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A PRODUÇÃO DE MEMÓRIA

BIOTECNOLÓGICA E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS CULTURAIS

Jonatas Ferreira

E o rei replicou: “Incomparável mestre em artes, quando, com efeito, com tua ajuda, eles trans-
oh Theuth (O tekhnikótatú Theúth), uma coisa é bordarem de conhecimentos sem terem recebido
o homem capaz de trazer à luz a fundação de ensinamento, parecerão bons para julgar muitas
uma arte, outra aquele que é capaz de apreciar o coisas, quando, na maior parte do tempo, estarão
que esta arte comporta de prejuízo ou utilidade privados de todo julgamento; e serão, além disso,
para os homens que deverão fazer uso dela. Neste insuportáveis, já que terão a aparência de ho-
momento, eis que em tua qualidade de pai dos mens instruídos (doxóphoi) em vez de serem ho-
caracteres da escrita (patér òn grammáton), atri- mens instruídos (anti sophôn)”!
buíste-lhes, por complacência para com eles, todo
o contrário (tounatíon) de seus verdadeiros efei- Fedro, 274 e 275b, apud Derrida, 1997, p. 49.
tos! Pois este conhecimento terá, como resultado,
naqueles que o terão adquirido, tornar suas al-
mas esquecidas uma vez que cessarão de exercer
sua memória [...] Não é, pois, para a memória,
Introdução
mas para a rememoração que tu descobriste um
remédio (oúkoun mnémes, allà hupomnéseos, Um dos traços políticos distintivos do mun-
phármakon heûres). Quanto à instrução (So- do moderno parece ser a transformação da vida
phías dè), é a aparência (dóxan) dela que ofere- natural em espaço de exercício de poder. Ao des-
ces a teus alunos, e não a realidade (alétheian): nudar o corpo de significados culturais específi-
cos, passando a apreciá-lo segundo critérios de
Artigo recebido em março/2003 funcionalidade e operacionalidade, a ciência fin-
Aprovado em julho/2003 da por trazer a vida biológica para o centro da

RBCS Vol. 18 nº. 53 outubro/2003


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cena política industrial. Assim, o corpo “para a campo do humano, do corpo animal ou do vege-
sensibilidade moderna parece tão fechado, autár- tal (Ferreira e Ventura, 2000). Todo um discurso
quico e fora do reinado do significado” (Laqueur, sociológico acerca do organismo cibernético já
2001, p. 18). Esta linha de argumento é bem co- adianta em alguma medida este novo contexto.
nhecida dos leitores de Foucault. Sugiro, todavia, Algo mais radical do que a idéia de hibridação
a necessidade de se perceber nos desenvolvimen- está em jogo quando uma seqüência genética hu-
tos recentes da biotecnologia molecular algo qua- mana é utilizada para promover o crescimento de
litativamente diferenciado daquilo que Foucault cobaias ou vegetais em laboratórios. Já não se tra-
chamou biopoder. Embora partindo de uma poli- ta de pensar o corpo de próteses, a comunicação
tização da vida biológica, da “vida nua”, as dinâ- entre o orgânico e o mecânico. Uma lógica políti-
micas políticas que se abrem ao capitalismo con- ca diferenciada vem se instaurando quando se
temporâneo já não se definem primordialmente passa a conceber a totalidade da própria natureza
por meio do privilégio à inteireza do corpo indi- como um espaço de transitividade virtualmente
vidual ou aos limites entre as espécies. Isso é um perfeita. Algo novo existe em conceber o mundo
dado de partida importante. Para usar o jargão natural a partir de um alfabeto de bases nitroge-
adequado, o biopoder já não pode ser plenamen- nadas, ou seja, a partir de instruções moleculares
te compreendido como “disciplina” nem como que expressariam a totalidade da vida tal como a
“regulamentação”. A inteireza dos corpos, condi- conhecemos ou possamos conhecer. Entender as
ção de um controle científico de sua plasticidade, regras dessa produção significa aceitar uma lin-
assim como os limites entre as espécies, por meio guagem elementar a partir da qual, em princípio,
dos quais a idéia moderna de higiene pode ser seria possível a perfeita troca de informações ge-
pensada, não parecem mais constituir a base in- néticas entre os seres.
questionável dos processos políticos. Algumas questões podem sinalizar as dificul-
A própria inteireza biológica do humano pas- dades culturais que esse novo horizonte tecnoló-
sa agora a ser um conceito questionável. Entre os gico impõe. Diante do que convencionamos en-
achados do Projeto Genoma Humano temos a es- tender como mundo natural, que status teria um
tranha constatação de que, ao longo de milênios, ser cuja memória biológica foi fabricada pela in-
incorporamos em nosso patrimônio genético se- dústria farmacêutica? Distintamente da definição
qüências genéticas inteiras de bactérias. Em um aristotélica de natureza, deparamo-nos agora com
sentido mais estrito: a recombinação genética pro- uma estrutura viva que não tem mais em si o seu
movida pela biologia molecular aponta numa dire- princípio de produção. A natureza já não pode
ção que, se não contradiz politicamente a noção de ser pensada como o outro da cultura. Que novos
inteireza plástica dos corpos, não depende tecnica- pressupostos políticos e culturais são forjados
mente desse artifício para transformar o mundo or- com a abertura deste aparente paradoxo, nomea-
gânico. Diferentemente do cenário descrito por Fou- damente, a produção de memória?
cault, já não se trata prioritariamente de tornar os A memória biológica já não é percebida
corpos mais potentes, ágeis, eficientes, disciplina- como elemento por meio do qual a autoprodução
dos, mas de construir novos seres a partir de infor- do mundo natural se realiza, mas como dado de
mações moleculares. Diante das possibilidades que partida de uma produção cujos princípios se si-
se abrem com a fabricação de órgãos, tecidos a tuam agora no mundo sociotécnico. A memória
partir de células-tronco, poucos hoje teriam a ilu- biológica passa a ser pensada a partir da lógica in-
são de que a produção de corpos dóceis seja a es- formacional, do armazenamento de informação
sência tecnológica da biologia molecular. em um ou vários bancos de dados interligados. Se
A recombinação genética parece indicar não dermos crédito às observações da epígrafe que
apenas a fragmentação e a instrumentalização do abre este texto, não seria uma questão menor
mundo natural, mas também a indiferenciação de considerar o suporte em que uma dada inscrição
fronteiras que antes eram tidas como culturalmen- é registrada para sua futura recuperação e repro-
te sagradas, tais como aquelas que delimitam o dução. A parábola socrática propõe que haveria
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dois caminhos básicos a seguir. O registro de uma dispostos a publicar e consumir neste novo mer-
informação poderia se realizar de modo imediato cado editorial? Quantos erros de ortografia, con-
em nossa mente, sem auxílio aparente de qual- cordância, quanto mau gosto estilístico estaríamos
quer prótese; ou ainda, alternativamente e em be- dispostos a suportar para que surgisse uma “obra-
nefício da exatidão e do acúmulo de informação, prima” questionável? Digamos inicialmente o se-
poderíamos outorgar essa responsabilidade à es- guinte: o livro da vida de que fala a biologia mo-
crita. Realizar essa diferenciação permitiria esco- lecular não constitui um texto convencional, mas
lher entre, de um lado, um saber legítimo capaz um hipertexto, em que tudo se conecta, todos os
de manifestar-se como presença de um logos fun- viventes se citam. Por isso mesmo, ele não pode
dador e, de outro, a aparência de instrução e sa- nos retornar identidades circunscritas, corpos bem
bedoria, o discurso pronto, a citação ostentatória, delimitados, lugares simbolicamente delimitados
órfã daquele logos. A partir desse tipo de aborda- para os viventes. Isso é de fato surpreendente se,
gem, e da necessidade de submeter memória e como Bernard Stiegler (1996, p. 16), considerar-
escrita à lógica de recuperação de um momento mos que “todo suplemento é técnico e toda técni-
fundador, a metafísica ocidental concebeu de ca suplementar é um suporte de memória ‘que ex-
modo recorrente a legitimidade de sua verdade. terioriza’ um programa”. Todo suporte de
Boa memória seria aquela que reproduz a verda- memória, portanto, “todo arquivo [...] é ao mesmo
de, a presença de tal origem. Para Platão, a sabe- tempo instituidor e conservador” (Derrida, 2001,
doria seria a capacidade de despertar por si só, de p. 17). Se isso é verdade, poderíamos afirmar legi-
modo autônomo, a memória do verdadeiro e não timamente que o arquivo biotecnológico procura-
a capacidade de tirar da manga a letra morta, o ria conservar algo sob a dinâmica da metástase
discurso pronto. E isto só seria possível se os li- que ele promove. Deveríamos concluir muito sim-
mites entre o mundo humano (ou do logos), téc-
plesmente que na errância da técnica o logos é
nico e natural pudessem ser preservados.
uma vez mais afirmado? Afinal, em todo caso, o
Certamente a sociedade de informação pode
conhecimento científico se pretende detentor de
ainda aprender algo com Platão acerca da relação
uma chave-mestra com a qual o mundo vivo em
entre quantidade de informação e sabedoria. Não
sua totalidade seria aberto.
obstante, uma peculiaridade chama nossa atenção
Questões como as relações entre escritura e
para esse novo contexto sociotécnico. A ação téc-
tecnologia, escritura e memória (biológica e cul-
nica promovida pela biotecnologia molecular não
tural), escritura e tempo, requerem hoje atenção.
se restringe a reproduzir a memória natural. Pelo
Por esse motivo, é necessário investigar o signifi-
contrário, ela almeja criar, produzir um novo mun-
cado da escrita e da memória, e especificamente
do vivo. Sócrates pôde ironizar o discurso pronto,
da escrita e da memória biotecnológica, na estru-
a resposta enrijecida, a traição ao contexto promo-
turação das estratégias políticas postas em curso
vida pela escrita. A escrita biotecnológica, todavia,
não é uma receita, mas a linguagem com a qual por meio das técnicas de recombinação genética.
incontáveis receitas podem ser escritas. O mapea- O terreno em que se define esse esforço é concei-
mento de um genoma abriria, não a planta da tual, pois acredito ser grande a necessidade de se
vida, mas a sintaxe da vida. Aquilo que era consi- desenvolver mecanismos teóricos para enfrentar
derado um mundo à parte – a memória biológica um cenário cultural potencialmente novo.
das espécies, o mundo não-natural e não-técnico,
com sua dinâmica autopoiética – é agora visto
como um texto entre muitos outros passíveis de Escrita e memória
serem escritos. A memória natural aqui é interpre-
tada, lida, apenas para ser reescrita, editada, revis- Toda memória mobiliza um suporte e, como
ta e, eventualmente, esquecida pelo desuso em al- tal, é inconcebível sem que percebamos o quan-
gum não-lugar de um banco de dados. Quantos to é porosa a fronteira entre sua dimensão exter-
bestsellers, quanta literatura descartável estaríamos na e interna, entre sua inscrição exterior, em pa-
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piro, em livro, obra de arte, objeto e sua inscrição “quem” pudesse esquecer seus múltiplos vínculos
interna, mental. Os códigos que permitem um ou com o domínio do “que”, isto é, o mundo técnico
outro tipo de inscrição são abertos pela tradição. e social (Stiegler, 1996). Segundo esta lógica, ser é
Aquilo que se nos apresenta como “árvore”, “ex- estar presente. Mesmo nos casos em que parece
plosão”, “morte”, quer o percebamos ou não, já é não ser retratada como prótese imperfeita e órfã,
um retorno; todo presente é um legado de uma a escrita não deixa de ser pensada segundo aque-
linguagem inequivocamente pública. O exercício les critérios que definiram uma apreciação antro-
de uma memória não protética, puramente men- pocêntrica da técnica, ou seja, a escrita seria sem-
tal, é um absurdo quando consideramos sua for- pre mediação, instrumento de um logos autônomo
mação no terreno de uma linguagem que é sem- e prioritário. Em alguns casos “escrever num sen-
pre técnica, externa. Nossa memória mais íntima tido metafórico, a escrita natural, divina e viva, é
e privada inscreve-se em nossa consciência com venerada; ela se equipara em dignidade à origem
o auxílio dessa dimensão partilhada e pretérita da do valor, à voz da consciência como lei divina, ao
vida em sociedade, cujo legado nos abre, mas coração, ao sentimento, e assim por diante” (Der-
não determina o horizonte de nossa finitude. rida, 1994, p. 17) Em todo caso, a qualidade da es-
Isso que parece evidente se torna mais con- crita está sempre associada à sua capacidade de
troverso quando passamos a refletir acerca da rela- repetir, rememorar uma instância originária.
ção entre memória e escrita. Para Derrida, a meta- A escrita, no entanto, não é apenas um ins-
física ocidental estruturou-se a partir de uma certa trumento hipomnésico do logos, de um ser huma-
depreciação da palavra escrita quando confrontada no autônomo e pensante capaz de mobilizar seus
com a palavra falada. Enquanto a voz traria sempre instrumentos, mas a evidência de que esse logos
de volta a presença do logos vivo, a palavra escrita só estrutura a si e ao seu pensar a partir do suple-
recuperaria apenas o fantasma, o simulacro daque- mento técnico. A publicidade da inscrição abre a
la presença. Segundo esta tradição, a escrita seria possibilidade da memória. Por isso mesmo, aquilo
órfã de um logos fundador, o qual nunca estaria que dispomos como escrita, seus possíveis lugares
verdadeiramente disponível para resgatá-la, torná- de inscrição, suas formas de recuperação e estru-
la capaz de responder às demandas específicas do turação são elementos decisivos para compreen-
presente. Isto posto, fica fácil concluir que o domí- dermos o tipo e o horizonte cultural dentro do
qual atuamos e existimos. Não há, nesse aspecto,
nio da escrita seria marcado por uma gradação de
contradição entre o que nos diz Derrida e aquilo
legitimidade: a escrita alfabética, ao recuperar de
que os temores de Platão no fundo revelam.
modo mais fiel a fala humana, seria mais civilizada
Evidentemente, interessa-nos aqui analisar
do que a escrita cuneiforme, por exemplo. O pri-
um tipo de escrita e de memória particular, no-
vilégio do alfabeto como suporte mnemotécnico
meadamente, o tipo em que as próprias “técnicas
obedece à seguinte lógica: as palavras faladas se-
de arquivamento, impressão, de inscrição e repro-
riam os símbolos de “experiências mentais” origi- dução, de formalização, de codificação e de tra-
nárias, e a escrita, constituída de registros simbóli- dução de marcas” são objetos de racionalização
cos secundários em relação à fala. A voz estaria (Derrida, 2001, p. 26). Em outras palavras, interes-
mais próxima do significado, mais próxima do sa-nos a escrita e a memória tecnocientífica, com
vivo, de sua presença. Para Derrida, “o fonocentris- seu campo de validade, com autoridades habilita-
mo funde-se com a determinação histórica do sen- das para emitir juízos acerca do que pertence le-
tido do ser em geral como presença” (1994, p. 12). gitimamente ao seu campo e o que deve ficar
Antes da invenção dos meios analógicos e fora. Esse tipo de memória configura o que Jac-
digitais de registro sonoro, o som da palavra fala- ques Derrida chama de arquivo científico. Se esti-
da sempre foi evidência da presença efetiva, viva vermos certos em relação à suposição básica des-
daquele que fala. O privilégio metafísico da pala- te texto – a de que um horizonte técnico não é
vra falada constrói a ilusão da presença em si do apenas um meio passível de ser mobilizado por
“quem”, do sujeito autônomo, como se esse um logos autônomo, mas oferece a própria possi-
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bilidade que o ser humano tem de ter acesso ao por exemplo, o fundamento da crítica bergsonia-
seu mundo –, entender os princípios que orien- na ao pensamento de Kant senão a reprovação de
tam e estruturam esse arquivamento é um inves- que a filosofia pudesse aceitar de modo irrefleti-
timento importante. O que poderia ser dito acer- do a matemática como base do conhecimento
ca do princípio que define politicamente científico? Em seu ensaio “A filosofia e a crise do
inscrição, impressão e repetição nesse processo homem europeu”, Husserl (1965) já não nos fala
de arquivamento, ou seja, que define a memória da idealização matemática como fundamento da
científica? Em primeiro lugar, que “o arquivamen- ciência moderna? Sob a influência dessa observa-
to tanto produz quanto registra o evento” (Idem, ção, Adorno e Horkheimer escreverão no final da
p. 29). Em segundo lugar, e mais importante: Segunda Guerra Mundial:

Não esqueçamos jamais esta distinção grega entre Quando, no procedimento matemático, o desco-
mneme ou anamnesis, por um lado, e hupómne- nhecido se torna incógnita de uma equação, ele se
ma, por outro. O arquivo é hipomnésico. E note- vê caracterizado por isso mesmo como algo de há
mos de passagem um paradoxo decisivo [...]: se muito conhecido, antes mesmo que se introduza
não há arquivo sem consignação em algum lugar seu valor. A natureza é, antes e depois da teoria
exterior que assegure a possibilidade da memoriza- quântica, o que deve ser apreendido matematica-
ção, da repetição, da reprodução ou da reimpres- mente. Até aquilo que não se deixa compreender,
são, então lembremo-nos também que a própria re- a indissolubilidade e a irracionalidade, é cercado
petição, a lógica da repetição, e até mesmo a por teoremas matemáticos (1985, p. 37).
compulsão à repetição, é, segundo Freud, indisso-
ciável da pulsão de morte. Portanto da destruição.
Antes mesmo dos recentes desenvolvimen-
Conseqüência: diretamente naquilo que permite e
condiciona o arquivamento só encontraremos aqui- tos nas ciências biológicas, não pode causar estra-
lo que expõe à destruição, introduzindo a priori o nheza que a ciência tenha passado a perceber a
esquecimento e a arquiviolítica no coração do mo- vida de modo matemático. Há, todavia, algo his-
numento. No próprio “saber de cor”. O arquivo tra- toricamente específico em afirmar a matemática
balha a priori contra si mesmo (Idem, pp. 22-23). como princípio arcôntico da biologia molecular.
Primeiro, o grande impulso obtido por essa área
Muito é dito nesta passagem. Para os propó- de conhecimento a partir da década de 1950 de-
sitos da reflexão que estou propondo neste texto, ve-se, sem dúvida, à incorporação da matemática
entretanto, cabe tentar recuperar precisamente o à sua estratégia de pesquisa. O exemplo óbvio e
princípio ao mesmo tempo instaurador e conser- bem conhecido é o fato de a estrutura helicoidal
vador que define o “arquivo” biotecnológico. De do DNA só ter sido descoberta por Watson e Crick
acordo com Derrida, o “princípio arcôntico do ar- graças ao auxílio da matemática. Segundo, o pró-
quivo é também um princípio de consignação, prio fato de a dinâmica natural passar a ser pen-
isto é, de reunião” (Idem, p. 14). O “princípio de sada como informacional, ou seja, a influência da
consignação” da escrita biotecnológica contempo- cibernética no tratamento de assuntos da biologia,
rânea, ou seja, aquilo que permite reunir, agrupar demandou esse tipo de tratamento.
e hierarquizar esta forma de produção tecnocien- A importância da matemática na estrutura-
tífica, é, a meu ver, dado pelo pensar matemáti- ção das ciências da natureza constitui o dado de
co. Se isto está certo, é necessário mostrar como partida a partir do qual poderemos chegar a um
a definição deste arquivo e da lógica matemática tipo de percepção que nos toca mais diretamen-
que o legitima induz ao esquecimento de sua vio- te, ou seja, a natureza como expressão de um
lência instauradora e o modo pelo qual este es- programa informacional. Observemos o que Der-
quecimento constitui uma força arquiviolítica. rida tem a dizer acerca da escrita matemática:
A importância da matemática no desenvolvi-
mento do raciocínio científico moderno constitui Dentro das culturas praticantes da chamada escri-
um tema abundantemente explorado. Qual seria, ta fonética, a matemática não é apenas um encla-
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ve. Isso é mencionado por todos os historiadores ciente, era considerado por ele, paradoxalmente,
da escrita; eles lembram ao mesmo tempo as im- uma força de autodestruição subjacente à confi-
perfeições da escrita alfabética, que por muito guração do próprio arquivo: “naquilo que permi-
tempo passou como a escrita mais conveniente e
te e condiciona o arquivamento só encontraremos
“inteligente”. Esse enclave também é o lugar
onde a prática da linguagem científica desafia in-
aquilo que expõe à destruição, introduzindo a
trinsecamente e com uma profundidade cada vez priori o esquecimento e a arquiviolítica no cora-
maior o ideal da escrita fonética e toda a sua me- ção do monumento” (Derrida, 2001, p. 23). Essa
tafísica (a própria metafísica) (1994, p. 10). linha de argumentação ajuda-nos a entender aqui-
lo que Heidegger define como a essência da ma-
Esse desafio reside no fato de que a escrita temática. Para ele, antes de ser algo numérico,
matemática não derivaria sua importância do grau essa essência é dada por um conhecer as coisas
de fidedignidade com o qual recupera a palavra de antemão:
falada; sua relação com o logos é qualitativamen-
te diferenciada da escrita fonocêntrica, pois não -
A mathemata são as coisas na medida em que
requer sequer uma articulação segundo a lógica delas tomamos conhecimento como aquilo que
linear de uma narrativa. Em compensação, essa já sabemos antecipadamente, o corpo como cor-
póreo, o caracteristicamente-planta da planta, o
relação, em princípio, radicalizaria o projeto logo-
animalesco do animal, o caracteristicamente-coi-
cêntrico em seu afã instrumentalizador porque sa da coisa, e assim por diante (Heidegger, 1996,
por meio da escrita matemática tem-se a sensação p. 275).
de poder mobilizar a totalidade dos objetos pos-
síveis. Mas o que é de fato a escrita matemática? Mais adiante, ele observa:

Assim, nós não a derivamos das coisas, mas, de


A escrita matemática certo modo, nós já a trazemos conosco. A partir
disso podemos agora entender por que, por exem-
É bem conhecida a influência da física new- plo, o número é algo matemático. Nós vemos três
toniana no surgimento de uma estratégia científi- cadeiras e dizemos que há três. O quê “três” é as
três cadeiras não nos dizem, nem três maçãs, três
ca que procura conhecer as leis da natureza a par-
gatos, nenhum outro três coisas. Antes, nós pode-
tir de sua expressão matemática. Depois de mos contar três coisas se já soubermos “três”
Newton, abre-se a perspectiva de que o mundo (Idem, p. 276).
biológico esteja submetido às mesmas leis mecâ-
nicas que explicam o movimento dos astros. Heidegger não aceitava que a diferença bá-
Compartilhando dessa visão, por exemplo, Des- sica entre ciência moderna e pré-moderna pudes-
cartes escreve no Formation de l’animal: se ser radicada em diferentes apreciações acerca
da importância do experimento na consolidação de
Se se conhecesse bem todas as partes da semen-
um conhecimento sistemático. Trata-se antes da
te de uma espécie animal em particular, por
exemplo do homem, seria possível deduzir, por
medida de penetração do matemático num e nou-
razões certas e matemáticas, a forma e a confor- tro contexto. Enquanto para a física moderna a
mação de cada um de seus membros (apud Ja- natureza se encontra completamente unificada
cob, 1983, p. 61). por esta forma antecipadora de conhecimento,
para Aristóteles e toda a astronomia medieval
Bem visionárias foram essas palavras. Mais cada corpo se esforçaria para assumir seu lugar
acima, considerávamos, a partir de Derrida, que no universo. “Em volta da terra está a água, em
um traço do arquivo científico seria um certo “sa- volta disto, o ar, e em volta disto, fogo – os qua-
ber de cor”, conhecer de antemão aquilo que se tro elementos. Quando um corpo se movimenta
nos apresenta. Esse traço tão caro ao arquivo, para um lugar, esse movimento concorda com sua
aquilo que lhe permite acumular, ser veloz e efi- natureza” (Idem, p. 284). Assim, “o tipo de movi-
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mento do corpo e sua relação com o seu lugar de- tação, é possível dizer, com Merleau-Ponty, que as
pendem da natureza do corpo” (Idem, p. 285). Se descobertas científicas que caracterizam o mundo
compararmos essa concepção com o princípio da moderno foram resultados desse desenvolvimento
gravitação universal dos corpos, perceberemos radical da idéia matemática de natureza.
algo de especial sendo produzido pela “matema-
tização” da natureza na física newtoniana: o natu- Assim, foi uma concepção qualitativa do mundo
ral se tornando uno. que impediu Kepler de admitir a lei da gravitação
universal. Faltou-lhe substituir a Natureza dividi-
Todo corpo natural é essencialmente do mesmo da em regiões qualitativamente distintas por uma
tipo. [...] O próprio conceito de lugar mudou: o Natureza em que o Ser é homogêneo em toda par-
lugar não é mais onde o corpo pertence de acor- te e sempre (Merleau-Ponty, 2000, p. 10).
do com sua natureza, mas uma posição em rela-
ção a outras posições (Idem., p. 286) A descoberta do cálculo infinitesimal e dife-
rencial é o resultado mais ou menos óbvio de
Não apenas a física newtoniana já não pro- uma nova axiomática, em que a natureza passa a
cura explicar o movimento natural pela essência se situar num espaço-tempo uniforme e cuja tare-
dos corpos, mas também sua compreensão de lu- fa primeira será a de buscar princípios, chaves
gar a leva a entender esse movimento em termos que abram a lógica interna desse arquivo unifica-
de posições relativas. do. Há assim uma relação estreita entre a matemá-
tica e o caráter totalizador que assume a razão
Assim, a determinação do movimento desenvol- científica moderna.
ve-se por algo que diz respeito a distâncias, ex-
A busca pela origem do mundo fenomênico,
tensões do mensurável [...]. O movimento é deter-
minado como a quantidade de movimento e, de tema sobre o qual o logos buscou tradicionalmen-
modo análogo, a massa é determinada como te sua legitimação, é o eixo central em torno do
peso (Idem, pp. 287-288). qual se poderá pensar acerca da influência da ma-
temática na ciência moderna. O significado do que
Esse princípio fundamenta o comércio abso- seja origem nesse contexto só pode ser desvelado
luto entre as coisas, a possibilidade de substitui- dentro deste mundo criado, causado, que é o ju-
ção e transitividade perfeitas entre os viventes: o daico-cristão. A percepção de uma oposição cau-
movimento só pode ser pensado em termos de sal entre uma natureza desdobrada em um natu-
posições relativas, provisórias e não-essenciais. rante e um naturado (uma causa e um efeito) é
o caminho pelo qual a ciência moderna procura-
O matemático é baseado em uma tal reivindicação, rá no conjunto das evidências sensíveis princípios
isto é, a aplicação de uma determinação da coisa primeiros. “O sentido refugia-se no naturante; o
que não é derivada experimentalmente da coisa e,
naturado torna-se produto, pura exterioridade”
no entanto, situa-se na base de cada determina-
ção das coisas, possibilitando-as e abrindo espa- (Merleau-Ponty, 2000, p. 10). Do mesmo modo que
ço para elas (Idem, p. 289). um dia o pensamento ocidental procurou um ser
causador de todo o real, procurará agora o meca-
Heidegger desenvolve aqui o que Husserl já nismo irrevogável e inapelável que determina o
havia dito acerca da idealização da realidade pela funcionamento da natureza em sua totalidade, ou
matemática. O projeto matemático, então, “salta so- seja, procurará a lei. Esta nova prioridade, que im-
bre as coisas”, determinando-as, prefigurando-as pele o projeto matemático em direção às suas
antes de as conhecer, “deduzindo-as”, como diria conseqüências mais radicais, determina em Des-
Descartes. E, posto que esse projeto estabelece a cartes os limites dos quais a ação do próprio Deus
“uniformidade de todos os corpos”, ele passa a re- Criador não poderia deixar de respeitar: “mesmo
querer uma medida universal, uniforme, ou seja, que Deus houvesse criado muitos mundos, não
requer a medida numérica. Partindo dessa consta- poderia haver nenhum onde elas [as leis da natu-
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reza] deixassem de ser observadas” (apud Mer- Escrevendo a vida


leau-Ponty, 2000, p. 12)
A natureza é um grande relógio, um grande Quando refletimos acerca do significado de
mecanismo, cujo funcionamento pode ser catego- conceber a vida como expressão da informação
ricamente reconstituído por meio da matemática. somos remetidos necessariamente para um cam-
De Descartes até o pensamento cibernético, é pre- po de conhecimento bastante específico. Diga-
cisamente o prefigurar matemático, seu caráter mos, pois, algo sobre esta forma consumada do
abstrato, causal e universalista, que fundará a com- pensamento científico moderno – a cibernética.
preensão mecanicista do mundo natural. Para Des- Seu problema central é garantir a comunicação
cartes, cada ser vivo como tal, em seu funciona- entre elementos instrumentais e humanos mobili-
mento natural, não passava de um autômato. zados na consecução de uma tarefa qualquer.
Radicalizando este tom, até o ponto em que se Essa comunicação articularia uma compreensão
possa pensar o próprio cérebro como máquina de de linguagem e escrita que não circunscreve uma
comunidade de humanos.
pensamento, W. Ross Ashby afirmará:
Consideramos habitualmente a comunicação e a
Todo movimento corporal pode ser especificado
linguagem como dirigidas de pessoa a pessoa. No
por coordenadas. Todo movimento conjugado
entanto, é muito possível a uma pessoa falar com
pode ser especificado por ângulos. Tensões mus- uma máquina, e a uma máquina falar com uma
culares podem ser especificadas por sua tração pessoa ou outra máquina (Wiener, 1954, p. 75).
em dynes. Movimentos musculares podem ser
especificados por coordenadas baseadas na es-
Como ciência da comunicação, a cibernética
trutura óssea ou em algum ponto externo e fixo,
não pode deixar de pensar a essência da lingua-
podendo assim ser registrados numericamente
(1960, p. 30). gem: a linguagem é instrumento da ação, da rea-
lização de tarefas. É esta visão antropocêntrica da
linguagem que levará a cibernética a negar que
Algo diferencia a especificação do pensa-
outros animais, exceto o ser humano, possam
mento matemático numa biologia de base meca-
“construir” uma linguagem – embora sustentando
nicista, que se impõe no capitalismo industrial, e
a existência de uma comunicação entre estes últi-
a biologia molecular, de base informacional, ci-
mos e as máquinas.
bernética. Esta é a diferença entre esquadrinhar e
maximizar a potência de um corpo já existente e Pode parecer curioso ao leitor admitirmos máqui-
conceber o próprio corpo como atualização con- nas ao campo da linguagem e, no entanto, negar-
tingente de uma matriz informacional. No primei- mos quase totalmente linguagem às formigas. To-
ro caso, o corpo individual, ou o corpo da espé- davia, ao construir máquinas, é-nos amiúde muito
cie, é um dado de partida; trata-se de conhecer importante estender até elas certos atributos hu-
manos que não são encontrados entre os mem-
seu funcionamento mecânico para discipliná-lo,
bros inferiores da comunidade animal (Wiener,
potencializá-lo. No segundo caso, a informação 1954, p. 76).
molecular, o gene, é o dado de partida, e a uni-
dade do corpo é apenas uma contingência. A es- O mundo da linguagem é o mundo do agir
pecificidade das técnicas de recombinação gené- humano, do esquecimento da morte, da entropia,
tica diz respeito ao status da memória. A na ação eficiente.
característica central desse processo é a produção Voltemos ao ponto. Para que ela se torne
de memória biológica e não mais a suplementa- uma executora de tarefas inequivocamente prees-
ção técnica dessa memória através de próteses, tabelecidas, a essência da linguagem é estabeleci-
ou a seleção artificial e limitada de determinados da de antemão e, nesse sentido, torna-se matemá-
padrões genéticos produzidos pelas espécies. tica: informar para que, mediante um processo de
A PRODUÇÃO DE MEMÓRIA BIOTECNOLÓGICA … 105

retroalimentação contínua, o logos possa coman- grama informacional e, por meio da ação técnica,
dar e controlar a realização de objetivos. Uma submetida à lógica da cultura, poderíamos dizer
compreensão da linguagem totalmente a serviço que o obstáculo que nos impedia de percebê-la
do operar, da instrumentalização de todas as coi- como linguagem já não existe. A natureza já não é
sas, inclusive da própria vida, tal é o grande feito o outro da cultura. O mundo biológico e o mun-
da cibernética. Por isso mesmo, esta linguagem já do da cultura foram reduzidos à dinâmica informa-
não determina necessariamente o registro de sons cional. Talvez por isso já seja possível para Nobert
humanos, o eco da palavra falada ou passível de Wiener (1954, p. 95), em 1950, dizer algo como:
ser enunciada como sua forma protética mais aca- “Não passamos de remoinhos num rio de água
bada. Trata-se, antes, de conceber uma escrita ine- sempre a correr. Não somos material que subsista,
quívoca. Trata-se de informar para controlar. Seu mas padrões que se perpetuam a si próprios”
compromisso é, pois, antes com a velocidade e (Wiener, 1954, p. 95). Essa desmaterialização da
efetividade da execução do que com o pensar. Se vida é um elemento importante da nova dinâmica
em sua definição do que seja linguagem a ciber- biopolítica que se abre com a biologia molecular.
nética pôde estender até às máquinas “atributos Por esse motivo será possível para os teóricos da
humanos”, isto só foi possível porque em grande sociobiologia considerarem que nada mais somos
medida a comunicação tipicamente humana, a lin- que naves, barcos contingentes onde navegam e
guagem, foi também reduzida à ação instrumental. se perpetuam os genes.
Sob essa perspectiva, não pode causar espanto Mas o que exatamente Wiener tem em men-
que o mundo biológico possa ser compreendido te quando diz que a vida humana é um “padrão
como expressão de um programa (com uma dada que se perpetua”? Ele mesmo nos responde: “Um
linguagem e uma determinada sintaxe) que, sob padrão é uma mensagem e pode ser transmitido
vários aspectos, é paradigmático para as próprias como tal” (Idem, ibidem). Se bem que tendo em
ciências da informação. Não obstante, permanece mente algo mais próximo ao terreno da ficção cien-
o fato de que formigas não possam ser considera- tífica, como a possibilidade de teletransportação,
das operadoras de uma comunicação do tipo lin- ele já depunha acerca de uma nova concepção de
güístico. A relação entre o logos e o mundo natu- vida; a vida como atualização de informações es-
ral permanece ambígua na cibernética: a critas nesta língua fundamental:
linguagem tanto é aquilo que permitirá dissolver
as fronteiras existentes entre o humano, o natural [...] o fato de não podermos telegrafar, de um lu-
e o técnico, como deve constituir-se em elemento gar para outro, o padrão de um homem, parece
diferenciador capaz de colocar o humano a salvo dever-se a dificuldades técnicas, e, em especial, à
dificuldade de manter um organismo em existên-
dessa dissolução. E esta é a tensão com a qual vie-
cia durante tal radical reconstrução. [...] Quanto
mos lidando: em que medida o logos ainda pode
ao problema da reconstrução radical do organis-
controlar os princípios arquívicos que a escrita mo vivo, seria difícil descobrir qualquer recons-
matemática determina? trução dessa espécie que fosse mais radical que a
Ora, quer do ponto de vista da utilização efi- de uma borboleta durante o seu período de cri-
ciente de energia, da eliminação de possíveis er- sálida” (Idem, p. 102).
ros de transmissão de mensagens, ou da efetivi-
dade das ações que determina, a expressão de Quando, a partir de sua influência, a biolo-
instruções genéticas deve ser considerada um pro- gia passa a falar de uma linguagem e uma escri-
cesso de comunicação extremamente sofisticado e tura da vida, a principal dificuldade para o cien-
bem-sucedido. O DNA instrui o RNA que, por sua tista social é perceber que esse entendimento de
vez, se encarrega de transmitir mensagens que re- língua e escrita, embora ainda enredados em me-
sultarão na síntese de proteínas necessárias à for- tafísica de presença, na possibilidade de determi-
mação e ao funcionamento do corpo. Na medida nar um logos original que tudo subordina, age
em que a natureza é compreendida como um pro- contra a tradição fônica do mundo ocidental e con-
106 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

tra aquilo que essa tradição oferece como sendo passado pode ser trazido de volta, e isso não ape-
a essência do humano. O humano nesse discurso nas virtualmente como rememoração, mas de fato
não se perde em próteses que o reconfiguram, atualizado como contemporâneo do presente. Um
mas em não poder mais opor o mundo natural ao exemplo ilustrativo pode ser encontrado no bio-
da cultura. Os programas da vida já não precisam terrorismo. Em 1979, a vacinação antivaríola foi
falar de uma origem e de seu esquecimento. Isso abandonada por um motivo simples, a doença foi
significa, entre outras coisas, que tal escrita não considerada extinta. Após o atentado de 11 de se-
precisa se estruturar a partir da compreensão tem- tembro de 2001 nos Estados Unidos, as agências
poral característica das narrativas fonocêntricas: de segurança nacionais passaram a temer que a
começo, meio e fim. varíola pudesse retornar deixando em descoberto
Desde o começo do século passado perce- uma grande parte da população do globo para a
bemos em escritores como Proust a possibilidade qual um eventual processo de imunização seria
de narrativas não lineares. No campo científico, a agora ineficaz. Bactérias causadoras da varíola,
narrativa psicanalítica identificou uma certa imbri- peste, botulismo, antraz ressurgem para testar a
cação entre passado e presente. A intervenção capacidade de convivência de pelo menos três
psicanalítica procura restabelecer a possibilidade temporalidades distintas: um presente de perple-
de uma narrativa ao dissolver os nós que fazem xidade diante de uma arma de efeito retardado,
do presente repetição patológica do passado e um passado preservado em laboratório e uma
não um momento de abertura para o novo, para eventual, futura, modificação genética destas bac-
o futuro. A lógica cibernética desfaz a narrativa li- térias que as tornem mais letais do que já o são
near da escrita fônica de um outro modo. A con- hoje. Outro exemplo. Um dos principais proble-
secução de um futuro determinado, modificar a mas que a clonagem terapêutica hoje enfrenta é
memória genética de uma árvore em vias de ex- de ordem ética: deveríamos tratar fetos humanos
tinção de modo a torná-la resistente a pragas, por de três a seis dias como se fossem simplesmente
exemplo, orienta a recuperação do passado. O fu- meios para a produção de tecidos ou órgãos?
turo determinado corrige o presente e o passado. Uma das maneiras de evitar esse tipo de dificul-
Ocorre-me o caso tão divulgado pela mídia de dade seria dada pela perspectiva de reprogramar
uma mulher norte-americana que decidiu engravi- células adultas de modo que elas possam ser re-
dar por meio de fertilização in vitro, utilizando conduzidas à sua forma embrionária, como mos-
para isso o esperma de seu marido armazenado tra artigo de Steve Connor, publicado no jornal in-
num banco de sêmen. O marido, no entanto, es- glês Independent, de 17 de agosto de 2000.
tava morto. Alguns poderão argumentar que esse O passado está arquivado e disponível – coi-
exemplo, como tantos outros do mesmo gênero – sa surpreendente se considerarmos que o acesso
gestações mantidas mesmo após a morte clínica à nossa própria finitude, mortalidade, acesso ao
da mãe biológica – não pertencem a rigor ao ho- nosso ser-para-a-morte, sempre nos foi tradicio-
rizonte da biologia molecular. Chamo a atenção, nalmente dado na imagem do irremediavelmente
todavia, para a idéia de arquivamento, do ato de pretérito. Na escrita, como na foto de nossos
pôr em reserva, como um dado importante deste avós, a evidência de nossa mortalidade, a evidên-
horizonte técnico-cultural. O passado já não nos cia de um mundo que continua, independente-
comove, com sua reivindicação de constituir uma mente de nossa presença. O fato de a memória
instância originária e pretérita, uma chave para a biológica arquivada, seus genomas e proteomas,
leitura do presente – chave que em seu não-mais- não estar comprometida com a reprodução do
ser demanda a fidelidade da memória. A lineari- mundo natural tal como ele nos foi legado desfaz
dade da escrita anterior ao hipertexto e a expe- em grande medida o conforto e a segurança de
riência cultural de um tempo linear parecem se uma compreensão linear da história da vida. A
harmonizar perfeitamente. Mas, eis que estamos ovelha Dolly, primeiro mamífero clonado, enve-
diante de um horizonte tecnológico em que o lheceu mais rapidamente que sua própria “mãe”.
A PRODUÇÃO DE MEMÓRIA BIOTECNOLÓGICA … 107

Podemos ainda falar de papéis centrados numa tian, camundongo que nasceu em julho, foi fruto
lógica de origens, como “pai” e “mãe”, diante des- do trabalho de três anos do grupo coordenado
te fato irrefutável: Dolly foi menos uma cria que pela pesquisadora Lygia Veiga Pereira”.
um desenvolvimento celular de sua suposta Para a biologia molecular a inteireza corpó-
“mãe”? Dolly foi a possibilidade do presente visi- rea dos seres é apenas um espaço onde a informa-
tar um futuro possível, assim como a possibilida- ção genética se torna passível de arquivamento e
de do futuro desenvolver-se como algo pretérito. modificação. Um exemplo contundente dessa for-
Se no filme Intervista, Fellini, Marcello Mastroian- ma de pensar a vida pode ser percebido na atitu-
ni e Anita Ekberg visitam o seu passado e consta- de que, para muitos, orienta iniciativas científicas
tam sua mortalidade (Stiegler, 1996), no envelhe- como o Projeto da Diversidade do Genoma Hu-
cimento precoce da ovelha Dolly, o presente tem mano. Capitaneado pelo professor Luigi Luca Ca-
a possibilidade de visitar seu futuro biológico, e valli-Sforza, geneticista da Universidade de Stan-
este futuro teria a oportunidade de reconhecer o ford na Califórnia, este projeto tem por fim
passado como algo que lhe sobreviverá. seqüenciar e arquivar o genoma de grupos étnicos
A perspectiva de produção de memória bio- com patrimônio genético raro – patrimônio hoje
lógica requer uma compreensão matemática da na- ameaçado por constantes movimentos migrató-
tureza por um motivo simples: primeiro, ela pres- rios. Muitos desses grupos resistiram ao projeto
supõe a perfeita transitividade entre os viventes. com base num argumento simples: o único inte-
Agora percebemos que essa transitividade se ope- resse do PDGH era o de arquivar, preservar um
ra também num campo temporal. Da linearidade patrimônio genético potencialmente lucrativo,
das narrativas de progresso do capitalismo indus- pouca importância sendo atribuída à questão pre-
trial passamos ao tempo matricial dos fluxos de mente da preservação, sobrevivência, concreta
informação. Apenas uma natureza unificada pode desses grupos. A biologia molecular percebe o
ser objeto de uma ação tecnológica capaz de reu- corpo da mesma forma que o pensamento neoli-
nir traços genéticos de seres aparentemente tão beral percebe o funcionamento das economias na-
distantes quanto algas e macacos. cionais. Embora tanto o corpo como a nação pos-
Como entender o espanto que organismos sam continuar existindo, o poder que sobre eles
geneticamente modificados, como a Dolly, ten- se instaura num e noutro caso é impessoal, des-
dem a suscitar? Creio que essa surpresa decorre do corporificado (disembodied) e, na medida em que
fato de ainda nos localizarmos dentro de um hori- o princípio de seu modus operandi é o livre fluxo
zonte cultural no qual a inteireza dos corpos, sua entre fronteiras, esse poder tem pretensões totais.
materialidade e a possibilidade de delimitação vi- A tecnociência hoje trabalha para detectar
sual clara, ainda constitui um fator orientador para uma origem não viva da vida, a instrução já escri-
o modo de produção capitalista. Entre os séculos ta capaz de produzir o vivente. Uma escrita e uma
XVII e XIX, o capitalismo pôde conceber o corpo memória não originariamente humanas, uma es-
escravo como um instrumento produtivo e de re- crita “a serviço” da feitura da vida, inclusive da
produção. Apenas dentro deste novo horizonte vida humana. Ao menos duas possibilidades téc-
técnico-cultural, entretanto, a vida pode ser pensa- nicas se apresentam nesse contexto. O pensamen-
da, de modo genérico, como produto. A escritura to antropocêntrico parece se fortalecer quando
matemática da biologia molecular, assim, propõe nos é oferecida como alternativa inevitável a
novas formas de enunciar nossa relação com a apropriação instrumental desta escrita, que já não
vida. Em um artigo de 1º de novembro de 2001, pode mais ser compreendida apenas como mne-
lia-se na Folha de São Paulo o seguinte título de motécnica da cultura. Independentemente do fato
matéria: “USP lança animal transgênico no Brasil”. de hoje nos percebermos como partes integrantes
A partir de quais pressupostos podemos pensar no da escritura de uma vida terrestre, “lançamos” ani-
“lançamento” (comercial ou não) de um animal? mais transgênicos, como lançaríamos uma nova
Mais adiante, no corpo da matéria, lemos: “Chris- marca de roupa íntima – afinal, para alguns, pro-
108 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

duzir alimentos geneticamente modificados é ape- problema para o cientista social é tentar entender
nas mais uma opção comercial. Produzimos a um princípio de arquivamento que não mais de-
vida e a vida nos escapa. Escapa em conseqüên- pende da idéia de origem e perceber que, embo-
cias não previsíveis da ação técnica. Escapa por- ra não se oriente por meio de uma lógica funda-
que a vida, reduzida a uma operação, fica esva- cionalista, pois o matemático não necessita desta
ziada de significado. Uma tal reinstauração do centralidade para operar, a nova realidade tecno-
pensamento antropocêntrico, todavia, radicaliza científica ainda promove o logos. Mas hoje esse
uma ambigüidade profunda do pensamento oci- logos é condição de enunciação exatamente do
dental – tenhamos sempre em mente que a maté- quê, se aceitarmos que ele já não pode mais
ria e os instrumentos sobre o qual o logos supos- enunciar de modo coerente a presença?
tamente se debruça são errantes. Como realizar
uma apropriação logocêntrica, instrumental, das
instruções responsáveis, entre outras coisas, por
NOTAS
nossa “configuração vital” quando percebemos,
de partida, que o texto da vida é um hipertexto? 1 A força totalizadora do arquivo biotecnológico tal-
O hipertexto, mais que nenhum outro tipo vez possa ser ilustrada pela dificuldade de se lhe fa-
de escrita, é errância e vocação para o mundo. zer oposição em bases racionais. “Houve na França
Por isso, a estrutura mnemotécnica da escrita da experiências com milho que foram objeto de cóle-
vida, sua hipertextualidade, já não pode oferecer ra de certos ecologistas suíços e alemães; parece
que foram destruir essas experiências de Colmar,
a originariedade, a força do pai como força legiti-
mas que aniquilaram no local recursos raros cuja
madora do logos, nem o tipo de narrativa a ele as- proteção eles geralmente preconizam... Consideran-
sociado. A força arquívica deste logos, da digitali- do que nada estava rotulado, eles se enganaram. Na
zação da vida que ele promove, reside na sua verdade, entende-se ao mesmo tempo mal e bem
ambição de tudo incluir – o que significa dizer esse ecoterrorismo: mal, porque as experiências fei-
que em sua dinâmica totalizante ele se estrutura tas até agora ainda não foram nocivas; bem, porque
se essas pessoas querem lutar contra riscos biotec-
como pulsão de destruição do próprio arquivo.1
nológicos, duvido que lhes dêem meios de fazê-lo
Vem-me à lembrança o estranho caso de “Funes, com inteligência” (Marie Angèle-Hermitte em entre-
o memorioso” que, por ter desenvolvido a prodi- vista a Ruth Scheps, 1996, pp. 87-88).
giosa capacidade de tudo arquivar em sua memó-
ria, vê-se privado da possibilidade epistemológica
e política de verdadeiramente conhecer. Seria
uma pena, todavia, concluir este artigo em termos BIBLIOGRAFIA
tão neokantianos, ou seja, sugerindo que apenas
por estarmos largados na coisa em si do universo ADORNO, T. & HORKHEIMER, Max. (1985), Dia-
ou dos arquivos biotecnológicos, teríamos perdi- lética do esclarecimento. Rio de Janeiro,
do a capacidade de ativamente conhecer e de de- Jorge Zahar.
finir, ou ter acesso a, princípios políticos claros de
ASHBY, W. Ross. (1960), Design for a Brain: the
arquivamento. Em vez disso, concluiríamos elabo-
origin of adaptative behaviour. Nova
rando duas questões acerca das inquietações po-
York, John Wiley & Sons.
líticas que resultam desse contexto de transforma-
ções profundas: deveríamos, diante de tudo que DERRIDA, Jacques. (1993), Writing and differen-
foi exposto, tomar como ponto de partida a pos- ce. Londres, Routledge.
sibilidade de redefinir um lugar, garantias míni-
_________. (1994), Of grammatology. Londres,
mas, em meio ao não-lugar dos arquivos da vida
John Hopkins University Press.
ou aceitar como inevitável a sua dinâmica errante
como um ponto de partida para nossos esforços _________. (1997), A farmácia de Platão. São
políticos? E, assim, estamos de volta a Platão. O Paulo, Iluminuras.
A PRODUÇÃO DE MEMÓRIA BIOTECNOLÓGICA … 109

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178 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 53

A PRODUÇÃO DE MEMÓRIA THE PRODUCTION OF LA PRODUCTION DE LA


BIOTECNOLÓGICA E SUAS BIOTECHNOLOGICAL MÉMOIRE BIOTECH-
CONSEQÜÊNCIAS CULTURAIS MEMORY AND ITS CULTURAL NOLOGIQUE ET SES CON-
CONSEQUENCES SÉQUENCES CULTURELLES

Jonatas Ferreira Jonatas Ferreira Jonatas Ferreira

Palavras-chave Key words Mots-clés


Biotecnologia; Cibernética; Nature- Biotechnology; Cybernetic; Nature; Biotechnologie; Cybernétique;
za; Memória; Vida Memory; Life Nature; Mémoire; Vie.

A memória biológica foi tradicional- Biologic memory has traditionally La mémoire biologique a été tradi-
mente concebida como escrita been conceived as a sacred writing, tionnellement conçue en tant
sagrada, cuja sintaxe estaria vedada whose syntax would be forever qu’écriture sacrée dont la syntaxe
ao ser humano – ele próprio produ- barred to the human being – he serait interdite à l’être humain – lui-
to da palavra divina. A partir dos himself a product of Divine Word. même le produit de la parole divine.
avanços recentes da biologia molec- Given the recent advances in molec- À partir des récentes avancées de la
ular, no entanto, essa sintaxe e essa ular biology, however, such syntax biologie moléculaire, cette syntaxe
escrita estariam sendo desveladas e and writing have been unveiled and et cette écriture seraient, néanmoins,
apropriadas pela tecnociência. Este appropriated by tecnoscience. This entrain d’être dévoilées et appro-
artigo investiga a relação entre a paper investigates the relationship priées par la technoscience. Cet arti-
digitalização da vida e a lógica between the digitalization of life and cle recherche le rapport entre la
matemática que determina a dinâmi- the mathematical logics that deter- numérisation de la vie et la logique
ca interna desta forma de escritura. mines the inner dynamics of this mathématique qui détermine la
Ao estabelecer uma relação funda- kind of scripture. Aiming at estab- dynamique interne de cette forme
mental entre matemática e ciência lishing the fundamental relationship d’écriture. En établissant une rela-
moderna, especialmente a maneira between mathematics and modern tion fondamentale entre la mathé-
pela qual ela aparece na cibernética science, particularly as it emerges in matique et la science moderne, spé-
e na biologia molecular, o autor cybernetics and molecular biology, cialement la manière par laquelle
procura identificar o impacto que o the article seeks to identify the elle apparaît dans la cybernétique et
arquivamento e a edição da vida impact the archiving and edition of dans la biologie moléculaire, l’au-
podem ter na cultura ocidental. life might have in the Western teur cherche à identifier l’impact
Culture. que l’archivage et l’édition de la vie
peuvent produire dans la culture
occidentale.

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