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Pensando na “balada”
Elemento bastante presente em “The Ballad of Sexual Dependency” é a marca
física da violência nos corpos apaixonados das imagens. Numa delas, chegamos a ver
uma ode ao amor, mostrando como o limiar entre prazer e dor é muito tênue. O embate
entre a autonomia e a dependência que permeia as relações amorosas é retratado com
crueza e visceralidade. Em várias fotografias da série, a violência, o sexo, o prazer, o
amor, a dor estão intimamente ligados- contrapondo-se à típica idealização romântica
expressa na mídia e na arte clássica.
É interessante perceber essa relação entre amor e dor- e melhor, entre arte e dor-
que pode parecer estranha à primeira vista, já que a arte classicamente era vista como
campo da fruição do belo. Como afirma Lebrun hoje, “a arte, por princípio, não é mais
uma forma de cultura que nos convoca à contemplação e ao recolhimento” (LEBRUN,
G. A; p.21). Nan Goldin nos mostra uma postura que hoje é muito importante para arte
contemporânea: lugar do incômodo, do reestabelecimento dos limites, de cruzamento de
fronteiras, local de abalo das idéias que mantêm a coesão social. O seu trabalho se situa
na “marginalidade”- e não nos referimos apenas às figuras do undergroundnova-iorquino
retratadas em suas imagens, mas a sua própria arte e postura política. Tudo que é colocado
para “periferia”, para as “margens” da sociedade, tudo que é posto de lado, para baixo,
em nossa sociedade voltada para outras questões, pode ressurgir e “aparecer”, se
manifestar com liberdade- e, quando isso acontece, ao mesmo tempo, as margens voltam-
se contra a esse recalque da vida cotidiana. Esse pensamento nos lembra A ordem do
discurso de Foucault quando ele reflete que “em toda a sociedade a produção do discurso
é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
número de processos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe
o acontecimento aleatório, esquivar-lhe a pesada, temível materialidade.”(FOUCAULT,
Michel) Esse tipo de trabalho artístico então faz ressurgir aquilo que foi posto em zonas
de penumbra nos discursos cotidianos – e acaba sendo um manifesto contra o senso
comum da vida moderna.
A questão da “representação” é teoricamente muito discutida em termos de
fotografia. Pensando nisso, o que vemos no trabalho da Nan Goldin talvez seja não mais
uma “re-presentação”, mas sim uma “apresentação” da dor, do amor, do prazer e assim
da ironia (romântica) corrosiva e auto-reflexiva.
No intuito de registrar seu mundo de maneira tão crua, Nan também se torna objeto
de seu próprio trabalho artístico e mostra momentos íntimos de sua vida, como quando
foi espancada por seu namorado e ficou com o rosto cheio de hematomas. Em uma
entrevista (http://www.danielblaufuks.com/webmac/EXPRESSO.pdf) Nan Goldin conta
como, ao olhar para imagem, se lembrou do que sentiu naquele momento e a memória
dessa sensação passada misturou-se com o sentimento de revolta. Goldin utiliza a
fotografia para inscrever a vida, para que a sua imagem (da vida) seja mais do que uma
marca, uma cicatriz. Através da fotografia, ela abre a privacidade da vida e revela
situações “proibidas”: ressignifica os tabus.
Mesmo nas polêmicas fotografias que mostram nudez ou um ato sexual, o apelo não é
pornográfico, e sim erótico e político. A idéia é mostrar cenas cotidianas (pouco
retratadas, porém muito comuns) que são escondidas das lentes ou que quando que são
mostradas, perdem a dimensão através do achatamento de significados que a camada de
pornografia traz. Sobre a polêmica do cancelamento da exposição de Nan Goldin, que
aconteceria no Oi Futurto, a curadora Ligia Canongia elucidou: “Está havendo um grande
equívoco na leitura da obra de arte e da dimensão poética das imagens da Nan, que jamais
podem ser confundidas com pornografia, pedofilia ou outras perversidades dessa ordem.
Isso demonstra um despreparo absurdo no lidar com as questões da arte, o que assusta a
todos os que respeitam e legitimam seu discurso. O trabalho dela discute o amor, o
sofrimento, a universalidade do drama humano, e isso soluções formais que lhe
conferiram uma linguagem inigualável em todo o mundo”.
(http://oglobo.globo.com/cultura/fotos-polemicas-fazem-exposicao-de-nan goldin-
mudar-de-lugar-3342672#ixzz1gTsGOaYq acessado em 12 de dezembro de 2011).
E, nessas fotografias, vemos como ela “apresenta” uma arte que nasce dessa
cultura- mas sem legitimá-la e sim expondo o trauma e a dor dessa situação posta na pós-
modernidade. Pode-se criticar o trabalho da Nan Goldin justamente pela exposição desse
viés destrutivo da sociedade, por glamourizar o submundo e as drogas, como se fosse
colocada uma pura mise-em-scene neo-romatica nas fotografias. Mas a própria Nan
Goldin tem conhecimento dessa ideia e, até mesmo, a ironiza. Um trecho de seu livro,
The ballad of sexual dependency, é bem esclarecedor: “The notion of self-destruction as
glamorous became self-indulgent when people around us started dying: that romantic
vision of the self-destructive artist, having to suffer or induce pain in order to work, that
sense that creativity has to come out of euphoric crisis, or out of extreme excess, changed.
With the advent of death in our lives came a real will to survive, and help each other
survive, to show up for each other” (retirado de
http://drmelf.fatcow.com/Essays/nanchap.html em 15 de dezembro de 2011) .
Muitos dos “anti-heróis” colocados em suas imagens foram afetados pelo vírus da
AIDS, e de alguma maneira, a fotografia é usada aqui em sua função mais elementar, a
de registro da memória. Em “The ballad” vemos uma história que demonstra a força dos
laços íntimos que unem os seres humanos para além da morte- e a fotografia cumpre essa
função de permitir que a memória se abra de novo para que o tempo não dilua a verdade.
Sem dúvida, o trabalho de Nan Goldin é autobiográfico- evidenciado não apenas
na foto em que ela aparece com hematomas no rosto após ser agredida pelo namorado. E
esse “documentarismo” explicita ainda mais esse lugar político. Suas fotos revelam o
engajamento da artista no mesmo território que os retratados, evidenciam sua relação com
as pessoas fotografadas- muitas vezes, experiências assentadas na amizade. São amigos,
grupos, espaços e territórios freqüentados pela própria artista. As fotografias que retratam
personagens drag queens, transexuais e travestis estão, por exemplo, menos endereçadas
a uma reflexão sobre questões de gênero e sexualidade do que propriamente a abordar
uma espécie de vivência comum que as marcaria indistintamente: a da paixão, no sentido
latente, visceral.
As histórias retratadas em suas imagens são a história da própria artista. É o seu
diário, que ela compartilha, que deixa as outras pessoas lerem. Nesse sentido, ela rebate
a noção popular que associa o fotógrafo à figura do voyeur. Dois títulos de suas imagens
dizem muito sobre essa perspectiva: “eu serei seu espelho”, “falar de mim é falar de
muitos”.
O trabalho de Nan Goldin, de alguma maneira, também dialoga com a estética do
reality-show, no lugar das imbricações cada vez mais freqüentes entre público e privado,
na atual configuração de um universo de visibilidade em que se desenvolve um tipo de
interesse público pelos dramas da intimidade. Como Bauman (2001) já afirmou em
“Modernidade Líquida”, essas fotografias se inserem na contemporânea redefinição da
esfera pública, em que os dramas privados passam a ser publicamente expostos e
assistidos. Não é mais somente a vida de uma celebridade que interessa ao grande público,
mas também aquela “pessoa comum”- que cada vez mais parece querer compartilhar sua
vida íntima, através dos diversos dispositivos disponíveis no mundo virtual.
Bibliografia
LEBRUN, G. A mutação da obra de arte. In: Arte e Filosofia – Cadernos de Textos n.
04. FUNARTE/INSTITUTO NACIONAL DE ARTES PLÀSTICAS.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. 1.ed. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2001.
Sites
http://www.danielblaufuks.com/webmac/EXPRESSO.pdf
http://oglobo.globo.com/cultura/fotos-polemicas-fazem-exposicao-de-nan goldin-
mudar-de-lugar-3342672#ixzz1gTsGOaYq acessado em 12 de dezembro de 2011
http://www.ppgf.ufba.br/producao/Arte_no_%20pensamento_de_%20Heidegger.pdf
http://drmelf.fatcow.com/Essays/nanchap.html