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ANDRE see MALRAUX O MUSEU IMAGINARIO ska (1901-1976) antes demalsoramancisla das grandes crises do séculs 2%, ccloca aio sou enero do escrior ao senigo da ase da fargo {ue e museu passou representa ra vgurazao date @ de que forma esta Instuigsc atorouarocsn pacopgt das obras os ara scalments pienso ‘om 3947, depois er 1981, com aul “Les You du stone’ esta eos ‘correspon A verso eva © uireniada em 1963, ¢ puted em T9S6, 0°" TITULO ORIGINAL Le Musée Imaginaire © Editions Gallimard 1965 ANDRE MALRAUX O MUSEU IMAGINARIO TRADUCAO Isabel Saint-Aubyn DESIGN DE CAPA FBA Na contracapa: Arte grega, escola de Rodes, Vitoria de Samotracia (pormenor). Inicio do século II a. C. Paris, Museu do Louvre. Marmore de Paros Foto Arquivos Gallimard. DEPOSITO LEGAL N° 326456/11 Biblioteca Nacional de Portugal - Catalogagao na Publicagao MALRAUX, André, 1901-1976 O museu imaginario. - Reimp. - (Arte & comunicagao ; 70) ISBN 978-972-44- 1647-2 CDU 069 PAGINACAO, IMPRESSAO E ACABAMENTO PAPELMUNDE para EDICOES 70, LDA. Abril de 2011 ISBN da 1!" edig&o: 972-44-1034-X Direitos reservados para Portugal EDICOES 70, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 123 ~ 1° Esq® i 1069-157 Lisboa / Portugal : Telets,: 213190240 — Fax: 213190249 al(@edicoes70.pt e-mail: ge www.edicoes70.pt Esta obra esta protegida pela lei. Nao pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocopia e xerocépia, sem prévia autoriza¢ao do Editor. Qualquer transgressdo 4 lei dos Direitos de Autor sera passivel de procedimento judicial. A Madeleine 1 Veneza, sala do Museu Correr. INTRODUCAO Um crucifixo romanico nfo era, de inicio, uma escultu- ra; a Madona de Cimabue nfo era, de inicio, um quadro; nem sequer a Atena de Fidias era, de inicio, uma estatua. O papel do museu na nossa relag¢&o com as obras de arte é tao consideravel que temos dificuldade em pensar que ele nao existe, nunca existiu, onde a civilizagio da Europa moderna é ou foi ignorada; e que existe entre nds ha menos de dois séculos. O século x1x viveu dos museus; ainda vivemos deles, e esquecemos que impuseram ao es- pectador uma relac&o totalmente nova com a obra de arte. Contribuiram para libertar da sua fun¢gio as obras de arte 2. Téniers, O Arquiduque Leopoldo Guilherme na sua Galeria de Pintu- ras, por volta de 1647. Madrid, Museu do Prado. yue reuniam, para transformar em quadros até mesmo os ‘etratos. Se o busto de César, a estatua equestre de Carlos V, uinda sfo César e Carlos V, 0 duque de Olivares é sim- slesmente Velazquez. Que nos importa a identidade do Yomem do Capacete, ou do Homem da Luva? Chamam-se Rembrandt e Ticiano. O retrato comega por deixar de ser » retrato de alguém. Até ao século xix, todas as obras de urte eram a.imagem de algo que existia ou ndo existia, an- ‘es de serem. obras de arte: S6 aos olhos do pintor a pintura 2ra pintura; e, muitas vezes, era também poesia. E o mu- 3eu suprime de quase todos os retratos (mesmo sendo eles je um sonho), quase todos os modelos, ao mesmo tempo yue extirpa a funcfo as obras de arte: nao reconhece Pala- lio, nem santo, nem Cristo, nem objecto de veneragdo, de semelhanga, de imagina¢do, de decora¢gdo, de posse; mas ypenas imagens de coisas, diferentes das préprias coisas, 2 retirando desta diferenga especifica a sua razfo de ser. J museu é um confronto de metamorfoses. Se a Asia s6 recentemente conheceu a existéncia de nuseus, sob a influéncia e a direcg4o dos europeus, é por- jue, para o asiatico, sobretudo para o cidadao do Extremo Oriente, contemplac4o artistica e museu eram inconcilia- veis. Na China, a frui¢ao das obras de arte comecou por 2star ligada 4 sua posse, excepto quando se tratava de arte religiosa; e, acima de tudo, estava ligada ao isolamento. As pinturas nio eram expostas, mas mostradas, uma a ima, a um apreciador em estado de graga, contribuindo sara alimentar ou aprofundar a comunhi4o com o mundo. Confrontar pinturas, operacdo intelectual, opde-se com- oletamente ao abandono que so a contemplag¢do asiatica | oermite; aos olhos da Asia, o museu, se nao for um local de ensino, sé pode ser um concerto absurdo em que se sucedem e misturam, sem entreacto e sem fim, melodias contraditérias. Ha mais de um século que a nossa convivéncia com a arte n&o cessa de se intelectualizar. O museu impéde a discussio de cada uma das representagdes do mundo nele reunidas, uma interrogacéo sobre o que, precisamente, as reine. Ao «prazer do olhar, a sucessfio e a aparente contradi¢do das escolas vieram acrescentar a consciéncia de uma busca apaixonada, de uma recria¢do do universo frente 4 Cria¢4o. Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada ideia do homem. Mas os nossos conhecimentos s4o mais extensos do que os nossos museus; 0 visitante do Louvre sabe que n4o encontra ali significativamente nem Goya, nem os grandes ingleses, nem a pintura de Miguel Angelo, nem Piero della Fran- cesca, nem Griinewald; dificilmente Vermeer. Onde a obra de arte nao tem outra fun¢do sendo a de ser obra de arte, numa época em que a explorac¢4o artistica do mundo prossegue, a reuniao de tantas obras-primas, e a auséncia de tantas outras obras-primas, convoca, em imaginac4o, todas as obras-primas. Como poderia este possivel muti- lado nao apelar para todo o possivel? De que é que 0 museu esta inevitavelmente privado? Até agora, dos conjuntos de vitrais e de frescos; do que nao é transportavel; do que nao pode ser facilmente ex- posto, os conjuntos de tapegarias, por exemplo; do que n&o pode adquirir. Mesmo envolvendo o emprego perse- verante de meios imensos, 0 museu decorre de uma su- cessdo de felizes acasos. As vitérias de Napole4o nao lhe permitiram transportar a Capela Sistina para o Louvre, assim como nenhum mecenas levara para o Metropolitan Museum o Portal Régio de Chartres, os frescos de Arezzo. 11 Do século xvi ao século xx, transportou-se tudo o que podia ser transportado; venderam-se, pois, mais quadros de Rembrandt do que frescos de Giotto. E o museu, que nasceu quando sé o quadro de cavalete representava a pin- tura viva, é um museu nao da cor, mas dos quadros; nao da escultura, mas das estatuas. A viagem de arte completa-o, no século xix. Mas, a Spoca, quantos artistas conhecem o conjunto das grandes obras da Europa? Gautier visitou a Italia (sem ir a Roma), 10s 39 anos; Hugo, na sua infancia; Baudelaire, Verlaine, aunca. E a viagem a Italia era ja uma tradic&o! Visitavam- -se certas regides da Espanha e da Alemanha, talvez da Holanda; muitas vezes, conhecia-se a Flandres. A atenta fila de apreciadores que se comprimia no Salado, publico da melhor pintura da época, vivia do Louvre. Baudelaire nao conheceu as principais obras de Greco, nem de Miguel Angelo, nem de Masaccio, nem de Piero della Francesca, aem de Griinewald, nem de Ticiano, nem de Hals — nem de Goya, apesar da Galeria de Orledes... Les Phares (‘) comegam no século xv. O que vira ele? O que haviam visto, até 1900, aqueles cujas reflexSes sobre a arte permanecem, aos nossos olhos, reveladoras ou significativas, e que admitimos falarem das mesmas obras que nos, guiar-se pelas mesmas referéncias que nds? Dois ou trés grandes museus, e a as fotografias, eravuras ou copias de uma pequena parte das obras-primas da Europa. A maior parte dos seus leitores viu ainda me- nos. Dos conhecimentos artisticos fazia, entao, parte uma zona vaga, que decorria do facto de o confronto de um Cy Alusao a Les Phares (Os Farois), Spleen et Idéal, poema de Charles Baudelaire incluido em As Flores do Mal. quadro do Louvre com um quadro de Florenga, Roma ou Madrid ser o confronto de um quadro com um recorda¢ao. A meméoria Optica nfo é infalivel e, muitas vezes, varias semanas separavam os sucessivos estudos. Entre o século xvi e o século xix, os quadros, traduzidos pela gravura, tornaram-se gravuras; haviam conservado (relativamen- te) o desenho, perdido a cor, que fora substituida, nao por cépia, mas por interpretag¢do, pela expressdo a preto e branco; também haviam perdido as dimensées e adqui- rido margens. No século xix, a fotografia a preto e branco limitou-se a ser uma gravura mais fiel. O apreciador de en- tao conheceu as telas como nés conhecemos os mosaicos e Os vitrais até a guerra de 1940... Hoje, um estudante dispde da reprodug¢do a cores da maior parte das obras magistrais, descobre muitas pin- turas secundarias, as artes arcaicas, a escultura indiana, chinesa, japonesa e pré-colombiana das épocas mais an- tigas, uma parte da arte bizantina, os frescos romanicos, as artes selvagens e populares. Em 1850, quantas estatuas estavam reproduzidas? Os nossos albuns encontraram na escultura — que a monocromia reproduz mais fielmente do que reproduz um quadro — o seu dominio privile- giado. Conhecia-se o Louvre (e algumas das suas depen- déncias), que cada um recordava como podia; hoje, dis- pomos de mais obras significativas, capazes de colmatar as falhas da memoria, do que as que um grande museu é capaz de conter. Na verdade, criou-se um Museu Imaginario, que vai aprofundar ao maximo o incompleto confronto imposto pelos verdadeiros museus: respondendo ao apelo por estes lancado, as artes plasticas inventaram a sua imprensa. 13 Respondendo ao apelo dos verdadeiros museus — que, por sua vez, respondia ao dos verdadeiros criadores... A arte que reclama e exige esta vasta ressurrei¢do nao é a que mais facilmente podemos definir; é a nossa, e para distinguir o exterior de um aquario é preferivel n&o ser peixe. As artes que 0 museu ressuscitou assemelham-se, mas o seu dominio é mais vasto; as artes que 0 museu matou assemelham-se, mas 0 seu dominio é mais comple- xo do que o de cada um deles. E a vitoria de Piero della Francesca sobre Van Dyck, a de Greco sobre Murillo, a dos mestres de Chartres e da Acrépole sobre os escultores alexandrinos, todas elas contemporaneas da de Cézanne sobre os pintores oficiais, levam-nos a descobrir que, se a arte moderna e o Museu Imaginario encontraram na arte oficial, e mesmo na «estética do passado», poderosos ad- versarios, foi essencialmente por esta arte e esta estética se legitimarem num sentimento geral: no desejo de todos aqueles que, da pintura, esperavam apenas espectdaculos privilegiados. Os artistas europeus, na Italia como na Flandres, na Alemanha como na Franga, haviam procurado durante cinco séculos — do século x1 ao século xvi — libertar-se cada vez mais da expressdo reduzida a duas dimensé6es, 1S e daquilo que consideravam a inabilidade ou a ignorancia dos seus antecessores. (A arte do Extremo Oriente, gra- cas a escrita ideografica executada a pincel duro, atingira muito mais rapidamente o dominio dos seus meios.) No século xvi, tinham descoberto a representagdo da matéria e da profundidade, a ilusao do espac¢o. A descoberta técnica decisiva coube, sem duvida, a Leonardo. Em todas as pinturas anteriores, vasos gre- gos ou frescos romanos, Bizancio, Oriente, primitivos cristaos de todas as nagées, os Flamengos como os Flo- rentinos e os Renanos como os Venezianos, quer pin- tassem frescos, miniaturas ou dleos, todos os pintores desenhavam «os contornos». Esbatendo estes contornos, relegando os limites dos objectos para um longe que ja nao era o local abstracto da perspectiva anterior — a de Uccello, de Piero havia acentuado a independéncia dos objectos, mais do que a atenuara —, para um longe dilui- do pelos azuis, Leonardo criou, sistematizou ou impés, alguns anos antes de Jerénimo Bosch, um espacgo nunca dantes visto na Europa, e que nao se limitava a ser o local dos corpos, mas que, como 0 tempo, também atraia personagens e espectadores, fluia para a imensidade. To- davia, este espago nao é um vazio, e até a sua transparén- cia é pintura. Foi necessario o esbatido para que Ticiano quebrasse a linha de contorno, para que pudesse surgir o gravador Rembrandt. Mas, a época, em Italia, bastava adoptar a técnica de Leonardo, e o que outros pressenti- ram ou descobriram — sobretudo pela supress4o da trans- figuragao e da inteligéncia que aquela exprimia —, para que parecesse estabelecer-se um acordo entre a visdo comum e 0 quadro, para que a figura parecesse liberta da pintura. Se, para um espectador avido de ilusdes, uma forma de Leonardo, de Francia ou de Rafael fora mais «parecida» do que uma forma de Giotto, de Botticelli, nenhuma forma nos séculos que se seguirao a Leonardo 3. Filippo Lippi, Madona (pormenor). Floren¢a, Museu dos Oficios. 4. Leonardo da Vinci, Gioconda (pormenor). Paris, Museu do Louvre. sera mais parecida do que as suas: sera simplesmente diferente. O poder de ilus&o que fornecia ao pintor, num momento em que a Cristandade enfraquecida, em breve dividida, deixava de submeter o testemunho do homem A invencivel estilizagao que é a presenga de Deus, iria orientar toda a pintura. ; Talvez nfo seja por acaso que, entre todos os grandes pintores, aquele que exerceu uma influéncia mais extensa e menos especifica tenha sido um dos raros para quem a arte ndo constituiu uma obsessdo exclusiva, nem toda a sua vida... Quando, no século xvi, o academismo antigo, ressusci- tado, parecia proclamar o valor artistico do desejo, o mun- do cristo, e sobretudo a Italia, com algumas recaidas, escapou ao sagrado e ao demoénio. A «divina propor¢ao» que ordena os elementos do corpo humano tornara-se lei, e esperava-se que as suas medidas ideais regessem as ima- gens, em harmonia, de resto, com 0 movimento dos pla- netas... Quando Nicolau de Cusa proclamou «Cristo é o homem perfeito», encerrou-se um ciclo cristéo, ao mesmo tempo que se encerravam as portas do inferno; puderam, entao, nascer as formas de Rafael. A Italia e a Flandres consideravam-uma evidéncia que um dos meios privilegiados da arte era proporcionar a ilusdo das coisas representadas. Mas a Italia reivindicou mais a ilusao de um mundo idealizado do que a imitacdo da realidade; a sua arte, to ciosa dos meios de imitacdo, e que tanto se empenhava em «imprimir movimento» As fi- guras, pretendeu ser simultaneamente reveladora do irreal € a expressdo mais convincente de uma imensa ficc4o — do imaginario harmonioso. A fic¢ao comega sempre por: «Suponhamos que...». O Cristo de Monreale n&o fora uma suposic¢ao, mas uma afirma¢ao. O David de Chartres nao fora uma suposi- ¢ao. Nem 0 Encontro na Porta Dourada de Giotto. Uma Virgem de Lippi, de Botticelli, comegava a sé-lo; a Vir- gem nos Rochedos, A Ceia de Leonardo foram contos sublimes. ; Mas, até ao século xvi, o progresso da ilusio estivera sempre ligado a criag&o e ao desenvolvimento de um es- tilo. Se as deusas arcaicas da Grécia tinham sido menos ilusérias do que as do estilo severo, e estas menos do que as jovens de Fidias; as figuras de Giotto menos do que as de Masaccio, as de Masaccio menos do que as de Rafael, os espectadores tinham facilmente confundido a forga da ilusdo do seu autor com o seu génio, baseado este génio nesta forga da ilus&o. A histéria da arte imposta 4 Europa pela Italia sugere-nos a das ciéncias aplicadas: nenhum pintor, nenhum escultor do passado foi preferido aos do presente antes da rivalidade entre Leonardo, Miguel An- gelo e Rafael, e depois Ticiano, isto é, antes da aquisicao das técnicas da ilusfo. Giotto, ou mesmo Duccio, eram | venerados como precursores; mas, antes do século XIX, |” quem. teria confessado preferir as suas obras as de Rafael? Seria como preferir o carrinho de m4o ao aviao. Além disso, ninguém preferira os Gaddi a estes: a historia da arte italiana era a dos sucessivos descobridores, rodeados de discipulos. Ora, a linguagem das formas de Fidias ou do frontéo de Olimpia revelara-se tédo especifica como a dos mes- tres sumérios ou de Chartres, porque fora, como ela, a de uma descoberta. A sua histéria, como a da escultura e da pintura italianas, associara a de uma conquista da ilusao a do avan¢o: para o desconhecido. Durante mais de trés séculos, a pintura iria ora manter este poder demiurgico, tornar-se criacio do irreal como fora criagéo dos deuses e depois do mundo de Deus, ora tornar-se um meio de re- presentacio da ficcdo, técnica do quadro vivo imaginario. A frase de Pascal, «quanta inutilidade na pintura que atrai a admiracao pela semelhanga com coisas cujos originals nfo apreciamos nada!» nao é um erro, é uma estética. Todavia, ela exigia mais a pintura de objectos imaginarios que, uma vez tornados reais, fossem belos, do que a pin- tura de objectos belos. Dai, o belo ideal. Deveriamos chamar-lhe belo racional? Desconfiemos dos seus tedéricos. Esse ideal simbolizou menos uma esté- tica entre outras do que a estética dos homens cultos que ndo tinham nenhuma. Ainda a simboliza... Pretendia-se transponivel para a literatura, a arquitectura, ou mesmo — mais prudentemente — para a musica; sobretudo, pretendia sé-lo para a vida. De forma subtil, por vezes. Se um nu grego é mais voluptuoso do que um nu gotico, a Vénus de Milo, animada, seria uma mulher bonita? Este belo era aquele sobre o qual chegaram a acordo os homens cul- tos, indiferentes 4 pintura. Aquele que permitia admirar do mesmo modo quadro e modelo, aquele que Pascal exi- gia, mas que nao exprime de modo nenhum o estilo de Agua-forte de Rembrandt... Um belo segundo o qual uma galeria nao devia ser um conjunto de quadros, mas a posse permanente de espectaculos imaginarios e seleccionados. 19 Na verdade, esta arte, que acaba por ser legitimada pela razao, foi a expressdo do mundo criado para o prazer da imaginagao. A propria ideia de beleza, numa civiliza¢ado que faz do corpo humano o objecto principal da arte, esta ligada ao imaginario e ao desejo, e confunde facilmente as formas admiradas com as formas desejadas. A arte que se reclamava da beleza dirigia-se a ficg¢ao com tanta for¢a quanto a escultura rom4nica se dirigia a fé, mas o publico a quem se destinava confundia Poussin com Le Sueur, e a qualidade do quadro com a do espectaculo representado. Este publico admirou-a por uma operacfo do espirito inversa A que exigira a arte medieval, e que a arte mo- derna exigira. Nunca mais estivera em causa imaginar os precursores de Cristo semelhantes a estatuas-colunas, as- sim como hoje nao imaginamos as banhistas de Cézanne semelhantes 4 imagem que ele nos forneceu. Mas, para o gosto do século xvi, um quadro devia o seu valor es- sencialmente 4 projec¢ao, no imaginario, das formas que figurava; e tanto mais quanto as figuras impusessem uma sugestao precisa. Os meios utilizados eram os susceptiveis de permitir a cena representada, se adquirisse vida, ocupar um lugar privilegiado no universo: no mundo que a arte «rectificara» para suscitar a admiragdo, e que a pintura iria rectificar para suscitar o prazer do apreciador — muitas vezes menos apreciador de pintura do que de ficgfo. E foi assim que as mitologias de Boucher sucederam as de Poussin. Tanto mais facilmente quanto a pintura descobrira outro poderoso dominio do imaginario: o teatro. Este ocupava um lugar cada vez mais importante na vida: na literatura, ocupava o primeiro; nas igrejas, impunha o seu estilo a re- ligiao. O espectaculo sobrepunha-se a missa como a pin- tura se sobrepunha aos mosaicos. Para uma Igreja menos preocupada em exprimir a fé do que em incitar a devogao, que género de pintura teria sido mais eficaz do que aquela que proporcionava a maior ilusdo? Giotto pintara para um povo devoto como teria pintado para S. Francisco de As- sis; a nova pintura ndo se destinava aos santos, e pretendia seduzir, mais do que testemunhar. Dai o caracter furiosa- mente profano desta arte que se desejava pia. As suas san- tas nio eram totalmente santas nem totalmente mulheres. Haviam-se tornado actrizes. Dai também a importancia dos sentimentos e dos rostos: o meio de express&o prin- cipal do pintor passara a ser a personagem. As cenas de género de Greuze eram irmas das cenas religiosas. Assim como 0 gético tardio figurara um vasto mistério, esta pin- tura representava uma vasta 6pera; pretendia-se um teatro sublime. Assim sendo, a estética do sentimento, no fim do século xvm, deu-se bem com a da raz&o: precisava apenas de agradar ao espirito atingindo o coragdo. Stendhal criti- cou o juri do Salado apenas por julgar por sistema — isto é, sem sinceridade; e propés a sua substitui¢aéo pela Cama- ra dos Deputados. Seria o mesmo que propor, um século antes, a sua substituicgdo pela Corte. Para ele, como para os Jesuitas e os Enciclopedistas, a boa pintura era a que agradava a todo o homem sincero e culto; e a pintura agra- dava ao homem sincero e culto, nao na medida em que era pintura, mas na medida em que representava uma ficgao de qualidade. Stendhal apreciava Correggio pela subtileza e pela complexidade da expresso dos sentimentos femi- ninos: a maior parte dos seus louvores aplicar-se-ia, pala- vra por palavra, a uma grande actriz, e alguns a Racine; mas qualquer pessoa indiferente 4 pintura anima instinti- vamente os quadros, e julga-os em fun¢ao do espectaculo que sugerem. E, 1817, Stendhal escreve: «Se tivéssemos de reformular o belo ideal, teria- mos em conta as seguintes vantagens: 1° um espi- rito extremamente vivo; 2° muita gra¢a nos tra¢gos; 3° o olhar brilhante, nico do ardor melancélico das 21 paixSes, mas do arrebatamento da vivacidade. A ex- pressdo mais viva dos movimentos da alma reside no olhar, que escapa a escultura. Assim, os‘olhos moder- sublimes, em particular na express&o intensa da vo- lupia. O patético fortalece-se de verdade patoldogi- ca. Ver, em Santa Maria della Vittoria, em Roma, a nos teriam de ser muito francos; ‘4° muita alegria; 5° um fundo de sensibilidade; 6° uma estatura esbelta e, sobretudo, o ar Agil da juventude.» Acredita atacar David e Poussin e opde um teatro a outro. Barrés, oitenta anos mais tarde, j4 nao se referira ao belo ideal. Mas, concordara com Stendhal, com toda a ideologia para a qual a pintura é fic¢4o e cultura! «Pelo menos, nao hesito em preferir aos primitivos, € mesmo aos pintores da primeira metade do século xvI, um Guido, um Dominiquino, um Guercino, os Carrache e os seus émulos, que nos forneceram pro- fundas e abundantes andlises da paixaio. Compreendo que os arquedlogos se regozijem quando remontam a um Giotto, um Pisano, um Duccio. Acredito que Os poetas, apaixonados pelo arcaismo, e que, dese- josos de atingirem uma maior delicadeza, atrofiam os préprios sentimentos, se deleitem com a pobreza e a mesquinhez desta pobre gente. Mas, aquele que julga por si mesmo, que n4o cede aos preconceitos de escola a favor da sobriedade, nem 4 moda, e que é um amante da alma humana nas suas abundantes va- riedades, reconhecera nos bons exemplares do povo dos museus do século xvm, seres que recebem o seu impulso, nfo do mundo exterior, mas do seu univer- so intimo, e que no se compéem a partir de relevos antigos ou de modelos, mas de acordo com os movi- mentos préprios, dos quais tém uma clara visdo. «... Quanto as paixdes delicadas, estes artistas, desdenhados pelo gosto em voga, sfo muitas vezes célebre estatua de Santa Teresa, de Bernini. E uma grande dama desfalecendo de amor. Pensemos no que pretendiam o século xvi, 0 século xvii, € Stendhal, e Balzac. O pintor situa as suas personagens numa ac- cio em que poder4o transmitir exactamente o que ndés reclamamos de confusio e de fraqueza para sermos impressionados e informados.» Barrés sabe pouco de pintura, mas gosta de quadros. Esta consciente da transformagao sofrida pelo museu. Pe- rante a ressurreicio de Giotto, parece acreditar que um gosto, uma moda, opdem os espectaculos deste aos espec- taculos dos Carrache. Todavia, talvez sinta que se trata de outra coisa: que, para os pintores (e ndo, como escreve, para os poetas), o valor da pintura nado reside na repre- 5. Bernini, O Extase de Santa Teresa (pormenor). Roma, Santa Maria della Vittoria. 23 O Encontro na Porta Dourada (pormenor), por volta de 1303- Padua, Capela da Arena (Capela degli Scrovegni). 26 senta¢4o fiel ou idealizada dos espectaculos. Mas gostaria que a pintura continuasse a ser espectaculo, que a do pas- sado ainda fosse admirada como espectaculo. No seu tempo, quando, por ac¢ao conjugada dos novos conhecimentos, da fotografia e da arte moderna, o Museu Imaginario desabrocha com a anexag¢4o dos primitivos, a «sociedade» também o deseja. E verdade que a raiva sus- citada pela Olimpia se deve, em primeiro lugar, ao facto de Manet nao saber desenhar, uma vez que «nao imita a natureza». (Talvez.Giotto, como Manet, a imite mal; mas Duccio nfo a imita de todo.) A sociedade, que compra os pequenos holandeses, n&o rejeita o realismo pela sua exactiddo, mas pela vulgaridade; a «disting¢Ao» que exige é inseparavel de um teatro, de uma ficcdo da qual a pintu- ra deve constituir um meio privilegiado. Mesmo para um escritor tdo artista quanto Walter Pater, a pintura continua a ser ficcAo. O mais poderoso adversaério do novo museu, e da nova pintura, nfo é uma teoria ou uma escola: é esta fic¢ao, a qual pertencem todas as obras admiradas. O Museu Imaginario sé vird a impor-se quando a arte moderna tiver destruido esta ficgfo. Mas, entre «o belo ideal» de Stendhal e a «beleza» de Barrés, produziu-se um acontecimento sem precedentes: os verdadeiros artis- tas deixaram de reconhecer os valores dos poderosos. A personagem de comédia chamada o burgués nasceu ao mesmo tempo que o seu simétrico, o artista. Repeélida esta comédia, a poderosa burguesia de Luis Filipe e de Napoledo III nao se assemelha mais 4 de Luis XVI do que Baudelaire a Racine, ou Van Gogh a Chardin. O rei burgués sucede ao Ultimo rei de Fran¢a coroa- do em Reims. A ordem fundamental imposta ao mundo pelo cristianismo (e singularmente pelo catolicismo, pois 0 protestantismo nfo suscita nem catedrais nem Vaticano) desapareceu. A das grandes monarquias perdeu a legitimi- le que as ordens do espirito deviam 4 ordem da alma, e eu:caracter invulneravel. A Raz4o nao conseguiu fundar propria ordem: teria sido a ordem de uma Republica exemplar, e nao o poder do dinheiro ou das técnicas, que ‘6 um direito, mas um facto. Esta Razdo interpelava enos o belo ideal segundo David — romano ou napo- ico — do que o belo ideal segundo Stendhal; mas, os ores, exasperados pelo juri, aspiraram menos do que dhal a substitui-lo pela Camara... Incapaz de inventar ;suas catedrais e mesmo os seus paldcios, constrangida copiar os dos antecessores, a nova civilizagdo também 6 capaz de suscitar uma expresso suprema do mun- uma expressdo suprema do homem. A burguesia esperava confusamente que as ligdes de es the fornecessem o que as ligdes de Rafael haviam ido a aristocracia pontificia? Faltava Julio II e, so- ‘bretudo, faltava Cristo. Os valores intelectuais de Ingres s4o:os sugeridos pelas tragédias de Voltaire. Como Sainte- -Beuve, Voltaire pensa em fun¢ao de um mundo desapare- cido, pintor ideal de uma Franca que ndo tivesse conhecido aiRevolucio, e onde a burguesia se tivesse tornado 0 que ornou em Inglaterra, onde o rei continuava a ser Rei. 1 como Balzac, rejeita para o universo da Restauragao a gaetamorfose social que a assedia; remonta no tempo, que sce até Daumier. Depois dele, nao ha grandes retratos L eses, mas ainda hd retratos de grande estilo, desde o Shopin de Delacroix ao Baudelaire de Courbet: sao retra- tos de artistas. Afastados estes «irmAos», 0 retrato s6 pode incidir sobre 0 pintor ou o modelo, e estes so inimigos: dame Charpentier é um Renoir, nao um retrato bur- gués, Madame Cahen de Antuérpia é um retrato burgués antes de ser um Bonnat. Sera necessario, para nos conven- cermos, pendurd-los numa parede de um sal&o de 1890? HA estilos da época burguesa, nio ha um grande estilo da burguesia. O paisagista Corot inventara tratar a figura 27

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