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São Gonçalo,
2008
Leonardo Antonio Thürler
São Gonçalo,
2008
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEH/D
76 f.
CDU 37.017
Autorizo apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial deste trabalho.
Leonardo Antonio Thürler
Banca examinadora:
_____________________________________
_____________________________________
São Gonçalo,
2008
DEDICATÓRIA
A Deus e a minha família presto esta singela homenagem e sou grato eternamente,
pela presença constante em minha vida, pela paciência nos meus momentos de
impaciência e por todos os valores essenciais a uma boa convivência social, em
especial os valores da humildade e da perseverança a mim transmitido e, por serem
presentes e fundamentais em minha vida.
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar agradeço a Deus por me possibilitar essa experiência única e as pessoas
fundamentais em minha vida, meu pai Djacy Thürler e minha mãe Maria José Thürler, origem e
agentes de minha existência; ao meu irmão Lenildo José Thürler, que juntamente com meus pais fez-
se sempre um incentivador em minha vida acadêmica e profissional e a minha querida e amada filha,
Bruna Gomes Ferreira Thürler, que sempre foi e será o meu maior estímulo de amor incondicional e
infinito.
E a todos que fizeram parte dessa jornada universitária, as(os) amigas(os) de classe que por
cinco anos participaram de inúmeros momentos acadêmicos in class e extra class promovendo trocas
e debates educacionais, políticos e sociais e que se fizeram extremamente importantes e
enriquecedores no processo de ensino/aprendizagem; as(os) amigas(os) do Laboratório
Interdisciplinar de Ensino e Pesquisa em História da Educação e da Infância (Liephei) e do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisa em História da Educação e da Infância (Niphei), que juntamente com
professores(as) participaram de empreitadas textuais, com leituras, fichamentos, debates e
apresentações em seminários e congressos educacionais, bem como em pesquisas realizadas em
bibliotecas e espaços escolares e acadêmicos. A todas(os) as(os) professoras(es)/amigas(os) que
contribuíram e continuam contribuindo de maneira ímpar em minha capacitação acadêmica quero
expressar a minha gratidão e meu carinho, de maneira muito especial, através da amiga educadora e
orientadora Professora Doutora Sônia Camara e ao amigo educador e Professor Doutor Jorge Rangel
(o Fidel) que com carinho, paciência, atenção e dedicação estiveram sempre presentes e solícitos,
auxiliando no caminho da capacitação profissional e pessoal. Aproveito esse momento para
expressar a todas(os) a minha gratidão, o meu carinho e o meu eterno agradecimento através desta
singela homenagem.
“Determinação, coragem e auto confiança são fatores decisivos para o sucesso.
Se estamos possuídos por uma inabalável determinação conseguiremos superá-los.
Independentemente das circunstâncias, devemos ser sempre humildes, recatados e
despidos de orgulho.”
Dalai Lama
RESUMO
Este trabalho de monografia tem como objetivo analisar o jornal A Mãi de Familia com foco
no texto teatral literário A Herança, do dramaturgo francês J.A. Guyet. Com este intuito pretendo
identificar nos diálogos das personagens indícios que se associem aos objetivos do médico Carlos
Costa em utilizar-se dos textos literários teatrais numa perspectiva de intervenção higienista pelo
viés educativo. E, portanto compreender os escritos literários teatrais como ferramenta pedagógica
educacional utilizada pelos médicos higienistas no Rio de Janeiro do século XIX.
This thesis work is to analyze the newspaper The May Family with focus on the theatrical text
literary heritage, the French playwright Guyet J.A. To this end I intend to identify the dialogues of the
characters coming together clues to the goals of Dr. Carlos Costa used in the literary theatrical
perspective hygienist intervention from the perspective of education. And so to understand the
written literary theater as a pedagogical tool used by medical education hygienists in Rio de Janeiro
in the nineteenth century.
Keywords: Education Hygienist, Theatrical Texts and newspaper The May Family.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Imagem 3 - Texto: “A herança” – Autor: J.A. Guyet Jornal A Mãi de familia de janeiro de
1879...........................................................................................................................................32
Imagem 4 – Página do Catalogue Générale onde cita as obras literárias do médico francês
André Théodore Brochard, bem como o Jornal “la jeune mére”. Catalogue Générale de la
Librairie Fançaise. 1876. Rédigé par Otto Lorenz....................................................................46
Imagem 5 – Capa do Catalogue Générale de la Librairie Fançaise. 1876. Rédigé par Otto
Lorenz.......................................................................................................................................66
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1
CAPÍTULO 1 – MEDICINA E EDUCAÇÃO NA FORMAÇÃO DOS INDIVÍDUOS EM
ESPAÇOS PÚBLICOS E PRIVADOS NO RIO DE JANEIRO EM MEADOS DO
SÉCULO XIX............................................................................................................................6
1.1 - A medicina, os indivíduos e as cidades..............................................................................6
1.2 - A imprensa escrita do século XIX no Rio de Janeiro.......................................................13
1.3 - A Educação no século XIX pelo viés higienista...............................................................16
CAPÍTULO 2 - O PERIÓDICO............................................................................................19
2.1 – O jornal A Mãi de família: estratégia de intervenção higienista no Rio de Janeiro.........19
2.2 – A Mãi de família: configuração, produção e estrutura.....................................................23
CAPÍTULO 3 – OS TEXTOS TEATRAIS...........................................................................31
3.1 – O Teatro: estratégia pedagógica nos espaços escolares...................................................31
3.2 – O Mãi de família e os textos teatrais: estratégias pedagógicas no processo de intervenção
higienista...................................................................................................................................34
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................47
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................49
ANEXOS..................................................................................................................................52
Introdução
Este trabalho de monografia tem como objetivo analisar os textos teatrais publicados
entre os anos de 1883 a 1888 no jornal A Mãi de familia. Periódico originário do Rio de
Janeiro e com tiragens quinzenais, o jornal A Mãi de familia circulou nas províncias de São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, dentre outras no período de janeiro de 1879 a dezembro de 1888.
Criado e dirigido pelo médico Carlos Costa, o jornal tinha como principal objetivo propagar
conselhos e orientações relacionados à saúde, ao bem estar, a proteção e a prevenção da
família “(...) em prol da grande obra do progresso com que povo e governos garantirão a força
das gerações futuras!”3 O jornal tinha como colaboradores médicos, higienistas 4 e intelectuais
a exemplo dos doutores José Ricardo Pires de Almeida, Alfredo Piragibe, Brito e Silva, Silva
Araújo, Pires Farinha, K. Vinelli e Felix Ferreira.
O interesse pelo tema surgiu em meio a outro movimento investigativo realizado como
bolsista do projeto “Por uma Cruzada Civilizatória: Educação, Assistência e Proteção à
Infância Menorizada no Rio de Janeiro de 1890 a 1940”; coordenado pela Professora Doutora
Sônia Câmara.5 Ao manusear o jornal A Mãi de familia, nos arquivos de obras raras da
Biblioteca Nacional, pude perceber a presença de onze textos teatrais, publicados em coluna
intitulada Recreio, criada com intuito de promover e divulgar os textos literários.
No que concerne ao primeiro texto teatral que circulou no Jornal, A Herança, cujo
autor é J.A. Guyet6, e que segundo Carlos Costa fora encenado, por meninas de um colégio 7
da Corte e do interior, por iniciativa das diretoras do colégio. A referência feita pelo médico
Carlos Costa quanto aos colégios é de que tais iniciativas eram realizadas tanto na Corte
1
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Definição de Sainetas: Pequena peça teatral em que há bailado.
Disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=sainetas , acesso em: 21 de março de 2008.
2
COSTA, Carlos. Palestra do médico. Jornal A Mai de família. Educação da infância, higiene da família. Rio de
Janeiro: Typ. Lith. De Lombaerts & Comp, 1º ano, número 1, Janeiro de 1879, p.2.
3
Ibdem, p.1.
4
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Definição de Higienistas. Pessoa especialista no estudo e no ensino
da higiene, op cit, s/p.
5
O projeto acima referido tem como objetivo geral promover uma análise histórica acerca das políticas
públicas de assistência, proteção e tutela à infância desenvolvidas no Distrito Federal, no período de 1890 a
1940, no que tange aos campos médico e jurídico. Ligado ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em História da
Educação e Infância (NIPHEI/LIEPHEI).
6
Encontramos indícios sobre J.A. Guyet em Almaques e Catálogos franceses publicados no século XIX na
França, além da referência a ele feita no jornal A Mãi de familia. Ver imagens inseridas no anexo.
7
Até o momento da investigação não se fez possível identificar quais colégios foram apresentados os espetáculos
teatrais, nem mesmo os Theatros de Salão citados como espaço para a apresentação de alguns dos textos.
quanto no interior, não especificando nem quantos e nem quais os colégios. O médico e
redator-chefe do jornal, afirma em trecho publicado, por ele, que para “auxilial-as nesse
empenho louvave começamos hoje a’publicar uma pequena comedia, a Herança, que se nos
affigura muito própria e adequada a’s representações das férias”. 8 Trecho que antecede a
publicação do texto literário teatral.
Chamou-nos atenção o texto A Herança, não somente por ter sido, o primeiro a abrir a
coluna Recreio do periódico, mas também por sua função pedagógica e pelas temáticas
valorizadas e entremeadas nos diálogos das personagens as quais analisaremos no terceiro
capítulo desta monografia. Pelos aspectos apresentados resolvemos utilizá-lo como objeto
central de análise e reflexão nesse trabalho a fim de compreender quais os motivos que
levaram o médico Carlos Costa ao instituir a criação da coluna e que motivos o guiaram na
escolha desse texto. Tal ação nos faz crer no reconhecimento do texto literário como conteúdo
teórico e prático extremamente interessante e propício ao que se pretendia como projeto
naquele momento, mesmo porque a prática de apresentá-lo nas escolas de meninas da época é
por ele elogiada, além de suscitar questões relevantes quanto ao movimento de intervenção
higienista e educacionais desenvolvidas naquele período.
O texto nos provoca e suscita o interesse de desvendar, ainda, as problemáticas
encontradas e indiciadas nas entrelinhas dos diálogos estabelecidos pelas personagens, como:
as mudanças de hábitos educacionais; o papel exercido pela mãe com relação a criação de
seus filhos; os hábitos e as convivências sociais; as virtudes e os valores sociais; dentre
inúmeras outras questões.
Ao estabelecer uma relação intertextual com o projeto, A Mãi de familia, do doutor
Carlos Costa, procuraremos aprofundar as questões, anteriormente, citadas. Para tanto
utilizaremos dos aportes teóricos desenvolvidos por Gondra (2000; 2004); Certeau; Lessa;
Fonseca; Bourdieu; Machado; Luz; Costa; Foucault; Donzelot; Camara; entre outros que nos
permitiram problematizar o papel do jornal e, nele, a importância dos textos teatrais
publicados no jornal.
O periódico como fonte e objeto de investigação, pode ser compreendido como ação
estratégica postulada de um lugar de poder. Quanto a isto Certeau, afirma que “As estratégias
são, portanto, ações que graças ao postulado de um lugar de poder (a propriedade de um
próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um
conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem.9
8
COSTA, Carlos. Palestra do médico. In: Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. Rio
de Janeiro: Typ. Lith. De Lombaerts & Comp, 5º ano, número 7, Janeiro de 1883, p.53.
9
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 102.
Na perspectiva de identificar os textos teatrais literários como também possíveis
estratégicas, procurei investigar sobre os colégios e teatros aos quais teriam sido encenados os
textos. Durante o processo de investigação não foi possível encontrar nenhum indício de
nomes de colégios e teatros que remetesse a uma pista sobre os espaços educacionais e de
entretenimento que apoiaram a ação estratégica dos higienistas em relação à representação
dos textos teatrais.
Ao analisar os textos dentro do contexto histórico da época como possível ação de
intervenção médico-pedagógico junto à sociedade foi possível reconhecer algumas das
inúmeras ações intervencionistas dos médicos higienistas presentes no século XIX,
encontramos ainda, para nossa surpresa, na maioria dos textos escritos por ilustres penas e
publicados no jornal A Mãi de familia, a manifestação dos dois principais colaboradores do
jornal, o doutor José Pires de Almeida, que assina a autoria de quatro dos onze textos e a do
doutor Carlos Costa assinando dois textos literários teatrais.
Para uma melhor compreensão dos diferentes aspectos que perpassam a investigação e
que são fatos na construção da história da educação do país, procurarei destacar a importância
de alguns referenciais concernentes a medicina na formação dos indivíduos e das cidades na
educação escolar e na educação da mulher; do jornal como objeto e foco de pesquisa na
imprensa escrita no século XIX; na educação do século XIX pelo viés higienista; o jornal A
Mãi de familia como estratégia de intervenção higienista no Rio de Janeiro e a sua
configuração e produção. A análise ainda retrata o periódico como objeto e fonte de pesquisa
no campo da medicina e da educação; os textos teatrais como estratégia pedagógica no jornal
e nos espaços escolares numa perspectiva de intervenção higienista.
Para isso, esta monografia se organiza em três capítulos, a saber: no primeiro
intitulado, Medicina e educação na formação dos indivíduos em espaços públicos e privados
no Rio de Janeiro em meados do século XIX, discorrerei sobre a medicina e sua função
educativa. Tratada de maneira estratégica em âmbito social e institucional, os médicos
higienistas, decidiram atuar sobre as cidades e seus indivíduos em prol da saúde do corpo, da
alma, do habitar social e do progresso do país.
Questões norteadoras serão fundamentais no processo de construção textual, como:
Quais eram os sujeitos que deveriam, nesse contexto, ser “formados” a fim de ser
“formadores” de novos indivíduos em benefício do progresso do país? Quais os espaços
públicos e privados, na perspectiva médico higienista, se faziam lugares de intervenções
urgentes por vias de uma medicina educacional higienista? Que conteúdos educacionais eram
esses que deveriam ser “inseridos” e “inculcados”, através de uma aculturação, nos sujeitos
componentes dessa sociedade? Tais questões pontuaram e problematizaram o capítulo a fim
de analisar tal movimento e sua atuação por meio de uma medicina social principalmente no
Rio de Janeiro do século XIX.
No segundo capítulo O Periódico, examinarei o jornal A Mãi de familia como objeto e
fonte de pesquisa. Procurarei com este propósito analisar a estrutura do periódico, passando
por temáticas abordadas nos textos teatrais e alguns dos artigos, relacionando-os assim ao
contexto da época. No que concerne ao papel da imprensa como veículo de extrema
importância no processo de vulgarização de saberes procurarei identificá-la como ferramenta
estratégica e ativa no que se refere a reeducação do individuo por vias de uma intervenção
médico higienista.
Num movimento interrogativo problematizador, traçarei relações entre o movimento
médico intervencionista, a educação e o periódico. As questões que nortearam o capítulo, são:
Com qual(is) objetivo(s) fora fundado o jornal? Quem foi seu fundador(a)? Este(a) fora
influenciado(a) por algum movimento na época? Se foi, por qual e, quem se fazia organizador
do movimento? Que relação existia entre o jornal e o contexto histórico vigente? Qual o papel
exercido pela imprensa nesse contexto? Quem se fazia leitor do jornal? Estas são
problemáticas a serem analisadas como forma de compreender o movimento higienista por
via da imprensa escrita da época.
Quanto ao conteúdo temático educacional tratado nos artigos e textos teatrais farei
uma análise mais detalhada no terceiro capítulo desse trabalho que tem como objetivo
historicizar e analisar os textos literários teatrais, publicados entre 1883 e 1888, em coluna
intitulada Recreio. Criada com o intuito de reproduzir textos teatrais, sainetas, literaturas
dentre outros.
Com um olhar direcionado a perceber às estratégias educacionais presentes no jornal
procurarei em meio a questões problematizadoras analisar os diálogos referentes ao principal
texto, A Herança, de Guyet, como possível ferramenta educativa no processo de intervenção
higienista do período.
Mediante afirmativa do doutor Carlos Costa, (...) Parece-nos excellente e utilissima a
pratica adoptada pelas Sras. Directoras de collegio. (...)10, inúmeras questões foram surgindo,
dentre elas, a primeira foi identificar o que tornava excelente, utilíssima e adequada as peças e
suas representações nas férias? Em seguida saber quais valores sociais se faziam presentes nos
textos? Qual a importância dos textos no processo de reconstrução da família e da sociedade
10
COSTA, Carlos. Palestra do médico. In: Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. Rio
de Janeiro: Typ. Lith. De Lombaerts & Comp, 5º ano, número 8, Abril de 1883, op. cit., p. 53.
naquele contexto? Porque a utilização do teatro como ferramenta pedagógica educacional no
processo de educação e higienização? Quais os assuntos abordados pelos autores? Quantos
textos teatrais foram produzidos e publicados no jornal? Quem eram os autores dos textos?
Que papel exerciam na sociedade? Os textos eram encenados em algum teatro ou escola, por
quê? Os personagens eram interpretados por quem? Os personagens faziam parte do contexto
histórico daquele período? A partir de que ano se começou a publicar os textos teatrais no
jornal?
Capítulo 1
Neste sentido, o século XIX brasileiro pode ser caracterizado como um tempo
de desafios que supõem a realização de alguns deslocamentos. De colônia a Estado
nacional independente. De anexo de Portugal a Brasil. No caso do Rio de Janeiro, o
grande desafio foi transformar uma cidade colonial, sucessivamente, em sede do
governo português, sede do Estado imperial e sede da República. Isto é, promover
uma alavancagem de vila colonial a cidade. Em outras palavras, passar de
Sebastianópolis a Corte. O referido deslocamento supunha transformações das mais
variadas ordens: de infra-estrutura urbana (água, iluminação e esgotamento
sanitário, por exemplo), transporte (arruamentos, carruagens, bondes e trens, dentre
outros), economia (instalação de fábricas e de estabelecimentos comerciais), política
(organização de partidos e sistema eleitoral), comunicação (imprensa, correios e
telégrafos), segurança (guarda nacional, polícia e sistema judiciário) e cultural
(biblioteca, jardim botânico, escola de belas-artes, faculdades, escolas de primeiras
letras e secundárias). 15
13
Ibidem, p. 19.
14
Ibidem, pp. 19-20.
15
Ibid, pp. 19-20.
Portanto, exigia-se um profundo investimento político, econômico e intelectual no
processo de transformação da colônia em Corte. Dentre os projetos propostos e implantados o
que tratarei nesse estudo diz respeito à institucionalização da medicina e a sua legalização
social. Processo que se configura no Brasil, a partir do século XIX e, mais precisamente com
a chegada da Corte Portuguesa em 1808 e a criação das Academias, das Sociedades, das
Faculdades e das escolas constituindo o campo cientifico. O campo para Bourdieu funciona
(...) enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas
anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em
jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de
maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou, se quisermos, o
monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e
de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é
socialmente outorgada a um agente determinado.16
20
VEIGA, Cynthia Greive. Cultura escrita e educação: representações de criança e imaginário de infância,
Brasil, século XIX. In: FERNANDES, Rogério; LOPES, Alberto; FARIA FILHO, Luciano Mendes (orgs.),
Para a compreensão histórica da infância. Porto, Portugal: Campo das Letras, 2006, p. 68.
21
Cadernos Cedes 59: Educação pela higiene: histórias de muitas cruzadas. In: GONDRA, José Gonçalves.
Homo Hygienicus: educação, higiene e a reinvenção do homem. Vol.1, n.1 (1980), São Paulo: Cortez;
Campinas, p.26.
(...) as práticas discursivas que os integram compõem-se dos “elementos teóricos” que
reforçam, no nível do conhecimento e da racionalidade, as técnicas de dominação. Estes
elementos são criados a partir dos saberes disponíveis – enunciados científicos, concepções
filosóficas, figuras literárias, princípios religiosos, etc... – e articulados segundo as táticas e os
objetivos do poder. As práticas não-discursivas são formadas pelo conjunto de instrumentos
que materializam o dispositivo: técnicas físicas de controle corporal; regulamentos
administrativos de controle do tempo dos indivíduos ou instituições; técnicas de organização
arquitetônica dos espaços; técnicas de criação de necessidades físicas e emocionais etc. 22
22
No que concernem as práticas discursivas e seus elementos teóricos, recomendo ao estudo mais
pormenorizado do capítulo III - A higiene da família em COSTA, Jurandir F. Ordem médica e Norma familiar.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, p.50.
23
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 292.
Táticas de governo que permeiam os discursos encontrados nas “palestras dos
médicos”, publicadas no periódico e, que reafirma a valorização da medicina. O discurso
médico do Dr. Carlos Costa extraído do jornal A Mai de familia, reforça a responsabilidade e
o compromisso incansável daqueles que optaram por dedicar a sua vida em prol da medicina e
também da sua incansável missão de cuidar dos seus semelhantes no firme propósito de
prevenir a todos de doenças, via vulgarização dos conselhos médicos e de suas pesquisas
empíricas.
Para Costa da combinação dos discursos teóricos com as regras da ação prática é
subtraído o poder normalizador, ou seja,
24
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999, p.50.
A fim de entender e situar a imprensa no contexto brasileiro retornarei ao Rio de
Janeiro de meados do século XVIII, mais precisamente na década de setenta, período onde a
imprensa produzida na Europa chegava ao Brasil por meio de impressos que tratavam de
divulgar cultura e utilidades, ou seja, eram noticiosos, científicos, literários e históricos,
servindo também a Corte. Como exemplo, a Gazeta do Rio de Janeiro e o Correio Braziliense
(Editados em Londres. O Correio Braziliense sendo proibido eventualmente no Brasil) e a
Gazeta de Lisboa, que já davam o ar de sua graça pela América portuguesa, inclusive no Rio
de Janeiro. Porém, a imprensa teve seu desenvolvimento, especialmente na França e na
Inglaterra, impulsionada pelo liberalismo. Papel político desempenhou servindo ao governo
como veículo de embates e discussões. Para Schiavinatto, a escrita aqui é um instrumento de
poder que aproxima o autor do poder real. Dentre as diversas funções a que se destinava a
imprensa podemos citar a de difusora de idéias e notícias.
25
MOREL, Marco e BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: editora: DP&A, 2003, pp. 17 e 21.
26
MACHADO, Humberto Fernandes. Imprensa abolicionista e a censura no Império do Brasil. In: LESSA,
Mônica Leite e FONSECA, Silvia Pereira de brito (orgs.). Entre a monarquia e a república: imprensa,
pensamento político e historiografia (1822-1889). Rio de Janeiro: Eduerj, 2008, p. 244.
repartição da Corte. Contudo, só foi possível ampliar quantitativamente o número de jornais
após a separação da metrópole portuguesa, como afirma Machado.
27
Ibidem, p. 245.
Oitocentos (Sussekind, 1990; Meyer,1996; Abreu, 2003. Ver em especial Morel, 2005ª), é
recente perceber quanto e por quais mecanismos essa produção em periódicos, desse momento,
engendrou uma série de textos da cultura política e da recepção mais elaborada e sistemática da
ciência política e suas engenharias. Existe uma tendência em buscar os teóricos da política que
balizaram e avalizaram, no limite, o processo de constituição do Brasil, como um corpo
político autônomo, em livros, livrarias, bibliotecas, em autores lidos e comentados, em outra
ordem documental e discursiva; porém, talvez essa inteligibilidade a respeito do campo político
esteja nesses impressos, considerados “literatura de circunstância”(Algrand, 2004). Vários
estudos concorrem para desfazer esse equívoco e assim ampliam nosso campo de visibilidade.
Nota-se, então, a força dos debates políticos. Neles, destaco o seguinte: as noções disputadas
de cidadania e direito e as tensões sociais aí enredadas; a presença de autores importantes na
época, depois relegados a segundo plano ou a nenhum, no que se refere ao estatuto colonial, ao
Antigo Regime e ao liberalismo constitucional; e os artifícios usados pelos jornais para
chamar, convocar e envolver os leitores, motivando-os para a fala e para o posicionamento
dentro do jornal (embora essa atitude fosse elogiável, muitas posições publicadas se valiam do
anonimato).28
Nesse contexto, podemos identificar a extrema importância política e social dada aos
impressos e manuscritos escritos no Rio de Janeiro do início do século XIX. Em Imprensa,
língua, nação e política nas Regências 29, pesquisa realizada por Lima 30, ao aduzir sobre a
formação da língua nacional no Brasil diz ser esta parte intrínseca da imprensa e não somente
a periódica, mais também à de produção, de circulação e de recepção de impressos de forma
geral o que serviu a sociedade, por meio dos sindicatos, associações, partidos, etc. Como meio
e instrumento nos embates, nas lutas e reivindicações no âmbito das políticas, das questões
trabalhistas, de saúde e da formação da língua. As estratégias advindas por meio de
ferramentas de comunicação e vulgarização dos assuntos condizentes ao período, como
periódicos; folhetos; pasquins; tipografia e impressos eram na sua maioria utilizados como
instrumentos de luta. Mas, a vulgarização da política, que começava a ganhar os espaços
públicos e privados não era bem quista por seguimentos não tão liberais, como se acreditava
ser e no intuito de contraposição aos pasquins e de trazer uma suposta estabilidade dos
sentidos fora criado o dicionário.
Ciente de que o jornal era naquele momento o veículo de maior poder de vulgarização
de saberes e mobilização da sociedade burguesa o doutor Carlos Costa, acreditava ser o jornal
a “verdadeira alavanca para o progresso”, servindo a imprensa, em favor dos interesses da
medicina social. Criando o periódico A Mãi de familia, mescla medicina social com educação
a fim de promover os “sãos principios da hygiene”, e a prevenção de doenças no âmbito
público e privado. Uma mudança radical nos hábitos da família, da infância e da sociedade. O
28
SCHIAVINATTO, Iara Lis. Entre os manuscritos e os impressos. In: LESSA, Mônica Leite e FONSECA,
Silvia Pereira de brito (orgs.). Entre a monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia
(1822-1889). Rio de Janeiro: Eduerj, 2008, pp. 15-16.
29
LIMA, Ivana Stolze. Imprensa, língua, nação e política nas Regências. In. LESSA, Mônica Leite; FONSECA,
Silvia Pereira de Brito (orgs.). Entre a monarquia e a república: imprensa, pensamento político e historiografia
(1822-1889). Rio de Janeiro: Eduerj, 2008, p.107.
30
LIMA, Ivana Stolze. Professora adjunta da PUC-Rio e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Jornal manteve sua circulação pelo período de dez anos na Corte e nas Províncias de São
Paulo e Minas Gerais fomentando seus propósitos e reafirmando a importância da imprensa
junto à sociedade.
31
GONDRA, José G. Medicina, higiene e educação escolar. In LOPES, Eliane N., FARIA FILHO, Luciano;
VEIGA, Cynthia (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 526.
32
Ibidem, p.519.
investir na salubridade da sociedade, via família e escola. Para tanto, sujeitos eram instituídos
educadores, nesse espaço configurado como colégio e, se faziam principais personagens no
processo de intervenção higienista no intuito de fazer valer um novo modelo de medicina
social para aquele período.
Quanto ao processo de transformação, no que diz respeito à educação, fora necessário
à cidade do Rio de Janeiro, para Gondra, formar quadros, produzir o passado e o futuro
considerando as temáticas urbanas, industriais, comerciais e culturais. Transformação que
teve como cunho o processo de formação local de nível superior dos profissionais que se
faziam essenciais à mudança, como médicos, engenheiros, bacharéis e profissionais das artes.
Mas, sem excluir o modelo escolar das aulas régias e do ensino secundário o Estado deveria
gerar e subsidiar a Educação proposta, tendo em vista a já existência de uma estratégia de
patrocínio e composição do aparelho estatal. Porém, a Igreja Católica Apostólica Romana
deveria ser mantida fora da proposta de formação educacional do nível superior.
A necessidade de se intervir urgentemente no processo de formação superior se faz
presente pelo esforço desenvolvido pelos médicos no sentido de construir universidades e
estabelecer uma sistemática de ensino na formação profissional do médico, reforçando a
institucionalização do campo da medicina e do profissional que a constituiu e por ela é
constituído. Para Gondra a medicina e a educação andaram juntas naquele que seria o “projeto
do século XIX”, de higienização dos indivíduos e das cidades. Educação e medicina
configuravam-se como projeto de reforma. Nesta direção afirma Schueler que
Desde meados do século XIX, a educação das crianças, jovens e adultos das camadas
populares livres, nacionais e estrangeiras, e libertas, constituiu um dos projetos de reforma
insistentemente discutido pelos dirigentes do Estado e por outros setores da sociedade Imperial.
A ênfase na instrução e na educação popular, viabilizadas pela construção de escolas públicas e
colégios, e pelo desenvolvimento da escolarização, acompanhavam outros planos de
intervenção dos poderes públicos na vida da população e nos espaços das cidades, como a
construção de ferrovias e bondes, a instalação da iluminação pública, os projetos de
saneamento, ajardinamento e cercamento de praças, a regulamentação das festas, além da
“ideologia da higiene”, responsável pela prevenção e erradicação das doenças como febre
amarela, que atingiam em cheio os setores mais pobres da população.33
33
SCHUELER, Alessandra F. Martinez de. Artigo: Crianças e escolas na passagem do Império para a República.
Revista Brasileira de História. Vol. 19, n.37, São Paulo, 1999, p.4.
indivíduos em torno da retenção de uma determinada situação declarada e legitimada por
setores sociais sem restrições.
O encadeamento de relações sociais sofre por meio da política de intervenção
higienista, em meio a relação de “poder” instituída pelo Estado e suas instituições públicas e
privadas, ações práticas permeadas de violência simbólica. Relação de “poder” que para
Foucault encontra-se inserida num escopo ideológico em meio aos discursos e práticas sociais
e que se constituíu historicamente. As ações práticas higienistas de incitar o Estado a intervir
através da norma na esfera do direito privado é citada por Donzelot.
34
DONZELOT, Jacques. A Polícia das famílias. Tradução de M. T. da Costa Albuquerque; revisão técnica de J.
A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2ª ed., 1986, p. 57.
Capítulo 2
O periódico
Há alguma cousa ainda acima de todos os cálculos de interesse material e que podera
conseguir vencer o desanimo que avassalla todos os sentimentos nos tempos que correm, e que
aniquilando as grandes idéas, tem tornado quase estereis todos os esforços do que, em outros
paizes adiantados, se considera a verdadeira alavanca do progresso, isto é, a imprensa. Esta
35
AGUIAR, Alvaro; MARTINS, Reinaldo Menezes. História da Pediatria Brasileira. In: CAMARA, Sônia.
Artigo: O jornal “A Mãi de familia” como estratégia de intervenção: Medicina, Higiene e Educação na
fabricação da infância e da família no Brasil dos finais do século XIX. 2008, p.2.
alguma cousa é a consciencia do dever. Por mais corruptos que se diga estarem os meios em
que vivemos, será impossivel que alguns nobres corações não tenham escapado ao perigoso
contagio. E’ para estes, que nós, embora conhecedores de nossas fraquezas, nos aventuramos a
iniciar, com este jornal, uma necessaria propaganda. 36
Em texto extraído de uma conversa com Foucault, Deleuze exprime ser a prática “um
conjunto de revezamentos de uma teoria a outra um revezamento de uma prática a outra” 38,
concepção essa comungada por Foucault quando diz ser a teoria a própria prática. Podemos
contrapor com o discurso de lançamento do jornal escrito por Carlos Costa, onde o médico
apresenta claramente a intensão de atuar com o discurso no cerne da elite, inserindo saberes
enquanto teoria e prática, modelo de poder que se pretendia instituir e, que se fazia necessário
ao objetivo maior, o progresso e que para tanto utilizava da escrita como veículo e dos
“letrados” como sujeitos receptores e possíveis propagadores de seus conselhos e orientações.
Contudo os médicos, os higienistas e os pedagogos, atores sociais de extrema
relevância no processo de reconstrução do país pelo viés da educação e da higienização,
moveram suas ações em prol do progresso e da civilização do país. Dentre os principais atores
desse movimento higienista encontramos o redator-chefe, especialista em moléstias de
crianças, Doutor Carlos Costa que contou com a colaboração de outros médicos, como os
36
COSTA, op. cit., nota 2, p.1.
37
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. MACHADO, Roberto (Org. e Trad.). Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1979, p.71.
38
Ibidem, pp. 69-70
doutores José Ricardo Pires de Almeida, Alfredo Piragibe, Brito e Silva, Silva Araújo, Pires
Farinha, K. Vinelli e Felix Ferreira. Estes médicos estiveram preocupados não só com a saúde
intelectual, mas principalmente com a saúde do corpo e da mente, considerava ser “(...) de
muita urgencia que seriamente se pense em animar-se o desenvolvimento physico das
creanças, isto é, do futuro cidadão.”39 Ação era essencial para o desenvolvimento físico e
intelectual do cidadão em benefício do mesmo e do país.
Quanto a isso, as imagens possuem um apelo forte no periódico, além de poder ser
considerada uma estratégia educativa e que nos remete a uma leitura quanto à educação da
mulher, da família e da infância proposta pela medicina naquele período. Uma das imagens
que marca esse contexto é a que apresenta a mãe ao lado do berço acalentando o bebê.
Imagem esta que é utilizada logo no primeiro fascículo do jornal.
Ao apresentar os objetivos do jornal, Dr. Carlos Costa faz questão de frisar sua filiação
ao periódico la Jeune Mére, do médico francês Dr. Brouchard.40 O Dr. Brochard foi também
39
COSTA, op. cit., nota 2, p.1.
40
O doutor André Théodore Brochard, nasceu em La Rochelle, na França, no ano de 1810 e faleceu em 1882.
Especializando-se em aleitamento materno, do ponto de vista da mãe, da infância e da sociedade e em
mortalidade infantil, estudou ainda sobre a situação das mães que trabalhavam, sobre as doenças infecciosas que
afetavam as projenitoras e seus filhos, dentre outros temas em voga na França do século XIX. Contudo procurou
autor de vários livros, entre eles: De La mortalité dês enfants em France41, editado em 1866;
De l’allaitement maternal42, editado em 1868 e De L’amour meternal43, editado em 1872.
Temáticas sobre a educação da mulher e o papel da mãe, da maternidade e os problemas da
mortalidade infantil na França dos fins do século XIX e início do XX são abordadas e
debatidas por doutor Brochard em seus trabalhos teóricos, como nos apresenta Bandinter ao
retratar em seu artigo “A Defesa da criança”, o compromisso assumido por doutor Brochard,
quanto a orientar, aconselhar e previnir as crianças, via progenitoras, de doenças e perigos as
quais estão expostas, principalmente no que se refere a prática da não amamentação. A
utilização por Brochard de uma escrita aparentemente chocante, direcionada as mães, onde
promete as mães inúmeras doenças, inclusive a morte, é apresentada pela autora em seu
artigo, bem como o compromisso por ele assumido no que diz respeito a causa médica.
(...) Se as metástases leitosas podem ser mortais no início do século XIX, é mais de
admirar que tal espectro continue a ser agitado no fim do mesmo século. Mas é um dos pratos
fortes do médico Brochard, que promete todas as espécies de doenças às mulheres que não
amamentem os seus filhos: “epistáxis, hemoptises, diarreias mais ou menos rebeldes,
suores...”. Sem contar com “as afecções agudas e crónicas das glândulas mamárias, as febres
graves das metmperitonites, as afecções do útero”. Pior ainda, Brochard ameaça estas “semi-
mães de cancro no seio e até de morte súbita”. Certas mulheres, como se tivessem sido
fulminadas por um relâmpago, teriam assim expirado antes que houvesse tempo para tentar
socorrê-las.44
Essa causa foi assumida também por seu admirador no Brasil, o Dr. Carlos Costa. Em
nossa pesquisa percebemos, além da sua atuação no sentido de promover a medicina
higienista uma significativa intervenção no sentido de fomentar a institucionalização da
medicina no país e que vinha acompanhada de proposições e intervenções realizadas pelo
próprio doutro Carlos Costa, não somente por meio do jornal A Mãi de familia, mais
principalmente através de suas práticas médicas, realizando consultas pediátricas; atuando
como Secretário Geral do Quarto Congresso de Medicina e Cirurgia e propondo projetos de
intervenções higiênistas em âmbito social privado e público. Tais ações encontramos relatadas
não somente em meio aos artigos publicados no jornal, também de sua autoria, mais ainda no
Livro do Centenário, livro publicado por ocasião das comemorações do descobrimento do
Brasil.
Nele, identificamos apenas uma pequena referência a atuação do médico, contudo esta
citação nos faz refletir quanto a sua significativa influência e interferência intelectual no
41
Traduzido para a língua portuguesa significa “Mortalidade infantil na França”.
42
Traduzido para a língua portuguesa significa “Aleitamento materno”.
43
Traduzido para a língua portuguesa significa “O Amor materno”.
44
BANDINTER, Elisabeth. Artigo: O Amor Incerto. Lisboa, Relógio d’Água. Consulta realizada pelo site
http://www.uac.pt/~sgoulart/pdf/OAmorIncerto.pdf, p.20.
campo da medicina social e da higienização. Nos relatos do Quarto Congresso de Medicina e
Cirurgia, mais especificamente no quarto volume do livro, encontramos o seu nome em ata da
sessão inaugural realizado no dia 17 de junho de 1900, evento no qual teve participação ativa
juntamente com seus contemporâneos, como podemos perceber em fraguimento extraído do
livro. Em Acta da Sessão inaugural em 17 de junho de 1900, o Quarto Congresso de Medicina
e Cirurgia, fora organizado por uma comissão executiva composta pelos Drs. H. Guedes de
Mello, Presidente – Carlos Costa, Secretario geral, - e Francisco Campello, Tesoureiro. O 1º
Secretarios dr. Amaro F. das Neves Armond, dr. José Augusto Moreira Guimarães e dr.
Henrique Autran da Matta Albuquerque. Em 1887, na Sociedade de Medicina e Cirurgia do
Rio de Janeiro, surgiu pela primeira vez a idéia da realização dos Congressos Médicos e que
já havia sido criado há pouco mais de um ano, pela iniciativa do dr. Henrique Monat,
secundado por Hilario de Gouvêa.
No entanto não nos foi possível ampliar os nossos conhecimentos no que concerne a
vida do idealizador e fomentador do jornal, doutor Carlos Costa. Ciente da sua importância no
processo da História da Medicina e da Educação do Brasil. Pretendemos dar continuidade no
seguimento de pesquisa sobre sua trajetória profissional em nosso próximo movimento.
45
CAMARA, Sônia. Artigo: O jornal “A Mãi de familia” como estratégia de intervenção: Medicina, Higiene e
Educação na fabricação da infância e da família no Brasil dos finais do século XIX, 2008, p.2.
46
COSTA, op. cit., nota 2, p.1.
47
MACHADO, Roberto; LOUREIRO, Angela; LUZ, Rogério; MURICY, Katia. Danação da Norma: medicina
social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1978, p.253.
O periódico se apresenta no processo de pesquisa como objeto e fonte de estudo da
história da educação. Ao levar em conta o lugar de produção sócio-econômico, político e
cultural e o caro conteúdo educacional e de instrução produzido pelo jornal A Mãi de familia,
uma operação historiográfica48 deve ser empreendida no sentido de contribuir no devir do
campo da história da educação.
O jornal é aqui fonte de análise e reflexão quanto a ação pedagógica desenvolvida
pelos médicos, que se fizeram propositores de projetos significativos e de profunda influência
no corpo social vigente da época. Investigando as estratégias utilizadas, encontramos ainda
nesse contexto uma importante ferramenta cultural e educacional, que se apresenta ainda hoje
na sociedade como prática educativa e de entretenimento, o teatro, que surge através dos
textos teatrais como intervenção educacional nas práticas maternais das futuras mães de
família.
À luz de Certeau, acreditamos na relevância de se trabalhar por um viés minucioso,
empregando as devidas precauções no processo de observação e análise do objeto/fonte,
objetivando suscitar as impressões ocultas e silenciosas que permeiam o documento histórico.
48
CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Capítulo II: Operação Historiográfica. Editora Forence
Universitária, 1982, p. 65.
49
Em nota, Michel de Certeau, em A Escrita da História. Capítulo II: Operação Historiográfica, apresenta o
termo cientificas, bastante suspeito no conjunto das “ciências humanas” (onde é substituído pelo termo análise),
não o é menos no campo das “ciências exatas” na medida em que remeteria a leis. Pode-se, entretanto, definir
com este termo a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam “controlar” operações
destinadas à produção de objetos determinados. 1982, p. 109.
50
Ibidem. 1982, p. 66.
cartas publicadas no jornal e endereçadas ao Sr. Ministro da Justiça quanto a ênfase na
proteção das crianças. Citaremos nesse trabalho a sexta carta escrita e publicada, em julho de
1888, pelo doutor Carlos Costa.
A sexta carta escrita ao Sr. Ministro da Justiça e a protecção ás crianças, em julho de
1888, é demonstrativa da prática incansável dos médicos nesse viés.
51
COSTA, Carlos. Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. Rio de Janeiro: Typ. Lith.
De Lombaerts & Comp, 10º ano, julho de 1888, pp. 109-110.
Em Costa, deparamos com dois tipos de intervenção normativa que exemplificam a
prática política do Estado, desenvolvida em nome dos direitos do homem e que defendem a
saúde física e moral das famílias. A primeira intervenção a ser implantada foi a da medicina
doméstica, que no cerne da família elitizada se propunha e fomentava a política
populacionista, numa prática de conservação e reorganização das famílias via educação das
crianças. A segunda intervenção, direcionada aos plebeus, era exercida através de campanhas
de moralização e higienização coletiva.
Dentre as múltiplas possibilidades de análises potencializadas pelo jornal, este nos
permite refletir sobre a suposta identificação dos higienistas ao pedagogo, sendo o higienista,
personagem propositor e defensor de um conjunto de idéias condizentes a saúde pública, do
corpo e da mente em prol de uma sociedade salutar e que encontra-se focada na higiene,
proteção e desenvolvimento da infância. Quanto a identificação com a figura do pedagogo, a
educação para os médicos higientista é tomada como viés primário no processo de
transformação social. Possibilidade suscitada por médicos colaboradores do periódico e que
teve como corroborador, o Estado.
Consideramos que temáticas como, a insubmissão familiar quanto as ações práticas
pretendidas no seio da família; a mudança de hábito imposta pelo Estado e rejeitada pela
família; a reformulação médica do projeto familiar como o intuito de formular um novo
cidadão, devem ser investigadas como objeto de pesquisa para a história da educação.
Imagem 2 - “Caricia materna”
Jornal A Mãi de familia de janeiro de 1879.
Acervo: Biblioteca Nacional
53
Sua primeira publicação, com nova roupagem, se deu em janeiro do ano de 1883, nela encontramos
transformações textuais e de colunas jornalisticas, como a dos Editores que substitui a Palestra do médico; uma
coluna sobre Medicina, que tem artigo intitulado como higiene da mulher pejada, do doutor Pires de Almeida.
Esta, apresenta ainda outro artigo referente a higiene da mulher pejada, educação, de Alberto Durand; uma
coluna sobre Educação, artigo – a natureza da criança; O ponto, L.B.; coluna Higiene, como texto intitulado
Livrinho de Família do doutor M.S.; A coluna Recreio com seu primeiro texto chamado O tratamento (colencia);
A avó de Raimundo Corrêa; Quadro sinóptico de educação e instrução completa acompnahando o homem desde
a infância até o exercício de uma profissão definitiva; descrição de figurino colorido e assina-se na livraria.
Quadro 1: Textos Teatrais e Literários
Os Textos Teatrais
54
MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro, editora: DP&A, 2003, p.21.
55
Catalogue Génerále de la Librairie française, depois 1840, p. 622. Ver Anexo.
Imagem 3 - Texto: “A herança”
Autor: J.A. Guyet
Jornal A Mãi de familia de janeiro de 1879.
Acervo: Biblioteca Nacional
58
Quanto aos autores encontram-se relacionados em quadro anexo situado à página 29 deste trabalho,
respectivamente com seus textos.
nos espaços sociais, como por exemplo nas escolas; residências e teatros. Operando através de
diferentes estratégias, médicos se utilizavam de mais uma ferramenta com o propósito de
codificar as relações entre pais e filhos segundo regras bem precisas. Relações que segundo
Foucault.
60
COSTA, op. cit., nota 8, p.54.
Mme Mérillon. – Digam-me o que fizeram. Seguiram as minhas instrucções?
Mme Mérillon. – Ainda bem! Mas afinal o que fizeram vocês? Pozeram á prova a sua
caridade?
Rosina. – Disse-lhes que a herança de Mme Révissac estava destinada aos pobres.
Rosina. – Pintou-se-lhes a alegria no rosto; que era uma boa acção pela qual seriam
recompensadas.
Mme Mérillon. – E’ porque são mais tímidas. Procuram descobrir si tinham inveja
umas ás outras?
Rosina. – Todas disseram que minha ama é muito justa e instruída. E não disseram
mentira nenhuma.
Mme Mérillon. – Encolerisou-se contra as mentiras; a esta hora já não se lembra mais
disto. Vocês vão ver. Chame-as.
61
COSTA, Carlos. Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. Rio de Janeiro: Typ. Lith.
De Lombaerts & Comp, 5º ano, número 7, 2ª quinzena de junho 1883, op. cit., p.94.
62
COSTA, op. cit., nota 2, p.01.
racional do espaço urbano, da organização metódica do tempo e saneamento físico ou
higiênico como ação civilizatória.63
63
GONDRA, José G. Artes de civilizar: medicina, higiene e educação escolar na Corte imperial. In.
CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Prefácio. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2004, p.12.
64
Cadernos Cedes 59. Educação pela higiene: histórias de muitas cruzadas. Vol. 1, n. 1. In: GONDRA, José
Gonçalves. Homo hygienicus: educação, higiene e reinvenção do homem. São Paulo: Cortez; Campinas,
CEDES, 1980, p.26.
65
COSTA, op. cit., nota 2, p.1.
educacional, em Carolina, Isabel e Virginia, das sobrinhas de Révissac. As criadas, Rosina e
Maria, são inseridas como protagonistas na encenação da trama e procuram de todas as
maneiras alcançar o objetivo imposto por Mme. Merillon.
As criadas se vestem como meninas a fim de se passar por amigas da casa e não
levantar suspeitas que possam atrapalhar seus planos. Extrair das meninas o máximo de
informação que pudessem e indiciar tais virtudes é o objetivo das criadas meninas, mais para
o sucesso do plano Mme. Merillon as orienta que “(...) Conversem com as tres primas;
procurem depois captar-lhes a confiança, o que é facílimo entre moças. Prestem toda a
attenção ás suas conversas e ao que dizem particularmnente umas das outras.” 66 Só, assim
poderão conseguir alcançar o objetivo do plano, segundo Mme. Mérillon.
Na “Cena III” do texto já podemos identificar as artimanhas utilizadas pelas
camareiras a fim de subtrair informações das primas que pudessem ser repassadas a Mme.
Mérillon. Uma das estratégias utilizadas pelas criadas foi exatamente a de cativar e conquistar
a confiança de Carolina, primeira candidata a chegar a casa. Em seguida provoca a mesma
expondo os valores da herança, fazendo com que Carolina a respondesse com firmeza e
desinteresse.
Maria, maliciosamente. – Não é esse creio eu, o fim unico da reunião; o resultado do
exame é importantissimo, porque dotará a mais digna com uma fortuna de seiscentos mil
francos.
Carolina. - (...) Não ignoro essa circunstancia, mademoiselle, que pouco me seduz. O
que eu temo é mostrar-me no exame inferior ás minhas primas; mas verei sem inveja que uma
dellas enriquece á custa de minha ignorância. O que sobretudo respeito, é a ultima vontade da
minha tia.67
Maria. – Esses sentimentos são nobres e belos na verdade; mas peço-lhe que os ponha
de lado. Não conheço suas primas: quer-me parecer, comtudo. Que não terão a sua abnegação.
Seiscentos mil francos não fazem mal a ninguém. Mademoiselle inspira-me sympathia e ficarei
66
COSTA, Carlos. Palestra do médico. In. Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. 5º
ano, número 7, abril de 1883, cena III, op. cit., p.54.
67
Ibdem, op. cit., p. 55.
contrariada si lhe não couber uma fortuna tão bonita. Empregue, empregue todos os esforços
para ganhal-a.
Carolina. – Empregarei todos os esforços para mostrar-me digna della; mas o meu
adiantamento nos estudos não me inspira illimitada confiança. E ainda mesmo que eu sahisse
victoriosa, tenho para mim que offenderia minhas primas acceitando para mim só essa grande
fortuna. Desejava repartil-a igualmente entre nós.
Rosina, á arte, batendo com o cotovello em Maria. – Toma para o teu tabaco! (alto) E’
necessário, mademoiselle Carolina, que a avisemos de uma cousa; os bens de Mme. Révissac
estão em grande parte hypothecados e não sei si chegarão para pagar os credores.
Rosina. – Mme. Mérillo está o jardim. Si querem que as acompanhe até lá...
Carolina. – Com todo o gosto! Tenho muita vontade de apresentar os meus respeitos á
amiga de minha tia. Vamos. (saem)68
A personagem Maria, na “IV Cena”, nos chama a atenção e faz perceber quanto à
importância e a valorização dada a esse tipo de instrução ministrada nos colégios durante o
processo de escolarização, lugar, onde também se adquire tais virtudes. No ponto de vista da
personagem, o colégio e os livros são caminhos que transmitem conhecimentos e viabilizam
conquistas. Tal questão nos é indiciada em uma das falas da personagem Maria.
Maria, só. – Si as duas outras primas si parecem com esta, estamos arranjadas...Com
que prumo e ao mesmo tempo com que ingenuidade nos respondeu...E no entanto é uma
creança...Ah! a educação! ...Que thesouro! Foi pena que minha pobre mãe (Deus tenha em paz
a sua alma!) Não tivesse meios para mandar-me educar...Eu dava uma verdadeira
senhora...Sim, porque não havia de dar? Mas paciencia... Nunca é tarde para aprender...vou
comprar livros...Estudarei de dia e de noite...Queimarei as pestanas...Quando eu souber
bastante talvez que alguma fidalga me escolha para herdeira...Mas ouço passos...Voltemos ao
meu papel de menina.69
Na cena cinco Maria decide de imediato adentrar ao assunto e com mais rapidez
coloca a prima Virginia à prova. Além de buscar conquistar sua confiança resolve atacar
Virginia com questões que trazem à tona alguns valores, objeto de análise nas candidatas a
herança, como nos é apresentado no diálogo abaixo, realizado pelas duas meninas.
68
COSTA, Carlos. Palestra do médico. In. Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. 5º
ano, número 7, abril de 1883, cena III, op. cit., p. 55.
69
Ibidem, cena IV, op. cit., p.63.
Virginia. – Vejo que conhece os nossos segredos. Estou fallando a uma amiga de
Mme. Mérillon. (Maria faz sinal affirmativo.) Fallou-lhe com louvor a meu respeito; mas eu sei
que Mme Mérillon é muito bondosa.
Maria. – Engana-se, Mademoiselle; Faz-lhe apenas justiça, e aqui que ninguém nos
ouve deixe-me dizer-lhe: Mme. Mérillon manifesta deidida preferência por mademoiselle.
Póde ser que eu me engane; mas estou capaz de apostar em como lhe há de vir a pertencer a
herança de mme Révissac.
Virginia. – Sou muito obrigada a Mme. Mérillon; mas experimentaria grande desgosto
si, por uma preferência que cousa alguma justifica, fosse a causa de uma humilhação feita a
minhas primas. Não era essa a vontade minha tia.
Maria. – Com certeza não haverá injustiça; mas a senhora é filha do irmão de mme
Révissac. Suas primas, filhas das irmans della, não teem o seu nome. E’ preciso attender a isto.
Além disso o senhor seu pae prestou grandes serviços á família; era elle quem administrava as
propriedades de sua irman. Todos esses serviços hão de entrar em linha de conta. Ora
vamos...São favas contadas...A herança é sua.
Virginia. Esses serviços são apenas títulos accessorios e nullos para a intenção de
minha tia e nada pesarão na balança. Herdará a que tiver mais mérito, eis tudo! Se me couber a
fortuna bem seio o que farei.
Virginia. – Quer que lhe diga tudo que penso?...Pois, seja. O meu maior desejo é que o
concurso não tenha resultado, isto é, que nenhuma de nós seja julgada mais instruída que as
outras.
Maria. – Mas nesse caso a herança não caberá a nenhuma; não se póde dividil-la,
cumpre que sabia...
Virginia. – Oh! Não falemos mais nisto...já terão vindo minhas primas? 70
Nesse momento percebesse que Virginia propõe mudar de assunto, mais, Maria não se
dá por vencida e resolve “alfinetar” mais um pouquinho a menina, fazendo com que Virginia
responda sua provocação e se esquive do assunto ao mesmo tempo.
Quanto à localização das cenas que vão de VI a XI, ver nota.71
A cena XII, composta por Maria, Isabel, Virginia, Carolina e Rosina, nos retrata o
encontro entre as primas, logo após a entrevista com Mme. Mérillon e, reafirma o desinteresse
das meninas, além da abnegação no que se refere a herança. Virtudes que estão sendo levadas
em conta no processo de avaliação, mais que são de desconhecimento das crianças.
70
COSTA, cena III, op. cit., nota 66, pp.63-64.
71
Em nosso processo de pesquisa não foi possível encontrar as cenas que vão de VI a XI, pois os jornais de maio
e junho do ano de 1883, não foram localizados. A não localização das publicações das cenas, bem como a dos
jornais, impossibilitou a análise dos mesmos, mais não a continuação do processo de análise das outras cenas
localizadas.
Isabel. – E tu Carolina?
Rosina. – Oh! Isso não vae assim. No caso que nenhuma obtenha o premio, a herança
sera distribuída pelos pobres.
Mme Mérillon, ás tres primas. – Reconheci com prazer que fizestes notaveis
progressos nos vossos estudos, e por isso vos dou os meus parabéns. Não me surprehendeu a
igualdade de adiantamento que há entre vós. A este respeito Mme Révissac teria apenas motivo
para orgulhar-se. Mas é precisamente essa egualdade que me colloca em grande embaraço, e
não sei qual de vós deva preferir. Devo consultar-vos sobre um caso tão delicado.
Mademoiselle Isabel, qual de vós é digna do premio?
Isabel. – A mais virtuosa e a menos rica. A mais virtuosa é Carolina; a menos rica é
Virginia.
Carolina. – A que minha tia mais amava e aquella cujos Paes lhe prestaram mais
serviços. A primeira é Isabel; a segunda é Virginia.
72
COSTA, Carlos. Jornal A Mãi de familia. Educação da infância, higiene da família. 5º ano, número 7, Junho de
1883, cena XII, p.93.
Virginia. – Aquella cujos sentimentos são mais nobres, Isabel; e a que más faz lembrar
as qualidades minha tia, Carolina.
Mme Mérillon. – Gosto de vos ouvir fallar assim, minhas boas amiguinhas. Todas vós
sois dignas do premio.
Celeste. – Minha senhora, permitta-me que lhe apresente uma sentença, que escrevi a
seis mezes. (apresenta um papel.)
Mme Mérillon. – Ah!Ah! então eu não era o único juiz. Vejamos (Lê) e considerando
que mademoiselles Isabel, Carolina e Virginia são de um mérito absolutamente egual em
talentos, mandamos e ordenamos que a herança seja dividida entre ellas.” Esqueceu-lhe um
considerando, Celeste: “Mandamos e ordenamos” transpira muita onipotencia.
Mme Mérillon, como acima. – Penalisa-me esse facto; vejo que não tendes
consideração pelas ultimas vontades de vossa tia.
Isabel. – Oh! Minha senhora, perdoe-nos! A nossa intenção não foi essa. A que
obtivesse o premio não o dividiria; dal-o-hia ás outras como presente.
Mme Mérillon, sempre com severidade. – E illudireis a decisão. Isso felizmente não
denota em vós um vicio do coração, porque neste caso eu addiaria o meu julgamento para a
épocha mais afastada. Creanças que sois! Manifestastes somente quanto sois inexperientes!
Mme Révissac previu o caso de accordo entre vós e levando – o a effeito afastareis para
sempre da vossa família a sua fortuna, que passaria a pertencer ao governo. Vede, minhas
amigas, quanto é perigoso conspirar.
Carolina. – Creia, minha senhora, que esta licção nos será muito proveitosa.
Mme Mérillon. – Obrigada, minhas amiguinhas; sinto-me feliz com o que fiz.
Isabel, voltando-se para Maria. – Como! Então estava aqui para nos tentar?
Em resumo o texto de Guyet é rico em suas temáticas de valores sociais que para as
diretoras do colégio e os médicos propositores de uma higienização da cidade e da família se
faz essencial no que diz respeito à educação das mulheres, das crianças e da família. A fim de
atingir uma parcela significativa da população e cobrar do governo uma ação política no
sentido de intervir por meio da educação e da medicina na sociedade.
Os médicos e colaboradores do periódico não pouparam esforços e nem proposições.
Engraxates e jornaleiros recém libertos da escravidão, entregadores de recados, e mais tarde
trabalhadores das indústrias, dentre inúmeras outras categorias que serviam a elite e a
sociedade por meio de serviços considerados desumanos, como por exemplo, carregadores de
dejetos humanos e que aproveitavam homens, mulheres e crianças nos diversos serviços
exigidos em nome do progresso, foram alvos no processo de intervenção higienista.
No cerne das inúmeras questões que não podemos deixar de refletir, a que diz respeito
aos leitores privilegiados se apresenta como uma das mais relevantes. Nem o significativo
percentual de analfabetos existentes no país inviabilizou o médico e redator-chefe de tornar
realidade o seu empreendimento, pois a elite daquele período se fazia propagadora de notícias
e discursos fomentados pelos periódicos e multiplicados pelos leitores e ouvintes. Burguesia
essa que seria a responsável na política de multiplicação da nova educação e no surgimento de
uma nova sociedade. No que se refere a classe popular e a educação uma preocupação maior
suscitava naquele momento e dizia respeito principalmente aos escravos libertos e aos pobres
quanto a sua colocação na sociedade, a prevenção dos mesmos à criminalidade e a educação à
qual ele teria de ter.
No entanto o educar significava muito mais do que previnir a criminalidade e as
“desordens sociais”, afirma Schueler em seu artigo “Crianças e escolas na passagem do
Império para a República” publicado pela Revista Brasileira de História na Universidade
Federal Fluminense em 1999. Em meio a preocupação com a educação das crianças pobres, as
proposições voltadas a criação de espaços escolares, colônias agrícolas, oficinas e institutos
profissionais, que foram se constituindo como produtos nos debates em busca de resolver os
problemas relacionados a chamada “transição do trabalho escravo livre”, principalmente no
que diz respeito ao contexto do pós-1871. O advogado, professor e político liberal Leôncio de
Carvalho já apregoava naquele período uma educação popular focada na aprendizagem de
ofícios e tinha a instrução primária como suficiente para as crianças pobres, livres ou libertas.
73
COSTA, cena III, op. cit., nota 72, p.95.
O doutor Carlos Costa em seus artigos, Palestra do Médico, indicia como sendo a
população da época, na sua maioria, independente da classe, ignorante no que se refere a
manutenção da saúde física e mental, colocando as mães como ignorantes no que diz respeito
a educação e cuidados com os filhos, uma visão higienista na época, onde muitas creanças
eram largadas a própria sorte.
A criança quer seja nascida entre o damasco e a sêda, quer seja oriunda dos
desprotegidos da sorte; quer tenha visto a luz entre douradas paredes de um palacio ou entre os
cáfesaes de uma fazenda, na maior parte das vezes é entregue aos caprichos da natureza que
nem sempre é previdente...As mulheres em nosso paiz não cumprem tanto quanto deviam os
sagrados deveres de mães....(...) a partir dos conhecimentos advindos com a ciência,
estabeleceram diferentes estratégias visando ensinar as mães a nutrir, criar, zelar e educar as
crianças desde a primeira idade, mas também orientá-las sobre os cuidados que deveriam ter
com a habitação, a alimentação, o vestuário e a higiene.74
74
COSTA, op. cit., nota 2, p.1.
Imagem 4 – Catalogue Générale de la Librairie Fançaise.1876.
Rédigé par Otto Lorenz.
Referência as obras literárias do médico francês
André Théodore Brochard e ao Jornal “la jeune mére”.75
75
Catálogo pesquisado, via internet, em 20 de junho de 2008, no site da Bibliotèque Nationale de France.
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k48728.image.r=Catalogue+G%C3%A9n%C3%A9ral+de+la+librairie+fan
%C3%A7aise+depuis+1840.f1.langPT.
Considerações Finais
Ao investir esforços no objeto de análise teórica, o jornal A Mãi de familia, com foco
nos textos teatrais, norteado por uma perspectiva educativa e higienista do século XIX no Rio
de Janeiro, procuramos entender o real motivo pelos quais os médicos higienistas resolveram
atuar na escrita e na publicação de textos teatrais. Na busca por compreender e clarear as
questões suscitadas em meio ao processo de pesquisa, com relação a medicina, a higiene, a
educação e os textos literários teatrais, entendemos que os textos surgem como uma crítica
social, ao mesmo tempo, em que se procuravam impor uma mudança de hábitos familiares
inculcando valores virtuais que possibilitava avanço salutar na sociedade. Acreditamos ainda
que na visão dos higienistas o que tornava os textos teatrais próprios e adequados as
representações nas férias escolares educacionais, era exatamente a possibilidade de trazer a
cena questões que incomodavam os higienistas quanto aos cuidados com a saúde da mulher,
da mãe, da criança, da família e da cidade.
Tais questões se encontram nos artigos do jornal e tem a haver com a proposição de se
conferir um outro estatuto as crianças no momento em que o Colégio por meio de suas
Diretoras e alunas se propõe a montar e dramatizar os textos teatrais, inserindo, portanto,
valores sociais necessários, que segundo os médicos higienistas se faziam imprescindíveis na
formação de uma nova sociedade e na reconstrução da família.
Considerando o contexto ao qual se encontravam inseridos os personagens sociais e as
condições educacionais existentes àquele período, algumas ações privadas referentes à criação
de espaços escolares eram tomadas com foco na elite. Porém, o Estado começava a investir,
mediante pressão política institucional higienista, em um processo educativo e instrutivo em
relação a população pobre, composta por negros libertos ou ex-escravos envolvendo a
inserção social e principalmente a idéia de que era preciso atuar preventivamente no processo
de ampliação da população “marginal, criminosa”, mais com uma configuração diferenciada
dos colégios privados existentes.
As ações realizadas pelos médicos, no sentido de escrever e publicar os textos
literários teatrais indicia uma manifestação consciente no sentido de fomentar o
desenvolvimento do Estado. Mesmo ciente da existência de um alto índice de analfabetos e
que alguns poucos intelectuais no país são privilegiados quanto a leitura, sabe-se, porém, que
havia uma prática dos plebeus de se fazerem ouvintes das leituras desses privilegiados, o que
proporcionava portanto a fomentação e ampliação da informação desejada pelos higienistas e
a inculcação dos propósitos educacionais estabelecidos pelos médicos higienistas, utilizando-
se do sentido da audição.
Quanto aos textos literários teatrais a que se propõe escrever os médicos Carlos Costa
e Pires de Almeida encontram-se fundamentados em experiências empíricas focadas numa
atualidade social das quais os mesmos são propositores de mudanças urgentes em prol do
progresso que se objetiva para o país.
No que concerne às questões problematizadoras e mobilizadoras do projeto esperamos
ter possibilitado, no decorrer do processo de investigação, desenvolver o entendimento ou
pelo menos ampliar as questões e o interesse sobre o tema. Não temos nenhuma pretensão de
responder com a verdade as questões suscitadas, é claro. Mas, esperamos ter provocado o
interesse nos assuntos tratados na pesquisa, em especial pelo teatro como ferramenta
pedagógica capaz de intervir e auxiliar no processo educacional do sujeito, bem como na
mudança de comportamento de toda e qualquer sociedade.
A proposta inicial de inserir na integra todos os textos teatrais como o realizado com
“A herança” de J. A. Guyet, não se fez possível devido a enorme quantidade de cenas a serem
analisadas e muitas se tornariam repetitivas dentro do contexto, além de alguns textos também
não conterem todos os atos e cenas e por serem extremamente grandes no quantitativo de
cenas. Então resolvemos apenas utilizar o primeiro texto publicado no jornal e assim se
aprofundar na leitura dos demais textos a fim de analisá-los e traçar um comparativo com o
texto “A herança” pelo viés da educação, da família, da mulher, da mãe, da criança, da
intervenção higienista e dos valores sociais que se pretendia inserir nas mudanças de hábitos
da sociedade vigente naquele período.
Bibliografia
“Um Baptisado na Dr. Pires de 1884 comedia 30, 38, 47, 54, 63, 70,
cidade nova” Almeida 86, 94, 102, 109.
“Tempestades do Dr. Pires de 1884 Drama 117, 134, 142, 150, 158,
coração” Almeida 166, 173, 182, 190.
“A herança” J.A. Guyet Abril de 1883 comedia 54, 55, 63, 64, 93, 94,
95.
5º anno N. 8
“Os pretendentes” Dr. Carlos 1887 comedia 93 e 94; 109 – 111; 117
Costa – 119; 126 e 127.
Anexo 01: Quadro dos Textos Teatrais publicados no jornal A Mãi de familia.
A Mãi de familia
Referência: I 274, 1, 7
Inventário BN 00.158.187-7
2º anno N. 1
Janeiro de 1880
Livro 2
Variedade
Referência: I 274, 1, 7
Inventário BN 00.158.187-7
2º anno N. 2
Janeiro de 1880
Livro 2
Livro de Pharmacia 16
receitas. domestica –
(culinárias do Fórmulas de
séc. XIX) licôres
Explicação do Janeiro. N. 2 16
Figurino
colorido.
A Mãi de familia
Referência: I 274, 1, 7
Inventário BN 00.158.187-7
2º anno N. 3
Janeiro de 1880
Livro 2
Referência: I 274, 1, 7
Inventário BN 00.158.187-7
2º anno N. 4
Janeiro de 1880
Livro 2
Hygiene alimentar.
Caracteres de uma boa
carne.
A Mãi de familia
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 1
Janeiro de 1881
Livro 4
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 2
Janeiro de 1881
Livro 4
Obs: extrahido do
jornal La Jeune
Mère.
Vaccinações e Continuação n. 24 13
revaccinações.
Variedade Nhô Nhô A gula. 14 e 15
Guloso
Crianças atacam
armário.
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 3
Janeiro de 1881
Livro 4
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 4
Janeiro de 1881
Livro 4
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 5
Janeiro de 1881
Livro 4
Vaccinações e 36
revaccinações.
Sua utilidade
actual.
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 6
Janeiro de 1881
Livro 4
Hygiene alimentar. O 45
pão
Referência: I 274, 1, 8
Inventário BN 00.158.187-7
3º anno N. 8
Janeiro de 1881
Livro 4
Capa
A acção passa-se na casa de campo de mme Révissac. (Um salão. Porta ao fundo)
Scena primeira
Mme. Mérillon, Maria, Rosina. (As duas camareiras vestidas como meninas).
Mme Mérillon. – Recommendo-lhes, pois, a maior discrição. Não vão agora dar com a língua
nos dentes e declarar ás tres primas quaes os meus planos. Ellas sabem bellamente que a
herança de Mme Révissac caberá á mais avisada de suas sobrinhas; mas ignoram que ao
talento serão preferidas as virtudes. E’ esta a disposição reservada do testamento...Vejam lá si
a descobrem.
Maria. – Não, senhora; procuraremos pelo contrario ajudal-a naquillo que estiver ao nosso
alcance. Mas cá por mim confesso que não sei a que genero de experiencias devo submettel-
as.
Mme. Mérillon. – Não me interrompa, Maria. Conversem com as tres primas; procurem
depois captar-lhes a confiança, o que é facilimo entre moças. Prestem toda a attenção ás suas
conversas e ao que dizem particularmente umas das outras.
Mme. Mérillon. – Fallem pouco e ouçam muito; é o meio mais seguro de instruir-se a gente.
Depois contar-me-ão o que houverem colhido. Fico portanto tranquilla pelo que toca a vocês.
Maria. – Ah! Minha ama, si por hoje só eu soubesse metade do que a senhora sabe!
Mme. Mérillon. – Basta. Estudem os seus papeis; eu vou ver se já chegaram as minhas
amiguinhas. (sae.)
SCENA II
Maria, Rosina
Maria, Tomando um ar affectado, a cabeça inclinada para traz e os braços cruzados sobre o
peito. – Que tal, hein, Rosina?
Rosina, a mão esquerda na ilharga e fingindo que se abana com o leque. – Hein, Maria? Que
tal?
P.55
Scenna III
Carolina. – Bom dia, mesdemoíselles! (Maria e Rosina inclinam-se.) Desejava fallar a Mme
Mérillon.
Maria. – Não tarda. Tenha bondade de esperar um momento. Queira sentar-se...Está fatigada?
Carolina. – E com razão, viemos a pé. Não sei porque achei o caminho mais longo do que
quando era pequena...(senta-se.) Com licença, mesdemoiselles.
Luiza. – Oh! Porquem é! Não se incommode por minha causa. Sou mais robusta do que
Carolina; o passeio não me produziu cansaço.
Carolina. – Minha amiga Luiza não tinha os mesmos cuidados que eu. As minhas
apprehensões concorreram para tornar mais longa a jornada.
Carolina. – Vejo que me conhece e sabe para que fim nos reunimos hoje aqui. (levantando-se)
Mme Révissac, minha Boa Tia, determinando que eu e minhas primas viéssemos a esta casa
prestar exame, teve por fim estimular a nossa emulação no estudo, e pela minha parte acudo
ao seu appello com a maior alegria.
Maria, maliciosamente. – Não é esse creio eu, o fim unico da reunião; o resultado do exame é
importantissimo, porque dotará a mais digna com uma fortuna de seiscentos mil francos.
Carolina. – Não ignoro essa circunstancia, mademoiselle, que pouco me seduz. O que eu temo
é mostrar-me no exame inferior ás minhas primas; mas verei sem inveja que uma dellas
enriquece á custa da minha ignorancia. O que sobretudo respeito, é a ultima vontade da minha
tia.
Maria. – Esses sentimentos são nobres e belos na verdade; mas peço-lhe que os ponha de
lado. Não conheço suas primas: quer-me parecer, comtudo. Que não terão a sua abnegação.
Seiscentos mil francos não fazem mal a ninguem. Mademoiselle inspira-me sympathia e
ficarei contrariada si lhe não couber uma fortuna tão bonita. Empregue, empregue todos os
esforços para ganhal-a.
Carolina. – Empregarei todos os esforços para mostrar-me digna della; mas o meu
adiantamento nos estudos não me inspira illimitada confiança. E ainda mesmo que eu sahisse
victoriosa, tenho para mim que offenderia minhas primas acceitando para mim só essa grande
fortuna. Desejava repartil-a igualmente entre nós.
Rosina, á parte, batendo com o cotovello em Maria. – Toma para o teu tabaco! (alto) E’
necessário, mademoiselle Carolina, que a avisemos de uma cousa; os bens de Mme. Révissac
estão em grande parte hypothecados e não sei si chegarão para pagar os credores.
Rosina. – Mme. Mérillon está o jardim. Si querem que as acompanhe até lá...
Carolina. – Com todo o gosto! Tenho muita vontade de apresentar os meus respeitos á amiga
de minha tia. Vamos. (saem.)
P. 63
Scena IV
Maria, só. – Si as duas outras primas si parecem com esta, estamos arranjadas...Com que
prumo e ao mesmo tempo com que ingenuidade nos respondeu...E no entanto é uma
creança...Ah! a educação! ...Que thesouro! Foi pena que minha pobre mãe (Deus tenha em
paz a sua Alma!) Não tivesse meios para mandar-me educar...Eu dava uma verdadeira
senhora...Sim, porque não havia de dar? Mas paciencia...Nunca é tarde para aprender...Vou
comprar livros...Estudarei de dia e de noite...Queimarei as pestanas...Quando eu souber
bastante, talvez que alguma fidalga me escolha para herdeira...Mas ouço passos...Voltemos ao
meu papel de menina.
Scena V
Maria, Virginia
Virginia, sem vêr Maria. – E’ extraordinario que eu não encontre ninguém em casa!! Não era
assim no tempo de minha tia.
Virginia, vendo Maria. – Ah! Perdão, mademoiselle, não a vi quando entrei. (comprimenta.)
Maria. – Conheço-a, a mademoiselle, porque tenho ouvido Mme Mérillon gabar muitas vezes
as sua bellas qualidades, e disse-me também que morava perto daqui.
Virginia. – Vejo que conhece os nossos segredos. Estou fallando a uma amiga de Mme
Mérillon. (Maria faz sinal affirmativo.) Fallou-lhe com louvor a meu respeito; mas eu sei que
Mme Mérillon é muito bondosa.
Maria. – Engana-se, Mademoiselle; Faz-lhe apenas justiça, e aqui que ninguém nos ouve
deixe-me dizer-lhe: Mme Mérillon manifesta decidida preferência por mademoiselle. Póde ser
que eu me engane; mas estou capaz de apostar em como lhe há de vir a pertencer a herança de
mme Révissac.
Virginia. – Sou muito obrigada a Mme Mérillon; mas experimentaria grande desgosto si, por
uma preferência que cousa alguma justifica, fosse a causa de uma humilhação feita a minhas
primas. Não era essa a vontade minha tia.
Maria. – Com certeza não haverá injustiça; mas a senhora é filha do irmão de mme Révissac.
Suas primas, filhas das irmans della, não teem o seu nome. E’ preciso attender a isto. Além
disso o senhor seu pae prestou grandes serviços á família; era elle quem administrava as
propriedades de sua irman. Todos esses serviços hão de entrar em linha de conta. Ora
vamos...São favas contadas...A herança é sua.
Virginia. – Esses serviços são apenas títulos accessorios e nullos para a intenção de minha tia
e nada pesarão na balança. Herdará a que tiver mais mérito, eis tudo! Se me couber a fortuna
bem sei o que farei.
Maria. – Mas nesse caso a herança não caberá a nenhuma; não se póde dividil-a, cumpre que
saiba...
Virginia. – Oh! Não falemos mais nisto...já terão vindo minhas primas?
Maria.- Sua prima Carolina chegou ainda agora; está no jardim com mme Mérillon. Bem vê
que sua prima sabe aproveitar o tempo; julgava-a menos desinteressada...
Virginia. – Engana-se; a senhora não conhece a Carolina. – Então falta apenas a Isabel.
Verdade é que ella mora a seis léguas daqui...virá talvez mais tarde e de carro...
Scena XII
Isabel. – E tu Carolina?
Rosina. – Oh! Isso não vae assim. No caso que nenhuma obtenha o premio, a herança sera
distribuída pelos pobres.
As mesmas, Celeste
Scena XIV
Maria, Rosina
Maria.- Ah!
P. 94
Maria. – Nada!
Rosina. – Mme Mérillon há de ver-se embaraçada para decidir. Ella ahi vem.
Scena XV
Mme Mérillon. – Ainda bem! Mas afinal o que fizeram vocês? Pozeram á prova a sua
caridade?
Rosina. – Disse-lhes que a herança de Mme Révissac estava destinada aos pobres.
Rosina. – Pintou-se-lhes a alegria no rosto; que era uma boa acção pela qual seriam
recompensadas.
Maria. – Muito agradecidas; e sobre este ponto mademoiselle Isabel reprehendeu-me com
tanta vehemencia que me meteu medo.
Mme Mérillon. – E’ porque são mais tímidas. Procuram descobrir si tinham inveja umas ás
outras?
Rosina. – Todas disseram que minha ama é muito justa e instruída. E não disseram mentira
nenhuma.
Maria. – E antes de começar o exame juraram que haviam de amar-se sempre, fosse qual
fosse o resultado do concurso. Mas devo dizer-lhe, minha ama, que mademoiselle Isabel se
encolerisou contra mim.
Mme Mérillon. – Encolerisou-se contra as mentiras; a esta hora já não se lembra mais disto.
Vocês vão ver. Chame-as.
Scena XVI
Mme Mérillon, Rosina.
Scena XVII
Mme Mérillon, ás tres primas. – Reconheci com prazer que fizestes notaveis progressos nos
vossos estudos, e por isso vos dou os meus parabéns. Não me surprehendeu a igualdade de
adiantamento que há entre vós. A este respeito Mme Révissac teria apenas motivo para
orgulhar-se. Mas é precisamente essa egualdade que me colloca em grande embaraço, e não
sei qual de vós deva preferir. Devo consultar-vos sobre um caso tão delicado. Mademoiselle
Isabel, qual de vós é digna do premio?
Isabel. – A mais virtuosa e a menos rica. A mais virtuosa é Carolina; a menos rica é Virginia.
Carolina. – A que minha tia mais amava e aquella cujos Paes lhe prestaram mais serviços. A
primeira é Isabel; a segunda é Virginia.
P. 95
Virginia. – Aquella cujos sentimentos são mais nobres, Isabel; e a que más faz lembrar as
qualidades minha tia, Carolina.
Mme Mérillon. – Gosto de vos ouvir fallar assim, minhas boas amiguinhas. Todas vós sois
dignas do premio.
Celeste. – Minha senhora, permitta-me que lhe apresente uma sentença, que escrevi a seis
mezes. (apresenta um papael.)
Mme Mérillon. – Ah!Ah! então eu não era o único juiz. Vejamos (Lê) e considerando que
mademoiselles Isabel, Carolina e Virginia são de um mérito absolutamente egual em talentos,
mandamos e ordenamos que a herança seja dividida entre ellas.” Esqueceu-lhe um
considerando, Celeste: “Mandamos e ordenamos” transpira muita onipotencia.
Luiza, a Mme Mérillon. – As nossas amigas tinham combinado dividir a herança em três
partes.
Isabel. – Oh! Minha senhora, perdoe-nos! A nossa intenção não foi essa. A que obtivesse o
premio não o dividiria; dal-o-hia ás outras como presente.
Mme Mérillon, sempre com severidade. – E illudireis a decisão. Isso felizmente não denota
em vós um vicio do coração, porque neste caso eu addiaria o meu julgamento para a épocha
mais afastada. Creanças que sois! Manifestastes somente quanto sois inexperientes! Mme
Révissac previu o caso de accordo entre vós e levando – o a effeito afastareis para sempre da
vossa família a sua fortuna, que passaria a pertencer ao governo. Vede, minhas amigas,
quanto é perigoso conspirar.
Carolina. – Creia, minha senhora, que esta licção nos será muito proveitosa.
Isabel. – O seu nome, minha senhora, confundir-se-á em nossos corações com o denossa
querida tia.
Mme Mérillon. – Obrigada, minhas amiguinhas; sinto-me feliz com o que fiz.
Isabel, voltando-se para Maria. – Como! Então estava aqui para nos tentar?
Rosina, ao publico. – Minha avó, que tinha um provérbio para cada coisa, desta vez é que
podeia dizer: Duro com duro não faz bom muro.
Cae o panno
J.ª Guyet.