Tona do Vazadouro

Como se fosse aquele personagem

de Borges que, alheio contingncia,

buscava a plenitude da linguagem

assim adentro a tua coexistncia;

o teu prprio milagre mais secreto;

num vrtice do tempo, a convergncia

dos tempos anteriores ao trajeto

que perfizera junto com o teu mestre

quando na selva escura entrou inquieto.

Pressinto que a ti fora o amor terrestre

que fizera ansiar pelo divino

e entrar pelo caminho alto e silvestre.

Embora eu saiba, grande florentino,

que devotara a vida sua palavra

e escrever, mais que amar, foi teu destino,

sinto virem as coisas que o amor lavra

da tua destra mo (ou da sinistra?)

para tornar a nossa alma escrava

das imagens eternas que ministra

(quo fortes que as imagens do Evangelho)

nesse agora do tempo circunscrita.

O Inferno que narraste ainda espelho

do mundo que pascemos sob o imprio

de escuros tons de negro e de vermelho

a transformar a tarde em cemitrio

de toda a luz do tempo que passara

a incorporar a gama do mistrio

da noite. A aurora coisa rara.

To rara quanto a luz da conscincia

humana cuja a poesia aclara.

A aurora o novo incio da existncia

comeam a clarear os precipcios

da alma: promessa de inocncia!

(Mas dentro da manh moram os vestgios

da conscincia morta a qual anseia

a infiltrao na alma como um vcio.)

Difcil acompanhar tua odisseia

teus passos na selvagem rude estrada

de espritos que a expiao cerceia.

 como se a alma fosse vergastada

pelas formas de um mal nunca insepulto

que pode ser verdade ou no ser nada.

Travs do triste mundo: eu vejo o vulto

de tua forma humana, estranho Ulisses

que anseia por galgar o absoluto.

E como a um sonho que eu prprio erigisse

vou vencendo as paragens desse inferno

do mesmo modo que vencera e disse.

Meu sonho sendo, claro, subalterno

do teu verbo de fogo que ilustrara

de modo secular o fogo eterno.

O fogo singular com o qual gravara

seus smiles como uma cicatriz

do tempo que no cicatrizara

esse poesia extrema que nos diz

de teu ntimo abismo, tua ascese

sntese suprema: Beatriz.

Como letras de autor que s pudesse

na areia gravar o seu universo

(e sempre a gua da praia desfizesse

seu difcil labor, o duro verso

o instante essencial de sua vida

no oceano do tempo submerso)

assim sinto passarem nos meus dias

misrias de linguagem que a memria

no guarda como sua to divina.

Porque a poesia mesma rara e inglria:

No espao que habitamos vive pouco.

E embora viva a atravessar a histria

S a ouve o simultneo sbio-louco.