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Los Angeles mon amour David Lynch reinventa a nareativa filmica em Mulholland Dr, radicalizando as esperiéncias formais do filme de autor europeu em pleno coragio da inddstria cinematogrifica americana Marcus Mello Mestre em Ltenatara Baska polo UERGS Programador da Sala PF Gastal Desde sua estréia no Festival de Cannes em 2001, Mulholland De. (Cidade dos Sonbos, no Brasil), tltimo longa metragem do diretor americano David Lynch, tem intrigado criticos ¢ espectadores de diferentes latitudes com sua trama 20 mesmo tempo hipnética ¢ cnigmstica, O filme, vencedor do prémio de melhor diregio em Cannes, é um divisor de Sguas na carreira de Lynch, que supera a si proprio € realiza uma obra radicalmente experimental, expandindo as possibilidades da narrativa cinematogréfica a limites até entio nao aleangados. final de contas, 0 que havers de tio misterioso assim ‘em Mulholland Dr, a ponto de o filme provocar discussbes interminiveis e originar centenas de artigos em busca de uma solugio para seus enigmas? De uma forma muito resumida e simplificada, mas também redutora e arbitréria, poderfamos dizer que Mulholland De conta a histéria de Diane (Naomi Watts), uma jovem ingénua, aspirante a atriz, que chega a Hollywood em busca de sucesso. Lé vera naufragar seu desejo de alcancar o estrelato, a0 mesmo tempo que se apaixona por outra candidata a atriz, a bela e ambiciosa Camilla Rhodes (Laura Elena Harring). Enquanto a carreira de Camilla decola a de Diane fracassa, o romance das duas também entra em crise. Consumida pelo citime, pelo sentimento de derrota e pela inveja, Diane manda matar Camilla e depois se suicida. Seria muito ficil, se tudo nao fosse narrado através da légica cesquizofrénica da protagonista, o que transforma Mulholland Dr numa espécie de quebra-cabeca de ccluldide, cujas pecass6 iro se encaixar (talvez) numa segunda visio do filme. Porque quando a histéria comeca Diane chama-se Betty, Camilla cchama-se Rita, ¢ ainda estamos longe do momento que marca reviravolta completa da trama, a magistral seqiiéncia do ‘Clube Silencio (a que voltaremos adiante), onde tem inicio 0 {que poderiamos chamar de "segundo movimento" do filme, a partir do qual seremos levados a reorganizar tudo aquilo que foivisto antes. [Um aspecto que tem sido muito realcado por aqueles que se aventuram a analisar Mulholland Dr &a sua relacio coma esfera do sonho, reduzindo as intengdes de Lynch a uma mera recriacio cincmatogréfica da experiéncia onirica, 0 que nos parece insuficiente para dar conta da complexidade do filme ¢ ‘de suas intimeras camadas de significacio. Por esta razio preferimos nao utilizar o seu titulo brasileiro. Mais adequado seria tomar emprestado o titulo dado no Brasil a um clissico dos anos 60 dirigido por Samuel Fuller, Poides que Alucinam (Shock Corsidor, 1963). Cairia como uma luva para o filme de Isto porque, antes de representar Los Angeles como uma "cidade dos sonhos", 0 que o diretor esté realmente propondo em Mulholland De é um mergulho abissal na relacio desesperada ¢ trigica de duas mulheres, mostrando o efeito alucinatério que a paixdo pode exercer sobre os individuos, alterando nio apenas a sua capacidade de percepgao da realidade, mas principalmente a compreensao que eles tém de si préprios, jé que © sujeito apaixonado € freqiientemente possuido pelo outro, abjeto de sua paixio ¢ desejo. E sobre isso, em esséncia, que fala o filme: a perda de identidade provocada pela paixio. Num segundo nivel, odiretor conferea Mulholland Dr. um caréter metalingiifstico, introduzindo nas centrelinhas de sua delirante fantasia camp um comentério sutil sobre as distorgies que a paixao e o fascinio exercidos pelo cinema conseguem provocar sobre a percepgio dos espectadores diante daquilo que se convencionou chamar de "realidade", Aqui entra a critica de Lynch ao cinema de Hollywood e 4 televisio, com sua pretensio de vender ao mundo uma representagio padronizada de um certo modo americano de vida, e neste ponto o filme atinge mesmo 0 nivel da parédia, a0 mimetizar os excessos das soap operas e seriados de televisio, que em sua busca incessante de prendera atengio do piblico abrem mio de toda a l6gica e verossimilhanca, {ntroduzindo reviravoltas absurdas na trama a fim de aumentar os indices de audiéncia. Ao promover este ataque irdnico e violento a Hollywood, cujo motivo central € um romance lésbico narrado como se fosse um longo fluxo de consciéncia joycea- no, repleto de elementos oniricos, personagens bizarros, pistas falsas ¢ duplos sentidos, Lynch de certa forma reinventa © “filme de arte” numa clave pop € pulp, reciclando os postulados do cinema de autor europeu a partir da combinacio de elementos do cinema cléssico hollywoodiano & de férmulas narrativas consagradas pela televisio (vale lembrar «que Mulholland De foi conccbido originalmente como piloto de uma série encomendada a Lynch pela rede ABC). Experimentalismo para as massas E a partir de 1959, um ano emblemético para o cinema, no qual foram produzidos titulos fundadores como Acossado, de Jean-Luc Godard, Hi nour, de Alain Resnais, Pickpocket, de Robert Bresson, e A Aventura, de Michelangelo Antonioni, que o filme de autor europeu passa a ganhar projecdo internacional, originando uma verdadeira explosio dos assim chamados "cinemas noves", em paises tio dis de 60, as salas de exibigao do mundo inteiro sero invadidas :0s quanto o Brasil e 0 Japo. Ao longo de toda a década por filmes marcadamente autorais, cuja repercussio ser tio imensa que acabari atingindo até mesmo a toda poderosa ¢ hegeménica indistria cinematogrifica norte-americana. Os estiidios de Hollywood vivem sua maior crise econémica, mas, por outro lado, 0 cinema americano conhecerd sua prépria "nouvelle vague", através do surgimento de uma nova geracio de jovens realizadores de extraordinario talento e com nitidas pretensdes autorais, onde vio se destacar os nomes de Prancis, Ford Coppola, Martin Scorsese, Brian De Palma, Robert Altman, John Cassavetes e Woody Allen ais acelerado de infantilizagio do cinema, a partir da reacio de Hollywood ao avango das.cinematografias_nacionais. George Lucas ¢ Steven Spielberg formula de "filme para toda a familia", com a diversio escapist proporcionada pelas séries Star Wars e pelas aventuras do h ado Indiana Jones ancorando a dominacgio do me natogréfico internacional. Aliando agressivas estratégias, de marketing a uma nao menos violenta monopolizagio dos camais de distribuigio e exibicio, os grandes esttidios americanos consolidam a férmula do blockbuster, que definiu a face do cinema nas duas diltimas décadas. De alguns anos para c&, porém, Hollywood parece dar sinais timidos de estar cansada de ver seu nome associado apenas a explosdes, ogros verdes © batalhas intergalicticas, ¢ comega a investir em propostas mais adultas, abrindo espaco inclusive para a experimentagio.narrativa, garantindo a produgdes_mais audaciosas os beneficios de uma ampla distribuigio e de generosos investimentos publicitérios, © que, conseqiien- temente, assegura 0 retorno de receitas compen: bilheterias. Exemplos recentes, menos ou mais bem sucedidos, se acumulam: Pulp Fiction, de Quentin ‘Tarantino (1994), Assassnos por Natureza, de Oliver Stone (1994), Estrada Perdida, do préprio Lynch (1997), O Mist Auster (1998), A Bruxa de Blair, de Daniel Myrick © Eduardo (1999), Amnésia, de Christopher Nolan (2000), ou de Mike Figgis (2000) E neste contexto que surge Mul Lulu, de Paul Sinche: Time ind Dr, um feito cinematogrifico surpreendente em todos os seus aspectos. Ainda que tenha sido desprezado pelos executivos da rede ABC e finalizado com os recursos do produtor francés Alain Sarde, Mulholland Dr. foi gerado nos dominios da televisio aberta americana, 0 iltimo lugar do mundo onde suspei farfamos que uma obra dessa natureza pudesse surgi Concebido como um filme de mistério onde o maior enigma esté na recuperagio de uma possivel linearidade perdi¢ narrativa, Mi intelectual ab pura, ind Dr. consegue ser um olatamente sofisticado sem privar o espectador da diversio. de toda a trama, por a que cla possa parecer. E como se a crise da narragSo, questio central da literatura do século XX, finalmente chegasse 20 coracio da indiistria cinematogrética, promovendo um improvivel dislogo entre duas visoes. de cinema aparentemente irreconeiliéveis, Um cinema abstrato Embora tenha nascido com a pretensio de ser a arte do século XX por exceléncia, 0 cinema terminou construindo sua gramética sobre as formulas narrativas mais convencionais do realismo/naturalismo. Boa parte dos filmes ainda hoje produzidos seguem prestando tributo a literatura de Zola ou Dickens, numa época que jé assimilou -e até mesmo superou - as inovagées formais de James Joyce, Marcel Proust e Virginia Woolf ou, ainda, a revolugio plistica de um Pablo Picasso ou de um Jackson Pollock (esta é uma das principais razdes pelas {quais o cinema ainda continua sendo considerado uma arte menor em determinados circulos). Mulholland Dr pode ser, afinal, um sinal de que 0 ‘cinema comega a ensaiar uma resposta a literatura de Joyce ou as abstragoes pi t6ricas de Pollock. Nao que isso seja algo inédito, As vanguardas cinematogr déca nacionais também produziram intimeros titulos que flertavam icas ja tentaram isso nas jas de 20/30, Os anteriormente citados cinemas com o hermeti no. No entanto, produgies como O Ano de Resnais (1961), Oito e Meio, de Fellini (1962), ou Persona, de Bergman (1966), ja vinham carimbad Passado em Marie com a pecha de "filmes-cabeca", para serem discutidos nas mesas do bar da universidade apés sessdes em salas do chamado circuito de arte. Ao povoar sua narrativa com diversos personagens - o gingster, a heroina ingénua, a f fatale, o assassino de aluguel -e situagSes familiares a0 universo ogrifico cliss ~ a perda da meméria, a morte por encomenda, a busca pelo estrelato em Hollywood, a investigacio policial -, Lynch realiza o milagre de tornar um filme claramente experimental numa experiéncia tio palative! e divertida quanto um epis6dio da série Arguiro X. Acionando uma colecio de icones cinematogrificos com os quais o piblico tem identificag confianca e cumplicida ‘Mas entio jé ¢ tarde, pois estamos completamente envolvidos imediata, Lynch ganha a sua ., para em seguida deixs-lo sem chi. pelo drama de Rita/Camilla ¢ Betty/Diane. A exemplo de Resnais, em Hiroshima Mon Amour, que rastreia os descaminhos da paixio mostrando as. incias de um casal de amantes pelas, ruas de uma cidade que perdeu a identidade depois de ser arrasada pela acrra, Lynch acompanha os passos incertos de duas mulheres apaixonadas pelas ruas sinuosas de Los Angeles, também uma cidade em crise identitéria por nao conseguir ‘mais distinguiras fronteiras entre realidade e simulacro. E curioso ver como este americano de Montana alia o cerebralismo de um certo cinema francés ao transbordamento melodramético de cinematografias mais mediterraneas - em especial a espanhola e a italiana -, dando ao espectador a sensagio de estar assistindo a um filme de Almodévar roteirizado por Alain Robbe-Grillet. Esta dualidade esté presente o tempo todo em Mulholland Dr. O filme marcado por uma constante tensio entre transparéncia ¢ opacidade, contengio e arrebatamento, racionalismo e passionalidade. Tal oposigio é representada exemplarmente pelas duias cenas mais importantes do filme: a seqiiéncia da festa na casa do diretor Adam Kesher (Justin Theroux) ¢ a jécitada incursio das duas protagonistas pelos dominios nebulosos do Clube Silencio, conduzidas pela vor. sublime da cantora Rebekah Del Rio. O que Lynch pretende na cena da festa & muito claro: através dela nos reorganizar tudo aquilo a que assistimos antes, pois ai esto presentes praticamente todos os personagens vistos na primeira parte do filme, s6 que assumindo outros papéis, colocados em situages diferentes, revelando outras atitudes. Com uma precisio matemitica, as pegas do quebra-cabeca vio se juntando. Ao longo de toda esta seqiiéncia vemos desabar 0 "mundo ideal" de Diane, onde o diretor arrogante que nio Ihe deu o papel que ela tanto almejava, e ainda lhe roubou a amante, € traido e humilhado pela mulher; Camilla Rhodes no passa de uma atriz sem talento que s6 consegue protagonizar um filme através da interferéncia de um grupo de afiosos ameacadores; a mie do diretor Adam Kesher (Ann Miller, atriz dos antigos musicais da Metro) é sua sindica; ¢ ‘quem precisa de ajuda para recuperar a identidade - ou seja, tornar-se alguém em Hollywood - é Rita (na verdade, Camilla). E com este mesmo rigor que Lynch espalha pela simbologia, ainda que o faca de forma hidica, brincando com suas convengdes € ironizando suas facilidades. Tomemos 0 exemplo da misteriosa caixa azul, que quando aberta por Rita nos "suga" para seu interior, sinalizando 0 inicio da segunda parte do filme. Num tinico elemento de cena, estio presentes dlois signos consagrados pelo vasto repertério simbélico ocidental, a caixa e a cor azul. Em seu Diciondrio de Stl Jean Chevalier e Alain Gheerbrant descrevem a caixa como "o inconsciente com todas as suas possibilidades inesperadas, excessivas, destrutivas ou positivas, mas sempre irracionais quando deixadas entregues a si mesmas". As significagées da cor azul, conforme descritas por Chevalier/Gheerbrant, apenas reforcam esta suspeita. Tida como a mais imaterial das entre realidade e imaginac3o, quando 0 pensamento consciente "vai pouco a pouco cedendo hugar ao inconsciente, insensivelmente a luz da noite, oazul da noi esfera, Trata-se de um momento magnifico, onde demonstra seu dominio absoluto dos recu os expressivos do cinema, Sentadas na plateia, Betty ¢ Rita véem um mestre de ceriménias anunciar a cantora Rebekah Del Rio, "la llorona de Los Angeles". Quem entra em cena é uma mulher de aparéncia vulgar, excessivamente maquiada, mas que quando comeca a cantar a capella uma versio em espanhol da msica de Roy Orbinson, nos joga numa espécie de transe hipnético. Sua voz extraordinéria parece conduzir a mise-en-scéne de Lynch para um territério no qual realidade, sonho, imaginacio, cinema ¢ teatro se confundem. De mios dadas, Betty ¢ Rita choram, como se a simples audigio da miisica de Orbinson revelasse a ambas todos os instantes sublimes e também os acontecimentos terriveis que o destino esté para Ihes reservar (ou que elas jé viveram). Lynch realiza nesta cena uma das mais duramente perseguidas ambigées da literatura moderna, a criagio da epifania, esse sentimento raro de revelagio que a obra de arte pode provocar no espectador, sentiment li algo que nio se pode nomear ow fazer representar por imagens. Diante desta seqiiéncia, temos uma sensagio similar & experimentada a0 contemplarmos uma tela de Prancis Bacon ‘ou uma fotografia de Diane Arbus, que, apesar de utilizarem signos reconhecfveis e até mesmo banais na sua composicio (a figura humana, méveis, objetos), criam possibilidades de representagio do irreal, do ambiguo, do imaterial. E o cinema squecimento, alucinag ape carrega dent parandia, ilusio e deliric algumas das zonas de si, em sua eterna psiquicas que o individ divisio entre estados de consciénciae inconsciéncia As tentativas de desvendar os mistérios de M Dr continuam a surpreender por seu mimero e diversidade, mas, na verdade, a nica coisa que talvez possa ser dita com certeza a respeito desta obra-prima de David Lynch que qualquer leitura « ica, por mais exaustiva que seja, jamais reduz seu carster fugidio e enigmatico. A quem indagar sobre © mérito de um filme que precisa ser revisto para revel completamente ao espectador, respondo com outra pergunta: gnificados qual o mérito de um filme que esgota sua carga de numa tinica visio? O critico ¢ cineasta Carlos Reichenbach costuma repetir sempre que, em se tratando de cine importante nio é ver, mas rever. Mulholland Dr. pertence estirpe, cada vez mais rara, dos filmes que merecem ser revistos. Assisti-lo pela primeira vez.é como fazer sexo com um, novo parceiro, Por melhor que sea o primeiro encontro, ainda estamos num territério desconhecido, nio sabemos até onde podemos ir ou, mais ainda, a que alturas seremos transportados. Nas vezes seguintes, vamos pisando 0 terreno com maior seguranga, mas o mistério persiste, porque o outro sera sempre estranho e nunca saberemos até que ponto a entrega é completa. Isto talvez explique a enorme carga de senstalidade que Mulholland Dr faz explodir na tela e esti explicitado na cena em que Betty e Rita fazem amor pela primeira vez, entregando-se a aventura de uma experiéncia erética nova para ambas. Nao poderia ser diferente num filme que se impée sobretudo como metifora da paixio. E, da ‘mesma forma que a paixio, nos mergulha irremediavelmente num mundo de lize sombra, prazere dor, maravilha e horror:

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