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ARQUIVOS DO MINISTERIO DA JUSTIGA ANO 40 NUMERO 170 OUTUBRO/DEZEMBRO 1987 PRESIDENTE DA REPUBLICA JOSE SARNEY MINISTRO DA JUSTICA PAULO BROSSARD DE SOUZA PINTO SECRETARIO-GERAL JOSE FERNANDO CIRNE LIMA EICHENBERG SECRETARIO-GERAL ADJUNTO PAULO SOTERO PIRES COSTA FUN ;DAGHO PETRONIO PORTELLA Presidente JOSE E, MINDLIN Diretor Executivo LUIZ ANTONIO SOUZA LIMA DE MACEDO. CONSELHO DE ADMINISTRAGAO Presidente MINISTRO PAULO BROSSARD DE SOUZA PINTO Conselheros ALBERTO VENANCIO FILHO. EUNICE PAIVA ALCIDES JORGE COSTA GILMAR FERREIRA MENDES Conslho itorat JOAO BATISTA VILELA PAULO ALBERTO PASQUALINI NELSON SALDANHA SERGIO BERMUDES TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR Eaitor-Chefe CARLOS HENRIQUE CARDIM Feitor- Bective MARY HERSHBERGER SANTOS-NEVES Jornalsta Responsive! JOSE REIS (DRT-DF Noe 108) ARQUIVOS DO MINISTERIO DA JUSTIGA Ano 40 Numero 170 Outubro/Dezembro 1987 Os Agoites: Castigo e Pena . 3 Lenine Nequete A Crise da Democracia ¢ a Ligio dos Classicos ..... 29 Norberto Bobbio A Teoria da Democracia Revisitada........ 45 Nelson Saldanha 63 129 Parecer CJ N? 90/87. Arquivo uma publicagao wimesral do Miniséri da Justia, edtada pela Fundacto Peudnio Porella. Esplanada dos Ministérios, Anexo 2, Ministerio da Jusica, CEP: 70068 Fones: (061) 220-7185, 226-7008 « 225-7365 ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA. HANS KELSEN até aqueles que pretendiam se opor, mais ou ‘menos, i realizagdo deste ideal, faziam-no, geralmente, com uma Cortés reveréncia ao principio geralmente reconhecido ou dentro de uma prudente miscara de terminologia democratica. Nos iiltimos decénios anteriores a Grande Guerra, nem os estadistas importantes nem os célebres literatos faziam jamais confisso aberta e sincera de autocracia. Pelo contririo, apesar da luta de classes, que neste periodo agrava-se cada vez ‘mais, entre a burguesia e o proletariado, nao existe oposiclo no que diz respeito a forma do Estado. Liberalismo ¢ socialismo no apresentam diferenca ideologica acerca desse aspecto. Democracia € a palavra de fordem que, nos séculos XIX e XX, domina quase universalmente 05 ‘espiritos; mas, justamente por sso, ela perde, como toda palavra de ordem, ‘0 seu proprio sentido. Para seguir a moda politica, pensa-se que deve usar- se a nogio de democracia — da qual se tem abusado mais do que de qualquer outra noco politica ~ para todos 0s propésitos possiveis ¢ em todas as possiveis ocasides, tanto que cla assume os significados mais diversos, freqientemente muito diferentes entre si, quando a habitual impropriedade da linguagem vulgar politica nao a rebaixa diretamente a ‘uma frase convencional que nao exige mais um sentido determinado. ‘Mas a revolugdo social, conseqiiéncia da Guerra Mundial, impele a ‘uma revisio, também deste valor polttico. Considera-se que esse grande ‘movimento politico que, até entdo, se dirigia com a maior energia ¢ com 0 maior sucesso a realizacio de uma democracia que, junto ao socialismo ~ como precisamente indica 0 nome do partido do qual surge esse ‘movimento —representa a meta de sua esséncia espiritual. Esse movimento se detém, alids, divide-se justamente nc momento em que se tenta realizar indo s6 08 principios do socialismo, mas também, e acima de tudo, aqueles da democracia. Enquanto uma fragio, no inicio ttubeante ¢ muito +s revolugBes burguesas de 1789 ¢ de 1848 tinham quase A 6 ideal democritico num lugar-comum do pensa- 64 ARQUIVOs obstaculizada sas, afinal, decidida, segue a tendéncia inicial, a outa fracio, imperuosamente e igualmente decidida, dirige-se a uma nova meta ‘que, espontanea e abertamente se revela como uma forma de autocracia. Mas nao € s6 a ditadura do proletariado, fundamentada no plano te6rico da doutrina neocomunista e operada no plano pritico pelo partido do bolchevismo russo, que se insurge contra o ideal da democracia. A forte pressio que este movimento do proletariado exerce sobre oespirito e sobre politica na Europa leva também a burguesia, por reacdo, a uma atitude antidemocritica. Essa reagdo encontra expressio, tanto te6rica como prati- «a, no fascismo italiano. Estando assim a situagao, hoje se apresentao problema da democracia ante a ditadura dos partidos ~ de esquerda e de direita — tal como em outra época se apresentava ante a autocracia mondrquica. 1. A LIBERDADE Na idéia de democracia ~ ¢ € dessa idéia que desejamos nos ocupar inicalmente, nao da realidade politica mais ou menos proxima dela ~ encontram-se dois postulados da nossa razdo pritica; exigem satisfaclo dois instintos primordiais do ser social. Em primeiro lugar, a reagio contra a pressio resultante do estado da sociedade, 0 protesto contra a vontade alhcia ante a gual ¢ precio se dobra,o protest conta 0 tormento da heteronomia. E a propria natureza que, na exigéncia de liberdade, rebela- secontraa sociedade. O peso da vontade alheia, imposto pela vida em socie- dade, parece tanto mais opressivo quanto mais diretamente se manifesta, xno homem, o sentimento primitivo que ele tem do seu proprio valor; quan- ‘tomais clementar foro fato, ante 0 chefe que o comanda, de que ele é obri- gado a obediéncia: “E um homem como eu, somos iguais, portanto, que dircito ele tem de me ordenar?”. Assim, aidéia absolutamente negativa ea profunda raiz anti-herdica da igualdade se coloca ao servigo de uma tanto ‘quanto negativa idéia de liberdade. Da idéia de que nés, idealmente, somos iguais, pode deduzir-se que rninguém deve comandar outrem. Mas a experiéncia ensina que, se realmente desejamos ser todos iguais, € preciso se deixar comandar. f por isso que a ideologia politica nao deixa de unir a liberdade coma igualdade. Asintese destes dois principios ¢ justamente a caracteristica da democracia, ‘como Cicero, mestre da ideologia politica, expressa na famosa frase: Itague nulla alia in civitate, nisi in qua poplipotestas swomma est ullum domicile libertas abet: qua quidem certe nitil potest esse dulcius et quae, si aequa non es, ne libertas quidem es. Se a ideia de liberdade pode tomar-se um principio dessa organizagio social ~ da qual ela era a primeira negagio - e até um principio de ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 65 organizacao estatal, isso somente € possivel auavés de uma mudanga de significado. A negacao absoluta de toda ligacdo social em geral e, por isso ‘mesmo, do Estado em particular, leva ao reconhecimento de uma forma particular dessa ligacio, a democracia. que, com seu oposto dialético, a autocracia, representa toda forma possivel do estado, além da sociedade em geral. Se deve haver sociedade ©, mais ainda, Estado, deve haver um regulamento obrigatorio das relagbes dos homens entre si, deve haver um der. Mas se nos devemos ser comandados, desejamos sé-lo por nés mesmos. A liberdade natural se transforma em liberdade social e politica. E politicamente livre quem ésubmetido, sim, masasua propria vontade, ndo A vontade alheia. Com isto se coloca a antitese de principio das formas politics e sociais. Em termos de teoria do conhecimento, se a sociedade deve existit como sistema diverso da natureza, ao lado da legalidade natural deve existir uma legalidade social especifica. A norma se opée a lei causal. Do ponto de vista da natureza, liberdade sgnifica, originalmente, negacéo da legalidade natural ou causal (livre arbitrio). “Retorno & natureza” (ou a ““iberdade natural”) significa somente “‘tiberagao da ligacdo social”. A ascensio a sociedade (ou a liberdade social) significa “liberdade da legalidade natural”. Esta contradigio se resolve somente quando a “liberdade” torna-se a expressio de uma legalidade especifica, isto é da legalidade social (vale dizer ético-politica e juridico-estatal), no momento em que a antitese da natureza e da sociedade tomase aquela de duas legalidades diversas e, portanto, de duzs formas diversas de consideracio. A liberdade concebida como autodeterminagio politica do cidadao, como participagio do cidadao mesmo na formagio da vontade diretiva no Estado, em sintese, a antiga idéia de liberdade, costuma'se contrapor a idéia de liberdade dos germanos, para 0s quais liberdade queria dizer auséncia de qualquer dominio, de qualquer Estado. Nao se trata, para dizer a verdade, de uma distingio histérico-etnografica. A passagem da forma germénica a, assim chamada, forma antiga do problema de liberdade € somente o primeiro estagio daquele inevitavel processo de transformacio, daquela desnaturacéo a qual € submetido o original instinto de liberdade, por aquele caminho que leva.a consciéncia humana do estado de natureza av estado de ordem social. Esta tramformagio semantica na nosio de liberdade € uma caracteristica da mecanica do nosso pensamento social. A importincia realmente enorme da idéia de liberdade na ideologia politica seria inexplicavel se a mesma nao proviesse do fundo da alma humana, de ‘onde provém também aquele instinto primitivo antiestatal que impele 0 individuo contra a sociedade. Todavia, devido a uma ilusio quase incompreensivel, esta idéia de liberdade somente exprime uma determi- 66 ARQUIVOS nada posigio do individuo na sociedade. Da liberdade da anarquia se forma a liberdade da democracia. Esta transformacdo é maior do que parece a primeira vista. Rousseau, talvez o mais importante teérico da democracia, coloca o problema do Estado ideal ~ que para ele ¢ 0 problema da democracia! ~ nestes termos ““Encontrar uma forma de associagao que defenda.e protejacadamembroa cla pertencente e na qual o individuo, embora se unindo a todos os outros, obedega unicamente a si mesmo ¢ permaneca livre como antes". Até que ponto ele consideraa liberdade como a pedra fundamental ¢ como eixo do seu sistema politico ¢ demonstrado pelo seu ataqueao principio parlamen- tar da Inglaterra: “O povo inglés acredita ser livre, mas esti. muito cenganado: é livre somente durante as eleigdes dos membros do Parlamen- to; uma vez. que os membros sio eleitos, ele vive na escravidio, é um zero a esquerda”. £ sabido que Rousseau deduz esse principio da democracia direta, Mas ainda se a vontade geral venhaa se realizar diretamente a partir do povo, o individuo é livre somente um momento, isto é durante a votagio, mas 6 s¢ ele votou coma maioria endo com a minoria vencida. E por isso que o principio democratico da liberdade parece exigir que a possibilidade de uma decisio imposta & maioria seja reduzida a-um minimo; maioria qualificada, possivelmente unanimidade, sio considera- das como garantia da liberdade individual, mas a oposigdo dos interesses, contudo, o que é um dado da experiencia, toma-as tio inadmissiveis para a vida politica atual, que até um apéstolo da liberdade, como Rousseau, exigea unanimidade somente para o contrato inicial que funda o Estado, E ‘esta restriclo, na aplicagio do principio da unanimidade no ato hipotético da fundacio do Estado, nao se explica absolutamente ~ como se costuma acreditar—com simples motivos de oportunidade. Rigorosamente falando, se 0 consenso que se exige em nome da liberdade deve ser unanime para a conclusio do pacto social, a manutencio da ordem contratual deveria ser subordinada a persisténcia desse mesmnissimo consenso de todos, permi- tindo a cada um, conseqientemente, abandonar a comunidade esponta- neamente ¢a qualquer momento, esquivar-se a aplicacao da ordem social, negando a mesma qualquer reconhecimento. Neste ponto aparece clara- mente o insohitvel conflito que opée a idéia da liberdade individual aquela de uma ordem social, a qual, pela sua mais intima esséncia, deve valet objetivamente, isto é, em tiltima analise, independentemente da vontade daqucles que a ela siv subunetidos. Esta validade objetiva da ordem social permanece intacta, para as ciéncias sociais, mesmo quando 0 contetido desta ordem é determinado, de qualquer maneira, por aqueles que estio submetidos a tal ordem. Mas a objetividade formal exige também uma material. No caso limite em que o “tu deves” do imperativo social vem condicionado a um “se for isso 0 que tu desejas” para aquele a quem se dirige, a ordem perde qualquer senso social. £ por isso que a existéncia da ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 67 sociedade ¢ do Estado pressupde que possa haver desacordo entre a ordem social ea vontade daqueles que estio ala submetidos. Se existisse sempre coincidéncia entre dever e ser, vale dizer, se 0 valor da liberdade fosse infinito, ndo se poderia falar de submetidos. A democracia renuncia, pela elaboragio de uma ordem social posterior, a unanimidade que, hipoteti- camente, seria aplicada a sua fundagio por contrato € se contenta com as decisdes tomadas pela maioria, limitando-se a se aproximar do seu ideal original. O fato de se continuar a falar em autonomia ea considerar a cada ‘um como submetido a sua propria vontade, enquanto aquela que vale €a lei da maioria, € um novo progresso da metamorfose da idéia de liberdade*. ‘Mas mesmo aquele que vota com a maioria ndo mais esta submetido & sua propria vontade. Isto ele adverte quando muda de opinido. E uma vez que essa mudanga nfo tem conseq{iéncias jurfdicas, ele se apercebe clara- mente de estar submetido a uma vontade alheia ou, sem metaforas, a ‘uma ordem que tem valor objetivo. Para que ele, individuo, fosse novamente livre, seria necessdrio encontrar uma maioria a favor de sua opiniao. E esta concordancia entre vontade do individuo e vontade do Estado é tanto mais dificil de se realizar, ¢ esta garantia de liberdade individual tanto menor, quanto maior fora maioria necessaria para modificar a vontade do Estado. Tal acordo seria impossivel se as modificagies da vontade do Estado precisassem ser decididas por unanimidade. Aqui se apresenta uma singu- lar ambigiiidade da mecinica politica. Aquilo que inicialmente, du- rante a fundacio da ordem estatal, era escrupulosamente executado segundo uma idéia de liberdade e servia para a protecio da liberdade individual, torna-se grilhdo no momento em que 0 individuo nao pode se esquivar a essa ordem. A fundacdo do Estado, a criacio original da ordem juridica ou da vontade do Estado nao tomnam a entrar na pratica social, ‘Nasce-se, comumente, numa ordem estatal preexistente, para cuja criagdo no se contribuiu e que deve, conseqiientemente, aparecer como uma vontade alheia. O problema que se apresenta é s6 aquele do aperfeigoa- mento desta ordent, das modificacbes para chegar acl. Edesse ponto de vista, 0 principio da maioria absoluta (¢ nao da maioria qualificada) representa a aproximacao relativamente maior da idéia de liberdade. 0 principio majoritirio pode ser éeduzido de tal idéia, e no, como se costuma fazer da idéia de igualdade. Este principio pressupde que a vontades dos individuos s4o iguais. Mas esta igualdade é apenas imagina- ria, nfo pode representar a efetiva mensurabilidade e adicionabilidade da vontade ou personalidade individual. Seria impossivel justficar o principio ‘majoritirio com a opinio de que mais votos tém maior poder que poucos votos. Do pressuposto puramente negativo de que um individuo nao vale mais que outro, nao pode ser deduzido, positivamente, que a vontade da 68 ARQUIVos maloria seja a que deve valer. Se acaso se procura deduzir 0 principio da maioria exclusivamente da idéia de igualdade, este principio tera aquele ‘ardter mecéinico, ou melhor, absurdo, que the reprocham os inimigos da democracia. Significaria transformar em maxima defeituosa um dado da experiéncia, asseverar que os mais numerosos sio 0s mais fortes, ea formula “a forca supera o direito” seria somente superada se fosse clevada & condigdo de regra de direito. Eapenas uma idéia que leva, por um caminho acional, ao principio majoritario: a idéia de que, se ndo todos os individuos, pelo menos 0 maior niimero deles sio livres, o que equivale a dizer que é necessaria uma ordem social que seja oposta 20 menor niimero possivel deles. Certamente este raciocinio pressupée a igualdade como postulado fundamental da democracia: ¢ claramente enfatizado que se rocura assegurar a liberdade nao deste ou daquele individuo porque este vale mais que aquele, mas do maior niimero possivel de individuos. Dai que a concordincia entre vontade individual e vontade do Estado sera ‘muito mais facil de se obter quanto menor for o mimero de individuos que precisem concordar para decidir uma modificacio na vontade do Estado. Aqui, amaiotia absoluta representa, efetivamente, o limite superior. Seniio fosse exigido, poderia acontecer que a vontade do Estado, no momento de se manifestar, estivesse mais contra do que de acordo com a vontade individual; se fosse exigido em maior grau, poderia acontecer que uma minoria pudesse impedir uma mudanga da vontade do Estado, em oposigéo com a maioria. A wansformagio do conceito de liberdade, 0 qual, de idéia de uma liberdade do individuo do dominio do Estado, transforma-se em par- ticipagao do individuo no poder do Estado, assinala contemporaneamente aseparacio da democracia do liberalismo. O ideal democratico, se acaso se ‘manter satisfeito na medida em que os individuos submetidos a ordem do Estado participem na criacdo dessa propria ordem, serd independente da medida em que esta ordem do Estado abranja os individuos que a criaram, isto é, independente do grau até o qual reduz a “liberdade” dos mesmos. Mesmo que a extensio do poder do Estado sobre o individuo fosse ilimitada, no caso, pois, de que a “liberdade” individual fosse completa- mente aniquilada © 0 ideal liberal negado, a democracia ainda seria possivel, sempre que tal poder tivesse sido criado pelos individuos a ele submetidos. E a histéria ensina que 0 poder democratico nio tende a se expandir menos que 0 autocritico.5 © desacordo entre a vontade do individuo, ponto de partida da exigencia de liberdade, ¢ a ordem estatal, que o individuo percebe como uma vontade alheia, ¢ inevitavel. E num Estado democritico, onde este desacordo é reduzido a um minimo aproximativo, verifica-se uma nova ansformacio na idéia de liberdade politica. A liberdade do individuo, a qual, em tltima analise, revela-se como irrealizavel, termina ficando em ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 69 segundo plano, enquanto a liberdade da coletividade pasea ao primeiro. 0 protesto contra o dominio exercido por alguém semethante a nés leva, na consciéncia politica, a um deslocamento do sujeito do dominio, dominio ‘que é inevitavel mesmo no regime democratico, isto é, a formacio da pessoa anénima do Estado. O imperium parte desta pessoa andnima, no do individuo como tal. A vontade da personalidade singular libera uma misteriosa vontade coletiva ¢ uma pessoa coletiva inquestionavelmente mistica. Este isolamento ficticio efetua-se nao tanto contra a vontade dos siiditos quanto contra a vontade daqueles individuos que exercem o poder € que se unem como simples érgios de um sujeito hipostasiado de tal poder. Num regime autocratico, um homem de carne ¢ oss ~ mesmo se for divinizado — €considerado como um chefe. Num regime democratico ‘© proprio Estado que aparece como sujeito do poder. Aqui o véu da personificacao do Estado cobre o fato, insuportivel a sensibilidade democratica, de um dominio do homem sobre o homem. A personificacio do Estado, como base da teoria do direito pablico contemporaneo, tem. suas raizes nesta ideologia da democracia. Mas se for descartada a idéia de que os individuos sto dominados pelos seus préprios semelhantes, por que no reconhecer logo que o individuo que deve submeter-se 4 ordem do Estado nao é livre? Com o sujeito do dominio, muda, contemporaneamente, 0 sujeito da liberdade. Afirma-se, antes, com insisténcia que o individuo que cria a ordem do Estado, unido organicamente a outros individuos € realmente livre no vinculo dessa unido, e somentenela. A idéia de Rousseau de que o siidito renunciaatoda sua liberdade para reavé-la novamente como cidadao é caracteristca, jaque esta distingdo entre stidito e cidadao indica uma total mudancado ponto de vista social € 0 completo deslocamento do problema. O stidito ¢ 0 individuo isolado de uma teoria individualista da sociedade; 0 cidadao 60 membro nao independente, simples elemento de um todo profundamente orginico do ser coletivo de uma teoria universal da sociedade; de um ser coletivo que, do ponto de vista totalmente individualista da apreciagao das, coisas, fundado sobre a idéia de liberdade, tem um carter transcendente, metafisico®. A conseqiiéncia ~de alguns autoreslogicamente deduzida~€ _que, posto que os cidadaos do Estado slo livres somente em seu conjunto, isto 6, no Estado, quem é livre néo é o cidadao individualmente, mas a pessoa do Estado. Isto € também expresso pela formula segundo a qual sumente élivre o Gdadio de um Estado livre. A liberdade do individuo fica substituida, como exigéncia fundamental, pela soberania popular ou, 0 que é a mesma coisa, pelo Estado aut6nomo, livre. : Esta é a dltima etapa do processo de transformacao da idéia de liberdade. Quem nio deseja ou nao pode seguir a evolugdo que este conceito completa em virtude de uma légica imanente, pode criticar a contradigdo existente entre seu significado inicial e seu significado final e 70 ARQUIVOS renunciar a compreender as dedugoes de quem, methor do que ninguém, soubesnalizara democraca, de quem nao recaow nem mesno prante 4 asseveracio de que o cidadao ¢ livre somente através da vontade geral e que, conseqiientemente, obrigando-o a obedecé-la, € coagido a ser livre. Mais do que um paradoxo, € um simbolo da democracia o fato de que na Repiiblica de Génova, no alto das portas das prisdes e nas correntes as quais se prendiam, nas galés, os escravos, pudesse ser lida a palavra Liberias7, 11.0 Povo ‘A metamorfose da idéia de liberdade conduz, da idéia, a realizagao da democracia. A esséncia da democracia nao pode ser compreendida se nao se tiver presente a antitese ideologia/realidade, antitese que, no problema democritico, assume um papel de particular importincia. Muitos mal- entendidos na discussio do problema originam-se do fato de que uns falam somente da idéia e outros somente da realidade do fendmeno, enquanto seria necessrio fazer o confronto dos dois elementos, consid rando a realidadea luz da ideologia que a domina, a ideologia do ponto de vista da realidade que a sustenta’, E este antagonismo entre idéia © realidade nao se aplica somente ao principio fundamental da democracia: idéia de liberdade. Ele € encontrado em todos os elementos que consti- tuem esta idéia; portanto, particularmente, na nogao de povo. A democracia, no plano da idéia, é uma forma de Estado ou de sociedade na quala vontade geral ou, sem muitas metaforas, aordem social € realizada por aqueles submetidos a esta ordem social, isto € 0 povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é este povo? Uma pluralidade de individuos, sem divida. E parece que a democracia pressupée, fundamentalmente, que esta pluralidade de indi viduos constitui uma unidade, tanto mais que, aqui, o povo como unidade €- ou deveria teoricamente ser -ndo tanto objeto quanto, preferivelmente, sujeito do poder. Mas de onde pode resultar esta unidade que aparece com ‘0 nome de povo é um ponto problematico enquanto forem considerados somente os fatos sensiveis. Dividido por contrastes nacionais, religiosos e econdmicos, © povo aparece, aos olhos do sociélogo, mais como uma muliplicidade de grupos distintos que como uma massa cocrente de uin sO e idéntico estado de aglomeracio®. Somente em sentido normativo, a este respeito, poder-se-4 falar de unidade. De fato, como comunhio de pensamento, de sentimentos ¢ de vontade, como solidariedade de interes- ses, a unidade do povo representa um postulado ético-politico que a ideologia politica assume como real com a ajuda de uma fungdo tio uuniversalmente aceita que ndo mais se pensa em criticar. Na verdade, 0 ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 71 pove aparece como unidade, num sentido mais ow menos preciso, somente do ponto de vista juridico; suaunidade, que é unidade normativa, resulta realmente de um ato juridico: a submissao de todos seus membros a ‘mesma ordem juridica estatal na qual se constitui ~ como contetido das normas juridicas em base as quais esta ordem é formada~a unidade dos miltiplos atos humanos, a qual representa 0 povo como clemento do Estado, de uma especifica ordem social!9, O “povo” nao é~contrariamente como cle é ingenuamente concebido -um tinico, um conglomerado, por assim dizer, de individuos, mas simplesmente um sistema de atos individuais, determinados pela ordem juridica do Estado. O individuo nao pertence a coletividade social, de fato, como um todo, isto é, com todas as suas fungdes e com todas as tendéncias diversas de sua vida psiquicaefisica. Ele nao pertence nem mesmo aquela coletividade que exerce sobre ele 0 dominio mais forte, isto é, o Estado;!! tanto menos, pois, a um Estado no qual a liberdade determina a forma de organizacio. A ordem do Estado esto sempre presas unicamente algumas bem determinadas manifesta- ‘gdes da vida do individuo. Uma parte, maior ou menor, da vida humana sempre foge, necessariamente, a esta ordem, enquanto existe uma cera esfera na qual 0 individuo ¢ livre do Estado. E por isto um engano considerar como um conjunto de individuos a unidade de uma mulkiplici- dade de atos individuais ~ unidade que constitui a ordem juridica ~ qualificando-a como “povo” ¢ fomentar, assim, a ilusdo de que esses individuos constituem 0 povo com todo 0 seu ser, enquanto eles the pertencem somente através de alguns dos seus atos que a ordem estatal protege ¢ ordena. Esta ilusao ¢ demolida por Nietzsche em sua obra Assim {alow Zaratustra, quando disse do novo idolo: “O Estado € 0 mais insensivel dde todos os monstros. Ele mente friamente; de sua boca sai esta falsidade: “Bu, 0 Estado, sou 0 povo”!2 Mas entio, se a unidade do povo nao € nada mais que a unidade dos atos individuais regulados e regidos pelo direito do Estado, entdo, nesta ‘esfera normativa na qual o “poder” seapresenta como vinculo normativo, como submissio a regras obrigatorias, a unidade procurada sera 0 povo, ‘mas como objeto do poder. Sob este ponto de vista, 0s homens entram em campo como sujeitos do poder somente enquanto participam da criagdo da ordem estatal. E mesmo nessa funcio, de decisiva importancia para aidéia da democracia, enquanto o povo intervém na criagao das regras do direito, ‘surge a inevitavel diferenca entre este “povo"” eayuele defini como ocon junto dos individuos submetidos a suas normas. Todos aqueles, de fato, que fazem parte do povo como individuos submetidos a normas da ordem cstatal ndo podem participar do processo de criacio destas normas (forma necessaria do exercicio do poder), nao podem representar 0 povo como sujeito do poder. Isto € to evidente que 0s idedlogos da democracia ndo supdem, a maioria das vezes, 0 abismo que eles ocultam quando 72 ARQUIVOS identificam um “povo” com outro. A participagdy ua formayao da vontade geral 0 contetido dos chamados direitos politicos. O povo, como conjunto dos titulares dos direitos politicos, mesmo numa democracia radical, representa somente uma pequena fraglo do circulo dos individuos submetidos a ordem estatal, do povo como objeto do poder. E assim talvez porque, neste caso, certos limites naturais, ‘ais como a idade c a saiide intelectual e moral, se opdem a extensio dos direitos politicos e, com isso, do “pov” ativo, limites que nao existem para anocao de povo em sentido passivo. E caracteristico que a ideologia democritica accite limitagdes ultetiores na nogio de “povo”, muitas mais do que na nogio de individuos {que participam do poder. A exclusio dos escravos e—isso acontece até hoje ~ das mulheres dos direitos politicos nao impede absolutamente que uma ordem estatal seja considerada como democracia. E o privilégio estabele- ido pela instiruicao da nacionalidade é dado por certo porque ~ por um ‘erro cuja causa minima ndo é a tendéncia marcada de limitar os direitos politicos ~ esta instituigio € considerada inerente 4 propria nogio de Estadol9, Todavia, a experiéncia da recente evolugao constitucional ensina que 08 direitos politicos nao devem ser absolutamente ligados & naciona- lidade. A Constituicao da Unido Soviética derrubou, por exemplo, uma barreira secular e garante a plena igualdade dos direitos politicos também para todos os estrangeiros que se encontram na Russia por motivo de twabalho. No caracteristico desenvolvimento juridico, com sua lenta evolucio, atinge-se a idéia humanitaria, pela qual o cidadao estrangeiro, antigamente considerado um “fora da lei”, termina, finalmente, por obter gradualmente a igualdade dos direitos civis, embora até hoje, quase em todo lugar, ndo possa gozar dos direitos politicos, mas o passo dado na Unido Sovictica representa um fato de importancia historia. Este progres- so €, sem duivida, seguido por umm retrocesso bastante mais notavel: a certas categorias de cidadaos sto negados, em nome da luta de classes, esses mesmos direitos. Sedesejarmos passar danogio ideal annogio real de povo, nao podemos ‘nos contentar com substituir 0 conjunto de todos os individuos submeti- dos ao poder pelo bem mais estreito circulo dos titulares dos direitos politicos; & preciso dar mais um passo e levar em consideracio a diferenca existente entre o niimero desses titulares dos direitos politicos e o nimero daqueles que efetivamente exercem tais direitos. Essa diferenca varia de acordo com o grau de interesse na politica, mas representa uma propor¢ao notdvel e poderd ser reduzida sistematicamente até na democracia. Posto que 0 “povo”, que representa o substrato da idéia democratica, € 0 povo que comanda, endo 0 povo que é comandado, serialicito, do ponto de vista realista, reduzir mais ainda a nogio em questio. Na massa daqueles que, exercendo efetivamente seus direitos, participam da formacao da vontade do Estado, seria necessério distinguir entre aqueles que, como massa sem ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 75 juizo, permitem ser guiados pela influéncia dos outros, sem opinio Se oe ee eon dase pele segundo a idéia da democracia ~ dando uma determinada directo a formagio da vontade comum. Uma indagacao semelhante se coloca ante a realidad de um dos elementos mais importantes da real democracia: 0 artidos politicos, os quais agrupam os homens que participam de uma fresma opini, para ies grant wuma efeva influgnca na gest dos assuntos piiblicos. Estes agrupamentes sociais ainda tém, geralmente, um ‘ariter amorfo; eles se apresentam na forma fraca de livre associagao ou mesmo, freqiientemente, sem nenhuma forma juridica. Contudo, uma parte muito essencial da formagdo da vontade geral é realizada neles; parte fundamental cuja preparacio decide sia posterior orientagao: os impulsos provenientes dos partidos politicos sio como numerosas fontes subterra- neas que alimentam um rio, o qual sai a superficie somente na Assembléia popular ou no Parlamento, para correr depois num tinico leito. A moderna democracia baseia-se totalmente nos partidos politicos, cujaimportanciaé tanto maior quanto maior aplicacio encontra o principio democratico. ‘Como conseqiiéncia dessa circunstancia, podem ser concebidas as tendén- Gas~até hoje um tanto fracas—de se dar aos partidos politicos uma base na Constituicio, a thes dar um estatuto juridico que responda ao papel que, na prética, eles desempenham jé hé muito tempo: aquele de drgios da formacio da vontade do Estado. Sob esse aspecto, tratar-se-ia exclusivamente de uma manifestagio daquele processo oportunamente chamado de “racionalizacio do po- der"! que vai junto com a democratizagao do Estado modemo. Certamente, tal racionalizacio, em geral, e a constituicéo do Estado, em particular, encontram obsticulos consideraveis. Nao esta longe 0 tempo em que, oficialmente, alegislagio ¢ 0s poderes publicos ignoravam aexisténcia dos partidos politicos ou manifestavam, ao confronti-los, uma aberta hostilidade. Ainda hoje, ndo ha suficiente consciéncia de que a hostiidade da velha monarquia contra os partidos e que a disputa intima formada entre os partidos ¢ o Estado, particularmente da monarquia constitucional, significam uma mal dissimulada hostilidade contra a democracia. £ claro que 0 individuo isolado néo tem, politicamente, nenhuma existéncia real, ndo podendo exercer real influéncia sobre a formagdo da vontade do Estado. A democracia somente pode existir, portanto, se 05 individuos se agruparem de acordo com a sua afinidade politica, com o objetivo de encaminhar a vontade geral na dire¢do dos seus fins politicos, de tal maneira que, entre 0 individuo o Estado sejam inseridas aquelas formacées coletivas que, como partidos politicos, sinteti- ‘zem por igual a vontade individual das pessoas!>. Nao ¢ possivel duvidar que 0 descrédito dos partidos, favorito da doutrina politica da monarquia constitucional, fosse um ataque, ideologicamente mascarado, contra a 74 ARQUIVOS amacio da democracia Somente por ilusdo ou hipocrisia & possivel acreditar que a democracia seria possivel sem partidos politicos. Esta €a purae simples constatacdo de um fato. Eesse fato por sis6, cuja realidade se constata dando uma olhada a evolugao historica de todas as democracias historicas,rejeita a tes, ainda hoje muito difundida, segundo qual existiria uma incompatiilidade essencial entre os partidos politicos € 0 Estado; segundo a qual, o Estado, por sua propria natureza, nio poderia ser edificado sobre uma base constituida pela formacio social representada pelos partidos'6. A realidade politica demonstra exatamente o contrario. Aquilo que aqui se faz passar por “esséncia” ou “natureza” do Estado é, muitas vezes, na realidade, um determinado ideal, ejustamente uum ideal antidemocratico!7, O que foi, entdo, 0 que colocou os partidos politicos em antagonismo essencial com o Estado? Os partidos ~ respon- deremos ~ ndo representam mais do que interesses de grupos de individuos, portanto, tém o egoismo como base. O Estado, por sua vez, que representa o interesse comum, esté além dos interesses dos grupos e, portanto, além dos partidos que os organizam. Em primeiro lugar, ao lado dos partidos, fundados “sobre uma comunhao de interesses, existem também partidos fundados sobre uma comunhao de conviegSes, partidos que tém um importante papel na vida politica alema. £ necessario reconhecer, todavia, que eles ndo desejam afastar-se muito do terreno da comunhao dos interesses materiais. Em segundo lugar, os estados hist6ri- os aparecem, na sua maior parte, vendo-os com um olhar realsta, que penette através das nuvens das aparéncias ideolégicas que toda organiza- cio de forga espalha em tomo de si, como funcionando, antes de tu- do, no interesse de um grupo dominante. Apresenté-los como instrumentos do interesse geral de uma comunhdo solidéria significaria, na melhor das hipoteses, tomar o “dever” pelo “ser”, ver o ideal em vez da realidade e, ‘em regra geral, idealizar, isto é, tentar justficar a realidade por motivos politicos. Além disso, o ideal de um interesse geral superior e transcen- dente aos interesses dos grupos e, portanto dos partidos, o ideal de uma solidariedade de interesses de todos os membros da coletividade sem distingio de credo, de nacionalidade, de classe, etc., € uma ilusio ‘metafisica; mais claramente falando, esse ideal € uma ilusto que chama- remos de “metapolitica”, que se costuma expressar, geralmente, com uma terminologia extremamente escura de um ser “organico” coletivo ou de uma estrutura “organica” desse ser, ¢ se ope ao chamado Estado de partidos, a democracia mecinica. Mas quando se trata de dizer quais os ‘grupos sociais que deveriam substituir os partidos politicos como autores da formagéo da vontade do Estado, aparece logo 0 cardter bastante problematico de toda esta argumentacdo dirigida contra os partidos politicos. Sé falta, em efeito, atribuir aos agrupamentos de profissionais 0 papel que atualmente desempenham os partidos. O carter desses grupos, ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 75 cuja importancia politica tentaremos estabclecer a seguir, ébaseado sobre ‘um interesse além do que se encontra no cardter dos partidos politicos; eles tém interesses comuns que no podem ser sendo materiais!8. Dada a oposigio dos interesses, que conhecemos por experiéncia ¢ que aqui € inevitével, a vontade geral, se nao deve expressar exclusivamente 0 interesse de um s6 grupo, s6 pode ser a resultante do compromisso ou acordo entre interesses opostos. A formagio do povo em partidos politicos 6, na realidade, uma organizagio necessaria para que esses compromissos possam ser realizados,a fim de queavontade geral possa andar ao longo de ‘uma linha média. A hostilidade formagéo dos partidos ¢, portanto, em {iltima anilise, a democracia, serve — consciente ou inconscientemente~ as forcas politicas que visam o dominio absoluto dos interesses de um s6 grupo € que, no mesmo grau em que estdo dispostas a tomar conta dos interesses opostos, procuram dissimulara verdadeira natureza dos interes- ses que elas defendem, sob a qualificacio de interesse coletivo “organico”, “verdadeiro”, “bem entendido”. A democracia, justamente porque, como Estado de partidos, deseja que a vontade geral seja somente aresultante da vontade dos proprios partidos, pode renunciar ao fingimento de uma vontade geral “organica”, superior aos partidos. Uma evolugio irresistivel leva, em todas as democracias, a uma ‘onganizagio do “povo” em partidos. Seria mais exato ainda dizer que, jé {que no primeiro momento nao existe um “povo” como poténcia pratica, a evolugio democritica faz com que a massa dos individuos isolados se agrupe e se constitua em partidos politicos desencadeando todas aquelas forcas sociais que, de qualquer maneirz, possam ser chamadas de “povo”” Se as constituigdes das republicas democraticas, ainda influenciadas pela monarquia constitucional neste ponto assim como sob outros aspectos, no reconhecem juridicamente os partidos politicos, isto nao mais pode ‘atestar ~ como na monarquia constitucional ~ a vontade de impedir a realizagéo da democracia, mas pode sers6 resultado de uma insensibilidade aos fatos. Se a Constituigio consagra a existéncia dos partidos politicos, torna-se ainda possivel democratizar, dentro desta esfera, a formagio da vontade geral. Isto é tanto mais necessério porque, possivelmente, € justamente a estrutura amorfa desses estratos que favorece o caréter netamente aristo- autocritico dos processos seguidos na formacao da vontade comum!9. E {sto mesmo nos partidos que tem um prognuna ulurademocritico: A realidade da vida dos partidos, nos quais podem destacar-se personalida- des notaveis de lideres mais vigororamente que nos limites de uma Constituigio democratica; esta vida dos partidos, entio, onde ainda funciona a chamada “disciplina de partido”, geralmente oferece a0 individuo uma autonomia democritica bastante escassa, enquanto na relagdo entre os partidos, isto é, na esfera de formacio da vontade 76 ARQUIVOS parlamentar, nfo se pode pensar seriamente em uma andluga distiplina de Estado. as escinsplings A importancia da transigo da nogfo ideal iquela real de “povo” nao é assim, menos profunda que a metamorfose da “liberdade” natural em “liberdade” politica. Deve-se, por isso, admitir que uma enorme distancia separa a ideologia da realidade, ou melhor, a ideologia de sua maxima realizacio possivel. Fica-se assim tentado a ndo considerar como uma simples hipérbole retérica a conhecida afirmagao de Rousseau, segundo a qual no teria nunca existido e nao poderia, noutro lugar, jamais existir democracia no verdadeiro ¢ exato sentido da palavra, a que seria contra a ‘ordem das coisas que 0 maior niimero governasse € que 0 menor fosse governado® Mas essa reducio da liberdade natural a uma autonomia politica por decisto majoritiria, ¢ da nogio ideal de povo ao niimero ainda mais es- treito dos titulares dos direitos politicos que se valem desses seus direitos, ‘do indica ainda 0 término das limitagbes que a idéia democratica deve sofrer na realidade social. De fato, s6 na democracia direta - que, com as dimensdes do Estado moderno e a multiplicidade de suas incumbéncias, nndo mais representa uma forma possivel de democracia ~ a ordem social fica realmente criada pelas decisbes da maioria dos titulares dos direitos politicos, os quais exercem seus direitos na Assembléia do povo. A democracia do Estado moderno ¢ a democracia indireta, parlamentar, na qual a vontade geral diretiva nao é formada sen3o por uma maioria de leitos da maiotia dos titulares dos direitos politicos. Os direitos politicos ~ vale dizer, a liberdade -reduzem-sea um simples direito de voto. De todos 0s elementos, até agora considerados, que limitam a idéia de liberdade e, com isso, a da democracia, o parlamentarismo talvez seja o mais impor- tante. Esse € o elemento que & preciso compreender antes de tudo se se deseja apreender a esséncia real daqueles grupos sociais que hoje sio considerados como democracias. III. © PARLAMENTO Aluta desenvolvida contra autocracia no final do século XVIIT¢ inicio do XIX foi, em esséncia, uma luta pelo parlamentarismo2!. De uma constituiclo que desse a representacéo popular uma parte decisiva na formacdo da vontade do Estado, que desse fim ditadura do monarca absoluto ou aos privilégios consagrados do sistema das ordens, esperava-se entao todo progresso possivel que pudesse ser imaginado assim como a formacéo de uma ordem social justa, isto 6, a aurora de uma era nova e melhor. O parlamentarismo, forma politica dos séculos XIX e XX, podia sem duivida reivindicar & sua atividade resultados realmente importantes, ‘ais como a emancipagdo completa da classe burguesa mediante a supressio st. pilin eerie atte UNS ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 77 dos privilégios: posteriormente, reconhecimento da igualdade dos direitos politicos do proletariado ¢, com isso, o inicio da emancipacio moral € econémica dessa classe ante a classe capitalista. Apesar disso, ele nao obtém inteiramente um juizo favorivel por parte dos historiadores e escritores, politicos contempordneos. As extremas de direitae esquerda pronunciam- se sempre mais decididamente contra essa forma politica eo convitea uma ditadura ou a uma organizacio corporativa é sempre mais insistente. E mesmo dentro do interior dos partidos de centro nao se pode deixar de observar um certo esfriamento nos corfrontos do antigo ideal. Hoje~ nao se pode ocultar ~ esté-se um pouco cansado do Parlamento, mesmo se atualmente nio seja ainda o caso de falar ~como fazem alguns autores =de uma “crise”, de uma “faléncia” ou abertamente de uma “agonia” do parlamentarismo. Certamente, na segunda metade do século pasado, a eficacia do principio parlamentar foi posta em duivida. Todavia, na monarquia constitucional, tais tendéncias antiparlamentaristas nio poderiam adquirir ‘muita importincia. Perante 0 progresso lento mas constante do movi- ‘mento democritico, que encontrava seu principal apoio no Parlamento, aquelas tendéncias nao surtiram efeito. Mas a situacdo tona-se um tanto di ferente quando, como hoje, o parlamentarismo € questionado enquanto 0 principio parlamentar exerce um dominio absoluto e ilimitado. Para as tepublicas democrata-parlamentaristas, o problemado parlamentarismoé ‘uma questo essencial. A democrada modema vivera somente se 0 parlamentarismo se revelar um instrumento capaz de resolver as questdes sociais do nosso tempo. E certo que democracia e parlamentarismo nao sio idénticos. Mas uma vez que para 0 Estado moderno a aplicacto de uma democracia direta é praticament= impossivel, ndo se pode duvidar seria- ‘mente que o parlamentarismo nao sejz a tinica forma real possivel daidéia dademocracia. Por isso, o destino do parlamentarismo decidiré também 0 destino da democracia. ‘A chamada crise do parlamentarismo nao é, afinal, o resultado de uma interpretacio inexata desta forma politica e, portanto, de um falso juizo do seu valor. Qual é porém, a esséncia do parlamentarismo? Ela ¢ uma cesséncia abjetiva, que nao deve confundir-se com a interpretacio subjetiva ‘que procuram fazer prevalecer, por motivos conscientes ou inconscientes, aqueles que participam das instituigdes ou que estdo interessados nelas. 0 parlamentarismo éformagio da vontade diretiva do Estado através de um, “Srgio colegiado eleito pelo povo na base do sufragio universal e igualitario, isto é, democratico, segundo o principio da maioria. Se se deseja familiarizar-se com as idéias que determinam o sistema parlamentar, perceber-se-A que a idéia que aqui domina €a da autonomia democritica, portanto, a da liberdade. A luta pelo parlamentarismo foi uma luta pela liberdade politica. Isto se esquece facilmente quando, como 78 ARQUIVOS hoje, sdo formuladas criticas, sob muitos aspectos injustas, do paslamenta~ rismo. Uma vez obtida a liberdade, jé tornada evidente e por isso mesmo do mais apreciada, mas garantida exclusivamente pelo parlamentarismo, pensa-se em poder renunciar a ela como medida dos valores politicos. Masa idéia de liberdade é € permanece a eterna “dominante” fundamental de todas as especulagbes politicas, embora ela seja ~ ou mesmo porque nela std sua esséncia mais profunda — a negagio absoluta do “social” e do “politico” e, por assim dizer, o contraponto de toda teoria social e de toda praxe politica. Justamente por isso ~como ja vimos ~ a liberdade nao pode inserit-se apenas na esfera do social ou do politico-social, mas deve amalgamar-se com certos elementos a ela estranhos. Pode dizer-se outro tanto do principio do parlamentarismo, onde a liberdade aparece combinada com dois elementos que obstaculizam sua forca original: um deles € constituido pelo principio maiorista, do qual ja estudamos a relacdo com a idéia de liberdade e do qual deveremos determinar postetiormente a fungdo real no sistema parlamentar; 0 outro, por sua vez, que resulta de uma analise do parlamentarismo, é represen tado pela formagio indireta da vontade, pela qual a vontade do Estado no mais € obra direta do povo, mas de um Parlamento que, por outra parte, € leito pelo povo. Neste ponto, a idéia de liberdade como idéia de autodecisio a necessidade inelutavel de uma divisio do trabalho de acordo ‘com uma diferenciagio social; com uma tendéncia, portanto, oposta a0 ‘ardter fundamentalmente primitivo da idéia de liberdade. A idéia de liberdade, considerada em si, exigiria que a exclusiva vontade do Estado, ‘em todas suas diversas manifestacdes fosse formada imediatamente por ‘uma tinica e mesma assembléia de todos 0s cidadios que tivessem direito a voto. Toda diferenciagio do organismo estatal baseada na divisto do trabalho, a transferéncia de uma funcio estatal qualquer a um drgio que no seja 0 povo, significa necessariamente uma restrigio a liberdade. © parlamentarismo apresenta-se, pois, como um acordo entre a cexigncia democratica de liberdade e o principio ~ causa de diferenciagdo € condicionante de todo progresso técnico-social ~ da distribuicio do wabalho. Certamente, procura-se dissimular 0 golpe inesquecivel que é desferido na idéia democritica pelo fato de que, em vez do povo, é um orgio muito diferente dele, mesmo se eleito pelo proprio povo, 0 Parlamento, que forma vontade da Fstado. Sem divida, por um lado, no se podia aceitar seriamente, pela complexidade das relagdes sociais, a forma primitiva da democracia direta,jé que no era possivel se renunciar as vantagens da divisto do trabalho. Quanto maior for a coletividade statal, tanto menos o “povo” parece estar ém condigdes de desenvolver imediatamente a atividade realmente criadora da formagio da vontade do Estado, tanto mais ele é constrangido, mesmo que por razdes técnicas,a se ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 79 limitar a criar ¢ controlar 0 verdadeiro aparelho da propria formagio da vontade estatal. Mas, por outro lado, procura-se criar a ilusio de que, tam- ‘bem no parlamentarismo, aidéia de liberdade democritica es6'ela éexpres- sa integralmente. Recorre-se, para esse fim, & hipocrisia da representagao, a integralmente. Recorre-se, para esse fim, a hipocrisia da representacio, & isto é, de que o Parlamento seja s6 um representante do povo, que o povo possa expressar sua propria vontade somente no Parlamento e através do Parlamento, embora no principio parlamentar, em todas as constitui- Bes, esteja em vigor exclusivamente a norma de que os deputados nao podem receber instrugbes obrigat6rias dos proprios eleitores, o que torna ‘0 Parlamento, no exercicio de suas fungbes, juridicamente independente do povo%, Além do mais, com essa declaragio de independéncia do Parla- ‘mento com relagio ao povo, nasce o Parlamento modemo, que se afasta da instituigao andloga dos Estados antigos, cujos membros estavam notori- amente presos 20s mandatos imperativos do seu grupo de eleitores e eram responsiveis nos seus confrontos. A hipocrisia da representacdo deve legitimar o Parlamento do ponto de vista da soberania popular. Mas esta evidente hipocrisia, destinada a dissimular o grande golpe essencial que se insere no principio de liberdade do Parlamento, ofereceu aos adversarios da democracia 0 argumento para afirmarem que a propria democracia se baseava sobre uma evidente falsidade, Assim, a hipoctisia da representa- 0, com 0 andar do tempo, néo mais esta em condigdes de cumprir sua verdadeira e real tarefa, aquela de justificar o Parlamento do ponto de vista da soberania popular; tal hipocrisia tem, contudo, cumprido uma tarefa diferente daquela a que era destinada originalmente: tem mantido 0 movimento politico dos séculos XIX e XX, que se produzia sob a forte pressio da idéia democratica, ao longo de uma razoavel linha média. Fazendo acreditar que a grande massado povo se determina politicamente sno Parlamento eleito, ela tem impedido uma exageragao da idéia politica na realidade; uma exageragio que teria representado um perigo para 0 progresso social, porque teria andado necessariamente conjuntamente com uma primitivizagio antinatural da técnica politica. (© caréterfictico da idéia da representacio nao chamou, naturalmente, aatencdo enquanto durou a luta da democracia contra aaristocraciae até o proprio parlamentarismo nio ter obtido total ascendéncia sobre o monar- caeas ordens. Sob a monarquia constitucional, até quando o Parlamento eleito pelo pove devia ser considerado come omiximo que, politicamente, podia tirar-se do monarca, anteriormente absoluto, nao tinha sentido riticar essa forma politica questionando se 0 Parlamento realmente representaria a vontade do povo. Mas no 36 0 principio parlamentar ~ particularmente nas repiblicas ~ teve um completo triunfo, nao so a ‘monarquia constitucional foi sucedida pela supremacia do Parlamento que invocava o prindpio da soberania popular, mas também ndo era mais 80 ARQUIVOs possivel livrar da critica a grosseira hipocrisia contida na teoria — ja ropagada na Assembléia Nacional Francesa de 1789 — segundo a qual, o Parlamento, em sua esséncia, ndo seria mais do que um representante do ovo, cuja vontade manifestar-se-ia somente nosatos parlamentares. Nao ara se surpreender, portanto, se entre os argumentos que hoje sio utilizados contra o parlamentarismo esta em primeiro lugar a revelacio de que a vontade estatal que se forma através do Parlamento nio é absoluta- mente a vontade do povo, porque, segundo as Constituicdes dos Estados parlamentares, uma vontade do povo ~ prescindindo das eleig6es parla- mentares ~ nao poderia ser formada. Este argumento é exato, mas s6 pode ser utilizado contrao parlamenta- rismo quando se procura legitimar o proprio parlamentarismo com 0 principio da soberania popular, quando se acredita em poder determinar sua esséncia exclusivamente através da idéia de liberdade. Na época, certamente o parlamentarismo teria prometido algo que nao teria podidoe que no terd jamais condigées de manter. Todavia, a esséncia do parlamentarismo, como jé foi antes demonstrado, poder-se-ia determinar, igualmente, sem recorrer 4 hipocrisia da representacio, e seu valor poder ser justificado como um meio especifico técnico-social para a criagio da ordem do Estado. Seo parlamentarismo for concebido como o necessério acordo entre a idéia simplista da liberdade politica e © principio da diferenciacio do trabalho, poder-se-4 também compreender claramente quais diregdes deveria seguir uma eventual reforma do parlamentarismo. Todavia, dever- se-d examinar primeiro também a questdo de se uma eliminacdo completa do parlamentarismo poderia ser encaixada hoje dentro dos limites das possibilidades politicas, isto é, deveria ser examinada que forma poderia encontrar a tentativa de se climinar o Parlamento da organizagio de um Estado moderno. © fato de que ao lado de toda coletividade, com qualquer forma de desenvolvimento técnico, exista alguma coisa similar a um Parlamento, ‘certamente nao é por puro acaso, mas corresponde a uma lei de estrucura dos corpos sociais. Considere-se, pois, de maneira particular, que mesmo fem aquelas que se apresentam como as mais acentuadas autocracias, 0 monarca vé-se obrigado a recorrer ao apoio de uma assembléia de homens {que oassistem através do Conselho do Estado ou outro Sérgio andlogo e que lhe so particularmente necessarios para a preparacio, deliberagdo € aprovacio dos principios e das normas gerais, em seu nome. Se uma coletividade relativamente grande, 0 povo como tal, tomado em seu conjunto, nao esté em condigdes de formar diretamente a vontade geral, tampouco o autocrata tem melhores condigées de fazé-lo, em parte pelas ‘mesmas razdes: falta de conhecimento e de poder, medo da responsabili- ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 81 dade. Que os membros do colégio sejam, em um dos casos, nomeados pelo autocrata ¢, no outro, pelo povo, é sem diivida um fato que tem importincia, porém, mais do ponto de vista da ideologia que do ponto de vista da realidade social, isto €, das reais fungbes que esse drgio exerce. E pois muito importante distinguir quando o mesmo espera uma fungao dcliberativa ou uma fungio consultiva j que, se se considerara substincia dos fatos~a acio psicologica mais do que a forma juridica~no poder ser cestabelecida, algumas vezes, uma grande diferenca entre 0 Parlamento criador de leis € 0 Conselho de Estado de um monarca absoluto. Esta diferenga ndo resultard particularmente relevante se se leva em conta que uma parte importante, embora nao perceptivel externamente, do trabalho legislativo € efetuado, mesmo na democracia moderna, nao dentro dos procedimentos parlamentares, mas no seio do governo, o qual, nas democracias parlamentares, ndo deve fazer menor uso da possibilidade de iniciativa direta ou indireta do que na monarquia constitucional. Tal diferenca sera pois tanto menos relevante se, por outro lado, se levar em conta que a autoridade das personalidades reunidas num Conselho de Estado assegura freqiientemente a esse corpo uma influéncia muito maior sobre o monarca absoluto do que aquela que a Constituicao nao permite ampliar. ‘Que num corpo social tecnicamente evoluido seja formado, ao lado de tum drgao para o governo (e do aparato administrativo a cle subordinado), ‘um 6rgao particular, ou melhor, colegial, para legislacio, parece ser uma necessidade da evolucdo social, nccessidade que resulta da natureza do processo de formagio da vontade do Estado. Supde-se, com relacdo a isto, que o fendmeno comumente chamado, com uma metafora, “vontade” da coletividade (em geral) ¢ do Estado (em particular) néo seja um dado psiquico ¢ real, j4 que, em sentido psicoldgico, somente existe vontade individual?S. A chamada “vontade” do Estado nao passa de uma expressio antropomorfa usada para indicar a ordem ideal da comunidade, a qual € constituida por uma série de atos individuais dos quais ela representa 0 contetido. A ordem da comunidade, enquanto ¢ 0 sentido representado por taisatos, € umn conjunto de normas, de prescrigbes que determinam a conduta dos individuos pertencentes a coletividade € que constituem, Justamente por isso, a coletividade como tal. Os membros da coletividade devem comportar-se de uma determinada maneira: tal € 0 contetido intelectual no qual consiste a ordem coletiva; mas a forma mais clara €, portanto,a mais compreensivel paraagrande massa ~que aquiinteressade ‘maneira particular - expressar esta relacdo puramente espiritual, seria traduzida da seguinte maneira: A coletividade — que se hipostasia em uma pessoa -; isto & o Estado — como homem ou super-homem ~ “quer” que seus membros se comportem de uma determinada maneira. O “dever” da ordem estatal é apresentada como a “vontade” de uma pessoa estatal. A 82 ARQUIVOS “formagao da vontade do Estado” é, portanto, simplesmente o processo de criagio da ordem estatal. Este processo— traco essencial e caracteristico - partindo de uma forma inicial abstrata, muda ~ através de um certo ntimero de estdgios interme- didrios ~ em uma forma concreta do mesmo, de um conjunto de normas gerais para um conjunto de atos individuais emanados do Estado. Trata-se de um proceso ~ totalmente diferente daquele da formagdo da vontade psicolégica do individuo ~de concretizagao ¢ de individualizacio, no qual a Griagdo das normas gerais ¢ abstratas distinguemse claramente daquela das disposigdes concretas ¢ individuais, da emanacio das ordens ¢ das decisdes concretas ¢ individuais. Mostrar a diversidade destas funcdes é um problema da fenomenologia juridica2. Mesmo num grupo social totalmen- te primitivo, estas duas fungdes ou estagios diversos podem ser constata- dos. Deve-se todavia reconhecer desde logo que se chega a idéia de se ‘constituir umn érgio particular para a criagio das nozmas gerais somente ‘quando essa criaglo para de acontecer por pratica inconsciente, habitual dos submetidos as normas, para acontecer, ao invés, através de um procedimento de emanacio consciente. Significaria se ater a um exame muito superficial, ¢ limitado particularmente ao grupo mais primitivo, supor que a vontade coletiva que constitui o grupo social pudesse existir dicta ¢ exclusivamente sob a forma de atos de comando e de constrangi- ‘mento individual. Nao se deve esquecer que uma ordem geral énecessaria ~se nio conscientemente estabelecida, pelo menos existente na consciéncia de todos ou de determinados membros do grupo ~a qual possa permitir 0 funcionamento dos drgios que compdem os atos coletivos individuais. E também nio se deve esquecer que as decisdes dos érgios de um grupo primitivo comportam bastante menos poder discricional que aquelas dos Srgios de um Estado moderno, o qual foge de cada norma geral. Estes érgios sentem-se, ao invés, altamente ligados as normas gerais que so tanto mais eficientes quanto maior for seu cardter magico ou religioso. A coletividade social vive na sua consciéncia ndo tanto através dos atos coletivos quanto através das normas gerais do comportamento reciproco dos individuos. Mas a fungio da criacio das normas gerais sempre teré a tendéncia a criar um 6rgao colegiado ¢ nio individual. A tentativa de climinar completamente o Paslamento do organism do Estado moderno so poderia ter, com 0 transcurso do tempo, um fraco sucesso, No fundo , $6 se questiona de que maneira oParlamento devetia ser convocado, como deveria o mesmo ser compostoe quais deveriam sera natureza ¢ a extensio de sua competéncia. Em efeito, todas aquelas tentativas diretas para uma onganizacio corporativa do Estado ou parauma ditadura s6tém em vista uma pura simples reforma do parlamentarismo, JA que nos seus programas elas néo reclamam a aboligo do mesmo25. “ * ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 83 IV. A REFORMA DO PARLAMENTO. A reforma do Parlamento poderia ser tentada no sentido de um novo reforco ao elemento democratico, Mesmno se nao € possivel, por razdes de indole social, criar a ordem estatal a partir do povo em todos os graus, éainda possivel associar 0 povoa esta ordem em medida muito maior do que se verifica no sistema parlamentar, onde a intervengao do povo ¢ limitada ao ato parlamentar. Nao se pode negar que mais de uma questio encontraria uma solugdo diferente se, em vez de deixar-se a decisio ao Parlamento, 0 povo fosse também consultado sobre a matéria. Se um tal pedido ao povo representa também uma melhora na formacio da vontade do Estado, nao é 0 caso discutilo aqui. Contudo, € bom lembrar, ante a acusagio feita a0 Parlamento no sentido de ser alheio a0 povo, que a instituigdo do referendo, mesmo onde o principio parlamentar seja mantido, ¢ suscetivel de posterior desenvolvimento e deve sé-lo. Seria do intetesse do proprio principio parlamentar que os homens politicos profissionais, que hoje sio parlamentares, renunciassem a sua aversio ~ se isso fosse concebivel instituicdo parlamentar, ¢ que nao sé admitissem ~ como jé acontece em algumas Constituicdes modernas ~ c chamado referendo constitucional, mas também um referendo legislativo, se nao obrigatério, pelo menos facultative. A experiéncia ensina que, desta maneira, é preferivel fazer 0 ovo votar sobre um texto simplesmente votado no Parlamento do que sobre uma lei jé publicada e em pleno vigor. Certas condigdes de recurso. a ‘uma voracio popular jé deram provadisto: casos de conifito entre as duas (Camaras, proposta do chefe do Estado ou de uma minoria. Se tem que ser levada em conta a tendéncia cada vez mais marcada de se fazer com que o povo realmente exerca influéncia na formagio da vontade do Estado, influéncia 0 mais direta que for possivel, seria necessario, no caso do plebiscito, condenar tum projeto jé adotado pelo Parlamento, dissolver 0 proprio Parlamento para constituir, mediante novas eleigBes, um Parla- ‘mento que, mesmo nao expressando sempre a vontade do povo, nio seja ‘oposto a ela. Entre as instituigdes que, mesmo enquadradas no principio parlamen- ‘ar, ainda permite uma certa ingeréncia direta do povo na formacao da vontade do Estado, figura a chamada iniciativa popular, pela qual um certo ‘nlimero minimo de cidadaos pode propor um projeto delei cujo conteado sera deliberado pelo Parlamento. Esta instituigao também deveria ser considerada com maior freqincia do que até hoje fizeram as antigas constituigdes ou as novas o fazem hoje em dia. Seria necessério, com relado a isto, faclitar a0 maximo, do ponto de vista técnico, a atuacao da solicitacio de plebiscito, enquanto a iniciativa nao exigir a formulacao de ‘um projeto de lei, mas s6 a indicagio de diretrizes de cardter geral. Se os 84 ARQUIVOS clcitorcs nio tém o dircito de dar insu uydes ubrigatorias aos seus homens de confianca no Parlamento, dever-se-ia deixar ao povo a possibilidade de, pelo menos, dar sugestées que permitam ao Parlamento orientar sua propria atividade legislativa. Nao & mais possivel pensar, certamente, num retorno do mandato imperativo na sua antiga forma?6; mas as inegaveis tendéncias que hoje se -manifestam nesse sentido podem, até um certo grau, ser levadas a formas compativeis com a estrutura do organismo politico modemo. Ja a introduco do sistema proporcional tornou necessitia uma organizagio de partido mais rigida da que exigiria o simples sistema da maioria. £ por isso que hoje nao € mais possivel rejeitar categoricamente a idéia de um controle permanente dos deputados por parte dos grupos de cleitores, constituidos em partidos politicos. A possibilidade de realizar juridica. mente este controle, existe. E um contato permanente, estabelecido entre 0s deputados ¢ 0 corpo eleitoral, e garantido pela lei, poderia reconciliar as ‘massas com o principio parlamentar. A irresponsabilidade do deputado perante seus eleitores, que é sem diivida uma das causas essenciais do descrédito em que atualmente caiu a instituigdo parlamentar, néo éinteira- mente, como transpirava da doutrina do século XIX, um elemento necessirio. Assim, mesmo nas Constituigdes dos dias atuais, existem disposigBes que merecem ser consideradas e que sao passiveis de desenvol- vimento. Inicialmente, contudo, seria necessario fazer desaparecer, ou pelo ‘menos limitar, essa irresponsabilidade do deputado chamada “imunida- de”, irresponsabilidade nao perante os eleitores, mas perante a autoridade do Estado e, em particular, perante os tribunais, a qual sempre tem sido a fortaleza do sistema parlamentar. Que um deputado possa ser perseguido pelos tribunais e, particularmente, preso por um delito cometido, somente com o consentimento do Parlamento, ¢ um privilégio que remonta 4 época damonarquia feudal, isto €, a época em que a oposicao entre Parlamento e governo real cra a mais encarnicada. Tal privilégio pode chegar a ser Justificado também sob a monarquia constitucional, quando 0 conflito entre Parlamento ¢ governo ainda existia, embora sob outro aspecto, € quando — embora.a independéncia dos tribunais o atenuasse consideravel- ‘mente ~ no estava totalmente eliminado o perigo de que os deputados fossem tirados de suas fung6es parlamentares por um governo que podia abusar do poder. Mas numa republica parlamentar, onde o governo nao & ‘outra coisa que uma comissio do Parlamentoe submetido ao controle mais igoroso da oposicio, além da de toda a opiniéo publica, e onde a independéncia dos tribunais certamente nao é menos garantida do que sob a monarquia constitucional, querer proteger o Parlamento de sua autori- dade € um contra-senso. Tal privilégio nfo pode nem mesmo ser seriamente considerado como um meio de prote¢do da minoria contra 0 ESSENCIA E VALOR DA DEMOCRACIA 85 arbi da maioria, uma transtormagdo de significado que sofreram, na epublica democratica, algumas instnuicdes herdadas da monarquia consttucional. Na realidade, esta protero da minoriaéimpossivel enquan- toa maioria puder decidir entregar o deputado incriminado a autoridade ue © solicitar. Ndo € encontrado nenhum caso que possa legitimar a Pretensio de uma protecéo, especialmente ao se considerar que no privilégio da imunidade, na pratica,ndo se tratade outra coisa que de uma limitag4o, sem nenhuma justificacio, da protegio juridica da honra dos

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