeamento de nomes que “estão
por” objetos, militam antes em favor de uma resposta positiva21:
ambos procuravam saber o que deve me ser dado para que eu possa
compreender a minha linguagem. Que os objetos devam me ser da-
dos em minha experiência imediata não implica necessariamente,
no entanto, que eles tenham uma existência subjetiva ou relativa
ao sujeito, como os objetos dos quais falam as diversas formas de
fenomenalismo.
80
Se Wittgenstein menciona ocasionalmente nos Notebooks os
pontos materiais de Hertz (NB, p. 67), sem por isso confundi-los
com seus objetos simples, ele não se priva de dizer:
81
Gostaria de acrescentar a isso três razões internas ao Tractatus para
acreditar que os objetos devem ser aproximados dos objetos do conheci-
mento por familiaridade de Russell. Em primeiro lugar, pode-se “conhe-
cer” (kennen) um objeto, o que só é possível se estes são fenomenais e não
hertzianos (os “pontos materiais” de Hertz não são minima sensibilia).
Com efeito, em 2.0123, Wittgenstein diz: “Se eu conheço (kenne) o
objeto, conheço também o conjunto de suas possibilidades de ocorrência
nos estados de coisas”. Quando ele se corresponde com C. K. Ogden
acerca da tradução inglesa de sua obra, Wittgenstein precisa o sentido de
seu emprego da palavra “kennen” dizendo “quero dizer apenas isso: eu o
conheço, mas não estou na obrigação de saber o que quer que seja acerca
dele”22; o que corresponde perfeitamente à definição do conhecimento
por familiaridade por Russell, como o mostrou Malcolm23.
Em segundo lugar, é decerto verdade que Wittgenstein descreve
seus objetos como “fixos”, mas não é por oposição a Russell, pois
a dimensão de variação não é temporal, mas lógica24. Com efeito,
não há para Wittgenstein “decurso do tempo” (6.3611) e a “exis-
tência” da qual ele fala é portanto “atemporal”25; os objetos simples
são, ao invés, concebidos como os constituintes a partir dos quais se
pode conceber outros mundos possíveis:
82
Em terceiro lugar, a identificação do mundo com “meu mundo”
no 5.62 é impossível se os objetos que constituem a substância do
mundo são concebidos como objetos físicos do tipo dos pontos ma-
teriais de Hertz. Com efeito, os aforismos 5.6, 5.62 e 5.63 enunciam:
83
A OPERAÇÃO: LÓGICA E ARITMÉTICA
A
“semântica” de Wittgenstein é uma combinatória1. Uma
proposição elementar só tem duas “possibilidades de verda-
de”, o acordo ou o desacordo com o mundo, o que depende
de que ocorra ou não um estado de coisas. Para n proposições ele-
mentares, há 2n combinações possíveis (4.27). Podemos representar
as “possibilidades de verdade” por um esquema como o seguinte:
p p q p q r
V V V V V V
F F V F V V
V F V F V
F F V V F
F F V
F V F
V F F
F F F
1 Por razões que Sébastien Gandon viu muito bem, não se pode falar de “semântica” em
Wittgenstein no sentido em que se a compreende hoje em dia. Cf. S. Gandon, Logique
et Langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 35 e segs. Tais simplificações são
inevitáveis quando se considera a brevidade do presente comentário.
Há possibilidades de acordo ou desacordo entre uma pro-
posição complexa e as possibilidades de verdade das n proposições
elementares das quais ela é composta (4.42); para duas proposições
elementares, haverá portanto 16 proposições complexas (elas são
apresentadas em 5.101). Com base nessas combinações, pode-se
determinar as funções de verdade e, portanto, as tabelas de ver-
dade, que são uma das inovações técnicas do livro. Wittgenstein
certamente não “inventou” as tabelas de verdade: pode-se fazê-las
remontar aos estoicos2 e o próprio Wittgenstein reconhecia que a
ideia já se encontrava em Frege3. Deve-se a ele, ao mesmo tempo
(1921) que a Post4, a ideia de um procedimento de decisão; dever-
se-ia mesmo falar, no caso de Wittgenstein, de um “procedimento
de construção”5. Sobretudo, deve-se a Wittgenstein a análise filo-
sófica dos dois “casos extremos” das condições de verdade, que são
as “tautologias” e as “contradições”. Estas são definidas, respectiva-
mente, como verdadeiras ou como falsas “para todas as possibilida-
des de verdade das proposições elementares” (4.46). A noção de tau-
tologia é uma das mais célebres da obra, uma vez que Wittgenstein
explicita por meio dela a essência das verdades lógicas (6.1):
2 B. Mates, Stoic Logic, Los Angeles, University of California Press, 1961, p. 44.
3 G. Frege, “Begriffschrift, a formula language, modeled upon that of arithmetic,
for pure thought”, in From Frege to Gödel – A Source Book in Mathematical
Logic 1879-1931, J. van Heijenoort org., Cambridge, Harvard University
Press, 1967, p. 1-82; §5, p. 13-15.
4 E. Post, “Introduction to a general theory of elementary propositions”, in
From Frege to Gödel – A Source Book…, op. cit. , p 264-283.
5 S. Gandon, Logique et langage. Études sur le premier Wittgenstein, op. cit., p. 42.
86
(Nada sei, p. ex., a respeito do tempo, quando sei
que chove ou não chove.)
4.462 – Tautologia e contradição não são figurações
da realidade. Não representam nenhuma situação
possível. Pois aquela admite toda situação possível,
esta não admite nenhuma. [...]
4. 463 – [...] A tautologia deixa à realidade todo
o – infinito – espaço lógico; a contradição preenche
todo o espaço lógico e não deixa nenhum ponto à
realidade. Por isso, nenhuma delas pode, de maneira
alguma, determinar a realidade.
6 Cf., por exemplo, R. Carnap, Der logische Aufbau der Welt, Hamburgo, Felix
Meiner, 1961, p. 149.
7 Cf. H. Han, Empirismus, Logik, Mathematik, Francoforte, Suhrkamp, 1988, p. 57.
8 Acerca dessa questão e das relações entre Carnap e Wittgenstein, cf. M.
Marion, “Carnap, lecteur de Wittgenstein; Wittgenstein, lecteur de Carnap”,
in F. Lepage, M. Paquette e F. Rivenc (org.), Carnap aujourd’hui, Montréal/
Paris, Bellarmin/Vrin, 2002, p. 87-113.
87
citar alguns exemplos) na teoria da inferência, que abordarei um
pouco adiante, e na definição das probabilidades9:
88
Essa definição situa-se na linhagem dos trabalhos de Bernouilli,
de Laplace e de Bolzano, e frequentemente se censurou Wittgen-
��������
stein���������������������������������������������������������������
por ter-se apoiado sobre um “princípio de indiferença” disfar-
çado, com sua tese da independência lógicas das proposições ele-
mentares (5.134)11:
89
1 / Se p é um enunciado e µ(p) sua medida, então
µ(p) é um número real, que nunca é negativo.
2 / Uma contradição tem medida 0.
3/ Se p e q são dois enunciados que são incompatí-
veis, então µ(p V q) = µ(p) + µ(q).
No simbolismo de Waismann:
90
“Só assim é possível a progressão de termo a termo em uma série
formal” (5.252), uma vez que, contrariamente àquilo que ocorre
com uma função, o resultado de uma aplicação da operação pode se
tornar a base de uma nova aplicação da operação.
Poderemos ver isso se examinarmos um exemplo como o da ope-
ração simbolizada por “O’ ξ” em 5.2521. O símbolo “O” é a variável
da operação como tal e, associado ao apóstrofo, indica o resultado da
aplicação da operação, ao passo que o símbolo “ξ” representa a base
à qual a operação é aplicada. O símbolo “O’ ξ” representa portanto o
resultado da aplicação da operação O a ξ. Se, por exemplo, escolher-
mos a como ponto de partida absoluto (o que significa que a não é
o resultado de nenhuma aplicação anterior da operação), então O’a
representa o resultado de uma primeira aplicação da operação. Esse
resultado pode servir, por sua vez, de base para uma segunda aplicação
da operação, cujo resultado será simbolizado “O’O’a”; o resultado de
“três aplicações sucessivas de «O’ ξ» será «O’O’O’a»” (5.2521). É assim
que a operação O engendra ou ordena por iteração a série formal:
[a, x, O’x]
17 O uso que Wittgenstein faz aqui do conceito de “variável” não corresponde àquele
de hoje em dia, pois é a expressão “[a, x, O’x]” como um todo que ele considera
como uma variável e não alguns de seus constituintes, tais como “a” ou “x”.
91
linguagem, mundo e pensamento, que a noção de operação estava
no fundamento tanto da lógica quanto da aritmética. Essa “variá-
vel” desempenha aqui um papel fundamental, uma vez que permite
estabelecer definições por indução, dentre as quais a forma geral da
proposição (6) que, entre outras coisas, revela como a proposição
pode “nos comunicar um novo sentido” (4.027). Esse simbolismo é
muito importante e merece ser esclarecido.
Como indiquei, para Wittgenstein as funções de verdade “são
resultados de operações que têm as proposições elementares como
bases” (5.234), essas operações (de verdade) sendo a negação, a adi-
ção lógica, a multiplicação lógica, etc. (5.2341) Wittgenstein intro-
duz em 5.5 a operação N de negação conjunta, isto é, o conectivo
cujo valor é o verdadeiro unicamente quando os dois membros são
falsos. A operação N é frequentemente comparada à barra de Sheffer
“|” da qual ela é uma generalização18:
p q p|q
V V F
F V F
V F F
F F V
92
valores que a variável ξ pode assumir e “N” a operação que consiste
em negá-los conjuntamente. Portanto, segundo 5.51, se:
= {p, q, r, s}
Então
93
Vê-se portanto que a forma geral da proposição é apenas um
caso particular da forma geral da operação e também, claro, que nos
dois casos se trata de variantes da “variável” [a, x, O’x] do 5.2522.
Essa forma geral da proposição deve portanto ser lida como segue:
a partir da base , que é o conjunto das proposições elementares,
obtemos, por aplicações sucessivas da operação N, todas as propo-
sições complexas. Após um número qualquer de aplicações da ope-
ração N, obtém-se o conjunto , a partir do qual se obtém, por
uma nova aplicação da operação N( ), etc. É o que Wittgenstein
exprimia em 5.3: “Todas as proposições são resultados de operações
de verdade com proposições elementares”, frase que devemos nos
guardar, como mostrei, de interpretar de forma excessivamente es-
trita como uma “tese de extensionalidade”.
Graças à forma geral da proposição 6, Wittgenstein completa o
argumento que sustenta sua tese sobre a essência da proposição. Com
efeito, tendo mostrado que as proposições elementares são figurações,
Wittgenstein só usa dois conectivos na definição da operação N, a
partir da qual, como ele demonstra, podemos obter todas as propo-
sições complexas21. Basta portanto definir as operações de negação e
de conjunção em termos de “sentido” e de “figuração”. A conjunção
é um caso simples, trata-se simplesmente de juntar duas figurações. A
negação como operação é definida em 5.2341: “A negação inverte o
sentido (Sinn) da proposição.” Nos Notebooks, Wittgenstein dizia da
proposição que ela é “bipolar”, isto é, que ela tem dois polos, o verda-
deiro e o falso. A inversão do sentido consistiria portanto na mudança
de polaridade, ao passo que a figuração permanece inalterada.
Cabe acessoriamente mostrar como eliminar as “constantes” que
não são definidas pela operação N, ou seja, o quantificador existen-
cial “∃xFx”, o quantificador universal “∀xFx” e a identidade “=”.
Como o indicam as notas de curso tomadas por Moore (M, p. 89 e
94
segs.) e uma observação feita a von Wright em 193922, os quantifi-
cadores são considerados equivalentes a conjunções ou disjunções
finitas ou infinitas23:
x = y ≡ ∀F(F(x)→F(y)).
95
Wittgenstein a reescreve:
∃x,yF(x,y).
∀x∃yFxy;
96
rece portanto reclamar implicitamente um procedimento de decisão
para o cálculo de predicados27:
97
ra a lógica como teoria da inferência (6.1224). Ele rejeita portanto
a ideia de que haja axiomas em lógica: “Todas as proposições da
lógicas têm os mesmos direitos. Não há, entre elas, o que seja es-
sencialmente lei básica ou proposição derivada” (6.127), e ele ataca
um aspecto crucial da concepção axiomática, a saber, a evidência
como único critério de reconhecimento da verdade dos axiomas: “é
notável que um pensador tão exato quanto Frege tenha recorrido
ao grau de evidência como critério da proposição lógica” (6.1271).
Já mostrei que, para Wittgenstein, as constantes lógicas não “estão
por” coisa alguma (4.0312); muito simplesmente, “não há ‘objetos
lógicos’, ‘constantes lógicas’ (no sentido de Frege e Russell)” (5.4)29.
Os sinais para as operações de verdade, que são capturadas pelas
tabelas de verdade, “&”, “V”, “¬”, etc., não são portanto senão
“pontuações” (5.4611). Nos fragmentos das Dictées de Wittgenstein
à Waismann et pour Schlick intitulados “A lógica de Russell” e “A in-
ferência”, Wittgenstein apresenta uma concepção da lógica segundo
a qual “os axiomas devem ser hipóteses” (D, p. 96) e segundo a qual
“em uma inferência, nunca se trata da verdade ou da falsidade dos
axiomas, mas, pelo contrário, os axiomas devem ser supostos” (D, p.
106). Todos esses elementos mostram que a concepção da lógica de
Wittgenstein na verdade está muito próxima, como o havia visto
G.-G. Granger30, da de G. Gentzen, isto é dos sistemas de dedução
natural, onde os conectivos lógicos são definidos em termos de atos
de prova31.
Wittgenstein também atacava, em 5.132, as regras de inferência:
“‘Leis da inferência’, às quais – como em Frege e Russell – cumpra
29 Sobre a noção de constante lógica, cf. M. Bourdeau, “La nature des constantes
logiques dans le Tractatus ”, Dialogue, vol. 32, 1993, p. 703-719.
30 G.-G. Granger, “Wittgenstein et la métalangue”, in Invitation à la lecture
de Wittgenstein, Aix-en-Provence, Alinéa, 1990, p. 159-171 ; p. 163.
Infelizmente, sustentei essa aproximação sem conhecer o texto de
Granger em M. Marion, “Qu’est-ce que l’inférence? Une relecture du
Tractatus logico-philosophicus”, op. cit.
31 G. Gentzen, Recherches sur la déduction logique, Paris PUF, 1955.
98
justificar as inferências, não têm sentido, e seriam supérfluas.” O
que ele critica aqui, não são propriamente falando as regras de infe-
rência, mas antes a mistura linguagem objeto/metalinguagem que
encontramos na concepção axiomática: para explicar a passagem de
um enunciado para outro em uma prova, devemos inscrever em
alguma parte da folha uma indicação da regra de inferência em con-
formidade com a qual essa passagem foi efetuada. Essas inscrições
estão no limbo, uma vez que a metalinguagem não é formalizada.
No Tractatus, a distinção dizer/mostrar permite evitar a postulação
de uma metalinguagem. (Notar-se-á, por outro lado, que a distin-
ção linguagem objeto/metalinguagem era desconhecida na época
em que Wittgenstein escreveu seu livro: ela aparece pela primeira
vez na introdução redigida por Russell!32) Para Wittgenstein, a infe-
rência deve ser literalmente feita diante de nossos olhos – a relação
interna entre as proposições mostra-se – e não há necessidade de
recorrer para tanto a um enunciado da regra de que teríamos de
seguir mentalmente o rastro. É a concepção da inferência dos Prin-
cipia Mathematica que é visada. Segundo Russell, “uma proposição
‘p’ é afirmada, e uma proposição ‘p implica q’ também, e daí se segue
que a proposição ‘q’ é afirmada.” Ele verte isso simbolicamente numa
mistura linguagem objeto/metalinguagem que lhe é própria, dizendo
que somos justificados por “ ” e por “ ” a escrever “ ”,
ao que ele acrescenta que é preferível escrever “ ”33. O sinal
de asserção “ ”, que Russell retoma aqui de Frege, é, para ����� Witt-
genstein, “logicamente desprovido de qualquer significado; apenas
indica, no caso de Frege (e Russell), que esses autores tomam como
verdadeiras as proposições por ele assinaladas” (4.442).
Gentzen mostrou como era possível formalizar a lógica sem
postular verdades lógicas, isto é, tão somente pela especificação das
regras de inferência. Apenas estas são consideradas primitivas, e o
reconhecimento de enunciados como sendo logicamente verdadei-
99
ros já não ocupa uma posição central. Wittgenstein também havia
visto muito claramente que, segundo sua concepção, o conjunto das
verdades lógicas não é mais que um subproduto da adoção das regras
de inferência:
100
definição da consequência lógica que Wittgenstein oferece em 5.12-
5.122 é um tanto vizinha daquela da teoria dos modelos:
35 Cf. R. Carnap, Logische Syntax der Sprache, Viena, Springer, 1934, p. 88 e segs.
36 A. Tarski, “Sobre o conceito de consequência lógica ”, in A concepção semântica
da verdade, C.A. Mortari e L.H.A. Dutra (orgs.), São Paulo, Unesp, 2007, p.
235-246; p. 243 .
37 G. Frege, Begriffschrift, op. cit.
101
a saber, a substituição da distinção sujeito/predicado pela distinção
função/argumento, que permite introduzir o instrumental da teoria
das funções na lógica, a invenção dos quantificadores e a introdução
da ideia de “sistema formal”. Esta última ideia é muito importan-
te: Frege concebe a lógica pelo modelo da axiomática, como acabo
de indicar. Desde a Conceitografia, Frege propõe desenvolver um
sistema de lógica formal a partir do qual poderemos deduzir todos
os teoremas da teoria elementar dos números. Isso é feito em duas
etapas. Em primeiro lugar, trata-se de desenvolver um sistema de
axiomas para os conectivos e os quantificadores. São os sistemas cuja
expressão completa será fornecida por Frege em seu Grundgesetze
der Arithmetik (1892-1902) e por Whitehead e Russell nos Principia
Mathematica (1910-1913). Trata-se, em seguida, de tomar uma teo-
ria axiomática da aritmética, tal como a aritmética de Peano (1881),
e de mostrar que se pode dar uma interpretação de seus conceitos
de base (e portanto de seus axiomas) no sistema de lógica formal.
Cabe depois mostrar que a todo teorema da aritmética corresponde
um teorema no interior do sistema formal e vice versa. Seria assim
efetuada uma redução da aritmética à lógica. Essa redução possui
algumas consequências filosóficas dignas de interesse. Ela mostra,
entre outras coisas, que a aritmética é tão “analítica” quanto a lógica
e não “sintética a priori”; podemos portanto nos passar dessa noção
tipicamente filosófica – pois que no fundo perfeitamente vazia –
que é a intuição a priori kantiana. Da forma mais breve possível, tal
é a essência do programa “logicista”.
Wittgenstein discordava dessa abordagem e suas críticas são inú-
meras. Elas parecem provir na maior parte de sua rejeição da noção
de “classe”, essencial para os sistemas de Frege e de Russell (não obs-
tante a no-class theory dos Principia Mathematica). Com efeito, estes
definiam, por exemplo, os números naturais com base nesse mode-
lo: o número dois é a classe de todas as classes de dois membros. O
sistema dos Grundgesetze der Arithmetik era no entanto falho, pois
continha, além do cálculo de predicados, axiomas que permitiam a
introdução da classe:
102
isto é, da classe de todas as classes x que não são membros de
si mesmas. (A classe dos cavalos, por exemplo, não é um cavalo
e, portanto, pertence a R). É a fonte do paradoxo de Russell: essa
classe R seria ela por sua vez membro de si mesma ou não? Ela só é
membro de si mesma se ela não é membro de si mesma, e se ela não
é membro de si mesma, então ela é membro de si mesma. Russell
havia desenvolvido sua teoria dos tipos com vistas a resolver esse
problema e levar a cabo o projeto logicista de Frege. Para Wittgen-
��������
stein, a teoria dos tipos não funciona, como vimos: o erro de Russell
“revela-se no fato de ter precisado falar do significado dos sinais ao
estabelecer as regras notacionais” (3.331). Por outro lado, ele acredi-
ta poder resolver do seguinte modo o paradoxo de Russell (mas ele
só o faz em sua versão “funcional”), evitando o recurso à teoria dos
tipos: “Uma função não pode ser seu próprio argumento, porque o
sinal de função já contém o protótipo (Urbild) de seu argumento
e ele não pode conter a si próprio” (3.333). Em suma, não pode
haver, para uma função proposicional F(x), a proposição F(F(x)), na
qual a função se tomaria como seu próprio argumento, pois F(x) é
da forma φ(x) e F(F(x)) é da forma ψ(φ(x)).
Wittgenstein fará diversas críticas mais pontuais, que não posso
discutir em detalhe, pois elas exigem um conhecimento mais apro-
fundado da lógica matemática. Retomando uma crítica de Poincaré,
ele acusa Frege e Russell, em 4.1273, de terem dado uma definição
circular da noção de relação “ancestral”; essa noção é fundamental
para a redução logicista da sequência dos números naturais38. Ele
rejeita o axioma do infinito dos Principia Mathematica, que enuncia
103
que há uma infinidade de objetos (indivíduos) de nível 1 na teoria
dos tipos39, porque se trata de uma tentativa de dizer o que não se
poderia senão mostrar pelo uso de uma “infinidade de nomes com
significados diferentes” (5.535). O axioma da redutibilidade enun-
cia que a toda função de ordem superior corresponde exatamente
uma função de primeira ordem, que é satisfeita por exatamente os
mesmos argumentos. Para Wittgenstein, esse axioma não é lógico,
mas empírico (6.1232-6.1233). Essa objeção revelou-se decisiva.
Todos os problemas provêm, segundo Wittgenstein, da própria
noção de classe, da qual precisamos nos livrar. Para fazê-lo, bas-
ta, como indiquei na seção sobre o campo de problemas, oferecer
uma “redução” da aritmética que não recorra à noção de classe, o
que Wittgenstein faz ao dar, em 6.02, uma definição da sequência
dos números naturais em termos de operações. O número dois, por
exemplo, é definido do modo mais geral possível em termos da du-
pla aplicação sucessiva de qualquer operação a qualquer base. Essa
definição, que não posso apresentar aqui, foi claramente exposta por
Lello Frascolla40. Essa definição justifica a denominação, em 6.021,
de “expoentes” de uma operação. Na verdade, a definição dos nú-
meros naturais por Wittgenstein prefigura a definição no cálculo λ
fornecida por Alonzo Church em 193241. Wittgenstein propõe em
seguida uma definição indutiva dos números naturais, com base no
modelo da “variável” de 5.2522:
[0, ξ, ξ+1].
104
ciar em 6.031: “A teoria das classes é, na matemática, inteiramente
supérflua”. Wittgenstein completa sua “redução” mostrando, em
6.421, como provar, em sua teoria das operações, teoremas arit-
méticos como 2X2=442. Contrariamente ao que dizia Max Black,
essa prova não é “excêntrica”43. Notar-se-á, no entanto, que o argu-
mento de Wittgenstein só funciona se houver “redução” das verdades
aritméticas às equações na “teoria” das operações. Lello Frascolla pro-
vou que esta só captura um fragmento do cálculo equacional44. Essa
concepção “equacional” da matemática é de um alcance fundacional
limitado; Russell e Ramsey farão esta censura a Wittgenstein45.
Uma das consequências da abordagem construtivista de ��������
Wittgen-
stein é sua rejeição da ideia de que possa haver estritamente falando
“enunciados” ou “proposições” na matemática. As proposições da ma-
temática não exprimem, portanto, nenhum pensamento (6.21), são
“pseudoproposições” (Scheinsätze) (6.2). A matemática só é composta
de algoritmos46, um pouco como um ábaco extremamente complexo:
105
A matemática é portanto constituída por equações, as provas
procedendo pelo método de substituição (6.2341-6.24) e o “essen-
cial, no caso da equação, é que ela não é necessária para mostrar
que as duas expressões ligadas pelo sinal de igualdade têm o mes-
mo significado (Bedeutung), já que isso se pode ver (ersehen) nessas
próprias duas expressões” (6.232); “sua correção é algo a ser visto
(einzusehen), sem que deva o que exprimem ser comparado com os
fatos quanto à sua correção” (6.2321).
Essa visão filosófica da matemática opõe-se à de um Frege, para
quem os enunciados aritméticos versam sobre objetos abstratos do
mesmo modo que enunciados sobre cadeiras e mesas versam sobre
objetos concretos. Cabe no entanto notar que, mais uma vez, Witt-
�����
genstein fala de “ver” a relação (interna) entre os termos ligados
pelo sinal de identidade (matemática, e não lógica47). A prova na
matemática, como a inferência lógica, é justificada por uma rela-
ção interna, que se mostra e que nós vemos. Mas, mais uma vez,
Wittgenstein não recorre a um “sujeito pensante”, pois ele recusa
todo papel à intuição (6.233), para conservar apenas o “processo de
calcular” (6.2331).
106
O MUNDO SUB SPECIE AETERNITATIS
A
s últimas seções do Tractatus têm por objetivo mostrar que
as proposições da lógica são vazias de sentido (sinnlos) (6.1-
6.13), que as proposições matemáticas não são proposições
(6.2-6.241), e que as proposições das ciências da natureza são de
dois tipos: proposições dotadas de sentido (sinnvoll) e “princípios”
que não são tautologias (6.3-6.3751), e que as proposições da éti-
ca e da metafísica são unsinnig, contrassensos (6.4-6.54). Os dois
primeiros casos foram discutidos na seção precedente, e só me falta
examinar os dois seguintes.
A ciência é o sistema ideal de todas as proposições dotadas de
sentido que são verdadeiras1. Obviamente, esse sistema é compos-
to de abreviações, que são as leis da natureza ou hipóteses, tais como
a “lei da indução” (6.31) ou as leis causais (6.321). Essas leis são
também proposições dotadas de sentido, pois são funções de verda-
de de proposições elementares; os quantificadores sendo redutíveis a
conjunções ou disjunções. No entanto, as leis causais são “leis com a
108
tico” como adjetivo. Pois, quando ela intervém
como sinal de igualdade, simboliza de uma maneira
inteiramente outra – a relação designativa é outra
– e, portanto, também o símbolo é inteiramente di-
ferente nos dois casos; em comum, os dois símbolos
só têm, por acaso, o sinal.
109
tributárias de tal visão, e versam sobre o “sujeito” metafísico e o so-
lipsismo, a ética, a felicidade, Deus, a morte e o “místico”. Pelo seu
lado sugestivo, estão na origem da popularidade do Tractatus junto
aos filósofos da tradição existencialista, mas não são, propriamente
falando, senão contrassensos, pois não respeitam a sintaxe lógica. As
observações sobre a morte (6.431-6.4311), já citadas, nos oferecem
uma outra razão para ver a impossibilidade de um tal discurso. Se
a determinação da “boa vida” – a expressão “das gute Leben” deve
ser tomada em seu sentido socrático – consiste na possibilidade de
ver a vida como um todo limitado, então isso simplesmente não é
possível, pois a morte “não é um evento da vida. A morte não se
vive.” (6.4311). Um “sujeito” não pode portanto nunca se colocar
sub specie aeternitatis a fim de determinar a conduta de sua vida, de
onde a impossibilidade de uma ética substancial.
Mas de qual “sujeito” falamos? Não é inútil ver como a noção de
“sujeito metafísico” (5.641), que desempenha um papel de articula-
ção entre a análise da proposição e as considerações éticas, se vincula
à teoria do juízo apresentada na terceira seção. A alma é simples,
pois “uma alma composta não seria mais uma alma” (5.5421). No
entanto, quando “A crê que p”, não se trata de uma relação múltipla
entre um sujeito simples e os objetos que formam um fato, mas de
uma relação entre dois fatos compostos de objetos, o que é expresso
por “ ‘p’diz p”. Nesse caso, a alma seria composta, e já não seria uma
alma. Esse argumento mostra que, na verdade, “a alma – o sujeito,
etc. -, tal como entendida na psicologia superficial de hoje, é uma
não-coisa (Unding)” (5.5421). Haveria portanto dois conceitos dis-
tintos: o “sujeito” da psicologia, que é um composto de todos os
pensamentos, que são eles próprios compostos, e um “eu filosófico”
ou “sujeito metafísico”, que é simples e não deve, por conseguinte,
ser identificado ao “sujeito” da psicologia – o que vem expressamen-
te dito em 5.6412. Essa distinção é retomada em 6.423, onde ����� Witt-
2 Sobre essas questões, não há nenhum consenso entre os comentadores. Cf. G.-
J. Lokhorst, “Wittgenstein on the Structure of the Soul: A New Interpretation
of Tractatus 5.5421”, Philosophical Investigations, vol. 14, 1991, p. 324-341.
110
genstein usa a expressão “vontade”, que ele toma de Schopenhauer:
“Da vontade (Willen) enquanto portadora do que é ético, não se
pode falar. E a vontade enquanto fenômeno só interessa à psicolo-
gia.” O sujeito metafísico não pode, por conseguinte, fazer parte do
mundo, ele “não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo”
(NB, p. 79 & 5.632).
Esse sujeito metafísico é solipsista3:
111
proposições elementares.” Como vimos nas seções sobre a análise e
a ontologia, a análise das proposições requer a existência de objetos
(simples) que devem me ser dados em minha experiência imediata.
Wittgenstein dizia compartilhar em sua juventude uma forma
de “idealismo epistemológico” derivado de sua leitura de Schopen-
��������
hauer5. Essa defesa tractariana do solipsismo, embora seja apenas
parcial, parece ir na contramão de muitos outros aspectos “realistas”
da obra, mas Wittgenstein não vê as coisas assim, uma vez que ele
apresenta, algumas observações depois, um dos argumentos mais
desnorteantes de seu livro: o solipsismo rigorosamente pensado
“coincide com o realismo puro”. Esse argumento aparece nos Note-
books em dezembro de 1916:
112
muito certamente retomou essa ideia da Theory of Knowledge de
1913 de Russell, na qual encontramos um questionamento parale-
lo: não posso nunca apontar com o dedo um objeto fora de minha
experiência do momento presente; perdemos então de vista a noção
de um escoamento objetivo do tempo para nos reencontrar prisio-
neiros da experiência do momento presente. Nas notas de cursos de
Wittgenstein, encontramos a seguinte confissão:
6 Para uma discussão mais detida desse argumento, cf. D. Pears, The False Prison,
op. cit. A ideia do sujeito como ponto sem extensão é tomada de Schopenhauer,
cf. A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação. São Paulo :
UNESP, 2005, p. 566.
7 Sobre a questão do tempo no Tractatus, cf. J. Hintikka, “Wittgenstein on
Being and Time”, in Ludwig Wittgenstein: Half-Truths and One-and-a-Half-
Truths, op. cit., p. 240-274.
113
6.41 – O sentido do mundo deve estar fora dele.
No mundo, tudo é como é e tudo acontece como
acontece; não há nele nenhum valor – e, se houvesse,
não teria nenhum valor.
Se há um valor que tenha valor, deve estar fora de
todo acontecer e ser-assim. Pois todo acontecer e
ser-assim é casual.
114
Esse trecho mostra bem, mais uma vez, a importância da dimen-
são do ato no Tractatus: encontrarei castigo ou recompensa no pró-
prio ato e não em suas consequências. Não se trata portanto de um
cálculo de tipo utilitarista a partir das consequências de meus atos.
A distinção entre fato e valor tem como corolário que o “querer”
não pode mudar os fatos, apenas o limite do mundo:
115
Wittgenstein falará frequentemente do erlösende Wort, isto é, da
palavra que traz esse estado de paz interior. Essa posição não deixa
de lembrar a discussão do estoicismo por Schopenhauer ali pelo
final do primeiro livro do Mundo como vontade e representação, que
Wittgenstein conhecia bem:
116
ser formulada. Não há portanto “enigma” e o problema da vida não
pode ser resolvido senão tomando consciência disso, isto é, fazendo “de-
saparecer” a própria questão, uma vez que ela é inexprimível:
117
O Tractatus fecha-se portanto com uma injunção ao silêncio:
Wittgenstein espera que o leitor esteja em condições, após ter com-
preendido sua obra, de “ver corretamente o mundo” e, portanto, de
ver que não se pode trazer à expressão linguística alguns sentimen-
tos, sobre os quais é portanto preferível manter silêncio:
118
em sua quase totalidade em uma casuística daquilo que Diamond
chama de “proposições-quadro” do livro, ou seja, o prefácio e as úl-
timas proposições: 6.53, 6.54 e 7. A posição de Diamond pode ser
enunciada rapidamente, dizendo que, a seu ver, pretender, como o
faz a maior parte dos comentadores, que haveria outra coisa além do
contrassenso absoluto no Tractatus é “amarelar” (to chicken out)14.
Assim, à ideia de que haveria proposições que são desprovidas de
sentido mas que poderiam ter um sentido caso conseguissem veicu-
lá-lo15, e, portanto, a toda distinção entre o contrassenso puro, do
tipo “Sócrates é idêntico” e um contrassenso “substancial” que não
se poderia exprimir por proposições dotadas de sentido, mas que no
limite poderíamos tentar assoviar, Diamond irá contrapor a ideia de
que só há uma única forma de contrassenso, o contrassenso puro.
Não há portanto nada que se mostre mas que não se possa dizer, não
há nenhuma verdade inefável que seria apontada pelo Tractatus e não
há portanto nada de semelhante a “simples”, “fatos”, etc. E todos os
enunciados a respeito destes últimos são tão somente puros contras-
sensos. O que Wittgenstein queria, nos diz ela, não é corrigir alguns
erros cometidos por Frege ou Russell, mas mostrar que seu projeto
teórico é nulo e sem efeito e que estamos imersos no contrassenso
desde o início. Wittgenstein teria desconstruído seu próprio projeto
e mostrado (?), ao fazê-lo, que o projeto de Frege e a de Russell – e,
na esteira destes, acrescentaríamos: toda a filosofia analítica16 – está
fadado a não produzir mais do que esse tipo de contrassenso.
No entanto, Wittgenstein retoma, no meio da obra, suas
observações do prefácio, escrevendo, em 4.114, que a filosofia
119
“deve traçar os limites do pensável e, desse modo, do impensá-
vel” e “limitar o impensável de dentro, através do pensável”, ao
que ele acrescenta que ela “significará o indizível (das Unsagbare)
ao representar claramente o dizível” (4.115). Ele também escreve
em 6.522: “Há certamente o inefável (Unausprechliches). Isso se
mostra, é o Místico”. Wittgenstein diz portanto claramente que
há o indizível (Unsagbare) e não se pode simplesmente colocar
essas observações na conta da ironia ou algo do tipo. O inexpri-
mível decerto não é da ordem do sentido que se pode dizer cla-
ramente na linguagem, pois senão poderíamos dizê-lo, mas ele
existe de fato; tal é a natureza, por exemplo, do espanto diante da
existência do mundo.
A acreditar em Diamond, não haveria nenhuma diferença entre
uma frase do Tractatus como, digamos, 3.23, “O postulado da pos-
sibilidade dos sinais simples é o postulado do caráter determinado
do sentido” e uma frase como “Sócrates é idêntico” ou ainda o pri-
meiro verso do poema Jabberwocky, que eu cito no original: “’Twas
brillig, and the slithy toves did gyre and gimble in the wabe”. As
aparências seriam enganosas. No entanto, não há dúvida alguma
de que esse verso nunca enganou ninguém, diferentemente do que
ocorre com, digamos, um fragmento de Heráclito ou uma frase da
Metafísica de Aristóteles, mas Diamond não parece estar nunca em
condições de nos explicar essa diferença. Assim sendo, não há a
fortiori nenhum sentido em falar de um processo pelo qual sería-
mos levados a reconhecer que as frases do Tractatus são totalmente
vazias de sentido, isto é, que haja uma escada a ser galgada. A isso,
Diamond respondeu insistindo sobre a importância do 6.54 (grifo
meu): “Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me en-
tende acaba por reconhecê-las como contrassensos.” Wittgenstein
nos pediria não para compreender as proposições do Tractatus, mas
para compreender a ele enquanto enunciador de contrassensos; es-
taríamos assim engajados, na leitura do Tractatus, em uma atividade
particular, a de imaginar o que seria para alguém confundir sentido
120
e contrassenso17. A meu ver, essa última réplica mostra que a leitura
de Diamond não é defensável. Hacker, por outro lado, mostrou
toda a fraqueza hermenêutica dessa leitura18, que se limita a alguns
trechos do Tractatus (ainda que se acabe por reconhecer que alguns
trechos no centro da obra são dotados de sentido o quanto bas-
ta para sustentar essa interpretação), mas que literalmente ignora a
considerável quantidade de indicações contrárias que encontramos
em outras partes de sua obra.
A inovação de Wittgenstein não foi portanto a de mostrar que
além da linguagem só encontramos o contrassenso absoluto, ali
onde outros teriam acreditado equivocadamente ver verdades ine-
fáveis. Através dois mil anos de história da filosofia, encontramos
muito poucos filósofos que acreditaram nessas verdades inefáveis, e
não é dessa doença que ele queria nos curar por sua terapia. A his-
tória da filosofia abunda no entanto de filósofos, Frege e Russell in-
clusive, que acreditaram que essas verdades que se mostram mas não
podem ser ditas podem de fato ser enunciadas com sentido e são eles
que são muito certamente visados pelo Tractatus. Que Wittgenstein
tenha conseguido ou não solapar os fundamentos de todo projeto
do tipo dos de Frege ou de Russel ao sabotar o seu próprio projeto
é uma outra questão, que não pode ser considerada como resolvida
implicitamente pela simples repetição das últimas frases do Tracta-
tus, pois a possibilidade mesma de solapar os fundamentos de seu
projeto é tributária de teses – sobre o “sentido”, entre outras coisas
– que eu me preocupei em explicitar nesta obra, e que temos todo o
direito de recolocar em questão, exatamente como Wittgenstein ele
próprio veio a fazê-lo a partir de seu retorno à filosofia, em 1929.
121
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COLEÇÃO FILOSOFIA E LINGUAGEM
Direção: Marcelo Carvalho, Bento Prado Neto e João Vergílio G. Cuter
Conselho Editorial: André Porto, Arley Moreno, Danilo Marcondes, David Stern, João
Carlos Salles, Luiz Carlos Pereira, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Mathieu Marion,
Mauro Engelmann, Philippe Narboux, Silvia Altmann
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