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Capitulo 11 DA “INVASAO” DA AMERICA AOS SISTEMAS PENAIS DE HOJE: O DISCURSO DA “INFERIORIDADE” LATINO-AMERICANA JOSE CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO SUMARIO: 1, Introdugio, 2, O curocentrismo da visio moderna. 3 0 raundo de Colombo: © conqustador europeu e 0 genocidio colonial. 4. O debate de Valladolid: Bartolomé de Las Casas e a questo da igualdade dos indios. 5. A cultura amerindia © 0 fim do “guinto sol", 6, A cultura sineréica da petifeia: 0s vtios “rostos” latino-ameicanos. 7. Os enocidios colonia ¢ as pritcasexterminadoras dos sistemas penais 8 Conclusio, 9. Referencias bibliogrificas 1. INTRODUCAO A idéia central deste texto surgiu de algumas reflexées feitas por Eugenio Rati Zaffaroni, em seu livro Em busca das penas perdidas, acerca do sistema penal na América Latina. E certo que as matrizes tedricas utilizadas pelos nossos juristas ¢ operadores do sistema penal provém do pensamento primeiro-mundista, inclusive 0 micleo dos apontamentos criticos para a superagao de discursos obsoletos nesta drea. Mas também é certo que 86 aqui, no mundo periférico, estes saberes adquiriram um_ srdter extremamente peculiar cruel, implicando uma pritica de exterminio em massa e de segregacdo social em escalas sem precedentes. Na verdade, como assinalou o jurista argentino, o sistema tedrico latino- americano na érea penal é de um sincretismo assombroso, que, no fundo, esconde um discurso extremamente racista, de natureza psicobiolégica e de exclusto, ou, como ditia o filésofo argentino Enrique Dussel, de “ocultamento do outro”. Para um melhor entendimento dessa situago faz-se necessirio ter conhecimento do proceso histérico-social que nos conduziu o presente momento, Nao se esti aqui abordando a histéria como uma idéia de progresso; muito pelo contrério, o que se intenta é repisar © argumento de que muitos aspectos sombrios da modemidade © camuflados da " Professor e Coordenador de Pesquisa do Centro de Ciéncias Juridicas da UNISINOS (RS). Mestre em Teoria © Filosofia do Direito pela UFSC. Doutor em Direito na UFPR. Autor dos livros: Filosofia Juridica da Aleridade. Curitiba: Jurud, 1998 e Hermendutica Filosdfica e Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003 histéria fazem, na verdade, parte de uma ideologia que se iré chamar de eurocentrismo. Com. esse temo, configura-se toda a visio histérica que parte de uma perspectiva unilateral daqueles povos que em 1492 marearam a cruz e a espada o que vitia a ser designado de América Latina Na verdade, no niicleo da idéia de progresso existe o encobrimento de muitos sujeitos da “comunidade de comunicagio ideal” (Karl O. Apel), seja pela falicia desenvolvimentista, seja na ideologia racista que, de forma avassaladora, perpassa 0s nossos sistemas punitivos, Para compreender, portanto, ndo s6 a situagio dos sistemas penais latino americanos e de suas pr icas genocidas, mas também a propria situagdo periférica ou “marginal”, como diria Zaffaroni, & imprescindivel retomar ao marco de 1492 para captar corretamente o que se passou nestes 500 anos. Desde essa época fundou-se um saber antropolégico aplicado 4 periferia, Esse saber primeiramente adotou uma roupagem teolégica, ora classificando os indios de criaturas “puras” e “infantis”, ora concebendo-os como birbaros, pagios ¢ adoradores do deménio. Aquela época, que precedia o auge do mercantilismo, ja demonstrava sinais de decadéncia da propria visio teolégica de mundo ¢ trazia as sementes do que veio a ser chamado de era ‘moderna, Assim, logo depois, o saber antropolégico de inspiragao religiosa deu lugar & matriz, cientificista naturalista. E, a partir dai, 0 indio e depois os negros, mestigos € latino- americanos foram atingidos pelo rétulo de seres “naturalmente inferiores”. De maneira geral, no periodo da conquista, 0 indio era visto como um ser passivo, incapaz de se tomar sujeito de sua propria histéria, Esta imagem permanece até os dias de hoje ¢ estende-se ao latino- americano em geral, Na verdade, a realidade dos fatos contradiz esse entendimento, recuperando a “histéria invisivel” da conquista, 0 processo de resisténcia militar e, principalmente, cultural dos povos amerindios. © que se observa de forma emblematica no sistema penal latino-americano & 0 “mito sacrificat” de que fala Dussel, ou seja, a negagdo da “outra face da modemnidade”. Para que se possa, numa perspectiva dusseliana de transmodemnidade, superar a visdo eurocentrista, extirpar a nota genocida de nossos sistemas penais, é imprescindivel @ desmistificagio de faldcias desenvolvimentistas e de visdes historicas que transformaram a “invasdo” da América em sua “descoberta” 2, 0 EUROCENTRISMO DA VISAO MODERNA Adotando a visto de Enrique Dussel, pode-se dizer que © eurocentrismo & basicamente, uma visio histérica do mundo que transforma o “ser” do “outro” em um “ser” de “si-mesmo”, Nessa visio, a0 se fazer a apologia da modernidade, entende-se que todos os “avangos” que ela representa constituem o resultado de um desenvolvimento natural do proprio “ser europeu”, sem levar em consideragao a existéncia da América ou da Africa - a Asia € reconhecida como 0 comego da histéria, mas permanece em um estado infantil e ptimitivo.’ Incorre-se, portanto, na falcia desenvolvimentista. Trata-se de uma posiga ontolégica pela qual se pensa que o desenvolvimento empreendido pela Europa deverd ser unilinearmente seguido, E uma categoria filoséfica fundamental ¢ nio sé sociolégica ou econémica. “Eo movimento necessdrio do Ser, para Hegel, seu desenvolvimento inevitavel.”* Acaba-se por absorver uma definigao mundial do que seja a modemidade e de como se chegar até um estado de pleno funcionamento de seus principios e idéias “Modemizagio (ontologicamente) & exatamente o processo imitativo de constituigao, como a passagem da poténcia ao ato (um desenvolvimentismo ontol6gico), dos mundos coloniais com respeito ao ser da Europa (...)."* Assim, a Europa crist’ modema tem um prinefpio em si mesma, é sua plena realizagdo, E mais, somente a parte ocidental norte da Europa ¢ considerada por Regel como 0 niicleo da histéria: “A Alemanha, Franga, Dinamarca, os pa‘ s escandinavos s#o 0 coragdo da Europa”.® Logo, Espanha ¢ Portugal, e consegiientemente a América Latina e sua “descoberta”, ndo possuem a menor importincia na constituigao da modemidade; isto, observa Dussel, é verificdvel tanto em Hegel quanto, contemporaneamente, em Rubermas, No entanto, constata o filésofo argentino, sociedade civil contraditéria & superada pelo Estado, em Regel, gragas 4 constituigdo de colénias que absorvem tal Enrique Dussel nos traz a seguinte citagio de Hegel: “O mundo se divide em Velho Mundo e Novo Mundo, O nome Nove Mundo provém do lato de que a América (.) nlo fol conbecida até ha pouco pelos europeus. Mas rio se acredite que a distingdo & puramente externa, Agui a divisio é essencial, Este mundo & novo nfo s6 relativamente mas também absolutamente; 0 & com respeite @ todos os seus caracteres prdpris, fisicos politicos, © mar de ilhas, que se estende entre a América do Sul ¢ & Asia revela certa imaturidade no tocante fambém a sua origem (..). A Nova Holanda também ndo deixa de apresentar caracteristicas de juventude ‘geogrifica pois se, partindo das possessBes inglesas, penetramos em seu teritéro, descobrimos enormes rios que ainda nio abriram seu leto (..). Da América e de seu grau de civilizagdo, especialmente no México e Peru, temos informagaes a respeito de seu desenvolvimento, mas como wma cultura inteiramente particular, que expira ‘no momento em que o Espirito se aproxima dela (.). A inferioridade destes individuos €, em tudo, inteiramente cvidente" (DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modernidade), Conferéncias de Frankfurt. Trad. Jaime. A. Clasea. Petropolis: Vozes, 1993, p. 18-19). *DUSSEL, Enrique. Op. cit, p. 24 “ DUSSEL, Enrique. Op. cit, p. 40. * DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro, p. 21 contradigdo. “A periferia da Europa serve assim de espago livre para que os pobres, fruto do capitalismo, possam se tomar proprictarios nas colénias.”* De resto, Zaffaroni partilha da mesma percepgdo de Dussel com relagdo a Hegel: ‘A inferioridade de nossa regio marginal foi sintetizada com elareza por Hegel na versio germinica do etnocentrismo colonialste quando, na sua interpretagio da histéria, deixou de lado, & medida que ascendia © Geist, todas as culturas ‘convergentes em nossa regio marginal.” Enrique Dussel chama a atengao para 0 fato de que, ao contrario do entendimento de Regel ou Rabermas, tanto a América Latina quanto a Espanha tiveram um papel fundamental na formagdo da era moderna. A descoberta de um “Novo Mundo” possibilitou que a Europa, ou melhor, o seu “ego”, saisse da imaturidade subjetiva da periferia do mundo mugulmano ¢ se desenvolvesse até tomar-se 0 centro da histéria e 0 senhior do mundo, estado que simbolicamente foi atingido com a figura de Reman Cortez no México. Até o final do século XV, a Europa foi sendo paulatinamente isolada pelos mugulmanos, isto é, as rotas comerciais terrestres que levavam até as Indias, centro de compra e venda de especiarias - especialmente a pimenta em gros -, estavam bloqueadas. Constantinopla, antigo centro comercial europeu e importantissimo ponto estratégico (por estar dividido pelo Mediterraneo, tendo de um lado a Europa ¢ de outro a Asia), havia sido tomada por Mehemet II em 1453 ¢ seu nome passou a ser Istambul. As cruzadas, iltima tentativa de recuperar o dominio sobre o “caminho da seda”, fracassaram, Restava descobrir uma rota maritima que contornasse a Africa ¢ atingisse as Indias. Este foi o esforgo basico de Portugal, levado adiante, principalmente, por Henrique de Sagres e seus navegadores. Assim, a nagdo inventora da caravela, pouco a pouco, roi fincando os seus padrdes pela costa africana lade, dobrou o cabo da até que Bartolomeu Dias, em 16 de agosto de 1488, em plena tempe Boa Fsperanga e, finalmente, concretizou o sonho de Renrique, o navegador. No entanto, foi sé a partir da experiéncia de Cristévo Colombo que, efetivamente, a Europa apoderou-se de uma nova universalidade, tomou-se 0 centro do mundo e passou a impor o seu “ser” a0 ‘outro’ A grande critica que Dussel faz com relagdo & concepgdo da Modernidade nao std em negar aquilo que ele chama de “niicleo libertério” ou “razio emancipatéria”, mas em desmascarar a existéncia de uma outra face desse processo de modemizagao, relacionada com * DUSSEL, Enrigue. Op. cit, p.23 ZAFFARONI, Bugenio Rail. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad. \Vinia Romano Pedrosa e Amit Lopes da Conceigio. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 168, © exercicio em larga escala de uma violéncia irracional nas colénias, no apenas fisica, mas cultural, que simplesmente nega a identidade do “outro”, seja através de uma postura assimilacionista, seja através da simples exclusdo ¢ eliminagao, Tudo isto esta simbolizado no “mito sactifical”, isto é, toda a violéncia derramada na América Latina era, na verdade, um “beneficio” ou, antes, um “sacrificio necessério”. E diante disso, os indios, negros ou mestigos eram duplamente culpados por “serem inferiores” e por recusarem o “modo civilizado de vida” ou a “salvagdo”, enquanto os europeus eram “inocentes”, pois tudo que fizeram foi visando atingir o melhor. Com relagao as concepgdes tidas como pés-modernas, Dussel nega a sua proposta de inracionalidade fragmentiria, embora acate @ critica & razio dominadora. Com relagdo 20 racionalismo universalista, absorve 0 seu niicleo racional emancipador, mas nega o seu “momento itracional do mito sacrifical”. A proposta do filésofo ¢ identificada com a busca da transmodernidade, condigao em que a razo do “outro” & afirmada e este pode efetivamente fazer parte de uma “situago de fala ideal” ou de uma “comunidade de comunicagio ideal”, 5. © MUNDO DE COLOMBO: 0 CONQUISTADOR EUROPEU E 0 GENOCIDIO COLONIAL A experigncia de Colombo foi tinica até entdo, pois as navegagdes ao longo da costa africana eram como ir descobrindo, na verdade, aquilo que jé se sabia, A aventura de 1492 nao foi provavelmente a tinica experiéncia de contato com 0 “Novo Mundo”, Existem. relatos acerca das aventuras do viking Erik, © vermelho que, por volta do ano 987, teria acompanhado a costa do Labrador hibemado na Terra Nova, dando-the 0 nome de Vinldndia, em fungao de ld ter encontrado videiras selvagens na primavera. Tal havia ocorrido em virtude das continuas expedigdes vikings & ilha de Groenlndia. Porém, com a expansio dos gelos polares, a ilha acabou ficando inabitavel. Assim, as viagens para o oeste tomaram-se raras, O Atlantico foi esquecido. Com a viagem de Colombo, iniciou-se, em proporgdes jamais aleangadas, 0 contato entre dois mundos completamente diferentes. Ocorre que, desde o inicio, a civilizago “descoberta” e toda a sua cultura foram desprezadas, o que deu lugar a varias figuras, que foram desenvolvidas por Duss 1: a invengo, a descoberta, a conquista ¢ a colonizagao. AA figura da “invengdo” diz respeito, principalmente, ao personagem de Cristovao Colombo. A importincia de analisar a atitude do grande navegador esté, dentre outras razies, no fato de que ela foi extremamente ilustrativa, principalmente com relago aos indios, da postura européia em face da América. Para o navegador genovés, segundo Tzvetan Todorov, a empresa de expansdo da fé cristd era o seu interesse principal. Assim, el via a obtengdo de possiveis riquezas mediante as navegagdes como uma condigio necesséria para financiar novas cruzadas’ e, além disso, vislumbrava também a oportunidade de instruir 0 Grande Ca (imperador da China) no eristianismo, que, segundo relato de Marco Plo, era 0 desejo do proprio lendério governante chinés. Certamente © maior e mais importante exemplo do método de interpretagdo de do ser-asidtico do Novo Mundo”. Colombo Colombo é o que Dussel chama de “a invenga ‘morreu em 1505 plenamente convicto de que havia, na verdade, chegado ao continente asitico. E por isso que os habitantes originais da América so até hoje chamados de indios, Na hennenéutica de Colombo, tudo 0 que ele via na terra - -ithas, plantas, animais e indios - era uma constatagao de algo ja conhecido: a Asia, que, embora nao houvesse sido explorada pelos europeus, j& havia sido objeto do conhecimento ¢ dos estudos de Marco Polo, Pierre D” Ailly ¢ dos franciscanos, O “outro” nio foi descoberto como “outro”, mas como “si-mesmo”. Colombo apresentou dois tipos de reagdes, que acabaram se complementando, perante os indigenas. Ora os considerou como “iguais”, isto & no plano divino também filhos do rebanho de Deus, sugerindo uma postura assimilacionista; ora os tomou como inferiores, ‘momento em que a sua vontade Thes foi imposta pelo simples uso da autoridade da violencia. Essa s -gunda posigo firmou-se na relago com os indios no plano humano. Se eles nao quisessem dar as suas riquezas ou se “converterem’, o que serviria para “engrandecer a obra divina”, seria licito © necessirio forgé-los a isso. Com tal raciocinio ficou justificada a aplicagao da escravidao aos indios, 0 posterior sistema de encomiendas, em que um grupo de indios era “encomendado” ao colono, podendo trabalhar gratuitamente em suas minas e campos. Na verdade, qualquer uma das duas posturas acima citadas estiio baseadas no desconhecimento dos indios como sujeitos, como “outro”. Pretendeu-se impdr ao indio um “outro ser”, ou simplesmente desconsideré-lo. A propagagdo da fé © a escravizagdo: duas faces da mesma moeda * Tavetan Todorov nos tra7 um trecho do didrio de Colombo bastante ilustativo deste intento: “No dia 26 de dezembro de 1492, durante a primeira viggem, ele (Colombo) revela em seu didrio que espera encontrar Ouro, € ‘em quantidade suficiente para que os Reis possam, em menos de tr8s anos, preparar © empreender a conquista da Terra Santa, Foi assim que manifestei a Vossas Altezas o desejo de ver os beneficios de mina atual empresa consagrados & conguista de Jerusalém, o que fez Vossas Altezas sorrirem, dizendo que ist Ihes agradava, © que ‘mesmo sem este beneficio este era 0 seu dessjo" (TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questio do ‘outro, 3 ed, Séo Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 11) Porém, a viagem de Colombo ndo foi suficiente para completar a primeira nogdo de Modemidade, Foi necessdrio que Américo Vesplicio, apés suas viagens, houvesse “descoberto” um “Novo Mundo”, Este mundo novo era a América do Sul. Se a segunda figura enunciada por Dussel foi a “descoberta” da América enquanto “descoberta” do “outro” (Portugal tomou a dianteira neste processo), a proposi¢ao nuclear imediata passou a ser representada pela “conquista”, © primeiro “conquistador” foi Hendin Cortez, ¢ sua atuagdo perante os astecas suficientemente demonstrativa de uma época que marcou a emergéncia do “homem modemo, ativo, pritico, que impée sua individualidade violenta a outras pessoas, a0 Outro”. Cabe aqui fazer uma diferenciagdo entre a ocupagao dos territérios povoados por comunidades indigenas urbanas e por comunidades de cunho eminentemente agrario e extrativista: nestas, situadas na regio do Caribe, de Santo Domingo a Cuba, ¢ também no Brasil, houve muito mais matanga © ocupagdo desordenada do que um dominio sistemético. Cortez, a0 contrario de seus predecessores, preocupou-se em compreender os indios, mesmo que fosse sé para domind-los. Nao visou apenas as riquezas imediatamente palpaveis, Possu‘a uma conseiéncia politica ¢ histérica de seus atos. Sua expedigo, que data de 1519, comegou em busca de informagdo e nao de ouro, Buscando um intérprete, surgi a folelérica personagem “La Malinche”, india asteca que, ao adotar os valores espanhéis, conseguiu traduzir os de sua sociedade para Cortez ¢, além disso, tomou-se sua amante. Obviamente a “Malinche” transformou-se em figura simbélica do “entreguismo” ao poder central. Gragas 4 gama de informagdes adquiridas pelo conquistador espanhol, foi-the possivel aproveitar-se tanto das dissidéncias internas, valendo-se disso para conseguir aliados, como da religiosidade asteca. E sabida e citada em muitos estudos sobre o tema a identificag3o de Cortez com a entidade divina de Quetzaledatl. © comandante espanhol teve uma preocupagio constante com a interpretagaio que os indios fariam de seus gestos. Assim, num primeiro momento, proibiu scus soldados de roubarem desmensuradamente, sem autorizagao, pois isto poderia gerar um entendimento indesejado por parte dos indios. Cortez queria que o vissem como benevolente, Contudo, o exemplo mais ilustrativo de sua preocupag’o com as aparéncias foi o “show de sons ¢ luzes” do qual se utilizou para confundir os astecas, disfargando atos humanos em atos sobrenaturais. * TODOROV, Tavetan. Op. cit, p. 4B. © procedimento de Cortez traz Maquiavel. Todorov relembra a famosa frase do florentino: “Nao é preciso que um principe tenha todas as qualidades supracitadas, mas & preciso que parega t8-las”.'° Observa-se, aqui, para utilizar Weber, uma clara passagem da ética da conviegdo para a ética da responsabilidade. De modo geral, no mundo de Maquiavel e de Cortez, 0 discurso nfo & determinado pelo objeto que desereve, nem pela conformidade a uma tradiedo, mas & eonstruido lunicamente em funglo do objetivo que se procura ating." Seguindo o raciocinio de Todorov, formula-se uma pergunta bisica: por que @ compreensio superior dos espanhdis diante dos astecas ndo os impediu, até os ajudou, a destruir a civilizagio asteca? Pode ja pensar que os espanhéis consideraram os indios € sua cultura como indignos de viver. Tal nao ocorreu, muito pelo contrétio: depreende-se dos escritos deixados por aqueles espanhéis que eles admiravam em muitos aspectos tal civilizagdo, O conquistador apontava os modos refinados dos astecas: “Cortez fica em éxtase diante das produgdes astecas, mas no reconhece seus autores como individualidades humanas equiparaveis a ele." A admiragio que dai decorreu, ao invés de diminuir a distincia, aumentou-a, Curioso observar que a arte indigena no exerceu nenhuma influéncia sobre a arte européia do século XVI. Os espanhéis falaram até bem dos indios, mas no falaram aos indios, nao reconhecendo, portanto, a sua condig’o de sujeitos, a sua alteridade. Assim, “se a ‘compreensio nao for acompanhada de um reconhecimento pleno do outro como sujeito, enti essa compreensdo corre o risco de ser utilizada com vistas a exploragdo, ao tomar, 0 saber seri subordinado ao poder”."* Poder-se-ia dizer que a perspectiva de transmodernidade proposta por Dussel, cm que a periferia seria reconhecida em sua especificidade © nao encoberta” como “outro”, deveria corresponder a uma situago de igualdade de “pode comunicativas”” ou igualdade de “condigd Questiona ainda Todorov: mas por que tomar leva a destruit? No México, as vésperas da conquista, a populagdo era de aproximadamente 25 milhdes; em 1600, de apenas um milhdo. “Nenhum dos grandes massacres do século XX pode comparar-se a esta hecatombe.”"* Tal resultado foi obtido principalmente mediante trés estratégias de agao. "TODOROV, Tavetan A conguista da América: a questo do outro 3, ed, io Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 113. "TODOROV, Tevetan. Op. cit, p. 113, "TODOROV, Tavetan. Op. cit. p. 125, "TODOROV, Tevelan. Op. cit p. 128, “TODOROV, Tzvetan. Op. cit, p. direto mediante guerras e mass: © primeiro tipo de ado dos espanhdis direcionado a destruigdo foi 0 assassinato E o que se pode captar da narrago de Las Casas: Faziam apostas sobre quem, de um s6 golpe de espads, fenderia abriria um homem pela metade, ou quem, mais habilmente © mais destramente, de um s6 golpe The cortaria a cabega, ou anda sobre quem abriria melhor as entranhas de um homem de tum $6 golpe. Arrancavam os filhos dos seios da mae e Ihes esfregavam a cabesa ‘contra os rochedos enquanto que outros os langavam & gua dos cérregos rindo ‘eagoando, ¢ quando estavam na gua gritavam: move-te, corpo de tal?! Outros, mais funiosos, passavam mes efilhos a fio de espada"™ Outro relato de Las Casas diz respeito ao massacre de Caonao, em Cuba, realizado pela tropa de Panfilo Narvaez, da qual era capelao: afiamento: Chegando E preciso saber que os espanbéis, no dia em que ali chegaram, pararam de manba, para o desjejum, no leito seco de um riacho que, entretanto, ainda conservava algumas pocinhas d' gua, e que estava repleto de pedras de amolar:o que thes deu 2 idgia de afar as expadas & aldeia asteca, os espanhéis resolveram verificar a qualidade do Um espanhol, subitamente, desembainhe a espada (que parecia ter sido tomada pelo diabo}, ¢ imediatamente os outros cem fazem 0 mesmo, ¢ comegam a esteipa, rasgar fe massacrar aguelas ovelhas e aqueles cordeiros, homens e mulheres, eriangas © velhos, que estavam sentados, tanquilamente, olhendo espantados para 0s cavalos e para o§ espanhdis. Num segundo, no restam sobreviventes de todos os que ali se ‘encontravam. Entrando entdo na casa grande, que ficava ao lado, pois isso aconteci diante da porta, os espanhéis comegaram do mesmo jeito a matar a torto ¢ a direito todos os qlle ali se encontcavam, tanto que o sangue cortia de toda parte, como se tivessem matado um rebanlno de vacas."* Uma segunda estratégia de exterminio foi a escravidio. Assim, além da matanga direta, os indios tombaram também, ¢ em muito maior niimero, sob a escravidao a que foram submetidos: ‘As mulheres ficavam nas granjas executando trabalhos bastante penosos, fazendo rmontes de terra para fabricar o plo que se come; trabalho esse que consiste em revolver, levantar e amontoar a terre até quatro palmos de altura e doze pés de ‘quadrado; parece nada, mas é um trabalho de gigante revolver a tera dura, nlo com picaretas, nem com enxadss, mas com paus (..). De maneira que marido e mulher nio se viam pelo espayo de oito meses ou der ou de um ano, E quando ao cabo desse tempo vinham eneontrar-se estavam tio extenuados e tio fracos de fome e de 'S LAS CASAS, Bartolomé de. Brevissima relagdo da destruigdo das indias: 0 paraiso destruido: a sangrenta histria da eonguista da América espanhola, Trad. Reraldo Barbuy. 5. ed, Porto Alegre: L&PM, 1991, p. 32. "TODOROV, Tavetan. Op. cit, p. 136-137. trabalhos, que ndo tinham desejo de coabitar: ¢ com isto a gerago cessava entre cles. Fas criangas engendradas morriam porque as mies nfo tinhar lite para nutri las, em virtude dos trabalhos ¢ da fome que padeciam (..). 0 trabalio que thes atiram sobre os ombros é extra ouro; trabalho esse para o qual seriam necessérios homens de ferro; pois & preciso perfurar as montanhas de baixo para cima mil vezes, revolvendo e furando of rochedos, lavando ¢ limpando © ouro nos riachos, onde ficam constantemente na gua, de todas as maneiras eonsumindo e alquebrando 0 corpo. E quando as préprias minas comegaram a fazer gua, ento, além de todos os ‘outros trabalhos, ¢ previsotrar toda essa dgua a brago, Por fim, a terceira modalidade de ago, menos consciente, obviamente, era a transmissiio de doengas, que exterminou uma quantidade incomensurével de indios. Os espanhdis ndo possuiam a consciéneia da possibilidade de uma guerra bacteriolégica, mas examinando suas ages nio fica dificil imaginar que, caso tal conscigncia houvesse, ela seria certamente usada, Um dos motivos dessa atitude por parte dos espanhéis, & claro, foi o desejo de jo nada tem de novo, ex cenriquecer. Tal dé t0 0 fato de que todos os outros valores a el subordinam, como observa Todorov: “Essa homogeneizagio dos valores pelo dinheiro é um fato novo, e anuncia a mentalidade moderna, igualitarista e economicista.”'* Contudo, ‘Todorov nio divisa apenas tal motivo para a atitude espanhola: “E tudo como se os espanhéis encontrassesm um prazer intrinseco na erueldade, no fato de exercer poder sobre os outros, na demonstragdo de sua capacidade de dar a morte.”"* Segundo 0 autor de A Conquista da América: a questio do outro, na verdade, ha que se falar em sociedades de sacrificio € sociedades de massacre. No caso dos astecas, 0 sacrificio roi um assassinato religioso, feito em nome da ideologia oficial, & vista e conhecimento de todos, o que evidenciou a forga do lago social sobre o individuo. 0 massacre, no entanto, foi justamente a explicitagdo da fragilidade dos lagos sociais; o desuso de leis morais. Representou uma atitude tomada em um lugar distante de leis, de regras, enfim, da estrutura social representada pela metrépole, A coldnia tomou-se o lugar do “tudo é permitido”. ‘Quanto mais longinguos ¢ estrangeiros. forem os massacrados, melhor: sto cexlerminados sem remorsos, mais ou menos assimilados aos animais. A identidade individual do massacrado é, por definigfo, nfo pertinente (se nfo, seria um sssassinato): ilo hd nem tempo nem curiosidade de saber quem se esté matando "LAS CASAS, Bartolomé de. Op. cit, p. 134 € 136, "TODOROV, Tzvetan. Op. cit, p. 138, " TODOROV, Tevelan. Op. cit p. 139, ® TODOROY, Tzvetan. Op, cit, p. 140. Se 0 assassinato religioso foi um sactificio, o massacre foi um assassinato ateu, inventado ou reinventado pelos espanhdis. As fogueiras da inqui 10 parecem-s os sactificios. Certamente, os massactes so uma marca registrada da modemidade: “A barbérie dos espanhéis nada tem de atdvico, ou de animal, é bem humana e anuncia a chegada dos tempos modemos.”?! Por fim, a quarta figura listada por Dussel ¢ a da “colonizagao”. Simboliza comeco da domesticagio. © entender 0 outro como si-mesmo jé nfo é pura ¢ simplesmente uma pritica guerreira, mas sim uma “praxis erética, pedagégica, cultural, politica, econdmica, quer dizer, do dominio dos corpos pelo machismo sexual, da cultura, de tipos de trabalhos, de instituigdes criadas por uma nova burocracia politica”? Assim, “o mundo da vida cotidiana (Lebenswelt) conquistadora-curopéia colonizari 0 mundo da vida do indio, da india, da América”? Do conquistador depreende-se um “ego filico”.2* Colonizou-se a sexualidade indigena, Estipulou-se a dupla moral machista: dominagio sexual da india e respeito puramente aparente pela mulher européia. Dai nasceu o bastardo - mestigo, latino-americano, filo do conquistador com a india - ¢ 0 crioulo - o branco nascido no mundo colonial. A colonizagéo do corpo da mulher indigena também faz parte de uma cultura da dominagio do corpo do homem indio, que foi explorado principalmente no trabalho (mao-de-obra gratuita ou barata), ao que se juntou, nessa mesma situagHo, a figura do negro africano, De maneira a dominar totalmente o indio, falava-se de amor cristo em meio & violéncia irracional. Surgiu um desdobramento da quarta figura de Dussel, por cle considerada, em fungio de sua importéncia ¢ singularidade, uma outra figura: a “conquista spiritual”. Depois de descoberto o espago (como geografia) e conguistados os corpos, disia Foucault (como geopolitica), era necessério agora controlar 0 imaginério a partir de uma nova compreensio religioss do mundo da vida. Desse modo, 9 ciculo podia se fechar ¢ 0 indio ficar completamente incorporado ao nevo sistema estabelecido: Modernidade mercantil-capitalista nascente ~ sendo todavia sua outra face, a face cexplorada, dominada, encobera,”* 2. TODOROV, Tavetan. Op. cit, p. 140 ® DUSSEL, Enrique, 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modemiéads). Conferéncias de Frankfurt. Trad. aime A. Clasen, Petropolis: Vozes, 1993, p. 50. “Max Weber nfo imagina que no Archivo de Indias de Seva se encontram 60 mil magos (mais de 60 milhdes de papéis) da “burocracis’ espanhola referentes & América Latina do séeulo XVI a0 XIX. A Espanha foi o primeizo Estado moderno butoerstizado” (0p, cit.p. 58). ® DUSSEL, Enrigue. Op. cit, p. 51 % & ese ropeito ver do autor: Caminhos de libertad latino-americana, S80 Paulo: Pauling, 1984, ¥ I 2% DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outeo (a origem do mito da modernidade). Conferéncias de Frankfurt, Trad Jaime A. Clasen. Petropolis: Vozes, 1993, p. 59-60, 10 da conquista teve duas faces da mesma moeda Na verdade, todo o pro ‘mercantilismo e evangelizagao. Em nome de uma vitima inocente, Jesus Cristo, os indios foram vitimados. Seus deuses substituidos por um deus estrangeiro, © uma racionalidade alienigena conferiu legitimidade a uma dominacao injusta e violenta. Assim como Jesus, os indios foram vitimas, ‘mas no caso do grande rabino e seus seguidores ficou “provada” ¢ aceita sua inocéncia: a culpa era dos romanos. Jé no caso dos indios, por “se encontrarem” em um estigio de ‘“imaturidade culpada”,”* foram, em parte, “culpados” pelo seu estado “barbaro” e pt humano, ¢ os europeus inocentes de qualquer violéneia que se queira imputar, pois era seu “dever” civilizar esses pagios. Quando Cortez se deu conta de sua desvantagem numérica perante os indios, pereebeu que @ forga guerreira dos seus homens no poderia mais se apoiar no desejo de nobreza ou de riqueza, Era preciso um principio ético absoluto, diante do qual oferecer a vida seria um ato com alto teor de significagao e importincia. E “absoluto” é a palavra certa para designar a visio catélica de mundo, principalmente na época da Contra-Reforma. Como assinala Leonardo Boff, a légica do cristianismo, no momento em que insiste na posse da verdade absoluta, abre um enorme flanco para a existéncia e a pratica da intolerancia, Face i verdade absoluta, ndo cabem dividas e indagagBes da razio ou do coragdo ‘Tudo jé esté respondido peta instancia suprema e divina. Qualquer experiéncia ou dado que entre em atrito com as verdades reveladas sé pode significer um equivaco ‘ou um emo. A Igreja detém © monopélio dos meios que abrem o caminho para & cteridade (..). Por isso, nessa visio, © portador da verdade ¢ itolerante. Deve ser intoleramte e no tem outta opglo, Caso contrétio a verdade alo é absoluta, $6 os {que niio possuem a verdade podem ser tolerantes. Consentir © divida, Permitir & Dusea. Aceitar a verdade de outros caminbos espirituais.O fie, este € condenado & intolesineia.?” © melhor exemplo dessa Iégica absolutista a qual foi referida era o Requerimiento, texto elaborado pelo jurista real Palacio Rubis, em 1514. Tal documento, AA esse respeito esclerece Dussel: “Para Kant a ‘imaturidade’ ow ‘minoridade’ ¢ eulpada, A ‘preguiga’ © a “covardia” constituem o ethos desta posigdo existencial.” E cita Kant “Iustagio & a sada por si mesma da hhumanidade de um estado de imaturidade culpavel (..). A preguiga e a covardia slo as causas pelas quais grande parte da humanidade permanece prazeirosamente nesse estado de imaturidade.” Em seguida questions: “Hoje evemos fazer a Kant esta pergunta: um afticano na Africa ou como escravo nos Estados Unidos no século XVIII, um indigena no México ou um mestigo ltino-americano depois, devem ser considerados nesse estado de imaturidade culpével?” Conforme o entendimento do fildsofo argentino, Hegel responders aflrmativamente a este questionamente (DUSSEL, Enrique. Op. ci, p. 17-18) *” BOEE, Leonardo, Inquisigl0: um espirito que continua a existi, Preficio, fn: EYMERICH, Nicolay. Manual dos inguisidores. Comentirios de Francisco Pena. Trad. Maria José Lopes da Silva. 2. ed, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; Brasilia: Fundago Universidade de Brasilia, 1993, p. 10-11 rezavam as disposi¢des, deveria ser lido & toda comunidade indigena prestes a ser invadida Primeiramente, cle comegava dizendo que Jesus Cristo & o “senhor supremo” on “chefe da linhagem humana”, Estabelecido esse ponto de partida, as coisas se encadeiam naturalmente: Jesus transmitiu seu poder a Sdo Pedra, que por sua vez o transmitiu ao primeiro Papa, e, assim por diante, © poder dos sucessivos Papas estava justificado, Ora, como o iiltimo Papa conferiu 0 continente americano aos espanhéis © parte aos portugueses, estava, portanto, Aos indios era juridicamente justificada a pos: terras sio do rei da Espanha sobre aquelas dada uma oportunidade: caso acatassem de bom grado a dominago, os espanhéis ndo teriam © direito de transformé-los em escravos. Contudo, caso se rebelassem, seriam severamente punidos. A religido e os costumes indigenas eram vistos como algo demonfaco. Com relagao a eles, portanto, adotava-se © método tabula rasa assinala Dussel. Isto é, como a religito curopéia era @ Unica (no caso a catdlica), 0 que se deveria fazer era pura & simplesmente negar a religido indigena e tudo que a lembrasse. © dominicano Diego Durin queria até vigiar os sonhos dos indios submetidos a sua orientagdo: “Devem ser interrogados no confessionério acerca do que sonham; em tudo isso pode haver reminiscéncias das antigas tradigdes.”"* Assim, quando se falava em conhecer a religitio dos indios era s6 para poder melhor evitar que os “convertidos” fossem “contaminados”, Esse propésito acabou resultando em um efeito perverso, Ao procurarem se inteirar da visio religiosa dos habitantes do Novo Mundo, figuras como 0 dominicano Diego Durin e o franciscano Bernardino de Sahagiin acabaram por realizar um trabalho antropol6gico de consideravel envergadura, imprescindivel para o conhecimento atual daquelas culturas arrasadas, respectivamente: Historia de las Indias de Nueva Espana e Islas de la tierra firme e Historia general de las cosas de Nueva Espana. Obviamente, por se tratarem de universes culturais absolutamente diversos, a empresa de transmitir ao catecismo uma aparéneia de racionalidade era, no minimo, extremamente complexa e exigiria uma série de pré-discuss6es, para comegar, sobre a propria natureza da divindade, que para os curopeus era una e para os amerindios, dual, Porém, nfo se podendo argumentar 4 altura,”” partia-se para a violéncia irracional ou “guerras justas”, TODOROV, Tzvetan, A conguista da América: a questi do outro, 3, e4, Sao Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 202. ® Dussel nos iraz a bela « argumentagdo de Atahualpa, chefe dos incas, perante a exposigio do Padre Valverde, capelio da expedigao de Pizarro, sobre a “esséncia do crstianismo”: “Além disto me disse vosso falante que me propondes cinco varBes assinalados que devo conhecer. O primeiro é o Deus, Trés e Um, que sio quatro a quem chamais Criador do Universo, porventura & 0 mesmo que 16s chamamos Pachacamac e Viracocha? © segundo & © que diz que & Pai de todos os outros homens, em quem todos eles amontoaram seus pecados. Ao terceiro chamais Jesus Cristo, s6 ele que nao colocou seus pecados naquele primeiro homem, mas que foi morte. Ao Houve, portanto, muito mais uma dominacdo da religido do conquistador sobre 0 dominado do que uma pa sagem a um momento superior de consciéncia religiosa. “No melhor dos casos 98 indios eram considerados rudes, criangas, imaturos que necessitavam de paciéncia evangelizadora.”"” © senso comum europeu era o critério basico de racionalidade ou humanidade, a0 passo que o dos astecas, incas e maias estava em um grau inferior pelo fato de ndo terem 0 conhecimento da escrita e dos filésofos (foi-lhes, desde 0 inicio, negado 0 reconhecimento de suas tradigdes orais e escritas, bem como a sua filosofia), estado que s6 superava o dos indios de culturas no urbana: estes seriam nada mais que animais selvagens. © argumento de “guerras justas” surgiu de forma célebre no parecer de Francisco de Vitéria, te6logo, jurista e professor da Universidade de Salamanca, quando da disputa de Valladolid, em 1550, entre Bartolomé de Las Casas e Juan Gines de Sepiilveda. As embora desconsiderasse a argumentagao de Sepilveda a favor da inferioridade dos indios, que se baseava em Aristétele: dos considerou licita a intervengio bélica em nome da prot inocentes diante da tirania de chefes ou leis indigenas que legitimassem o sacrificio humano. ‘Tomou-se um habite ver em Vitéria um defensor dos indios; mas, se interroga:mos ‘© impacto de seu diseurso, em ver das intengdes do sujeito, fica claro que seu papel € oul: com o pretexto de um direito intemacional fundado na reeiprocidade, fornece, na verdade, uma base legal para as guerras de colonizagio, 4. 0 DEBATE DE VALLADOLI BARTOLOME DE LAS CASAS E A QUESTAO DA IGUALDADE DOS iNDIOS Importa priorizar um pouco mais essa famosa disputa de Valladolid, ocorrida em uas sessGes: uma em agosto e setembro de 1550, ¢ outra em maio de 1551. A congregado que iria avaliar o debate era composta de 14 juizes, entre tedlogos, juristas ¢ letrados. Esse ‘memoravel embate verbal versou sobre 0 verdadeiro motivo da conduta implacével dos espanhdis nas Indias: a inferioridade indigena. Tanto o desejo de enriquecer quanto a pulsio {quarto dais o nome de papa. © quinto é Carlos a quem, sem levar os outros em conta, chamais poderosissimo & monatca do universo e supremo de todos. Mas, se este Carlos ¢ principe e seuhor de todo © mundo, que necessidade tinha de que 0 Papa Ihe fizesse novas concessio ¢ doagdo para me fazer guerra e usurpar estes reinos? E, se 0 tinka, logo, © Papa & mais Senhor, ¢ no cle, © mais poderoso e principe de todo o mundo? Também me admiro que digais que estou obrigado a pagar tributo a Carlos © nfo 80s outros, porgue mo dais nenhume razdo para o tributo, nem eu me acho obrigado a di-Io de maneira neshuma. Porque se por diteto hhouvesse de dar tributo e servigo, parcce-me que se deveria dar aquele Deus e aquele homem que foi Pai de todos os homens, e aquele Jesus Cristo que nunca amontoou seus pecades, finalmente se havia de di-los ao Papa (2). Mas se dizeis que a este ndo devo dar, menos devo dar a Carlos que, nuncs foi senhor destas regides nem o tenho visto” (DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modemidade) Conferéncias de Frankfurt. Trad Jaime A. Clasen, Petrdpolis: Vores, 1993), S DUSSEL, Enrique. Op. cit, p. 63. * TODORGY, Tzvetan. A conguista da América: a questao do outro. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 147 de dominio foram razdes para a atitude espanhola, Porém, faz-se necessério um terceiro elemento. Uma premissa bd ica para a verificagio da destruigio: a nogdo de inferioridade dos {indios, como se estivessem a meio caminho, entre os homens ¢ os animais. Tal era o pensamento de Juan Gines de Sepilveda, doutor em artes ¢ teologia pelo Colégio de Sao Clemente de Bolonha, além de ter estudado direito ¢ filosofia na Universidade de Bolonha, O conceituado estudioso falou por trés horas, durante as quais leu um resumo de 44 paginas de seu livto Demécrates Alter, que fora proibido de circular. Inicialmente, ele invalidou a arquitetura urbana dos maias e astecas, tio admiradas pelos espanhdis conquistadores em seus ptéprios relatos, dizendo que ela nao indicava a existéncia de uma civilizagdo, mas que to 86 representava um indicio de que aqueles indios encontravam-se num grau determinado de barbaric, Para Sepiilveda, a constatagao de tal nivel de primitivismo era reforgada pelo modo nao individual de os indios estabelecerem suas relagdes uns com os outros ¢ com as coisas, bem como pelo fato de nao terem experiéncia de propriedade privada nem de heranga pessoal Além disso, cometiam atos pagios, tais quais o sacrificio humano e o canibalismo. Baseando- se em Aristételes, Sepilveda justifica a dominagdo e a desigualdade dos indios dizendo que 0 perfeito deve dominar sobre o imperfeito, assim como o adulto sobre a crianga, o homem sobre a mulher e o clemente sobre o feroz. “Todas as diferengas se reduzem, para Sepiilveda, a algo que nao é uma diferenga, a superioridade/inferioridade, o bem eo mal”. Na visto de Sepiilveda, a conquista, na verdade, é um ato emancipatério, porque permite ao bérbaro sair de sua barbérie, E para a realizagao desse feito admite-se a violéncia irracional e a “guerra justa”: "Nao podemos duvidar que todos os que andam vagando fora da religio cist estio cerrados © caminham infalivelmente para o precipicio, no devemos duvidar em afasti-los dele por um medo qualquer ou mesmo contra a sua vontade, e, no fazendo isso, nto cumprimos a lei da natureza nem o preceito de Cristo.” Como ja se afirmou alhures, é curioso perceber que nesta visio emancipadora os povos “subdesenvolvidos” sio duplamente culpaveis, Primeiro, por “serem” inferiores; segundo, por “darem motivagio” & ago violenta da conquista ao nao acatarem corretamente a verdadeira cultura’ Em seu pronunciamento, Bartolomé de Las Casas falou, nada mais nada menos, durante cinco dias! O que se verificou devido nao sé a elogtiéneia do frei, mas também em_ ™ TODOROY, Tzvetan, A conguista da América: a questo do outro. 3 ed, Sao Paulo: Martins Fontes, 1993, p, 151 ® DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modernidade). Conferéncias de Frankfurt, Trad, Jaime A. Clasen. Petrépolis: Vozes, 1993, p. 86 face do volume do material lido e apresentado pelo frade Apologia, de 253 paginas, e de sua Apologética historia de las Indias, com 257 capitulos ¢ quase 800 paginas! O dominicano bateu de frente contra os argumentos de Sepilveda. O debate foi um divisor de aguas na argumentagdo de Las Casas contra a ago espanhola. De fato, percebe-se que a oposigo entre eristios ¢ nio-cristios nao foi uma oposigio de natureza, pois todos podiam ser cristios, por “pertencerem” ao, mesmo rebanho, Assim, no hé que se falar em desigualdade ontolégica. Aqui é importante notar o perigo potencial de se afirmar no & natureza humana dos indios, ‘mas sim a sua natureza crist8, Tanto que Las Casas, em sua Brevissima relagdo da destruicdo das indias, vefere-se sempre aos indios como dotados naturalmente de virtudes cristas, sendo obedientes pacificos. Nesse ponto, a percepgdo de Las Casas nfo difer muito da per -pydo ¢ lima permanente monotonia de Colombo acerca da “generosidade” dos indios. Constata- nos adjetivos relativos aos indios da Flérida e aos do Peru, © que se formou foi um estado psicolégico (bons, pacientes) € nfo uma configuragdo cultural que pudesse ajudar a compreender as diferengas. Se ¢ incomtestivel que 0 preconceito de superioridade & um obstéculo na via do ‘conhecimento, é necessirio também admit que o preconceito da igualdade é um ‘obsticulo ainda maior, pois consiste em identifica, pura e simplesmente, © outro a seu proprio ideal do eu. Las Casas percebeu todos os conflitos em fungao da oposigio fieV/infiel. A sua otiginalidade foi attibuir 0 pélo valorizado fiel, ao outto e 0 desvalorizado, infiel, aos seus jucismo I compatriotas. O mar iano é indiscutivel. No entanto, hi de se considerar 0 fato de que 0 pélo negativo nao era, em sua visto, composto por todos os espanhdis, mas somente por aqueles que comandavam as encomendas ¢ realizavam as guerras. E, além disso, embora retratasse 0 indio como covarde, medroso ¢ passivo, em outros trechos relatava a sua coragem earebeldia.” Uma coisa € certa: Las Casas demonstrou, nesse momento, uma_postura claramente assimilacionista, com a diferenga de que queria que esta anexagio fosse feita por padres © ndo por soldados, e que, além disso, munca estaria justificada uma guerra que procurasse “acalmar os dnimos” dos indios para que estes pudessem ser evangelizados. Sua ™ DUSSEL, Enrique. Op. cit. p. 162 ° Os adversirios de Las Casas também apontam a parcialidade dele com relagio aos indios, pois ndo condenava 4 eseravidio dos nogros. Neste ponto, hi de se considerar, primeiro, que, enquanto a escravidio dos negros era algo dado, a dos indios constituiu-se sob seus olhos, ¢, Segundo, que embora em um primeiro momento ele admita a escravidio negra, posteriormente se retrata explicitamente © no mais # distingue da dos indins, Contudo, assinala Todorov, a sua posigio em relagdo aos negros seri menos clara do que com relagdo aos indios (Op. cit, p. 167) argumentagdo a esse respeito & muito interessante. O poder de Castela estava fundado na concesstio papal. Isto significava para Las Casas que 0 poder piritual tinha mais valor que 0 temporal. Ou seja, o poder politico de Castela sé poderia ser exercido sobre a América se esta se entcontrasse sob o dominio espiritual da Igreja. Contudo, como deixa claro em sua obra Del Jinico modo, tal dominio s6 poderia se dar com 0 consenso indigena. Isto é, embora a postura de Las Casas seja assimilacionista, ela partiu de um principio menos encobridor do que a visio da metodologia tébula rasa, reconhecendo o {ndio como sujeito na medida em que exige a sua compreensi fo. Além disso, hi € aceitagdo racional, e no apenas uma submis que se considerar que, ao pedir um tratamento mais humano para os indios, mesmo sob termos assimilacionistas, fez a tinica coisa que, em nivel imediato, era possivel para mitigar 0 sofrimento dos habitantes originais daquelas terras, Também nio se pode olvidar que a ‘maioria de suas cartas eram dirigidas ao rei, ¢ estrategicamente nao poderia sugerir que este abdicasse de suas possessées além-mar (conselho que, mais tarde, ir efetivamente pronunciar). Usou entio 0 expediente de que tal dominio fosse feito por padres e no por soldados, 0 que garantiria aos indios uma proteg3o contra os suplicios. Nesse sentido, Bartolomé de Las Casas & considerado o primeiro defensor, na América Latina, do que viria a ser chamado de “direitos humanos”. Foi justamente enfrentando os argumentos de Sepulveda que Las Casas apresentou uma posigo mais inovadora ainda perante a questo. O bispo de Chiapas intentou tomar tanto 0 sacrificio quanto 0 canibalismo menos estranhos e mais aceitéveis ao leitor. Com relagao ao sacrificio, observou que ele esta previsto na religido crista, seja no sacrificio de Isaac, 0 tinico filho de Abraio, seja no préprio sacrificio de Cristo. Em seguida relagio ao canibalismo, constatou que era uma prética ja adotada pelos espanhdis, os quais, quando impelidos pela necessidade, haviam comido o figado de seus compattiotas. Observa- se claramente a mudanga de entendimento de Bartolomé de Las Casas quando este visou provar que o sacrificio humano nao s6 € aceitivel por razSes de fato como por razées de direito. E, ao fazer isso, pressupés uma nova definigao do sentimento religioso: 0 perspectivismo, Em seu racioeinio, assinalou que cada um adora Deus & sua mancira, da forma que pode, e que oferecer a vida, 0 que hi de mais precioso, é a maior prova de amor que se pode dar a Deus. Logo, embora o Deus dos indios nao fosse “o verdadeito”, assim era por cles considerado, E este deve ser o ponto de partida. Mas reconhe sr que o Deus deles era verdadeiro para eles significa reconhecer que 0 nosso Deus era verdadeiro somente para nés, © que deslocava a universalidade do plano da religiio para o da religiosidade. E na religiosidade, afirma Las Casas, os indios so até superiores na devogdo, e s6 os martires do inicio do cristianismo thes seriam compardveis em fervor. A igualdade jé ndo ¢ admitida em projuizo da identidade © bispo de Chiapas abandonou o discurso da teologia e passou a ter um de cardter antropolégico religioso, ¢, nesse contexto, tomou-se um discurso subversivo, pois quem assume um discurso sobre a religido di um passo fundamental em dirego ao abandono do proprio discurso religioso. Com base nessa légica, foi ainda mais fécil para Las Casas evidenciar a relatividade do conceito de barbérie.*® Por fim, ele sugeriu ao rei da Espanha (1555) que simplesmente desistisse de seus dominios na América e que, se tivesse de mover uma guerra, a fizesse contra os conquistadores, que nao sairiam de li espontaneamente, Sua postura perspectivista permitiu-the ainda modificar outra posigdo e remunciar ao desejo de assimilar os indios a f€ crista, no que assumiu a via neutra eles que decidissem eles mesmos acerca de seu proprio modo de viver. Dussel observa que, na verdade, a disputa de Valladolid versa sobre de que maneira devem ser os indios incluidos na “comunidade de comunicagio”, Para o filésofo argentino, Bartolomé de Las Casas assume o melhor do sentido emancipador modemo, mas descabre a iracionalidade encoberta no mito da culpabilidade do Outro, Por isso noga # validade de todo argumento a favor da legitimagdo da violéncia ou guerra iniciel para compelir 0 ‘Outro a fazer parte da comumidade de comunicaga, (..) © debate ests no 8 priori F curiosa a defesa de Las Casas, que usa o proprio Aristételes para contra-argumentar a Sepiilveda, O fei dominicano acusa o seu apositor de desvirtuar o sentido da teoriaaristotélia e propie-se a eselarecer © que deve ser entendide por “birbaro”, partindo da obra de Arstételes, em particular a Politica, © explictando quatro sentidos para a palavra “bézbaro” que podem ser ai entendidos. Numa primeira acepedo, o termo pode ser tomado como relativo a uma natureza de irracionalidade, ferocidade, erueldade © entendimento confuso. O ado diz respeito a pessoas que em virtude de seus maus costumes sio crus, ferozes © anti- socisis,ndo tendo leis nem regras. O quarto tipo de “barbaro” seria squele que carece de fé crist E, por fim, a fespécie que seria aplicada aos indios, a segunda classificagdo de Las Casas, coloca o fato da barbie na Jmpossibilidade de comunicaglo, seja pela circunstincia de embate de linguas diversas, seja por outro motivo qualquer. Esereve Las Casas, em sua Apologética, que “isto foi o motivo, segundo Estrabom, no livro 14, que os agregos tiveram para chamar de bérbaros a outros povos, porque nJo pronunciavam bem, mas com rudeza e efeitos, a lingua grega; e desta mancira no hi homem nem nagio alguma, que nfo seja birbaro e birbara para 0s outros (..). Deste modo, estas gentes das india, que nés estimamos como barbares, consideram-nos, também, birbaros, pois no nos entendem e Ihes somos estranhos; daqui procede um grande erro em muitos de nds soculayes, eclesisticos e rligiosos, em relagio a estas nossasindiauas uagdes, que sendo de liuguas diversas que rio entendemos nem penetramos, de costumes diferentes, depois de ter perdido suas repablicas e ordem que ‘inham para viver e governar-se, porque nés as colocamos nessa desordem e as apoquentamos de tal maneira que ficaram aniguiladas, os espanhéis que vieram a estas teras, sejam de qualquer profissSo ou qualidade, pensar que o estado de confusio ¢ abatimento em que agora vivera foi sempre assim porque procedia de sua natureza Darbérica © politica desordenada, Mas podemos afirmar que cles, com Teta razo, por ver em nés outros costumes, estimam-nos no apenas como birbaros da segunda espécie, que quer dizer estranbos, sendo ds primeira, isto ¢, ferocissimos, durissimos, aspérrimos e abominéveis (..). E assim fica declarado, demonstrado abertamente concluido, que todas estas gentes de nossas fndias sio bérbaros secundum quid, porque ndo tendo cexercicio nem estudo das letras, tinham reinos e governos, obediéncia e submissio,e se regiam por lise justiga”™ (BRUIT, Héctor Hernan. Bartolomé de Las Casas ¢ a simulacdo dos vencidos: ensaio sobre a conquista hispanica da Américs. Campinas: Unicamp; So Paulo: Iluminuras, 1995, p. 128-130), absoluto, da pripria condigio de possibilidade da participaydo racional. Gines de Sepilveda admite um momento irracional (a guerra) para iniciar a argumentagio; Bartolomé exige que seja racional desde o inicio 0 didlogo com 9 Outto (..) Para Bartolomé, deve-se procurar modemnizar 0 indio sem destruir sua alteridade; assumir ‘a Modernidade sem legitimar seu mito.” A CULTURA AMERINDIA E O FIM DO “QUINTO SOL” E necessério que se tenha em mente 0 momento histérico e geografico destes povos antes da chegada dos conquistadores, pois s6 assim pode-se caminhar no sentido do reconhecimento da alteridade da negacdo do mito sacrifical da Modernidade. Os amerindios, na realidade, nao "descobriram" o continente no mesmo sentido de Américo Vespiicio, isto é, no tinham consciéneia da totalidade da terra continental, contudo tinham algo muito mais importante: a humanizacdo do continente, Assim, a conquista j4 contara com uma cultura estabelecida, fato que eticamente foi muito relevante para guiar as agdes em face da realidade americana e de si eu povo. Dussel preocupou-se, com base nos quadros culturais dos astecas e¢ nfo na perspectiva eurocéntrica, em demonstrar a racionalidade da atitude de Montezuma perante Cortez. A indecisio daquele devia-se presenga de um leque de possibilidades que poderiam advir da chegada dos espanhéis: a) a possibilidade de que fossem um grupo de seres humanos era muito improvavel dentro da hermenéutica nativa; Montezuma nao dispunha de elementos para chegar a esta conclusdo, pois, se a tiv , a superioridade numérica dos astecas era um fato que exigiria maiores preocupagSes com relago aos possiveiS invasores; b) portanto, “racionalmente”, cles s6 poderiam ser deuses. Mas quais? Tudo indicava que Cortez era Quetzaleéatl.* A representagdo histérica de Quetzalcdatl era a de um principe do povo tolteca (anterior aos astecas) que havia sido buscado para ser o rei de Tula, ‘mas que acabara sendo expulso. Uma de suas caracteristicas era o fato de se opor a sactificios humanos, pois amava muito 0 seu povo; e, além disso, prometera voltar. fra isto que os astecas poderiam ter toda a razio em temer, pois, além de provir de um povo por eles ‘massacrado, 0 principe era contrério & sua forma de viver , sendo um rei deposto, poderia querer 0 lugar de Montezuma. Por esse motivo, 0 imperador asteca, num determinado momento, ofereceu o seu reino a Cort que, obviamente, nada entendeu. O fato de o comandante espanhol censurar os sacrificios astecas jé era um grande indicio de sua possivel * DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outto (a origem do mito da modemidade). Conferéncias de Frankfurt, Trad, Jaime A. Clasen. Petrépolis: Vozes, 1993, . 82-83 °* Quetzal era um belo péssaro cujas penas sig savam divindade, e coat! era a dualidade, os dois prinefpios do identidade. Na realidade, os sacrificios, segundo a crenga asteca, eram uma maneira de se prolongar 0 “quinto sol”; oferecidos ao deus Huitzilopochtli, que passara a ser o deus principal, gragas 4 reforma de Tlacaélel, imperador conquistador que queimou todos os eédices dos povos dominados ¢ os reescreveu;”” ©) a terceira possibilidade era a mais sombria: 0 principe poderia ser a representagdo do principio divino, um dos rosios de Ometéotl, ¢ isto era tenebroso, pois seria © fim do “quinto sol” Partindo des copes, portanto, era importante, primeiramente, que Montezuma no se encontrasse com os espanhéis, pois af teria, provavelmente, de reconhecer uma das duas tltimas possibilidades, 0 que seria o seu fim como imperador. Era mais aconselhdvel ‘mandar-Ihes presentes e sugerir que voltassem ao seu lugar de origem, seja este qual fosse. Obviamente, a0 enviar ouro como presente para Cortez e seus homens, Montezuma estaria longe de incentivar a sua volta para a Europa. A tinica possibilidade perante a qual no seria necessario o recurso as armas era a segunda, Mas, antes de empreender qualquer ago bélica, era necessétio ter-se certeza da ndo- verificagdo dessa hipétese. Por este motivo Montezuma ofereceu seu reino a Cortez, ficou de fora, pois assim estaria evitando softimentos a seu povo: “Montezuma era o novo Quetzaleéatl de seu México e se imolou por ele”." Com a recusa do comandante espanhol estava descartada a segunda possibilidade. Porém, a terceira ops pairava no ar como um perigo supremo. Contudo, trés acontecimentos posteriores iriam provar a Montezuma que a possibilidade real era a primeira, Esses ‘A crenga do “quinto sol representavao cielo que se estava vivendo, isto 6, era como se fosse uma quina cra, sendo que cada uma possuia um sol diferente a ago dos humanos devia ser no sentido de possibiltar a méxima extensio e duragdo do sol sob o qual se vivia © Com relagdo 20s sacrifiios, comenta Leonardo Boff: “A Inquisigfo contradiz 0 bom senso das pessoas. Como se pode, em nome da verdadee ainda mais da verdade religisa, peseguir, tortura, matar tanto e de forma tio obsessive? Importa enfatizar que, mediante a Ingusiglo, a Igreja hierarquica inteoduzi os sacrficos humanos. © auge do sacrificialismo furibundo da Inquisigdo no século XVI na Europa corresponde aos secrificios hhumanos perpetrados pelos colonizadores expanhdis ehegados a0 nosso Continente contra as culturas origindrias dos astecas, maias, inca, chibchas e outras. Quando Hermén Cortez penetrou em 1519 no planalto de Anahuac ro México, havia no império asteea 25,200,000 habitants. Menos de 80 anos, em 1595, s6 restaram 1.375.000 habitantes.” A dizimagdo global, por guetres, docngas, excesso de trabslhio-escravo nas encomiendas dlesestruturagdo cultural, nos dois primeiros séculos da colonizagdo-invasio, fai éa ordem de 25 por 1. Quem oferecia mais sacrticios humanos: os astecas, que faziam sacrificios rtuais ao deus Sol para que sempre voltasse ‘a nascer ¢ assim garantisse a vida para todos os povos e para o umiverso, ou os espankdis, que sacrifieavam a0 deus Mamona para serem ricos ¢ fidalgos na Espanha? E sobre isso os bispos reunids no Coneilio de Trento (1545-1563), contemporinca @ todos esses fatos, nfo dizem sequer um palavra, Estavam ocupados com questéesinternas da Instituigdo em confronto com a Reforma de Lutero” (BOFF, Leonardo. Inguisigo: um espirito que continua a existir.Proficio, In: EYMERICH, Nicolau. Manual dos inguisitores. Comentarios de Francisco Pena. Trad. Maria José Lopes da Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: Rose dos Tempos; Brasilia: Fundagd0 Universidade de Brasilia, 1993, p. 26) “' DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modemidade). Conferéncias de Frankfurt, Trad Jaime A. Clasen. Petropolis: Vozes, 1993, p. 138 acontecimentos foram a chegada de outra esquadra, a de Pnfilo Narvéez, que, lutando contra Cortez, foi derrotada e suas forgas anexadas; a matanga de Pedro de Alvarado (subalterno que ficara responsdvel pela expedigdio com a auséncia de Cortez e que realizou uma camificina traigoeira no México); ¢ a volta de Cortez com 0 exército reforgado. Ao tentar penetrar no México, as forgas do conquistador espanhol foram derrotadas na “notche triste”. Porém, de nada adiantou, pois a peste que se alastrou no México foi apenas o primeiro sinal da vitéria inevitavel dos espanhdis. Os aste \s interpretaram a conquista como a chegada do “sexto sol” € 2 conseqilente morte dos seus deuses, de sua filosofia e de seu mundo. Toma-se, portanto, a chegada do “sexto sol” como um mateo simbélico do “fim do mundo” amerindio, de sua cosmovisdo. Poi , 4 resisténcia a esta mudanga foi maior do que se se imagina, embora tenha sido sucedida pela inevitivel derrota, quer pela disparidade do desenvolvimento interpretativo dos fatos, quer pela prépria tecnologia militar. Assim, com a percepgdo da natureza terrena dos invasores, acirrou-se a resist ia. O primeiro ato foi o do cacique Caonabo, em Cibao, que, resistindo a0 roubo de suas mulheres pelos homens deixados por Colombo, matou-os. No entanto, todos os caciques, apesar de sua rebedia, foram sendo vencidos. A resisténcia maia, por nao ter seu povo articulado num claro sistema de dominagao politica, como era 0 caso dos astecas, prolongou- se quase até o século XX. S6 em grandes impérios, como o de Montezuma, teve-se a clata jo de que o controle politico-militar havia sido transferido a outrem. A figura da resist Joi claramente seguida peta do Parece, porém, que Dussel, nos textos pesquisados, limitou-se muito @ questao negativa da ago indigena, ou da ndo-existéncia de qualquer agdo, no proc so da conquista Preocupado em afirmar a alteridade que os povos amerindios e seus descendentes representaram, deveria ter explicitado melhor a atitude indigena de resisténcia & conquista. Contrariamente a um certo senso comum que se firmou sobre a questo, a resisténcia amerindia nao ficou limitada ao ambito militar, Conforme assinala Héctor Heman Bruit, a aculturagao dos amerindios esteve longe de ser considerada bem-sucedida, o que se deu gragas a uma pritica velada, em que simulavam a todo o instante um comportamento que escondia uma outa atitude, uma atitude protecionista de sua propria cultura e que deixava centrever a sua rebeldia. E, além disso, a sobrevivéncia nao sé da cultura, mas de muitos povos indigenas a0 massacre da conquista, resultou, como afirma 0 professor chileno, em uma das maiores faganhas da humanidade, Para explicar esse feito, certamente hé que se levar em conta o que se chama de “histéria invisivel” da conquista da América, “Derrotados militarmente ¢ violentados pela pritica dos invasores, os indios simularam obediéncia, passividade, servilismo para salvar a pele ~ c, especialmente, sua cultura, Verifica-se o que Bruit chama dea “simulagao dos vencidos”. ‘A simulayio insoreve-se numa cadeia semintica que se inicia com a representagdo, isto é 0 signo ocupa o lugar do reel, termina com a simulagio em que 0 signo ia, uma auséncia. En, falar de simulagio & falar também com o outro, signiticar a diferenga estabelecer a distancia entre as imagens, as aparéncias, 0s signos eos referentes. Isto & quando os indios vestiam-se como os espanhdis, comungavam como eles, portavam-se como eles, falavam a sua lingua, na verdade nao davam aquilo 0 mesmo, significado que os conquistadores curopeus; a representagdo dos costumes estrangeiros significava muitas vezes uma auséncia, a aus cia da cultura dominadora em suas crengas, € que servia para “dar cobertura” ao seu préprio modo de ser. A importancia em se reconstituir esta “histéria invisivel” encontra-sc lia oportunidade de recuperagao, para os indios, da sua condigio de sujeitos ativos e centrais, formadores de sua prépria historia, ‘As melhores fontes pata a restituigao dessa pritica velada e insubordinada dos {Indios so as erdnicas dos conquistadores, tendo enl vista a raridade das fontes indigenas, Necessita-se observar as visdes dos cronistas situadas sempre no extremo. “E o caminho entre um extremo revela um siléncio suscetivel de ser preenchido a partir da separagao entre 0 contetido dos enunciados ¢ o sentido deles”.* Assim, quando se surpreende os relatos europeus que se queixam, por exemplo, da preguiga ¢ da bebedeira dos indios, pode-se facilmente perceber uma atitude e uma forma de resisténcia dos amerindios & interessante procurar observar o perfil psicolégico dos indios antes ¢ depois da conqu ta. A imensa diferenga que passou a existir entre um momento e outro surpreendeu os ptdprios cronistas, que nao cansavam de elogiar, como se observou, a sociedade indigena, a sua extrema organizagio ¢ rigidez das regras sociais, em que, inclusive, a embriaguez em muitos casos era severamente castigada, e o trabalho representava um dos principais valores. ‘Apés a conquista ter-se firmado, os cronistas relatam a existéncia de todos os vicios possiveis ¢ imagindveis. A primeira atitude que soou estranha aos espanhdis foi o proprio siléncio dos amerindios, que evitavam ao maximo ter de se comunicar com os conquistadores. © BRUIT, Héctor Herman. Op. cit, p. 14 © BRUIT, Héctor Homan. Op. cit, p. 15, “ BRUIT, Héctor Heman. Bartolomé de Las Casas ¢ a simulagdo dos vencidos: ensaio sobre a conguista hispanica da América, Campinas: Unicamp; S80 Paulo: lluminures, 1995, p. 153. © silencio, que continuava sendo até agora a marca inconfundivel dos indios, cconteve @ manipulasio ideolégica na medida em que 0 diseurso do conquistador sé ito e sentide quando referide ao diseurso do indio. Aqui, o referente O siléncio também, na visio de Bruit, é uma manifestagdo da ocorréncia de um. trauma coletivo, verificado com o que se chamou atrés de “fim do mundo” amerindio, um trauma assaz, doloroso, que acabou por proporcionar, juntamente com outros fatores, 2 atitude simulada dos indios. Isto é, segundo o professor chileno, a simulagio verificar-se-ia principalmente no plano subconsciente: ssa forma de resisncia& conguista nfo fi intiramente programada e conscient, pois fuia também do inconseiente onde se refugiou o trauma da destruigdo, de tal rmaneira que ela agia, em muitos casos e circunstincias, como uma ago mais instintiva emotiva. Por essa razio, a resisténcia fi difusa no sentido de que no se deixava ver devido a sua propria obviedade, e foi veiculada como simulago, como ‘encobrimento daguilo que os indios tentaram salvar." Como jé se anotou, Bartolomé de Las Casas construiu uma imagem extremamente negativa dos indios, embora certamente ndo fosse esta a sua intengdo. Contudo, como Bruit, chama a atengo, curiosamente, foi o préprio frei que revelou uma das melhores fontes para se perceber a simulagiio dos indios, mostrando a existéncia de uma contradi¢ao na construgdo de suas imagens. Fm sua obra, ao mesmo tempo em que os indios eram covardes, resistiam de alguma forma; ao mesmo tempo em que apegados a idolatria, eram suscetiveis a aceitagdo da €, 20 mesmo tempo em que eram obedientes, abandonavam o trabalho, Escreve 0 padre em sua Historia de las Indias’ Das mentiras que os indios diziam aos espanhdis e hoje dizem, onde ainda no os devastaram, os vexames ¢ servidio horrivele crus ania com que os atormentam ¢ rmalialam, slo as causas, porque de oura mancir, sendo mentindo e Fingindo para contenté-os ¢ placar seu continuo ¢ implacdvel Furor, nfo poderiam eseapar-se de rill ouras ngstias¢ dorese maus-trats,” Havia também uma certa especulagdo pelos indios dos gostos ¢ desejos dos conquistadores. Muitos mentiam sobre a possivel existéncia de ouro em regides inéspitas. Foi assim que surgiu @ famosa lenda de El Dorado. Enfim, por intermédio desta agdo sub-repticia dos indios, da sua simulacdo, foi possivel “sabotar” a nova sociedade que os europeus © BRUIT, Héctor Heman, Op. cit, p. 157. BRUIT, Hévtor Heman. Op. itp. 191-192 © BRUIT, Héctor Heman, Op. cit, p. 167. queriam construir. Obviamente, a agdo dos indios nio foi o dinico fator causal do que Bruit chama de a “melagdo” da nova sociedade. Todavia, certamente & ‘menos percebida: ‘A sociedade hispano-indigena estava em perigo de no vingar como uma sociedede ‘ordenada, governével, politicamente fundada no consenso da maior, enfim, como uma sociedade crista, Uma forya estranta, oculta, nlo-entendida, trabalhava para desajusti-la, deturpé-la em seus objetivos, © essa forga eram os prOprios indios submetidos pelas armas, mas no conquistados nem pela nova religido, nem pelo saber dos espanhéis, que na realidade era um ndo-saber, pois ignorava a cultura eas raizes das tradigdes e costumes dos vencidos." Como se veré adiante, essa ago subversiva dos indios nio foi expressamente anotada por Las Casas como uma das causas da iminéncia da constituigo de uma “sociedade as avessas”, de uma sociedade deturpada e torta em sua prépria raiz. © franciscano Bernardino de Sahagiin tentou alertar para este perigo, ao pregar a necessidade de ndo se destruir os cédices, os livros indigenas, pois, argumentava, era necessétio ter 0 entendimento desta cultura para combater a idolatria, Partilharam da mesma opinido o jesuita José de Acosta ¢ o dominicano Diego Duran. Este ditimo, por um momento, chegou a crer que os costumes indigenas eram semelhantes aos cristios e que, segundo apregoavam certas teses polémicas, Sao Tomds de Aquino havia firmado contato com aquelas civilizagdes, tendo ensinado © cristianismo aos indios. Para Tzvetan Todorov, este entendimento do padre dominicano devia-se & presenga do sincretismo em sua propria visio de mundo, pois havia sido eriado no México. Bruit, contudo, atribui tal fato a agdo simuladora dos indios em face do cristianismo. Agdo to densa ¢ impenetrivel que acabou por levar os espanhdis & conclusdo de que, em realidade, eles ndo entendiam os indios. Nao entendiam seus atos e, muito menos, a lingua, que era composta de diversos dialetos. Os indios, porém, aprenderam a lingua dos conquistadores. Observa Las Casas: Os encomenceiros queixavam-se com freqiléncia que com esse aprendizado os Indios se faziam bacharéis © ndo queria trabalhar, ¢ que quando 0 faziam, roclamavam direitos © privilégios © usavam as leis para infernizar vida dos cristios.”” Por outro lado, verificou-se a existéncia de um sincretismo religioso, isto é, os indios incorporaram muitos dogmas cristios, mas com a diferenga de que o faziam a partir de sua visio idolitrica de mundo. Houve “um esforgo consciente de comparar os dogmas “ BRUIT, Héctor Heman, Op. cit, p. 169-170. © BRUIT, Héctor Heman, Op. cit, p. 175, aceitar © novo em tudo aquilo que enriquecia o antigo”. Esse esforgo esté expresso no entendimento de Charles Gibson, em seu livro Los aztecas bajo el imperio espatiol: (..) 8 indigenas nfo ebandonaram sue visio politesta. As normas de conduta cist comunicadas pelo ensino,alimentadas polos presetos ou impostas por obrigagio, ‘alo tomaram intligiveis as abstajies eristis sobre @ vstude eo pevado. A cominidade dos santos foi recebida pelos indigenas ndo como uma intermediéia entie Deus e 0 omem, mas como um pantedo de deidades antropoaiicas. 0 Simiolo da erucifiapio foi aesto, mas como uma preocupayto exagerada nos Aetalhes de-um ato de sacrileo. O Deus cristo foi admitido, mas no como uma ‘eidade exclusiva e onipotente, O eéu eo inferno foram reconhecids, mas acentuando suas propriedades concretas e com atributes pagdos (.)." Com relagiio aos indios da América do Sul, em especial os do Brasil, a recuperagao de sua cultura tornou-se bem mais dificil, pois praticamente todos os povos indigenas ai localizados transmitiam os seuS conhecimentos através da tradigo oral. Um dos raros grupos indfgenas brasileiros em que se utilizou algo além desta tradigao foram os Sateré-Mawé, de lingua tupi, distribuidos em trinta povoados no Baixo-Amazonas, onde se encontram até hoje, como reminiscéncia de uma cultura ancestral, trés exemplares do Poratim, uma clava em forma de remo na qual esti gravados losangos, desenhos ¢ figuras que representam simbolicamente um conjunto de mitos e historias sobre as origens da tribo. No Brasil, infelizmente, nao surgiram cronistas indigenas no periodo colonial, tomando a oralidade a tinica fonte da vis io dos vencidos. Jimenez de La Espada, americanista espanhol do final do século passado e que foi diretor do Arquivo Geral das indias, em Sevilha, observou que, para a infelicidade brasileira, os portugueses nao tiveram um Las Casas que des outra versio do que ocorreu no Brasil Los portugueses ban tenido la doble fortuna de no tener un padre de Las Casas y de {que los brasilefios hayan hechos suyos, sin discutirlos, los heehos de aquellos homies que @ toda costa les dieron la opulenta y anchisima pata,” No entanto, 0 fato de ndo se possuir fontes escritas para pesquisar os indios brasileiros ndo deve ser um impedimento para que se resgate sua cultura, tarefa para qual ndio se poderd direcionar esforgos neste ensaio. 6 A CULTURA SINCRETICA DA PERIFERIA: OS VARIOS “ROSTOS” LATINO-AMERICANOS © BRUT, Hévtor Heman. Op. cit, p. 184 © BRUIT, Héctor Heman, Op. cit p. 186 © PREIRE, José Ribamar Bessa, Tradigdo oral meméria indigenas: a eanoa do tempo. In: América: descoberta ‘u invengdo, 4° Coléquio da UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 154 Os astecas, em que pes toda a sua indole violenta e dominadora, quando subjugavam uma outra cultura, antes de destruir seus livros, estudavam-nos © os incorporavam, como se viu no mito de Quetzaledatl. Nao foi o que aconteceu em relagdo aos europeus com a tradigo asteca, que thes havia sido oferecida como uma homenagem e, em toca, 0 povo néhuatl foi chacinado e humilhado culturalmente. Estas culturas no tiveram a vantagem da helenista ou romana, que o cristianismo trabathow por dentro, sem destruilss, as transformou nas culturas das cristandades Dizantna, copla, georgiana ou arménia, russa ou lating-germana desde o século IV 44.C., as culturas amerindias foram truncadas pela raiz.” © “sexto sol”, portanto, ignorou a existéncia dos outros cinco que o precederam, € trouxe em seu centro o capital. Diz Marx: © capital é trabalho morto que s6 se vivifica, & mancira do vampiro, a0 chupar trabalho vive, e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupar. O descobrimento das regides auriferas e argentieras da América, o exterminio, ‘eseravizagio e goterramento nas minas da populagio aborigene, a conquisla © @ saque das Indias Ocidentas, a transformagao da Africa num couto reservado para a ceaga comercial de peles negras, caracterizam os albores da era (do sexto sol) da produgdo capitalist Apesar de todos os esforgos europeus para que a cultura original do continente americano fosse encoberta ou negada, acabor gerando uma rica ¢ sinerética cultura popular, que formou na América Latina varios rostos diferentes.** Veja-se o perfil de cada um deles, Em primeiro lugar, os indios. Embora os europeus controlassem o poder politico e os “pontos chaves”, 0 modo de vida da maioria das pessoas era indigena, com um uso comunitério da terra e uma vida comunal propria, 0 que, como se viu, era conseguido gragas & simulagdo indigena, que barrou a total aculturagao. © segundo golpe fatal, na verdade, foi dado pelo liberalismo do século XIX, que, querendo impor uma forma de cidadania abstrata, individualista e burguesa, firmou a propriedade privada no campo se contrapés a forma de vida comunitéria, Obviamente, tal fato limitou aos indios a possibilidade de viverem & sua ‘maneira, gerando os problemas atu: das reservas indigenas, principalmente em paises como © Brasil, cuja populagdo indigena nao era derivada de uma cultura urbana, Ja no caso dos ® DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (a origem do mito da modemidade). Conferéncias de Frankfurt Trad, Jaime A. Clasen. Petrépolis: Vozes, 1993, p. 146, S DUSSEL, Enrique. Op. cit, p. 152. * DUSSEL, Enrique. Op. cit, p. 159-179, indios oriundos de sociedades organizadas em cidades, constata-se a presenga de um forte sincretismo cultural, ma no de absoluta aculturagao. © segundo rosto corresponde as vitimas do que Dussel chama de “segundo holocausto da Modernidad. ‘os negros. Nunca havia ocorrido uma experiéncia de escravizagio em mimero tio elevado ¢ de maneira tio s stematicamente organizada, Da ‘mesma forma que os indios, a resisténcia dos escravos também foi continua. O maior registro provavelmente ¢ 0 do Quilombo dos Palmares, momento do importante lia constituigao histérica do Brasil, um exemplo vivo da re téncia negra, durante mais de um século, E interessante perceber que desde essa época, quando se defendeu no Brasil um. liberalismo que se prestasse & defesa da estrutura escravista, o direito por aqui (bem como, de uma forma geral, na América Latina) costumou ser um instrumento cego ao sofrimento popular, pois procurava harmonizar a existéncia da violéncia irracional com a “liberdade”” (para dentro obviamente), (© par, formalmente dissonante, escravismo-liberalism, foi, no caso brasileiro pelo ‘menos, apenas um paradoxo verbal. O seu consércio 86 se poria come coxtradigio real se se atribuisse ao segundo termo, lieralismo, um contesdo pleno ¢ concreto, ‘equivalent & ideologia burguesa do trabalho livre que se afirmou ao longo da revolugao industial curopéia, * Os homens piiblicos pronunciavam-se “contra a ingeréncia britinica no controle dos navios negreiros; medida que verberou como © atague mais direto que se poderia fazer & Constituigdo, & dignidade nacional, @ honra e aos direitos individuais dos cidadaos brasileiros”*” Assim, defendia-se um liberalismo que fosse atento, segundo se argumentava, as circunstdncias e peculiaridades nacionais. Os proprietirios de terras reivindicavam a sua “liberdade” de trocar, vender e comprar, mesmo que a “mercadoria” fosse os negros afficanos. “It was freedom to destroy freedom: dialética do liberalismo no seu momento de expansio a qualquer custo.”** O terceiro rosto deste “povo uno de rostos miltiplos”, como escreve Dussel, & 0 mestigo, ou os “fithos da Malinche”; aqui no Brasil poder-se-ia dizer: os “filhos de Tracema” Diferentemente dos indios, negros, asidticos e europeus, os mestigos no tém uma personalidade cultural e racial definida, Na verdade, so os tinicos que em 1992 fizeram 500 anos. Nao chegaram a ser oprimidos to violentamente quanto os negros ¢ indios, mas também foram objeto do saber antropoldgico racista, de cunho excludente e depreciante, *' BOSI, Alliedo. Op. cit, p. 197. SI, Alfredo. Op. cit, p. 209, sendo vitimas da situagilo estrutural de dependéncia cultural, politica e econémica, seja nacion,d ow internacional © quarto rosto, que completa 0 bloco social oprimido latino-americano pré- independéncia, é © dos criolles ou crioulos. Filhos brancos de europeus nas. indias, epresentam uma classe dominada, na Espanha, pelos Habsburgos ¢ pelos Burbées e, no Brasil, pelos reis de Portugal. Os crioulos foram os tinicos que tiveram uma “consciéncia feliz” da América, Os indios viam-na como terra de deuses ancestrais que agora estavam mortos; os afticanos, como uma terra estranha; e os mestigos, como terra em que eresceram, porém que era paleo de opressio e humilhagGes. Esses quatro rostos completam o quadro de um “bloco social” da América Latina colonial, um “sujeito histérico”, um “povo oprimido”. Tal “bloco social” tomou-se claro e delimitado mediante as lutas em prol das emancipagdes nacionais no século XIX. A dissolugdo do lago com a metrépole realmente foi uma causa defendida por todas as cl gTupos sociais. Os indios, negros e mestigos, em geral, que compunham a parcela pauperizada do povo, viam na independéncia a possibilidade de melhores condigdes de vida e de concretizagdo da justiga social; a elite oligérquica e burocrética, formada basicamente pelos crioulos, obviamente possuia interesses bem diversos. No entanto, foi ela que liderou estes, movimentos, utilizando-se do ideal liberal como base doutrindria e inspiradora. A partir da consolidagdo dos Estados Nacionais, formou-se um novo “bloco social dos oprimidos” e surgiram novos rostos que se justapuseram aos antigos. O quinto rosto, portanto, ¢ 0 dos camponeses. indios que abandonaram a terra, mestigos pobres, mamelucos € mulatos. Até quase a metade do século XX, a maioria da populagio latino-americana estava fixada no campo, sendo explorada e oprimida pelas oligarquias rurais, que, como se sabe, dominaram o poder politico e econémico nesse periodo. Os operarios, no contexto de nossa revolugo industrial atrasada ¢ dependente, surgiram como 0 sexto rosto, Passaram a ser oprimidos pela prépria estrutura capitalista dependente em que se insere a América Latina, Tal dependéncia refere-se 4 geréncia de um capital débil, que transfere estruturalmente valor ao capital “central” das metrépoles e, atualmente, as multinacionais. © capital “periférico”, portant, deve compensar a transferéncia de valor ao capital “central”, Tal “compensagao” acaba saindo do bolso do trabalhador, mediante 0 emprego barato de sua forga de trabalho, que se mantém sob uma. contraprestagdo minima devido 4, dentre outros fatores, existéncia de um “exército operario de reserva” que 0 fraco capital periférico ndo pode absorver. Tal “exército” compde o sétimo rosto: 0 dos “marginais” ou miseraveis, que, oferecendo o seu trabalho a pregos subumanos, forcam a permanéncia de uma miio-de- obra explorada e oprimida Emergindo dessa viagem as raizes do ser latino-americano, pode-se perceber duas coisas basicas. Primeiro, que este povo foi vitima de um proceso de modemizagdo que ocultou e oculta a violéncia praticada contra os seus pares, violéncia essa justificada por um discurso antropolégico racista © cuja historia € preciso ser resgatada para que se tenha nogdo da existéncia de um outro “sujeito histérico” que nao o europeu; segundo, que existe uma cultura sinerética popular, produto exclusivo das tradigées latino-americanas e de sua interagdo com outras culturas, existe uma particularidade e especificidade que nao se reduz as formulas das ideologias eurocentristas. O projeto de Enrique Dussel, sintetizado na Filosofia da Libertacdo, se propde a reivindicar o verdadeiro lugar da América Latina no contexto mundial: ‘A Filosofia da Libertagdo afirma a razdo como faculdade capa de estabelecer um didlogo, um discurso intersubjetivo com a razi0 do Outro, como razao alterativa Em nosso tempo, como raro que nega 0 momento irracional do “Mito Sacrifieal da Modernidade’, para afirmar (subsumido num projeto libertador) o momento ‘emancipador racional da ilustragio e da modernidade como Transmodernidade.” 7. OS GENOCIDIOS COLONIAIS E AS PRATICAS EXTERMINADORAS DOS SISTEMAS PENAIS Quando se trata da conquista da América, cabe referir-se continuamente 20 genocidio dos povos americanos, tanto fisico quanto cultural. Com o intuit de aprofundar essa nogdo, bem como de assinalar 0 papel que af desempenharam os sistemas penais latino- americanos, necessério se faz reafirmar algumas colocagdes de Eugenio Zaffaroni acerca do assunto. Cesare Lombroso ¢ sua obra simbolizam muito bem todo um pensamento cientificista, correspondente ao periodo neocolonialista, de cunho racista-biologista, que visava justificar a delingtigncia e 0 “primitivismo” dos habitantes das colénias mediante a auferigiio de uma inferioridade natural ¢ implicita a tais sujeitos. Tal discurso estava na boca de toda a elite oligérquica latino-americana do periodo, contudo, sobreveio a sua proibigao nos paises centrais em fungdo do nazismo. % DUSSEL, Enrique. 1492: 0 encobrimento do outro (# of Frankfurt. Trad. Jaime A. Clasen, Petripolis: Vozes, 1993, p. 17 zm do mito da modemidade). Conferéncias de 74 ‘Como na Segunda Guetra Mundial Hitler praticou na prOpria Europa aquilo que o apartheid criminolégicojustiticava para as regides marginais - especialmente latino- cuidadosamente arquivado.” Assim, 0 exercicio do poder periférico jé ndo poderia se racionalizar com os discursos centrais, como vinha sendo feito, Contudo, por falta de discursos teéricos na periferia, 0 velho discurso ctiminolégico lombrosiano continuou sendo defendido no ambiente académico, 0 que gerou uma contradigdo com os érgdos que procuravam um saber alternativo aquele que houvera sido censurado pelo “centro”. Tal contradigio gerou uma confusio teérica, um “saber discursivamente contraditério e confuso”, a0 qual Zaffaroni chama de “atitude”."' Observa ainda o penalista argentino que, muitas vezes, esta defasagem teérica procura ser explicada argumentando que se esté em um momento passageiro de subdesenvolvimento, a ser superado com 0 crescimento rumo ao paradigma central de desenvolvimento, A contradigdo teérica que emerge da “atitude” constitui um dos grandes motivos para a deslegitimagdo do sistema penal na América Latina, A base tebrica de nosso sistema penal refere-se a um modelo de ciéncia penal integrada, em que a ciéncia juridica td ligada & concepgdo geral do homem ¢ da sociedade. Tal modelo é bem sintetizado no que Alessandro Baratta chama de ideologia da “defesa social”, contemporanea @ revolugdo burguesa. O jurista italiano relaciona os principios que informam tal corpo de idéias: a) principio da legitimidade (0 Estado, enquanto expresso da sociedade, encontra-se legitimado para reprimir a delingtiéncia); b) principio do bem e do mal (0 crime € 0 mal, a sociedade constituida ¢ o bem); ¢) principio da culpabilidade (0 delito & o resultado de uma postura interior com alto grau de reprovacdo, pois ¢ contrétio aos “bons” valores e normas da sociedade); d) prinefpio da finalidade ou da prevengiio (a pena serve para prevenir 0 crime, ¢ nao sé para retribui-lo); e) principio da igualdade (a lei penal se aplica igualmente a todos); £) principio do interesse social e do delito natural (“o nacleo central dos delitos definidos nos cédigos penais das nagées civilizadas representa ofensa de intersses fundamentais, de condigdes essenciais a existéncia de toda a sociedade (...), apenas uma pequena parte dos delitos representa violavio de determinados arranjos politicos ¢ econémicos, e é punida em fungdo da consolidagdo destes - delitos artficiais”). © problema deste conceito de defesa social € que ele & aistérico © nio- contextualizado, ¢ coloca 0 conceito de crime em um sentido ntico. Na América Latina, © ZAFFARONI, Eugenio Rati, Em busca das penas perdidas: « perda de legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceigdo. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 78. © ZAFFARONI, Eugenio Rati. Op. cit. p. 79. © BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal: introdugio a sociolog penal. Trad, Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 41-42 juridico- “essencialidade” do conceito de crime vem juntar-se & “essencialidade” da condigdo “inferior” dos negros, mulatos, mestigos © indios. A ideologia da defesa social, ao considerar existéncia de valores absolutos, expresso harménica de um todo social, contra os quais se contraporiam as ages criminais, a delinguéncia, ignora a existéncia de uma vasta diversidade cultural, fato que é bem mais intenso na América, marcada por uma cultura popular sinerética. © principio da culpabilidade expressa bem esta redugao realizada pela ciéncia penal, pois quando considera determinada atitude reprovavel, 0 faz em fungdo da existéncia de valores e normas totais na sociedade, No Brasil, esti bem clara a presenga di .e prinefpio na reforma de 1984 do Cédigo Penal. Francisco de Assis Toledo, presidente da Comissao que elaborou tal reformulagdo, diz que, na reforma dos institutos do Cédigo Penal, “percebe-se, sem muito esforgo, a exclusio de aplicaggo da pena criminal a quem nio tenha contribuido censuravelmente com sua vontade € deliberagio para a lesdo de bens juridicos penalmente tutelados (...)”. [Grif nosso] Prosseguindo, Baratta relata, ponto por ponto, a desestruturagio de que foi objeto a ideologia da defesa social por parte da criminologia critica. Pela limitagao do espaco, esse assunto no serd tratado aqui, contudo, & interessante observar a desarticulago feita com relago 20 principio da culpabilidade, mediante a teoria das “subculturas eriminais”, fato que também é observado por Roberto Bergalli.™ Tal teoria mostra que os comportamentos muitas s considerados criminosos sio, na verdade, expressiio de peculiaridades econémicas © culturais de diferentes grupos sociais, e nao fruto de uma inferioridade biolégica ou de um desvio em face de um conceito absoluto de crime. Assim, 0 direito penal esconde, na realidade, sob a capa de valores gerais pressupostos, a selegdo de determinados valores, referentes a determinados grupos. A deficiéneia da teoria das subculturas eriminais, assinala Baratta, esti no fato de que ela toma a mé distribuigdo da riqueza e das oportunidades sociais, caracterizadora das diferengas valorativas, como um dado objetivo, no inquirindo acerca das causas desta mi distribuigao, Como se verd adiante, esta idéia totalizadora de sociedade imposta pelo modelo punitivo ir facilitar sobremaneita a agdo verticalizadora do sistema penal, que serd fatal para a integridade dos lagos comunitérios ¢ horizontais na sociedade, e, em iiltima instancia, facilitard o controle de nossa regio periférica, © TOLEDO, Francisco de Assis, rnefpios gerais do novo sistema penal brasileiro. In’ O direito penal e 0 novo Cédigo Penal brasileiro. Porto Alegre: Fabris; Assoviagdo do Ministério Publico do Rio Grande do Sul; Escola Superior do Ministério Piblico do Rio Grande do Sul, 1985, p. 13. © BERGALLI, Roberto. Observaciones ertias a las reformas penales tradiionales. In: Politica criminal y reforma dei derecho penal. Bogota: Temis, 1982, p. 251-2 Zaffaroni realiza uma divisdo entre trés tipos de colonialismo dos quais somos vitimas: 0 colonialismo mercantil (século XVI), 0 neocolonialismo ou colonialismo industrial (século XVID) ¢ 0 teenocolonialismo, Esta tiltima categoria corresponde a um contexto atual € futuro de uma revolugdo tecnocientifica. Todos esses trés. momentos constituiram, constituem e podem constituir priticas genocidas. Nos dois primeiros casos, trata-se de uma ideologia genocida alimentada pelo discurso da “inferioridade”, seja teolégica, seja cientifica. O terceiro caso ameaca ser ainda mais apocaliptico, © aumento dos avangos tecnolégicos nos paises centrais tende, além de provocar a redugao das classes operirias no “centro”, a colocar os paises periféricos em uma situagaio desesperadora, pois 0 que Ihes permite pleitear por algum respeito no intercdmbio internacional é, basicamente, a mio-de-obra barata e a abundancia de alimentos e de matérias- primas. Ambos os elementos, mais 0 primeiro do que o segundo, tendem a ser substituidos pelos avangos tecnolégicos, quadro que & agudizado pelas dividas extemas, impedindo 0 aciimulo de capital produtivo, Tudo isto gera recessio, diminuigo de salério e do percentual otgamentério destinado a obras sociais e a0 combate miséria, As principais vitimas dessa situagdo sdo a maioria menos favorecida do povo latino-americano, que tende a crescer em niimero, gragas ao recrudescimento demogritfico. Nao havendo modifieagdo ou reversio da stual tendéncia (..) estaremos fora de {qualquer competigfo internacional, com uma populagio jovem consideravelmente deteriorada em razdo de caréncias alimentares e sanitirias elementares, com cedueapio deficiente, com notéria marginalizagzo urbana em termos de pobreza absoluta, com uma grande redugio da classe operiria © com um sistema penal que anger mao da repressio mediante o aumento de presos sem condenagao0,” Essa situagdo daria ao sistema penal a incumbéncia de conter aproximadamente 80% da populagdo da regio, formada por uma legido de miseréveis. Obviamente, essa visio também corresponde @ um projeto genocida que, segundo Zaffaroni, devido & sua amplidio, podera ser bem mais nefasto que os outros dois. NNo caso de ndo desenvolvermos a capacidade de aceleragdo histérica,eaviamos, inevitavelmente, neste proeto de replicas teeno-oligarguicas, que representariam ‘© equivalent tecnocolonalista das replicas oligrguicas do neocalonalismno," © ZAFFARONI, Eugenio Rati. £m busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conecigio. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. [21 © ZAFEARONI, Eugenio Rati. Op. cit, p. 122. Zaffaroni considera pega-chave para evitar a verificagdo desta tecno-apocaliptica- implacavel realidade a neutralizago do sistema penal como instrumento de colonialismo, Dai se depreende a urgéncia de uma “resposta marginal no contexto da crise de legitimidade do exercicio de poder de nossos sistemas penais”.” Na primeira fase colonialista, a mercantil, o sistema penal nfo chegou a ser um instrumento to central de perpetuago do genocidio como o foi nos outros dois periodos subseqilentes. Nessa fase, s sistemas escravistas realizavam esse papel. No entanto, com 0 predominio do trabalho livre-assalariado a partir da revolucdo industrial, que marca o inicio do neocolonialismo, os sistemas penais, em especial 0 aparelho policial, passaram a ser 0 principal instrumento de controle © de manutengo do sistema instituido, ou seja, de manutengo do genocidio que tal estrutura representa, isto sem falar nas proprias préticas de cunho genocida empreendidas por esses sistemas, informados por um discurso antropolégico racista que intensifica a sua atua io destrutiva, Tais caracteristicas so contempladas contemporaneamente com toda a clareza: confrontos armados; fuzilamentos sem proceso (anuitas vezes incluidos em um confronto simulado); grupos parapoliciais; torturas; uso abusive de armamento; violéncia perpetrada contra os presos; indiferenca a doencas contagiosas contraidas pelos presos, que morrem sem tratamento; a atuagdo da policia urbana, que “atira primeiro e depois pergunta”, no que, muitas vezes segue as orientagdes dos proprios chefes de seguranga ete. Esse quadro piora muito mais em tempos de repressdo politica. A violéncia cotidiana do sistema penal recai sobre os setores mais vulnerdveis da populagdo, sendo que, na América latina, assume um aspecto étnico, “como a contribuigao do sistema penal para a extingio do indio ou 0 nitido predominio de negros, mulatos € mestigos entre presos ¢ mortos”.* As agéncias nao judiciais do sistema penal atuam mediante uma estrutura Aisciplinar, uma organizagdo militatizada, fato que no Brasil tomou-se mais palpdvel com 0 processo de militarizagdo das policias neste século."” Assim, a atuagdo desses érgos procura esquadrinhar toda a populagdo e manter sobre ela a sua presenga onipotente, um olhar hicrérquico, que num primeiro momento submete qualquer individualidade sua autoridade. Essa autoridade, ou poder, é recrudescida por varios fatores extemos, tais como a nao- ingeréncia dos érgios judiciais em muitas questdes - 0 que se faz por motivos politicos, por um “corporativismo de inéreia”, situago em que, visando & manutengdo de certo status, é © ZAFEARONI, Eugenio Rati. Op. cit p. 123 ZAFFARONI, Eugenio Rati. Op. cit, p. 125. ‘esse respeito ver BORGES FILHO, Nilson. Os militares no poder Paulo: Académica, 1994. ‘melhor “ndo se meter” -, as campanhas de lei e ordem ¢ o papel dos meios de propaganda, que a todo 0 momento exaltam a atuago policial e exibem, como sinal de triunfo sobre a criminalidade, uma pilha de cadaveres, “Nossos sistemas penais reproduzem sua clientela por um processo de selegdo ¢ condicionamento criminalizante que se orienta por esterestipos 17 c proporcionados pelos meios de comunicagdo de massa”.”” Converte-se 0 individuo em um “suspeito profissional”, Nao é preciso dizer quais seriam as caracteristicas dessas pessoas: basicamente pobres, pretos, mestigos ¢ mulatos. A carga estigmatica & to grande e poderosa que as pessoas que dela sio objeto tendem a introjetar o rétulo que Ihes € fixado, principalmente quando se trata de pessoas carentes. Seu contato com o sistema penal acaba gerando a continuagdo do mesmo em outros circulos, 0 estigma atinge todas as relag sociais. Como se ndo bastasse a estigmatizagio ¢ a violéncia, existe uma espécie de efeito regressive, observa Zaffaroni, resultante do encarceramento nas prises, uma forma de deterioragio do individuo, que passa a nao agir mais como um adulto, em virtude das condiga jo acaba tendo como feito uma as quais tem de se adaptar. Obviamente essa regr maior eficiéncia no condicionamento e na introjegdo do papel de delingiiente, Tais efeitos de deterioragdo do individuo objeto do sistema penal, assinala Zaffaroni, foram confundidos, pelo paradigma etiolégico, como sendo as “causas do delito”. Além do processo de criminalizagao, existe um “processo de policizagao”. Ambos jem sobre as camadas mais carentes da populagdo. Cria-se um esteredtipo do policial: ‘violencia justiceira, solugo dos conflitos sem necessidade de intervengo judicial e executivamente, machismo, seguranca, indiferenga frente 4 morte alheia, coragem em limites suicidas (...) ser vivo esperto ¢ corrupto”.”! A deterioragao desse individuo torna-se dbvia, pois nio se espera que alguém possa agir de forma racional e equilibrada com todas estas, “virtudes”, Além disso, ndo ha a menor assisténcia psicolégica e educativa para os policiais depois ou antes de enfrentarem causarem a morte; “presume-se que 0 individuo deve estar psicologicamente preparado para tudo isto, porque 0 contrario seria impréprio do macho que © policizado deve ser”.”” Esse esterestipo é alimentado nao sé pelos meios de comunicagio & pela sociedade em geral, mas também esté presente nas préprias academias de policia, A maioria delas ndo possui, em nenhum momento de seu curriculo, alguma mengao a direitos humanos, incentiva-se a postura violenta e combativa dos futuros policiais. ZAFFARONI, Eugenio Rail. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Trad ‘Vania Romano Pedrosa e Amir Lopes da Conceigéo. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 133, " ZAFFARONI, Eugenio Rati. Op. cit, p. 38. ” ZAFEARONI, Eugenio Rat. Op. cit, p. 140 © sistema penal, por gerar continuamente 0 antagonismo ¢ a contradigdo social, contribui d ivamente para o enfraquccimento ¢ a dissolugo dos lagos comunitirios, horizontais, afetivos e plurais. Os processos de deterioragdo examinados acima colocam como inimigos em potencial pessoas que pertencem as mesmas camadas sociais ¢ econdmicas, ‘Quanto maiores e mais graves forem nossos antagonismos intemos, maior seré 0 ‘condicionamento verticalizante transnacionalizado e menores serio, portanto, o$ loci de poder capazes de oferecer alguma resisténcia ao projeto tecnocolonialista. Uma sociedade verticalizada constitui, obviamente, uma sociedade ideal para ser mantida sempre dependente, impedindo-se qualquer tentativa de accleracio_histérica, ‘enquanto uma soviedade que equilibre relagées de verticalidade (auloridade) com relagses de horizontalidade (de simpatia ou comunitéria) apresenta-se mais resistente & dominagio neo ¢ teenocolonial.”” ‘A comunidade & uma forma de resisténcia anticolonialista, pois quem se apodera de um poder verticalizado dispoe apenas de um dos centros de poder. Alids, esse tipo de organizagao ja nao era bem-vinda desde o século XVI Foi lembrado o fato de que, no discurso de Gines de Sepulveda, por ocasido do debate de Valladolid, em 1550, o filésofo acusa a forma de vida comunitaria dos indios como um sinal de seu “primitivismo” e de sua “inferioridade”, Também constatou-se que esse tipo de organizagao, que perdura no mundo hodierno entre os indigenas, revelou-se como uma forma de resisténcia & aculturagdo de que foram vitimas. Contemporaneamente, mantém-se 0 plano comunitério © horizontal em um, nivel de marginalizagao. O espago ptiblico € © lugar da estatistica; as pessoas no se reconhecem como pessoas, mas sim como niimeros € como autoridades. No Ambito dos novos movimentos sociais, que passaram a ser caracterizados a partir da década de 70, do século passado, ocorre algo diferente e perigoso (para os controles centrais, & claro): as pessoas ¢ reconhecem no criam uma identidade comum, em virtude de sua situagdo de exclusio, ¢ espago piblico como pessoas, com problemas, qualidades e aspiragdes; tornam-se verdadeiros sujeitos, com voz prépria.”* CONCLUSAO Deparando-se com todos os problemas enfrentados hodiernamente pela América Latina, pode-se facilmente indagar até que ponto vive-se em uma “sociedade as avessas”, ® ZAFFARONI, Eugenio Rail. Op. cit, p. 145-146, A esse respeito ver WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralism juridico: fundamentos de uma nova cultura no iret. Sio Paulo: Alfi-Omega, 1994, p, 107-153; SOUZA JUNIOR, José Geraldo de. Movimentos sacisis cemergéncia de novos sujetos: © sujeito coletiva de direito. In: ARRUDA JUNIOR, E. L. de. (Org). Ligdes de direito alternativo, Sto Pavlo: Académica, 1991, p. 131-142. como assinala Las Casas; ou em uma “sociedade melada”, no dizer de Bruit; uma “sociedad marginal”, na observag Zaffaroni, ou, ainda, como quer Dussel, em uma sociedade na qual corre 0 “ocultamento do outro”. Para se entender melhor 0 que Bartolomé de Las Casas chama de “sociedade as avessas”, necessério € tratar 0 pensamento politico do frei dominicano, cujas idéias nesse campo superaram as de seus contemporineos, além de anteciparem muitas consideragdes libertérias da teoria politica moderna. O bispo de Chiapas, bem como os demais pensadores de sua época, foi influenciado pela corrente filoséfica que vai de Aristételes a Santo Tomas de Aquino. Em um primeiro momento, a teoria aristotélica era mal vista na Europa, pois constituia numa ameaga a visio agostiniana de mundo, entio dominante. Enquanto para Aristételes a sociedade civil era uma criago humana direcionada ao proprio homem, para Santo Agostinho era apenas uma transigao para a vida eterna, Obviamente, ndo foram as idgias de Aristételes acerca da escravidio que influenciaram Las Casas (como se sabe, quem foi influenciado por estas idéias foi Gines de Sepilveda). A parte do pensamento aristotélico que influenciou o padre dominicano foi aquela que dizia respeito & submissdo de todas as coisas ao desenvolvimento da natureza, encaminhando-se para a perfei¢ao ontolégica, incluindo-se af o préprio homem, que, sendo um animal politico, teria o seu progtesso para a justica e a felicidade dependente desse curso natural de todas as coisas. Para Santo Tomds, natural seria aquilo comum a todos os homens, seria a esséncia da espécie humana, Nessa idéia Las Casas baseou o principio da igualdade entre todos os seres humanos, sem importar seu grau civilizatério, Além disso, partindo da cléssica hierarquia das leis proposta por Santo Toms de Aquino, o frei entende que a lei natural seria ditada pelo proprio intelecto humano, seria a sua manifestagio justa de racionalidade. Tal entendimento seré usado para justificar a legitimidade das sociedades politicas dos indios, criada a partir da propria vontade justa e reta razio dos mesmos. Para Francisco de Vitoria, no entanto, a sociedade seria uma criago da vontade divina, 0 que permitia considerar a sociedade indigena como pré-politica, pois nao conhecia Deus. © tomismo, no século XVI, fazia parte de um escolasticismo nao ortodoxo, surgido em virtude da emergéncia do tuteranismo e do pensamento maquiavélico, considerados pela igreja ameagadores & sua moral. Assim, dizi se em contraposigao a Lutero, para quem todas as leis vinham diretamente de Deus, que uma coisa era a lei dos homer outra era a lei divina, Aquela s6 estaria vinculada a esta por intermédio da lei natural, e no diretamente, como queria Lutero; a partir dessa constatagdo, para se chegar a uma idéia de consenso necessério entre os homens era apenas um passo, Tal conclusto foi acatada em parte pot Molina, Sudrez ¢ Vitoria, componentes da Escola de Salamanca, mas foi Bartolomé de Las Casas quem desenvolveu esse entendimento as iiltimas conseqtién , superando 0 pensamento de seus contemporineos, afirmando que o dominio espanhol sobre a América nao cra legitimo, pois nio estava apoiado no consenso dos indios. Enquanto Vitoria ¢ Sudrez partiam da idéia tomista de que 0 povo, quando elege um soberano, aliena sua soberania, Las Casas, partindo de Bartolo de Sassoferrato, um pensador italiano da baixa idade média, afirma que o povo apenas a delega, que continua sendo o detentor ¢ 0 titular do poder. Naturalmente, o poder de Castela sobre 0 “Novo Mundo” estava fundado na concessio papal. Para Las Casas, isto significava que o poder espiritual era mais valioso maior que o temporal, ¢ que, antes de estar fundado no Papa, que era sé um representante de Deus, estava alicergado no direito natural, em Deus e no povo. Ou seja, 0 poder politico da Espanha s6 poderia ser exercido sobre a América se esta antes se encontrasse sob o dominio espiritual da Igreja, dominio esse que deveria passar sob 0 consenso indigena, Afirma Las Casas em sua Treinta proposiciones muy juridicas: ‘Todos os res e senhores naturais,cidades, comunidades e povos daquelas indias so ‘obrigados a reconhecer os reis de Castela como universtis e soberanos senhores © imperadores da forma dita, depois de tet recebide, por sua propria e livre vontade, nossa santa f& € 0 sacro batismo, © se, antes que’o recebam, no 0 fazem © nem {querem fazé-lo, nfo podem ser punidos por nenum juiz ou justia."* Além disso, contrariamente ao que pensavam muitos padres ¢ doutrinadores, para © padre dominicano a evangelizagao, conforme expressa em Del sinico modo, deveria ser sutil, delicada, compreendida pelos destinatirios da mensagem, adorada por eles, deveria respeitar © direito natural dos indios como pessoas livres e soberanas, Héctor Hernan Bruit defende a tese de que Las Casas, partindo da teoria de Bartolo sobre a pluralidade de autoridades politicas soberanas, defendia uma relagao federativa entre Castela © os reinos indigenas, pela qual ao reino espanhol caberia 0 poder central, mas sem autonomia para intervir na jurisdi¢ao dos governantes indigenas (estes 36 deviam pagar um tributo de forma indireta, isto é, ao seu principe, que depois prestaria contas a Castela). 1 | relagdo federativa passaria a existir depois de um Tratado, Contudo, nesta idgia de federagio permanece uma inconsisténcia com o futuro perspectivismo religioso de Las Casas, pois o dominio absoluto ainda seria da religido crista, personificada na figura do Papa ® BRUIT, Héctor Heman. Bartolomé de Las Casas ¢ a simulagdo dos vencidos: ensaio sobre 2 conquista hispanica da América. Campinas: Unicamp; S30 Paulo: Iluminures, 1995, p. 102. Mas sabe-se que para o dominicano chegar & inovagao do perspectivismo teve de passar por um longo e penoso proceso de desilusdes ¢ lutas, Diante da pouca eficécia da praticidade de suas idéias, que resultou, entre outras coisas, na criagdo de uma legislagao de protegdo aos indios, como as Leis de Burgos, de 1512, ss Leis Novas, de 1542, escreve o bispo de Chiapas em sua obra Los tesoros del Peri: ‘Nenium rei, senhor, povo ou pessoa privada ou particular de todo aquele mundo das Indias, desde o primeiro dia de sua descoberta até o dia de hoje, 30 de agosto de 1562, reconhecew nom aceitou de maneira verdadeira, livre ¢ juridica, a nossos inclitos eis da Espanha como senkores e superiores, nem aos delegedos, cauilhos ‘ou capitis enviades em ome do rei, ea obedigncia que até hoje les tém prestado e ‘agora prestam, é e sempre foi involuntria coxgida © poder espanhol nao era legitimo, no estava apoiado no consenso dos povos indigenas. A obediéncia foi imposta pela forga, ndo havia verdadeiramente direito. A lei era essencial; para Las Casas, deveria identifi com a justiga, como defendia Domingo de Soto, Os homens estavam submetidos @ lei, mas s6 porque ela era produto da vontade coletiva, Discursa Las Casas no tratado De Regia Potestade: Toda autoridade publica, rei ou goverante, de qualquer reino ou comunidade politica, por soberano que seja, no tem liberdade nem poder para mandar nos 0$ arbitrariamente © ao capricho de sua vontade, sendo de acordo com as leis ‘da comunidade politica. E assim que as leis devem ser promulgadas, para promover ‘0 bem-estar de todos os cidadios e munca em prejuizo do povo, Devem ajustar-se a0 inmeresse pilblico da comunidade, e nlo ao conteitio, a comunidade, i leis, Portant, ninguém tem poder para estabelecer coisa alguma que prejudique 0 povo, O rei ou governante no manda sobre os stditos na qualidade de homem, sendo como ‘ministto da lei, Assim, nfo ¢ dominador, mas administrador do povo por meio das leis. Levam o titulo de teis, porque eumprem as leis em consciéneia, mandando © ue & justo © proibindo o que & injusto; e, assim, os cidadlos sBo livres porque no ‘obedecem a um homem, seni a lei.” Ressalte-se aqui que uma lei que ndo contemplasse o bem da comunidade nio era considerada como tal pelo padre dominicano, No entanto, para Santo Tomas e Francisco de Vitoria, o rei nao estava obrigado a obedecer a lei. Para Las Casas, 0 bem comum no era um conceito abstrato, ele o entendia como a necessidade de dividir as tarefas produtivas, incluindo a fungo de governar a comunidade. ‘A idéia do bem comum como a finalidade de governo ¢ de convivio social veio, no pensamento lascasiano, de Remigio de Girolami, pensador do século XIV. Com relago as idéias politicas de Las Casas, diz Bruit: "BRUIT, Héctor Heman. Op. ct, p. 108 BRUIT, Héctor Homan. Op. cit, p. 106-107, Em Algunos principios, outro dos grandes tratados, © dominicano diseute 0 pacto politico entre governantes ¢ governados, O povo delega a soberania ao rei, para que teste governe em fungio do bem comum, finalidade que autoriza o governante a dilar leis que podem limitar os direitos individuais, mas nunca os dieitas coletivos (.) AAs preocupapies de Las Casas com as liberdades piiblicas ¢ individuais, com os fundamentos juridieos da sociedade que se organizava, com o desejo de ver na ‘Anirica uma sociedade de direito e justiga social, de respeito aos direitos humanos, configura sua visto dos destinos do continente.” Assim, para Bartolomé de Las Casas, uma verdadeira sociedade constituia-se sobre esses prinefpios, em que a soberania ¢ a dignidade do indio, enfim, a sua propria condigdo de sujeito, eram respeitadas. O frade, ao relatar a destruigio das indias, alertava para um perigo que se ptojetava no futuro: a constituigao de uma “sociedade as avessas”, No entanto, conforme chama a atengdo Bruit, ele apenas viu ou quis ver um dos lados da moeda na construgdo dessa sociedade invertida: a ago dos espanhéis. Nao levou em consideragao a agdo velada dos indios, a “melagdo” da nova sociedade. Mas, apesar disso, a0 vislumbrar a de uma sociedade que nfo péde vingar por nio estar fundada no consenso dos {indios, 0 dominicano acabou colocando os amerindios como causa central do fracasso da nova sociedade, fracasso que ficou explicito nfo s6 na falta de didlogo e entendimento entre indios © europeus, mas também no mau governo € na corrupg3o que tomou conta da colénia, caracteristica anotada por quase todos os cronistas Tais conceitos de “sociedade as avessas” e “sociedade melada” vem desembocar tanto na idéia de “ocultamento do outro”, do “ser” latino-americano, de Dussel, quanto na idéia de “marginal”, em Zaffaroni.”’ O penalista argentino enuncia quatro concepgdes do termo aludido que se complementam, formando uma ideologia de exclusdo. “Marginal”, primeiramente, r nossa localiz jo periférica no poder planetirio; depois, diz respeito a relagdo de dependéncia com o poder central; também se reporta 4 imensa maioria a populagao latino-americana, 4 margem do poder ¢ vitima da violéncia do sistema penal; por fim, indica @ configurago cultural de “‘marginalizagio”, imersa em um profundo sincretismo ¢ fabricada pelos processos de colonizagdo. Um dos piores efeitos dessa configuragdo, observa Zaffaroni, é a estigmatizagio de ‘qualquer pensamenta contra a maré na regio marginal como meio de se evitar a contaminagio e de se garantir a aprovagdo dos controles de qualidade das agéncias ccentrais. Portanto, a dificil situagio gerada por este pensar contra a maré marginal ® BRUIT, Héetor Heman, Op. ct, p. 108-109 ® ZAFFARONI, Eugenio Rail. £m busca das penas perdidas: a peda de legitimidade do sistema penal. Trad Vinia Romano Pedrosa e Amit Lopes da Concegio, Rio de Janezo: Revan, 1991, p. 164-166, produ, freqientemente, uma vertigem capaz de levar os autores de esforgos desta ratureza e s© apegarem a posigdes completamente antagGnicas © negedoras das propria bases de seu pensamento mais produtivo, Para o autor de Em busca das penas perdidas, a garantia de que 0 pensamento produtivo nio se perca na vertigem é a sua fundamentagdo na pessoa, na vida humana como valor éntico, Nesse sentido, 0 préprio Zaffaroni observa o seu distanciamento do pensamento de Foucault, na medida em que configura posicdo central ao homem, ¢ nao o considera um. mero produto do poder, despido de sua condigao de sujeito pensante. Esse tipo de critica que se faz ao pensamento de Foucault, isto é, de que o poder, na sua concepgao, seria uma espécie de “ser etéreo”, despersonalizado, di margem a muitas polémicas, que aqui nao se dispoe de espago para aprofundar. De qualquer forma, chamando a atengo para a urgente necessidade de neutralizagao do sistema penal como executor de priticas genocidas-colonialistas, bem. como propondo um novo papel a criminologia, qual seja, o de instrumentalizagdo da decisio politica de salvar vidas humanas e de diminuir a violéncia politica em nossos paises, Zaffaroni finca o pé no valor vida e no valor humanidade, Com as reflexdes presentes neste texto, desejou-se chamar a ateng@o para a correlagdo entre: 0 genocidio fisico e cultural da colonizagio americana (em sentido amplo), tendo-nos detido mais no primeiro periodo, em virtude do direcionamento que este imprimiu para os periodos subseqiientes; 0 saber antropolégico de cunho racista que se implantou no espa 10 colonial, servindo de fundamento & disciplina da escravidio, e que permanece até hoje, informando a disciplina dos sistemas penais latino-americanos; e, por fim, a prética violenta ¢ genocida do modelo penal latino-americano. Enfim, como resultado dessas correlagdes, percebe-se que, enquanto na América Latina persiste a desconsiderasao pela imensa maioria da populagdo miserdvel e oprimida, continuar: 4 sob a vigéncia de uma sociedade as avessas, em que 0 “outro” ndo tem espago na “comunidade de comunicagdo ideal”, em que a alteridade latino-americana é encoberta por uma cultura eurocentrista, nossa heranga indfgena € ignorada, espezinhada por uma configuragao cultural de marginalizagdo. Ei importante ter consciéncia de todos esses processos, pois s6 assim se poder atingir uma “transmodemidade”, um “sétimo sol” em que ‘no mais brilhe o vil metal, mas sim a vida humana, o amor pelo préximo e pelo distante. 9, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS, © ZAFEARONI, Eugenio Rati. Op. cit p. 170 ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na politica brasileira, Rio de Jancito: Paz © Terra, 1988, ATTALI, Jacques. 1492: Os acontecimentos que marcaram o inicio da era moderna. Trad. 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