Traduo de Joo Moita De Men in the Off Hours (2001)
Erro. E as suas emoes. beira do erro est a condio do medo. No meio do erro est um esprito de loucura e de derrota. A descoberta do erro acompanhada de vergonha e remorso. Ou no?
Vejamos. Muitas pessoas incluindo Aristteles pensam que o erro um evento mental interessante e til. Na discusso sobre a metfora na sua Retrica Aristteles afirma existirem trs tipos de palavras. Estranhas, vulgares e metafricas.
Palavras estranhas confundem-nos; palavras vulgares exprimem o que j sabemos; atravs da metfora que alcanamos alguma coisa nova e revigorante (Retrica, 1410b10-13.) Em que consiste a novidade da metfora? Aristteles diz que a metfora torna a mente consciente de si mesma
no momento de cometer um erro. Ele imagina a mente a mover-se atravs de uma superfcie lisa de linguagem vulgar quando de repente a superfcie quebra-se e complica-se. Surge o inesperado.
De incio parece esquisito, contraditrio ou errado. Depois comea a fazer sentido. E nessa altura, de acordo com Aristteles, a mente vira-se para si mesma e diz: To acertado, e ainda assim eu confundi-o! Dos verdadeiros equvocos da metfora pode-se aprender uma lio.
No apenas que as coisas so diferentes do que parecem, e portanto as confundimos, mas que tais equvocos so teis. Atentemos, diz Aristteles, h aqui muito que ver e que sentir. A metfora ensina a mente
a gozar o erro e a aprender a justaposio daquilo que e daquilo que no assim. H um provrbio chins que diz, O pincel no pode desenhar dois caracteres na mesma pincelada. E ainda assim
isso exactamente o que um bom erro faz. Por exemplo. H um fragmento de um antigo poema grego que tem um erro de aritmtica. O poeta parece no saber que 2 + 2 = 4.
Fragmento 20 de Alcman: [?] fez trs estaes, vero e inverno e outono em terceiro e em quarto a primavera quando h florao mas para comer o suficiente no h.
Alcman viveu em Esparta no sculo VII a.C. Esparta era um pas pobre e pouco provvel que Alcman tivesse vivido uma vida saudvel e nutrida. Este facto est na origem das suas observaes que vo desembocar na fome.
A fome d sempre a sensao de ser um erro. Alcman faz-nos sentir esse erro com ele atravs do recurso a um efectivo erro de clculo. Para um miservel poeta espartano sem alimentos
na despensa no final do inverno chega a primavera como uma reconsiderao da economia natural, quarta na srie de trs, desequilibrando a sua aritmtica
e elevando o verso. O poema de Alcman irrompe a meio caminho pela mtrica jmbica sem explicar de onde veio a primavera ou porque que os nmeros no nos ajudam a controlar melhor a realidade.
H trs coisas de que gosto no poema de Alcman. Em primeiro lugar o facto de ser pequeno, leve e mais do que perfeitamente econmico. Em segundo lugar por sugerir cores como verde-claro sem as nomear.
Em terceiro lugar porque traz para primeiro plano algumas questes metafsicas importantes (como Quem fez o mundo) sem anlise manifesta. Reparem que o verbo fez no primeiro verso no tem sujeito: [?]
muito invulgar no grego um verbo sem sujeito, na verdade um erro gramatical. Os fillogos dir-nos-o que este erro s um acidente de transmisso, que o poema tal como o recebemos
seguramente um fragmento retirado de um texto maior e que Alcman certamente nomeou o agente de criao no versos que precedem os que aqui temos. Bem, pode ser.
Mas como sabem, o objectivo principal da filologia reduzir todo o encantamento textual a um acidente histrico. E eu no sou favorvel a qualquer reivindicao de se conhecer exactamente o que o poeta quis dizer. Por isso deixemos o ponto de interrogao
no incio do poema e admiremos a coragem de Alcman por confrontar-se com o que est entre parntesis. A quarta coisa de que gosto no poema de Alcman a impresso que ele d
de expressar a verdade sem ela disso se aperceber. Muitos poetas aspiram a este tom de lucidez inadvertida mas em poucos ele to genuno como em Alcman. bvio que a sua simplicidade falsa. Alcman no simples de todo,
ele um mestre do enredo ou o que Aristteles chamaria um imitador da realidade. Imitao (mimesis em grego) o termo de Aristteles para os verdadeiros erros da poesia. O que eu gosto neste termo
a facilidade com que ele aceita que o que nos fascina quando fazemos poesia um erro, a consciente inveno do erro, o deliberado mpeto e complexificao dos erros dos quais pode sobrevir o imprevisvel.
Assim um poeta como Alcman esquiva-se ao medo, ansiedade, vergonha e ao remorso e a todas as outras emoes patetas associadas ao acto de cometer erros de maneira a atingir a verdade dos factos. A verdade dos factos para os humanos a imperfeio.
Alcman quebra as regras da aritmtica e ameaa a gramtica e joga com a forma gramatical do seu verso de maneira a revelar-nos esse facto. No final do poema o facto permanece e Alcman no est menos esfomeado.
No entanto alguma coisa mudou no quociente das nossas expectativas. Pois enganando-as, Alcman aperfeioou alguma coisa. De facto ele fez mais do que aperfeio-la. Dando apenas uma pincelada. *
Disponvel em: http://www.enfermaria6.com/blog/2013/12/2/ensaio-sobre-aquilo-em-que-mais-penso- anne-carson. Acesso em 6/9/2017.
SANTIAGO, Renan. Música, Educação Musical e Multiculturalismo: Uma Análise Da Formação de Professores (As) de Três Instituições Da Cidade Do Rio de Janeiro