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Grátis Pelo Sistema de Ensino a Distancia – SED
CNPJ º 21.221.528/0001-60
Registro Civil das Pessoas Jurídicas nº 333 do Livro A-l das Fls.
173/173 vº, Fundada em 01 de Janeiro de 1980, Registrada em
27 de Outubro de 1984
Presidente Nacional Reverendo Pr. Gilson Aristeu de Oliveira
Coordenador Geral Pr. Antony Steff Gilson de Oliveira
Apostila 30
I. Histórico
II. O primeiro pacto feito com o homem era um pacto de obras; nesse pacto foi a
vida prometida a Adão e, nele, à sua posteridade, sob a condição de perfeita e
pessoal obediência.
III. Tendo-se o homem tornado, pela sua queda, incapaz de ter vida por meio
deste pacto, o Senhor dignou-se a fazer um segundo pacto, geralmente chamado
o pacto da graça; neste pacto da graça ele livremente oferece aos pecadores a
vida e a salvação através de Jesus Cristo, exigindo deles a fé, para que sejam
salvos, e prometendo o seu Santo Espírito a todos os que estão ordenados para a
vida, a fim de dispô-los e habilitá-los a crer.(3)
O texto fala de dois pactos feitos com o ser humano. O primeiro foi feito com Adão
antes da queda e é chamado de pacto de obras. No segundo, feito depois da
queda, a salvação e a vida são oferecidas a "todos os que estão ordenados para a
vida." Este é chamado de pacto da graça. Esses dois pactos estão "centralizados
em torno do primeiro Adão e do segundo Adão, que é Cristo."(4) A teologia
esposada na CFW é conhecida como teologia pactual ("covenant theology"), um
sistema teológico em que o conceito de pacto serve como estrutura básica.(5)
Segundo Paul Helm, "de acordo com a teologia pactual, todas as relações de
Deus com o homem são pactuais, de caráter federal."(6) O termo federal vem do
latim foedus, que significa pacto. Isto fez com que o sistema de exposição da
teologia da CFW fosse chamado de teologia federal. Para delimitarmos o assunto
do nosso artigo, em ambas as suas partes, a histórica e a bíblica, nos
concentraremos no primeiro pacto, chamado pela CFW de pacto de obras. Em
outro artigo estudaremos o segundo pacto, o chamado pacto da graça.
Vejamos como se desenvolveu essa leitura. Quatro nomes, entre muitos, são mais
diretamente associados com a teologia federal: Henrique Bullinger (1504-1575),
Zacarias Ursino (1534–1583), Gaspar Oleviano (1536-1587) e João Cocceius
(1603-1669). O primeiro deles publicou sua obra De testamento seu foedere Dei
unico et aeterno (Uma Breve Exposição do Único e Eterno Testamento ou Pacto
de Deus)(10) em 1534, dois anos antes da primeira publicação da obra de
Calvino, as Institutas da Religião Cristã (1536). A exposição de Bullinger gira em
torno do pacto como o "tema de toda a Escritura".(11) Segundo os historiadores
McCoy e Baker, a obra do reformador suíço é o "primeiro trabalho que organiza o
entendimento de Deus, da criação, da humanidade, da história humana e da
sociedade em torno do pacto".(12) Ainda segundo McCoy e Baker, "Bullinger
concluiu seu tratado com uma seção em que argúi que o cristianismo começou
com Adão quando a aliança foi primeiramente feita com os seres humanos."(13)
Portanto, nessa perspectiva, Bullinger trabalha sua teologia em torno de um pacto
de obras, e sua teologia deve ser chamada de pactual. Baseados nessa
observação os autores supra mencionados entendem que Bullinger deve ser
tratado como o "pai" da teologia pactual. Observando, no entanto, a obra de
Bullinger, é difícil de sustentar a afirmação de McCoy e Baker com respeito a um
pacto de obras nesse autor.(14) McCoy e Baker seguem uma linha de
historiadores que nega o pensamento da CFW como sendo um desenvolvimento
da teologia de Calvino. Chegam a afirmar que designar a CFW como calvinista é
um erro histórico, visto que a Teologia Federal tem suas raízes em Bullinger e não
em Calvino.(15) Karlberg, avaliando as conclusões de McCoy e Baker, afirma:
Ele [Calvino] apontava Cristo às pessoas pela mesma razão que Beza não podia
fazê-lo: a questão da "extensão" da expiação. Calvino lhes indicava diretamente a
Cristo, porque Cristo morreu indiscriminadamente por todas as pessoas. Beza não
podia indicar Cristo diretamente às pessoas porque (segundo ele) Cristo não
morrera por todos; Cristo morreu apenas para os eleitos.(22)
Entretanto, tudo converge nisto, que por um lado nos apeguemos a um método
justo para cautelosamente dar forma às nossas interpretações dos autores
sagrados; por outro lado, que corretamente estabeleçamos o uso na dogmática
destas interpretações e dos objetivos próprios da dogmática.(27)
O discurso de Gabler marca uma nova fase nos estudos da teologia, que se volta
para o estudo da Escritura, porém de uma forma crítica. Os séculos XVIII e XIX,
portanto, não foram muito frutíferos quanto ao desenvolvimento da teologia do
pacto de obras. No entanto, ela permaneceu como peça fundamental entre os
reformados até o nosso século. Ultimamente surgiu um novo interesse nos meios
acadêmicos com relação a essa teologia. Na área da sistemática, o teólogo neo-
ortodoxo Karl Barth deu à teologia do pacto um papel importante.(28) Na área da
teologia bíblica foi o teólogo liberal Walter Eichrodt, em seu Old Testament
Theology,(29) quem despertou novas controvérsias quando sugeriu que o tema do
"pacto" servia como um tema central unificador (Mitte) para a teologia do Antigo
Testamento, levantando a reação de outro teólogo do Antigo Testamento, G. Von
Rad. No meio acadêmico reformado também houve um despertamento quanto ao
estudo da teologia do pacto. Na área sistemática, a obra de L. Berkhof baseia todo
Esse tipo de pacto não é algo sem precedentes na história. Ele é ilustrado pelos
pactos do antigo Oriente Próximo entre conquistadores e conquistados, reis e
vassalos. Nesses casos, os conquistados, quando entravam em pacto com os
conquistadores, não tinham o direito de propor qualquer coisa nos termos do
pacto. Este tipo de pacto pressupõe a figura de uma parte "soberana". Um dos
lados tem a vantagem do domínio e se propõe a cumprir um determinado papel; o
outro, tendo também um papel a cumprir, se submete às exigências pactuais. No
pacto divino-humano encontramos a relação criador-criatura, rei soberano-servo.
Vários paralelos entre os pactos bíblicos e os pactos do antigo Oriente Próximo
foram cuidadosamente descritos por Meredith Kline e servem como uma valiosa
ajuda para entendermos os termos e significado do pacto entre Deus e a
humanidade.(36) Um dos exemplos dados por Kline é a narrativa em Gênesis 15
do pacto com Abrão. Nos primeiros versículos o texto narra que Iavé aparece a
Abrão e faz com ele uma aliança. Depois de colocados os termos da aliança, o
texto narra nos versos 13-17 o desfecho:
Sabe, com certeza, que a tua posteridade será peregrina em terra alheia, e será
reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos. Mas também eu
julgarei a gente a que têm de sujeitar-se; e depois sairão com grandes riquezas. E
tu irás para os teus pais em paz; serás sepultado em ditosa velhice. Na quarta
geração, tornarão para aqui; porque não se encheu ainda a medida da iniqüidade
dos amorreus. E sucedeu que, posto o sol, houve densas trevas; e eis um
fogareiro fumegante e uma tocha de fogo que passou entre aqueles pedaços.
Todas as promessas são feitas por Deus a Abrão, do Rei soberano para o
vassalo, do criador para a criatura. O ritual apresentado no versículo 17, em que
Deus passa por entre os pedaços dos animais, é uma característica da forma
como os pactos do antigo Oriente Próximo, entre soberanos e vassalos, eram
selados. Teriam os autores bíblicos "tomado emprestado" o conceito antigo de
pacto e aplicado à teologia? Essa é uma posição defendida por vários estudiosos.
No entanto, como veremos mais adiante, penso que existam razões suficientes
O conceito de pacto, portanto, é um conceito que deve ser entendido dentro dos
vários contextos onde aparece. Várias nuanças do pacto são dadas através dos
verbos que acompanham o substantivo. Portanto, quando se trata do pacto divino-
humano pode-se dizer que o pacto é um vínculo/elo de amor, iniciado e
administrado pelo Deus triúno com a sua criação, representada pelos nossos pais.
Em segundo lugar, ao criar o ser humano (Gn 1.26-28), Deus o criou à sua
"imagem e semelhança". Incluídas nessa imagem e semelhança estão as
habilidades de comunicação e relacionamento (e suas implicações como pensar,
obedecer, discernir, e fazer opções), como o texto bíblico deixa bem claro a partir
do segundo capítulo de Gênesis. Essa imagem e semelhança permite que o
homem criado se relacione com o Criador. Temos, portanto, presente no relato da
criação, a possibilidade do desenvolvimento de relacionamentos.
Outras evidências levantadas para o pacto da criação são os textos de Oséias 6.7;
Jeremias 33.20, 25, e Gênesis 6.18. Sem muitos detalhes exegéticos, exponho
abaixo as razões principais porque se pensa que esses textos falam de um pacto
da criação. Oséias 6.7 fala da transgressão de Adão contra o pacto: "Mas eles
transgrediram a aliança, como Adão; eles se portaram aleivosamente contra mim."
Uma leitura simples e direta do texto reflete que havia um pacto entre Deus e
Adão, portanto, um pacto pré-queda, que pode ser tido como o pacto da criação.
Essa leitura reflete o pressuposto de que os escritores bíblicos tinham
conhecimento de outros escritos bíblicos, anteriores e contemporâneos. Oséias
estaria, portanto, falando do pacto da criação. Para alguns estudiosos, entretanto,
isto não é admissível, considerando vários pressupostos diferentes do exposto
acima. Eles adotam uma leitura diferente do texto, como a Bíblia na Linguagem de
Hoje(39) "Mas na cidade de Adã o meu povo quebrou a aliança que fiz com ele e
ali foi infiel a mim." De fato, existe uma cidade bíblica com esse nome (Js 3.16).
No entanto, para que o texto de Oséias 6.7 seja traduzido como a Bíblia na
Linguagem de Hoje sugere, é necessário que se faça uma emenda do texto
O segundo texto, de Jeremias 33.20-21, faz referência a uma aliança com o dia e
aliança com a noite:
Assim diz o SENHOR: Se puderdes invalidar a minha aliança com o dia e a minha
aliança com a noite, de tal modo que não haja nem dia nem noite a seu tempo,
poder-se-á também invalidar a minha aliança com Davi, meu servo, para que não
tenha filho que reine no seu trono; como também com os levitas sacerdotes, meus
ministros.
Nos versos 25-26 aparece a expressão "a minha aliança com o dia e com a noite."
Comentaristas apontam para duas situações às quais Jeremias pode estar se
referindo nesses versos: à criação ou ao pacto com Noé, onde Deus promete
manter a ordem fixa das estações, dia e noite (Gn 8.22). Robertson explica,
convincentemente, que o texto paralelo de Jeremias 31.35-36 confirma a primeira
opção (criação) como melhor(42)
Assim diz o SENHOR, que dá o sol para a luz do dia e as leis fixas à lua e às
estrelas para a luz da noite, que agita o mar e faz bramir as suas ondas; SENHOR
dos Exércitos é o seu nome. Se falharem estas leis fixas diante de mim, diz o
SENHOR, deixará também a descendência de Israel de ser uma nação diante de
mim para sempre.
Assim, Jeremias estaria, ao falar do pacto com a casa de Israel e com Davi,
refletindo o fundamento do pacto de Deus com a criação. Da mesma forma que o
pacto estabelecido por Deus com a criação, "a aliança com o dia e com a noite,"
não pode ser invalidada, o pacto com Davi tem que ser e será mantido.
Eis que confirmo a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, (10) e
com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais
domésticos e os animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da
terra. (11) Confirmarei minha aliança convosco: não será mais destruída toda
carne por águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra (Gn 9.9-
11).
Dessa forma, Deus estaria confirmando ou continuando uma aliança com Noé,
uma aliança anteriormente estabelecida, esta só podendo ser a aliança ou pacto
da criação.
Conclusão
Sendo a teologia reformada uma teologia de caráter pactual, é importante que
nossos pastores e estudiosos, assim como líderes e leigos, que subscrevem as
confissões reformadas, conheçam bem os fundamentos dessa teologia. Esses
fundamentos bíblicos estão, de forma clara, contidos na CFW, que é uma
exposição sistemática das principais doutrinas bíblicas. Voltando-nos para a
teologia bíblica observamos que essas doutrinas, expostas de forma sistemática,
têm fundamento bíblico e teológico. Ainda que usando uma terminologia diferente,
a teologia sistemática e a teologia bíblica falam das mesmas verdades bíblicas de
uma forma harmoniosa.
Notas
1 G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento (Campinas: Luz
Para o Caminho, 1995) e Família da Aliança (São Paulo: Cultura Cristã, 1997); O.
Palmer Robertson, O Cristo dos Pactos (Campinas: LPC, 1997); W. J. Dumbrell,
Covenant and Creation: A Theology of Old Testament Covenants (Grand Rapids:
Baker, 1984).
2 Mauro F. Meister, Fides Reformata 1:1 (1996), 5-10, e Fides Reformata 2:1
(1997), 29-38.
4 Ibid., 135.
6 Paul Helm, "Calvin and the Covenant: Unity and Continuity," The Evangelical
Quarterly 55 (1983), 65-81, 67. Minha tradução.
11 Ibid., 112.
18 Ver Paul Helm, "Calvin and the Covenant," Evangelical Quarterly 55 (1983), 65-
81, 66.
22 Ibid., 253.
32 Somente no pentateuco em Gn 6.18; 9.9; 9.11; 9.12; 9.13; 9.15; 9.16; 9.17;
14.13; 15.18; 17.2; 17.4; 17.7; 17.9; 17.10; 17.11; 17.13; 17.14; 17.19; 17.21;
21.27; 21.32; 26.28; 31.44; Ex 2.24; 6.4; 6.5; 19.5; 23.32; 24.7; 24.8; 31.16; 34.10;
34.12; 34.15; 34.27; 34.28, Lv 2.13; 24.8; 26.9; 26.15; 26.25; 26.42; 26.44; 26.45;
Nm 10.33; 14.44; 18.19; 25.12; 25.13; Dt 4.13; 4.23; 4.31; 5.2; 5.3; 7.2; 7.9; 7.12;
8.18; 9.9; 9.11; 9.15; 10.8; 17.2; 29.1; 29.9; 29.12; 29.14; 29.21; 29.25; 31.9;
31.16; 31.20; 31.25; 31.26; 33.9 – 76 vezes.
35 Robertson afirma que "em seu aspecto mais essencial, aliança é aquilo que
une pessoas. Nada está mais perto do coração do conceito bíblico de aliança do
que a imagem de um laço inviolável" (Robertson, Cristo dos Pactos, 8). Depois de
relacionar a idéia de aliança com seus sinais e com juramentos, ele afirma: "Essa
estreita relação entre juramento e aliança enfatiza o fato de que a aliança em sua
essência é um pacto" (ibid., 10).
36 Ver Meredith Kline, By Oath Consigned (Grand Rapids: Eerdmans, 1968), 17.
37 Ibid., 21.
44 O verbo qum ({Uq) no hiphil pode ser traduzido como "confirmar." Ver Harris,
Archer e Waltke, Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento (São
Paulo: Vida Nova, 1998), verbete 1999.
Parte II
UMA BREVE INTRODUÇÃO
Ao estudo do pacto
A. Soberania
Meredith Kline indica que as estruturas pactuais encontradas no antigo Oriente
Próximo possuem elementos semelhantes aos citados acima.7 Os pactos feitos
entre nações com o propósito de proteção mútua ou entre suseranos e vassalos
(conquistadores e conquistados) apresentam características que podem ser
encontradas na narrativa do Gênesis.8 A primeira delas é a figura do soberano,
aquele que exerce o domínio sobre todas as coisas. Desde a declaração inicial da
criação, Elohim é claramente aquele que tem o domínio, criando, ordenando,
separando, determinando e estabelecendo a forma como a criação deveria ser e
portar-se diante dele. A forma como o Gênesis relata a criação mostra ao leitor da
narrativa que Deus independe de qualquer causa, conselho ou autoridade externa
para realizar o seu trabalho soberano. O texto simplesmente pressupõe essa
realidade: “No princípio criou Deus os céus e a terra.” O apóstolo Paulo, refletindo
sobre a obra redentora que Deus realiza através de seu Filho, exclama em Rm
11.33-36:
Ó SENHOR ,Senhor nosso, quão magnífico em toda a terra é o teu nome! Pois
expuseste nos céus a tua majestade (Sl 8.1).
Nos céus, estabeleceu o SENHOR o seu trono, e o seu reino domina sobre tudo
(Sl 103.19).
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele
estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e
sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1.1-3).
Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais,
pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro
de todas as coisas, pelo qual também fez o universo. Ele, que é o resplendor da
glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra
do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita
da Majestade, nas alturas... (Hb 1.1-3).
Da mesma forma como criou, na sua soberania e poder, Elohim também sustenta
o que criou. Esse é um fator fundamental do Pacto da Criação. O pacto independe
de quaisquer elementos externos para a sua sustentação, até mesmo do ser
humano com quem Deus se relaciona. Deus estabelece o pacto e o sustenta. No
texto de Hebreus 1.3 a segunda pessoa da Trindade, que é o resplendor da glória
e a expressão exata do Ser de Elohim, é quem sustenta “todas as coisas pela
palavra do seu poder.” Na linguagem da Confissão de Fé essa sustentação é
chamada de providência. Pois na sua providência, Deus, “o grande Criador de
todas as coisas, para o louvor da glória da sua sabedoria, poder, justiça, bondade
e misericórdia, sustenta, dirige, dispõe e governa todas as suas criaturas, todas as
ações e todas as coisas, desde a maior até a menor” (CFW 5.1).
Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea,
com almas racionais e imortais, e dotou-as de inteligência, retidão e perfeita
santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus
corações, e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo
deixados à liberdade da sua própria vontade, que era mutável (CFW 4.2).
Nisso Deus cria um vínculo, elo ou pacto, conforme a definição já dada para o
termo berith: “um vínculo ou elo de amor, iniciado e administrado pelo Deus triúno
com a sua criação, representada pelos nossos pais.” Ainda que Deus não
necessite da companhia humana, ele determina criar e relacionar-se com a sua
criação.
D. Responsabilidade
O quarto elemento fundamental da perspectiva pactual da criação é a
responsabilidade. Ao criar o homem e a mulher à sua imagem e semelhança,
Elohim os faz responsáveis diante das estipulações do pacto. Nossos primeiros
pais, criados para a glória de Deus e a plena felicidade ao cumprir o papel
estabelecido por ele, deveriam relacionar-se com total responsabilidade diante de
seu Criador. Por isso, eles deveriam responder a tudo quanto o criador lhes
colocasse à frente, cumprindo um papel singular: na qualidade de criaturas de
Elohim, deveriam cuidar da criação que ele colocava diante deles e à sua
disposição, e desenvolvê-la. Isso os fazia responsáveis diante do Criador no
exercício de domínio e sujeição, no relacionamento com seus iguais e também no
seu relacionamento com Deus.
E. Bênçãos e maldições
Diante dessa responsabilidade, aparecem como decorrências quase que naturais
as bênçãos e também a maldição pactual. A narrativa histórica de Gênesis 1 nos
mostra que, ao criar o homem (macho e fêmea) à sua imagem e semelhança,
Deus o abençoou. O verso 28 do capítulo 1 narra o fato:
Além dessa [lei] escrita em seus corações, receberam o preceito de não comerem
da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito,
foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas
(CFW 4.2).
Ainda que o texto bíblico seja muito direto em descrever um ato específico de
rebeldia que o homem não deveria praticar, o comer da árvore do conhecimento
do bem e do mal, depreende-se da narrativa que qualquer desobediência poderia
causar uma quebra do relacionamento pactual estabelecido por Elohim. É certo
que a narrativa não descreve nenhuma maldição específica para qualquer outro
ato de desobediência, porém também é certo que a quebra do relacionamento
está implícita, caso isso acontecesse. Isso nos leva à questão da maldição do
pacto. Em Gênesis 2.17 lemos:
... mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia
em que dela comeres, certamente morrerás.
Quando Deus faz uma aliança, ele não só estabelece um relacionamento entre ele
mesmo e aqueles que refletem a sua imagem, mas ele usa esse relacionamento
como um recurso administrativo. Deus leva adiante a sua vontade, o seu plano, o
seu propósito na criação e na redenção. Ele sempre faz isso nesse
relacionamento vivo de amor e, assim, a ligação amor-vida se torna a maneira e o
caminho de Deus administrar tudo o que ele criou e, especialmente, mostra o que
ele pretende fazer com a humanidade e em favor dela.9
O pacto como meio administrativo se afirma principalmente em três áreas, que são
chamadas por Van Groningen de mandados.10 São esses os mandados
espiritual, social e cultural. Cada um deles reflete uma área de relacionamento na
esfera do pacto da criação: a relação Criador-criatura, familiar e indivíduo-
sociedade. Os três mandados refletem a forma que o Criador estabeleceu para
que a sua criação desenvolvesse o seu papel pleno e encontrasse no
cumprimento desse papel a satisfação completa. Obedecendo ao Criador o ser
humano estaria desenvolvendo seu relacionamento com ele e sendo fiel ao pacto.
Nisso o ser humano seria plenamente feliz e satisfeito. Desenvolvendo o seu
relacionamento familiar de forma adequada, o homem, a mulher e a sua semente
estariam obedecendo a Deus e agradando-o, promovendo a sua felicidade mútua
e contribuindo para o desenvolvimento cultural. Nisso seriam plenamente felizes e
satisfeitos. Desenvolvendo o mandado cultural, o indivíduo e a família estariam
obedecendo a Deus, cuidando daquilo que ele lhes havia dado como encargo no
papel de vice-gerentes e promovendo a vida pactual em todos os limites do reino
da criação. Também nisso seriam plenamente felizes e satisfeitos. Como se pode
observar, esses mandados são intimamente relacionados e intrinsecamente
dependentes um do outro, fazendo parte do plano completo e perfeito de Deus
para a sua criação e para o seu relacionamento com ela. Ao viver esses
mandados de forma plena, o homem estaria cumprindo o seu objetivo principal,
respondendo à primeira pergunta do Catecismo Maior: “O fim supremo e principal
do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre.”11
Que textos da narrativa da criação dão origem à formulação dos três mandados e
a substanciam?
O mandado espiritual pode ser formulado com base na ordem direta de Deus em
Gênesis 2.16-17:
Todo o contexto do capítulo dois (2.4-25), uma explicação do ocorrido no sexto dia
do relato da criação, nos ensina que o homem e a mulher foram criados por Deus
para o auxilio mútuo, tendo sido a mulher criada a partir do homem. A narrativa diz
que Adão reconheceu a mulher como tendo sido feita da sua essência (“osso dos
meus ossos e carne da minha carne” – Gn 2.23), e o autor da narrativa comenta
que, por essa razão, deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-
se os dois uma só carne (v. 24).
... tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os
animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela
terra (Gn 1.26).
... enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos
céus e sobre todo animal que rasteja pela terra (Gn 1.28).
Segundo esses três textos, o homem criado por Deus tem em suas mãos as
funções de domínio, sujeição e cultivo. No contexto da criação, isso implicaria em
muito trabalho, nas mais diversas áreas. Ele deveria tomar tempo para cultivar o
solo, exercer o domínio e, conseqüentemente, gozar e desfrutar do trabalho de
suas mãos,12 tudo isso em um ambiente de plena harmonia. Fazendo assim,
também estaria obedecendo ao Criador que o havia criado e equipado para tais
coisas. Portanto, o mandado cultural envolve as áreas do trabalho, política,
ensino, tecnologia, lazer, etc. O ser humano criado à imagem e semelhança de
Deus deveria, em um certo sentido, desenvolver a criação perfeita, representar o
Criador e fazer cumprir a sua soberana vontade. Assim, o seu papel de vice-
gerência seria cumprido sob as estipulações de vida e amor do pacto da criação.
Como lemos no relato de Gênesis 3, o homem, tentado pela serpente, por sua
própria decisão e sendo conhecedor da sua responsabilidade, deliberadamente
desobedeceu ao Criador. Elohim não precisava, diante do contexto pactual,
proclamar qualquer maldição pela desobediência. Ele já havia feito isso. O
homem, portanto, quebrou o pacto de vida e amor estabelecido pelo Senhor. O
pacto quebrado não é anulado. O homem não tinha qualquer condição de anular o
pacto; antes, só podia submeter-se à realidade do mesmo, da bênção ou maldição
que ele traria.
Pelo seu caráter imutável, Elohim, que havia estabelecido o pacto, o mantém.
Portanto, o pacto seria levado adiante e a sua maldição seria aplicada aos que o
A lei de Deus, refletida nas bênçãos e na maldição, seria levada a cabo; porém,
agora, com a presença da graça de Deus. A palavra graça, assim como a palavra
pacto, não aparece em nenhum ponto da narrativa do capítulo 3 de Gênesis.
Como podemos entender a graça no contexto de Gênesis 3? Pela situação e
pelas palavras de Iavé Elohim ao homem, à mulher e à serpente. Passamos a
explicar o conceito.
A nudez aqui não representa somente o aspecto sexual, do qual eles também
passaram a se envergonhar, mas a perda da inocência e transparência que
tinham um para com o outro, como casal. Depois que os olhos de ambos se
abriram, como a serpente havia indicado anteriormente (3.5), passaram a ver sua
nudez como algo a ser usado para o mal. Não só a nudez do corpo, mas toda a
intimidade e conhecimento mútuo passaram a ser elementos a serem usados para
o mal, algo que anteriormente fugia da sua realidade. O que aconteceu, ainda que
verdadeiro nas palavras da serpente — “se vos abrirão os olhos e, como Deus,
sereis conhecedores do bem e do mal” — não trouxe o resultado prometido pela
serpente. Serem conhecedores do bem e do mal não trouxe qualquer vantagem
ao ser humano. Quando o mandado espiritual foi quebrado, o mandado social foi
imediatamente prejudicado. O homem e a mulher estavam plenamente
conscientes de que haviam quebrado o mandado espiritual e, quando perceberam
a presença de Iavé Elohim no jardim, também por causa de sua nudez, dele se
esconderam (v. 10):
...Ouvi a tua voz no jardim, e, porque estava nu, tive medo, e me escondi.
Porém, a graça de Iavé Elohim se manifesta quando este pergunta: “Onde estás?”
O Deus soberano, criador, age para encontrar-se com a criatura pecadora. Deus
não precisava sequer “voltar” ao jardim. Ele poderia deixar que a história humana
se consumasse por si só, como história de morte total. Para entender esse
raciocino, devemos ter em mente que bênção e maldição são elementos opostos.
O contrário da bênção é a maldição, e a maldição implica na supressão da
Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície
de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será
para mantimento ... (1.29). De toda árvore do jardim comerás livremente (2.16).
(a) Haveria inimizade entre a mulher e seus descendentes e a serpente. Isso fez
parte da provisão de Deus para que o pacto pudesse ter continuidade.
Tradicionalmente esse texto tem sido chamado de proto-evangelho. Apesar da
desobediência, Iavé Elohim não desistiu de relacionar-se com a sua criação;
(b) A bênção do pacto não seria totalmente suprimida. Ainda que a morte fosse
certa, Deus apresenta um elemento de continuidade. A mulher teria descendência,
a fecundidade ainda seria uma realidade para o ser humano criado à imagem e
semelhança de Deus.
E a Adão disse: Visto que atendeste a voz de tua mulher e comeste da árvore que
eu te ordenara não comesses, maldita é a terra por tua causa; em fadigas obterás
dela o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá também cardos e
abrolhos, e tu comerás a erva do campo. No suor do rosto comerás o teu pão, até
que tornes à terra, pois dela foste formado; porque tu és pó e ao pó tornarás (Gn
3.17-19).
Ao falar com o homem, Deus amaldiçoa a terra que havia colocado sob sua
responsabilidade. Esta produziria cardos e abrolhos, símbolos da dificuldade que o
homem teria para tirar dela o sustento, um contraste com tudo que fora criado bom
no contexto da criação. A maldição é pronunciada sobre a terra como
conseqüência da desobediência (“maldita é a terra por tua causa”). Mais uma vez,
nenhuma maldição direta é dirigida ao homem. A morte é confirmada como
conseqüência da desobediência. No entanto, essa maldição sobre a terra, como
no caso da serpente, traz uma mensagem de esperança. Ela confirma a bênção
do pacto da criação: a vida humana teria continuidade, o sustento ainda seria
possível, o mandado cultural ainda poderia ser cumprido e, conseqüentemente, o
mandado social, pelo menos até que o homem tornasse ao pó.
Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a Caim;
então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do SENHOR (4.1).
Tornou Adão a coabitar com sua mulher; e ela deu à luz um filho, a quem pôs o
nome de Sete; porque, disse ela, Deus me concedeu outro descendente em lugar
de Abel, que Caim matou (4.25).
Conclusão
No primeiro artigo sobre esse tema concluímos que existe base suficiente nas
Escrituras para se falar de um Pacto da Criação, um pacto soberano, de amor e
vida, estabelecido por Deus com a sua criação.
Mauro Meister, “Uma Breve Introdução ao Estudo do Pacto,” Fides Reformata 3/1
(Jan-Jun 1998), 110-123.
Ibid., 119.
Mais recentemente, temos G. Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho
Testamento (Campinas: Luz Para o Caminho, 1995) e Família da Aliança (São
Paulo: Cultura Cristã, 1997); O. Palmer Robertson, O Cristo dos Pactos
(Campinas: LPC, 1997); W. J. Dumbrell, Covenant and Creation: A Theology of
Old Testament Covenants (Grand Rapids: Baker, 1984), já citados no artigo
anterior, e também Willem Van Gemeren, The Progress of Redemption (Grand
Rapids: Zondervan, 1988).
A Confissão de Fé, o Catecismo Maior, o Breve Catecismo, 1ª ed. especial (São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1991).
Louis Berkhof, Systematic Theology (Londres: Banner of Truth, 1958), 262-271
elabora a distinção entre o Pacto da Redenção e o Pacto da Graça, sendo o
primeiro o pacto eterno, trinitário, e o segundo, o pacto entre Deus e os eleitos.
Meister, “Uma Breve Introdução,” 120.
Meredith Kline, Kingdom Prologue (Toronto: ICS, 1983).
Um exemplo interessante encontra-se em J. Briend, R. Lebrun e E. Puech,
Tratados e Juramentos no Antigo Oriente Próximo (São Paulo: Paulus, 1998),
especificamente no capítulo V, “Tratado Egipto-Hitita entre Ramsés II e Hattusili
III,” 57-69. Não só esse, mas muitos outros paralelos servem como ilustrações da
forma que o homem adotou para estabelecer os limites de seus relacionamentos.
Muitos estudiosos insistem em que as Escrituras simplesmente copiaram esse
formato. Creio, no entanto, que essa forma de relacionamento nasce do fato de
que o ser humano, desde o princípio, aprendeu a relacionar-se pactualmente com
o Criador, e continuou a fazê-lo mesmo depois da queda.