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CARLOS FREDERICO MARES, Professor Titular de Direito Agririo na PUC-PR. Doutor em Direito Piiblico. Coordenador da Linha de Pesquisa em Direito Socioambiental de Mestrado da PUC-RS. Procurador do Estado do Parana A FUNCAO SOCIAL DA TERRA Sergio Antonio Fabris Editor Porto Alegre / 2003 continua tao dificil mudar a concepgao da propriedade? Como se formou esta conviegao tio arraigada de que a propriedade é 0 prd- prio homem e nenhum direito pode ser mais sagrado do que ela? Tentar entender este fendmeno e buscar os caminhos de sua 0 € a razao do presente trabalho. E por isso ele se ehama (0 social da terra e nao da propriedade. super fun 16 x PRIMEIRA PARTE A TRANSFORMAGAO DA TERRA EM PROPRIEDADE A propriedade individual A idéia de apropriagao individual, exclusiva ¢ absoluta, de uma gleba de terra ndo € universal, nem histériea nem geograficamente. Ao contririo, é uma construgao humana localizada e recente. Esta- do € Direito modernos comegam a surgir na Europa lt por volta do século XIII, talvez antes, teorizados a partir do século XVI com as informagdes fantasticas que traziam de cada parte do mundo as caravelas dos aventureiros, conquistadores e mereadores: Os teéricos iam recebendo as noticias, comparando com a rea lidade ¢ formulando tcorias, ao estado natural corresponderia um estado civil que pudesse gerir os novos tempas em que os pequenos rtipos, feudos ou urbes ja nao teriam a auto-suficiéneia de outrora, € 0 mercado passava a considerar os homens nio mais pela sua nobreza ou pelas suas qualidades, mas pelo valor de seus bens acumulados ¢ pela sua capacidade ou disposigao de acumular cada ver mais. Assim, 0 desenvolvimento da concepgdo de propriedade atual foi sendo construida com o mercantilismo, com trezentos anos de claborayao teériea controvertida e incerto desenko (séculos XVI. 7 XVII e XVID, baseados na pritica © na necessidade das classes sociais nascentes: ¢ duzentos anos de sua realizagio pritica (sécu- los XIX e XX), com lutas ¢ enfrentamentos €, principalmente, mu- dangas internas, concessdes, fakicias, promessas poéticas ¢ violén- cia desmesurada, guerras. Hoje é visivel a crise deste modelo, 0 Estado e a propriedade, assim concebidos e realizados, chegaram a seu esgotamento teérieo € pritico. Marco juridico fundamental da propriedade moderna é a revo- lugao francesa ¢ a elaboragao das constituigdes nacionais, A revo- lugio francest foi © coroamento de um longo processo de lutas € transformagdes por que passou a Europa, como a reforma, a revo- lugao inglesa e a holandesa que fez Finalmente da burguesia a se- nhora do poder civil da sociedade. As constituigdes, a partir da francesa de 1793, se propuseram a organizar o Estado e garantir direitos. Esta dualidade correspondia de se ter um tinico direito, universal e geral, legitimado por uma orgenizagao estatal que pudesse representar os cidadaos que tivessem direitos, igualdade de tratamento € liberdade de assumir compromissos e obrivagdes. Portanto, podemos dizer que o Estado modern foi teoriea- mente construido para garantir a igualdade, a liberdade e a proprie- dade. Dito de outra forma, a fungao do Estado, no momento de sua constituigao, era garantir a propriedade que necessita da liberdade © jaldade para existir. S6 homens livres podem ser proprietirios, podem adquirir propriedade, porque faz parte da idéia da proprie- livremente. A dade a possibilidade de adquiri-le e transferi-| gualdade 6, por sua vez, essencial para a relagao entre homens livres, somente 0 contrato entre iguais pode ser valido. O eseravo e © servo nao contratam, se submetem. Para que exista o Estado e a propriedade da terra e de outros bens, tal como a conhecemos hoje, 6 necessirio que haja o trabathador livre; a contrapartida da propri- edade absoluta, plena, da terra é a liberdade dos trabalhadores’. Este sistema, que foi reproduzido muito cedo na América Lati- na, para sua plena realizagio dependia de homens livres que pudes- * Ver Liberdade © outros divetios, Marés, C. P. in O avesso da Liberdade, Novaes, Adavto. 18 sem ser proprietirios absolutos de seus bens e, se despossuides de bens, fossem livres para contratar sua forea de trabalho. A liberda de pessoal no era um pressuposto filoséfico abstrato, mas uma névessidade contratual, uma garantia do capital que, evidentemen- te, tinha, e tem ainda, o individualismo, como fundamento. Nao havia mais espago, no século XVIII europeu, para a relagdo ser de trabalho, a acumulagio capitalista estava a exigir a liberdade dos trabalhadores, que deixariam a terra e se transformariam em opera- rios fabris""Na América, como as terras jé estravam consideradas desocupadas por nao se reconhecer a ocupagao indigena, nao houve necessidade de libertar os trabalhadores, e se manteve o velho sis- tema escravista por quase todo o século XIX, A Igreja e a propriedade Os trezentos anos que antecederam a “constituiga0” do Estado moderno serviram para que a teoria européia fosse desenhando 0 seu perfil € fundamento, Os fildsofos e politicos daqueles séculos foram discutindo como se deveria organizar o poder civil, desde 0 inicio do séeulo XVI até o XIX, Lutero, Calvino, Bodin, Hobbes, Maquiavel, Locke, Rouseau, Montesquieu, Morus, Pufendorf, Francisco de Vit6ria, Bartolomé de Las Casas" trataram das coisas da sociedade organizada, do Estado, da politica, dos governos, da religido, de Deus e dos direitos, que encontravam no proprio siste- ‘ma legitimidade e funcionalidade. Nestas discussdes surgia sempre a idéia e a justificativa da propriedade que iria ser 0 grande direito individual a ser assegurado pelo nascente Estado. claro que todos os teéricos tinham por base a realidade em que viviam, Se Bartolomé de Las Casas ¢ Locke se aproximavam ‘em muitas coisas embora partissem de to diferentes situagaes, & or que, em geral, a Europa vivia momento muito especial, ou me- thor, a chamada civilizagdo ocidental, romana, judaico-cris 4 A lista destes teéricos pode ser imensa ¢ inclue fiecionistas como Swift, Vol= taire, Shakespeare, Milton, Cervantes, Camdes ¢ Dante, va a se modificar radiealmente e careceria de intérpretes ¢ teéricos que marcassem 0 pensamento transformador daquela época. Evidentemente todo esse caldo de pensamento foi muito mais rico € polémico do que 0 que hoje podemos apreciar, mas marca- yam to indelevelmente a formagao dos Estados contempordineos & seu Direito, que se pode ver a palayra de cada tm e de todos metida has constituigdes vigentes. A propria palavra constituigao, para designar a lei matriz do Estado, leva a idéia de coisa nova, inventa~ da, criada, construida, como se 0 Estado fosse uma invengao da modernidade E facil observar que da lista atras arrolada praticamente todos eram bispos, padres, pastores ou, pelo menos, softiam influéneia da Izreja, por isso se pode dizer que o pensamento cristo informou todos 08 teéricos que viriam a construir 0s alicerces do Estado € do Direito contemporaneos, sejam catélicos ot protestantes, A defesa da propriedade séria uma reinterpretagao do Evangelho, das Sagra- das Escrituras e das palavras dos santos. A prova da veracidade dos pensamentos filoséfieos seria encontrada nos textos biblicos. Exatamente por isso acompanhar a evolugao do pensamento oficial da Igreja sobre a idéia de propriedade significa acompanhar ‘05 movimentos oficiais deste conceito no seio do poder politico. Os primeiros pensadores catélicos se insurgem contra a injustiga da propriedade romana, por seu carater jé excludente. Sa0 Basilio, pelo século V dizia a respeito: {Quién es avaro? El que no se contenta con el suficiente. {Quidn es Jadrén? El que quita lo ajeno. Y tu gno eres avaro, no eres ladrén, cuando te apropias de lo que has recibido como administrador? ¢Es que se va a Hamar ladrén al que desnuda quien esta vestido, y va a haber otro nombre al que no viste al desnudo, pudiendo hacerlo? El pan que retienes, es del hambriento; el vestido que conservas guardado en el armario, es del desnudo; el calzado que se pudre en st casa, es del descalzo; la plata que guardas enterrada, es de! necesitado. * 5 = Citedo por Eduardo Rubianes em seu Hivto EI dominio de los bienes segun la tdoctrina de ta felesia, podlicada em Quito, pela PUC-Reuadr, em 1993, 20 Santo Tomas de Aquino (1225-1274), em sua obra principal, @ Suma Teoldgica, aceitou a existéncia da propriedade, mas nao a considerava um direito natural, portanto nao a admitia como um direito que pudesse se opor ao bem comum ou a necessidade alheia Fazendo a distingao entre o dircito natural e 0 direito humano ou positive, aquele oriundo da prépria natureza humana, de inspiragao divina, e este mera criagao do homem em sociedade, diz: O que € de direito humano nao pode abolir o direito natural ou © dircito divino. Pois bem, segundo a ordem natural instituide pela divina providéncia, as coisas inferiores esto ordenadas & das necessidades dos homens. Por esta razio, os bens supérfluos que algumas pessoas posstiem sdo devidos por direito natural ao sustenta dos pobres. satisfac E continua Usar uma coisa alheia subteaida ocultamente em caso de ex- tema necessidade no € um furto propriamente dito, pois tal necessidade tora nosso © que tomamos para sustentar nossa propria vida. No caso de uma necessidade semethante pode-se também tomar clandestinamente a evisa alheia para socorrer 0 proximo indigente. (2,2,66.7)" Santo Tomas fazia a distingao entre o usar ¢ o dispor. Para ele, dispor era a faculdade do proprictirio escolher como entregar aos necessitados 0 que Ihe sobejava, portanto, a faculdade de transferir ‘ bem que Ihe pertence: o direito de usar era um direito natural de todos os homens ¢ o direito de dispor, um direito positive, criado pelo homem em sociedade. Esta claro que para ele a idéia de dispor nao era a de vender ow trocar por outro bem, num negocio comerei- al, mas entregar a quem precisava, aos necessitados, A idéia da disposigzio como a liberdade de troca de bens ou alicriagao onerosa, & muito posterior, sustentada por Locke. Santo Tomas defendia que 6 ~ As citagdes foram extraidas do livro Ensino social da Igreja, de Ricardo An- tocich ¢ José Miguel Munarriz Saens, p. 142 ¢ 143. 21 Hinacbe “opvl a) (© que sobejava nao podia ser acumulado, mas distribuido entre os. necessitados, segundo os parimetros de Sao Basilio, O dispor, as- sim, significava to somente a possibilidade de escolher a quem istribuir. Somente depois que a teoria politica ¢ as leis passaram a tratar a propriedade como um direito natural, no séeulo XVII, &s portas da constitucionalizagao do Estado e de construgao ou invengao da (pay propriedade privada tal como a conhecemos hoje, € que a lerej catdlica a reconheceu como direito natural, oponivel a todos 0s ‘outros direitos criados pela sociedade. Esta nova idgia legitimava fundamento da Constituigao Portuguesa de 1822 que reconhecia a propriedade como um direito sagrado ¢ inviolavel Depois de Santo Tomas, no século XII, até 0 séeulo XIX, ha um siléneio da greja sobre o tema, 0 que significou abengoar a propriedade feudal ¢ logo depois a mercantil, dela eobrando dizi- mos e indulgéncias, sem criticas ot andtemas, Com a tomada de pela burguesia © a constituigao dos Estados Nacionais, a Igreja catdlica passou a defender oficialmente a propriedade priva abengoando, entio, disposigdes como a da Constituigao Portu- reja Catdlicn comegou a constrtir uma pode esa. Mesmo quando a I posigao critica a0 liberalismo. com a Enciclica Rerum Novarum (1891), 0 fez em defesa da propriedade privada contra 0 socialismo que propunha a stta aboli Muito recentemente a Lareja, oficialmente, passou a ter posigao mais contundente em relagao & propriedade da terra, especialmente quando 0 Papa Joao Paulo II, em 1979, no discurso inaugural do, Semindrio palafoxiano de Puebla de los Angeles, México disse “sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social”, alias: muito parecido com que ja tinha dito, em 1917, a Constituigto mexicana, nascida da revolugao de 1910. Esta idéia de hipoteca social expressada pelo Papa em Puebla, somada pelo documento "Para uma melhor distribuigao da terra? O desafio da reforma agraria" aprovado pelo Pontificio Conselho Justiga e Paz em 1997, & uma timida volta as origens da idéia crista expressada por Santo Tomas e Sio Basilio. Deve-se fazer uma res- salva importante: quando estes dois tedlogos tratavam da proprie- dade das coisas, nao estavam se referindo & terra, mas de seus fru- 22 tos, A terra nao era objeto de propriedade excludente, mas sim as coisas produzidas pelo ser humano ou por ele colhidas. A terra como objeto de direito de propriedade independente de produgao ou uso € eriagao do capitalismo. No interregno de siléncio oficial da Igreja, muitos homens do pensamento a ela ligados manifestaram posigdes que viriam ser paradigmaéticas para o horizonte do Estado contemporineo. De Locke a Voltaire: o elogio da propricdade John Locke (1632-1704), foi o grande pensador da propriedade contemporinea, analisou a sociedade em mutagio © organizou a defesa tedrica da propriedade burguesa absoluta, que viria a se transformar no direito fundante das constituigdes liberais préximas Até Locke a civilizagio crista entendia a propriedade como uma utilidade, um mend. a partir dele e na construgao capitalista, passa ser um direito subjetivo independente. Locke retoma a idéia de que to da propriedade & o trabalho humano, isto elas algo de si, 0 trabalho, Isto sob o argumento de que cada um & proprietirio de seu corpo, sendo o trabalho uma extensio dele. A apropriagio esta limitada, porém, a possibilidade de uso, dizendo que a ninguém € licito ter como propriedade mais do que pode usar Diz que tudo o que uma pessoa possa reter seri sua propriedade, mas se alguma coisa se deteriora sem uso, fere 0 direito natural de todos a usar das coisas que Deus criow na natureza, Estabelece, portanto, um limite estreito & propriedade: “Todo lo que uno pueda usar para ventaja de su vida, antes de que se eche a perder, sera lo que le esté permitido apropiarse mediante su trabajo. Mas todo aguello que exceda lo utilizable, sera de otro.” Nesta perspectiva Locke aprofunda a idéia de Santo Tomas de que 0 direito de propriedade se restringe ao uso, porque tudo o que exceda ao utilizvel seri de outro. Entretanto Locke agrega um conceito, o de corruptivel, deteriorivel, ¢ afirma que o excedente, a origem ow o Fundam 6, 0 poder sobre as coisas se exerce na medida em que se John Locke, Segundo sratado sobre et gobierno civil, p. $9. 23 para nao pertencer ao proprietario tem que estar em risco de se deteriorar. Afirma entdo que no € a falta de uso que descaracteriza a propriedade, mas a possibilidade de que se ponha em deterioro, Se uma pessoa colhe mais frutos do que pode comer esté avangan- do na propriedade comum, mas se nao sto frutos deterioriveis, se sio bens duraveis que nio se deterioram, pode té-los & vontade, Em geral, afirma, os bens duriveis, como a pedra, nao tem utilidade hhumana e, portanto, nao tem interesse em se discutir a propriedade, Por isso, ¢ para isso, @ Sociedade inventou bens nao deterioraveis com valor universal, como ouro, prata, ambar ¢, finalmente, 0 nheiro, passivel de acumulagio. Esta Kigica € 0 ponto chave para construir a legitimidade da acumitlagdo capitalista futura, porque restringia o bem comum as coisas corruptiveis, como os alimentos. Locke. assim, admite que o excedente, desde que mao seja cor- ruptivel, deterioravel, pode ser acumulado e, claro, o corruptivel mando que a sociedade arantir esta acu- pode ser trocado pelos nao corruptiveis, civil ¢ 0 governo foram criados exatamente pata mulagao: es claro que los hombres han acordado que ta posesién de la tierra sea desproporcionada y desigual. (...) mediante tacito ¢ voluntario consentimiento, han descubierto el modo en que un hombre puede poseer mas tierra de la que es capaz de usar, recibiendo oro 0 plata a cambio de a tierra sobrante; oro y plata pueden ser acumulados sin causar daito a nadie (.). (2) cn los gobiernas, las leyes regulan el derecho de propiedad, y la posesion de la tierra es determinada por constituciones positivas.”* Locke em sua construgao teérica justifiea a acumulagao capi- talista, reconhecendo que a propriedade pode ser legitima ¢ ilimita- da se se transforma em capital, em ouro, em prata, em dinheiro. E evidente que nfo poderia imaginar o resultado dessa acumulagio 8 = Locke, ob, cit. p.74. Estudo mais profundo sobre este tema desenvolveu Mae epherson em seu livia "A teoria politica do indisidualismo possessive: de Hobbes a Locke” 24 para o século XX. nem mesmo sonharia com a revolugio industrial © 2 violentissima acumulagao primaria dos séculos XVIII € XIX. mas defendia as idgias mereantilistas de entao, garantindo uma legitimidade tedrica ¢ moral para a propriedade privada, acumuli- | disponivel, alienavel, como um direito natural, Com a introdu- da nogio de bens corruptiveis, se afasta de Santo Tomas, que nao admitia a acumulagao qualquer que fosse, e se revela um ver- dadeiro mereamtilista.” © limite da propriedade, para Locke, ¢ a ilegitimidade da pro- priedade de bens corruptiveis nao trocadas, portanto, nao € licito a algném possuir mais bens corruptiveis dos que possa usar sem transformé-lo em capital. Sua teoria ndo veria com bons olhos a queima de estoques para manutengio de prego, por exemplo. Isto significa que o capitalismo foi mais longe e extirpou do coneeito de propriedade qualquer conceito ético que pudesse subsistir em Lo- eke, ai mesmo 0 alimento e os remédios deixaram de ser bem co- ‘mum para o capitalismo. Locke estabeleceu uma relagio muito estreita da propriedade com o trabalho quando defendew que a possibilidade de acumula- gio esta diretamente relacionada com a possibilidade de adquirir, comprar trabalho alheio. A Igica é direta, como 0 trabalho ¢ 0 Unico meio de gerar originariamente legitima propriedade, ao se comprar trabalho alheio, se est comprando a legitima propriedade por ele produzida, dizia. A partir dai, as transferéneias do bem pas- sam a ser legitimas apenas pelo contrato de compra e venda de mereadorias, Com esta idéia Adam Smith funda a economia politi- a, formando a base para Ricardo e depois Marx, estudarem o tra- balho como a medida de valor das mereadorias"* Quer dizer, Locke inicia sua reflexo afirmando que a tnica propriedade legitima é a produzida pelo trabalho e somente pode se 9 - Como @ dizia €.B, Macpherson: “E basta nos referiemos 20s tratades eeond+ rmicos de Locke para vermos que era um mercantilista para © qual a acumulagio de ouro exa um alve correto da politica mercantil o um fim em si mes- ‘mo, mas porque acelerava e aumentava o eomércio 10 Ricardo em seu livre Principios de economia polttica y irburacién e Mars em toda sua obra, especialmente no Capital 25 acumular até a quantidade corruptivel. Se 0 bem nao € corruptivel & infinitamente acumulivel, mas como se junta tantos bens? Com a possibilidade de pagar pelo trabalho alheio, jé que o trabalho pro- duz propriedade, Esta elaboragio tedrica € moral se encaixava como uma luva para o pensamento burgués e suas necessidades de acumulagao de capital. Dai a importancia para 0 capitalismo do contrato livre entre partes formalmente iguais. Toda teoria juridica posterior vai imidade da propriedade de bens na tansferéncia contratual © na legitimidade originaria da aquisigao, normalmente um contrato de trabalho, Este raciocinio € claro para os produtos manufaturados, mas tem conseqiiéneias diversas para a terra e seus frutos. Embora Lo- terra abundante ¢ que sua propriedade es- sto &, proprietario seria quem sentar a I eke afirmasse que hav tava ligada diretamente a produgao, fa usasse, 0 capitalismo a transformou em bem juridico sujeito a uma propriedade privada, a ela estabelecendo valor de troca. Por muito tempo o mercantilismo se baseava em coméreio de bens st- pérfluos, de luxo, restrito as classes abastadas. A terra passou a ser mercadoria com o erescimento do capitalismo ¢ com a transforma- gio agriria na Inglaterra, que reduziu as propriedades comuns de ‘campos e pastagens a proprietirios tinicos, individuais pelo proce: so de cercamentos (enelosures).'' De tal forma que duzentos anos depois de Locke, a terra ja era propriedade privada, legitimada pelo contrato e tendo como origem um ato do gaverno que a cedia ow reconhecia sua ocupagao. Com esta transformacho, 05 frutos da terra, corruptiveis por natureza, passaram também a ser acumul veis, abandonando-se a idéia de Locke. Poder acumular bens dete- rioraveis significava a possibilidade & © poder de destrui-los, quer dizer, se o proprietario nao deseja usar 0 bem, € licito que 0 destrua porque nisto consiste sua liberdade. A terra deixava de ser uma provedora de alimento para ser uma reprodutora de capital. Voltaire em seu dicionério filoséfieo considerou a propriedade da terra um direito natural e necessério ao bem estar de todos. Aliis © verbete propriedade ¢ uma defesa apaixonada das virtudes da 11 - Vera este respeito 0 artigo de Ellen Meinskin Wood, ds origens agrdrias do capitalismo. 26 propriedade privada, de quanto a sua existéneia podia ser benéfica para todos, mesmo para os trabalhadores que nao a podiam usufru- ir. A partir do século XVII. o direito e a coisa passam a se confun- dir, chama-se a terra de propriedade, porque passa a ser demarcada, cercada, identificada individualmente ¢ “melhorada”. Voltaire diz que a propriedade & liberdade. Exatamente essa era a contradigao da terra, a propriedade feudal, relativa e ligada a servos no-proprietarios se contrapunha a outra propriedade nas- cente, de homens livres, que livremente contratavam sua forga de trabalho, para proprictarias absolutos. que determinavam o qué, como © quando plantar. A terra estava deixando de ser a fonte de todos os bens de consumo da familia do servo © do nobre, para passay a ser a produtora de mercadorias que deveriam render hucros 0s capitais investidos na produgio, A légica da propriedade da terra estava sendo profundamente alterada: de produtora de bens de imediato consumo para quem a trabalhava, a produtora de bens que pudessem ser transformados na nascente indlistria, que disso faria no bens consumiveis ou coruptiveis, mas capital int acumulivel. “Da Suiga @ China, os camponeses posstem terras préprias. Somenie 0 direito de conquista pode despojar os homens de um direito tao natural” dizia Voltaire em sew dicionério filosofico, Acreditava que fosse positiva a transformagao da terra em proprie- nda que expulsasse os serves, os camponeses. nitamente dade exclusiva a porque os transformaria em homens livres, que livremente poderi- am vender sta forga de trabalho: ‘Todos os camponeses nio serdo ricos, € nao & preciso que 0 sejam. Carecemos de homens que tenham seus bragos © boa vontade, Mas até esses homens que parecem 0 rebotalho da sorte, participardo da felicidade das outros, Serao livres para vender 0 seu trabalho @ quem quiser paga-los melhor. A libe 12 Voltaire, Frango's Marie Arouet de. Cartas Inglesas: tratado de metafsica Aicionario floséfico. p. 271. 27 dade sera a sua propriedade. A esperanga certa de um justo sa- lario os sustentara.”” Voltaire ima na propriedade e no trabalho livre poderiam trazer iio 36 mas felicidade aos homens, a todos os homens. E note-se que Vol- taire sempre foi considerado um pessimista. Na era dos direitos positivos, das Constituigdes, quando 0 E tado foi “constituido”, as leis esqueceram os predmbulos ¢ as dife- rengas entre pereciveis e nfo pereciveis; toda a propriedade, da terra, dos alimentos, dos remédios. do ouro ov do mbar, passou a ser direito subjetivo e até mesmo direito natural de ci que tivesse a Sorte ou a argicia de tomi-lo para si. Os timidos li- m para a propriedade absoluta Jnava que a sociedade civil e 0 governo baseados eza, mites que os pensadores, de terras ¢ outros bens, deixaram de existir, 0s Estados constitucio- nais reconheceram nia propriedade @ base de todos os dir ais do que isso, 0 fundamento do proprio Direito, Da teoria a pritica: a lei portuguesa de terras os elaboravam a justificativa moral, politica Enquanto os tes ¢ juridica para a nascente propriedade capitalista, na realidade das sociedades européias a transformagao ocorria. O caso de Portugal & nio 86 elucidativo, como influente na formagao do direito e socie- dade brasileiros, ‘A abundancia de terras ¢ a falta de trabalhadores que se esten- dia por praticamente toda a Europa, talvez ocasionada pela peste negra, pelo éxodo rural, pela expulsio dos mouros na peninsula ibériea, fizeram crescer 0 valor do trabalho humano, Isto somado ao interesse de produgio de bens que se pudesse mereadejar, fazia com que cada vez ganhasse mais importdneia 0 trabalho da terra e nao 0 trabalho para outrem, a0 servigo de outrem, mas o trabalho para si mesmo. Por isso, dizia Virginia Rau ao analisar a ocupagzo territorial portuguesa depois da expulsao dos mouros: “Para levar 0 13 Voltaire, ob. eit p. 272 28 homem a romper o brejo, empunhar o machado para hutar contra a floresta ¢ a pegar no arado para arrotear a terra brava, s6 a conces sio de terrenos e de liberdade pessoal seriam estimulos suficiente- mente fortes para 0 conseguir®." O sistema feudal, baseado em relagdes de senhorio © de moti- vagdes extra-econdmicas, nao era suficiente para empurrar 0 Esta- do portugués nascente, 2 ocupagao da terra ou a manutenga0. das familias na terra haveria de ser feita com base no interesse da pro- pria familia em nela permanecer dai a liberdade pessoal e a propri- edade, Portugal nasceu no séeulo XII, numa época em que se comega~ va a operar grandes transformagdes na Europa. Naquele inicio, e ainda por muito tempo, a propriedade da terra esteve ligada a obri- gatoriedade de cultive'®, Assim, 0 que se podia ehamar de proprie- dade era 0 uso da terra. O direito a terra, portanto, estava ligado a0 set uso, & sua transformagfo, Neste sentido o valor da terra estava diretamente ligado ao valor do trabalho, j4 que nada podia valer a terra sem 0 trabalho que a fecundasse. O nascimento do direito de propriedade ou do direito de usar e dispor da terra, em Portugal, esti ligado & liberdade do trabalho. O trabalho livre e a livre pro- priedade da terra sio pressupostos do ulterior desenvolvimento da modernidade e do préprio mercantilismo. As leis de Portugal e Espanha dessa época so abundantes em tratar do valor da moeda, do salério, normalmente estipulado em seu maximo, das jornadas, estabelecidas como um dia de trabalho ¢ exercido de sol a sol ¢ a persegui¢ao dos vadios. Todas estas medi das legislativas tinham em vista a produgao agraria. E ainda Virgi nia Rau que em seu preciosa livro nos ensine: Em Portugal, data do século XII, de 1211, 0 primeiro diploma legislativo que manda perseguir 05 vadios, e da mesma centi- ria é também 0 primeiro que se ocupa do tabelamento do prego de certos géneros e da taxa dos salirios dos servidores rurais - 14 Ver RAU, Virginia, Sesmarias medievais portuguesas. p. 28, IS - Portugal tem como data de fundagio 2 sagragao dle D. Afonso Henriques ‘como seu primeiro rei, em 1143. 29 a lei de D, Afonso III, de 26 de dezembro de 1253. A partir de entio a “populagao que vivia de soldada, estava sujeita a pres- crigdes rigorosas para a compelirem a trabalhar”. Traga-se de~ finitivamente uma linha diviséria entre 0 homem trabalhando por conta propria € 6 assalariado, Assim como a fortuna deter- minava gradagdes € distingdes de aleance juridico entre os ine dividuos da populagao ordinaria, era também o direito de pro- priedade sobre bens avaliados em trezentas libras ¢ a posse de bois para lavrar a terra, que libertava © homem da obrigagao de trabalhar por conta alheia. Sao iniimeras as leis, a partir dai, que tratam do trabalho ¢ das remuneragdes, das obrigagdes de trabalhar ¢ contra a vadiagem, Apesar disso cada ver fiea mais dificil ¢ no adiantam as leis con- tra os vadios € que estabelecem saldrios maximos, os bragos livres exigem mais soldos ou se negam a trabalhar simplesmente. F nesse momento histirico que surge em Portugal a Lei de sesmarias, pro- vavelmente a primeira lei agriria da Europa digna desse nome. Com ela passa a ser condigo de propriedade da terra o seu cultivo, evidentemente convivendo com os restos do sistema e da ideologia feudais, que vai paulatinamente perdendo espago territorial e poli- tico, Verificando que faltavam bragos para lavrar a terra, havendo de pessoas aciosas € famintas nas cidades, 0 Rei de Portugal, D. Fernando, em 1375, abrigou os proprietérios de terras a produzir sob pena de expropriagao e aos bragos livres a trabalhar para 05 proprietirios, estabelecendo salirios méximos e os vineu- lando a contratos que tivessem a duragio de pelo menos um ano, Com isso criava o Instituto das Sesmarias, com o qual obrigava a todos transformarem suas terras em lavradio, sob pena de nao o fazendo, as perderem a quem quisesse trabalhar, além de penas severas que poderiam variar da expropriagdo, agoites ou desterr. A lei de sesmaria assumiu integralmente a idéia da propriedade como 0 direito de usar a terra ¢, mais do que isso, a obrigagao de nela lavrar. Por isso, antes de ser uma lei de direitos, é uma lei de 16 Idem ibidem, 30 obrigagdes: obrigagao de cultivar a terra; limite a manutengao do gado 2 apenas 0 indispensivel para puxar 0 arado; obrigagio do trabalhador estar vineulado @ um patrio com salério maximo est belecido: fixagio das rendas a serem pagas pelos lavradores aos proprictarios de terras, em caso de arrendamento, ete: Em. 1514 as sesmarias foram reestruturadas pelas Ordenagdes Manuelinas'”, O instituto foi repetido pelas Ordenagées Filipinas, ‘em 1603, com o texto que nos chegow e que tem servide como seu conceit mais aeabado: Sesmarias so propriamente dadas de terras, casas ou pardici- ros, que foram ou sio de algum senhorio, € que jt em outro tempo foram lavradas ¢ aproveitadas, © agora 0 ndo so. As quiais terras e os bens assim danificados e destruidos podem Sesmeiros, que para isso devem ser dados em sesmat forem ordenados."* pelos A Lei estipulava um prazo de cinco anos para que a gleba cc dida em sesmaria fosse integralmente demarcada e aproveitada, caso contririo seria revogada e entregue a outro interessado. Cum- prindo o prazo eram confirmadas, adquirindo-se 0 direito a gleba. Este direito como se vé estava ligado & ocupagao e uso da terra quer dizer a propriedade tinha pronta vineulago com o seu exer cio efetivo, j4 que se nto houvesse efetiva ocupagao, poderia a gleba novamente ser dada em sesmaria, Deve-se notar que o instituto foi criado no séeulo XIV, para re- solver situagdo especifica daquela época e, embora tenha sido re- admitido em todas as Ordenagdes do Reino foi cada vez menos usado em Portugal, especialmente depois do século XVI proceso de avango da propriedade mereantilista, impulsio- nada pela descoberta da América ¢ do novo caminho para as Indias, 17 - Ordenagdes eram compilagdes ou consolidagdes de leis vigentes 8 época. Eram verdadeiros céigos que compreendiam todes os ramos do dircito, determi radas por us rei. Trés grandes ordenagOes se seguiram em Portugal, as Afonsi- nas, em 1447, as Manuelinas em 1514 e finalmente, as Filipinas, em 1603. 18 - Ordenagies Filipinas, Livro IV, Titulo XVII, Atualizei ortograficamente 31 a profunda reviravolta no pensamento filoséfico € no juridico, cada vez mais se aproximando do direito de propriedade como uma ga- rantia ao seu pleno ¢ absoluto exereicio, foi enfraquecendo o insti- tuto até a sua inviabilidade total no comego do século XIX, com a constitucionalizagao da sociedade portuguesa ¢ a fundagao do Es- tado Nacional. Quer dizer, » propriedade mercantil portuguesa nasceu como tum direito ao uso produtivo, mas foi se transformando até ser um dircito independente, cuja legitimidade estaria vinculada a0 negs- cio juridico que a trocou por dinheiro ou outro bem nao corruptivel, Comparando assim a trajetéria da teoria com a pratica portuguesa ica facil entender 0 processo historico de criagao da propriedade privada no mundo contemporaneo e a afirmagio certa de que ela & uma invengao recente, construgao humana que nada tem de sagra- da, nem de natural. ‘es Nacionais A propriedade nas Constitu Todo 0 direito do Estado moderno esti assentado na concepsao dos direitos individuais. Estes direitos eram nada mais nada menos que a possibilidade de cada homem livre adquirir direitos. Quer dizer, « organizagao estatal estava eriada para garantir, individual- mente, 0 exercicio de direitos individuais. Temos de um lado ) “homem livre”, nem servo nem escravo, pronto para contratar (Ieia- se vender) sua propria forga de trabalho € teoricamente capaz de adquirir (com 0 produto da venda do seu tabalho) propriedade. | Locke dizia que somente era legitima a propriedade que fosse sultado do proprio trabalho, sendo legitimo a qualquer pessoa com- prar o trabalho alheio ¢, portanto, o seu fruto."” Nesta idéia esto os dois lados, o trabalhador livre que produz propriedade legitima, © a possibilidade de adquirir legitimamente bens. Esté também claro gue © trabalhador ao vender seu trabalho recebe apenas 0 minimo para-subsisténcia, jé que sua producao (que seria sua propriedade legitinia) esta transferida para quem Ihe comprou o trabalho. Exa- 19 John Locke. Ob. cit. 32 tamente por isso, mais tarde. Marx demonstraria que o que é vendi do pelo trabathador nao é 0 trabalho, mas a forga de trabalho, como um potencial de produgao de bens. Estas idéias foram transferidas para 0 corpo das Constituigdes, assim, a francesa do ano I (1793) estabelecia: “O Governo existe para garantir ao homem 0 gozo dos seus direitos naturais e impres- critiveis.” (artigo 1°), O artigo 2° esclarecia quais eram estes di- reitos naturais e impreseritiveis: “a igualdade, a liberdade, a segu- ranga ¢ a propriedade”.” ~ - Exemplar na formulagao do Estado Liberal & a Constituigao de Cidis’', que definia claramente ser a propriedade o direito indivi- dual mais importante: “A Nagao tem o dever de conservar e prote: ger, por meio de leis sibias ¢ justas. a liberdade civil, a propriedade © 0s demais direitos legitimos de todos os individuos que a com- poe A primeira Constituicio portuguesa, de 1822, dispunha: “A Constituigio Politica da nag8o Portuguesa tem por objeto manter a liberdade, seguranga © propriedade de todos os portugueses”, E mais adiante definia que a propriedade é um direito sagrado ¢ invi- olivel de se dispor & vontade de todos os bens (artigo 6°). A brasi- leira imperial, de 1824. seguia o mesmo tom, menos apaixonado, mas de semelhante conteiido: Art, 179: A inviolabilidade dos direitos civis politicos dos cidadios brasileiros, que tem por base a liberdade, a seguranga individual e a propriedade, & garantida pela Constitu Império, pela maneira seguinte: XXII - é garantido o diteito de propriedade em toda sua pleni- tude. Se 0 bem juridico legalmente verificado exigir 0 uso € emprego da Propriedade do Cidadao, sera ele previamente in- denizado do valor dela. A lei mareard os casos em que ter’ lu 20- Ver Miranda, Jorge. Textos histiricos do diretto constietonal.p. 7. 21 - Constiuigao espanhola de 1812. 22. Ver Miranda, Jorge, idem. p. 108. ver também a propésito a brilhante endlise {este dispositive pelo constitueionaista e historiador espanhol CLAVERO, Har- tolomé. Propriedad como libertad: dectaracién del derecho de 1812, 101 p. 3B 1, € se dard as regras para se detern indenizagao. Em todas estas constituigdes o que esta realmente protegido & 0 direito de propriedade, porque a liberdade, a igualdade e a seguran- a sa0 pressupostos da propriedade moderna ¢ signifieam: contrato de homens livre e iguais, garantida sua execugao pelo Estado. O direito foi se construindo sobre a idéia da propriedade priva- da capaz de ser patrimoniada, isto & de ser um bem, uma coisa que pudesse ser usada, fruida, gozada, com absoluta disponibilidade do proprietério ¢ acumulivel, indefinidamente. Portanto esta proprie- dade deveria ser exercida sobre um bem material, conereto. Isto significa que o direito individual é, ele também, fisico, conereto. A propriedade assim, era coisa que se subordinava a vontade livre do proprietirio que dela podia usar e abusar, exchuindo qualquer inte- resse ot diteito alheio. © proprietirio podia, entio, usar ou nio usar, ¢ mesmo no usando nao a perdia, neste sentido, 0 direito de propriedade estava concebido como impreseritivel. O seu fim de- pendia da vontade livre do proprietario que, tendo poder de vida e morte sobre © bem, poderia destrui-lo ow aliend-lo, transferindo-o a ‘outra pessoa livre, por um contrato: o proprietério passa a ser se- nhor absoluto da coisa objeto de seu direito, Direito Privado, também chamado de Civil, detalhou os di- reitos individuais centrando-os, evidentemente, na propriedade, de tal forma que os Cédigos contém cléusulas para solucionar qual- quer disputa possivel, Imaginam e legislam sobre situagdes como, por exemplo, ade um fruto que, pendente da drvore que nasce em uma propriedade, cairé, ao amadurecer, em outra. Ou ainda situa- des de transmissio de propriedade causa mortis quando sucessor & sucedido morrem ao mesmo tempo, ou ainda, quem ser o proprie- tirio do alveo do rio que seca. Estes detalhes revelam a preocupa- 20 extrema ¢ cuidadosa do legislador com o direito individual de propriedade, Apesar do esmero das legislagdes € raro encontrar nas leis de- finigdes de propriedade, O Cédigo Civil Brasileiro (Lei 3.071, de 1° de janeiro de 1916), por exemplo, dedica um capitulo com 50 artigos a propriedade, mas nao a define, dispondo tao somente que 34 ar e dispor de mente ae 1 ac) proprietirio 0 direito de usar seus bens, e de reavé-los do poder de quem quer que injust 05 possua.””* A propriedade to discutida nos séculos anteriores passou a ser um dado da realidade, absoluta ¢ indefinivel e de pro- eco cogente para as Constituigdes e Estados Constitueionais ca- italistas®. Os outros direitos consi seguranga, a liberdade ea igualdade, como definia a | 1793, nao mereceram nunca dos legisladores tal cuidado. Alias, | somente mereceram detalhamentos em sta estreita relagao com a | prapriedade e sua fonte de legitimagao, 0 contrato, como garantia de seguranga juridica de poder reaver os bens de quem injusta- | mente os possua, ou tera liberdade de dispor. usar ou no usar seus } bens. ou ainda ter garantida a igualdade no momento de contratar | sua transferéneia, Muito cedo estes principios de direito individual tiveram que resolver problemas nao individuais, como a propriedade comum de \dependentes dos individuos los nas velhas constituigdes, como todos € as propriedades comerciais, compunham. A propriedade comum de todos. passou a ser do préprio Esta- do, ctiando-se a dicotomia pablico/privado (o que é privado piiblico, © que é piblico tem que ser estatal). Para a propriedade comercial, o direito civil - ou comercial - foi criando a nogio de Sociedades. sempre ligadas aos individuos que as compunham até recriar, mais recentemente a sociedade andnima. ao emprestar a nogdo de pessoa, responsabilidade ¢ capacidade a fiegto da pessoa juridica, que embora formada de pessoas individuais miltiplas ¢ descomhecidas. & uma, Esta criagdo reafimma a idéia de individuali- dade patrimonial. Mais tarde o Estado passou a ser considerado dos direitos indivi- uma pessoa juridica, reafirmando a sup o Codigo Civil Beasleeo. 24 =F claro que no século XIX o debate eontinuou, com erticos severos da pro Priedade privads, como Proudhom, que afirmava Ser a propriedade um roubo enguanto, de ano lado, Thiees dofendia a propriedade eam um direita natural, ntegrane da condigao humana. do séeulo XIX, também, as séiase profundas riticas de Mars © Enecis 39 duais, jd que o Estado, ficcionalmente, passa a ser uma pessoa, diferente, mas individual. - O desenho da propriedade privada sempre foi muito claro des- de as constituigdes nascentes, nao acontecendo 0 mesmo com a propriedade piblica (estatal). A dicotomia piblico/privado é uma criago dos Estados constitucionais. Enquanto toda a teoria juridica dos séculos anteriores estava preocupada com a legitimacao da propriedade, as definigaes do Estado, ou sta teoria pabliea, se pre~ ocupava com a organizagao estatal, seu funcionamento, representa- jas? idade, organicidade, competéncia e efic Seria ingénuo e equivocado pensar que a “propriedade pitblica no existe ou que nfo tivesse sido referida pela constitucional. Ao contrario, desde que se comegou a construir, na Enropa, @ idéia do homem livre e de stia propriedade privada ou organizou-se, paralelamente e como excegao, a propriedade pitblica (estatal). A idéia era a de que todos os bens (uridica & Imente considerados) pudessem ser apropriados a um patriménio individu- al. A terra também, ¢ com especial importancia por ser uma pro- dutora natural de bens e matéria prima. Assim, todo quinhao de terra de um pais estaria destinado a ser privado ¢ produtivo. O bom senso indicava que haveria necessidade de caminhos, estradas ¢ outras “utilidades comuns” a todos os cidadaos, assim como o Es- tado precisava de prédios para seus agentes, policiais e juizes. Os bens ou as terras que servissem a estes fins teriam sempre uma utilidade piblica controlada pelo Estado. Finalmente, com a inven- 20 da pessoa juridiea de direito piblico, passaram a ser proprieda- de do Estado. Até hoje 0 termo propriedade do Estado & visto com restrigdes, alguns juristas t8m preferido cham3-la de dominio pa- blico ou bens do Estado, como usa a Constituigao vigente no Bra- sil. A diferenga esta no cariter livre ¢ absoluto da propriedade pri- vada em contraposigao com a indisponibilidade dos bens piblicos. |Mas 0 certo & que a propriedade pablica esta ligada ao uso piblico | do Estado ou do cidadao - ¢ a privada é um poder (direito) do |proprietirio, independente do uso que faga, ater = Ver especialmente neste particular a obra de Jean Bodin 36 Nesta perspectiva, de que a propriedade piiblica é uso conereto | ca privada & direito abstrato, dispde a Constitui¢do Brasileira de 1824 ao estabelecer a possibilidade de desapropriagao de bens de particulares que tivessem utilidade para o uso piblico. Todo bem que ganha uma utilidade piblica sera transferido & propriedade do Estado com indenizagio ao proprietério privado existente. Esta norma revela que a propriedade privada nfo neces- sitava de utilidade social, por ser um direito abstrato do propricta- rio, teria a utilidade que ele the desse, ineluindo nisso uma inutili dade, Este poder outorgava um cardter absolute & propriedade, ja que dependia exclusivamente da vontade do seu titular. que sendo livre, poderia expressé-la quando € como entendesse. Revelavaz) ainda, a norma constitucional, que todas as coisas deveriam ser| privadas, sendo a propriedade piiblica uma excegao de uso. Em um ensaio escrito em 1977, intitulado “Direitos humanos como direito de propriedade”, Macpherson analisa a evolugio do conceito de propriedade nos seguintes termos: Desde Aristételes até séctilo XVII, 0 coneeito de propriedade abrangeu dois direitos individuais: 0 direito individual de ex- cluir ouirem do uso e gozo de qualquer coisa, ¢ 0 direito indi- vidual de nao ser excluido do uso e g070 das coisas que a soci- edade declara como sendo de uso comum ~ terras, parques, es- tradas, iguas. Ambos eram direitos do individuo. (...) Do sé- culo XVII aos tempos atuais, a nogio de propriedade geral- mente foi mais estreita, ficando reduzida ao primeiro direito ~ © direito de exeluir outrem.” Na mudanga de nogao, a terra deixou de ser um direito de to- dos para ser um direito individual, excludente, por isso, a necessi- le de desapropriagao, conforme o disposto da Constituigao impe- tial, para os usos piblicos. Se a terra fosse um bem de todos, uma utilidade comum, nao haveria a necessidade de desapropriagao mas 26 - Macpherson, C.B. Ascenso € questa da justiga econdmica e outros ensaios. p. Lows 37 120 somente de redistribuigao para methor aproveitamento, como acontecia durante a vigéneia da lei das sesmarias. A criagao da propriedade moderna coloca de um lado uma pes- soa, que ¢ titular do direito, chamada sujeito de direitos, um indivi- duo, De outro lado, objeto desse direito, um bem, uma coisa, que compDe 0 pairimdnio individual. No inicio este bem ere material, fisico, depois, com 0 tempo aleangou as abstragdes, como a inven- G0, 08 direitos de autor ¢ atualmente até a moral € © bom nome individual passaram a ser objetos de direitos patrimoniais, 0 que significa que estas coisas podem ter valores estabelecidos e serem trocadas por outros bens como o dinheira Desta forma, tudo 0 que fosse coletivo e ndo pudesse ser en- tendido como uso piiblico nao teria relevancia juridica. Tudo a. que no pudesse ser materializado ef patrimémid nao pudesse ter um valor ainda que Simbélico também estavarTora do Direito. E o titu- lar de um direito haveria de ser sempre uma pessoa individual que pudesse ser responsabilizada por seus de direitos, deveres. Estes deveres sto entendidos a partir de uma relago com outro titular de direito, o que significa que sto, elas também, obri- gages individuais, 0 objeto do direito individual haveria, também, de ser indivi- dual, conhecido ¢ avalidvel economicamente, Nesta avaliagdo re- side sua juridicidade, a tal ponio que 0 direito resolve todas as pen- déneias, em itltima instincia, em perdas € danos. Esta regra até mesmo para bens patrimoniais intangiveis, como 0 chamado dano moral, a propriedade intelectual e os direitos de autor. Até mesmo a vida individual passa a ser valorada patrimonialmente. Para organizar esta estrutura social armada com as nascentes Constituigdes do séeulo XIX, surgiram os Cédigos Civis, Comer- ciais e Pena os, tendo, ald A propriedade privada como contrato A leitura do artigo citado da Constituigao Imperial Brasileira de 1824, chama a atencao por duas coisas, primeiro 0 reconheci- mento do direito em toda a sua plenitude, e em segundo pela nica excegao existente, a desapropriag toda a sua plenitude” quer dizer exatamente que a propri- antida tem cardier absolity, oponivel e excludente de s interesses ¢ “direitos” indi IhetosA-afiemagao & quase Tao elogtiente quanto @ da portuguesa que a considerava um direito sagrado e inviolivel. A plenitude de um direito é, na verda- jo. quer dizer que nenhum limite have- dea plenitude de seu exerci ri de se impor a ele. Embora nao esteja dito, esté claro que a Constituigao e as leis que a regulamentam tratam a terra como bem juridico, objeto do direito absoluto e exeludente. Os Cédigos vao nascendo, na Franga, na Alemanha e se espalhando pelo mundo, reavivando e remarean- do 0 desenho de propriedade privada da terra. Os Cédigos regula is © 0s mentam as diversas espécies de bens, entre eles os mov iméveis. Mas a diferenca & apenas formal, no modo ou procedi- mento de aquisigao e prova, a propriedade & essencialmente uma s6, a divisio em categorias tem 0 sentido de proteger melhor 0 di- reito exchidente, A propriedade descrita na Constituigao de 1824 € privada e in- dividual, a piblica € excegao, No conceito geral esti explicito que © proprietario pode tudo em relacdo ao bem que possui e, bastando a presuneao da liberdade contratual, os acordos valem mesmo que sejam destrutivos dos bens. Além da terra outro bem valiosissimo entra no rol das propriedades, 0 trabalho, desde a concepcao de Locke. Portanto 0 contrato que compra a terra ou 0 trabalho so Validos a partir da mesma presungao, nao importa que seja para deixar a terra inerte ou destrui-la, nem importa que a remuneragao do trabalhador seja insuficiente sequer para manté-lo vivo, O elogio do trabalhador livre se transforma na presungao juri dica da liberdade contratual, vista sempre desde uma perspectiva individual. © contratante tem liberdade para fazer e desfazer, con- tratar e distratar. Os homens livres sem propriedade vendem sua forga de trabalho, por valor evidentemente menor do que o dos bens produzidos, de tal forma que o resultado ds produgao pertence 20 contratante. legitimado pelo contrato. Esta nova propriedade, legitima para o sistema, ¢ fruto, portanto do contrato. 39 Quer dizer. a legitimidade da propriedade moderna esta assente ma seré a propriedade. A acumu- no contrato: se for legitimo, legi lagao de bens € 0 aumento do patriménio de uns pelo trabalho de outros, apropriando-se do resultado do trabalho alheio ganha status de legitimidade juridica contratual. E onde reside a legitimidade contratual? Na livre manifestago de vontade, que por sua vez se assenta na idéia do homem, quer dizer individuo, livre de todas as amarras coletivas. © homem livre nao € servo nem eseravo, mas tampouco hi de ser intearado a um grupo de pessoas com interes. ses (poder-se-in dizer direitos?) comuns, como sindicatos, comuni- rdades ou povos. Na idéia da cultura constitucional do século XIX, 0s direitos coletivs nao podem ser admitidos porque restringem os individuais e, portanto, obscurecem a liberdade contratual LAs necessidades elementares da vida humana como, alimentar- se € manter a prole, e as criadas pela vida social como, vestir-se ou abrigar-se das intempéries, encontrar alivio para as dores e realizar- se com os prazeres, no sio levados em conta. O Estado moderno trata a Tiberdade apenas como a capacidade consciente de contratar © ndo como a liberdade da busca da felicidade que encontra os pra- zeres, medita nas crengas, eré nas idéias e luta por conviegdes. Ali as, observando a revalta popular por este entendimento faccioso da liberdade, 0 Papa Ledo XIII, em 1891, publicou a enciclica Rerum Novarwm, que. em defesa da propriedade privada faz um libelo contra 2 desumanidade do contrato de trabalho, portanto contra a liberdade absoluta de contratar. Se liberdade é a escolha entre muitos, 56 0 patrdo tinha liberdade porque tinha a sua frente um batalhao de famintos pronto a ser contratado por qualquer prego que mitigasse sa fome didria Entreianto, diz a lei e a teoria, o contrato € o encontro de duas vontades. Uma tinica vontade nfo pode compé-lo. Esta é a idéia maegnanima da modernidade. O trabalhador € © empregador eapita- sta tém que ser igualmente livres; comprador ¢ vendedor devem ter o mesmo grat de liberdade na opcao que fazem, qualquer inter- feréneia do Estado ou de outrem poderia viciar essa vontade © ma- Culicla indelevelmente. Isto fez com que igualdade e liberdade se transformassem em conceitos formais nos Cédigos, palavras va de conteiido e prenhes de mentiras, 40 A propriedade. assim, se conceitua como o produto do encon- tro de duas vontades na qual uma transfere & outra o que era legit mamente seu. O produto do trabalho do operdrio era seu, mas pelo contrato ficava transferido ao empregador, na idéia geradora de Locke. A tinica pergunta juridica que cabia neste contexto era: "quis faz8-lo?" © niio “teve necessidade de fazé-lo?" ou ainda "pode escolher entre varias alternativas?". Estas perguntas foram respon- didas por Marx € os socialistas ¢ teve como conseqiiéncia a desle- gitimagao da propriedade na sua origem. © Papa também se fez a mesma pergunta ¢ respondeu na Eneiclica Rerwm Novarum que, rantida a propriedade privada é necessério que para que possa ser © contrato seja além de le; mo, justo, ¢ para isso 0 Estado deve intervir. Lei XII] explicitamente considerou que a propriedade & uum direito natural: "a propriedade particular e pessoal é para o ho- mem, de direito natural. (..) deve reconhecer-se a0 homem nao s6 4 faculdade geral de usar das coisas exteriores, mas ainda o direito estavel e perpetuo de as possuir, tanto as que se consomem pelo uso, como as que permanecem depois de nos terem servido”.” Naquela Enciclica, & retomada, como se vé, a idéia de Locke do direito & acumulagao, e explicita que a propria terra pode, ¢ até é recomendivel que seja, objeto de propriedade privada. Alis este texto catdlico € muito claro em defender a propriedade privada expondo que Deus nao deu a terra para todos, mas sim a entregou para que cada qual com sua indiistria dela se apropriasse, Adianta porém, que © Estado deve estar preocupado com 0 contrato justo entre tabalhadores € patrdes, para que o salario possibilite vida digna © © direito de vir, poupando, adquirir legitima propriedade das coisas ¢ da terra. Arrola a seguir os deveres do Estado, que sto a garamtia da propriedade e a garantia das relagées de trabalho, dando protesao ao trabalho dos operarios, das mulheres e das eri- angas.”* } Na Segunda metade do séeulo, XIX, portanto, jé temos duas /claras posigdes acerca da legitimidade da propriedade privada, am- bas contrarias ao seu carter absolute: a primeira, dos socialistas, 27 - Rerum Novarum, p. 12 € 13. 28 - idem, p. 38-31 41 | argumentando que a propriedade individual dos bens essenciais, | entre eles a terra, ¢ ilegitima, ¢ a segunda, liderada pela Igreja, de | que a legitimidade nao se assenta somente na legalidade do cor trato livre, mas na avaliagao da justeza dele. de discuss’o de origem dessas duas posigbes € saber qual € 0 ponto justo, entre dois extremos, aquele que mata o trabi Ihador ¢ sua familia de fome, de um lado, ou aquele que remunera_ almente 0 trabalhador, entregando-Ihe todo o valor agregado com seu trabatho e, portanto, nao resultando nenhuma mais valia para o empreendedor capitalista? Esta discussiio, como se esta a ver. aproxima ou distancia os socialistas dos eristaos, podendo até mesmo haver cristios socialistas. Se 0 contrato do trabalho, como originirio do direito de pro- | cio. a origem do direito de propriedade sobre a terra é ainda mais complexo: ninguém fez a terra (ou Deus a teria feito) e. portanto, no € possivel um conteato com seu criador. Locke resolve este | problema dizendo que nao se trata de ser criador da terra, mas dos frutos da terra, isto é a propriedade originiria é de quem a tornow | produtiva, chamando isso de direito de "melhoramento”. Se obser- | varmos bem nao se trata de trabalhar a terra, mas de usi-la produti- | vamente, com fins lucratives, Voltamos ao contrato de trabalho, pode-se comprar o trabalho (a forga de trabalho) de alguém para irabalhar @ terra ¢ com isso ficaria legitimada a propriedade dos (Cfrutos da terra e a prépria terra do conteatante e nao do trabalhador Locke dizia ser de pouca importancia a discussio sobre a prop dade da terra, que havia em abundancia, ¢ os bens abundantes tém pouco valor, mas sim da transformagao da terra em unidade de produgao. Este era o sentido do melhoramento, ‘A propriedade originaria da terra na Europa, assim, dependia da liberagao da gleba das amarras feudais, dos antigos direitos costumeiros, da produedo para a subsisténcia ¢ das chamadas terras Jaterra. durante os séeu- comuns, Esta transformagao se deu na In los XVIa XVII, com o instituto do cereamento (enclosure). ( Na América Latina, especialmente no Brasil, a legitimidade ori inaria seria uma concessio do Estado, Até 1822 a concessio era por meio de sesmarias e depois de 1850, por meio de venda ou entrega de terras devolutas, Resolvido o problema da origem, « modernidade assenta gitimidade da propriedade da terra no contrato de transfer inclusive cereando-o de protegao e formalidades. como o registro de iméveis. E que a terra comegou a ganhar valor de troca e serv de garantia ad etipréstimos dos capitais Tihanceiras-Por ests is passam a forma de transferéncia de propri- ia somente se operaria com 0 re; 0s registros de imévei edade, isto & a tra contrato, da negécio juridico. O registro ganha esta caracteris somente em 1864, com a Lei 1.237, de 24 de setembro, que regu- lamentow as hipotecas, AA partir dai, a discussao juridica eapitalista ficou limitada ao contrato, autonomia da vontade, a fraude a eredores, aos direitos de terceiros, as formalidades contratuais, sueessdes ¢ heranga. A propriedade se transfere por contratos. abstratamente, sem necessi- dade de qualquer nova criagdo. A propriedade ¢ transferida como esti, podendo 0 proprietario fazer dela o que melhor Ihe parega, inclusive destrui-la, pois 0 dano sera seu e ninguém pode reclamar © dano que alguém cause a0 seu proprio patrimdnio. Este direito, portanto, € tao absoluto, tio amplo que contém a propria destrui- ga0. O mais grave & que no se esta falando de qualquer bem, mas da terra, fonte dos alimentos, da Histéria, dos remédios, da vida A idéia era ade que um pais constituido em Estado tivesse toda a sua terra ocupada por propriedades privadas. Na Europa, a0 se constitttirem os Estados, ficaram reconhecidos os direitos as 29 - Wood no citado artivo diz: "..enclosure significou, mais procisamente. a ‘extingdo (como ou som o cercamento das terras) dos direitos de uso baseados nos «costumes dos quais muitas pessoas dependiam para trae © sustento.” Obit, p.22. 30- Ver a propésito 0 artigo “Ocupagdo por necessidade” elaborado pelo Nicleo de Regularizagio de Loteamentos da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro. publicado na Revista de Direito da Procuradoria Geral, em 1988, n. 40 . 105-117. 43 terras ocupadas, apesar da violéncia do proceso de reocupacao pelos eapitais mercantilistas. Nas Américas portuguesa e espanhola foi muito diferente: os titulos de propriedade concedidos pela Co- roa a0s poves indigenas foram anulados e reconhecidos apenas os que se enquadravam dentro dos novos padroes de direitos, propri- etirios individuais. Todo o resto de terras estava aberto & conce: sdes ilo Estado, segundo os interesses do capital mereamtilista, para produgao de bens que interessasse metrépole, nao & fome dos natives. Com isso os novas donos expulsaram os indios, os aftica- nos fugidos do cativeiro. e os novos trabalhadores livres que cret do em sua liberdade resolveram ocupar um trecho de terra. A oct pagao nao gerou para eles propriedade, porque neste lado do mu do 0 sistema proprietério exigia que a propriedade fosse legitimada por um pedago de papel outorgade pelo Governo. O Estado, e s cle, distribuia terras, reconhecia titulos € negava direitos. Pode-se dizer que os precoces Estados americanos se constituiram para legitimar essa propriedade origindria, proibindo-as a seus filhos © -gando-as ao capital mereantil externo. A intervengao deste Estado no processo de ocupagio territorial 6 muito profindo, dominante, pode-se dizer. A terra disponivel no é de quem a faz produzir, mas de quem o Estado escolhe. A ocupa- co de trecho livre & proibida e a terra sem dono, chamada devoluta ou baldia, esta protegida da ocupagio por ser terra do Estado que a pode vender quando, como e por quanto quiser. No Brasil esse pro- cess0 ¢ clarissimo e atendeu pelo nome juridico de sesmaria, antes e terras devolutas, depois. A partir dessa aquisigao origindria, dessa concessto do Estado, a transferéncia passava a se dar pelo contrato, como se viu, Quer dizer, a propriedade da terra é um pedago de papel, cuja ocupacio, aproveitamento ¢ uso depende sé da vontade do proprietario.”” A 31 - 0 direito contemporaneo conhiece outras formas de aquisigio origina, ‘como a usueapiio, mas em geral no se aplicam as terras pilblicas, entre clas as devolutas. Puta haver @ usueapido a lei exige um deseuido do proprietirio, uma lomissio. A acupagao das terras piblicas pode vir 8 se transformar em proprieds- de pelo insituto da legitimagao de posse, mas nao ¢ considerado wm direito, mas tum favor do Estado que nto tem outta destinagao para aquela terra ocupade Voliaremos a este tema, 44 terra, portanto, quando entra no mundo do patriménio privado dei- xa de ser uma utilidade para ser apenas um documento, um regis- tro, uma abstragdo, um direito, O aproveitamento da terra ganha, juridicamente, outros nomes, uso, usufruto, renda, assim como a ‘ocupagao fisica ¢ chamada de posse. A Terra deixa de ser terra e vira propriedade. A propriedade piblica como uso, utilidade. As terras privadas, portanto, se legitimam por um contrato talhadamente tratadas nas Tegislagdes. As piblicas sempre tiveram ui tratamento muito diferente. Sao as sobras das privadas, so as que ainda no aleancaram 0 status de privadas, mas poderio aleangar um dia, quando passarem por uma forma origindria de aquisigao, como as devolutas, e sio as necessarias a0 uso de todos. Algumas terras privadas precisam passar ao uso de todos ou do Estado e, para isso, foi criado desde as Constituig6es fundadoras, como a de 1824 no Brasil. o instituto da desapropriagao como inte- grante do priprio conceita de prapriedade. A andlise desta relagao| entre bens pitblicos e privados e as formas de passagem de um a outro adquire especial relevancia para as necessidades atuais de| reforma agréria, como veremos. ! As descrigdes do que sio bens piiblicos se encontravam origi nalmente nos Cédigos Civis®, hoje esto nas Constituigées, mas ainda sao usadas definicdes e categorias das leis civis, embora sob @ ética das normas constitucionais. 0 Cédigo Napoledo dizia que 05 bens que ndo pertencem a particulares sfo administrados pelo Estado e s6 podem ser vendidos segundo as regras estabelecidas, aerescemtando que os abandonados e os bens dos que morrem sem herdeiros, bem assim como os que sio usados por todos, como os 32 - 0 Codigo Civil Brasileizo de 1916 estabelece nos artigos 65 « seguintes no 6 a diferenciagao entre os bens pliblicos ¢ privados, como a sua elassificagao, conceitos e caracteristicas. O novo Cédigo Civil Brasileiro, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, estabelece # mesma diferenciagao nos artigos 98 e seguintes 0 ‘mesmo sistem, 45 caminhos, as ruas, estradas ¢ praias e "todas as porgdes do tert rio francés nao susceptiveis de uma propriedade privada" sio con- siderados piblicos. Estes dispositives do Cédigo revelavam a idéia de que todos os bens devem ser privados, a natureza piblica € transitéria ou excep- cional. Sempre que um bem possa ser privado, o sistema a cle en- caminha. Entretanto. hé © principio da supremacia do. interesse piiblico, de tal sorte que desapropriagao € sempre possivel. Neste caso, desde que indenize o patriménio particular, o Estado podera transferir o bem do cidadao, compulsoriamente, a0 patriménio pa- blico. dando-Ihe a destinago vocacionada, Ames dos Estados adquitirem personalidad juridica, quando foram algados a categoria de pessoa, nao eram proprietirios, mas administradores dos bens titeis ou necessirios a coletividade, como definia 0 Cédigo Civil Francés. Depois. como pessoa juridica, pas- saram a poder ter bens em propriedade. O Cédigo Civil Brasileiro de 1916 criou a categoria de bens dominicais, ow dominiais, para indicar aqueles que 0 Estado teria como se privades fossem. Sem- pre comtinuaria a existir restrigdes para a transferéncia destes bens que, como qualquer transferéncia depende de contrato e, entto, se a. que é a de contratos piblicos. Portanto, as restrigdes esto muito mais no contrato do que no bem propria- mente dito. © contrato depende de vontade livre ¢ a formagao da vontade do Estado & mais complexa, porque depende de autoriza- s ¢ publicidades deseonhecidas na esfera privada Voliemos ao argumento anterior, a partir do momento em que |o Estado passou a ser considerado pessoa, adquiriu a capacidade de ser proprictirio, de comtratar, € os bens assim adquiridos poderiam (ser alicnados de acordo com a legitimidade contratual que tinham. Nao custa repetir que os limites jé nao estavam nestes bens, mas hos contratos que os fundamentam, j& que ¢ diferente a formag: de vontade do ente estatal. Ao lado destes bens, porém, con ram a existit os antigos bens piiblicos, administrados pelo Estado, 98 de uso, estes sim, indisponiveis, porque deveriam cumprir uma missio, uma vocagao, ou uma afetagtio piblica, ja seja para o uso entra em outra sea 33 - Amtigos 537-43, 46 | de toda populagao, chamados pelo Cédigo Civil Brasileiro desde 1916 de bens de uso comum do pore, como as ruas, estradas © pra- jé seja para cumprir fungOes estatais, como as repartigaes pi- que o Cédigo chama de hens de blicas, escolas, hospitais e quart uso especial. Esta divisto dos bens piiblicos em contratuais ou de uso vale também para os imateriais ow intangivels. Por isso, o que se disse dos bens intangiveis privados, pode se dizer dos piblicos. Ha bens imateriais que sao_proprios do Estado, como nomes, simbolos ¢ © 05 ha de “uso comum do povo", como 0 meio ambiente icamente equilibrado, bens sobre o patriménio cultural, ete eS, chirelanto, devem ser estudados com mais atengao. porque enquanto os materiais excluem qualquer propriedade privada, figis & dicotomia publico/privado, os imateriais suportam-se em bens materiais que podem ser piiblicos ou privados. Quando um trecho de terra passa a ser estrada, 6 necessirio ao Estado promover a de- sapropriagdio, porque aquele trecho deixou de ser privado para se tornar pablico. Muito diferente disso se di quando um bem imate~ rial, como a referéncia histérica de uma construgao ou a qualidade de um ambiente. ou ainda a beleza que encerra uma paisagem. & considerado piiblico, de uso comum, interesse coletivo ou difuso. Este beim imaterial piblico necesita de um suporte material que seja privado ou piblico, © suporte material pode continuar privado independentemente do inieresse ou direito piblico nele constituido, gerando obrigagdes ao proprietirio c direitos 4 coletividade."* Os bens imateriais de uso comum adquirem, assim, uma nova forma no ordenamento ¢ alteram a esséncia da propriedade em que se assentam, porque nao impdem apenas limites ao uso, mas condi- nam 0 priprio exercicio do direito, isto faz com que seja criada uma estreita relagdo entre os bens de uso comum imateriais, como © meio ambiente ecologicamente equilibrado © os seus suportes materiais, sejam privados ou piblicos. Porque estes adquir 34 - Ver a proposito meu livro “Patriménio cultural ¢ protegde juridiea”, Nele desenvolvo © estado dos bens privados que servem dle suporte 20 patriménio ‘cultural, especialmente ao patriminio edifiead, 47 | fungao de proteger aqueles. quer dizer. rompem com a plenitude da propriedade privada, O edificio juridico construido a partir da Constituigso de 1824 que organizava a propriedade material ¢ plena como central no sistema ¢ a desapropriagao como seu corolirio necessitio, ja nao se mantém no Brasil apesar da insisténcia de intérpretes © operado- res que teimam em afirmar que qualquer uso piblico, coletivo ou difuso deve ser prevedido de desapropriaga0, sem aceitar que a propriedade tenha deixado de ser absoluta ¢ ainda quando 0 uso comum € apenas da sua imaterialidade ‘A concepgio construida pelo liberalismo nunca pode ser com- pletamente aplicada porque esteve longe da realidade e distanciada dos interesses do povo, servindo apenas & acumulagao do capital ¢ afastando o ser humano da natureza, isto & de sua fonte primeira de vida. Por isso nunca conseguiu apagar totalmente a fungi ou uso social que a terra sempre teve, tentando deixi-la para o conceito de propriedade publica, Hoje, entretanto, é visivel que a propriedade piblica nao & suficiente coma conceito para abranger este uso ou fungao, evistindo uma utilidade social que é mais que estatal ¢ que se opde, muitas vezes, aos interesses do Estado. que esti, invaria- velmente, subordinado aos interesses econdmicos no Estado capi- talista. Assim, 0 uso ou fungao da terra e de 0 tina sociedade, mas ha pouco tempo Direito passou a reconhe- cé-lo ¢ integré-lo na chamada Ordem Juridica. Isto quer dizer, a transformagao da terra em propriedade privada foi um proceso te6rico, ideoligico comrario a realidade, a sociedade € aos interes ses das pessoas em geral, dos grupos humanos ¢ dos povos. porque todos dependem da terra para viver. Exatamente por isso foram se eriando excegdes, no inicio chamadas pitblicas, hoje eoletivas ow difusas, estreitando, ou aproximando da realidade, a ideia da pro- priedade. No Brasil e em toda a América Latina esta inadequaga0 da transformagao da terra em propriedade fica evidenciada quando se olha para as populagdes indigenas, para quem 0 Direito e o Estado até hoje procuram solugdes impossiveis para a assimilagio priva- tista, {ros bens sempre exis- 48. Os povos indigenas e a propriedade. A populagao do territério hoje conhecido como Brasil em 1500 cra, caleula-se, de mais de cinco milhdes de pessoas distribuidas por centenas de povos, com linguas, religides, organizagdes sociais ¢ juridicas diferentes."* A forma de ocupagio e o exercicio do po- der e soberania sobre o territério eram também diferente, coerentes com a cosmovisio e necessidade de cada povo. Existem poucos estudos sobre estas instituigées juridicas: na sua imensa maioria silo deserigdes etnognificas que ainda que analisem a realidade social vivida, deixam de fora a juridicidade, em grande parte expli- cavel_pela pouca importineia que as normas juridicas tinham, © tém, frente a sociedades tio rigidamente organizada Os estudos mais fidedignos indieam que havia, © ainda ha, grandes varingdes na forma destes povos se organizarem, mas a propriedade privada e © poder politico eram conhecidos no limite do indispensivel, isto & apropriagao individual restrita aos bens de uso pessoal, eventualmente ao produto do trabalho individual, © poder politico pelo tempo e tema necessario, como a guerra, 0 dis- sidio interno, a enfermidade ou a tomade de decisao caletiva’ ‘A terra sempre foi um bem coletivo, generosamente oferecido pelos antepassados que descobriram seus segredos ¢ legado neces- © Brasil ual conta com ums populagso de aproximadamente 350,000 indi- 1, disiribuidas em quase 200 povos diferenciadas pela eultura, lingw, religite ¢ nizagd0 social que vivem em aproximadamente $00 areas reconhecidas. Neste cdmputo nao est2o ineluidas as populagbes urbanizadas ou que vivem na condigo de eamponeses pobres. A estimativa de S milhdes de pessoas em 1500 & uma aproximagio de estudos demogeiticos parciis, em especial os apresentados por Pierre Clastres no seu livta - sactedade contra 0 Estado, 36 A hibliografia ctogrsfica brasileira é muito extensa, mas sto poucos os 105 que tratam de todos os povos ou de uma regido especifica ‘rar muitos bons subsidios em livras como Histinia des fndios do Brasth, de Max rnuela Carneiro da Cunha; Indios do Brasil, é Iolio Cesar Melati, entre outros 37 0 contato com a "civilizagao” alterou ¢ continua alterando a organizagio imema desses povos, introduzindo regras novas em muitos casos, gerando & reestruturagio da sociedade, Algumas Sociedades elinicas perderam 3 importin- cia interna desta divisto e multas vezes a reestruturagao ¢ profunda e problemsiti- 6a, perando divisdes, desarticulagdes e, evidentemente, perdas imenses. Pode-se encon- 49 sirio aos herdeiros que 0 perpetuariam. A reparticao haveria de ser dos frutos da terra, de tal forma que nao faltasse ao necessitado nem sobejasse a0 individuo. As vezes, se haveria de domesticar planta ou um animal, as vezes, bastava cuidar da natureza que cla retribufa numa Iogica inconsciente mas quase perfeita. Nao havia necessidade de Estado nem de teorias sobre a propriedade privada, nem instrumentos que justificassem seu exercicio, nem que os garantisse. Ao ndo haver um era escusada a existéncia do outro, Assim, a terra indigena se traduzia em territ6rio ou controle de um povo sobre um espago determinado. A disputa entre portuge- ses ¢ indios ndo se deu, nem poderia ter se dado, em questdes for- mais de direito de propriedade, mas em jurisdi¢ao sobre um espago territorial. A questo era muito mais de Poder, do que de Direito. 0 Brasil era, portanto, um espago ocupado. Cada povo entendia seu territério segundo sua cosmovisio © cultura embora houvesse enfrentamentos e disputas, as populagdes viviam em. razo monia e paz. Acompanhar a Histéria de cada um destes povos apds 0 con- tato € escrever uma saga épica que nos leva a reflexdes muito pro- fundas sobre a propria humanidade ¢ sua trajetéria na terra, Cada povo neste pedago de mundo que veio a se chamar Brasil tem uma historia peculiar que comega muito antes da chegada dos europeus ¢ ¢ fortemente alterada por ela. F preciso conhecer, entender ¢ res- peitar a histéria, os mitas e a concepgio de mundo de cada povo para coneluir hoje sobre os seus direitos. Assim é, por exemplo, que antes de condenar 0 povo Guarani por viver em Parques © ou tras areas de preservagao ambiental, é necessério estudar sua hists- ria recente ¢ entio se verd que estas so as éreas que restam de seu vasto territério tradicional, aquele criado por seus deuses para que vivessem como povo™. Os Guaranis afirmam que s6 podem viver onde estio as plantas € os animais que sobraram das intervengoes. antrépicas civilizadas, por isso nao estio invadindo os parques © ralmente deserito 38 A concepgao guarani sobre tertério e natureza esté magi no trabalho de Maria Inés Ladeira, Espaco geogrdfico guarani-mbyé: significado, constiuigdo e uso, sua tese de doutoramento em Geografia Humana, na USP. 50 outras unidades de conservacio, mas foram expulsos para dentro deles, confinados e condenados a viver somenie neles, como as plantas ¢ animais autéctones. Este povo foi se tomnando prisioneiro de seu proprio habitat cada ver mais transformado, desfigurado, inservivel. O territério, para o povo guarani, significa nao uma fronteira arbitréria, mas uma composi¢o de biodiversidade, na qual o povo se integra. Assim, na coneepgao deste povo, os euro- peus no invadiram 0 seu territério, no € uma questao de respeito de fronteiras, todos podem usar a terra, homens animais e plantas, os europeus no foram invasores, mas destruidores, o seu pecado niio foi de invasor de dominios alheios, mas de destruidor, os gua- rani nao entendem que a vitima tenha sido eles, masa terra, Cada povo, entretanto, tinha ¢ tem sua histéria e sua visto de mundo ¢ de territério, Isto fiea demonstrado com uma singela mi- rada saga de outro povo, o Xavante. Embora conhecendo os "braneos" hh mais de dois séculos, este povo somente aceitow um contato regular com a “civilizacio” hi menos de quarenta anos Origindrios da Bahia ¢ grandes guerreiros, ficaram encurralados as do interior. Tiveram centre 0s portugueses e ouiros povos indie que escolher o inimigo a enfrentar, se guardassem posigao territori- al, teriam que lutar contra os portugueses, se recuassem ao interior teriam que disputar territéria com outros povos. Nao havia espagos, territoriais desocupados. Preferiram recuar, tomando terras alheias, empurrados pelos negreiros, predadores de indios, assassinos, fu- vos e aquilo que nés mesmos chamamos de eivilizagao. j Nessa vida fu levaram duzentos anos, sempre [em diregao ao interior, sempre disputando espagos como outros povos também pressionados. A luta jé ndo era mais com portugue- | ses, mas com o Estado Nacional brasileiro, 0 que era apenas uma diferenga para a civilizagao, mas nao para eles, a guerra era a mes jma, Nos anos sessenta, do século XX, ja sem nenhuma outra saida, 0s bravos Xavantes resolveram “amansar” os brancos, e o fizeram, pagando um elevado prego que inclufa permitir a entrada de novos elementos culturais, inclusive a construgao de Igrejas ao lado da 31 aldeia tradicional.”” Nesse longo processo foram deixando para tris seu territério proprio, aprendendo a viver com outras plantas © animais, foram perdendo parte do povo que ia ficando, eansado da lta, em acordos sempre destrutivos com 0s novos senhores da ter- ra, Um grupo se tomiou Xaeriabé, perderam a lingua e continuaram Jutando por um pedago de terra a que pudessem chamar territério, conseguindo-o apenas ha duas décadas.” Mais tarde outro grupo desistiu, as margens do Araguaia e passou a ser chamado de Xe- rente, Sofrendo todas as conseqiiéncias da politica inte; do Estado Nacional, esta parcela desenvolveu uma nova habitos diferentes a ponto de reconhecer nos Xavantes apenas um arentesco distante" Estas duas breves mas elucidativas histérias nos mostram em primeiro lugar que o Brasil, e, pode-se dizer a América, era um territério ocupado, onde povos muitos diferentes viviam, tirando da terra ¢ da natureza seu sustento. Era uma terra adaptada ao ser ht mano. Em segundo lugar, que 0 proceso de ocupagio europen, como a imposi¢ao de novas gentes, novas plantas € novos animais 10 foi absoluto, nem aceito por todos. Até hoje ha seqiielas que no esto limitadas aos povos origindrios, mas atinge também os povos trazidos, sejam da Africa, acorrentados ¢ presos, seja da Eu- ropa e Asia, enganados ¢ traidos. Mas hé ainda uma ligdo que estas duas histérias nos dao: a propriedade privada da terra no traz a felicidade dos povos, 20 jualismo excludente, gera contrario, por se assentar num indivi conflitos que se estendem desde o vizinho até um pacifico povo distante Talvez por isto, Bartolomé de Las Casas, 0 pensador das rela ges Europa/América do século XVI, nio aprofundou © conceito de propriedade. O direito que ele reclamava para os povos da América 39 = A maior parte das novas aldeias Xavantes t&m nomes eristdos, como Sd0 Marcos, Nossa Senhora Aparecida, ete. Os Xavantes sto hoje aproximadamente 8.000 pessoas. 40 - Os Xacriabiis hoje s¥o cerca de 6.000 indios © enfremtam difieuldade de sobrevivéneia, embora tenliam recuperago sta dignidade como povo. 41 - Os Xerentes tm hoje uma populagto de cerca de 2.000 pessoas, 52 era o de exercer sua propria jurisdigao, Isto nao significava para ele que 08 povos indigenas devessem ser para todo 0 sempre "infiéis", mas que a missdo dos reis catolicos era anunciar e convencé-los da boa nova do nascimento do redentor. O convencimento, por certo haveria de ser por meios stasdrios ou, quem sabe, por declaragio de guerra justa, O raciocinio de Las Casas era adequado ao pensamento cristao do seu tempo e tem a mesma légica de Hobbes e Locke. Fundado sempre no contrato social, dizia ele que Deus criara o mundo com tudo 0 que nele existia, plantas, pedras e animais, para 0 servigo do homem e, dentro das sociedades humanas, alguns escolhidos para igir oS outros, portanto nao importava que fosset organizar ¢ dil europeus, asidticos, afticanos ou americanos, fiéis ou infigis & pa- lavra crista, cada grupo humano tinha a livre determinagao de sua organizagao social, jusia e com aprovagao divina’”. Todos os po- vos, assim livres, haveriam de se tornar cristios t80 logo soubes- sem de sua verdade. Bartolomé de Las Casas ¢ seus opositores, como Gings de Sepilveda, divergiam apenas nos métodos, tendo claro que a cristandade iria prevalecer pela razdo, pela fé, ou pela forga Este pensamento, reconhecido pela Igreja, mas nao praticado pelo poder temporal, nem espanhol nem portugues, que esiavam nis interessados na mao de obra € mas terras indigenas, teve seu desenvolvimento teérico em Francisco de Vitéria que & considera- do, por isso mesmo, 0 eriador do direito internacional Na realidade, a contradigio que se estabeleceu em 1500 na América foi entre os interesses mereantilistas de apropriagao e acumulagao de bens que existiam nas novas terras: ouro, prata, pau brasil €, pouco mais tarde, a possibilidade de produgao em grande escala de cana de agiicar € outros bens agricolas, de um lado e, de 42 - Vera propesito as obras de Bartolomé de Las Casas, Brove relagdo da des- truigdo de Indias, que tem uma parce publicada em portugués pela LPM, Obra indigenista. ¢ Principios para defender a justiga dos indios In: SOUZA FILNO, C.F. Mards de (org.). Textos Cléssicas sobre 0 Direitoe os Povos Indigenas. 43 - Ver especialmente de Vitéria, sua obra Relecciones: del estado, de los indios 2 del derecho a la guerra 33 outro, os interesses indigenas que estavam voltados a manter seu modo de produgao, cultura ¢ vida, Com o avango do mercantilismo © a construgio dos Estado contemporineos, a propriedade da terra tormou-se absoluta, e 2 contradigio se aprofundou de tal modo que 0s indios e suas sociedades foram esquecidos da Lei © suas terras deixaram de ser seus dominios para transformar-se em propriedade privada. Cada indio passou a ter o duvidoso direito de se tornar cidadao da nova sociedade. O cariter duvidoso desse direito se manifesta em dois aspectos, primeiro, porque teria que deixar de ser indio, no sentido de ser membro de uma sociedade diferenciada ¢ segundo, porque para se tomar cidadao deveria ter alguns atribu- tos, quando menos conhecer a lingua oficial, necessariamente dife- rente da sua. Estes dois atributos tornavam cada indigena apto a ser trabalhador livre, capaz de disputar assalariado, sem a protesao de sua comunidade. Se trabalhassem muito e ainda pudes- sem poupar, poderiam até adquirir propriedade da terra e com ela, talvez, amarga ironia, fazer o que antes faziam como indios, No final do século XX, quando a propriedade privada comegou a ser restringida ou limitada por direitos coletivos, como a protegio nte ecologicamente equilibrado eo patrimdnio cultu- ral, como veremos, os povos indigenas tiveram um alento juridico, ainda que débil © imprecise, como um renascimento de direitos coletives para o direito."* Isto significa que @ construgio da propriedade privada no Bra- sil, ou a modemidade, desprezou 2 0 indigena, nao respei- tando sequer seus mais elementares direitos, como os de sobrev véncia, Se reléssemos Locke poderiamos dizer que teoricamente Portugal deveria garantir os direitos dos povos indigenas sobre suas terras, se reléssemos Las Casas, também. Mas a pritica de Portugal andou muito longe das teorias européias daqueles séculos, a distén- cia entre teoria ¢ pritica significou a morte de povos inteiros. Na se pode esquecer, por outro lado, que na époea era difundida a idei do direito de conquista como direito auténomo de povos em guerra. Fundado, muitas vezes, neste direito, Portugal e Espanha usaram ¢ im emp: 44 - Vera propdsito © meu liveo O renasevr dos povos indigenas para o diveit 54 distribuiram terras indigenas, até transformd-las em propriedade privadas individuais, de ndo-indigenas, por certo. Portugal nao construiu grandes teorias juridicas, como Locke ¢ Hobbes, nem deixou para a Histéria tratados de relagdes entre po- | vos, como Las Casas e Vitéria, mas construiu a mentalidade mo- derna na pritien, com o sistema das concessées de sesmarias © uma politica uniforme e rigida, 0 que permitiu a integridade territorial do Brasil apesar das profundas diferencas regionais ¢ da pluralida- de social que existia, ‘A aplicagio da idéia de que toda a terra haveria de ser privada, excepcionada as de uso piblico, na pratica, foi fatal para os indios que nao a ocupavam de forma privada, nem foi admitido que seu uso era piiblico. No desvio da teoria, os indios ficaram sem terra ¢ sem modernidade. ade ¢ liberdade no Brasil. Proprie Nas novas regras, clegante ¢ falsamente chamadas de civiliza- torias, os indios nao tinham direito 4 propriedade da terra, portanto 4 Coroa portuguesa tratou de criar ou aplicar instrumentos capazes de legitimar 0 dominio privado original. Para nao perder 0 controle da ocupagao © favorecer o mercantilismo curopeu, reconheceu como direitos individuais de propriedade da terra somente os que atos de concessio da prépria apresentassem como titulo de origem Coroa Com esta atitude afastava os indios, 0s chamados aventureiros € qualquer indesejado, a se tomar proprietério por aquisi¢ao ot naria, mesmo quando tivessem desbravado, conquistado, usado nela morassem em defin nada figura do concessioné- rio se aproximava mais de um empreendedor capitalista, aventur ro também, mas sem romantismo. Isto no significou que o Rei de Portugal nio tivesse reservado terras a grupos indigenas, enquanto no se integrassem, individualmente como trabalhadores, 4 chama- da comunhio nacional. Tampouco significou que nao tivessem sido concedidas terras a aventureiros, Iadrdes € assassinos. Significou, na realidade, que os povos indigenas, embora ocupassem terras, 58 nao tinham direito a ela, salvo expresso reconhecimento de um Reino distante e desconhecido. Igualmente significou que qualquer aventureiro, ou trabalhador, que tomasse para si um trecho de terra para livremente © em paz viver com sua familia, estava fora do Direito ¢ deveria pagar tributo, ou meagao, ou vassalagem, a quem o tal Reino distante concedesse aquela terra. Nao fosse © povo con fundir trabathador com proprietério: sistema queria que a terri] fosse propriedade e © proprietério precisava de trabalhadores, que poderiam ser livres, poderiam ser até proprietirios de alguns bens,mas que ndo fossem proprietarios de terra. A divisio estava claramente estabelecida. A forma juridica de que dispunha Portugal para conferir terras a particulares era ainda a vell gente, lei de sesmarias que D. Fernando promulgara em 1375 e que havia sido reproduzida em eada nova “Ordenagoes do Reino” ¢ servia para transferir terras que ja haviam sido lavradas, mas que estavam abandonadas, para quem as quisesse lavrar, A Lei havia impulsionado a reforma agra- ria do mereantilismo portugués a partir do sée. XIV, mas jéi entrara em desuso como reordenamento social ¢ somente se mantinha em vigor para resolver um ow outro problema de senhores aliados 20 Rei**, porque sett antigo ¢ original uso confrontava-se com as novas necessidades econdmicas da propriedade moderna, de carter ab- solute. Apesar do dectinio do instituto em Portugal ¢ da realidade to- talmente diferente, foi aplicado no Brasil durante trés séculos, em- bora nao houvesse terras de lavradio abandonadas. As terras aqui eram ocupadas por povos indigenas que tinham outras formas de aproveitamento © uso. Na sta maioria, mantinham plantagdes © rogas em sistema rotativo, permitindo a regeneraeao permanente da floresta. A ocupagao indigena nio sé era evidente, visivel, como reconhecida entre eles, com fronteiras de respeito que, violadas, poderiam acasionar guerras. Para poder utilizar o instituto das ses- marias, Portugal teve que, implicitamente, desconsiderar qualquer ocupagao indigena, e entender as terras brasileiras como desocupa- das. _, As sesmarias em Portugal eram usadas para terras que j@ havi- ‘am sido lavradas © estavam abandonadas, quer dizer, eram terras gue ji tinham produzido © deveriam voltar a produzir alimentos locais. No Brasil nao, 0 sentido da coneessto das sesmarias era 0 de ocupagio, desbravamento, conquista, desrespeitando qualquer tipo de uso indigena, ou ocupago pré-existente. Na verdade a con- cessfo tinha o sentido de reafirmar a posse das terras em nome do rei e de coro portuguesa, em disputa com a espanhola e outras nagdes curopéias, ¢ produzir bens de exportagio, Quer dizer que, enguanto em Portugal as sesmarias tiveram o sentido de proporcio- nar a produgao de alimentos € desenvolvimento para a populagao, no Brasil foi instrumento de conquista, mas também de garantia aos capitais mercantilistas de que sua mo de obra, escrava ou livre, a ser proprietiria de terras vagas. Se as terras estivessem 4 disposiedo de quem as ocupasse e tornasse produtivas, os capitais, mercamtilistas ficariam sem trabalhadores livres, porque todos iri- am buscar um pedago de chao para viver."* Isto eriava duas situa- ges diferentes: por um lado havia uma total desconsideragio pelas populagdes indigenas, fazendo-as invisiveis: por outro lado havia uma proibi¢go aos trabalhadores de adquirir propriedade da terra pelo seu trabalho, j4 que nao bastava trabalhar a terra vazia, era necessiirio compric-la do patrio ou ganhiela par favores prestedos a Coroa. Antes de eriar o instituto das sesmarias, que era uma coneessio de terras pelo poder piblico, Portugal reconheceu as prestirias, que ram ocupagdes de terras de infigis (mouros) expulsos. Era um direito de conquista. Nao havia neste sistema nenhum titulo prévio, 46 - Na Africa, especialmente em ‘suess, ent praticamente impossivel cons "Rogas" praddutoras de ea mare de um pequeno pedago de terra (hi abundineia de peines, bananas, fruta Bo, card ¢ outros alimentas) 95 inibia de trabalhar como assalariado, ganhando muito menos do que possa adquitir com a pesca ou coleta. Toda a produgso da colbnia estava assentada na mio de obra estrangeira, contratada meio a fossa € rmantida em semi cativeite ainda no ano de 1970. A independéneia, em 1975, tenconirau exatamente essa situagio, quando foram estatizadas as "Ragas", sem solucionar em todo 0 problema laboral 10 Tomé e Principe, enguanto colinia ports wait que os natives trabelhassem nas uc eafé, A possibilidade de tirar 0 sustento, fara, da 37 mas a mera expulsio pela invasdo, que se transformaya em dom nip. Mouros e indios sto infigis, sAo parecidos entre si para a cris- tandade, ambos foram afistados de suas terras, na peninsula e na América, respectivamente. Sem entrar no mérito do direito dos indios e dos mouros as terras que habitavam, ¢ visivel a semelhan- ga entre as duas sittiagdes © deve se buscar a razao pela qual Port optou pelo uso das sesmarias no Brasil. Nao se pode dizer que no século XV ou XVI estivesse em desuso direto de conquist porque vamos encontrar em Voltaire, no sculo XVII, a afirmacio de que a tinica forma de desconstituir a propriedade de alguém era, justamente, 0 direito de conquista. Significa que a Europa reconhe- ia esta forma de desconstituigao e é até provaivel que Voltaire es- tivesse pensando na América ao fazer tal afirmagao. Além disso, foi exatamente o direito de conquista que transferiu a terra ameri cana para as Coroas portuguesa e espanhola. As prestirias utilizadas na peninsula portuguesa geravam direitos individuais aos conquis- tadores que se subordinavam ao Reino, trés ou quatro séculos antes, de Portugal chegar a0 Brasil. Aqui, o Estado estava muito mais organizado € os interesses mais afinados. Os conquistadores repre- sentavam a Coroa e em nome dela tomavam posse, sem haver qual- quer confusio entre esta posse piiblica € 0 direito de propriedade garantido ¢ concedido pela Coroa. Isto &, a conseqiiéneia da con- quista ¢ diferente na formagao de Portugal (prestiria) € do Brasil (sesmarias). A explicagio econdmica da diferenga ja foi exposta acima, 0 mercantilismo nao queria abrir a possibilidade de que seus irabalhadares livres se tornassem_proprietirios, porque produziriam para subsisténcia ¢ nao para o mereado. Além disso ficaria dificil manter trabalhadores livres a baixos salatios. O temor de Portugal era, entao, que ficasse liberada a ocupagao de terras, Os desterrados, estrangeiros e aventureiros ocupariam 0 espago e dariam outro destino a elas, competindo com o capital mercamtilista europeu, produzindo alimentos, barateando a vida & encarecendo a mao de obra que haveria de preferir lavrar a propria terra do que receber salirios de miséria. Na realidade a utilizagao das sesmarias foi a protegaio do capital mercantil europeu contra 0 trabalhador livre. Curiosa contradigao, na Europa, o instituto estava aliado ao trabalhador livre, no Brasil era seu algoz. Nao € por aca- 58 so, assim, que o sistema somente pode prosperar economicamente com a forga de trabalho eseravo. Num primeiro momento o intento de escravizar os indigenas ¢ imediatamente depois com a desumana historia da rapina de bragos escravos da Africa.” O sistema sesmarial que nasce no mesmo bergo do trabalho li- yre em Portugal, vem a ser o irmao mais préximo do escravismo brasileiro. Enguanto na Europa as concessoes de sesmarias foram para aplacar a fome e dar terra aos lavradores, no Brasil nao havia fome a ser aplacada porque a populagao local, indigena, apesar das dificuldades que pudessem ter, fome nao tinham ¢ qualquer estran- geiro livre que chegasse podria encontrar um pedago de terra para prover seu sustento, se a Coroa deinasse e o mercantilismo aceitas- se, dai que era necessério ao sistema desconsiderar os indios e es- ceravizar a mao de obra chegante 0 uso das sesmarias foi, portanto, a forma que Portugal en- controu para promover a conquista do territério brasileiro, Seria insustentvel manter indefinidamente exércitos armados, como nas regides auriferas da América espanhola. Na falta de ouro ou prata utilizou a terra para remunerar os eapitais mereantilistas, produzin: do para a expor ios aqui, como 0 a: terras eram concedidas para que o beneficidirio viesse a0 Brasil ocupielas, em nome da Coroa, produzindo em larga escala bens de exportagao, ainda que fosse preciso perseguit, escravizar ow matar populagdes indigenas™, ¢ gerar escravidao africana e fome. bens desneces 47 + Ao analisar a rardo da dificuldade de eseravizar os indigenss, afirmei em meu livto O renascer dos poves indigenas para o direito: "Os indios com seus costumes, organizagio social e integragio com a natuceza local tinham duas ex 1 nfo trabalhar para os portugueses. A primeira era 0 despro- ou servigas toral= ‘colonies razdes po pisito do trabalho. porque razao iriam trabathar er plat monte desconhecidos, para receber uma minguada ragio de comida, se em liber lade, cagando, pescando, coletando frutos ou mantende pequenas rogas tintiam ‘muito mais e melhor alimento, além de prazer, alegria e liberdade? A segun razlo era decorrente da primeira: 0s indios tinkam para onde fugir, conhociam a mata e tinham parentes ¢, sobretudo, sabiam sobreviver na natureza t20 hostl a0s portugueses" 48 - A respeito, dois excclentes livros contam mais de perto esta historia. Quatro séenlos de lauifindio, de Alverto Passos Guimartes, ¢ Terras devolutas ¢ lain dio, de Ligia Oséio Silva, 59 ar. As) As Ordenagaes do Reino estabeleciam a pena de degredo para © Brasil dos autores de crimes ao miximo agravados, que poderiam ser por tm periodo ou por toda a vida; estes condenados ao chega- rem ao Brasil poderiam se tornar proprietirios caso nao necessitas- sem de uma outorga estatal, por isso, a insisténeia da Corte em nao reconhecer outra propriedade que a outorgasda, Talvez. isso fosse verdade, mas € razi0 muito pouea para definir uma politica de ocu- pagio territorial, a verdade se a nos interesses do capital, antes do que na preocupagao penal. Os ideais de liberdade do mer cantilismo perdiam forga ao atravessar © oceano, chegando a0 equador tornayam-se ralas lembrangas de amarelados pergaminhos. Aqui a propriedade © a liberdade nao formaram um casal, ao con- twirio se excluiam, como a sigua ao dleo. Toda a teoria justificadora da propriedade privada, de Locke a Rousseau, passando pela esperanga de Voltaire (“propriedade & liberdade”), tem como fundamento a liberdade, porque o mesmo homem que ¢ livre para escolher seu trabalho o haverd de ser para dispor dos frutos do trabalho, dos bens amealhados. Esta legitima- gio da propriedade pelo trabalho, e pelo contrato, adquire contor- nos dramiiticos nas Américas e no Brasil. Aqui a propriedade nao fruto do trabatho livre, € fruto do saque dos bens indigenas, ouro, prata, milho, batata, eacau ou terra e do trabalho eserave. A liber dade formal da propriedade individual perde o véu de pureza humanidade nas Américas ¢ mostra a cara desnuda e rude da usur- aco. Proudhon, por muito menos, afirmou eategérico: a proprie- dade ¢ um roubo!"” As sesmarias na priitiea do Brasil colonial Tal era a importdncia da sesmaria para a-conquista das novas terras que ao vir para o Brasil, em 1530, Martim Afonso de Souza recebeu trés cartas régias: a primeira para tomar posse das terras 49 - Proudhon compara a propriedade & escravid30 © afirma que se todos concor- ddam que a eseravidio € um assassinate, porque & tio difleil concordarem que @ propriedade & um roubo? Que és la propiedad, obra eitada 60 m nome D'E] Rei; a segunda que Ihe dava direito a exercer a g0es de capitio-mor e governador das terras descobertas; e a tercei- Fa 0 nomeava Sesmeiro do Rei, que o autorizava entregar terras legitimamente em sesmaria a quem desejasse / Os donatarios das capitanias hereditarias também receberam, |cada um, 0 poder de ser senhor em suas terras, com jurisdigao civil |e criminal ¢ podiam conceder terras em sesmaria; foram nomeados | sesmeiros do Rei. Com o advento do Governo Geral, de Tomé de Souza, passou a Governador este importante ato de poder. As sesmarias seriam concedidas pelo Governador Geral para quem residisse nas povoa- gGes € em tamanho nao tio grande que nao pudesse o beneficidrio mesmo aproveitar, dizia a velha lei de D. Fernando. Nao foi obser- vada esta condigao ¢ as sesmarias foram concedidas em grandes extensdes, Nao foram tampouco respeitadas as terras indigenas nem a capacidade imediata do concessionario, Os Sesmeiros entre- gavam terras para si mesmo e seus préximos, familiares ou amigos, até 0 ponto em que a palavra sesmeiro passou a designar também o titular de uma sesmaria ¢ nao mais a autoridade piblica responsi- vel por sua concessio.”” Esta escolha de fechar as portas para ocupacao territorial livre, exigindo a aplicagio de um instituto de forma inadequada, prende- se aos objetivos de Portugal. Na realidade no era sua pretensio colonizar o pais com um eventual exeedente da populagdo, mas de expandir o capital comercial europeu. Por isso, os primeiros cin- giienta anos de conquista muito pouco significaram para Portugal, J que as terras descobertas no tinham ouro como os planaltos ‘mexicanos ¢ andinos e que serviram a imediata exploragao espa- nhola. Portugal somente veio a utilizar sua colénia para produzir agitear, j4 que a extracio do pau brasil era suficiente para manter a economia ¢ os investimentos necessarios. 50 - Alguns dicionrios brasileiros, como o de Ruth Roche, por exemplo,j@ atri= ‘buem para e palavra sesmeiro 0 Unico signifieado de donatirio de sesmaria, ¢ nto © de funcionrio com poder de distribuir sesmaria, Tanto © Diciondrio Aurélio como o Hovaiss, registram as duas acepgdes, © que evidentemente é mais correto, Dicionarios portugueses, como o Universal, também registram 0 duplo sentido, 61 E para isso era necessirio terra, Ao contririo do século XIV portugués, o Brasil tinha excesso de terra e falta de mao de obra, a concessiio de sesmaria teria o sentido de limitar a ocupagao das terras concentrando a produgao, segundo o interesse e a possibili il mercantil, ¢ obrigar os trabalhadores a manter-se dade do capi tem seus postos de trabalho, como es Portanto, no século XVI jé se apresentam indicios de que a wo de sesmarias poderia eriar problemas na organizagao fundidria do pais, mas de nada serviu a limitagao imposta as eon- eee que deveriam ser do tamanho da eapacidade do benefici rio em aproveitar a terra. Este limite acabou sendo muitas vezes \|desrespeitado, mesmo porque a produgfo que deveria se dar na coldnia nao era do tipo de subsisténcia, mas, ao contraria, do tipo mercantilista, de produtos para o mercado. As concesstes continuaram desobedecendo ao eritério e nos séculos XVII ¢ XVIII acabaram por constituir-se em fonte de eri Liflindios. Se no inicio serviram como instrumento de con- gio de quista externa, sendo usada para Portugal se assenhorar do territé- rio, uma vez estabelecido 0 poder portugués transformou-se em instrumento de conquista interna, servindo de consolidagao do po- der do latifindio, porque as concessdes passaram a ser uma distri- buigio da elite para si mesma, como exercicio do poder e sua ma- nutengdo. Curiosa contradigao: as sesmarias nasceram em Portugal para gue 0 Poder Piblico dispusesse das terras nao trabalhadas, mesmo que de propriedade alheia, para oferecer a quem realmente @ qui- sesse trabalhar, na medida de seu trabalho; enquanto no Brasil a mesma concessio & negada a quem quisesse trabalhar produzir por sua conta e entregue a quem tivesse o poder de explorar o tra- balho alheio adquirido & forga, compulsoriamente, seja como es- cravo ou trabalhador livre, que tinham que aceitar as condigées independente de sua vontade: a liberdade € a opgao entre varias SI - Aldm dos livros de Alberto Passos Guimartes ¢ Ligia Osério Silva, vale a pena ler também os de Celso Furtado, Farmagao econdniea do Brasil. de Ceo Prado Kinior, Histérta econdmica do Brasil e de Nelson Wemneck Sodre. Forma: ‘0 histérica do Brasil 2 alternativas. Liberdade de escolher uma Gniea alternativa ou morrer ou ser preso como vagabundo, € opressao, © belo ideal de 1375 de fazer da terra fonte de produgio foi implantado no Brasil, as sesmarias geraram terras de especula gio do poder local, ¢ originaram uma estrutura fundiaria assentada no latifiindio, injusta e opressiva. Em Portugal, nos séculos XVII € XVIII as sesmarias jé esta- [yam em desuso porque a propriedade privada ja comegava a ser respeitada como direito absoluto. No Brasil continuava a ter plena vigéncia porque se tratava de conceder terras consideradas vagas, * isto €, nao era uma ameaga ao cardter absoluto da propriedade. Um pouco antes de independéncia, porém, em 17 de julho de 1822, Resolugao do Principe Regente pos fim ao regime de sesma- ria, ficando, a partir daguela data, proibida a sua concessio no Bra~ sil, mas reconhecidas como legitimas as que tivessem sido dadas de acordo com as leis e que tivessem sido medidas, lavradas, demar- las e confirmadas, a O reconhecimento de le; nificava dar As sesmarias confirmadas a qualidade de propriedade privada, com todas as im- plicagoes juridicas do sistema nascente. Portanto o primeiro docu mento comprobatério de propriedade privada da terra no Brasil ¢ 0 titulo de concessao de sesmaria. Alias, por muito tempo, como se vera, a tinica fonte considerada legitima de aquisigao de proprieda- de cra um titulo sesmarial. Isto é& sé poderiam ser considerados legitimos os contratos de transmissio de propriedade que tivessem como origem aquele titulo. Com a independéncia ¢ com a Constituigo Imperial de 1824, } ficou definitivamente sepultado o uso do instituto, mas suas conse- qlléncias na ideologia da terra como concessio do poder politico, AXE} da supremacia do titulo de propriedade sobre o trabalho, se manti- \d)_ veram até nossos dias, fazendo com que a lei insista, até hoje em considerar o documento da terra mais importante que seu produto \ ou sua fungao. \ 0 instituto juridico de sesmarias encontrou o seu fim, nao por uma deliberagao isolada do governante da época, mas por sua ab- \soluta incompatibilidade com © novo sistema juridico estruturado /no final do: ulo XVIIL e comego do XIX, 63 © novo sistema nascia sob a égide das garantias dos direitos individuais e a nao intervengao do Estado na economia e na propri- edade, A fungio do Estado era apenas garantir 0s direitos individu- ais, entre cles o de propriedade, alias, 0 mais elaborado juridica- mente. Portanto, a propriedade, plena, absoluta, foi garantida como 0 principal dos direitos, em cujo conteiido estava o direito de usar ou no usar a coisa e dela dispor, destruindo-a ou vendendo-a, Para a nova concepgiio individualista € voluntarista do Direito, estava entre os poderes do proprietério 0 de nfo usar a terra, deixd-la im. produtiva ou usa-la até o ponto de destruir tudo 0 que nela pudesse istir. Usar ou nao usar a terra, fazé-la produzir ou deixd-la me- drar para um futuro, dependia exclusivamente da vontade do pro- prietario, cuja tnica excegao era a possibilidade de desapropriagaio pelo Estado, para que viesse a ter um so piiblico, Como estava vedado ao Estado intervir na propriedade impro- dutiva, porque era direito do proprietirio deixa-la sem uso, 0 con- ceito de sesmaria, transferéncia compulséria e gratuita a terceito que a quisesse fazer produzir, nao cabia mais no Direito. O con- ceito era demasiado generoso para a limitada idéia capitalista. A norma constitucional, de |824)ao garantir 0 direito de pro- | priedade privada. deixava claro que a sesmaria cra instituto derro- | gado: Art. 179: A inviolabilidade dos direitos civis © politicos dos cidadaos brasileiros, que tem por base a liberdade, a seguranga individual ¢ a propriedade, & garantida pela Constituigio do Império, pela maneira seguinte: XXII - € garantido o direito de propricdade em toda sua pleni- tude. Se 0 bem juridico legalmente verificado exigir 0 uso emprego da Propriedade do Cidadao, seri ele previamente in- denizado do valor dela. A lei marearé os casos em que terd I~ gar esta tinica excegdo, e se dard as regras para se determinar a indenizacao. maneira 0 poder piblico necessitasse da proprie- Se de algu \dio, deveria indeniza-lo por dade, ainda que abandonada, do ci 64 isso. E note-se, a necessidade haveria de ser para uso ou emprego da propriedade para um fim pablico, no que, evidentemente nao estava incluida a produgdo. Este dispositivo deixa claro, como se viu, que a propriedade piiblica tem finalidade, uso, emprego, desti- nage, enquanto a privada era direito independente, patriménio disponivel, intocavel, ao arbitrio do cidadao em sua plenitude. Da- qui para frente o titulo de sesmaria seria apenas prova de legitimi- dade da origem da propriedade. ‘AS sesimarias eram uma intervengao do Estado no direito de propriedade, intervengdo gratuita, sem indenizagao ¢ com a moti- vagdo de tornar produtiva a terra que o fora. Esta idéia eneontrava uma oposigao radical do pensamento liberal capitalista que inspirou as constituigdes ¢ Estados nascentes nia entrada do século XIX. O instituto das sesmarias tinha chegado ao fim. A partir da Constituigao dos Estados ¢ ainda persistente na mentalidade de muitos juristas do século XXI, nem o Estado nem a sociedade podem desconstituir a propriedade de alguém sem the dar outra propriedade, em substituigao, recompondo integralmente © set patriménio individual. Essa nova propriedade dada em troca, em geral & dinheiro © o instituto de transferéneia se chama desa- propriacao. Esti tao interiorizada esta idéia entre os juristas, q muitos defendem que nao se pode proteger uma floresta ou um bem cultural imével sem pagar ao proprietario a valorizagio da floresta | que nao plantou ou a possibilidade da explosio imobiliaria futura de uma cidade ow bairro que nao criou. Este radicalismo protecio- | nista da propriedade privada imobilidria tem causado danos n&o apenas na possibilidade de proteeao ambiental ¢ cultural, mas tam- bém na solugio de problemas sociais graves, como o acesso de trabalhadores sem terras ao trabalho ¢ a garantia de vida a grupos € coletividades no integradas & sociedade de consumo, como indios, seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, pescadores, quilombolas, ete, / 65 \ As terras devolutas Com o fim das sesmarias, em 1822, deixou de haver lei que re- gulamentasse a (Gisigaorigindriagtc terres, de tal forma que 0 [sistema juridico tntte-vigente ndo previa'@ transferéncia de terras | pibblica desocupadas para particulares. Esta situagao perdurou até |1850, com a Lei Imperial de Terras, Lei 601, de 1850. Este periodo os agraristas chamam "regime de posse", porque somente havia posse nas terras ainda nao apropriadas individual- mente pela confirmagao das sesmarias. Mas o nome ¢ impréprio. Nao havia sequer posse, mas ocupagao, considerada clandestina € ilegitima. As pessoas simplesmente ocupavam terras vazias eas transformavam em produtivas. A partir deste fato iam tentar um titulo junto ao Governo, que niio 0 concedia, alegando no haver lei que regulamemtasse a concessdo. Ao contririo, havia agbes do E tado coibindo a ocupagao, especialmente de pequenos posseiros. Apesar disto, algumas autoridades chegaram a conceder titulos, ais vezes com 0 nome de sesmaria, mas todos considerados nulos. Aliis essa era a intengao do Governo, porque coibia a ocupagao que chamava de desordenada, Coibia nao pelas conseqiéncias de / uma eventual desordenacao territorial, mas para que os novos tra- | balhadores livres que chegavam e que viriam a ocupar o lugar dos eseravos, e 0s libertos nao se vissem tentados a procurar essas ter- ras “desocupadas” para trabalhar por conta propria e deixassem de ser empregados das fazendas, obedecendo a mesma légica das con- cessdes de sesmarias. Havia mudado o sistema juridico, mas nto a ica da dominacao. Varios projetos de lei deste periodo proibiam os imigrantes de adquirirem, alugarem ou usarem terras, mesmo de particulares. Nenhum deles foi aprovado porque se contradiziam com o sistema constitucional que se fundava na liberdade de aquisigao da livre disposigao © vontade dos titulares de direitos. Por outro lado havia estrangeiros com capital, investindo em plantagdes ¢ terras. Os projetos nao podiam avangar porque se chocavam com o principal direitocapitalista: 0 de propriedade. Este direito era considerado natural, portanto preexistente ao ordenamento e, como tal, ndo po- deria ser limitado pela Lei. Todas estas disposigdes proibitivas de 16; 66 aquisigio de terras feriam a esséncia do sistema e por isso nunca chegaram a ser aprovados, mas mantiveram uma discussio de , grande envergadura, 0 que determinou a demora na aprovagao da” | Lei de terras, exatamente porque ela teria que contemplar os inte- resses econdmicos do capital sem restringir 0 direito de proprieda- ‘de, que também fazia parte desse interesse.”” Portanto esse periodo que ficou impropriamente conhecido no \pireito Agrivio como "regime de posse” demorou 0 tempo que a \elite precisou para encontrar os caminhos a serem tragados para cupagdo territorial brasileira sob o Estado Nacional. Foram 28 nos de profunda discussao acerca do que fazer para evitar, de um lado a livre ocupagao, ¢ de outro respeitar os direitos A livre aquisi- ao de propriedade. Nao foi esta a tnica dificuldade da elite dominante no pais em aos prineipios do liberalismo, O Estado liberal brasileiro convivia com o escravismo ¢ com um forte descaso as populagies indigenas. Assim, a idéia do trabalhador livre, na construgio do Estado Nacional Brasileiro encontrava duas barreiras sérias: a forca de trabalho escrava ¢ as limitagdes no contrato de aquisi¢ao origi- naria de terras. Se havia terras em fartura porque nao permitir qud cada um buscasse seu sustento e destino em uma terra que tornassg produtiva? Era evidente que, sujeito a um sakirio de fome ou 2d abalho eseravo, o trabalhador preferiria explorar um pedago de) tetra priprio. O Estado teria que agir, porque somente com repres- silo seria possivel impedir a ocupagao territorial chamada de desor: denada e para reprimir necessitava de uma lei que o determinasse e | Iegitimasse, afinal o Estado constitucional é um Estado de Direito. Somente age sob o império da lei, que, para completar a ironia, & feita pela mesma elite que o dirige. A lei somente viria a lume em 1850. | __ A situacdo das terras no Brasil antes do advento da Lei de Ter- | ras de 1850 (Lei 601/1850) era a seguinte: relag: 52 Sobre este particular ver o livro de Ligia Osério Silva, Terras devotutas & latifio efeitos da tei de terras de 1850. 67 1) Sesmarias concedidas antes de 1822 ¢ integralmente confir- madas. Reconhecidas como propriedade privada estavam ga- rantidas pela Constituigao, portanto protegidas contra posse alheia, usurpagiio e qualquer ato do Governo, Este era conside- rado 0 titulo originério mais importante, por isso as transmis ses que o tivessem por fundamento, eram também considera- das legitima propriedade. Isto significa que as terras mais den- samente ocupadas ¢ produtivas ja eram propriedade privada. 2) Sesmarias, embora concedidas antes de 1822, nao confirma- das por falta de ocupagio, demarcagao ou produgiio. A confir- magao era um ato do governo que tinha por finalidade apenas, como © nome mesmo o diz, confirmar a concessao. A Lei 601/1850 possibilitou a confirmagao, pelo Poder Publico des- tas sesinarias desde que estivessem efetivamente ocupadas com cultivo € morada habitual do sesmeiro ou concessionario.™ Depois deste procedimento a terra passava a ser propriedade privada _» 3) Glebas ocupadas por simples posse. Apesar das proibigdes, muitas pessoas ocupavam terras para viver e produzir. Ou eram suficientemente escondidas para que as autoridades nao se des- sem conta, ou tinham a benevoléneia ¢ protegaio de autoridade local. Estas posses nao davam qualquer direito, mesmo que dispusessem de um documento autorizatério. A Lei Imperial | reconheceu estas posses, em pequenas dimensées e que tives- sem sido tornadas produtivas pelo ocupante que nelas manti- |vesse morada habitual. A produgio exigida pela Lei era a vol- tada para o mercado, nao a de simples subsisténcia ou baseada [na coleta ¢ na caga, Dew a este reconhecimento o nome de le- \gitimag&o de posse. Para esta concessio a Lei determinou ao Governo estabelecer um prazo certo para que fosse requerida a medigao, o prazo equivaleria a uma prescrigao, porque, se per- dido, perdido estava o direito. A posse legitimada, desde que registrada (tirado 0 titulo, como dizia a Lei) se tornava propri- edade privada, como todas suas garantias. 53 - Nesta lei jf aparece a palavea sesmeira como o concessionario de teras e nto © funcionaio que as repartia, 68 4) Terras ocupadas para algum uso da Coroa ou governo local, como pragas, estradas, escolas, prédios piblicos, ete. que fo- ram reconhecidas como de dominio piblico. Estas terras teriam que estar sendo usadas, confirmando a idéia de que a "propric- dade" piblica tem sew assento no uso, na destinagao e en- quanto esti sendo usada e destinada. O exemplo mais claro disto 0 alveo do rio que & piiblico enquanto usado pelas Aguas gue correm, que sfo piblicas, mas no momento que secar 0 rio, por deixarem de ter uso piblico, se tomam privadas, incorpo- radas pela propriedade ribeirinha. 5) Terras sem ocupagdo. Todas aquelas que no se enquadras- sem nas categorias anteriores eram consideradas sem ocupa- 0, mesmo que alguém ali estivesse dela tirasse seu sustento € vida. Entre estas terras se encontravam as ocupadas por po- vos indigenas, por escravos fugidos, formando ou nao quilom- bos, por libertos e homens livres que passaram a sobreviver da fatureza, como populagdes ribeirinhas, pescadores, caboclos, cagadores, caigaras, posseiros, bugres ¢ outros ocupantes. Estas terras foram consideradas devolutas pela Lei Imperial e dispo- niveis para serem transferidas a0 patriménio privado. As terras indigenas, j4 anteriormente reconhecidas, tem na Lei 601/1850 sua reconfirmagao com 0 nome de Reservas Indigenas. A Constituigao brasileira de 1824 necessitava de regulamenta- 40 porque muitas leis anteriores nao puderam ser recepcionadas, como 0 proprio instituto das sesmarias, como ja se viu. O Brasil | carecia de uma lei de terras que disciplinasse especialmente a aqui | sigfo originaria, porque a chamada ocupagao desordenada era cada vez maior ¢ a libertagao dos eseravos promoveria uma corrida a \ essa acupagao. ‘54 A idéia da Lei ndo eta de reconhecer direitos indigenas, mas atribuir ao Esta- do a obrigaglo de reservar, no concedendo ou vendendo, terras que estivessem fou pudessem ser ocupadas por povos indigenas, F evidente 0 cariter provisério das reservas, enquanio 0s Indios nao se integrassem como trabalhadores livres na sociedade nacional, para o que bastava que aprendessem um ofici civilizado, 0 A primeira providéneia legal foi conceituar juridicamente ter as devolutas ou devolvidas pela Coroa Portuguesa 4 Brasileira Terras devolutas passaram a ser nio as desocupadas como ensina iguns manuais ¢ dicionarios, mas as legalmente nao adquiridas. E um conceito juridico e nao fisico ou social. Nao quer dizer terra desocupada, mas terra sem direito de propriedade definido, & um onceito, uma abstracao, uma invengo juridica. A mera ocupagao Ge feto ndo gerava dominio juridico, que exigia o titulo do Estado uo reconhecimento, pelo Estado, de um titulo anterior, ou, ainda, 6 uso piiblico, Ainda que a terra estivesse ocupada por trabalhado- res, indios, quilombolas, pescadores, produtores de subsisténcia ow qualquer outro sem o beneplacito do Estado, nao perdia sua quali- dade juridiea de devoluta. Ao contrario do conceito de sesmarias, que cram concessdes gratuitas de terras que ja haviam sido oeupa- das, mas abandonadas, para alguém que desejasse efetivamente ocupi-las, as terras devolutas eam aquelas que jamais tivessem sido propriedade de alguém ou tivessem tido uso piblico reconhe- [ cido, propriedade ¢ uso pelo Estado, Enquanto as sesmarias refor Gam 0 cariter de fato, proximo & posse, as concessdes de terras devolutas tém um eardter de direito abstrato, independentemente da Jexisténcia de ocupagio pré-existente, seja de indios, alro- dlescendentes ou brancos pobres. Exatamente aqui reside a pouco sutil maldade do sistema: 0 que recebe a concessio, nfo necessita- va sequer conhecer a terra, nem mesmo demareé-la; escolhia @ terra correspondente quando quisesse e passava a ter o direito de retirar dela todos os que ali viviam, porque a situagio dos nao- beneficidrios passava a ser ilegal, Para “limpar” poderia usar sua propria forga ou a chamada forga piblica, isto é, a policia do Esta- do, como até hoje ocorre ‘A segunda providéncia foi estabelecer como poderia ser feita a | concessao, para quem, com qué politica, com qué aleance social. A opgio da lei, nesta segunda providéneia esta clara logo no artigo 1°; n proibidas as aquisigdes de terras devolutas por outro titulo que ndo seja o de compra”. As duas providéncias, perfeita- \ mente articuladas entre si, afastavam os pobres das terras, premiando Jo latifiindio ¢ condenando o povo a miséria e fome. 70 Esta vontade politica determinada de impedir que qualquer um do povo se tornasse proprictirio pela simples ocupagio das terras seguia a doutrina mais conservadora da época, inspirada no econo- mista Edward Wakefield, segundo a qual as terras desocupadas deveriam ter um “prego suficiente” para desestimular os trabalha- dores livres a adquiri-las, caso contrario sé continuariam como trabalhadores se os salarios fossem muito altos, isto ¢, a liberagao de terras significaria © encarecimento da produgao. Sob este argu- ‘mento, tio economicista quanto desumano, negava-se 0 Governo Brasileiro em reconhecer posses de subsisténcia, ao mesmo tento que impunha instrumentos para coibi-las. A politica imperial fez ‘exatamente o contrario do que havia ¢ fazia os Estados Unidos ¢ se faria na Austrélia, que incentivavam a ocupagao desordenada do rio para que a sociedade florescesse em liberdade™, Durante a coldnia a concessio de sesmaria era gratuita e aber- tamente nepotista, isto é, 0 funcionario com poderes de concessio podia favorecer a quem quisesse, jé que nfo havia um direito & aquisigao. Com a constitucionalizagao do Estado esse direito pas- sava a existir, segundo os preceitos da lei. Por isso @ lei teve que ser demoradamente elaborada e pensada, ¢ afinal saiu com a proi- bigdo de aquisigao por outro meio que nao fosse a compra. Nao se pode esquecer que a compra € um contrato bilateral, e 0 vendedor vende 0 qué e quando quer. Isto quer dizer que foi retirado qual- quer direito aos cidadaos de reivindicar, mesmo por compra, terras devolutas. Nao € dificil entender o porqué desta decisio. As elites domi- nantes tinham dois problemas em relagdo as terras devolutas. Por um lado jé se fazia insuportivel a manuteng&o da escravatura e a libertagao estava a caminho. Isto significaria tornar trabalhadores livres uma leva enorme de escravos que iria preferir ser camponés, proporcionando uma marcha para os campos desocupados © uma. fuga de mao de obra disponivel. Por outro lado, os imigrantes po- bres da Europa ¢ Asia ja comegam a chegar ¢ também iriam prefe- rir buscar terras proprias para trabalhar. territ 35 = Sobre o destino das terras devoluias hi um precioso trabalho de Miguel Pressburpuer, Terras devohuas : o que fazer com elas?. de recomendvel leitura n Estas duas classes de trabathadores livres eram pobres 0 sufici- nao poder adquirir terras se 0 Estado as vendesse, Tam- ‘va destes trabalhadores a possibilidade de ente par pouco estava na perspe vir a adquiti-las porque se tormava quase impossivel a acumula de bens ¢ dinheiro“, mas ainda que o juntasse, dependia da vontade do Estado em vendé-las. A propriedade da terra, portanto, estava inacessivel ao trabalhador pobre para que no ocorresse o que te mia Wakefield, a falta de mao de obra nas empresas produtoras ou a elevacio de seu prego, dificultando a competitividade dos pro- dutos brasileiros nos mercados internacionais. E claro que o prego nao era a tinica dificuldade para a aquisi- Glo. A experiéncia anterior jé demonstrara que o simples controle das concessdes pelo Estado poderia impedir o acesso as terras. As sesmarias sempre foram concedidas gratuitamente para uso politico € aumento do poder das elites. Portanto nao bastava determinar um prego para a aquisigao, ainda que isto ja fosse impeditivo, havia um controle ainda maior que era a vontade politica da concessao. Ape- sar das barreiras do prego e da concessio politica, era ¢ continu: sendo impossivel evitar que as terras Fosse ocupadas por quem fora do mercado, produzisse para a subsisténcia, afinal, a terra ali menta quem nela trabalha independentemente do titulo de proprie- dade. A terra nao pede titulos e documentos para entregar scus frutos, baste plantar ou coletar. A ocupagiio havida sem concessio estava, como ainda esti, § margem da lei, portanto na ilegalidade e o Estado existe para re- primir as condutas ilegais. E 0 Estado sempre teve forga suficiente 56 ~ A maior parte dos imigrantes eram trazidas em condigdes de semi eseravi- io, endividados, no conseguiam seumullar senda a propria miséria. A nBo com seguitem poupangs ficavam a mereé do patrdo, aumentando a divida e a subordi- aydo, qualquer temtativa de saida para uma terra em que pudesse cultivar por conta prépria esbarrava nos rigores da lei ¢ os puna na ilegalidade e marginali- dade. 51 - Esta diseussio com aparéncia de final de século vinte dominow todo 0 come- 0 do século XIX, merecendo de Marx, no Capital, uma dura crtiea a Wakefield € sua teoria do prego suficiente das terras das coldnias. Maior aprofundamento Sobre © tema, no Livro Primeiro do Capital e no liv de Ligia Osorio Silva, Tervas devolutas¢ laifindio, 2 para faz@-lo, e, de qualquer forma, sempre teve 0 apoio, considera do legal, das milicias particulares, da jagungada a mando de algum coronel, matando ¢ expulsando ocupantes © posseiros de terras pit- blicas © particulares, como fato marcante na histéria da ocupagéo territorial brasileira, de norte a sul. A lembranga de Antonio Con- selheiro € do Monge José Maria ¢ suas guerras santas nos remetem, diretamente, a este proceso de protegao € reserva de terras para as lites ¢ a sentenga de morte dos camponeses livre: Todas as terras que nao estavam sob o dominio privado ou no estavam afetadas a um fim piblico, que eram senhorio do rei de Portugal e que foram, com a independéncia, devolvidas ao Estado brasileiro eriado em 1824, passaram a ser chamadas de ferras de- volutas. Terras devolutas, portanto, estavam definidas, e esto até hoje, por sta negagao, quer dizer, devolutas sao as terras que nio sao aplicadas a alaum uso piiblico, nacional, provincial ou munici- pal, ndo se achem no dominio particular, nem tivessem sido havi- das por sesmarias e outras concessdes do Governo Geral ou Pro- vineial, nao incursas em comisso™ por falta de cumprimento das condigdes de medigao, confirmagzo ¢ cultura, ndo tivessem sido concedidas em sesmaria ou outros atos do Governo Geral que, ape- sar de incursas em comisso, foram revalidadas pela Lei 601, nao se achem ocupadas por posses que, apesar de nao se fundarem em titulo legal, foram legitimadas pela lei. As terras devolutas, assim, eram de dominio pablico, diferente daquelas de uso, porque poderiam, e até deveriam, ser vendidas. A Lei no enterrou a idéia de concessio, isto é, de um poder discrici- ondrio do Estado, apenas estabeleceu um prego para esta conces: stio, com excegao para a faixa de fronteira, cuja intengao do Impé rio era fixar populagao para demarcar os limites nacionais © em alguns casos amplii-los. Em todo caso, mesmo na faixa de frontei- ra, nao estava autorizada a ocupagio, # Lei mantinha a concessao. A diferenga & que na faixa de fronteira 0 Governo poderia conceder a pobres, ¢ fora dela, nao. Deve ficar claro que o instrumento juri- 58 - Incursas em eomisso sio as concessdes que nao cumpriram as condigdes ‘contrat is impostas para o reconhecimento das sesmatias, AS condi= ‘bes neste caso eram a ocupagio, 2 produgio, a demarcagao e a confirmagdo. B dico da concessao e a discricionaridade do Poder Pablico no século XIX € quase todo século XX esteve subordinado diretamente aos interesses dos poderes oligarquicos. Na realidade ainda hoje estio, mas tanto as concessdes quando a discricionaridade podem ter al- ‘gum contrale externo, naquela época nem isso. Além da concessdo onerosa de terras devolutas, a lei criow o Instituto da legitimagdo de posse, pelo qual aquele que tivesse tor- nado determinade-térra devoluta produtiva com seu proprio traba= Iho e de sua familia, e nela morasse de maneira permanente, passa- yaaa ter o direito de que 0 Estado the reconhecesse o dominio. Este Instituto, como se vé, tem semelhanga com a usueapio, mas com cla nao se confunde, porque ¢ relativo a terras devolutas e depende do reconhecimento do Poder Pablico, que poderé nega-lo se outra destinagao tiver para 0 imével. Além disso, como ji foi dito, nao se m que houve investi trata de qualquer ocupagao, mas daquela mento produtivo ¢ nao de simples subsisténcia, A Lei trazia, ainda, um dispositivo de protegio de florestas que, as vezes, & saudado por juristas comtemporineos como um prenincio de leis ambientais, mas se tratava, na realidade, de pre- venir contra ocupagaes desordenadas, porque determinava 0 des- pejo de posseiros que tivessem efetuado derrubada rasa ou posto fogo na gleba. Além de despejado e ter que indenizar os danos cau- sados, a lei previa como pena a perda das benfeitorias, prisio & mutta, Este dispositivo nao pode ser considerado protetor do meio ambiente, mas inserido dentro da ldgica do preco suficiente, porque ele & contraditério ou pelo menos restritive ao instituto da legiti- mag de posse, porque para tornar uma terra produtiva, no sentido capitalista, o ocupante teria que fazer corte raso em florestas piibli- cas. A usticapiao, também chamada prescrigao aquisitiva no Cédigo Napoledo, € um direito daquele que tendo tido uma coisa como dono por um tempo legalmente estipulado, Jhe adquire a legitima propriedade. O Cédigo Napoledo, a matriz legal do dir ocidental, anterior & Lei Imperial de Terras, admitia a possibilidade 74 \ da aquisiga0 pela prescricao de bens piblicos.” Assim, seria razo- vel que a Lei de Terras trouxesse dispositive semelhante, consol dado na matriz legal ¢ doutrinaria francesa. E claro que permitir a usueapido em terras piblicas seria admiti-lo em devolutas, que | abriria uma larga avenida para a ocupagao chamada desordenada. | | Por isso 6 tio insistente a Lei em criar impedimentos para que) ocorra, criando um sucedineo menos eficaz, como a chamada legi timagao de posse. Este instituto, de aparéncia tao generosa quanto a| sucapiao, na realidade é um impeditivo ao seu exercicio, A usucapiio, que poderia ter sido instituida na Lei de Terras porque era pertinente & matéria, somente foi introduzida no Brasil pelo Cédigo Civil de 1916 ¢, expressamente, se refere a “usueapiao artic ~ como que reafirmando @ impossibilidade 10, por este modo, de terras devolutas. Tal & a preocupa- go em restringir a ocupagao de terras devolutas, que a Lei 1601/1950 determina aos juizes de Direito a investi das autoridades a quem competia o cuidado com estes terrenos sistema de transferéneia de direitos originarios de terras de- volutas pela concessio ¢ pela legitimagio de posse contaminou 0 Dircito brasileiro a ponto de a doutrina © a jurispru aceitarem a usucapiao sobre bens piblicos e, ainda menos, sobre terras piiblicas, sobre 0 argumento tedrico de que estes bens si0 indisponiveis, O argumento nao se sustenta quando analisado sobre 59+ 0 Codigo Napoledo em tradugdo de Sours Diniz, estabelece no artigo 2227: "0 Estado, as estabeleeimentos piblicos e a comuna fieam submetidos as mesmas preserigdes que os particulates, © podem igualmente opé-las’. Além disso, 0 artigo $41, expressamente, diz pertencerem a0 Estado determinados bens, "se a propriedade nao foi prescrita contra ele”. Dove-se ressaltar que © Cédigo trata a prescrigdo como uma forma de aquisigao da propriedade, mével ou imével 60 - Pode resultar interessante a leitura do artigo 2°: "Os que se apossarem de ‘ou de alheias e nelas derrubarem matos ou the puserem Fogo, feitorias, e demais softerao a pena ras devolut serio obrigados a despejo. com perda das be de dois a seis meses de prisdo e multa de 1009000, além da satisfagio do dano ‘causa. Paragrafo Gnico: Os juizes de Direito nas correigdes que se fizerem na forma das leis e regulamentos, investigario se as autoridades a quem compete 0 con fardo efetiva a sua responsabilidade, imponde no easo de simples negli malta de 50S a 2005, mento destes delitos poem todo 0 euidado em processi-los ¢ puni-los, © 18 a ética do uso dos bens piiblicos, jé que para haver usucapiao teria de haver uso privado do bem, como se dono fosse. Se ha uso priva- do, piiblico uso nao ha, ¢ estas terras ainda que piblicas estio d poniveis ao Estado para Vendé-las; ndo se sustenta a idéia de que ndo possa haver usucapiao salvo, € claro, pela teoria de Wakefield © em evidente restrigao & aquisigao por camponeses pobres, Por outro lado, € muito mais facil aos poderosos e afilhados da elite adquirir terras devolutas pelo sistema de concessdes, ainda que onerosas, do que se dependessem de transformar as terras pro- dutivas € manter nelas posse longa, como era originalmente o sis tema sesmarial em sua versio e aplicagao original, em Portugal do século XIV. A Lei Imperial de Terras, além das terras devolutas, trata tam- bém da importagao de trabathadores livres. Como nao se poderia em consonincia com os principios da cultura constitueional, proibit a compra de terras particulares, a lei estabelecia que os estrangeiras que as comprassem ¢ nelas estabelecessem sua industria poderiam ser naturalizados em dois anos (art. 17). Além disso, autoriza 0 Governo a mandar vir, a custas do Tesouro Naciona de colonos livres para serem empregados por tempo determinado, ‘ow para serem assentados em coldnias. Coerentemente, estabelece que 0 dinheiro arrecadado com a venda de terras devolutas seria empregado em novas medigdes € na importagao de trabalhadores livres. Proclamada a Repiiblica, novamente as esperangas populares se frustraram. A Constituigao de 1891 organizou o Estado Federal, transformando as Provincias em Estados com certa autonomia & competéncias, entre elas a de regulamentar a concessio de terras devolutas, que passaram ao dominio estadual."" Todas as Constitui- fo Federais que the seguiram mantiveram esta natureza estadual 61 - 0 Estado do Parand em 1892 fz editar sua lei de tereas, Lei n® 68, de 20 de éezembro de 1892 ¢ nele consta 0 mesmo sistema da lei federal, agravando a proibiedo de ocupagao de terras devolutas, dispondo que ficava sujeito a despejo da, construgi0 ou plantagao nelas. A lei parante a areserva de terras a elite dominance ‘quem fizesse queimada, derrubs 16 das terras devolutas, impondo excegdes, reservando algumas terras Unido Federal, especialmente as de faixa de fronteira,” (As oligarquias fundiarias, proprietarias de grandes extensies de terras, foram sendo formadas nos séculos anteriores ¢ adquirin- do terras em sesmarias ou comprando terras devolutas, no regime | da Lei 601/1850, Estes poderes se concentravam nas Provinciais \que vieram a se transformar em Estados Membros. Assim, no mo- mento em que a Constituiga de 1891 transferiu as terras devolutas para os Estados entregou poder de distribuigao, exatamente, para as elites fundidrias, que tinham interesse na manutengtio do status quo. Quer dizer, quando a concessio de terras devolutas passou para os Estados, criados em 1891, as oligarquias locais assumiram © incontrolado direito de distribuigo de terras devolutas, inclusive podendo alterar as regras contidas na Lei 601/1850, porque passa- ram a ter competéncia legislativa, reproduzindo, aprofundando ampliando 0 injusto sistema do latiffindio, com as conseqliéneias que até hoje assistimos de violéncia no campo e miséria na cidade. Grande parte dos conflitos surgides logo depois da proclama- ¢20 da Repiblica tem origem na manutengao e aprofundamento deste sistema fundidrio. Os mais conhecidos, Canudos, liderado por Antonio Conselheiro, e Contestado, do monge José Maria, lacompanhados da chamada sedigio de Juazeiro, com Cicero Romao Batista, do reduto do Crato, do beato José Lourenco e da figura mitica de Lampio, stio mostras desse descontentamento com a ordem fundidria, mas mais ainda do que descontentamento, descon- formidade do sistema com as realidades locais. Em praticamente todos eles ha mestigos, negros, indios, filhos de imigrantes dura- mente empobrecidos que ocuparam terras, juntaram-se para viver em paz, no raras vezes buscando no isolamento a seguranga € a proximidade com seu Deus e suas crengas. Estes movimentos sem contatos entre si, sem noticias € to distantes um do outro guardam. 62 A Constituigio de 1891 estabelecia no seu artigo 64: Pertencem aos Estados as minas ¢ as terras devolutas situadas em seus respectivos terttérios, eabendo & Unido somente a porsio de terrtério que for indispensivel para a defesa das fronteira, fortificagdes, construgdes militares e estradas de ferro, 1 em comum 0 fato de todos terem como fundamento a ocupagio da terrae seu uso para prover todas as necessidades da populagao. <— Além disso, tém também um fim comum, todos terminaram em | massacre, 0 exército republicano agin contra eles com uma violén- _cia inusitada e desmedida. A punicao foi, na pratica, a mesma que deveria ser aplicada nos crimes mais graves das Ordenagoes do Reino: a morte e perda de todos os bens. A terra, pela qual morreu a populagao foi, como devoluta, distribuida, curiosa ironia, 2 em- presas estrangeiras, em especial no Parand/Santa Catarina, no que se convencionou chamar a Guerra do Contestado."* O carter agrario desta guerra era tio claro que o movimento a0 tomar uma cidade queimava todos os documentos dos Registros de Iméveis, porque aqueles documentos de propriedade sempre Ihes eram brandidos como a grande prova de que eram intrusos na terra em que viviam € trabalhavam. Queimando os papéis, imagi- navam queimar o sistema que, como fénix, sempre renascia das cinzas, cada vez mais feroz e mais brutal O século XX, assim, se abre para 0 Brasil com uma perspectiva de crise, de nao soluga0, no campo juridico e politico do problema fundidrio. A terra tinha se transformado em propriedade e a Repit- blica, que era esperada por alguns como a possibilidade da reden- Jo, acabou por aprofundar os problemas loeais. Estados, como 0 Parand, tem a historia eserita com sangue camponés e indio apesar de suas cidades ostentarem os nomes dos proprietirios de terra ¢ dos soldados que puseram suas armas para derramé-lo. A tragédia, para o Direito, é que a violéncia estava estabelecida na Lei de Ter- ras contra os posseiros que buscassem na terra dignidade para suas vidas. Mais do que isso, os grandes movimentos, como Contestado © Canudos, foram chamados de monarquistas © as tropas foram mobilizadas sob 0 falso argumento de que os rebelados lutavam para restabelecer o Império no Brasil, quando queriam apenas viver 63 - Sobre a Guerra do Comtestado ler 0 livto de Frederecindo Marés de Souza, O presidente Carlos Cavalcante a revolta do Contestado, além de seu belo romaine ce, Bles ndo acreditavam na morte. Sobre as revoltas populares deste periodo hi tum livro de referdneia, chamado Historia dos revolucdes brasifeiras, de Glauco Carneiro 8 na terra, onde vive todo ser humano e lutavam para que os deixas- sem estar, Brasil deixava para traz 0 Império do latifiindio ¢ ingressava no século © na Repiiblica do latifindio, Foram modernizados os meios de produgdo € as relagdes de trabalhio, mas a terra, no longo processo de transformagio, havia deixado de ser a inseparivel companheira do homem para ser dominio do individuo, capital, titulo, papel, bem juridico, propriedade, enfim. 9

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