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CADERNO DE TEXTOS

PERSPECTIVAS FEMINISTAS PARA IGUALDADE E AUTONOMIA DAS MULHERES


Nalu Faria

DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO


Danièle Kergoat

DINÂMICA E CONSUBSTANCIALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS


Danièle Kergoat

“A CLASSE TRABALHADORA TEM DOIS SEXOS” E “RAÇA”/ETNIA


Mirla Cisne

FEMINISMO E SOCIALISMO: UMA RELAÇÃO NECESSÁRIA


Mirla Cisne
Perspectivas feministas para igualdade e autonomia das mulheres1

Texto: Nalu Faria

Introdução
Na trajetória do feminismo, há um intenso debate sobre as explicações teóricas para a opressão das mulheres. Esse
debate passou por várias compreensões dos conceitos de patriarcado, gênero e divisão sexual do trabalho, no sentido de
definir qual deles explica melhor essa relação de opressão e seu caráter. Este texto não retoma todo este debate, mas busca
abordar a coextensividade da opressão das mulheres com o capitalismo.
Utilizaremos o termo patriarcado para nos referir a essa dominação. Em nossa trajetória militante na Marcha
Mundial das Mulheres, recuperar o termo patriarcado contribuiu para a afirmação de um posicionamento político anti-
sistêmico, frente a pasteurização e perda de radicalidade na trajetória e utilização do conceito de gênero. A utilização do
termo patriarcado não nos coloca em conflito com o conceito de divisão sexual do trabalho que, tal como Daniele Kergoat
(1996), consideramos o que está em jogo na opressão das mulheres, nas relações patriarcais.
Capitalismo e patriarcado um só modelo?
Entendemos que o capitalismo incorporou o patriarcado como estruturante das relações sociais. Para isso,
aprofundou a divisão sexual do trabalho, a partir da definição de uma esfera pública como da produção mercantil e a esfera
privada como não-mercantil, da família e da maternidade. Reforçou o público como o espaço da produção, da igualdade, da
política e que pertence aos homens; às mulheres cabe o espaço privado da reprodução, da intimidade, do cuidado. Para isso,
foi construída a idéia de que há harmonia e complementariedade nas relações entre homens e mulheres. Isso tem como
objetivo esconder as relações de conflito e de poder dos homens sobre as mulheres na família e no conjunto da sociedade.
Além disso, aos homens foram designadas as atividades de maior valor agregado. Essa formulação permite abordar a relação
entre produção e reprodução, explica a simultaneidade das mulheres nos trabalhos produtivo e reprodutivo e sua exploração
diferenciada no mundo produtivo e no trabalho assalariado. Dessa forma, os homens são considerados os provedores e as
mulheres reprodutoras, do lar, chamadas comumente de inativas. Ao mesmo tempo em que isso confirma o não
reconhecimento dessa enorme quantidade de trabalho doméstico e de cuidados realizado pelas mulheres, esconde que o
modelo homem-provedor é na verdade um mito e que nenhuma sociedade pode prescindir do trabalho das mulheres no
campo da produção.
Nesse modelo houve uma redução do conceito de trabalho limitado ao que ocorre na esfera mercantil (da produção),
sem considerar como trabalho as atividades de reprodução e cuidado da vida humana – portanto, estas são consideradas como
uma externalidade do modelo econômico. Essa divisão esconde a dependência masculina do trabalho invisível e não
reconhecido das mulheres e é parte das falsas dicotomias criadas pela ideologia patriarcal. Essas falsas dicotomias se
constituem como uma caracterização do masculino e do feminino: produção-reprodução, cultura-natureza, objetivo-subjetivo,
razão-emoção. São os valores e visão de mundo impostos pelo grupo dominante e, portanto, essas dicotomias não são neutras,
mas hierárquicas (C. Carrasco, 2003).
Uma grande parte do trabalho realizado pelas mulheres não é reconhecido, seja no campo ou na cidade. Em uma
família em que a mulher não é assalariada, muito mais bens e serviços são produzidos em casa Quando se coloca que o lugar
das mulheres é em casa, não é reconhecido seu direito à autonomia econômica e sua inserção no mercado de trabalho é
marcada pela desvalorização e segregação em guetos definidos pela divisão sexual do trabalho. O fato é que a desigualdade
das mulheres estrutura o conjunto das relações e práticas sociais e há uma coextensividade entre classe, raça e gênero, na
medida em que estas relações se reproduzem e co-produzem mutuamente.
A presença das mulheres no trabalho assalariado ou no campo não alterou em nada a responsabilidade quase
exclusiva pelo trabalho doméstico e de cuidados. Para as mulheres a realização deste trabalho se coloca como parte de sua
identidade primária, uma vez que a maternidade é considerada seu lugar principal. Essa identidade é introjetada de forma
profunda pelas mulheres e sua vivência está marcada pela avaliação das funções maternas e valores associados: a docilidade,
compreensão e a sabedoria nos cuidados. Na verdade esse discurso da boa mãe é uma construção ideológica para que as
mulheres continuem fazendo o trabalho doméstico.
No campo, essa divisão sexual do trabalho também se estrutura entre o que é realizado no âmbito da casa e no
roçado (Miriam Nobre, 1996). Dessa forma, historicamente muitas das atividades produtivas realizadas pelas mulheres são
consideradas uma extensão do trabalho doméstico. Estão incluídas aí a criação de pequenos animais, o cultivo de hortas, entre

1 Atualização do texto “Feminismo e transformação social”, publicado em 2012 pela SOF no Caderno Perspectivas Feministas para
a igualdade e autonomia das mulheres.
outras atividades. É importante ressaltar que essa modalidade da divisão sexual do trabalho no campo está vinculada à
introdução da noção capitalista de trabalho, que justamente reduz trabalho ao que pode ser trocado no mercado.
Muitas feministas falam de um patriarcado moderno, que recebeu uma contribuição fundamental dos filósofos
iluministas, ao construir um discurso misógino de legitimação da desigualdade das mulheres que se estendeu para os campos
da medicina, da moral e da política. A desigualdade das mulheres é naturalizada e a subordinação das mulheres aos homens é
colocada como parte de uma essência feminina. Esse discurso atribui isso à maternidade e o papel “natural” das mulheres na
criação da prole. Para isso, há uma imposição de um modelo de feminilidade socialmente construído que define como as
mulheres devem se comportar e desenvolver sua personalidade e habilidades para que estejam adequadas ao seu “papel social”
de mãe e esposa. Ou seja, por detrás da naturalização da opressão das mulheres houve a definição de um modelo de
feminilidade considerado adequado ao ser mulher. Evidentemente, neste modelo há cortes de classe e raça/etnia, porém a
docilidade, altruísmo, paciência, flexibilidade, disponibilidade permanente para esposos e filhos, são traços comuns.
Simultaneamente, há uma exigência de que a mulher seja bela, agradável e, cada vez mais, magra e jovem.
Família e sexualidade
Uma estratégia fundamental para a consagração dessas relações no capitalismo foi o estabelecimento de um novo
papel da família nuclear burguesa que se estendeu para o mundo operário como o lugar de supremacia dos homens, ou seja,
onde todos os homens são senhores, inclusive os da classe trabalhadora.
Um dos elementos estruturadores desse modelo de família foi a imposição da heterossexualidade obrigatória,
baseado na dupla moral em que para os homens é incentivado múltiplas relações sexuais diante de uma suposta sexualidade
passiva das mulheres. Assim, foi imposto um modelo baseado na heteronormatividade, que normatiza e hierarquiza a
sexualidade. É uma sexualidade androcêntrica (centrada na experiência masculina), que naturaliza as práticas sexuais como se
fossem parte de uma essência em que a sexualidade masculina é baseada na virilidade e agressividade descontroladas,
enquanto a vivência das mulheres seria dócil e passiva.
Esse discurso foi a base para a manutenção de uma moral que justifica e incentiva a prostituição e a aceitação das
relações promíscuas para os homens e do castigo para as mulheres. Isso é comum na história dos nossos países: homens com
mais de uma família ou com um grande número de filhos "bastardos", como se costumava definir. Hoje podemos falar de
novas modalidades e práticas sexuais, que convivem com uma alta desresponsabilização masculina frente à paternidade, mas,
no que se refere à sexualidade, segue a hegemonia de um padrão em que as mulheres são classificadas como santas ou
profanas. As mulheres negras estão associadas ao profano, sexual e brutalmente erotizado, conceitos reforçados pela mídia e
grandes corporações que perpetuam ideias sexistas e racistas dos idos do período colonial. Uma decorrência das relações de
poder dos homens sobre as mulheres é a violência sexista, que é um mecanismo de controle em que as mulheres são
coisificadas como objetos de posse.
Dessa forma, quando não se incorpora a análise do patriarcado a uma visão crítica do capitalismo e como parte de
um sistema opressor, não se enxerga a forma particular como a opressão e subordinação das mulheres foram estabelecida
nesse modelo.
O feminismo teve uma ação contundente de denúncia dos traços androcêntricos desse modelo e buscou construir
novos marcos analíticos para enfocar e resolver os problemas de outra forma. No entanto essa ainda é uma questão pendente e
faz com que, facilmente, nos espaços onde se discutem alternativas, o patriarcado continue invisibilizado, principalmente no
que se refere ao trabalho doméstico e de cuidados.
Além disso, permanecem as práticas sexistas no interior da classe trabalhadora e nas organizações políticas de
esquerda. Essa permanência do machismo e de práticas patriarcais no interior da esquerda contribui para que, no movimento
de mulheres, continue existindo uma tensão entre luta feminista e de classes.

O modelo patriarcal e capitalista é racista e colonial


Se o patriarcado, o colonialismo, racismo e as classes sociais são anteriores ao capitalismo, também é indiscutível
que a consolidação do capitalismo redefiniu essas relações. È um modelo que se organiza a partir da exploração da mais valia
da força de trabalho e incorpora de maneira estruturante outras hierarquias e formas de opressão. Ou seja, para
compreendermos as questões do patriarcado, do racismo necessitamos analisar como o capitalismo redefiniu essas relações
práticas sociais.
Aqui nos interessa ver como o patriarcado que é bastante universal se entrelaçou como outras relações de opressão
como é o caso de raça, classe e colonialismo. Nesse sentido a experiência da América Latina e Caribe, é bastante elucidadora.
Há a falsa ideia de democracia racial, algo que garante privilégios de uma pequena parcela em detrimento da maioria absoluta
da população. O racismo é estruturante na sociedade capitalista e patriarcal e, no processo de histórico de construção da nação
brasileira, o povo negro sempre esteve às margens da sociedade, colocado no centro de teorias higienistas que ainda
prevalecem. O capitalismo que se tornou hegemônico em nossa sociedade. Aqui em nosso continente, se formou a partir do
colonialismo que se utilizou de forma intensa as relações patriarcais e o escravismo que deu as bases para o racismo. Isso
significou enquanto modelo capitalista redefinir as representações binárias sobre as mulheres e a feminilidade bastante
marcadas pelos valores ocidentais cristãos e as figuras de Eva e Maria como os dois pólos. Evidentemente entre dois pólos há
um leque de diversidade e matizes, principalmente no cruzamento com outras formas de opressão como de classe, do racismo
e da sexualidade.
As representações são parte de um discurso que busca legitimar uma opressão e não necessariamente reflete a
realidade das mulheres e muito menos de todas e que se transformam em mitos. Por exemplo, a ideia da fragilidade feminina
e da proteção masculina. A que experiências reais se está referindo? Na verdade o capitalismo estabeleceu que a existência de
um modelo de feminilidade adequado que define o ideal de mulheres. Isso vinculado a um modelo de família e sexualidade,
funcionais a organização da divisão sexual do trabalho no marco da divisão entre produção e reprodução, estruturada pelo
trabalho doméstico e de cuidados na família, e pela separação e hierarquização de trabalho de homens e trabalho de mulheres.
Mas essa definição de um modelo adequado de feminilidade continua dizendo respeito a um pólo, onde tudo que está fora é
considerado anormal e estigmatizado. Assim é em relação a feminilidade, a sexualidade e a família. O modelo não abarca e
nem é para abarcar, mas hierarquiza e normatiza. Voltando a proteção e fragilidade: de quem? quando? No inicio do
capitalismo quando as mulheres pobres da cidade foram incorporadas massivamente na fábricas, as do campo continuavam
nas lavouras? As mulheres burguesas não tinham direitos sobre seus bens, totalmente dependentes dos maridos como seu amo
e senhor, ameaçadas pela violência e sem direito legal a nada . As mulheres negras já trabalhavam de “ganho” para sustentar
suas famílias e ainda hoje são maioria nas atividades informais e sem garantias sociais.
E só podemos compreender o que realmente ocorreu com essas mudanças no capitalismo, em nível mundial, se
incorporamos a dimensão de raça e do colonialismo. Isso é estruturante nas representações do ser mulher, como adequadas ou
“desviadas” em nossa história e para reforçar as hierarquias e divisões entre as mulheres. A medida em que se avança no
reconhecimento de alguns direitos para as mulheres nos marcos desse modelo hegemônico essas hierarquias se aprofundaram.
O resultado é que em nossa sociedade o racismo é estruturante do conjunto das relações e organiza lugar social das
mulheres negras, sendo estas as que estão em maior número cumprindo tarefas do cuidado e expostas à precarização de suas
condições de vida e trabalho. O patriarcado racista e escravagista organiza uma hierarquia e desigualdade também entre os
homens brancos e negros, mas isso não significa que a vivencia do racismo torna os homens negros igualitários com as
mulheres negras. As relações patriarcais vividas pelas mulheres negras não são apenas exercidas pelos homens brancos e da
classe dominante, mas sua opressão as coloca na base da pirâmide social e a materialidade da exploração recai sobre seus
corpos e vidas.

Os paradoxos da globalização neoliberal

É inegável que, a partir das lutas feministas, houve uma ampliação da identidade feminina para além da
maternidade. Além disso, são parte das transformações das últimas décadas a incorporação das mulheres de forma mais
diversificada no mercado de trabalho, a ampliação do divórcio e mudanças nos padrões de sexualidade em vários países, o
reconhecimento como direitos de questões antes consideradas do mundo privado, como a questão da violência sexista e a
legalização do aborto em muitos países. Mas os dados em relação à situação das mulheres trazem elementos complexos, seja
em relação à pobreza e ao desemprego, ao tráfico e prostituição, à responsabilidade individual de manter suas famílias, assim
como o aumento da contaminação pelo HIV, entre outros.
Tal como ocorreu nas fábricas no fim do século XIX, no neoliberalismo as mulheres foram incorporadas
massivamente aos setores da produção e de serviços com pior remuneração e que estiveram marcados pela terceirização e
pela precarização.
Por outro lado, um pequeno contingente de mulheres com alta escolarização foi incorporado em funções super-
especializadas e executivas. Assim, essas mulheres passaram a ter, diretamente, interesses opostos aos daquelas que estão nos
trabalhos precários, mal remunerados e em tempo parcial.
Entre os retrocessos trazidos pelo neoliberalismo, está a expansão da mercantilização do corpo e da vida das
mulheres, que também é marcada pela dimensão de classe e raça. No mundo inteiro, foi sobre os ombros das mulheres que
recaiu uma enorme sobrecarga de trabalho, com a diminuição das políticas sociais. Faz parte desse processo o que muitas
estudiosas chamam de globalização dos serviços de cuidados, que se refere ao grande contingente de mulheres que migram
dos países do Sul para o Norte para trabalhar como empregadas domésticas e cuidadoras em geral.
Outro lado da mercantilização é a imposição de um padrão de beleza como norma a ser cumprida obrigatoriamente
e que, supostamente, pode ser comprada no mercado. São vendidos centenas de produtos e tecnologias que prometem a
eterna juventude e o corpo perfeito, ou seja, magro. Essa perspectiva de beleza está vinculada ao que pode ser consumido. Ao
lado da indústria de cosméticos e da beleza, outro setor que aufere grandes lucros com o mal estar das mulheres é a indústria
de medicamentos. Esta também vende ilusões de bem-estar e felicidade enquanto invade o corpo das mulheres e nega sua
autonomia.
Essa exigência, assim como várias outras mudanças sob o neoliberalismo, se ancorou na modernização tecnológica
e na profunda mercantilização dos processos da vida. O discurso é que as mulheres podem comprar esse padrão de
feminilidade usando toda uma parafernália, que vai de cosméticos e ginástica a tratamentos estéticos, botox, cirurgias
plásticas. Tudo isso, recentemente, prometido com mais eficiência com a utilização da nanotecnologia.
Com essa intensificação da mercantilização, houve um forte incremento do tráfico de mulheres e da prostituição,
como parte da indústria do lazer e entretenimento. Nesse debate, muitas vezes a busca por liberdade e autonomia das
mulheres é utilizada como justificativa. Assim, retiram de cena a máfia que movimenta bilhões de dólares à custa da
exploração forçada das mulheres.
Na atualidade, tem sido mais exposta a tensão que as mulheres vivem com a presença simultânea nas esferas da
produção e reprodução. A migração das mulheres dos países do Sul para o Norte tem um componente de solução para essa
tensão, uma vez que boa parte das migrantes vai trabalhar na casa de executivas europeias ou norte-americanas, realizando
parte do trabalho doméstico e de cuidados.
A outra ponta da estratégia do mercado tem a ver com a tentativa das empresas transnacionais de controlar a terra, o
território e a biodiversidade. Esta estratégia se encontra, mais uma vez, com as mulheres, que historicamente têm um papel
ativo na agricultura, na seleção e preservação das sementes, no conhecimento das plantas medicinais, na defesa da
biodiversidade.
Mas é inegável que profundas transformações ocorreram não só com as mulheres escolarizadas, mas também com
as mulheres das camadas mais pobres. Essas mudanças estão vinculadas às suas práticas concretas, embora estejam marcadas
por uma extrema complexidade. São exemplos a desresponsabilização dos homens pela paternidade e o aumento das
mulheres que arcam sozinhas com o sustento dos filhos, a gravidez na adolescência, a violência urbana e envolvimento dos
filhos com o tráfico.
O feminismo teve um papel fundamental para questionar as relações de opressão e anunciar novas possibilidades
para as mulheres. Ou seja, é uma radicalização da proposta de autonomia, liberdade, auto-determinação, emancipação
humana. Ao longo do século XX as mulheres conquistaram vários direitos como fruto de sua luta organizada em várias partes
do mundo, embora isso tenha se dado de forma extremamente desigual.
Por parte de setores dominantes, em nossa sociedade gestou-se um discurso de que o feminismo não tem mais
sentido. Junto com isso surgiu também uma revalorização da feminilidade com o argumento de que as mulheres já não
precisavam mais ser feministas. No movimento feminista houve, nos anos 1990, um forte processo de institucionalização em
nossa região e, em alguns países e setores do feminismo, houve o reforço de uma posição pós-moderna que contribuiu para
um questionamento da ideia de que é necessário um movimento articulado em torno da luta pela igualdade das mulheres. Isso
se deu a partir de um debate em torno da diversidade e de múltiplas identidades, junto com um questionamento da visão
política que se orienta para a construção de sujeitos coletivos.
Na América Latina e Caribe, foi no bojo da resistência contra o neoliberalismo que retomamos um discurso de
crítica global ao capitalismo e ao patriarcado e também à forma como estes se reforçam e se retroalimentam.
Nesse processo, discutimos o significado da economia capitalista e da relação de dominação imperialista que suas
transnacionais estabelecem conosco. Mas debatemos também a mercantilização do corpo das mulheres, o incremento do
turismo sexual e o lugar de nossos países em uma divisão sexual e internacional do trabalho que tem reservado a muitas de
nossas mulheres o trabalho nas maquillas e na prostituição controlada por máfias e conglomerados de empresas de turismo.
Questionamos os motivos que fazem com que, ao lado de uma aparente permissividade no campo da sexualidade, com o
incremento do mercado da prostituição e da pornografia, esteja o aumento do conservadorismo e o ataque ao direito das
mulheres de controlarem seus corpos. Falamos sobre as novas formas de controle sobre o corpo das mulheres com a
imposição de padrões de beleza estritos. Em nossa região, isto tem significado uma verdadeira febre das cirurgias plásticas,
do silicone e do incremento no uso de hormônios sintéticos. Estes hormônios são produzidos pelas mesmas “indústrias da
vida” que produzem agrotóxicos e sementes transgênicas.
Esse debate se deu ancorado em uma forte organização das mulheres do campo e da cidade que constituiu a
recomposição de um campo de esquerda no movimento e atualizou uma ação anticapitalista e antipatriarcal em nossa região.

A luta feminista e seus desafios


Em todas as experiências de lutas e resistência dos povos oprimidos, encontramos a presença das mulheres, embora,
na maior parte da história, as representações predominantes apresentem as mulheres dentro de casa e sem nenhuma
participação pública. No caso da América Latina, aqui e acolá, aparece a figura de mulheres excepcionais. E quase sempre o
relato é que participaram das lutas a partir da relação com um marido ou amante. Na verdade, com frequencia se oculta o fato
de que, desde as lutas abolicionistas e anti-coloniais, as mulheres indígenas e negras lutaram ombro a ombro com os homens.
A organização de um movimento de mulheres e do feminismo como corrente teórica e prática marcou uma
mudança nesse processo. Além de afirmar as mulheres como sujeitos políticos permitiu recuperar partes da história
sistematicamente ocultadas para inivisibilizar a presença e contribuição das mulheres. Também foi fundamental para mostrar
que o debate sobre a igualdade entre os sexos é muito mais antigo que se imaginava. Como afirma Alicia Puleo (2004), “o
estudo do discurso filosófico nos mostra que muitas vezes – ou quase sempre -, quando há um discurso profundamente
misógino é porque paralelamente existe um discurso feminista, nessa mesma época”.
A situação atual mostra que as vitórias não serão consolidadas enquanto não se mudar estruturalmente o modelo. As
atuais resistências organizadas pelas mulheres e o dinamismo de um setor do movimento de mulheres cada vez mais
conectam essas várias dimensões. Ou seja, a luta das mulheres não é apenas uma agenda específica a ser agregada a uma
agenda macro. É uma luta de transformação integral da sociedade e se entende por isso que não se mudará a vida das
mulheres enquanto a vida de todas não for transformada. A utopia que define nosso projeto é a superação da sociedade
capitalista e machista e a construção de uma sociedade socialista que rompa com todas as formas de exploração, opressão e
discriminação em todos nossos povos.
Do ponto de vista dos desafios atuais, continua a necessidade de uma politização que afirma que o centro do
movimento de mulheres é a luta contra a opressão feminina e afirmação do feminismo socialista como a possibilidade de
transformar a vida das mulheres. Isso passa por enfrentar a banalização paulatina do conceito de gênero e a redução desta
agenda ao tema dos direitos das mulheres como direitos humanos.
Ou seja, é necessário atuar para a transformação do conjunto das atuais relações sociais, incluindo as relações
sociais de sexo. Portanto, são necessárias mudanças no modelo como um todo.
A tarefa que se coloca é a construção de uma visão crítica em toda a sociedade sobre a opressão das mulheres. Hoje
esta parece uma tarefa difícil, pois predomina a idéia de que não há mais opressão. Existe um discurso modernizante de que a
vida das mulheres mudou muito e que, em parte, foram assimilados aspectos do discurso feminista. Há um discurso de
positivação do feminino, que estrutura o retrocesso no padrão de feminilidade, o qual define que tudo o que as mulheres são
no mundo tem a ver com a maternidade. O que ocorre é que há um reforço contínuo da ideologia de que todas as mulheres
devem ser mães e que é essa experiência que define seu lugar no mundo, inclusive como profissional ou política. Na verdade,
este discurso afirma que as mulheres se inserem no mundo a partir das qualidades, virtudes e capacidades definidas como
parte de sua natureza porque são mães.
É recorrente a dificuldade de perceber que há uma base material da desigualdade expressa na divisão sexual do
trabalho. Dessa forma, há uma tendência de tratá-la apenas como um problema de uma cultura patriarcal arraigada ou como
uma questão ideológica.
Um ponto fundamental de nossa compreensão é de que não haverá igualdade se pensarmos mudanças apenas na
chamada esfera pública e do trabalho produtivo. Ou seja, se as mulheres continuarem arcando sozinhas com o trabalho
doméstico, de cuidados e com os afetos, se a casa continuar sendo considerada naturalmente o espaço de supremacia
masculina.
Essa questão, por sua vez, está vinculada à ruptura com uma divisão sexual do trabalho e do poder nos espaços
públicos. Não basta apenas o avanço da participação das mulheres nesses espaços como se a cada vez que ocupamos um
espaço masculino tenhamos avançado. Isto porque, a cada avanço das mulheres, vivenciamos uma forte reação machista e
conservadora.
Portanto, estão colocados desafios teóricos, políticos e organizativos, que exigem posicionar o debate a partir da
compreensão de que há uma opressão das mulheres. Neste sentido, continuamos fortalecendo a afirmação política de um
projeto feminista e socialista que questiona as bases da sociedade capitalista e patriarcal. Isso exige um movimento enraizado,
com capacidade de grandes mobilizações, campanhas próprias e que também seja parte da construção de uma luta articulada
na América Latina.
Um avanço no feminismo é a separação cada vez menor entre o que é reivindicação das mulheres e as chamadas
lutas gerais, dando lugar à compreensão de que, para mudar a vida das mulheres temos que mudar o mundo e, portanto, todas
as lutas por mudanças são das mulheres. Mas o principal ganho é que, nesse processo, se afirma cada vez mais o direito de
autonomia e soberania para as mulheres, e que a igualdade tem que ser parte constitutiva de todos os processos de
transformação.

Um feminismo militante e anticapitalista


Nossa atuação tem buscado ampliar temas e contribuições feministas na perspectiva de construção de novas
relações sociais e de um modelo de desenvolvimento em que se supere a divisão sexual do trabalho e se estabeleça um novo
modelo de produção e consumo, em um novo paradigma de sustentabilidade da vida humana.
A partir de um trabalho de formação, elaboração e articulação política, temos buscado contribuir para o
fortalecimento da autonomia das mulheres e de sua presença como um sujeito político organizado em um processo mais
amplo de lutas e resistências, orientadas para a construção de uma nova dinâmica de relações sociais e pela projeção de um
novo modelo de sociedade.

Marcha Mundial das Mulheres – um movimento incontornável


A Marcha Mundial das Mulheres representa um marco na recomposição do campo anticapitalista do feminismo,
como parte da superação dos retrocessos do movimento, em particular nos anos 1990. Nesse período, prevaleceu a hegemonia
de uma profunda institucionalização e uma agenda centrada nos aspectos normativos. Assim, frente à globalização neoliberal,
não houve uma visão crítica global que integrasse as dimensões econômica, política e social.
A origem da MMM está vinculada à necessidade de construir um amplo processo de luta a partir dos setores
populares em resposta à ofensiva capitalista a partir da globalização neoliberal e do reforço do machismo. É parte de uma
alternativa à globalização e institucionalização do movimento feminista vinculado à agenda das Nações Unidas e criou a
proposta de construção de uma transnacionalização das lutas ancorada no trabalho de base em conexão com ações nacionais e
internacionais.
Do ponto de vista da análise política, a MMM iniciou questionando globalmente o modelo vigente, retomou a
relação com o debate de classe e consolidou, mais que uma crítica à globalização neoliberal, uma crítica anticapitalista, ao
mesmo tempo em que faz a análise da imbricação entre capitalismo e patriarcado.
Outro elemento fundamental foi ter recolocado o conceito de patriarcado em um contexto em que o movimento
estava sob a hegemonia da banalização do conceito de gênero, em meio a um processo de institucionalização e de perda de
radicalidade. Isso contribuiu para colocar ênfase na dimensão da opressão das mulheres. Não houve uma retomada do antigo
debate entre marxismo e feminismo – capitalismo e patriarcado como um ou dois sistemas, mas se enfatizou a inter-relação
entre eles. Ambos estão construídos com base na desigualdade e se reforçam mutuamente. Há o reconhecimento de que o
capitalismo incorporou a dominação patriarcal como estruturante de seu modelo econômico e de suas práticas, a partir da
transversalidade da desigualdade de gênero com base na divisão sexual do trabalho, no controle sobre o corpo das mulheres,
na imposição da família patriarcal e da heteronormatividade da sexualidade como modelos.
Baseada nessa visão, a MMM coloca como central a necessidade de mudanças globais no modelo que se expressa
no lema: mudar o mundo para mudar a vida das mulheres para mudar o mundo, na compreensão de que a igualdade ou será
para todas as mulheres ou não será. Ou seja, a visão de que nos marcos do capitalismo até pode haver avanços em alguns
direitos e alterar a posição de algumas poucas mulheres, mas não para todas. É exemplar a análise de Daniéle Kergoat sobre a
dualidade entre as mulheres sob o neoliberalismo. Ela analisa que, pela primeira vez na história, algumas mulheres têm
acesso ao capital por si mesmas e não por sua relação familiar, tendo como consequência possíveis conflitos de interesses
entre mulheres como gênero.
Na Marcha, o reconhecimento da diversidade e diferenças entre nós busca evitar que as lutas das mulheres e a
desigualdade de gênero sejam tratadas apenas como uma questão de identidade. Reconhecemos a diversidade das mulheres e
buscamos construir ações comuns que possam combater globalmente a ordem atual de dominação e opressão, em um claro
projeto político de mudança. Aprendemos, a partir da experiência cotidiana, a envolver um grande número de mulheres que
chegam com suas histórias de vida e militância, demos conta de promover uma interação e aprendizagem mútua e, a partir
disso, construir novas sínteses e novos pontos de partida na busca de uma utopia conjunta, no que queremos vir a ser.
Nossa ação se baseia na crença na capacidade das mulheres como sujeitos políticos. É a partir de um forte
movimento de base popular do campo e da cidade que poderemos construir uma prática feminista que contamine e
impulsione alianças com outros setores envolvidos na luta por mudanças. É a partir de ações coletivas que nós mulheres
teremos vigor para revolucionar a sociedade e construir novas relações sociais e a superação de todos os mecanismos de
manutenção da opressão. Para a MMM, a construção de uma força própria das mulheres é fundamental inclusive para a
articulação das alianças necessárias com outros movimentos e organizações.
A utopia do feminismo anticapitalista aponta para um questionamento global do modelo atual e para a construção
de novas relações e novas subjetividades. Nossos acúmulos na prática cotidiana das mulheres apontam vários elementos
desse novo vir-a-ser: reconhecimento e valorização das relações afetivas, o bem-estar, o cuidado, a transcendência. Isso é
fruto de uma prática concreta que busca superar as dicotomias binárias, como a oposição entre razão e emoção, objetivo-
subjetivo, público-privado. Um aporte fundamental do feminismo é a exigência de uma prática fundada na coerência entre
vida privada e pública. Não se pode aceitar de maneira acrítica a existência de contradições entre o que defendemos na esfera
pública e nossa vida pessoal, nosso cotidiano.
Nesse sentido, faz parte da estratégia da Marcha ações com muita criatividade que partem da experiência concreta e
do conhecimento das mulheres. É fundamental a utilização de outras formas de expressão, para além da linguagem verbal. A
combinação das práticas de educação popular e as dos grupos de reflexão feminista são a base para o trabalho da MMM, que
é parte da constribuição do feminismo à construção de práticas emancipatórias, à conscientização da opressão e de como esta
se concretiza no corpo, na identidade, na autopercepção. Assim como atuamos para o reconhecimento do valor de cada uma,
inclusive como base para o amor próprio e a autonomia pessoal.
Entre os elementos de acúmulo em relação à construção de paradigmas emancipatórios podemos destacar que nos
últimos 10 anos avançamos em relação ao desafio de reconstrução do pensamento crítico e de práticas centradas na
construção de alternativas. Na MMM foi estratégico construir ações e um discurso crítico à mercantilização e à profunda
extensão da sociedade de mercado na globalização. Isso contribuiu para afirmar uma visão crítica e desconstruir
ambigüidades anteriores no que se refere a uma aparente democratização e avanço na normalização direitos. Em vários
setores do movimento de Mulheres, foi tratado como um paradoxo que, enquanto se avançava na formalização de direitos,
tenha havido retrocesso nas condições econômicas e outras conquistas anteriores, como políticas sociais. Nossa intervenção
trouxe a reflexão sobre como o mercado havia organizado a vida das mulheres. Essa crítica à mercantilização dos corpos e da
vida das mulheres possibilitou a reflexão sobre as conexões entre globalização, empresas transnacionais e o controle sobre o
trabalho, os corpos e os territórios. Por exemplo, pudemos ver que as mesmas transnacionais que atuam nas tecnologias
baseadas no controle do corpo e da reprodução também atuam na produção de sementes transgênicas. Da mesma forma, há a
conexão entre incremento da militarização e controle dos territórios e bens naturais e a violência contra as mulheres e sua
utilização como despojos de guerra.
Nessa trajetória, a solidariedade como valor e como prática é central. Os mecanismos de opressão seguem vigentes
em todas as sociedades, mesmo que haja diferenças culturais, econômicas e sociais, e alguns direitos conquistados, em alguns
países mais que em outros. Mas os mecanismos de desigualdade e hierarquização continuam sendo a base constitutiva da
sociedade. Por isso, não só a globalização de nossas lutas, mas também a construção de uma força mundial, com ações
enraizadas em cada local, poderão ser capazes de garantir um processo emancipatório irreversível. Isso se traduz em cada
grupo da Marcha, que se tornam mais fortes ao saber que mulheres estão na mesma luta em muitos países.
Na Marcha, temos dois princípios em relação a nossa organização: nossa auto-organização em um movimento
autônomo de mulheres que fazem parte de coletivos de mulheres e movimentos mistos; e a construção de alianças com outros
movimentos sociais. Queremos construir um projeto comum em que nós aprendamos com outras lutas e ampliemos nossa
agenda, mas que também imprima a marca feminista para que a luta antipatriarcal seja de todas e todos.

Referências bibliográficas
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DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E RELAÇÕES SOCIAIS DE SEXO

Danièle Kergoat

As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino


biológico, mas são antes de tudo construções sociais. Homens e mulheres não são uma coleção
– ou duas coleções – de indivíduos biologicamente distintos. Eles formam dois grupos sociais
que estão engajados em uma relação social específica: as relações sociais de sexo. Estas, como
todas as relações sociais, têm uma base material, no caso o trabalho, e se exprimem
através da divisão social do trabalho entre os sexos, chamada, de maneira concisa: divisão sexual
do trabalho.

A Divisão Sexual do Trabalho

Esta noção foi primeiro utilizado pelos etnólogos para designar uma repartição “complementar”
das tarefas entre os homens e as mulheres nas sociedades que eles estudavam; Levi-Strauss
fez dela o mecanismo explicativo da estruturação da sociedade em família. Mas são as
antropólogas feministas, as primeiras, que lhes deram um conteúdo novo demonstrando que
ela traduzia não uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos homens
sobre as mulheres (Mathieu, 1991a; Tabet, 1998). Utilizada em outras disciplinas como
história e sociologia, a divisão sexual do trabalho tomou, durante os trabalhos, valor de conceito
analítico.
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações
sociais de sexo; esta forma é adaptada historicamente e a cada sociedade. Ela tem por
características a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à
esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor
social agregado (políticas, religiosas, militares, etc...)
Esta forma de divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de
separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio de
hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um trabalho de mulher). Eles são
válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço – o que permite segundo
alguns e algumas (Héritier-Augé, 1984), mas não segundo outros (Peyre e Wiels, 1997)
afirmar que elas existem desta forma desde o início da humanidade. Estes princípios podem ser
aplicados graças a um processo específico de legitimação, a ideologia naturalista. Este processo
empurra o gênero para o sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados,
os quais remetem ao destino natural da espécie. No sentido oposto, a teorização em termos de
divisão sexual do trabalho afirma que as práticas sexuadas são construções sociais, elas
próprias resultado de relações sociais.
Portanto, não mais que as outras formas de divisão do trabalho, a divisão sexual do trabalho
não é um dado rígido e imutável. Se seus princípios organizadores permanecem os mesmos, suas
modalidades (concepção de trabalho reprodutivo, lugar das mulheres
no trabalho mercantil, etc...) variam fortemente no tempo e no espaço. Os aportes da história
e da antropologia o demonstraram amplamente: uma mesma tarefa, especificamente
feminina em uma sociedade ou em um ramo industrial, pode ser considerada tipicamente
masculina em outros (Milkman, 1987). Problematizar em termos de divisão sexual do trabalho
não remete, portanto a um pensamento determinista; ao contrário trata-se de pensar a
dialética entre invariantes e variações, pois se este raciocínio supõe trazer à tona os
fenômenos da reprodução social, ele implica estudar simultaneamente os deslocamentos e
rupturas daquilo bem como a emergência de novas configurações que tendem a questionar a
existência mesma desta divisão.

Da Opressão às Relações Sociais de Sexo

A divisão sexual do trabalho foi objeto de trabalhos precursores em vários países


(Madeleine Guilbert, Andrée Michel, Viviane Isambert-Jamati,...). Mas foi no começo dos anos
1970 que houve na França, sob o impulso do movimento feminista, uma onda de trabalhos que
dariam rapidamente as bases teóricas deste conceito.
Para começar, lembremos alguns fatos: não foi tratando a questão do aborto, como
usualmente se diz, que o movimento feminista começou. Foi a partir da tomada de
consciência de uma opressão específica: tornou-se coletivamente “evidente” que uma enorme
massa de trabalho era realizada gratuitamente pelas mulheres, que este trabalho era invisível, que
era feito não para si, mas para os outros e sempre em nome da natureza, do amor e do
dever maternal. E a denúncia (pensemos no título de um dos primeiros jornais feministas
franceses: Le torchon brûle1) se desdobra em uma dupla dimensão: basta2 de executar aquilo
que se conviria chamar “trabalho”, e que tudo se passa como se sua designação às mulheres, e
somente a elas, fosse automática e que não fosse visto nem reconhecido.
Muito rapidamente as primeiras análises desta forma de trabalho apareceram nas ciências
sociais. Para citar apenas dois corpos teóricos temos o “modo de produção doméstico”
(Delphy, 1974-1998), e o “trabalho doméstico” (Chabaud-Rychter et al., 1984). A
conceitualização marxista – relações de produção, classes sociais definidas pelo antagonismo
capital/trabalho, modo de produção – era na época preponderante pois nos situávamos em um
ambiente de esquerda – e sabemos que a maioria das feministas fazia parte da esquerda (Picq,
1993).
Mas, pouco a pouco, as pesquisas se desligaram desta referência obrigatória para analisar
o trabalho doméstico como atividade de trabalho com o mesmo peso que o trabalho
profissional. Isto permitiu considerar simultaneamente a atividade realizada na esfera doméstica
e na esfera profissional, e pudemos raciocinar em termos de divisão sexual do trabalho.
Por uma espécie de efeito bumerangue, depois que a “família”, sob a forma de entidade natural,
biológica ... desfez-se para aparecer prioritariamente como um lugar de exercício de um trabalho,
foi em seguida a esfera do trabalho assalariado, pensada até o momento

1
NT: O pano de prato queimado
2
NT: ela utiliza aqui a expressão consagrada no movimento “ras-le-bol”

2
em torno somente do trabalho produtivo e da figura do trabalhador masculino, qualificado,
branco, que implode (Delphy e Kergoat, 1984)
Este duplo movimento dá lugar, em muitos países, ao aparecimento de muitos trabalhos que
utilizam a abordagem em termos de divisão sexual do trabalho para repensar o trabalho e
suas categorias, suas formas históricas e geográficas, inter-relação das múltiplas divisões do
trabalho socialmente produzido. Estas reflexões permitiram trazer a campo conceitos como
tempo social (Langevin, 1997), qualificação (Kergoat, 1982), produtividade (Hirata e Kergoat,
1988) ou, mais recentemente, competência.
A divisão sexual do trabalho tinha, no começo, um status de articulação de duas esferas, como
indica o sub-título Estruturas familiares e sistemas produtivos do Sexo do trabalho publicado em
1984. Mas esta noção de articulação se mostrou rapidamente insuficiente: os dois princípios –
separação e hierarquia – se encontram em toda parte e se aplicam sempre no mesmo sentido,
era necessário passar a um segundo nível de análise: a conceitualização desta relação social
recorrente entre o grupo dos homens e o das mulheres.
Uma oficina, a APRE (Atelier production reproduction – Oficina produção reprodução),
funcionou regularmente a partir de 1985 desembocando em uma mesa redonda internacional:
Relações sociais de sexo: problemáticas, metodologias, campos de análise (Paris, 1987);
paralelamente algumas das participantes publicaram em 1986 A propósito das relações sociais de
sexo. Percursos epistemológicos, no quadro da ATP do CNRS “Pesquisas feministas e pesquisas
sobre as mulheres” (Battagliola et al.).
Entretanto, simultaneamente a este trabalho de construção teórica se iniciava um declínio da
força subversiva do conceito de divisão sexual do trabalho. O termo é agora usual no discurso
acadêmico das ciências humanas, e particularmente na sociologia. Mas na maior parte das vezes
ele é espoliado de toda conotação conceitual e retorna a uma abordagem sociográfica que
descreve os fatos, constata desigualdades, mas não organiza estes dados de maneira coerente.
O trabalho doméstico, que havia sido objeto de numerosos estudos, era muito raramente
analisado; mais precisamente, ao invés de se utilizar este conceito para reinterrogar a sociedade
salarial (Fougeyrollas-Schwebel, 1998) se fala em termos de “dupla jornada”, de
“acumulação” ou de “conciliação de tarefas” como se fosse somente um apêndice do trabalho
assalariado. Daí um movimento de deslocamento e focalização sobre este último (as
desigualdades no trabalho, no salário, trabalho em tempo parcial,...) e sobre o acesso à
política (cidadania, reivindicação de paridade,...). Por sua vez, o debate em termos de relações
sociais (de sexo) é bastante negligenciado.
Podemos ver aí os efeitos conjugados do desemprego em massa e das “novas formas de
emprego”, do crescimento do neoliberalismo, do declínio numérico da classe operária
tradicional, da queda do muro de Berlim com suas conseqüências políticas e ideológicas: o
esvaziamento da análise em termos de relações sociais acima da lógica econômica não poupou
nenhum setor das ciências sociais.

3
As Relações Sociais de Sexo

A noção de relações sociais foi, salvo notáveis exceções (Godelier, 1984; Zarifian, 1997), pouco
trabalhada como tal pelas ciências sociais na França.
A relação social é, no início, uma tensão que atravessa o campo social. Não é alguma coisa
passível de reificação. Esta tensão produz certos fenômenos sociais e, em torno do que está em
jogo neles se constituem grupos de interesses antagônicos. Em nosso caso, trata-se do grupo
social homens e do grupo social mulheres – os quais não são em nada passíveis de serem
confundidos com a bicategorização biologizante machos/fêmeas.
Estes grupos estão em tensão permanente em torno de uma questão, o trabalho e suas divisões.
Por isto podemos avançar as seguintes proposições: relações sociais de sexo e divisão sexual do
trabalho são dois termos indissociáveis e que formam epistemologicamente um sistema; a
divisão sexual do trabalho tem o status de enjeu3 das relações sociais de sexo.
Estas últimas são caracterizadas pelas seguintes dimensões:
- a relação entre os grupos assim definidos é antagônica;
- as diferenças constatadas entre as práticas dos homens e das mulheres são
construções sociais e não provenientes de uma causalidade biológica;
- esta construção social tem uma base material e não é unicamente ideológica – em
outros termos, a “mudança de mentalidades” jamais acontecerá espontaneamente se estiver
desconectada da divisão de trabalho concreta – podemos fazer uma abordagem histórica e
periodiza-la;
- estas relações sociais se baseiam antes de tudo em uma relação hierárquica entre os sexos,
trata-se de uma relação de poder, de dominação.

Esta relação social tem, além disso, características singulares: ela se encontra, já vimos, em todas
as sociedades conhecidas, e mais, ela é estruturante para o conjunto do campo social e
transversal à totalidade deste campo – o que não é o caso do conjunto das relações sociais.
Podemos então considera-la como um paradigma das relações de dominação.

Do Campo Epistemológico ao Espaço do Político

Já vimos, a expressão “divisão sexual do trabalho” tem sentidos muitos diferentes e muitas
vezes se remete a uma abordagem descritiva. Isto foi e permanece indispensável (por exemplo, a
construção de indicadores confiáveis para medir a (des)igualdade profissional homens/mulheres é
um verdadeiro desafio político na França). Mas falar em termos de divisão sexual do trabalho é
ir mais além de uma simples constatação de desigualdades: é articular esta descrição do real
com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza esta diferenciação para
hierarquizar estas atividades.
Há debate sobre o conteúdo da expressão “relações sociais de sexo”. Para tornar preciso os
termos, lembremos que o idioma francês tem a vantagem de propor duas palavras:
3
NT: o que está em jogo, em disputa, o desafio.

4
“rapport” e “relation”4. Uma e outra recobrem dois níveis de apreensão da sexuation do social
(tornar o social sexuado). A noção de rapport social dá conta da tensão antagônica que se
desenrola em particular em torno da questão divisão sexual do trabalho e que termina na
criação de grupos sociais que têm interesses contraditórios. A denominação “relations” sociais
remete às relações concretas que mantém os grupos e indivíduos. Assim, as formas sociais
“casal” ou “família” tal como podemos observar em nossas sociedades são de uma só vez
expressão das relações (rapports) sociais de sexo configurados por um sistema patriarcal, e ao
mesmo tempo elas são consideradas como espaços de interação social que vão eles mesmos
recriar o social e dinamizar parcialmente o processo de como se torna sexuado o social.
Insistir sobre o antagonismo ou sobre o vínculo corresponde então a duas posturas de pesquisa
que tornam-se contraditórias quando deixamos o plano da observação para passar ao da
epistemologia: são as relações sociais que pré-configuram a sociedade. Versus: é a
multiplicidade de interações que, no seio de um universo browniano, cria pouco a pouco as
normas, as regras... que podemos observar em uma sociedade dada. E nesta última perspectiva,
relativamente hegemônica nas ciências sociais atualmente, que somos levadas a falar, por
exemplo, de complementaridade de tarefas e por conseqüência de designar prioritariamente às
mulheres – e com toda “legitimidade” – o trabalho em tempo parcial.
Como podemos ver, o que está em jogo neste debate não é somente de ordem epistemológica.
É também de ordem política. Trata-se: 1) de compreender historicamente como as relações
sociais tomaram corpo nas instituições e legislações (o casal, a família, a filiação, o trabalho, o
Código Civil, etc.) que têm por função cristalizar tudo, legitimando o estado das relações de força
entre os grupos em um momento dado (Scott, 1990) e 2) desvelar novas tensões geradas na
sociedade e procurar compreender como elas deslocam as questões e permitem
potencialmente deslegitimar as regras, normas e representações que apresentam os grupos
sociais constituídos em tornos destas questões como grupos “naturais”. Em síntese, é poder
pensar a utopia ao mesmo tempo em que se analisa o funcionamento do social.
Portanto, os grupos de sexo não sendo mais “categorias” imutáveis, fixas, a-históricas e a-sociais,
podemos periodizar a relação que os constitui um pelo outro (graças à análise da evolução das
modalidades das questões sociais) e podemos então abordar o problema da mudança – e não
somente do rearranjo – do social.
Este ponto de vista, minoritário nas ciências sociais, permanece, no entanto, amplamente
compartilhado por aquelas e aqueles que trabalham sobre a sexuation do social e
reconhecem a opressão de um sexo pelo outro. E isto desde o início dos anos 1970 na França.
Entretanto, duas questões permanecem em debate:
- É necessário centrar a reflexão somente sobre as relações sociais de sexo ou, ao
contrário, tentar pensar o conjunto das relações sociais em sua simultaneidade? A
tentação de hegemonizar uma só relação social – no caso a relação social de sexo – é grande,
mesmo que fosse só para tentar preencher o vazio quase total na matéria. Estes trabalhos,
geralmente brilhantes (pensemos por exemplo nos de Delphy, Guillaumin, Mathieu,...),
oferecem instrumentos poderosos, novos e explicativos. Mas
4
NT: em português ambas se traduzem por relação.
considerar somente a relação de dominação homem/mulher, e as lutas contra ela, é insuficiente
para tornar inteligíveis a diversidade e a complexidade das práticas sociais masculinas e femininas.
- O segundo debate – e passamos aí da construção do objeto de pesquisa à interpretação
dos fatos observados – retorna à caracterização da relação social de
sexo. Em O Sexo do trabalho e nos trabalhos
- coletivos e individuais que se seguiram se exprimiu um amplo consenso sobre a
transversalidade das relações sociais de sexo. Mas esta caracterização é insuficiente se não se
soma a ela uma outra dimensão: a interpenetração constante das relações sociais. Tomemos o
exemplo do modo de produção capitalista: ele é construído sobre a separação dos lugares e
tempos da produção e da reprodução; quanto ao que chamamos “trabalho doméstico” é uma
forma histórica particular do trabalho reprodutivo, forma inseparável da sociedade salarial. Em
outros termos, as relações sociais são consubstanciais.

Este debate não se reduz a uma querela escolástica: ele remete a posições analíticas muito
diferentes tanto do ponto de vista científico quanto do ponto de vista político. Assim torna-se
impossível isolar o trabalho ou o emprego das mulheres, trata-se ao contrário de operar
simultaneamente, como elementos centrais explicativos, com a evolução das relações de sexo,
de classe e norte/sul; o mesmo para a família, a explosão destas formas sociais e tentativas de
enquadramento jurídico; ou a evolução de formas de virilidade, paternidade/maternidade, ou os
debates atuais sobre imigração e agrupamento familiar.
Esta consubstancialidade das relações sociais permite compreender a natureza das fortes
turbulências que atravessam atualmente a divisão sexual do trabalho. Dois exemplos:
- A aparição e o desenvolvimento, com a precarização e a flexibilização do emprego, dos
“nomadismos sexuais” (Kergoat, 1998): nomadismos no tempo para as mulheres (é o grande
aumento do trabalho em tempo parcial geralmente associado à concentração de horas de
trabalho dispersas na jornada ou na semana); nomadismos de espaço para os homens
(interinos, canteiros de BTP e nucelares para os operários, banalização e multiplicação dos
deslocamentos profissionais na Europa e no mundo para os executivos superiores). Aqui se
vê bem como a divisão sexual do trabalho e do emprego e, de maneira recíproca, como a
flexibilização podem reforçar as formas mais estereotipadas das relações sociais de sexo.
- O segundo exemplo é a dualização do emprego feminino, o que ilustra bem o cruzamento
das relações sociais. Desde o começo dos anos 1980 o número de mulheres
contabilizadas pelo INSEE (pesquisas emprego) como “executivas e profissionais
intelectuais superiores” mais do que dobrou: cerca de 10% das mulheres ativas estão
atualmente nesta categoria. Simultaneamente à precarização e à pobreza de um número
crescente de mulheres (elas representam 46% da população ativa, mas 52% dos
desempregados e 79% dos baixos salários), assistimos a um aumento dos capitais
econômicos, culturais e sociais de uma proporção de mulheres ativas que não pode ser
desconsiderada. Vemos surgir assim pela primeira vez na história do capitalismo uma
camada de mulheres cujos interesses diretos (não mediados como
antes pelos homens: pais, esposos, amantes...) se opõem frontalmente aos
interesses daquelas tocadas pela generalização do tempo parcial, dos
empregos de serviço muito mal remunerados e não reconhecidos socialmente
e, usualmente mais atingidas pela precariedade.

Podemos assim trabalhar de conjunto sobre a totalidade do social sem se


apressar em buscar a “boa” relação social ou a “boa” identidade individual ou
coletiva. Considerar que estas relações sociais não evoluem no mesmo ritmo
no tempo e no espaço no permite perceber de uma só vez a complexidade
e a mudança. E assim, as categorias sociais – evidentemente sempre
definidas pelos dominantes – explodirão deixando espaço a um conjunto
móvel de configurações nas quais os grupos sociais se fazem e desfazem,
os indivíduos construindo sua vida por meio de práticas sociais muitas
vezes ambíguas e contraditórias.

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des corps, Paris, L’Harmattan “Bibliothèque du féminisme”, 1998, 206 p.
[textes de 1979 et 1985].

Este artigo foi publicado no Dictionnaire critique du féminisme, organizado


por Helena Hirata, Françoise Laborie, Hélène Le Doaré, Danièle Senotier. Ed.
Presses Universitaires de France. Paris, novembro de 2000. Traduzido por
Miriam Nobre em agosto de 2003.
DINÂMICA E CONSUBSTANCIALIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS*

Danièle Kergoat
tradução de Antonia Malta Campos1

RESUMO
Conflitos de classe, de gênero e raciais tendem a ser concebi-
dos, interpretados e enfrentados isoladamente. A autora analisa desenvolvimentos no campo dos estudos feministas e
da sociologia do trabalho que apontam para a interdependência dessas categorias sociais, tanto no plano teórico como
na prática de movimentos sociais de mulheres e trabalhadoras.
PALAVRAS-CHAVE: Relações sociais; classe; gênero; raça;
consubstancialidade.

ABSTRACT
Class, gender and racial conflicts are often thought of,
interpreted and handled as isolated. The author presents developments in feminist and labor studies which suggest
the interdependency of these social categories, theoretically and in the political practices of women’s and worker’s
social movements.
KEYWORDS: Social relations; class; gender; race; consubstantiality.

[*] Este artigo é uma versão revista e Desde os anos de 1970-19802 mobilizo os conceitos
ampliadadaconferênciaapresentada
no dia 8 de setembro de 2006 na ses-
deconsubstancialidade e coextensividade para procurarcompreender
são “Pensar o intricamento dos siste- de maneira não mecânica as práticas sociais de homens e mulheres
mas de dominação: gênero, classe e
raça” do 11º Congresso da Associação
frente à divisão social do trabalho em sua tripla dimensão: de classe,
Francesa de Sociologia (AFS), em de gêneroe origem (Norte/Sul).Tais práticas nãose deixam apreender
Bordeaux.
por noções geométricascomoimbricação,adição,intersecção e multi-
[1] Revisãotécnica de HelenaHirata. posicionalidade — elas são móveis, ambíguas e ambivalentes. No en-
tanto, não basta afirmar que compreendemos a sociedade em termos
[2] Vale acresentar quea experiência de relações sociais — é preciso antes definir tais relações, e suas pro-
que vivi como militante feminista e
sindicalista tornou impossível para
priedades. Utilizando as metáforas de “círculo” e “espiral”, procurarei
mim separar ou hierarquizar os efei- esclarecer minha maneira de apreender os fenômenos sociais a partir
tos das relações de classe e de gênero.
de uma perspectiva materialista, histórica e dinâmica, e retomarei às
definições de consubstancialidade das relações sociais e sua propriedade
essencial:a coextensividade.Nopresenteartigo,procuroresponder às
seguintes questões: O que é uma relação social? Quais são suas pro-
priedades?Porqueéheuristicamenteproveitosoapreenderaspráticas
sociais em termos de relações sociais? Como o fazer,concretamente?
AS RELAÇÕES SOCIAIS E SUAS PROPRIEDADES

Uma relação social é uma relação antagônica entre dois realidade, tal como a
grupos so- ciais, instaurada em torno de uma disputa vivenciamos, tampouco
[enjeu]. É uma relação de produçãomaterial eideal3:Colette corresponde às estatís-
Guillaumin mostrou,por exemplo, que a “racialização” é a [3]

construção ideológica e discursiva da natureza dos dominados, a Godelier,Maurice.L’idéeletlema- tériel:

“face mental” e cognitiva dos vínculos materiais de poder. Toda pensée, économies, sociétés. Paris,

relação social é,assim,uma relação conflituosa. Fayard, 1982.

Tomemos o paradoxo das relações sociais de sexo: [4] O termo, emprestado da teo-
simultanea- mente à melhora da situação da mulher, em logia, não deve gerar confusão: ele é
particular no mercado de trabalho, ocorre a persistência, às utilizado aqui em sua acepção mais
vezes mesmo a intensificação, da divisão sexual do trabalho. trivial, de “unidade de substância”.
Falar em consubstancialidade suge-
“Tudo muda, mas tudo permanece igual”. Esse paradoxo me re que a diferenciação dos tipos de
relações sociais é uma operação por
parece bastante ilustrativo dos impasses que um tipo de vezes necessária à sociologia, mas
pensamento que segmenta as relações sociais, que os consi- dera queéanalítica enãopodeseraplicada
isoladamente, enfrenta. A minha tese, no entanto, é: as relações inadvertidamente à análise das práti-
cas sociais concretas.
sociais são consubstanciais4;elas formam um nó que não pode ser desa-
tado no nível das práticas sociais,mas apenas na perspectiva da análi- [5] O termo “raça” é utilizado aqui
da mesma forma que classe ou sexo,
se sociológica; e as relações sociais são coextensivas: ao se desenvolve- isto é, como categoria socialmente
rem, as relações sociais de classe, gênero e “raça”5 se reproduzem e se construída, resultado de discrimina-
ção e produção ideológica (Guillau-
co-produzem mutuamente. min, Colette. L’idéologie raciste.
Paris: Gallimard, 2002 [1972] [col.
Voltemos ao paradoxo. A participação da mulher no mercado de “Folio Essais”]). Dada a carga social
trabalho aumenta,mas as segmentações,horizontais e verticais,entre e histórica da palavra, no entanto,
utilizarei-a entre aspas. Tal solução
empregos masculinos e femininos, perduram. As desigualdades de não é totalmente convincente, mas
salário persistem, e as mulheres continuam a assumir o trabalho do- os debates não conduziram ainda ao
estabelecimento de uma alternativa
méstico. A meu ver, no entanto, isso não representa nenhuma aporia teorica e ideologicamente consensual
ou contradição interna às relações sociais de sexo, mas aponta para o entre os sociólogos. Portanto, faço
aqui um uso estratégico da palavra
fato de que o capitalismo tem necessidade de uma mão-de-obra flexí- raça, apontando para um conceito
vel, que empenhe cada vez mais sua subjetividade: o trabalho domés- politico, cultural e social, que eviden-
temente não deve ser tomado no sen-
tico assumido pelas mulheres libera os homens e,para as mulheres de tido biológico.
alta renda,há a possibilidade de externalização do trabalho doméstico
para outras mulheres.
Assim,nãosepodeargumentarnoâmbitodeumaúnicarelaçãoso-
cial. O suposto paradoxo aponta para a imbricação, na própria gênese
da divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo, de diferentes
relações sociais,e de relações sociais que não podem ser abordadas da
mesma maneira.
Tomemos um outro exemplo da análise das propriedades das re-
lações sociais: o sentimento de muitas mulheres, e em particular de
muitas mulheres jovens, de que a igualdade está garantida ou pode
ser realizada rapidamente, de que o sucesso profissional é possível e a
divisão das tarefas é um problema de negociação entre os indivíduos
que compõem um casal, uma questão de simples “boa vontade”. Este
sentimento é evidentemente paradoxal, pois ele não corresponde à
[6] Isso pode ser explicado pelo fato ticas6. Essa ilusão vem do fato de que tanto especialistas como leigos
deque,naconsciênciacoletiva,aigual- freqüentemente misturam dois níveis distintos de realidade, o das
dade não é mais uma utopia mobiliza-
dora,masumestereótipo,umcliché.E relações intersubjetivas e o das relações sociais. As relações intersub-
isso não é recente: cf. os trabalhos de jetivas são próprias dos indivíduos concretos entre os quais se estabe-
JeanKellerhals(“Ambiguïtésnormati-
ves de l’échange conjugal: le problème lecem. As relações sociais, por sua vez, são abstratas e opõem grupos
de la norme d’équité”. Revue Suisse de sociais em torno de uma disputa [enjeu].
Sociologie, 1981, vol. 7, nº 3, pp. 311-327)
sobre anormaigualitária.
A distinção entre relação intersubjetiva e relação social permite
compreender que, se a situação mudou de fato em matéria de relações
[7] Em um grande número de so-
ciedades, ocorre uma reorganização
intersubjetivas entre os sexos e nos casais7,as relações sociais,porém,
das relações entre os sexos. Encon- continuam a operar e a se manifestar sob suas três formas canônicas:
tramos um bom panorama disso em
artigo de Mens, Yann. “Europe, Chi-
exploração, dominação e opressão8 (que podem ser ilustradas pelas
ne, Moyen-Orient, Afrique: famille, diferenças salariais, pela maior vulnerabilidade e maior risco de ser
le grand chambardement”, <http://
www.alternatives-internationales.fr/
vítima de violências).Ou seja,se de um lado há um deslocamento das
article.php3?id_article=330>. linhas de tensão, de outro, as relações sociais de sexo permanecem
[8] Para a diferenciação destas três
intactas9. Da mesma maneira, são as práticas sociais — e não as rela-
noções remeto a Dunezat, Xavier. ções intersubjetivas — que podem dar origem a formas de resistência
Chômage et action collective. Luttes dans
la lutte: mouvements de chômeurs et chô-
e que podem,portanto,ser as portadoras de um potencial de mudança
meuses de 1997-1998 en Bretagne et rap- no nível das relações sociais. O exemplo da Coordination Infirmière,
ports sociaux de sexe. Versailles: tese de
doutorado,UVSQ,2004,pp.111ss.
movimento social do fim da década de 1980 na França,é esclarecedor.
Nas reuniões do movimento, o convívio era inegavelmente feminino:
[9] Emoutrocampo,odasjogadoras
de futebol profissionais, Christine
as integrantes faziam questão de chamar-se pelo nome,perguntar so-
Mennesson demonstrou que as prá- bre a saúde, comentar uma roupa nova ou uma ida ao cabeleireiro etc.
ticasinovadorasquenãoultrapassam São formas de relação intersubjetiva que suavizam o clima das reu-
o nível das relações sociais podem
questionarasrelaçõessociaisdesexo, niões, mas que não afetam de maneira alguma a dinâmica da domi-
masnãoascolocamrealmenteempe- nação masculina no interior do movimento. Assim que uma disputa
rigo. Cf. Mennesson. Etre une femme
dans le monde des hommes: socialisation surgia nohorizonte,os velhos mecanismos voltavam ao seulugar (por
sportive et construction du genre. Paris, exemplo: quem falará à imprensa?). O que pode de fato questionar as
L’Harmattan, 2005.
relações sociais de sexo são as práticas sociais coletivas: por exemplo,
decisões como quais as mulheres que terão as responsabilidades for-
mais (presidência da associação) e práticas (responsabilidades orga-
nizacionais durante as manifestações), ou a decisão de que haja um
aprendizado coletivo em situações de fala diante de um público etc.
Não é por serem mulheres que as enfermeiras são subversivas
quanto à relação social de sexo — vemos com este exemplo que o su-
jeito das lutas não se justapõe ao sujeito da dominação —, mas sim
porque se transformaram em um sujeito coletivo produtor de sentido
e sujeitode sua própria história.Elas saíram da imagem imposta de fe-
minilidade para se tornarem mulheres portadoras de poder de ação na
construção e no desenvolvimento das relações sociais. Por meio delas,
o grupo social “mulheres” apropriou-se de outras maneiras de pensar
[10] Godolier, op. cit. e agir, de outras formas de “produção social da existência humana”10.
Da mesma maneira, quando realizava uma pesquisa sobre traba-
lhadoras, eu procurava explicitar que, com o termo “trabalhadoras”,
não buscava apenas “mulheres”, mas tampouco “trabalhadores”. Por
isso, evitei naturalizar a expressão “mulheres trabalhadoras”. Ao con-
trário,tentei mostrar como elas se inscreviam de maneira original nas
relações sociais de sexo, assim como nas relações de classe. O proble-
ma era mostrar como elas muitas vezes se constituíam, em suas lutas,
como sujeitos coletivos de sua própria história,sujeito completamen-
te original em suas práticas,e como sujeito sempre em transformação
e irredutível a uma única categoria.

RELAÇÕES SOCIAIS E CATEGORIZAÇÃO: RELAÇÃO COMPLEXA

O problema da categorização é inerente a qualquer atividade que


consista em analisar oentrecruzamento de relações sociais.Este tema,
assimcomoodauniversalidadeedaintersecçãodasrelações,éumdos
problemas centrais com os quais se confrontam os estudos pós-colo-
niais e o feminismo negro (black feminism).
O cruzamento das categorias de “raça”/gênero/classe não é
uma novidade na tradição francesa. Sem termos que voltar a Flora
Tristan — o que seria, de qualquer forma, proveitoso para tratar
de nossa questão —, podemos notar um bom número de traba-
lhos que não precisaram se valer dos estudos pós-coloniais ou do
feminismo negro para insistir no entrelaçamento entre domina-
ções. As divisões decorrentes da desigualdade de classe, de sexo
e de pertencimento a um grupo étnico eram reconhecidas em cer-
tos meios de militância e por alguns trabalhos acadêmicos: vale
lembrar o colóquio internacional organizado em 1987 pelo Atelier
Production et Repreoduction11 sobre as relações sociais desexo,eas [11] Collectif APRE. Les rapports so-
afirmações e demonstrações de que “a classe era dotada de gênero” ciaux de sexe: problématiques, méthodo-
logies, champs d’analyse. Paris: Iresco,
e de que “o gênero era dotado de classe”; os estudos sobre a divisão 1988.
sexual do trabalho que insistiram na necessidade de cruzar as rela-
ções de gênero com as relações de classe e com a relação Norte/Sul;
ou ainda, evidentemente, os trabalhos de Colette Guillaumin12 que [12] Guillaumin, op. cit.
propuseram uma análise dos processos ideológicos recorrentes de
naturalização do sexo e da “raça”.
Mas esses trabalhos ainda eram minoria. Além disso, tais entre-
cruzamentos de desigualdades foram antes objeto de alusões que de
análises aprofundadas: nesses estudos, classe e “raça” eram associa- [13] Evidentemente há exceções: ver
das, mas sem que para tanto fosse preciso dar centralidade a tal im- por exemplo os trabalhos de Armelle
Testenoire (“Eloignésauquotidienet
bricação. Assim, apesar das promissoras teorizações marxistas dos ensemble: arrangements conjugaux
anos de 1980, poucos estudos dedicaram-se, em termos de relações en milieu populaire”. Cahiers du Gen-
re, 2006, nº 41).
de gênero, às práticas de mulheres das classes populares13, enquan-
to, metodologicamente, a “família” permaneceu (e ainda permanece) [14] E para uma mulher de “minorias
raciais” e para uma mulher “bran-
associada àquelas das classes médias e altas, sendo evidente que as ca”. Mas isto começa a ser estudado
configurações familiares não são da mesma ordem para uma mulher graças à consideração da “raça” em
trabalhos recentes, em particular de
da burguesia e para uma mulher de classe popular14. jovens pesquisadore(a)s.
Oimpassearespeitodasclassessociaisnãodesapareceu.Na Fran-
ça, como em outros lugares, as disputas e os antagonismos de classe
[15] O fim da sociedade de classes vêm se aprofundando15. É certo que os estudos feministas invocam
tradicional não permite a resolução regularmente a necessidade do cruzamento entre gênero, “raça” e
do impasse sobre as relações de clas-
se. Estas vêm se exacerbando, não classe. No entanto, o cruzamento privilegiado é entre “raça” e gênero,
mais graças ao movimento operário enquanto a referência à classe social não passa muitas vezes de uma
como no período glorioso entre 1945
e 1974, mas em virtude das classes citação obrigatória. É interessante notar que essa minimização dos
dirigentes. Um único indicador des- conflitos de classe se verifica também nos Estados Unidos. Em en-
ta exacerbação: a evolução das taxas
de pobreza, publicada pelo Insee em trevista recente, Toni Morrison, pouco suspeita de ser indiferente aos
julho de 2007.Durante 2005 (último problemasde“raça” egênero,afirmouque“portrásdastensõesraciais
ano disponível), a taxa de pobreza
passou de 11,7% a 12,1%: 260 mil nos Estados Unidos, se esconde, na realidade, um conflito entre clas-
pessoas se tornaram pobres. Trata-se ses sociais — [que] é um tabu muito maior do que o racismo”16.
de um agravamento sensível, pois é
o maior aumento desde que existem Na França, a estrutura da cena militante e política é tal que poucos
tais estatísticas. homensemulheresdegruposdominados,oucomorigememtaisgru-
[16] Morrison, Toni. “Luttes de clas-
pos, podem fazer-se ouvir. No caso do feminismo negro, no entanto,
ses et pauvreté plus tabous que le muitos dos estudos foram realizados por mulheres negras, freqüen-
racisme”. Entrevue avec Gie Gorris.
MO* Magazine, 6/02/2007. Trad.
temente oriundas de meios populares. Foi o que as permitiu avançar
francesa Edith Rubinstein. <http:/ em conceitos como o de “dupla consciência” (double consciousness)17,
sisyphe.org/article.php3 ?id_arti-
cle=2625>, acessado em 01/03/2007.
que procura compreender o caso de trabalhadoras domésticas negras
e seu duplo posicionamento, de proximidade e distância, em relação
[17] Hooks, Bell. Feminist thery: from
margin to center. Boston: South end
ao “poder branco”18 e, de modo mais geral à noção de interlocking syste-
Press, 1981. ms19,que procura compreender o entrelaçamento entre os sistemas de
[18] Poderíamos utilizar igualmente
classe,raça e sexo.
o exemplo daquilo que Rhacel Parre- Essa origem de classe (classe sexual, classe social, classe étnica) é
nas Salazar (Servants of globalisation:
women, migration and domestic work.
determinante na compreensão da gênese e do desenvolvimento des-
Standford, California: Standford ses conflitos. Em particular, tem como conseqüência a percepção da
University Press, 2001) chamou de “raça” como uma possível modalidade de experiência de classe, pois,
“mobilidade de classe contraditória”.
Este conceito considera, por número ao trazer a experiência e o sujeito para o centro das análises, permite a
de imigradas, a simultaneidade da passagem do problema da dominação pura para o problema das resis-
experiência de desqualificação social
edaascençãonahierarquiaeconômi- tências,da revolta e da emergência dos movimentos sociais20.Tais tra-
ca em relação às pessoas deixadas no balho anglófonos não trazem uma novidade radical, no entanto; eles
país de origem e às condições econô-
micas vividas anteriormente. apenasabrema possibilidade de atualizaçãoe visibilidade para teorias
e conceitos que se encontravam marginalizados no campo acadêmico
[19] Hill, Collins. Black feminist
thought: knowledge, conciousness and e,dessa forma,o enriquecimento dos estudos feministas.
the politics of empowerment. Londres:
Harper, 1990.
Apesar de estes trabalhos oferecerem grandes contribuições para o
campodeinvestigação,issonãosignificaquedevamosacatarsemcau-
[20] Combahee River Collective.
“Déclaration du Combahee River
tela seus conceitos centrais:a racialização dos antagonismos de classe
Collective”. In: Falquet e outros (co- nos Estados Unidos, por exemplo, não pode nos fazer subestimar os
ords.). (Ré)articulation des rapports
sociaux de sexe, classe et “race”. Repè-
conflitos em outros países,como a França.Tomarei aqui o exemplo da
res historiques et contemporains. Paris: noção de interseccionalidade, que atualmente se tornou uma espécie de
Université (Cahiers du Cedref),
2006; Davis, Angela. Femmes, race et
“receita”. A interseccionalidade, para retomar a definição de Kimberlé
classe.Paris/Nova York:Des Femmes/ Crenshaw em seu artigo “Mapping the margins”, refere-se à “manei-
Random House, 1983 [1981]. ra como o posicionamento das mulheres negras, na intersecção de
raça e gênero, torna sua experiência concreta da violência conjugal,
da violência sexual e das medidas para remediá-las qualitativamente
diferente da experiência concreta das mulheres brancas”21. Trata-se [21] Crenshaw, Kimberlé Williams.
“Mapping the margins: intersectio-
portanto de apreender a variedade das interações das relações de gê- nality, identity politics, and violence
nero e de “raça”, o mais próximo possível da realidade concreta das against women of color”. In: Fine-
man, Martha Albertson e Mykitiuk,
mulheres afro-americanas. O próprio título do artigo [“Mapeamento Rixanne (eds.), The public nature of
dasmargens”] é umresumodacrítica quefaço a ele:pensarem termos private violence.Nova York,Routledge,
1994, pp. 93-118.
de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas. Elsa Dor-
lin antecipou essa crítica:

[…]adefinição[deCrenshaw]dasrelaçõessociaiscomosetoresdeinterven- ção
implica que as mulheres […] que enfrentam mais do que uma discrimi-
nação se acham em setores isolados. […] O conceito de interseccionalidade
e, de maneira geral, a idéia de intersecção, dificulta pensar uma relação de
dominação móvel e historicamente determinada […]. Em outros termos, a
interseccionalidade é um instrumento de análise que coloca as relações em
posições fixas,que divide as mobilizações em setores,exatamente da mesma
maneira pela qual o discurso dominante naturaliza e enquadra os sujeitos
em identidades previamente definidas22. [22] Dorlin, Elsa.“De l’usage épisté-
mologique et politique des catégories
de ‘sexe’ et de ‘race’ dans les études
Dito de outra forma, a multiplicidade de categorias mascara as re- sur le genre”. Cahiers du Genre, 2005,
nº 39, pp. 83-105, pp. 92-93.
lações sociais. Ora, não podemos dissociar as categorias das relações
sociais dentro das quais foram construídas. Assim, trabalhar com ca-
tegorias, mesmo que reformuladas em termos de intersecções, impli-
ca correr o risco de tornar invisíveis alguns pontos que podem tanto
revelar os aspectos mais fortes da dominação como sugerir estratégias
de resistência. A noção de multiposicionalidade apresenta, portanto,
um problema,pois não há propriamente “posições” ou,mais especifi-
camente, estas não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâ-
micas, estão em perpétua evolução e renegociação.
Os estudos pós-coloniais e o feminismo negro tiveram de fato o
mérito de desconstruir o pseudo universalismo das grande teorias,
de apresentar o problema da heterogeneidade do grupo das mu-
lheres e também de colocar radicalmente em questão as noções de
solidariedade e fraternidade. É este o sentido da reflexão de Audre [23] Lorde, Audre. “Age, race, class
and sex: women redefining differen-
Lorde23, que insiste na importância da noção de “diferenças” como ce”. Trabalho apresentado no Collo-
“catalisadores” da mudança social e critica a confusão freqüente que de Copeland. Amherst: Amherst
College, 1980.
entre a “necessidade de união e a necessidade de homogeneidade”.
Em um outro registro, são os trabalhos de bell hooks que chegam [24] Para uma exposição exaustiva
dos trabalhos norte-americanos que
à questão: São as diferenças que levam a uma experiência feminina discutem a questão da fragmentação
compartilhada? Ou a luta contra o sexismo é suficiente para uni- do grupo das mulheres e seu ques-
tionamento como classe distinta, cf.
ficar a classe das mulheres? Enfim, é suficiente falar somente de Juteau, Danielle. “De la fragmenta-
diferenças e antagonismos entre as mulheres,ou é o próprio gênero tion à l’unité: vers l’articulation des
rapports sociaux”. In: L’ethnicité et ses
que, construído diferentemente segundo posições de classe e de frontières. Montréal: Les Presses de
raça, é questionado24? l’Université de Montréal, 1999.
Tais questões são evidentemente cruciais — e poderíamos nos re-
ferir também, nesse contexto, a grupos de classes sociais ou a grupos
racializados. É certo que, colocadas desta maneira, em termos de “ou
isso/ou aquilo”, elas parecem levar a um impasse. Colocar o problema
nos termos da consubstancialidade das relações sociais permite uma
outra abordagem: de acordo com uma configuração dada de relações sociais,
o gênero (ou a classe, a raça) será — ou não será — unificador. Mas ele não
é em si fonte de antagonismo ou solidariedade. Nenhuma relação social é
primordial ou tem prioridade sobre outra. Ou seja, não há contradi-
ções principais e contradições secundárias. Quando as mulheres da
rede hoteleira Accor enfrentam conflitos, o fazem como mulheres,
trabalhadoras, mulheres negras; não fazem reivindicações separadas.
Lutando dessa maneira, elas combatem a superexploração de todos e
todas e sua luta, assim,tem alcance universal.
Essa abordagem exige o esclarecimento de alguns princípios, se
não quisermos confundir práticas sociais, relações sociais e iden-
tidade, e se não quisermos que a idéia de consubstancialidade seja
usada em todo e qualquer registro e se torne, por assim dizer, um
saco de gatos.

ALGUNS PRINCÍPIOS DE UTILIZAÇÃO DA NOÇÃO DE RELAÇÕES SOCIAIS

O objetivo é, portanto, desnaturalizar radicalmente as constru-


ções que se baseiam na diferenciação das desigualdades, sem com
isso perder de vista a dimensão concreta das relações sociais. Essa
análise vai contra a idéia de que,por exemplo,as relações de classe se
inscrevem unicamente na instância econômica,e as relações patriar-
cais, unicamente na instância ideológica. Cada um desses sistemas
possui suas próprias instâncias, que exploram economicamente,
dominam e oprimem. Estas instâncias articulam-se entre si, de ma-
neira intra e intersistêmica.Tal enunciado lança um desafio à análise
empírica. Como não isolar as relações sociais, se não quisermos tra-
balhar com categorias reificadas? Para esboçar uma resposta a esta
questão, enumero a seguir alguns princípios e proponho algumas
orientações metodológicas.
Em primeiro lugar, um imperativo materialista: essas relações —
[25] É por isso que não falo aqui de gênero, “raça”, classe — são relações de produção25. Nelas, entrecru-
relações sociais de idade/geração.
Estas não aparecem como relações de
zam-se exploração, dominação e opressão. É indispensável analisar
produçãonoqueconcerneànossaso- minuciosamente como se dá a apropriação do trabalho de um grupo
ciedade,embora possa ser o caso para
outras sociedades.
por outro, o que nos obriga a voltar às disputas (materiais e ideoló-
gicas) das relações sociais. Por exemplo, no que concerne às relações
sociais de sexo, tais disputas são formadas pela divisão do trabalho
entre os sexos e o controle social da sexualidade e da função reprodu-
tiva das mulheres.
Em seguida, um imperativo histórico: o caráter dinâmico das re-
lações sociais é central para a análise. Elas devem ser historicizadas,
pois possuem uma estrutura que permite sua permanência, mas
também passam por transformações que correspondem a períodos
históricos e a eventos que podem acelerar seu curso. No entanto,
não se deve jamais historicizar uma relação social em detrimento de
outras. Isso significaria transformar a relação em categorias caracte-
rizadas pela metaestabilidade.
O terceiro imperativo:definir as invariantes nos princípios de fun-
cionamento das relações sociais.Por exemplo,a divisão sexual do tra-
balho:suas formas são extremamente instáveis no tempo e no espaço,
mas isso não afeta o fato de que há dois princípios organizadores — o
princípiodaseparação(otrabalhodohomemédistintodotrabalhoda
mulher) eo princípio da hierarquia (o trabalhodohomem“vale” mais
do que o trabalho da mulher)26. [26] Kergoat, Danièle. “Division se-
xuelle du travail et rapports sociaux
Por fim, devemos estar atentos à maneira como os dominados de sexe”. In: Dictionnaire critique
reinterpretam e subvertem as categorias: isso impede sua reificação. du féminisme. Paris: PUF, 2000, pp.
35-44 [Trad. bras. in Dicionário crítico
Porém, a subversão só pesa sobre as relações sociais se for coletiva. do feminismo. Hirata, Helena (org.).
Voltemosaosconceitos deconsubstancialidadee coextensividade. São Paulo,Editora da Unesp, 2009].
A idéia de consubstancialidade,como espero ter mostrado,não impli-
ca que tudo está vinculado a tudo; implica apenas uma forma de leitura
da realidade social. É o entrecruzamento dinâmico e complexo do con-
junto de relações sociais,cada uma imprimindo sua marca nas outras,
ajustando-se às outras e construindo-se de maneira recíproca. Como
disse Roland Pfefferkorn, “essas relações estão envolvidas intrinse-
camente umas com as outras. Elas interagem e estruturam, assim, a
totalidade do campo social”27. [27] Pfefferkorn, Roland. Inégalités
et rapports sociaux: rapports de classes,
Mas o fato de as relações sociais formarem um sistema não exclui rapports de sexes. Paris, La Dispute,
a existência de contradições entre elas: não há uma relação circular; a 2007 (col. Le Genre du Monde).
metáfora da espiral serve para dar conta do fato de que a realidade não
sefechaemsimesma.Portanto,nãosetratadefazerum tourdetodasas
relações sociais envolvidas, uma a uma, mas de enxergar os entrecru-
zamentos e as interpenetrações que formam um “nó” no seio de uma
individualidade ou um grupo.
Quantoàcoextensividade,elaapontaparaodinamismodasrelações
sociais.O conceitoprocura dar conta dofatode que aselasse produzem
[28] Este artigo tem como origem
mutuamente.Para ilustrar esse ponto,utilizarei exemplos retirados dos uma conferência dada na Associação
trabalhos da rede temática “Gênero,classe,raça:relações sociais e a pro- Francesa de Sociologia, que abriga
certo número de “redes temáticas”,
duçãoda alteridade”28 da Associação Francesa de Sociologia (AFS). entre as quais a rede temática 24, que
Os trabalhos de Stéphanie Gallioz29 a respeito do uso da iniciei.Estes exemplospartemdetra-
balhos dos participantes dessa rede.
mão-de-obra feminina na construção civil mostram a emergência
do estereótipo do que a autora chama de “a mulher civilizadora”, à [29] Gallioz, Stéphanie. Des femmes
dans les entreprises du bâtiment: une in-
qual opomos o homem selvagem, bruto e semi-analfabeto. Vemos novation en clair-obscur. Evry: tese de
bem como este estereótipo leva às relações sociais de sexo. Mas ve- doutorado, Université d’Evry, 2006.
mos igualmente como, ao mesmo tempo, e mantenhamos em mente
as altas taxas de imigrantes na construção civil, tal imagem reforça as
relações sociais racializadas/racializantes. Além disso, tal fato está de
acordo com as relações entre capital e trabalho.
Christelle Hamel mostra como os efeitos do gênero e do racismo
se conjugam e se reforçam mutuamente na construção identitária e
na sexualidade juvenil.A respeito de algumas jovens descendentes do
Maghreb, ela nota

[…] oquantoaorganizaçãodasrelaçõessociaisde“raça” reforça as relações


sociais de sexo — o que cria uma incompreensão entre estas jovens e seus
pais, aquelas idealizando a vivência da sexualidade na sociedade francesa
enquantoestesdesenvolvemumsexismoidentitário,deondeemergeumcon-
trole crescente —,e o quanto as relações de sexo reforçam as relações sociais
de idade e de classe: a fuga do controle parental, muito mais visível entre as
jovens que os jovens, perturba sua trajetória escolar e as leva a sair de casa
prematuramente, o que conduz a uma situação de precariedade, em que as
[30] Hamel, Christelle. L’intrication relações de sexo são ainda mais acentuadas”30.
des rapports sociaux de sexe, de “race”,
d’âge et de classe: ses effets sur la gestion
des risques d’infection par le VIH chez Os trabalhos de Annie Dussuet31 a respeito dos serviços a domicí-
les français descendant de migrants du
Maghreb. Paris: tese de doutorado, lio vão em direção semelhante.Ela mostra como as relações de gênero
EHESS, 2003, p. 643. permitem que a exploração econômica se intensifique: o sistema de
[31] Dussuet, Annie. Travaux de fem- gênero gera um tipo de exploração suplementar, pois o envolvimen-
mes: enquêtes sur les services à domicile. to subjetivo dos assalariados, parte fundamental do trabalho, não é
Paris: L’Harmattan, 2005.
reconhecido, pois não é objeto de uma formação institucionalizada,
nem remunerado, pois não está previsto explicitamente no contrato
de trabalho,sendoas tarefas materiaisas únicas tarefas descritas.Nes-
se caso, o gênero cria a classe.
Por fim,Francesca Scrinzimostrouque,além das relações declasse
e sexo, “as relações de trabalho no setor de serviços reforçam e repro-
duzem categorias […] racistas e dão origem a uma estrtura de hierar-
[32] Scrinzi, Francesca. “‘Ma cul- quizaçãosocialestabelecidasobreuma base “racial”32.Em suatese,ela
ture dans laquelle elle travaille’: les
migrantes dans les services domesti-
mostraquenotrabalhodeassalariadosdosetorcomercial,nãohásim-
quesen Italie eten France”.Cahiersdu plesmente reprodução dos estereótipos dominantes, mas também a
Cedref, nº 10, pp. 137-162, p. 141. produção de novas formas de expressão e funcionamento do racismo.
Segundo os empregadores do setor, estas mulheres (imigrantes, tra-
balhadoras do setor de serviços)

[…] não possuem senso de organização, nem a racionalidade necessária


[33] Idem. Les migrant(e)s dans les em- para o trabalho; apesar disso, elas são humanas, alegres e sólidas, fortes
plois domestiques en France et en Italie:
construction sociale de la relation de ser-
[…]. A apreciação dos trabalhadores imigrantes coloca em cena a opo-
vice au croisement des rapports sociaux sição entre racionalidade moderna do trabalho em nossa sociedade e o
de sexe, de race et de classe. Nice:tese de
doutorado, Université Nice Sophia
sentimento, a corporalidade, o instinto e as qualidades eminentemente
Antipolis, 2005, p. 339. encarnadas por estes33.
Ela mostra igualmente como a condição ligada às relações de raça provoca o cruzamento das fronteiras de
gênero34. Inversamente, por múltiplos exemplos,Scrinzi mostra a maneira pela qual as relações de sexo, e a
determinação de gênero que elas supõem, podem racializar os trabalhadores migrantes, e, inversamente, como
essa racialização reorganiza as relações de sexo.

UM PARADIGMA: O TRABALHO DE CARE

Este imbricamento, este dinamismo, esta co-produção das re- lações sociais de classe, gênero e “raça”
podem ser encontrados de maneira paradigmática no trabalho de care35. De fato, esta forma de trabalho
profissional renovou-se nas últimas décadas sob o efeito conjugado da crescente taxa de atividade das
mulheres nos países ocidentais, do envolvimento cada vez maior no trabalho profissional e,
porfim,doaumentodos fluxos migratórios (em particular femininos) do Sul para o Norte e do Leste para o
Oeste.Esses fenômenos tiveram como efeito a externalização crescente do trabalho doméstico.
O trabalho de care encontra-se nocruzamento das relações de clas- se,sexo e “raça”.Ele
é um instrumentoprecioso para observar a evolu- ção dessas relações: (1) radicalização e extensão qualitativa e
quanti- tativa das relações de classe entre uma nova classe servil (a nova classe operária não-industrial) e as novas
mulheres empregadoras36: irrup- ção de uma oposição de classe pela primeira vez direta — e não mais
mediada pelos homens (pais,maridos,amantes) — entre as mulheres que vêem seus capitais econômico, social e
cultural aumentarem e as mulheres,francesaseestrangeiras,cadavezmaisnumerosas, quevêem
sua situaçãose precarizare suarenda diminuir. Trata-se da apariçãode novas formas de relação de classe com a
aparição e o desenvolvimento de uma nova classe trabalhadora,não industrial,fortemente feminina e
feminizada,e o número crescente de empregadores.(2) Evolução da relação entre os sexos, por conta deste
trabalho doméstico superex- plorado que não resolve em nada os problemas do trabalho doméstico
(problemas nãoconsiderados pelas sociedades ocidentais),apenas os desloca. (3) Evolução das relações sociais de
“raça”: vemos a raciali- zação do trabalho de care através da naturalização das qualidades que seriam próprias a
esta ou aquela etnia;além disso,essas novas relações estão no coração das famílias, por intermédio da babá, da
empregada doméstica ou da cuidadora dos membros idosos da família. O outro, o estrangeiro, não está mais
somente nas periferias das grandes cida- des ou nas cidades satélite. Ele/ela vive e trabalha no seio mesmo das
famílias que, há não muito tempo, não eram atingidas por este fenô- meno migratório. A “alterização” —
construção ideológica da figura do “outro” — e a racialização tomam formas inéditas. (4) Aparição de novas
formas de concorrência entre, de um lado, os trabalhadores e trabalhadoras dos países do Sul e do Leste, e, de
outro, o número crescentedetrabalhadoresdospaísesocidentaisemsituaçãodepreca-
riedade.Ambos vivem emsituaçõeseconomicamentee/oulegalmente precárias,mas de formas diferentes.
Por meio deste exemplo, vemos bem como as três relações são in- separáveis e não somente se reforçam, mas
se co-produzem mutua- mente: a relação de classe reforçada pelos processos de naturalização, de racialização e de
“generização” do trabalho de care; a racialização, à qual os empregos domésticos estão particularmente sujeitos,
reforça e legitima a precarização (e, portanto, as relações de classe) e a “gene- rização”;a relação
de gêneroexacerba a relação de classe namedidaem que a feminização dessas últimas é um fenômeno novo
para o corpo social e, portanto, para o qual ainda não há uma resposta, e reforça as relações de raça pela sua
naturalização.
No entanto, trabalhadores e trabalhadoras do setor de care não formam uma categoria estável, apesar da
importância do trabalho do setor de care para as sociedades ocidentais.
Compreender melhor as relações sociais e seu entrelaçamento, analisá-las e elaborar um método para
pensá-las, é dar um passo em direção à sua superação. Recusar-se a pensar por idéias e categorias fixas
(raciocínio que leva a aporias em termos de ação política, como vimos — cf.os debates sobre o uso do véu islâmico)
permite recolocar no centro da análise o sujeito político (e não a vítima de múltiplas do- minações), levando
em consideração todas as suas práticas, freqüen- temente ambíguas e ambivalentes.
Trata-se de um esforço para pensar — e para fornecer um método para pensar — tanto a pluralidade
dos regimes de poder como a alqui- mia que transforma, em mais ou menos longo prazo, esta dominação
interiorizada em práticas de resistência. É, portanto, um método para detectar os germes de utopia na realidade
social contemporânea.
[34] Ibidem, p. 286.
[35] Kergoat. “Rapports sociaux et division du travail entre les sexes”. In: Maruani, M. (dir.), Femmes, genre et sociétés.Paris,La Découverte,2005, pp. 94-101 (col. L’État
des Savoirs).
[36] Sobre este ponto, cf. Rollins, Judith. “Entre femmes: les domesti- ques et leurs patronnes”. Actes de la Rechercheen Sciences Sociales,1990,nº 84, set

Danièle Kergoat é socióloga, diretora emérita de pesquisa no CNRS — Centre Nacional de la Recherche Scientifique.Paris 8 — Paris 10.
CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de
doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de
Janeiro: UERJ, 2013.
1.1 “A classe trabalhadora tem dois sexos”2 e “raça”/etnia

As relações de classe são atravessadas, historicamente, pelas relações de poder e dominação do sexo
masculino sobre o feminino, como nos esclarece Engels: “[...] o primeiro antagonismo de classe que apareceu na
história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia e a primeira
opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo sexo masculino” (1979, p. 22). A origem do
antagonismo de classe coincidir com a dominação do homem sobre a mulher demonstra, dentre outras
determinações, a necessidade de analisarmos as relações entre classe e sexo. Cremos que esses antagonismos
“coincidiram” no tempo histórico não por conta de uma determinação natural, mas para atender aos interesses
dominantes de garantia e reprodução da propriedade privada, bem como da força de trabalho, como veremos no
terceiro capítulo deste trabalho.
A marca do sexo não esteve presente apenas na origem do antagonismo de classe, mas, ainda, faz-se
fortemente presente. Compreendemos, assim, que “a classe operária tem dois sexos” (SOUZA-LOBO, 2011),
do contrário, como podemos explicar que as mulheres estão nos postos de trabalho mais precarizados e mal
remunerados? Como explicar a persistente divisão sexual do trabalho [base da subordinação da mulher no
trabalho, na família e na política – aprofundaremos esse entendimento no Capítulo 2] que não apenas diferencia
trabalho feminino do masculino, mas, gera desigualdades entre homens e mulheres pertencentes a uma mesma
classe? Como explicar a dupla jornada de trabalho e o não reconhecimento/desvalorização do trabalho
doméstico/reprodutivo? Como explicar o porquê de 70% dos pobres do mundo ser mulheres 3 ? Negar a
dimensão de sexo no trabalho é negar a realidade em que vive a classe trabalhadora, em especial a das mulheres,
em sua relação com o capital.
Segundo Souza-Lobo (2011), a resistência em trabalhar a problemática classe-“gênero” está associada à
duas questões. Primeiro, conceber a classe de forma homogênea por entendê-la apenas como algo definido nas e
pelas relações de produção. Contudo, como afirma a autora, não é possível separar as relações de produção das
relações sociais, das quais, as relações de sexo são, indiscutivelmente, parte constitutiva. Com isso, camufla-se o
papel das classes e dos homens e mulheres que a compõem. A segunda questão está associada à percepção da
heterogeneidade da classe como fragmentação-divisão. Segundo Souza-Lobo (2011, p. 125)”, por meio dessa
argumentação: “utiliza-se o espantalho da divisão da classe para reafirmar a determinação da estrutura produtiva
de onde se deduz a classe como sujeito homogêneo.

A importância em se perceber a heterogeneidade da classe não está no reconhecimento das


especificidades que nela existem. Trata-se de analisar, por exemplo, que as discriminações de sexo no trabalho
não são uma especificidade das mulheres, mas, “elementos fundamentais que estão na base da dominação da
classe operária” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 79). Isso nos leva a necessidade de ressaltarmos um alerta:

2
Expressão cunhada por Souza-Lobo (2011).
3
Dado de Mészáros (2002).
Se a eliminação das mulheres como sujeito social e histórico está na raiz e é parte integrante do
discurso econômico (Vandelac, 1982) e o discurso econômico está construído para ser geral, o
problema que se coloca é o de evitar a armadilha da dicotomia entre a análise de relações ditas
gerais e de relações ditas “específicas”, como se existissem relações de trabalho neutras e
relações de trabalho no feminino (SOUZA-LOBO, 2011, p. 163-164).

A análise da condição da mulher no mundo do trabalho, não é uma questão de ordem linguística ou
meramente gramatical. Ou seja, não se trata, apenas, de ressaltar que além de trabalhadores, existem
trabalhadoras na composição da classe. Trata-se de analisar como as mulheres sofrem uma exploração
particular, ainda mais intensa do que a dos homens da classe trabalhadora e que isso atende diretamente aos
interesses dominantes.
Da mesma forma, podemos utilizar essa reflexão para a questão étnico-racial. O racismo é também um
dos elementos fundamentais para desvelarmos os mecanismos de dominação e exploração de classe, portanto,
não é um problema específico das negras e dos negros. Essa percepção da heterogeneidade da classe nos
possibilita engendrar táticas que podem se traduzir “em práticas reivindicatórias diferenciadas e autônomas,
desfazendo a centralização e a hierarquização que tornam invisíveis as formas de resistência de uma parte da
classe operária” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 79). Até mesmo porque “as formas de submissão e revolta” são
“atravessadas sempre pelas relações de gênero e pela divisão sexual do trabalho (SOUZA-LOBO, 2011, p. 98),
o que torna essas dimensões indispensáveis para a elaboração de estratégias coletivas de enfrentamento.
Essa perspectiva permite, ainda, que as discriminações não sejam mais atribuídas aos sujeitos
específicos [mulheres, negros(as)], mas, sejam consideradas um problema de toda a classe. É nesse sentido que
Simone de Beauvoir (1980, v.2) afirma: “o problema da mulher sempre foi um problema dos homens”.
Concordamos inteiramente com Beauvoir, afinal, “não existe nenhuma questão que afete a mulher e que não
seja também uma questão social mais ampla, uma questão de interesse vital para o movimento revolucionário,
pela qual tanto os homens como as mulheres comunistas devem lutar” (WATERS, 1979, p. 42; tradução nossa4).
Assim, a classe não é uma massa homogênea, mas tem “raça”/etnia e sexo. “Se é certo que o
capitalismo utiliza uma estratégia de ‘dividir para reinar’, a configuração dessas divisões é construída
socialmente através das relações de classe, de “raça”, de gênero e das práticas sociais (SOUZA-LOBO, 2011,
p.173)”. Dessa forma, não podemos compreender o sistema capitalista apenas por meio da explicação dos
fatores que constituem a divisão da sociedade em classes sociais antagônicas. É preciso entender que esse
sistema “lança mão da tradição para justificar a marginalização efetiva ou potencial de certos setores da
população do sistema produtivo de bens e serviços. Assim é que o sexo, [...], fonte de inferiorização social da
mulher, passa a interferir, de modo positivo para a atualização da sociedade competitiva, na constituição das
classes sociais” (SAFFIOTI, 1979, p. 35).
Cada uma das particularidades estruturantes da classe – sexo-“raça”/etnia –, combinadas ou não,
imprime determinações e implicações diferenciadas para as mais variadas frações que compõem a classe
trabalhadora. Assim é que as mulheres brancas ganham salários inferiores aos dos homens brancos e superiores

4
Texto original: “no existe ninguna cuestión que afecte a la mujer y que no sea también uma cuestión social más amplia,
uma cuestión de interés vital para el movimiento revolucionário, por la que tanto los hombres como las mujeres comunistas
deben luchar”.
aos das mulheres negras e aos dos homens negros. Há, portanto, uma nítida hierarquia que revela desigualdades
no interior de uma mesma classe. Tal hierarquia da estrutura da desigualdade social segue a seguinte ordem:
homens brancos, mulheres brancas, homens negros (e pardos) e mulheres negras5.
No Brasil, por exemplo, as mulheres brasileiras seguem ganhando menos dos que os homens e as
mulheres negras menos do que as brancas, como pode ser visto abaixo.

Quadro 1
Razão entre rendimentos médios mensais do trabalho principal de alguns grupos selecionados*.
Brasil, 2003 e 2009

Cor/“raça” 2003 2009


Mulheres/Homens 61,8% 65,8%
Negros/Brancos 48,8% 57,0%
Mulheres negras/Mulheres brancas 51,2% 56,9%
Mulheres negras/homens brancos 30,2% 36,5%
Fonte: IBGE/PNAD
Elaboração: IPEA/DISOC/NINSOC - Núcleo de Gestão de Informações Sociais
* Rendimento Médio no Trabalho Principal deflacionado com base no INPC, ano de referência 2009.
* População Ocupada com 16 anos ou mais de idade.

Como pode ser observado no quadro acima, não houve melhoria significativa de 2003 para 2009 nos
rendimentos das mulheres com relação aos rendimentos dos homens, ainda mais quando consideramos a
variável “raça”. Na combinação entre as desigualdades chegamos ao extremo das mulheres negras ganharem
apenas 36,5% dos homens brancos. Esse dado já nos seria suficiente para ilustrar que a classe tem sexo e
“raça”/etnia e que essas dimensões são estruturantes e indispensáveis para a compreensão da classe trabalhadora
e da dinâmica de exploração que o capitalismo imprime sobre as mulheres e negros(as).
Além disso, o aprofundamento da desigualdade entre os sexos na atualidade, também é expresso no
número maior de mulheres nos trabalhos em tempo parcial e marcados pela informalidade dos laços
empregatícios. Segundo dados do IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de domicílio (PNAD) de 2009, a
população ocupada em ocupações precárias 6 por sexo e “raça”/etnia, revelou os seguintes dados: 25% de
homens e 41,1% de mulheres, sendo dessas, 48,4% negras e 34,3% brancas.
Com isso, podemos perceber que, de uma forma geral, a exploração sobre a mulher trabalhadora ocorre
de forma mais intensa do que sobre os homens. Há ainda que se considerar que entre as próprias mulheres, essa
exploração também ganha faces particulares. Behring e Boschetti (2006, p. 185) com base em dados do
Relatório da Comissão Externa da Feminização da Pobreza (2004), do Senado Federal, mostram dados ainda
mais alarmantes do que os apontados acima:

[...] a proporção de mulheres que se concentra nas ocupações precárias (61%) é 13% superior à

5
Em pesquisa realizada no ano de 2002, Waldir Quadros (2004) também confirmou essa hierarquia ao apresentar os
seguintes dados: “apenas 29% dos ocupados negros inseriam-se num padrão de vida igual ou superior ao de baixa classe
média, sendo 20,6% dos homens negros e 8,7% das mulheres negras. Se nos restringirmos ao padrão de média e alta classe
média, essa proporção cai para 20% dos ocupados negros, 14,6% entre os homens e 5,8% entre as mulheres. Cabe registrar
que os negros representam 45% do total de ocupados”.
6
Nessa pesquisa o IBGE (2010) considera ocupação precária: empregado sem carteira assinada, trabalhadora doméstica,
empregado na construção para próprio uso ou produção para próprio consumo e sem remuneração.
proporção de homens nessa mesma situação (54%). No caso das mulheres negras, essa
proporção é de 71%, e 41% delas se concentram nas ocupações mais precárias e desprotegidas
do mercado de trabalho. A tendência maior da mão-de-obra feminina ao desemprego é
acentuada por variáveis de “raça”. A mulher negra apresenta uma desvantagem marcante nesse
aspecto, com 13,6% de desemprego, em relação aos 10% das mulheres brancas. Essa
desvantagem se agudiza no caso das mulheres jovens negras, que apresentam taxas alarmantes
de desemprego, de 25%. Além disso, no que se refere ao emprego doméstico, as mulheres
negras são a maioria. Por essas razões, estas alcançam somente 39% dos rendimentos dos
homens brancos.

Há ainda outra dimensão importante a se considerar nessa “ordem” hierárquica, que é a


heteronormatividade7, ou seja, a obrigatoriedade do sistema heterossexual8 de organização social. Certamente,
os homens brancos (não negros) e heterossexuais possuem muito mais privilégio do que o outro lado extremo
dessa estrutura de desigualdade: a mulher negra, lésbica e pobre. Assim, a dimensão da orientação sexual, nessa
sociedade que também é heteronormativa, engendra opressões, inclusive, no interior da mesma classe. Por
exemplo, um homem pobre e heterossexual possui muito mais respeitabilidade do que um homem pobre gay.
Contudo, um gay rico, ainda que, certamente, sofra opressões, elas são diferenciadas das que sofre um gay
pobre. Mais do que isso, um homem gay rico possui determinados privilégios oferecidos pela sua condição
socioeconômica que um homem pobre heterossexual não possui. Tudo isso sem falar nas diversas possibilidades
que a sexualidade humana possui e nos permite ter, mas, que a sociedade patriarcal e heteronormativa condena.
Em outras palavras, no interior do campo dos “transgressores” da heteronormatividade, existem desigualdades e
preconceitos mais acentuados para alguns, como por exemplo, para os travestis.
Apesar de reconhecermos a multiplicidade dos sujeitos inseridos em uma mesma classe, não queremos
isolá-los em suas “identidades”. Ao contrário, precisamos perceber o sujeito: classe trabalhadora, em sua
totalidade, o que exige desvelar suas particularidades e singularidades. A classe como determinação central não
pode subsumir os demais elementos estruturadores desse sujeito, da mesma forma que tais elementos não
podem subsumir a classe. Daí nossa insistência em perceber as relações entre classe, “raça”/etnia e as “relações
sociais de sexo” como uma unidade dialética que determina o sujeito totalizante: a classe trabalhadora.
Há, portanto, uma unidade dialética entre as subestruturas básicas de poder da sociedade capitalista:
classe, sexo, “raça”/etnia, na qual essas categorias estão organicamente integradas. Dessa forma, “o importante
é analisar estas contradições na condição de fundidas ou enoveladas ou laçadas em um nó. [...] No nó [...] a
dinâmica de cada uma condiciona-se a nova realidade, presidida por uma lógica contraditória” (SAFFIOTI,
2004, p. 125).
Esse nó “não pode ser desatado no nível das práticas sociais, mas apenas na perspectiva da análise
sociológica”, uma vez que as relações sociais de classe, sexo e “raça” são “coextensivas”, ou seja, ao se
desenvolverem, elas “se reproduzem e se co-reproduzem mutuamente” (KERGOAT, 2010, p. 94).

7
O conceito de heteronormatividade foi criado por WARNER, Michael, no texto: “Introduction: Fear of a Queer Planet”,
Social Text, 1991. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/38769752/Warner-Fear-of-a-Queer-PLanet. Acessado em
30/10/2012.
8
Segundo Jules Falquet (2009, p. 123), o sistema heterossexual obrigatório de organização social “se baseia na estrita
divisão da humanidade em dois sexos, fundamentos de dois gêneros obrigados a manter relações desiguais de
‘complementaridade’ no contexto de uma rígida divisão sexual do trabalho”.
Para Danièle Kergoat há um “imperativo materialista” a ser percebido entre as relações de classe, “raça”
e sexo. Para autora, essas relações são de produção e nelas a exploração, a dominação e a opressão se
entrecruzam. Por isso, Kergoat alerta para a necessidade de se analisar “minuciosamente como se dá a
apropriação do trabalho de um grupo por outro, o que nos obriga a voltar as disputas (materiais e ideológicas)
das relações sociais” (KERGOAT, 2010, p. 99).
Ainda nessa direção analítica, destacando as relações entre classe e sexo, aponta Antunes:

As relações entre gênero e classe nos permitem constatar que, no universo do mundo produtivo
e reprodutivo, vivenciamos também a efetivação de uma construção social sexuada, onde os
homens e as mulheres que trabalham são, desde a infância e a escola, diferentemente
qualificados e capacitados para o ingresso no mercado de trabalho. E o capitalismo tem sabido
apropriar-se desigualmente dessa divisão sexual do trabalho (1999, p. 109).

Analisar, portanto, a particularidade da mulher no mundo do trabalho, ou melhor, perceber, utilizando a


expressão de Elizabeth Souza-Lobo (2011), que “a classe operária tem dois sexos” é fundamental para a
compreensão e, consequentemente, organização da classe trabalhadora. Afinal, “as classes acontecem ao
viverem os homens e as mulheres as relações de produção e ao experimentarem situações determinantes dentro
do conjunto das relações sociais” (THOMPSON, 1979, p. 38). Por isso, não podemos negar a existência de dois
sexos nas relações de classe, tampouco, podemos negar a dimensão de classe nas relações sociais de sexo, como
já apontamos.
Considerar as diferenças e as desigualdades existentes no interior da classe não deve ser no sentido de
pulverizá-la, tampouco, fragmentá-la. Ao contrário, elas devem ser percebidas na dinâmica de organização
econômica das sociedades, ou seja, no movimento de produção e reprodução da vida. A organização econômica
de uma sociedade, entendida dessa forma, não pode ser restringida às relações de produção strito senso – o que
nos levaria a cair no economicismo –, da mesma forma que a “relação entre os sexos não se esgota nas relações
conjugais” (KERGOAT, 1986, p. 91). Destarte, para compreendermos a história do nosso tempo, não podemos
sintetizá-la no “fato econômico”. A história não é determinada apenas no universo da produção, mas, resulta das
relações sociais associadas às relações de produção, ou seja, do movimento dialético entre a produção e a
reprodução sociais. Nessa perspectiva, Engels nos esclarece:

Segundo a concepção materialista da história, o fator que, em última instância, determina a


história é a produção e reprodução da vida real. Nem Marx nem eu afirmamos, uma vez sequer,
algo mais do que isso. Se alguém o modifica, afirmando que o fato econômico é o único fato
determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata e absurda (s.d, p. 284, grifos do
autor).

Assim, para nós, a produção e reprodução da vida real é determinada pelas relações sociais que, por sua
vez, possuem “raça”/etnia, sexo e não apenas classe9, embora esta seja, em última instância, a sua determinação

9
Kergoat (2010) ressalta que o intercruzamento entre essas relações (gênero, “raça” e classe) que compõem um sistema,
não elimina a existência de contradições entre elas. Como exemplo disso, lembramos que mulheres exploram mulheres, ou
nas palavras de Cecília Toledo (2001): “Mulheres: o gênero nos une, a classe nos divide”.
central10 na sociedade capitalista. Tais relações devem ser apreendidas em um único movimento, o que não
significa isolá-las, tampouco desconsiderá-las, mas percebê-las nas relações sociais que as determinam e as
intercruzam provocando implicações diversas para um único sujeito, embora múltiplo: a classe trabalhadora.
Apenas dessa forma, conseguiremos compreender esta classe em sua totalidade e na sua condição de totalizante,
condição prévia para pensarmos o seu processo de organização.

[...] trata-se, pois, de estar sempre alerta para poder detectar a presença das diferenças -
semelhanças de classe nas relações de gênero. Em outros termos, esses dois tipos de relações
são absolutamente recorrentes, impregnando todo o tecido social. A razão última para a
existência dessas clivagens pode ser encontrada a [sic] nível macro. As relações sociais,
todavia, se inscrevem no plano entre as pessoas. Eis por que não se pode abrir mão de uma
postura teórica que permita o livre trânsito entre o plano macro e o nível micro. Este ir e vir
constitui requisito fundamental para a percepção, e posterior análise, da dinâmica social
(SAFFIOTI, 1992, p. 192).

Desse modo, considerar a diversidade da classe faz-se necessário, contudo, sem se perder na ênfase das
diferenças em detrimento da luta política engendrada pela criação dos sujeitos coletivos em torno de uma luta
classista, que deve ser o ponto comum entre todas as lutas que buscam o fim das desigualdades sociais, logo a
efetivação da “igualdade substantiva”11.

10
“Classe é central “porque é o fundante do MPC [Modo de Produção Capitalista], porque peculiariza e caracteriza essa
formação social. Não por ser mais importante ou anterior que outras. Ao contrário, muitas questões, como a racial, de
gênero etc., são anteriores historicamente e precedem a questão de classe; o MPC as incorpora e redimensiona, mas elas
[isoladamente da questão de classe] não caracterizam o sistema comandado pelo capital” (DURGUETTO e MONTAÑO,
2010, p. 127).
11
Expressão de Mészáros (2002) contrapondo-se à igualdade formal ao defender a necessidade de uma igualdade real,
verdadeira, portanto, substantiva.
CISNE, Mirla. Feminismo, Luta de Classes e Consciência Militante Feminista no Brasil. Tese de
doutorado em Serviço Social defendida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de
Janeiro: UERJ, 2013.

Feminismo e Socialismo: uma relação necessária

“Uma revolução socialista não é possível


sem uma larga participação de uma fração das trabalhadoras”
Lênin (1979).

A relação entre o movimento feminista e movimento socialista proletário remota ao fundamento que os
originam, ambos, como nos esclarece Waters (1979, p. 70): “[...] alcançaram sua etapa histórica com o
nascimento do capitalismo industrial. Ambos foram gerados pelas transformações que o capitalismo introduziu
nas relações sociais de produção e de reprodução” (tradução nossa 12 ). Foi a partir do avanço das forças
produtivas e das condições materiais que proporcionou, que a libertação das mulheres passou a ser algo
realizável, bem como o socialismo deixou de ser um sonho utópico (IDEM, IBIDEM). Ainda que não possamos
esquecer que, contraditoriamente, “[...] o sistema fabril se construiu sobre a base da superexploração da mulher”
(IDEM, IBIDEM, p. 77; tradução nossa13). Dimensão que Marx (1985, 2001) tão bem assinala n’O Capital,
quando analisa a brutalidade no abuso e exploração de mulheres e crianças para o barateamento da força de
trabalho.
Como nos diz Waters (1979, p.80): “A ampla aceitação da discriminação sexista como algo ‘natural’, é
uma das ideias mais proveitosas que o capitalismo tem a seu favor. A desigualdade dos sexos está incorporada
nos próprios fundamentos do capitalismo; daí que a luta contra esta discriminação em todos os níveis forma uma
parte indispensável da luta pelo socialismo” (tradução nossa 14 ). Entretanto, a relação entre socialismo e
feminismo foi marcada, tanto no campo teórico quanto no prático-operativo, por dilemas que implicaram em
limites à compreensão e avanços em relação à questão feminista. Os principais limites das análises sobre a
opressão das mulheres por parte das esquerdas encontram suas raízes na concepção de que:

1. A opressão das mulheres refletia a exploração de classe na sociedade capitalista, deixando,


pois, de existir numa sociedade capitalista;
2. A desigualdade entre homens e mulheres se fundava no acesso ao trabalho assalariado.
Tratava-se, pois, de integrar as mulheres ao mercado de trabalho e incentivar sua participação
política;
3. A questão organizativa – as associações, departamentos femininos – como a maioria das
organizações de massa criadas e propostas pelos PCs do período, padeciam de um monolitismo
rigoroso, imposto pelo Komintern, que limitava, quando não paralisava, sua ação (SOUZA-
LOBO, 2011, p. 212).

12
Texto original: “[...] alcanzaram su etapa histórica con el nacimiento del capitalismo industrial. Ambos fueron generados
por los cambios que el capitalismo introdujo en las relaciones sociales de producción y de reproducción”.
13
Texto original: “[...] el sistema fabril se construyó sobre la base de la sobreexploración de la mujer”.
14
Texto original: “La amplia aceptación de la discriminación sexista como algo ‘natural’, es uma de las ideas más
provechosas que el capitalismo tiene a su favor. La desigualdade de los sexos está incorparada em los propios fundamentos
del capitalismo; de ahí que la lucha contra esta discriminación a todos los niveles forme uma parte indispensable de la lucha
por el socialismo”.
Um exemplo do conservadorismo de esquerda e da incompreensão da luta das mulheres no seio do
movimento “revolucionário” ocorreu em 1866, no Congresso da 1ª. Internacional dos Trabalhadores, quando
“os delegados foram contrários ao trabalho feminino”. Isso provocou reação das feministas por meios de
manifestações, petições públicas e que levaram, em 1868, à fundação da Primeira Liga das Mulheres
(GURGEL, 2011, p. 33).
Impossível não lembrar da participação decisiva das mulheres em 1871, na Comuna de Paris, para nós, a
primeira experiência histórica de luta pela liberdade substantiva da mulher e de toda a humanidade, mesmo que
não tenha alcançado a importância histórica da experiência da Revolução Russa, até mesmo pelo curto período
que se manteve no poder. Sobre as mulheres na Comuna de Paris, destaca Dunayevskaya (2003, p. 109): “[...]
3.000 mulheres do Comité para a Defesa de Paris, em sua maioria trabalhadoras, não só ocuparam postos nas
barricadas, mas mantiveram seu local aberto as vinte e quatro horas do dia, incluindo durante as jornadas mais
críticas da batalha” (tradução nossa)15. Para Telma Gurgel (2011, p. 33), as mulheres assumiram na experiência
da Comuna, como em outros momentos da história, “um claro compromisso de classe com a luta socialista”
(GURGEL, 2011, p. 33). Essa experiência histórica revolucionária nos comprova, no mínimo, o potencial de
força aguerrida da luta das mulheres para a construção de uma sociedade substantivamente [e não formalmente]
democrática.
Clara Zetkin, uma das primeiras e maiores agitadoras e propagandistas do feminismo no seio do
movimento socialista internacionalista, já em 1889, cem anos após a tomada da Bastilha, em uma das suas
conferências, intitulada: “Pela libertação das mulheres”, considerada a primeira declaração política da classe
trabalhadora europeia sobre a questão da mulher (GONZÁLEZ, 2010, p. 61) demonstrou a clareza da
necessidade do encontro entre o feminismo e o socialismo, ambos mediados pela necessidade da emancipação
humana. Nas palavras da revolucionária:

As mulheres operárias estão totalmente convencidas de que a questão da emancipação das


mulheres não é uma questão isolada. Sabem claramente que esta questão na sociedade atual
não pode ser resolvida sem uma transformação básica da sociedade [...] A emancipação das
mulheres, assim como de toda a humanidade, só ocorrerá no marco da emancipação do
trabalho do capital. Só em uma sociedade socialista as mulheres, assim como os trabalhadores,
alcançarão os seus plenos direitos (ZETKIN apud FORNER, 1984, p.p. 64-50).

Também é importante ressaltar o papel de mulheres, como da feminista anarquista Emma Goldman
(1978) que, em 1906, já ressaltava a importância da auto-organização das mulheres para a sua libertação.
Goldman afirmava que nem a igualdade no trabalho, nem o direito ao voto eram suficientes para alterar a
situação das mulheres na sociedade. Para isso, é necessário, afirmava a feminista, a ruptura, pelas próprias
mulheres, com as relações de submissão e opressão, bem como com as práticas sociais de homens e mulheres
estabelecidas.

15
Texto original: “[...] 3.000 mujeres del Comité para la Defensa de París, em su mayoría trabajadoras, no sólo tomarson
puestos em las barricadas sino que mantuvieron su local aberto las veinticuatro horas del día, incluso durante las jornadas
más críticas de la batalla”.
Sobre a Revolução Russa, Mary-Alice Waters (1979, p. 65) afirma que ela iniciou com “a manifestação
massiva de mulheres no 8 de março de 1917 (23 de fevereiro no calendário russo), quando as mulheres de
Petrogrado se arrojaram nas ruas exigindo ‘Pão para os nossos filhos’, e ‘O regresso dos nossos maridos das
trincheiras’” (tradução nossa16).
Hobsbawn (1994) também nos confirma a importância das mulheres para a derrubada do Czar. De
acordo com esse importante historiador marxista, o governo do Czar desmoronou com a manifestação de
mulheres operárias no dia 8 de março, que se combinou com um lockout industrial na metalúrgica Putilov, o
que produziu uma greve geral e a invasão do centro da capital, que manifestava a exigência básica por pão.
Após quatro dias de caos, o czar foi substituído, inicialmente, por um governo liberal provisório (HOBSBAWN,
1994).
Com os direitos de cidadania para as mulheres conquistadas após a Revolução Russa, especialmente
com a vitória dos bolcheviques em Outubro, quando Alexandra Kollontai se tornou a primeira mulher a ocupar
o cargo de ministra [do Bem-Estar Social] e, posteriormente, a primeira embaixadora da história, “o
aristocrático corpo diplomático do mundo estremeceu” (WATERS, 1979, p. 66).
De acordo com Perrot (1979), a questão dos direitos da mulher ou da igualdade entre os sexos surgem
nas conjunturas históricas marcadas pelos projetos de transformação social e política ou pelas grandes utopias
revolucionárias. Segundo Souza-Lobo (2002, p. 181):

As mulheres estiveram presentes nas lutas populares da revolução industrial e da revolução


francesa, e a revolução russa, nos movimentos abolicionistas. A questão da “igualdade entre os
sexos” atravessou as correntes anarquista e socialista, e a revolução russa. A revolução sexual e
a liberação das mulheres ressurgiu nas utopias dos anos 1960. Os movimentos, como as
revoluções, podem ser institucionalizados e perder sua radicalidade, mas o tema da hierarquia
entre os gêneros emerge a cada vez que as sociedades se colocam em questão e discutem
democracia e direitos.

Todavia, Souza-Lobo (2011, p.181) nos alerta: “as mulheres desaparecem quando a ordem volta a reinar
e a sociedade se disciplina”. Por isso, o processo de organização do movimento de mulheres promove uma luta
não apenas contrária ao sistema, mas, também, ao conservadorismo presente nas organizações de esquerda, o
que, para nós, é indispensável para a consolidação de um movimento de fato, revolucionário. Nas palavras de
Waters (1979, p. 14):

O nascimento e consolidação de um Movimento de Libertação Mulheres é a resposta a sua


condição de trabalhadora e de mulher oprimida sob o sistema capitalista. E o potencial
revolucionário de sua luta organizada não só põe em questionamento as bases do sistema em si,
mas também constitui um golpe mortal para as posições dentro do movimento operário que
pedem "moderação, paciência e sabedoria", tentando conter a combatividade feminina dentro
dos limites do sistema (tradução nossa17).

16
Texto original: “la manifestación massiva de mujeres del 8 de marzo de 1917 (23 de febrero em el calendário ruso),
cuando las mujeres de Petrogrado se arrojaron a las calles exigiendo ‘Pan para nuestros niños’, y ‘El regreso de nuestros
maridos de las trincheras”.
17
Texto original: “El nascimiento y consolidación de um Movimento de Liberación de la Mujer es la resposta a su
condición de trabajadora explotada y de mujer oprimida bajo o sistema captalista. Y el potencial revolucionário de su lucha
organizada no solo pone em entredicho los fundamentos del sistema mismo, sino que también constituye um golpe de
Foi em decorrência do processo organizativo e de luta das mulheres, inclusive no interior das
organizações de esquerdas, que muitas destas passaram a buscar superar seus limites e rever suas concepções
em relação aos propósitos feministas. Foi a partir de 1968 que tivemos uma ruptura mais significativa com esses
limites, contudo, não podemos afirmar que foram completamente superados. Como nos esclarece Souza-Lobo
(2011, p. 214), a partir de 1968 há uma “ausência de uma distinção ordenada entre o que era político, o que era
reflexão e o que era pessoal” nos e pelos grupos feministas. A parir de então, ainda segundo Souza-Lobo
(IDEM), a dissolução das fronteiras entre o pessoal, o político e o teórico, passou a ser o principal desafio do
movimento de mulheres, tornando a recriação continuada de suas práticas, uma exigência.
É necessário perceber que a luta feminista não é uma questão de interesse apenas das mulheres, mas, da
humanidade que se pretende livre. A reificação da mulher está associada a do homem, “pois quem se satisfaz
com um objeto, quem não tem necessidade de entrar em relação com outro ser humano, perdeu toda sua
humanidade” (SAFFIOTI, 1979, p. 73-74; destaque nosso). Nesse mesmo sentido, aprofunda Marx (2009 b, p.
104):

Na relação com a mulher como presa e criada da volúpia comunitária está expressa a
degradação infinita na qual o ser humano existe para si mesmo, pois o segredo desta relação
tem a sua expressão inequívoca, decisiva, evidente, desvendada, na relação do homem com a
mulher e no modo como é apreendida a relação genérica imediata, natural.

Fourier foi determinante para despertar essa percepção em Marx. Inclusive, Marx o cita reforçando o
pensamento em discussão:

A humilhação do sexo feminino é uma característica essencial tanto da civilização quanto da


barbárie, porém com a diferença de que a ordem civilizada eleva todos os vícios que a barbárie
comete de um modo simples a um modo de pensar bem mais complexo, de duplo sentido,
equívoco e hipócrita... A pena por manter a mulher na escravidão não atinge a ninguém de
um modo mais profundo do que o próprio homem (FOURIER apud MARX, 2009 a, p. 219;
destaques nossos).

O sentido de uma luta revolucionária, portanto, deve estar atento para a desalienação das relações
sociais ao passo que luta pelo humano e sua humanização. Logo, a luta pelo fim das relações que tornam a
mulher objeto de exploração, inclusive sexual, enfim, a luta pela emancipação das mulheres está associada à luta
pela emancipação humana. Como ressalta Samora Machel (1982, p. 18):

A emancipação da mulher não é um ato de caridade, não resulta de uma posição humanitária
ou de compaixão. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da Revolução, uma
garantia da sua continuidade, uma condição de seu triunfo. A Revolução tem por objetivo
essencial a destruição do sistema de exploração, a construção duma nova sociedade libertadora

muerte para las posiciones que, dentro del movimiento obrero, piden “paciencia, moderación y cordura”, intentando así
retener La combatividad femenina dentro de los limites del sistema”.
das potencialidades do ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza. É dentro
deste contexto que surge a questão da emancipação da mulher.

Fica evidente, que a emancipação da mulher não possui apenas uma dimensão restritamente econômica,
ela envolve dimensões profundas da condição de se tornar humano, ou melhor, envolve a profundidade
ontológica da construção do ser social como ser genérico. Abolir a propriedade privada e transformar a
economia doméstica individual em uma economia doméstica socializada são premissas indispensáveis para a
emancipação, contudo, insuficientes. A transformação da cultura e dos valores são também, indispensáveis para
tal propósito. Transformar hábitos fortemente enraizados não é fácil e nem rápido. Como ressalta Saffioti, a
socialização dos meios de produção e uma legislação não discriminatória são fundamentais para a elevação
social da mulher, mas, são insuficientes para levá-la à emancipação, pois, “é preciso que a sociedade se
empenhe na eliminação de uma mentalidade habituada a promover a inferiorização de fato da mulher. Esta
complexa tarefa não é trabalho de uma geração, mas de várias e, em parte, resulta da homogeneização do grau
de desenvolvimento econômico e sócio-cultural [...] (1979, p. 83).
Marx (2009 a), ancorando-se no pensamento de Fourier, defende que a transformação de uma sociedade
é determinada pela relação entre o progresso da mulher diante da liberdade. Para Fourier, a mudança de uma
época histórica, pautada nessa relação, aparece de modo mais evidente “na relação entre a mulher e o homem”,
quando há “a vitória da natureza humana sobre a brutalidade”. Daí decorre o famoso pensamento, muitas vezes
difundido como sendo de Marx: “O grau da emancipação feminina constitui a pauta natural da
emancipação geral” (FORIER apud MARX, 2009 a, p.220; destaques nossos).
Lênin aponta, também, para essa compreensão da importância da luta pela liberdade da mulher,
reconhecendo nela, inclusive, condição para a vitória do comunismo, como ressalta em suas palavras:

Fazer a mulher participar do trabalho produtivo social, libertando-a da “escravidão doméstica”,


libertando-a do jugo bruto e humilhante, eterno e exclusivo, da cozinha e do quarto dos filhos,
eis a tarefa principal. Esta luta será longa. Exige uma transformação radical da técnica e dos
costumes. Mas levará finalmente à vitória completa do comunismo (LENIN, 1979, p. 105;
destaque nosso).

Apesar do importante reconhecimento de Lênin ao significado da liberdade das mulheres para a vitória
do comunismo, o revolucionário atribui o alcance dessa liberdade apenas à necessidade de uma “transformação
radical da técnica e dos costumes”, o que pode nos conzuzir ao idealismo. Assim, ainda que essa transformação
seja de fato, indispensável para a libertação da mulher, ela deve estar associada à transformação das relações
materiais que dão origem aos “costumes”, pois, como vimos no Capítulo 1, qualquer ideologia possui uma base
material que a determina.
Por outro lado, as experiências do chamado “socialismo real” foram uma prova concreta de que a as
transformações na base produtiva não alteram automaticamente as relações de poder e desigualdade entre
homens e mulheres. Por isso, defendemos a transformação das relações materiais que determinam as
dominações e as desigualdades, bem como a transformação da cultura e dos valores a elas associadas. Foi nessa
perspectiva que Alexandra Kollontai (1982) lutou pela construção de uma nova moral sexual, envolvendo a
destruição do patriarcado e a incorporação das demandas de liberdade e autonomia das mulheres por parte da
esquerda socialista mundial (GURGEL, 2011).
Sabemos que o capitalismo é incompatível com a igualdade. Lênin (1979, p. 104) ressalta essa
incompatibilidade e a inviabilidade desse sistema: “mesmo na igualdade puramente formal (igualdade jurídica,
‘igualdade’ do bem alimentado e do faminto, do possuidor e do não-possuidor), o capitalismo não pode ser
consequente. E uma das inconseqüências é a desigualdade da mulher e do homem”. Daí a necessidade do
feminismo em contestar esse sistema.
Desse modo, Lênin também reconhece na igualdade entre os sexos uma das questões fundamentais para
o socialismo, assim como na igualdade entre as nações e no fim do jugo de uma classe sobre outra. Com isso
afirma:

Quem falar em política, de democracia, de liberdade de igualdade, de socialismo, sem passar


por estas questões, sem as colocar em primeiro plano, sem lutar contra as tentativas de
esconder, de fingir ou sufocar estas questões, é o pior inimigo dos trabalhadores, o lobo
revestido de pele de cordeiro, o pior adversário dos operários e dos camponeses, um lacaio dos
proprietários da terra, dos tzares, dos capitalistas. [...] Abaixo os mentirosos que falam de
liberdade e igualdade para todos, enquanto existe um sexo oprimido, existem classes de
opressores, existe a propriedade privada [...] Liberdade e igualdade para o sexo oprimido!
Liberdade e igualdade para o operário, para o camponês trabalhador! Luta contra os opressores,
luta contra os capitalistas [...] É este o nosso grito de guerra, esta a nossa verdade proletária,
verdade de luta conta o Capital [...] (LÊNIN, 1979, p. 120-121).

Por isso, partimos do entendimento de que o feminismo não deve ser um movimento que luta
restritamente pelas questões específicas das mulheres, ainda que tais questões sejam incontestavelmente
importantes e indispensáveis, como o direito ao aborto e a luta pelo fim das múltiplas formas de violência contra
a mulher. Em outras palavras, embora algumas bandeiras de lutas do feminismo não estejam associadas
diretamente à luta anti-capitalista –, o que não tira sua importância e legitimidade –, o fundamento do
feminismo sendo a emancipação das mulheres, encontra um limite estrutural: o capitalismo. Até porque a
“democracia” burguesa é, segundo Lênin, “de frases pomposas, de promessas grandiloqüentes, de sonoras
palavras de ordem (liberdade e igualdade), mas na realidade ela dissimula a escravidão e desigualdade da
mulher, a escravidão, a desigualdade dos trabalhadores e dos explorados” (1979, p. 119). Assim, para Lênin,
“não se pode assegurar a verdadeira liberdade, não se pode edificar a democracia [...] se não a [mulher] tirarmos
da atmosfera brutal do lar e da cozinha” (1979, p. 59). E conclui: “Enquanto as mulheres não forem chamadas a
participar livremente da vida pública em geral, cumprindo também as obrigações de um serviço cívico
permanente e universal, não pode haver socialismo, nem sequer democracia integral e durável” (LÊNIN, 1979,
p. 101).
O feminismo encontra o seu sentido político maior na luta pelo socialismo. Feminismo e socialismo
possuem uma congruência incontestável, afinal, ambos se pautam na liberdade e na igualdade. Nessa
perspectiva, Gustavo Codas destaca a “contribuição decisiva” que o “feminismo socialista” pode e deve dar ao
movimento da classe trabalhadora:

[...] a incorporação da perspectiva de gênero na análise econômica marxista e na construção


dos sujeitos políticos da transformação (incorporando a organização autônoma das mulheres no
campo dos movimentos que lutam pelo socialismo) pode ser feita sem contrariar os
fundamentos e a metodologia dessa teoria. [...] o marxismo se vê como uma ciência vinculada
à luta de uma classe social. Assim, a incorporação da perspectiva de gênero depende de uma
postura política: é necessário que, além de um ponto de vista de classe, de luta pela
emancipação da classe trabalhadora, se parta também de um ponto de vista de luta pela
emancipação das mulheres. Isso não é somente possível como necessário para a luta socialista.
E essa é a contribuição decisiva que o feminismo socialista tem dado ao movimento da classe
trabalhadora (2002, p. 22-23).

Nesse sentido, acreditamos que o socialismo e o feminismo têm muito a contribuir, mutuamente, na
compreensão e construção do sujeito revolucionário responsável pela consolidação de uma sociedade
substantivamente livre e igualitária. Partimos do entendimento de que o projeto societário socialista demanda
pensarmos nas relações entre sexo, “raça” e classe, tanto nas relações sociais mais amplas, como no mundo do
trabalho, mas também no interior das organizações políticas de esquerda e na vida privada.
Cremos que o feminismo socialista ao não dissociar teoria da prática, e o pessoal do político, permite-
nos revisitar noções como prática, militância e política “à luz de uma consciência feminista como de uma
consciência de classe, forjadas coletivamente”. Com isso, podemos “ir mais além de nossos vários fragmentos:
mulheres-homens, privado-político, casa-trabalho, geral-específico e de atualizar a utopia de homens e mulheres
livres numa sociedade livre” (SOUZA-LOBO, 2011, p. 215).
Concordo com o pensamento de Waters (1979, p. 116) de que “o desenvolvimento do movimento de
mulheres faz avançar na atualidade a luta de classes, a fortalece, e melhora as perspectivas do socialismo”
(tradução nossa18), uma vez que o processo da revolução socialista “se acelerará e intensificará a medida que se
realizem as bases materiais e ideológicas da nova ordem comunista” (IDEM, 1979, tradução nossa19). Em outras
palavras, a consciência feminista e a luta das mulheres “têm sido uma força motriz poderosa do protesto social
e da radicalização da política” (IDEM, 1979, p. 133; tadução nossa20; destaques nossos).
Os revolucionários não devem se preocupar com a luta das mulheres somente porque darão um grande
peso de mobilização para a luta de classes, ou até mesmo porque essa luta “é um assunto de vida ou morte para
o movimento operário” (WATERS, 1979, p. 150; tradução nossa 21 ), mas, pelo entendimento de que uma
sociedade socialista é incompatível com qualquer sistema de opressão.
Como nos diz Hilary Wainwright (1981, p. 14), o movimento de mulheres:

despertou a consciência e encorajou a auto-organização de milhares de mulheres. Desse modo,


também começou a desafiar as relações de poder. Se a esquerda deve alcançar a mudança na
consciência e o crescimento pela auto-organização, que é condição para que resolva o
problema do poder, então os socialistas têm muito a aprender com os valores e as formas de
organização do movimento de mulheres.

18
Texto original: “El desarrollo del movimiento de liberación de la mujer hace avanzar en la actualidad la lucha de clases,
la fortalece, y mejora las perspectivas del socialismo”.
19
Texto original: “se acelerará e intensificará a medida que se realicen las bases materiales e ideológicas del nuevo orden
comunista”.
20
Texto original: “Han sido uma fuerza motriz poderosa de la protesta social y de la radicalización política”.
21
Texto original: “Es um asunto de vida o muerte para el movimento obrero”,
Ainda segundo Wainwright (1981), foi o movimento de mulheres que trouxe à tona a “compreensão real
da subjetividade da opressão” e temas vinculados à relação entre a organização política pública e as relações
pessoais, bem como dos “componentes emocionais” da consciência. Além disso, “o movimento de mulheres, ao
desafiar cada aspecto do domínio do homem sobre a cultura, as idéias e o poder, começou a esclarecer o
preconceito na linguagem que expressa o poder de definir como se entende o mundo e como se age sobre ele”
(ROWBOTHAM, 1981, p. 60).
Wainwright (1981) destaca que os “insights” do movimento de mulheres “não dizem respeito apenas ao
tema do ‘sexismo’ numa organização socialista” (p. 24). A autora acredita que esse Movimento pode “contribuir
de modo geral para a criação de um movimento socialista mais democrático, mais genuinamente popular e mais
eficaz do que antes fora possível” (p. 25). Para fundamentar essa concepção, Wainwright (1981), ressalta:

O movimento de mulheres, surgindo para combater uma opressão que provém de


desigualdades de poder e confiança em relações interpessoais, e de uma divisão hierárquica (p.
24) do trabalho, foi intensamente sensível e consciente quanto à desigualdade e hierarquia na
própria criação de suas formas organizacionais. [...] devido à forma de organização que
enfrenta [...] alargou radicalmente o campo de ação político e, com isto transformou quem está
envolvido em política e o seu modo de envolvimento [...]. Antes do movimento de mulheres,
política socialista, como todas as outras espécies de política, parecia algo separado da vida
cotidiana, alguma coisa sem ligação com cuidar de filhos, preocupar-se com as refeições e o
serviço [...] Era algo profissional, para homens e entre homens [...] (p.25).

Com isso, o feminismo derrubou barreiras e passou a envolver mais pessoas na luta política,
especialmente, mulheres, fortalecendo o movimento revolucionário com radicalidade democrática, ao buscar
quebrar todas as formas de hierarquia, opressão e exploração. É importante, todavia, esclarecer que nos
referimos ao feminismo materialista, orientado pelo e para o socialismo, ainda que tenhamos a clareza que para
chegar ao socialismo, o feminismo ainda precisa avançar muito na construção de um movimento de caráter
popular, ou seja, um feminismo com nítido compromisso com as demandas das mulheres da classe trabalhadora
e suas condições de sobrevivência imediata, que requerem reformas de base – a exemplo da Reforma Agrária e
Urbana – e inúmeros direitos e políticas sociais que antecedem o próprio socialismo, ainda que devam estar
associadas e/ou orientadas pela e para a estratégia socialista. Estratégia essa que demanda a construção de uma
contra-hegemonia em várias dimensões. Para Falquet (2012, p. 204), um “projeto de sociedade alternativo”
(tradução nossa)22, em torno dessa contra-hegemonia deve:

[...] como claramente tem afirmado Wittig, para as relações sociais de sexo abolir as relações
de apropriação, a divisão do trabalho e os processos de separação e hierarquização dos grupos
sociais, de construção da diferença e de naturalização dela. Em relação à apropriação de
mulheres, ele implica em eliminar a divisão sexual do trabalho e o pensamento straight. Para a
apropriação frequente das relações de "raça", a divisão internacional do trabalho, pós-colonial e
relacionada a todos os tipos de colonização "interna", deverá visar a ablolição, assim como da
ideologia racista. Quanto à exploração de classe, são a ideologia capitalista, a propriedade
privada e as relações de exploração salarial que ele deve tentar superar (Tradução nossa23).

22
Texto original: “projet de société alternatif”.
23
Texto original: “[...] comme l’a si clairement affirmé Wittig pour les rapports sociaux de sexe abolir les rapports
d’appropriation, la division du travail et les processus de séparation et hiérarchisation des groupes sociaux, de
Para tanto, Jules Falquet (2012, p. 205 ), defende uma “coalizão de movimentos sociais estruturada em
torno de diferentes grupos que desempenham um papel incontornável no fornecimento de trabalho (sob formas
de apropriação como de exploração” (tradução nossa24). Comungamos com a pertinência e importância dessa
coalizão de movimentos sociais, mas, a consideramos insuficiente. Acreditamos na importância do papel de um
partido revolucionário, como apontado no item 1.2.1, para desenvolver o processo de formação de consciência,
bem como de coagular e universalizar as demandas e reivindicações dos diversos movimentos em prol de um
projeto societário emancipatório que, só poderá ser protagonizado pelo seu sujeito revolucionário: a classe
trabalhadora, como vimos no Capítulo 1.
Esse sujeito revolucionário, por sua vez, deve estar voltado para a eliminação da divisão social e sexual
do trabalho, da propriedade privada, do trabalho assalariado e “desvalorizado”, do racismo, do patriarcado, da
heteronormatividade, das mais variadas formas de colonização, bem como de toda ideologia naturalizante das
desigualdades sociais. Enfim, esse sujeito para ser revolucionário precisa estar afinado com um projeto
societário anti-racista, anti-patriarcal e anti-capitalista para fundar uma nova sociabilidade verdadeiramente
igualitária e livre. Em outras palavras, esse sujeito deve corresponder à universalização das demandas pelo fim
de todas as relações de apropriação, exploração, opressão e dominação, consubstanciadas pelas dimensões de
classe, “raça” e sexo.

construction de différence et de naturalisation de celle-ci. Concernant l’appropriation des femmes, cela implique d’en
finir avec la division sexuelle du travail et la pensée straight. Pour l’appropriation suivant des rapports de « race », c’est la
division du travail internationale, post coloniale et liée à toutes sortes de colonisations « internes », dont il devrait viser
l’abolition, ainsi que de l’idéologie raciste. Quant à l’exploitation de classe, ce sont l’idéologie capitaliste, la propriété
privée et les rapports d’exploitation salariale dont il devrait tenter de venir à bout.

24
Texto original: “[...] coalition de mouvements sociaux, structure notamment autour de différents groupes jouant un rôle
incontournable dans la fourniture de travail (sous formes d’appropriation comme d’exploitation)”.

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