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A HISTORIA DA ARTE E.H. Gombrich 16.* edigao Tradugio Alvaro Cabral Licenciado em Histéria ¢ Filosofia pela Faculdade de Letsas de Lisboa NN 00094073 cu Pofi}r hegre = Congecenl Leonardo te yr he CL- wget Refecl Oc EDITORA 15 REALIZACAO DA HARMONIA Toscana ¢ Roma, inicio do séeuto XVI Deixamos a arte italiana na época de Boticelli, ou seja, em fins do século XV, a que 9s italianos chamaram i! Quattveente, ou seja, os “anos quatrocentos”|0) inicio do séeulo XVI feeeuto, consticui © mais famoso pericdo da arte italiana e wnt dos maionss de todos os wenipos. Foi a epoca de Leonardo do Vinci ¢ Miguel Angelo, de Rati ¢ Ticino, de Correggio ¢ Giorgione, de Diver ¢ Holbein no Norte, « de ustires outros inestres famosos, F-se tentado a perpantar por que todos esies grande Mesttes nasceram no mesmo perindo, mias tais perguntas sio mais Heels de do que de responder. Nao hi como explicar a existénci io. E rivel aprecié-lo. O que temos a dizer, portanto, jamiais sens tsa explicagio aceisivel do grande periode chaniado a Alta Renaseenga, mas possibilitaram essa sit contarcmos analisar quais foram as condicdes ellorescéncia de génios.| Vimos 0 comega dessis condigdes muito antes, no periodo de Giotto. nga se orguhava dele e estava ansiosa por ter 0 campanirio da sua catedral projetade pelo rivalizavani entie si para Sua fama era tio grande que a comuns de Flo celebrado mestra. Esse orgutho das cidades, qu van seus edificios ¢ assegurar os servigos dos grandes artistas que embeleza ctiavam obras da fama duradouri, foi um ¢ entivo para os nestres se superarem mautuamente, um incentivo que nio existia em. les havia mwito idéntico grat: nos paises feudsis do Norve, onde nas ci nenos independéncia e orguiho local. Depais veto 0 periods das grandes descobertas, quando 05 artistas itafianos se voltaram para 2s ms fim de estudarem as leis da perspectiva, e para 9 anatomiia a fimn de estudarem a construcio do corpo humano, Os horizontes dos artistas ampliaram-se através dessas descobertas. © artista deixou de ser um atifice entre artifices, pronty a executar encomendas de sapatos. armirios ou pinturas, conforme fosse o caso. Era agora um utestre dotado de aina ¢ gloria sem explorar os mistérios acaral que os autonomia, aio podendo aleangat da natureza c sondar as leis sccrctas do universe. Era artistas mais destacados, que alimentavani essay ambighcs, se sentissem © mesmo desde os tempos ofendidos por seu status social. Este ainda 1 da Grécia antiga, quando 05 emobes podiam accitar um poeta, que trabalhava com o cérebro, mas jamais ura artiste que trabalhava com as fio que deviam enfrentar, outro proprias mios. Ai estava outro des 8 RE ACA aRooNin estimulo impelindo-os para realizagdes cada vez mais importantes, capazes de obrigarem o mundo circundante a aceiti-los, nio s6 como respeitivels chefes de présperas oficinas, mas também como homens dotados de dons preciosos ¢ inigualiveis. Foi uma luta dificil e que nio comheceu um Exito imediato. O esnobismo e o preconceito social sio forgas poderosos, © muita gente que convidaria prazerosamente para a sua mesa um ertedicg que falava latim e sabia usar a frase certa hesitaria em estender esse privilgio a um pintor ou escultor. Uma vez mais, foi o amor 3 fama, por parte dos mecenas, que ajudou os artistas a derrubar tas preconceitos, Ns Italia havia muitas pequenas cortes que precisavam desesperadamente de honra e prestigio. Erigir magnificos edificios. encomenidae espléndides tiimulos ou grandes ciclos de afiescos, ou oferecer uma pintutn pata o altar-mor de uma famosa igreja, exam considerados modos seguros de Perpetuar o proprio nome e de adquirir um monumento para dignificar a existéucia terrena. Como havia muitos centros competindo pelos servicos dos mestres mais famosos, estes podiam, é claro, ditar seus termes, Em épocas anteriores, era o principe quem concedia seus favores a0 artista Agora, de certo modo, os papéis estavam invertidos, e era o artista quem concedia um favor a0 rico principe ou potentado, aceitando ums encomenda. Diante disso, os artistas puderam escolher, muitis vezes, a espécie de encomenda que apreciavam, nio precisanda mais submeter suas obras aos caprichos e fantasias dos clientes. E dificil decidir se esse novo poder foi, a longo prazo, uma pura béngdo para a arte. Mas no inicio. de qualquer modo, teve o efeito de uma libertacio que soltou uma uantidade tremenda de energia represada, Finalmente, o attista se tornara uma criatura livre. ( Em nenhuma outra esfera o efeito dessa mudanga foi tio acentuado guanto na arquitetura, Desde os tempos de Brunelleschi (p. 224), 0 arquiteto devia possuir alguns dos conhecimentos de um enudito clissico. Tinha que conhecer as regras das “ordens” antigas, as corretas proporedes ¢ medidas das colunas e comijas déticas, jOnicas e cotintia; tinha que medir ruinas antigas e debrucar-se sobre os manuscritos de autores classicos como Vitrivio, que codificara as convengdes dos arquitetos BFeos ¢ romanos, e cujas obras continham muitas passagens dificeis e obscuras que desafiavam a argiicia dos estudiosos renascentistas, Emr nenhum outro campo foi mais evidente do que na arquitetura 0 conilito entre as exigéncias dos clientes ¢ os ideais dos artistas. O que esses mestres cruditos realmente desejavam era construir templos e arcos triunfais: ¢ 0 ue thes pediam para fazer era a construgio de palicios e ignejas, Vimos como foi atingido um meio-termo nesse conflito fandamental por mestres como Alberti (p. 250, Fig. 163), que conjugaram as “ordens” antigas com 0 moderno pakicio citadino. Mas a verdadeira aspiracio do arquiteto renascentista ainda era projetar um edificio sem levar em conta © seu uso funcional — simplesmente pela beleza de suas proporgdes, pela vastidio do seu interior, pela imponente grandeza do conjunto. a eS Caradosso Medalha de, pare 4 nove ‘8 Pedro, mastrando 0 guna de Branante perdu gigas nro, 1506 Ambicionavam realizar uma simetria ¢ regularidade que Ihes era santo tivessem gue se concentrar nos requisitos praticos de um edificio comum. Foi uni momento memorivel quando tum deles encontrou um poderoso cliente disposto a sacrificar tradicio ¢ utilitarismo em nome da fama que iria adquirir com a eregio de uma grandiosa estrutura capaz de eclipsar as sete maravilhas do mundo. Somente assim podemios entender a decisio do Papa Jilio II, em 1506, de demolir a venerivel Basilica de S. Pedro, que se erguia no local onde, dizia a tradigio, 0 santo estava sepultado, e mandar reconstrui-la de uma maneira que desafiava as tradicdes, consagradas pelo tempo, da construcio Je igrejas, bem como os costumes do servigo divino. O homem a quem -1514), um ardente paladino do novo estilo. Um dos poucos edificios desse tipo que ram intactos mostra até onde Bramante avangara na absorgao de idéias e padrdes da arguitetura clissica, sem se tornar por isso um servill impossivel atingir en se confiou essa tarefa foi Donato Bramante (144: sobrevi imitador (Fig. 187). E um Tempietto (pequeno templo), como el chamou, que devia ser cercado por um claustro no mesmo estilo. Assume a forma de um pequeno pavilhio circular implantado sobre um lango de escadas, coroado por uma cfipula e circundado por uma colunata da ordem dorica. A balaustrada sobre a cornija acrescenta ao conjunto um toque de leveza e graciosidade; a pequena estrutura da capela Donato Bromante © Temple, ica de 'S. Pietro jn Mon Roma, 1502 propriamente dita € a colun perfeita quanto ade qualquer templo d A esse mestre tinha 0 Papa confiado, pois, a tarefa de projetar a nova igreja de S. Pedro, ¢ ficou entendido que ela devia tornar-se uma vilha para toda a cristandade. Bramante e: ica a decidido a verdadeira mar Ns género teria que set um recinto oblongo, no qual os figis ficariam olhando para leste, na direc3o do altar-mor onde a missa é rezada, Emi seu anseio de obter aquela regularidade ¢ harmonia que por si sos pudessem conferir dignidade ao templo, Bramante projetou uma igreja guadrada, com capelas simetricamente dispostas em torno de um giganiesco atrio em forma de cruz, Esse trio seria coroado por imensa clipula, assente em arcos colossais, que conhecemos da medalha de fundacao (Fig. 186). Ao que se dizia, Bramante alimentava a esperanga de couubinar o efeito da maior construgao antiga, o Coliseu (p. 118, Fig. 73), cujas ruinas imponentes ainda impressionavam o visitante de Roma, com 0 do Pantedo (p. 120, Fig, 75). Por um breve momento, a admiracio, pela arte dos antigos ¢ a ambicio de criar algo jamais visto dominaram as considetacdes utilitarias e as tradi¢des que o tempo consagrara, Mas © plano de Bramante para S. Pedro nao estava destinado a vingar. A enorme construgio absorveu tanto dinheiro que, na tentativa de angariar fundos suficientes, o Papa precipitou a crise que culminaria na Reforma. Foi a pritica de vender indulyéneias em troca de contribuigSes para a onstrugio dessa nova igreja que levou Lutero, na Alemanha, a realizar 0 seu primeito protesto piiblico, Mesmo no seio da Igreja Catélica, a oposi¢ao ao plano de Bramante recrudesceu, ¢ com os anos a idéia de uma igreja circular foi abandonada. S. Pedro, tal como a conhecemos hoje. tem pouco em comum com o seu plano original, exceto nas dimensdes gigantescas. O espirito de audaciosa iniciativa que possibilitou o plano de Bramante para S. Pedro é caracteristico da Alta Renascenga, o periodo em torno de 1500 que produziu tantos dos maiores artistas do mundo, Para esses homens, nada parecia extraordindio, e talvez seja essa a razio pela qual eles, algumas vezes, realizaram o que era aparentemente impossivel. Uma vez mais, coube a Florenga servir de bergo a alguns dos maiores espiritos dessa grande época. Desde os tempos de Giotto, por volta de 1300, e de Masaccio, no infcio dos anos 1400, os artistas florentinos cultivavam a sua tradicio com especial orgulho, e sua exceléncia era reconhecida por todas 4s pessoas de gosto. Veremos que quase todos os grandes artistas nasceram. dessa tradi¢ao firmemente estabelecida, e € por isso que no devemos esquecer 0s humildes artifices em cujas oficinas eles aprenderam os elementos da sua arte. Leonardo da Vinci (1452-1519), o mais velho desses famosos mestres, asceu numa aldeia toscana, Foi aprendiz numa importante oficina de Florenca, a do pintor ¢ escultor Andrea del Verrocchio (1435-88). A fama de Verrocchio era enorme, to grande, de fato, que a cidade de Veneza lhe encomendou 0 monumento a Bartolommeo Colleoni, um dos seus condottieri, a quem os venezianos estavam mais gratos pelo nimero de obras de caridade que fundara do que por qualquer faganha militar de especial valor. A estitua eqiiestre que Verrocchio realizou (Figs. 188-9) mostra que ele era um digno herdeiro da tradicio de 292 REALIZACAO DA HARMONIA Donatello. Estudou com miniicia a anatomia do cavalo, ¢ vemos com que perspics observou os miisculos da face ¢ pescogo de Colleoni. © mais admirivel, porém, & a postura do cavaleiro, que parece estar & testa de suas tropas com uma expressio de destemido desafio. Epocas ulteriores familiarizaram-nos tanto com esses cavaleiros de bronze que passaram a povoar as nossas grandes @ pequenas cidades, representando imperadores, reis, principes e generais de maior ou menor mérito, que talvez levemos algum tempo para perceber a grandeza ¢ a simplicidade da obra de Verrocchio — nas Jinhas claras que a obra apresenta de quase todos os seus Angulos, ¢ na energia concentrada que parece animar 0 homem de armadura ¢ sua montada. i. Numa oficina capaz de produzir tais obras~ primas, o jovem Leonardo péde certamente aprender muita coisa. Foi introduzido nos segredos técnicos do trabalho de fundicio ¢ outras tarefis metaliirgicas, aprendeu a preparat quadros e estituas cuidadosamente, fazendo estudos de nus e de modelos vestidos. Aprendeu a estudar plantas ¢ animais curiosos para incluir em seus quadros ¢ recebeu fandamentos basicos sobre a optica da perspectiva e 0 uso de cores. No caso de qualquer outro rapaz talentoso, esse (reinamento teria sido suficiente para fazer dele um respeitavel artista, & muitos bons pintores e escultores sairam, de fato, da prospera oficina de Verrocchio. Mas Leonardo era mais do que um jovem talentoso. Era um génio cujo intelecto poderoso ser eternamente objeto de assombro ¢ admiracao para os mortais comuns. Sabemos alguma coisa sobre a amplitude e produtividade do espirito de Leonardo porque seus alunos € admiradores preservaram cuidadosamente seus esbogos e cademnos de apontamentos, milhares de paginas cobertas de escritos e desenhos, com excertos de livros que Leonardo leu ¢ rascunhos para obras que pretendia escrever. Quanto mais se estudam esses papéis, menos se pode entender como um ser humano foi capaz de se destacar de forma tio profunda em todos esses diferentes campos de pesquisa e de dar tio importantes contribuigdes para quase todos eles. Talvez uma das razdes resida no fato de Leonardo ser um artista florentino, ¢ no um erudito de formacio académica. Considerava ele que a fungio do artista era explorar 0 mundo visivel, tal como seus predecessores tinham feito, s6 que de mancira mais abrangente ¢ com maior intensidade e precisio. Nao lhe interessavam os conhecimentos livrescos dos homens de saber. Tal como Shakespeare, ele provavelmente tinha “pouco latim e ainda menos grego”. Numa época em os homens de saber nas universidades se apoiavam na autoridade dos ados autores antigos, Leonardo, o pintor, jamais aceitava 0 que lia sem verifiear com seus préprios olhos. Sempre que encontrava um problema, nfo confiava nas autoridades, mas tentava realizar um. experimento para resolvé-lo. Nada existia na natureza que nao despertasse a sua curiosidade e nio desafiasse o seu engenho. Leonardo explorou os segredos do corpo lhumano, dissecando mais de trinta cadveres (Fig, 190) Foi um dos primeiros a se aprofimdar nos mistérios do crescimento da crianga no ventre materno; investigou as leis das ondas e correntes; passou anos observando € analisando o v6o de insetos e pissaros, 0 que iria ajuds— Jo a inventar uma miquina voadora que um dia, ele tinhitcerteza, se tornaria uma realidade. As formas de pedras e nuvens, o efeito da atmosfera sobre a cor de objetos distantes, as leis que rege o crescimento de drvores © plantas, a harmonia dos sons, tudo isso era objeto de incessante pesquisa, e seria a base de sua propria arte Seus contemporineos encaravam Leonardo como um ser estranho misterioso. Principes e chefes militares queriam usat esse suxpreendente mago como engenheiro militar para a construgio de fortiticagSes ¢ canais, novas armas ¢ dispositivos bélicos. Em tempo de paz, divertia-os com brinquedos mecinicos que inventava e com projetos de novos efeitos para representagdes teatrais € pomposos cortejos. Leonardo era admirado como beoanle de Vinci tum grande artista € requestado como espléndido muisico, Apesar de tudo ninge cur, 1510 isso, poucas pessoas poderiam fazer uma pélida idéia da importincia de suas rss ti mame ars concepgdes ou da vastidio de seus conhecimentos. A razio é que Leonardo Sew grEs nunca publicou seus escritos, e bem poucos deviam saber que existiam. Cad Como era canhoto, resolvera escrever da direita para a esquerda, Por isso suas notas s6 podem ser lidas num espelho. E possivel que temesse divulgar as descobertas, com medo de que suas opinides fossem consideradas heréticas. De fato, encontramos em seus escritos as cinco palavras “O sol nio se move”, o que prova ter Leonardo antecipado as teorias de Copétnico que mais tarde colocariam Galileu em sérios apuros. Mas também é possivel que tenha empreendido pesquisas ¢ experimentos simplesmente para satisfazer sua insacidvel curiosidade e que, uma vez resolvido um problema, perdesse todo o interesse por ele, ja que existiam muitos outros mistérios por explorar. Sobretudo, é provavel que 0 préprio Leonardo nio alimentasse a bigio de ser considerado um cientista. A exploragio da natureza era para ele, em primeiro lugar e acima de tudo, um meio de adquirir conhecimentos sobre o mundo visivel — conhecimentos de que necessitaria para a sua arte. Pensava que, ao colocé-la numa base cientifica, poderia transformar a sua amada arte da pintura de um officio humailde numa atividade nobre ¢ prestigiosa. Para nés, essa pteocupagio com a categoria social dos artistas pode ser dificil de entender, mas ja vimos que importincia ela tinha para os homens daquele periodo. Talvez convenha recordar 0 Sono de uma Noite de Verde, de Shakespeare, e 0s Go adh 296 REALIZACAO DAHARMONIA papéis que ele atribui a Snug, o marceneiro, Bottom, o tecelio, e Snout, © latoeiro, para compreender melhor os antecedentes dessa luta Aristételes codificara 0 esnobismo da Antiguidade clissica ao distinguir entre certas artes que eram compativeis com uma “educagio liberal” (as chamadas Artes Liberais, como a gramitica, a légica, a retérica ea geometria) ¢ atividades que implicavam o trabalho com as aos, que eram profissdes “manuais” e, portanto, “mesquiinhas”, abaixo da dignidade de um cavalheiro. A ambigio de homens como Leonardo consistia em mostrar que a pintura era uma Arve Liberal, e que o trabalho manual nela envolvido nio era nem mais nem mengs essencial do que 0 trabalho de escrever na poesia. E possivel que esse ponto de vista afetasse com freqiiéncia as relagdes de Leonardo com os seus clientes. Talvez ele nao quisesse ser considerado 0 dono de uma loja onde qualquer um podia entrar ¢ encomendar uma pintura. Seja como tor. sabemios que Leonardo deixou, muitas vezes, de executar obras que Ihe encomendavam. Comegava uma pintura e deixava-a sem terminar, apesar das urgentes solicitagdes do cliente. Além disso, insistia obviamente em que s6 a ele cabia decidir quando uma obra estava terminada e recusava-se a entregi- la engtianto nao se considerasse satisfeito com ela. Nio surpreende, Portanto, que poucas obras de Leonardo tenham sido conchufdas, e que seus contemporaneos lamentassem 0 modo como esse extraordinario genio parecia desperdicar seu tempo, deslocando-se incansavelmente de Florenea para Milio, de Milio para Florenga, ¢ a servico do notério aventureiro César Bérgia, depois para Roma, ¢. tinalmente, para a corte de Francisco I de Franga, onde morreu em 1519, mais admirado do que compreendido.) Por singular inforttinio, as poucas obras que Leonardo completou chegaram até nés em péssimo estado de conservacio. Assim, quando vemos o que resta do seu famoso mural “A Ultima Ceia” (Figs. 191-2), devemos imaginar como seria contemplado pelos monges para quem foi pintado, O mural cobre uma parede de uma sala oblonga que era usada como refeit6tio pelos monges do mosteiro de Santa Maria delle Grazie, em Milio. Deve-se visualizar como seria quando a pintura foi descerrada € quando, lado a lado com as compridas mesas dos monges, surgiu a mesa do Cristo e seus apéstolos. Nunca 0 episédio sacro fora apresentado tio proximo ¢ tio real. Era como se outra sala fosse acrescentada 4 deles, na qual a Ultima Ceia assumia uma forma tangivel. Como era pura a luz que inundava a mesa, ¢ como acrescentava solidez ¢ volume as figuras. Talvez ‘os monges se impressionassem primeiro pela veracidade e o realismo com que todos os detalhes estavam retratados, os pratos espalhados sobre a toalha, as pregas destacadas nas vestes. Entio, como agora, as obras de arte eram freqiientemente julgadas pelos leigos de acordo com o grau de fidelidade 4 vida real. Mas essa s6. pode ter sido a primeira reagio, Uma vez suficientemente admirada a extraordiniria ilusio de realidade, os maonges passariam a considerar 0 modo como Leonardo apresentara a ‘Una Caia™ Leonardo ds Vin na pede do indo historia biblica, Nada havia nesse affesco que se assemelhasse 3s representagdes anteriores do mesmo tema. Nas verses tradicionais, viam- se os apéstolos calmamente sentados & mesa numa fila — apenas Judas segregado dos demais —, enquanto Cristo administrava serenamente 0 nento. A nova pintura era muito diferente de todas as outras. Hi io. Leonardo, como Giotto antes de Sacra e excita nela drama, teatralidad revertera a0 texto das Escrituras e se esforgara por visualizar como teria sido a cena quando Cristo disse: ““Em verdade vos digo que um dentre vos me trait,’ E eles, muitissimo contristados, comegaram um por wm a perguntar-lhe: ‘Porventura sou eu, Senhor?” (Mateus XXVI, 21-2). 0 Evangelho de $. Joao acrescenta: “Ora ali estava, conchegado a Jesus, um dos seus discipulos, aquele a quem Ele amava. A esse fez Simao Pedro sinal para que indagasse a quem Ele se referia.” (Joao XIII, 23-4). Sio esis interrogagdes ¢ esses sinais que trazem movimento & cena, Cristo acabou de pronunciar as palavras tragicas, e os que estio a Seu lado recuam horrorizados ao ouvir a revelagio. Alguns parecem protestar seu amor a Jesus ¢ stta inocéncia, outros discutem gravemente a quem 0 Senhor poderia se referir, outros ainda parecem aguardar uma explicagio para o que Ele disse. S. Pedro, 0 mais impetuoso deles, precipita-se para S. Joio, que se senta a direita de Jesus. Ao segredar algo a0 ouvido de S. Joio. empurra inadvertidamente Judas para diante. Judas nio esta segregido dos demnis e, no entanto, parece isoladg, E 0 dinico que nio gesticula nem faz perguntas. Inclina-se para diante e ergue os olhos com descontianga ou célera, um contraste dramético coiff a figura do Cristo, calmo e resignado em meio a esse crescente alvorogo. Quanto tempo teria sido necessirio pata que os primeiros espectadores se apercebessem di arte consumada que resultou em toda essa dramiticd movimentagii Apesar da excitagio causada pelas palavras de Jesus, nada existe de cadtico na obra, Os doze apéstolos parecem dividir-se muito naturalmente em quatro grupos de trés, ligndos mutuamente por gestos e movimentos. Ha tanta ordem nessa variedade, e tanta variedade nessa ordem, que ninguém pode esgotir inteiramente o jogo harmonioso entre movimento € in contramovimento. Talvez s6 possamos apreciar coralmente a oe extraordindria faganha de Leonardo nessa composicio se voltarmos a AUhing Cea, 1495-8 refletir no problema discutido a0 descrever 0 "Sto Sebastiio” de Tepes ec eno Pollaiuolo (p. 263, Fig. 171). Recordemos como os artistas dessa geracio MAM Sun ictinn do tinham batalhado para combinar as exigéncias do realismo com as do Grae ie padrio convencional. Leonardo, que era apenas um pouco mais jovem do que Pollaiuolo, resolvera o problema com evidente desenvoltura. Se esquecermos por um instante o que a cena representa, poderemos ainda deliciar-nos com o belo padrio formado pelas figuras. A composicio. parece ter aquele equilibrio descansado ¢ aquela harmonia que tinha nas pinturas goticas, ¢ que artistas como Rogier van der Weyden e Botticelli, cada um a seu modo, haviam tentado reconquistar para a arte. Mas Leonardo nio considerou necessirio sacrificar a correcio do desenho ou a exatidio da observagio as exigéncias de um delineamento satisfatério. Se esquecermos a beleza da composigio, sentimo-nos subitamente diante de tum fiagmento da realidade tao fidedigna e tio impressionante quanto a que vimos nas obras de Masaccio ou Donatello. E mesmo essa realizagio extraordindria mal chega a tocar a verdadeira grandeza da obra. Com efeito, para além de questdes técnicas como a seguranga do desenho ¢ a composigio, devemos admirar a profunda intuigio de Leonardo sobre a natureza intima do comportamento ¢ das reagdes dos homens, e o poder de imaginagio que o habilitou a colocar a cena diante dos nossos olhos. Una testemunha ocular diz-nos que viu freqiientemente Leonardo trabalhando em “A Ultima Ceia”. Subia no andaime e ai ficava ereto por dias inteiros, os bragos cruzados, apenas olhando com olho critico 0 que {jd tinha feito, antes de aplicar outra pincelada, Foi o resultado desse ear ensamento que ele nos legou, e, mesmo em sua condigao deter iorada, “A Ultima Ceia” continua sendo um dos grandes milagres produzidos pelo génio humano. oe—S—“——S—OOC—CNCC “A Ultima Ceia”. Trata-se do retrato de uma dama florentina cujo nome eva Lisa, “Mona Lisa” (Fig. 193). Uma fama tio grande quanto » da “Mona Lisa” de Leonardo nio constitui uma grande bénco para uma obra de arte, Ficamos tio habituados a vé-la em postais e até enn Publicidade, que se torna dificil olhé-la com olhos ctticos como a pintura feita por um homem retratando uma mulher de carne sso. Mas vale a Pena esquecer 0 que sabemos, ou julgamos saber, Sobre 0 quadro, ¢ examiné-lo como se féssemos os primeitos a nelafixar os olhos. O que de imediato nos impressiona € a medida surpreendente em que a mulher Parece viva. Ela realmente parece olhar para nés e possuir um espitito Proprio. Como um ser vivo, parece mudar ante os nossos olhos ¢ estar um pouco diferente toda vez que voltamos a olhé-la. Até mesmo em forografias do quadro sentimos esse estranho efeito; mas, diante do original, no Louvre, em Paris, a sensagio é quase sobrenatural, As vezes cla parece zombar de nds; outras, temos a impressio de surpreender uma sombra de tristeza no seu sorriso, Tudo isso tem um ar meio misterioso, mas assim &, Com muita freqiiéncia, & esse 0 efeito gerado por ums Leonardo di Vinci grande obra de arte. Contudo, Leonardo certamente sabia como obteve ‘Mona Line Yeon esse efeito, e por que meios. O grande obervador da natureza sabia mais ae sobre o modo como usamos os nossos olhos do que qualquer pesoa do Sackett seu tempo ou antes dele. Leonardo viu claramente o problema que a Conquista da natureza tinha criado para os artistas — um problema nio fuenos intrincado do que a combinagio de desenho correto e composigio harmoniosa, As grandes obras dos mestres talianos do Quattrcento que seguiram 0 caminho apontado por Masaccio tém uma coisa en comum as suas figuras parecem um tanto dutas, quase de madeira. O estranho é a responsabilidade por esse efeito nio caber claramente 3 falta de paciéncia ou falta de conhecimentos. Ninguém podia ser mais paciente em sta imitacio da natureza do que Van Eyck (p. 241, Fig, 158); ninguém podia ‘aber mais sobre desenho e perspectiva corretos do que Mantegna (p. 258, Fig. 169). E no entanto, apesar de toda a grandeza e imponéncia de suas representagGes da natureza, as suas figuras parecem mais estétuas do que seres vivos. A razio disso pode ser que, quanto mais escrupulosamente Copiamos uma figura linha por linha, detalhe por detalhe, menos podemos imaginar que cla se movesse ¢ respirasse, E como se 0 pintor subitamente a tivesse enfeitigado e a forgasse a manter-se imével para sempre, como os personagens de A Bela Adormecida. Os artistas haviam tentado varios métodos para superar essa dificuldade. Botticelli, por exemplo (p. 265, Fig. 172), procurou enfatizar em seus quadros os cabelos ondulados ¢ as roupagens esvoacantes de suas figuras, para fazé-Ias Parecer menos rigidas em seus contornos. Mas s6 Leonardo encontrou a verdadeira solugio para 0 problema. © pintor deve deixar ao espectador algo para adivinhar. Se os contornos nio sio desenhados com a maior firmeza de tragos, se a forma permanece um pouco indefinida, como que desaparecendo numa sombra, essa impressio de secura e rigidez ser cvitada, Ai esta a famosa invenglo de Leonardo a que os italianos chamam sfiusato — um lineamento esbatido e cores adogadas que permitem a uma forma fundir-se com outras € deixar sempre algo para alimentar a nossa imaginagio. 3 “Moni Lisa” (Fig. 194), poderemos entender Algo do seu misterioso efeito. Vemos que Leonardo empregou o seu Se volrarmos agor ——=——W| By 303 TOSCANAE ROMA. INICIO DO SECLLO XY sfimato com suprema deliberagio. Quem tiver alguma vez tentado Gesenhar ou rabiscar um rosto sabe que aquilo a que chamamos expressio repousa principalmente em duas caracteristicas: 05 cantos da boca € os “Cantos dos olhos. Ora, foram justamente essas partes as que Leonardo Gcixou deliberadamente indistintas, fazendo com que se esfumassem num suave sombreado. Por isso € que nunca estamos muito certos quanto ao estado de espirito realmente refletido na expressio com que Mona Lisa nnos olha. Ela parece estar sempre esquiva. Claro que nio é apenas a indefinic¢io que produz esse efeito. Hi muito mais por trés dele. Leonardo teve uma atitude muito augaciosa, a que talvez s6 se arriscaria tum pintor com a stia consumada mestria. Se observarmos cuidadosamente o quadro, veremos que os dois lados no combinam. Isso por demais Sbvio na fantistied paisagem onirica do fundo. O horizonte do lado tesquerdo parece estar muito mais baixo que o do lado direito. Por Conseguinte, quando focalizamos no lado esquerdo do quadro, a mulher parece ser mais alta ou estar mais ereta do que ao focalizarmos no lado direito. E seu rosto parece também mudar com essa mudanga de posi¢ao, porque os dois lados tampouco condizem inteiramente. Mas com todos esses requintados estratagemas, Leonardo poderia ter produzido uma engenhosa pega de malabarismo, em vez de uma grande obra de arte, se Jo soubesse exatamente até onde podia ir e nao tivesse compensado seus snidaciosos desvios da natureza com uma representagio quase milagrosa de came viva, Vejam a maneira como ele modelou a mio, ou as mangas Com suas mintisculas pregas. Leonardo podia ser tio laborioso na paciente observagio da natureza quanto qualquer dos seus precursores. Sé que ele ja estava bem longe de ser um mero e fiel escravo da natureza. Muitos ‘culos antes, num passado remoro, as pessoas tinham olhado para retratos com reverncia, por pensarem que. 20 ser preservada a imagem real, 0 aitista podia preservar, de algum modo, a propria alma da pessoa tetratada, Agora, Leonardo, o grande cientista, convertera em realidade alguns dos sonhos ¢ temores desses primeiros fazedores de imagens. Ele conhecia a formula migica que infundia vida nas cores espalhadas por se sortilego pincel.J O segundo grande florentino cuja obra tornou to famosa a arte E italiana do Cinguecento foi Mis uel Angelo Buonarroti (147! 564). Miguel Angelo era 23 anos mais mogo do que Leonardo & sobreviveu-Ihe 145 anos, Em sua longa vida, foi testemunha de uma completa mudanga na posigio do artista, Em certa medida, foi ele mesmo quem provocou tal mudanga. Em sua juventude, Miguel Angelo exercitou-se como qualquer outro artista, Garoto de 13 anos, foi aprendiz durante trés anos na atarefada oficina de um dos principais mestres do final do Quattrocento florentino, o pintor Domenico Ghirlandaio (1449-94). Ghirlandaio é um_ daqueles mestres que nos agradam mais pelo modo como espelham a vida Colorida do perfodo do que pela grandeza do seu génio. Sabia como ‘contar de forma agradavel a hist6ria sagrada, como se ela estivesse ocorrendo entre os ricos cidadaos florentinos do circulo dos Medici, de + quem eram clientes. A Fig. 195 representa 0 nascimento da Virgem Maria, e vemos os parentes de sua mie, Santa Ana, chegando para a visitar e felicitar. Observamos o interior de um elegante apartamento dos fins do século XV, presenciamos a visita formal de prosperas damas da sociedade. Ghirlandaio provou saber como dispor seus grupos com eficiéncia e como proporcionar prazer aos olhos. Mostrou compartilhar do gosto de seus contemporineos pelos temas da arte antiga, pois teve 0 cuidado de desenhar um relevo de criangas dangando, 4 mancira classica, no fundo do quadro. Nessa oficina, o jovem Miguel Angelo péde certamente aprender todos 05 recursos técnicos do oficio, uma sélida técnica em pintura de afrescos e 0 total dominio da arte de desenhar. Mas, até onde nos é dado saber, Miguel Angelo nio gostou do tempo que passou na firma desse bem-sucedido pintor. Suas idéias sobre arte eram diferentes, Em vez de adquirir a maneira desenvolta de Ghirlandaio, preferiu dedicar-se a0 estudo da obra dos grandes mestres do passado, de Giotto, Masaccio, Donatello, ¢ dos escultores gregos e romanos cujas obras pode ver na coleco dos Medici. Tentou penetrar nos segredos dos escultores antigos, que sabiam como representar a beleza do corpo humano em movimento, com todos os seus misculos ¢ tendées. Tal como Leonardo, nio se contentou em aprender as leis da anatomia em segunda mio, por assim Domenico Shiskandaio iment de Vtg x 191 ee a ee dizer, através da escultura antiga, Realizou suas proprias pesquisas de anatomia humana, dissecou cadéveres ¢ desenhou com modelos, até que a figura humana deixou de ter para ele qualquer segredo. Mas, a0 contririo de Leonardo, para quem o homem era apenas um dos muitos ¢ fascinantes enigmas da natureza, Miguel Angelo empenhou-se com incrivel obstinacio em dominar esse tinico problema — mas em domi: lo a fundo. O seu poder de concentragio e a sta tenaz memoria devem ter sido tio extraordinirios que, em pouco tempo, nio havia postura nem movimento que ele achasse dificil desenhar. De fato, as dificuldades apenas pareciam atrai-lo ainda mats. Atitudes e dngulos que muitos dos maiores artistas do Quattrocento, hesitariam em introduzir em suas pinturas, com receio de nio as reproduzir de forma convincente, apenas estimulavam a sua ambicio artistica: e nio tardou em correr a noticia de gue esse jovem artista nio s6 igualava os renomados mestres da Antiguidade clissica mas os suplantava. Estava para chegar 0 tempo em que jovens artistas passavam varios anos em escolas de belas-artes estudando anatomia, 0 nu, perspectiva ¢ todos os truques da arte de bem desenhar. E hoje, mititos artistas comerciais despretensiosos podem adquirir facilidade invejavel no desenho de figuras humanas de todos os Angulos. Assim, talvez nio nos seja ficil entender a suprema admiragio que a enorme habilidade e os vastos conhecimentos de Miguel Angelo despertaram no seu tempo. Aos 30 anos, ele era geralmente reconhecido como um dos mais notiveis mestres da época, igualando-se, de certa maneira, a0 génio de Leonardo. A cidade de Florenga honrou a ambos, encomendando a ele ¢ a Leonardo que cada um pintasse um episédio da histéria florentina numa parede da Camara de Vereadores. Foi um momento espetacular na hist6ria da arte quando esses dois gigantes competiram pela conquista dos louros e toda a cidade assistiv: com excitagdo a0 desenrolar dos preparativos de ambos. Infelizmente, as obras nunca foram concluidas, Em 1506 Leonardo regressou a Milio e Miguel Angelo recebeu um convite que acendeu ainda mais 0 seu entusiasmo. O Papa Jillio II queria a sua presenga em Roma a fim de erigir para ele um timulo digno do sumo pontifice da Cristandade. Temos conheciniento dos ambiciosos planos desse magnanimo mas implacavel governante da Igreja, e nao é dificil imaginar como Miguel Angelo ficou fascinado a0 trabalhar para um homem que posstfa os meios e a férrea vontade de concretizar os planos mais audaciosos. Com autorizagio do Papa, viajou imediatamente para as famosas canteiras de mirmore de Carrara, a fim de ali selecionar os blocos onde iria esculpir um gigantesco mausoléu. O jovem artista ficou profundamente impressionado ante a vista de todas faquelas rochas de marmore, as quais pareciam esperar pelo seu cinzel para se converterem em esttuas como jamais o mundo vira. Permaneceu por mais de seis meses nas canteiras, comprando, selecionando ¢ rejeitando, a mente fervilhando de imagens. Queria libertar as figuras do cere das pedras, onde estavam adormecidas. Mas, quando regressou a Roma € vie ea f ‘ comesou a trabalhar, nio tardou em descobrir que 0 entusiasmo do Papa esfriara bastante. Sabemos hoje que uma das principais razdes para a hesitagio papal era que o seu plano de um timulo entrara em conflito com outro projeto ainda mais caro ao seu coragio: uma nova igreja de S. Pedro, Pois o timulo fora destinado originalmente ao antigo edificio, e, se este ia ser demolido, onde seria alojado 0 mausoléu? Miguel Angelo, em sua extrema decep¢io, suspeitou de razdes diferentes. Farejou uma intriga ¢ temeu até que seus rivais, sobretudo Bramante, 0 arquiteto da nova igreja de S. Pedro, o quisessem envenenar. Num acesso de medo ¢ célera, voltou a Florenca, de onde gscreveu uma aspera carta a0 Papa dizendo que, se 0 quisesse de volta, tratasse de ir procuré-lo que houve de extraordinitio nesse incidente foi Jilio II nio perder acalma e, pelo contritio, iniciar negociacdes formais com as auttoridades de Florenga para que persuadissem 0 jovem escultor a voltar a Roma. Todos os envolvidos pareciam, concordar em que os movimentos ¢ planos do jovem artista.eram tio importantes quanto qualquer delicada questio de Estado. Os florentinos remiam, inclusive, que 0 Papa pudesse voltar-se contra eles, se continttassem dando abrigo a0 desertor. Portanto, © dirigente maximo da cidade de Florenga persuadiu Miguel Angelo a voltar a0 servigo de Jilio Il e deu-Ihe uma carta de recomendagio dizendo que a sua arte nao tinha igual em: toda a Itdlia, talvez no mundo inteiro, e que, se fosse tratado com gentileza, “realizaria coisas que assombrariam 0 mundo”. Pelo menos uma vez uma nota diplomatica falou a pura verdade. Quando Miguel Angelo voltou a Roma, o Papa fé- Jo aceitar outra encomenda. Havia uma capela no Vaticano que fora construida pelo Papa Sisto IV e por isso era chamada Sistina (Fig. 196) [As paredes dessa capela tinham sido decoradas pelos mais famosos pintores da geracio anterior — Botticelli, Ghirlandaio ¢ outros. Mas a abébada ainda estava virgem. O Papa sugeriu a Miguel Angelo que a pintasse. O artista fez tudo 0 que podia para esquivar-se a essa encomenda. Disse nio ser pintor, mas escultor. Estava convencido de que essa ingrata encomenda lhe fora encaminhada através das intrigas de seus inimigos. Quando o Papa se manteve irredutivel, Miguel Angelo comesou a elaborar um modesto esquema de doze apéstolos em nichos ¢ a contratar ajudantes de Florenga para 0 auxiliarem na tarefa. Contudo, sitbito, fechou-se na capela, nio deixou ninguém se acercar dele ¢ comegou a trabalhar sozinho num plano que, na verdade, continuow “assombrando 0 mundo” desde o instante em que foi revelado. £ muito dificil a um mortal comum imaginar como foi possivel a um ser humano realizar © que Miguel Angelo realizou em quatro anos de trabalho solitario no’ andaimes da capela papal (Fig. 198). O mero esforgo fisico de pintar esse gigantesco affesco no teto da capela, de preparar ¢ esbogar as cenas em detalhe, ¢ de transferi-las para o teto, ja era suficientemente fantistico. Miguel Angelo tinha de deitar-se de costas € pintar olhando para cima. De fato, habituou-se de tal modo a essa posico acanhada que até quando recebia uma carta durante esse periodo tinha que lé-Ia assumindo a mesma posigao. Entretanto, a proeza fisica de um_ homem para cobrir esse vasto espaco sem ajuda nenhuma pouco representa em comparagio com a faganha intelectual e artistica. A riqueza de novas invengdes, a mestria infalivel de execugio em todos os detalhes e, sobretudo, a grandeza das visdes que Miguel Angelo revelou aos pOsteros proporcionaram 3 humanidade uma nova idéia de poder do gtnio. Vemos freqiientemente ilustragdes de detalhes dessa obra herciilea ¢ jamais nos cansamos de admiri-las. Mas a impressio getada pelo conjunto, quando se entra na capela, ¢ muito diferente‘da soma de todas as fotografias que possam ser vistas. A capela lembra uma sala de reuniSes ampla e alta, com uma abbada rasa. Na parte superior das paredes vemos uma série de pinturas das histérias de Moisés e do Cristo, § maneira tradicional dos precursores de Miguel Angelo. Mas, quando erguemos os olhos para o alto, parece que penetramos num mundo diferente. E um. mundo de dimensées sobre-humanas. Nos arcos abobadados que se erguem das cinco janelas de cada lado da capela, Miguel Angelo colocou imagens gigantescas dos profetas do Antigo Testamento que falaram aos, judeus sobre a vinda do Messias, alternando com imagens das Sibilas que, de acordo com uma velha tradigio, profétizaram a vinda do Cristo aos pagios. Pintou-os como homens e mulheres pujantes, em posturas de profinda meditacio, lendo, escrevendo, discutindo ou atentos como se estivessem escutando uma voz interior. Entre essas filas de figuras descomunais, Miguel Angelo pintou no teto propriamente dito a histéria da Criagio e de Noé. Mas, como se essa herciilea tarefa nao fosse bastante para satisfazer 0 seu irresistivel impulso de criar sempre novas imagens, encheu a moldura entre essas pinturas com uma avassaladora multidio de figuras, algumas delas como estétuas, outras como jovens frementes de vida e de uma beleza sobrenatural, segurando grinaldas e medalhdes que continham ainda mais histérias. E isso € apenas a pega central. Para além dela, nos arcos e diretamente por baixo deles, pintou uma sucessio de homens e mulheres em infinita variagcio — os ancestrais do Cristo, conforme enumerados na Biblia. Ao ver essa profiisio de figuras numa reproducio fotogritica, talvez desconfiemos de que o teto deve parecer superpovoado e em desequilibrio. Nada disso. Uma das grandes surpresas, quando se entra na Capela Sistina, descobrir que 0 teto & simples e harmonioso quando o olhamos meramente como uma pega de soberba decoragio e como é limpido todo o arranjo. Desde que foi limpo de suas muitas camadas de pocira e filigem das velas nos anos de 1980 as cores foram reveladas fortes e luminosas, uma necessidade se o teto tinha que ficar visivel em uma capela com tio poucas ¢ estreitas janelas. (Este é um ponto raramente considerado por aqueles que admiraram essas pinturas na forte luz elétrica que agora se projeta para 0 wero.) Miguel Angelo Detalie do teo da Cepela Siting 196 ENCARTE Miguel Angelo Teo da Capea Sistins, 1508-12

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