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© Xam Editora 2? edigdo — 1996 ISBN 85-85833-13-0 Edigao: Expedito Correia e Carlos Alvarez Capa: Expedito Correia (sobre caricatura de Gramsci publicada no jornal L’Ordine Nuovo) Revisio: Alvaro Bianchi Traducao: Silvana Finzi Foa (“Gramsci e Trotski”) Editoragio Eletrénica: Xama Editora Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) O Outro Gramsa / Edmundo Fernandes Dias ... | et al.|. — Sao Paulo : Xama, 1996. Outros autores: Lincoln Secco, Osvaldo Coggiola, Roberto Massari, Ruy Braga. 1. Gramsci, Antonio, 1891-1937 2. Politica - Filosofia 1. Secco, Lincoln. Il. Coggiola, Osvaldo, 1950- Ill. Massari, Roberto. IV. Braga, Ruy. 96-0430 CDD-320.01 Indices para catalogo sistematico: 1. Politica : Filosofia 320.01 Xama VM Editora e Grafica Ltda. R. Loefgreen, 943 — Vila Mariana 04040-030 Sao Paulo — SP Tel/Fax: (011) 575-2378 Impresso no Brasil abril /96 INDICE Apresentagao, 7 Hegemonia: racionalidade que se faz hist6ria, 9 Edmundo Fernandes Dias Crise e estratégia em Gramsci, 81 Lincoln Secco Gramsci: histéria e revolugao, 97 Osvaldo Coggiola Sobre a leitura dos textos gramscianos, 105 Edmundo Fernandes Dias Gramsci e Trotski, 123 Roberto Massari Risorgimento, fascismo e americanismo: a dialética da passivizagéo, 167 Ruy Braga Gramsci no Brasil: 0 rabo do diabo, 183 Edmundo Fernandes Dias Bolchevismo, Gramsci, conselhos, 193 Osvaldo Coggiola Apresentagao ite ik professores da USP e da Uni- camp foi posstvel claborar a presente coleténea que, longe de pretender es- gotar as discussdes baseadas nos textos de Antonio Gramsci, na verdade cria novos focos de polémica. Os textos de Edmundo Fernandes Dias (professor doutor do Depar- tamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas) e Ruy Braga (pés-graduando em Sociologia e pesquisador do Centro de Estudos Marxistas), da Unicamp; Osvaldo Coggiola (professor livre-docente do De- partamento de Histéria da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Hu- manas) e Lincoln Seco (pés-graduando em Histéria Econdmica e membro do Nicleo de Estudos de O Capital, do PT/SP), da USP; além de Roberto Massari (editor; membro da Rifundazione Comunista, da Itélia), estabelecem um terreno amplo, mas comum, de argumentacao enfocando uma visio pouco comum das idéias gramscianas. Nos textos deste livro, nos deparamos com um outro Gramsci, 0 estrategista da revolugio, dissecador dos tecidos da velha sociedade que ele quer transformar, preconizador da criag4o de conselhos operdrios, que pro- cura aprender com as transformacies do capitalismo do seu tempo (ameri- canismo, fordismo) para aperfeicoar 0 projeto de mudanga social. Em conseqiiéncia, temos a satisfagéo de oferecer ao publico uma leitura que resgata a enorme atualidade do texto gramsciano, a ponto de jogar luz sobre problemas contemporaneos como a reestruturagao tec- nolégica e produtiva, e suas conseqiiéncias sociais, temas de interesse cada vez, maior entre trabalhadores e intelectuais brasileiros. Os editores Siglas utilizadas das obras de Gramsci: MPE — Maquiavel, a politica e 0 Estado moderno CDH — Concepgio dialética da histéria LVN — Literatura e vida nacional IOC — Os intelectuais e a organizacao da cultura QC — Quaderni del carcere PP — Passado y presente R—II Risorgimento Hegemonia: racionalidade que se faz historia’ Edmundo Fernandes Dias U. boa parte da literatura que se pretende marxista sobre hegemonia, que reivindica 0 ponto de vista gramsciano, parte da centrali- dade da questao das aliancas de classe na sua “imediaticidade” politica. Tra- balha abstratamente a hegemonia como capacidade de uma classe de subordinar/coordenar classes aliadas ou inimigas. Pensa-a, também, a partir da perspectiva do partido, enfatizando excessivamente os mecanismos especificos da intervencao politica, desconhecendo quase sempre as deter- minagdes mais complexas dessa intervencio, mesmo ao nivel da imediatici- dade. Essas maneiras de examinar esse conceito sao restritivas e limitadoras da potencialidade do esforgo tedrico e pratico. A hegemonia é pensada ins- trumentalmente, como alids se faz com o Estado, os partidos, etc, vistos em geral como “efeitos” de uma determinagao mecanica do Econémico (em maitiscula para acentuar que essa determinagdo nao é, “em wiltima instan- cia”, mas quase que expressamente a tinica). Essa instrumentalizacio é particularmente vis{vel naqueles que tra- balham a hegemonia como mera obtengio de um dominio ideolégico. Chega-se mesmo a identificar os dois termos, reduzindo e abastardando a hegemonia, em casos mais graves, a uma eventual maioria nos processos Politicos. Aqui, para além das questdes citadas, trabalha-se com uma idéia de politica, democracia, sociedade civil, etc, com contetidos quase que pu- ramente liberais afastados do campo teérico-pratico do marxismo, quando no em aberta oposigao a este. * Versdo modificada e ampliada do artigo "Hegemonia: nova civilta ou dominio ideolégico”, publicado pela revista Historia & Perspectivas, n® 5, junho-dezembro de 1991, Universidade Federal de Uberlandia. HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA Para nés, diferentemente, a questdo central é o nexo entre a capaci- dade de construgio de uma visio de mundo (Wellanschauung) e realizagso da hegemonia. A capacidade que uma classe fundamental (subaltema ou dominante) tenha de construir sua hegemonia, decorre da sua possibilidade de elaborar sua visdo de mundo propria, auténoma. Esse processo de “cons- trugio da hegemonia”, que ocorre no cotidiano antagénico das classes, decorre da sua capacidade de elaborar sua visio de mundo auténoma e da centralidade das classes. Essa centralidade, tomada como “sintese de muiltiplas determinagses”, e no como um a priori légico, como um “efeito da estrutura”, € determinante no exercicio da hegemonia. Diferenciar-se, contrapor-se como visio de mundo as demais classes, afirmar-se como pro- jeto para si e para a sociedade; ser diregao das classes subalternas e domi- nadas na construgao de uma nova forma civilizatéria. Para tal, 6 fundamental ter a capacidade de estruturar 0 campo de lutas a partir do qual ela poderé determinar suas frentes de intervencao e articular suas aliancas. A hegemonia é a elaboragao de uma nova civilla, de uma nova civi- lizagéo. E uma reforma intelectual e moral. O que esté em questao é a criagéo de um “terreno para um ulterior desenvolvimento da vontade coletiva nacional-popular, em diregio a realizagao de uma forma superior € total de civilizagao moderna” (1560, MPE 8-9) da qual o partido dessa classe deve ser o porta-voz.e 0 organizador. Ao admitirmos essa formulagio © partido) nao estamos colocando a hipétese dos regimes de partido tinico. Uma classe muitas vezes aparece “representada” por varios partidos mas nos momentos decisivos a centralidade de um deles aparece claramente. Por outro lado se falamos em processo de subordinacio/coordenaco dos aliados e dos adversérios pensamos que também estes se representam por partidos.? proceso da hegemonia se realiza tanto no plano do movimento quanto no plano das instituigdes. Nao faz, assim, 0 menor sentido reduzir Gramsci a um teérico da cultura ou das “superestruturas”? Estamos falando da construgéo de uma racionalidade nova, distinta da anterior? projeto de “elevacao civil dos estratos deprimidos da sociedade”. (1561, MPE 9) Trata- Se da transformagao das condigées de existéncia das classes subalternas. Esta re- forma intelectual e moral deve, necessariamente, estar ligada a um Programa de reforma econémica que é, exatamente, o seu modo concreto de apresentar-se. Pensar-se a construgao de uma nova forma social, uma nova sociabilidade, $6 € posstoel se se pensam conjuntamente as formas especificas de sua realizagio — a um tempo material e simbolica. EDMUNDO FERNANDES DIAS u" O partido “elemento complexo de sociedade no qual jé tenha inicio ® concretizar-se de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcial- mente na ago” (1558, MPE 6)* tem que desenvolver todo o sistema de re- Jacdes intelectuais e morais. Como esse processo implica, objetivamente, na transformagao do conjunto das relagdes sociais, 0 partido deve tomar 0 posto “nas consciéncias, da divindade ou do imperativo categérico, (e) torna(r)-se a base de um laicismo moderno e de uma completa laicizagio de toda a vida e de todos os costumes.” (1561, MPE 9). © partido deve assumir @ perspectiva da construgao de uma visio de mundo, nova e total, que desconstruindo a anterior, se coloque como o horizonte no qual a nova ra- cionalidade possa instalar-se. Deve colocar-se como referéncia para a totali- dade social e apresentar-se, forma laica e imanente, como projeto de universalidade, ocupando o espaco anteriormente centralizado pela religiao, S6 esta — e seus aparelhos — no interior da racionalidade anteriormente dominante poderia colocar-se ao mesmo nivel no qual o partido, 0 “mo- derno principe”, deve colocar-se> O partido, para realizar essa tarefa de desconstrucio/construgao, deve mobilizar as vontades. Organizé-las, dar-lhes homogeneidade ¢ sen. tido. E nao pode deixar de fazé-lo. Quando se fala em homogeneidade nao Se pensa em apagamento de diferencas, mas, pelo contrério, na construgao do referencial teGrico-prético que seja a um s6 tempo norte politico e instru- mento de anilise e criagdo. O préprio das visées de mundo das classes subalternas € o fragmentario, o errdtico. Cabe ao partido, entendido como intervengao consciente na histéria alterar essa situagio, construindo uma nova universalidade, um novo projeto de civilizagao e de sociedade. Aqui, a relagao partido-filosofia da praxis esta claramente pensada na sua forma mais universal. A relacao entre o partido, organizador (potencial) de uma vontade coletiva nacional-popular, e 0 conjunto da totalidade do social — organi- zacio/desorganizacio das classes e forcas. sociais em presenca, grau de consciéncia/inconsciéncia que cada uma delas tenha sobre si mesma — Passa necessariamente pelo conhecimento da estrutura, Esta jamais pode ser pensada como exterioridade em relagio as praticas das classes, que so pro- dutoras e produtos da estrutura, e no meramente seus efeitos. A compreen- Sdo correta da relacao de forcas, das praticas classistas estruturais, antagonica ¢ desigualmente articuladas, no interior de uma conjuntura é dada pela anélise dessas relacées estruturais. Para Gramsci, a anilise dessa relagio deve mover-se no ambito de dois princfpios: “1) que nenhhuma sociedade se coloca tarefas para cuja solucdo Mo existam jf as condicdes necessérias e suficientes, ou elas ndo estejam em ” /HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA vins de aparigio e de desenvolvimento; 2) que nenhuma sociedade se dis- solve e pode ser substitufda, sem antes ter desenvolvido todas as formas de vida que esto implicitas nas suas relagbes” (1579, MPE 45)” Longe de ser uma proposigio de corte evolucionista essa afirmagao chama a ateng4o para os elementos internos do processo revoluciondrio que é um permanente descontruir-construir relagées sociais, exigindo sempre a atualidade dos antagonismos para a sua realizado. O importante a ressaltar 6 que, embora se possam “saltar etapas”, mesmo esse salto depende das condigées presentes na histéria, tal como Marx, luminosamente, nos ensinou nas primeiras frases do 18 Brumério de Luis Bonaparte. Trata-se de saber distinguir na estrutura os movimentos organicos € os conjunturais. £ exatamente a partir daf que se pode analisar nao apenas a natureza da sociedade mas também o cardter das crises. A duragio de uma crise determinada pode mostrar “que na estrutura se revelaram (chegaram a maturidade) contradicées insandveis, e que as forcas politicas atuantes positivamente 4 conservagao e defesa da prépria estrutura se es- forgam ainda por sané-las, dentro de certos limites, e superd-las. Estes es- forgos (...) formam o terreno do ‘ocasional’ sobre o qual se organizam as forgas antagénicas que tendem a demonstrar (...) que ja existem as condigdes necessarias e suficientes para que determinadas tarefas possam e devam en- tao ser resolvidas historicamente”. (1580, MPE 46) A vida social pode e deve ser entendida a partir da existéncia de duas formas de estruturacao. Uma que Gramsci chama de organica e a outra de conjuntura. Na vida social, e isto é uma distingao a nivel metodoldgico, existe uma estrutura que se atualiza em conjunturas — entendidas como o conjunto articulado e sobredeterminado das contradigdes existentes em um dado momento. Lembremos, contudo, que a estrutura ndo é um ente esttico. Por isso, falamos em estrutura e em estruturacio permanente. As leis da sociedade sao tendenciais. Em um dado momento, essas formas estruturantes/estruturadas configuram o campo de possibilidades a ser escrito/reescrito pela intervengao das classes sociais, das forgas sociais, en- fim, pela vontade humana historicamente concretizada. Estamos longe de pensar a estrutura como uma esséncia oculta, como um deus ex machina, ow como um conjunto de constantes que se revelaria desde que, como querem 08 empiristas, sejam eliminados os elementos circunstanciais que dao a forma especffica (atual) de um dado fenémeno. Atuar na sociedade implica fazer permanentemente a avaliagéo dos movimentos dessa totalidade, dessa estrutura. O que é especialmente ne- cessério para os que se colocam como tarefa a organizagao da vontade coletiva nacional-popular. O problema de tal avaliagao reside exatamente EE an EDIMUNDO FERNANDES DIAS a” em saber como se combinam o organico e 0 ocasional. Pode-se ter uma visio que sobrevaloriza as “causas mecdnicas” (idem, idem), uma perspectiva economicista tipica. A partir dessa estratégia, pode-se chegar a uma perspec- tiva paralisante que coloca a afirmagao da necessidade do actimulo de forgas como busca permanente de mais e mais aliados (mesmo que os presumiveis “candidatos” a tal posto reiteradamente recusem a alianca), andlise presente ha estratégia da maioria dos PCs stalinistas. Ou uma visdo em que se $o- brevalorizam os componentes voluntaristas de intervencao no real: a afir- magao de que a intervengao de uma vanguarda teérica e politicamente consciente pode e deve interpretar 0 desejo das massas, mesmo que uma andlise mais profunda da estrutura nao revele 0 movimento dessas massas no sentido de uma ruptura revoluciondria. Exemplo tfpico dessa voluntarista foi a tatica classe x classe, desenvolvida pela III Internacional no final dos anos 20 e decididamente combatida por Gramsci, no cércere. A flutuagio entre essas duas “andlises” feita pelo conjunto dos partidos da III Internacional determinou nao apenas a ineficdcia da sua agio mas, e prin- cipalmente, 0 seu isolamento no interior das sociedades em que atuavam. O problema esté na correta avaliagdo da relagdo de forgas: “se 0 erro é grave na historiografia, ainda mais grave se torna na arte politica, quando se trata, néo de reconstruir a histéria passada, mas de construir a presente e a futura: os préprios desejos e as prprias paixdes, piores e ime- diatas, so a causa do erro, enquanto elas substituem a anélise objetiva e imparcial, e isto acontece ndo como ‘meio’ consciente para estimular a agio, mas como auto-engano” (1580-1, MPE 47). A correlacgao de forgas se da em trés momentos No primeiro, a classe existe objetivamente. Essa objetivagao nao se traduz necessariamente em existéncia polftica plena. Trata-se da estru- turagdo econémica da sociedade, onde essa relagao de forcas, objetiva e in- dependente da vontade dos homens, permite “estudar se na sociedade existem as condigdes necessrias e suficientes para a sua transformacao, isto 6, permite controlar o grau de realismo e de realizagdo das diversas ideolo- gias que nasceram no seu préprio terreno, no terreno das contradigées que ela gerou durante o seu desenvolvimento” (1583, MPE 49). Um segundo momento, politico, em que as classes vivem um pro- cesso econémico-corporativo, em que a classe esté estreitamente limitada aos ‘seus interesses especificos. Sua passagem a forma estatal é um processo pelo qual ela revela a necessidade de sair do seu isolamento e atuar nesse sen- tido. Trata-se de um processo de “avaliaco do grau de homogeneidade, de EPMUNDO FERNANDES DIAS “ HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA auloconsciéncia e de organizagio atingido” (idem, idem). Esse momento é passivel de ser, ele proprio, analisado e distinguido “em varios graus que correspondem aos diversos momentos da consciéncia politica coletiva”. A saber: 1°) 0 econdmico-corporativo: em que o processo de identificagio se faz a nivel de corporacdo, mas ndo de classe; 2°) ela jé percebe sua identi- dade fundamental como classe, mas ainda nao se coloca plenamente a questdo estatal; ela se coloca no terreno de uma igualdade politico-juridica com os antigos grupos dominantes, na perspectiva de atuar nos foros de decisdo e de elaboragao legislativa, mas ainda no terreno da politica exis- tente; 3°) especificamente politico que “assinala a clara passagem da estrutura 4 esfera das superestruturas complexas; é a fase em que as ideologias germinadas anteriormente se tornam ‘partido’, (...) e entram na luta até que apenas uma delas ou, pelo menos, apenas uma combinagio delas tenda a prevalecer, a imp6r-se, a difundir-se sobre toda a area social determinando para além da unicidade dos fins econémicos e politicos, também a unidade intelectual e moral, colocando todas as questées (...) sobre um plano ‘universal’, e criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de grupos subordinados” (1584, MPE 50. Grifo nosso). O papel do Estado é entio diferenciado, concebido como “orga- nismo préprio de um grupo, destinado a criar as condigées favordveis a ex- panséo maxima do préprio grupo, mas este desenvolvimento e esta expansao sao concebidos e apresentados como a forca motriz de uma ex- Pansdo universal, de um desenvolvimento de todas as energias ‘nacionais’” (idem, idem), isto é, os grupos dominantes se “identifica” com a nacido. A expresso gramsciana é clara: “destinado a criar as condigdes favordveis a expansio maxima do préprio grupo”, como projeto classista. Nao cabe aqui nenhum mecanicismo. Finalmente, existe um terceiro momento: 0 da relagdo de forcas militares. Também ele divisivel em graus: 0 militar, em sentido estrito ou técnico-militar, e © grau politico-militar. Momento que se cristaliza, princi- palmente, em duas situagdes limites: 0 da criagao de um novo bloco histérico (a Revolugio Francesa, a Revolucao Russa) e a de libertagao na- cional. Gramsci chama a atengao para o fato de que o “desenvolvimento hist6rico oscila continuamente entre o primeiro e 0 terceiro momentos, com a mediagao do segundo” (1585, MPE 51). A realizagio de um novo bloco hist6rico, de uma hegemonia, & a consecugiio de uma possibilidade inscrita na totalidade social. Possibilidade que nao é fatal, que pode ser realizada ou blo- queada. Devemos repetir aqui a adverténcia anterior feita quando si- tuavamos os dois principios metodolégicos gramscianos: néo cabe aqui, como ali, nenhum evolucionismo. Estes momentos, passtveis de alteragées pela luta das classes, indi- cam possibilidades do processo. Reafirma-se aqui 0 essencial do pensamento de Marx: a realidade histérica se realiza por movimentos tendenciais que Mo possibilitados/inviabilizados pela agao consciente dos homens que Twescrevem sem cessar suas estruturas materiais, de producio e reprodugio, da vida. Atengao! Material no é aqui sinénimo de econdmico. Essa identi- dade ¢ a esséncia do pensamento burgués, nao do marxista. As anéllses das relagdes de forga sao, portanto, vitais para a cons- {rugiio da vontade coletiva nacional-popular ou... para manter as relagdes soclais vigentes. Permitem “justificar uma atividade prética, uma iniciativa de vontade. Mostram quais sao os pontos de menor resisténcia, onde a forga da vontade pode ser aplicada mais frutiferamente, sugerem as operacdes taticas imediatas, indicam como se pode fazer melhor uma campanha de agitagdo politica, que linguagem seré melhor compreendida pelas multidoes, ete.” (1588, MPE 54). Guardemos as expresses: “atividade pratica”, “inicia- tiva de vontade”, que se atualizam em uma conjuntura (“pontos de menor tesisténcia”, “operagoes taticas imediatas”, etc). Na andlise da correlacao de forgas em uma formagio social capi- talista, se demonstra a existéncia de uma especificidade que é vital com- preender: a do ocultamento da dominacdo politica determinando negativamente a tomada de consciéncia dessa dominacao pelas classes subalternas. Isto 6, a construgio da sua identidade, dos seus projetos. Pode- mos dizer que no campo de forgas do Estado burgués todo o jogo aparece como se dando entre “individuos” genéricos, abstratos, sem historicidade. Esta é a forma, a aparéncia necessdria do Pprocesso. Examinemo-la. Na politica hé como que um “desnudamento” dos homens em re- lagdo as determinagdes estruturais; tanto o capitalista quanto os operdrios sto reduzidos a cidadania. Desaparecem as diferencas; pode-se agora trans- formar individuos-cidadaos em vontades civicas ou, quem sabe, em con- sciéncias civicas. De abstracio em abstragio, despidos de suas determinagdes estruturais, transformados em unidades isoladas, esses homens sao, por ou- tro lado, “enriquecidos”. Se todos so iguais, é possivel uma unidade fun- damental: a patria. Se as instituigoes liberais t¢m forca e so ideologicamente eficazes, o problema é apenas de uma mera agregagio de forcas. Os partidos surgem como catalisadores de interesses diferentes, mas que suportam, no limite, a mesma unidade ideolégica. Estamos, pois, no campo da colabo- ragdo e nao da luta de classes. ——— “ HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA JA na economia, o problema se coloca de modo distinto: despidos no inicio, de suas determinagées estruturais, esses homens sao rapidamente “~yestidos”. Despidos no infcio: se eles so individuos, vontades, eles séo iguais. E h4 na diferenca de interesses um ponto de unidade: ambos “ne- cessitam” um do outro (outra aparéncia necesséria). O capitalista necesita comprar a forga de trabalho, o operério necesita vendé-la. O termo comum, forca de trabalho, torna-se assim o niicleo da relagéo. No entanto, feita a relagdo, a nudez desaparece. A “colaboragao-unidade” também. Na fabrica, todo homem ¢ historicamente determinado: operario, capitalista, etc. A dife- renga torna-se positividade, a determinagio esté estabelecida. Na economia capitalista, ndo podem existir dois poderes. Esta é a questio. Reiteremos essa afirmacio: esse ocultamento da dominacao politica, determinagao propria as formagées sociais capitalistas, é uma ne- cessidade objetiva. A aparéncia da liberdade individual também. f pre- cisamente através dessa dupla necessidade que se faz possfvel apresentar-se a liberdade para uma classe como sendo a liberdade de todas as demais. E através dela que se passa da exploragiio-opressio a elaboragio do consenso. E pela supressio méxima da liberdade (compra-venda da forca de trabalhofexploragao) que se cria a individualidade politica que permite o ocultamento da dominagio (elabo- ragdo do consenso). Este 6 um dos tracos diferenciais da sociedade capitalista em relagao as demais formas de sociedade. Se no feudalismo-a dominagio era aberta e justificada por toda uma Weltanschauung que tendia inclusive a desvalorizar a historicidade humano-social e projetar o mundo real para um além, sobrenatural, nas formacoes sociais capitalistas a opressiio ¢ a exploragao se encontram fundidas, sob a aparéncia da liberdade e igualdade de todos. Intelectuais, classes e partido Todo e qualquer movimento politico que pretenda a construcao de uma hegemonia tem que criar, necessariamente, uma leitura da histéria com a qual e pela qual pode apresentar-se como projeto. “Na realidade, toda corrente cultural cria uma linguagem sua, isto é, participa no desen- volvimento geral de uma determinada Iingua, introduzindo termos novos, enriquecendo com contetido novo termos jé em uso, criando metéforas, serv- indo-se de nomes histéricos para facilitar a compreensio e o jufzo sobre de- terminadas situagées politicas” (2264-5 e IOC 170). Essa leitura permitird a explicitagao da légica do novo projeto assim tentar destruir as bases de sustentagio do projeto anterior.® Gramsci acentua, seguidas vezes, que nao basta criticar o anterior, é preciso destruir ‘suas condigdes de existéncia. an POMUNDO FERNANDES DIAS uv Ihustrativa dessa necessidade é a andlise de Marx no 18 Brumdrio: “Op homens fazem sua prépria histéria, mas ndo a fazem arbitrariamente, ilo a fazem em condigées escolhidas por eles, mas em condigdes dire- tumente dadas e herdadas do passado. A tradigado de todas as geragdes mor- tas pesa muitfssimo sobre o cérebro dos vivos. E mesmo quando estes parecem ocupados em se transformar, a eles e as coisas, em criar algo ab- solutamente novo, é precisamente nestas épocas de crise revolucionéria que * eles evocam, temerosamente, os espiritos do passado, para que lhes em- prestem seus nomes, suas palavras de ordem, seus costumes, para aparecer nna nova cena da histéria sob esta fantasia respeitavel e com aquela lin- yuagem emprestada. Assim, Lutero toma a mascara do apéstolo Paulo, a Revolugdo de 1789 a 1814 se veste sucessivamente com as roupas da Reptiblica romana, depois com as do Império romano e a Revolugio de 1848 nio soube fazer nada de melhor do que parodiar, tanto 1789, quanto a tradigio revoluciondria de 1793 a 1795." A critica da(s) ideologia(s) anteriore(s) pelo novo principio hegeménico deve necessariamente levar em conta “que toda cultura tem seu momento especulativo ou religioso, que coincide com o perfodo de completa hegemonia do grupo social que exprime, e talvez coincida propriamente com o momento em que a hegemonia real se desagrega na base, molecular- mente” (1481, CDH 56). Esta cultura tem seus mecanismos de reacdo a dis- solugdo, “se aperfeigoa dogmaticamente, se torna uma 'fé’ transcendental” (idem, idem). © trabalho da critica passa entéo pela demonstragao de como essa cultura é “ideologia politica, (...) instramento de acao pratica” (1482, CDH 57). Demonstracao, acima de tudo, de sua historicidade, da sua nao naturalidade. Quando os intelectuais do novo projeto fazem a critica de uma de- terminada cultura, temos “um processo de distingio e de mudanga no peso relativo que os elementos das velhas ideologias possufam: o que era secundério ¢ subordinado ou mesmo incidental, passa a ser assumido como principal, se torna 0 niicleo de um novo complexo ideolégico e doutrinério. A velha vontade coletiva se desagrega nos seus elementos contraditérios, porque destes elementos os subordinados se desenvolvem socialmente” (1058, MPE 90-1), processo que deve ser acelerado na nova fase histérica. Para realizar essa critica se coloca claramente a necessidade de conhecer e trabalhar sobre 0 senso comum que é 0 “resumo” ideolégico dessa cultura. Desagregar esse senso comum é vital para romper a unidade ideolégica vigente; é separar os “simples”, que consentem, dos intelectuais que organi- zam esse consentimento. Criar, em suma, as bases da ruptura entre as su- perestruturas vigentes e sua base material. - —— PP)NUINDO FERNANDES DIAS w ' HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA Nesse processo importam tanto as grandes concentracdes urbanas, quanto os meios de comunicagao de massa que aceleram 0s processos molecu- lares vividos pela populagao. Aqui também é de extrema importincia 0 que Gramsci chama de uma composi¢éo demografica racional. O peso diferenciado das grandes cidades com um universo politico e cultural mais amplo do que 0 das pequenas aldeias e do mundo rural é vital nesse processo de descons- trugio."” A cidade 6 uma articulagao de aparelhos (e de suas ldgicas praticas classistas): de produgio industrial, de producao intelectual e de propulsao da vida civil. As grandes cidades sao assim espacos privilegiados de socializagao politica e industrial. Tanto no americanismo examinado por Gramsci, quanto no proceso de coletivizagao forgada dos campos e a migracao forgada de cam- poneses para a cidade na revolugao russa, por ele indicado, se mostra esse pro- cesso de desenraizamento/enraizamento das populacdes, de perdas de identidades e de construgao de novas identidades, a toque de caixa. Ele objeti- vamente se tealiza ao custo de uma imensa perda de energias humanas, ge- vando conseqiiéncias violentissimas na estruturagio da sociedade. Nao é uma mera destruigdo do anterior. O trabalho é duplo: a desconstrugao do discurso antigo e a construgao do discurso novo. Quando falamos em discurso, estamos pensando no conjunto das praticas que ele viabiliza ou impossibilita e nao apenas na sua forma teérica. Discurso que deveré enfrentar 0 conjunto das questdes colocadas pela velha ordem e pelos seus discursos. Isso se traduz, no plano da individualidade, por uma ruptura com 0 processo de socializacao anterior e pela construgao de uma nova socializagao que tende a por em questdo, desigual e contraditoria- mente, 0 conjunto da personalidade. Trata-se nao apenas da producdo do discurso critico, do discurso desconstrutivo, mas também da sua interferéncia na cena. Pensd-lo na cena é examinar a interferéncia de um discurso transformador que coloca como sua a problemitica da constituigao de formas novas de sociabilidade. Signi- fica afirmar que essa articulagao tem duplo cardter: o discurso faz parte da cena, esté presente nela, e essa presenga é ativa, pretende a transformacao da cena. E necessdrio pensar as condigdes nas quais esse discurso é produtor ¢ produto, o que implica em afirmar a dialética da totalidade social. O dis- curso é produto da intervengao classista nessa totalidade, ao mesmo tempo que é uma forma de se apropriar dela. Apropriacao que nao ¢ retilinea, que destaca do universo ideolégico dominante elementos que a personificarao, mais tarde, como discurso. Mas esse discurso é também produtor da cena. Tendo sido produzido, ele entra no jogo contraditério da realidade. A cena, contraditéria, ela prépria, expressa também as condigdes de possibilidade de um discurso critico do universo ideolégico que Ihe 6, ao mesmo tempo, anterior e contemporaneo. Na dialética da cena e do discurso, por transfor- Mugdes desiguais e combinadas, esses dois elementos ganham cara nova. O iiseurso novo, critico, criado pela intervengio dos homens, como membros de wna dada classe, pode entao vir a ser produtor. Pode vir a ser uma nova forma dle apropriagio do real, que permitiré a transformagio do préprio real. O discurso transformador 6 produzido e produtor. £ construido na articulagio/luta com outros discursos. E, no inicio, fragmento, para mais twrde transformar-se em corpo diferenciado. Como fragmento, esse discurso yal destacar elementos de outros discursos, trabalhd-los com outro método, com outras questdes. Pode, pouco a pouco, ir combatendo fragmentos do diseurso dominante. Esse trabalho de quebra e reconstrugao de fragmentos privilegia problemas, questées, desarticula-as do seu todo anterior. Torna-os estranhos a este dltimo. Na luta politico-ideolégica, nos defrontamos freqiientemente com © preconceito intelectualista, de “intelectuais fossilizados”, segundo o qual “ama concepgao do mundo possa ser destruida por criticas de caréter ra- clonal” (1292, CDH 255). Preconceito esse que deve ser criticado e superado. Sua prépria formulagao indica a questo. Supor a destruicao de uma ideolo- gia por outra, no plano do discurso pura e simplesmente, é desconhecer, por um lado, a forca e o peso material das ideologias e, por outro, reduzir luta hegeménica ao jogo iluminista do “esclarecimento”. Em suma, 6 supor # eternidade do par verdade/erro. Nenhuma “ciéncia” destr6i ideologia al- guma. Enquanto a ideologia criticada tiver base social /material de susten- tagdo ela permanece. Um bom exemplo é a ideologia da superioridade racial, de Hitler a Le Pen. Nao tem nenhuma demonstragao cientffica, tudo aponta no sen- tido da sua falsidade, mas ela permanece e ganha novos adeptos. Nesse sen- tido, veja-se 0 peso de ideologias moralizantes e de “modernidade”, como os discursos tipo Collor. Elas permanecem porque sao ideologias constitui- doras de prdticas politicas determinadas. No primeiro caso, elas permitem constituir a “unidade” dos “europeus brancos” contra o$ “peau noir”, os 4ra- bes, os turcos, os latino-americanos, etc. Permite, ao langar-se sobre a questo racial, ocultar as relagdes de contradigao (econdmicas, politicas e s ciais), que tenderiam a estracalhar esses mesmos brancos cuja unidade é dada por inimigos “imaginérios/reais” (os outros, os barbaros). Veja-se, em especial, a relevancia dessa ideologia racial entre os antigos “cidadaos do socialismo realmente inexistente”. Do mesmo modo, a “modernizagao” pre- conizada por Collor, unificava ricos e pobres na luta contra 0 atraso, com a vantagem de nao ter que explicar (ou combater) as bases sociais dessa si- tuagaio. Permite assim a neutralizagao de adversarios e a continuagio da ex- pressio dessa “modernidade” que s6 pode existir pela sua relacdo dialética ” /HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA com o “atraso”, vale dizer, com a permanéncia de relacdes servis, quase escravistas, de dominagao social e politica. Prova radical da nossa afirmagao a permanéncia dessas ideologias mesmo apés o impeachment. A critica real de uma concepgao de mundo requer 0 embate hegeménico, a “luta entre modos de ver a realidade” (1299, CDH 262); re- quer que a concepgao criticada nao tenha mais condiges de racionalizar as praticas sociais. Idéias ndo se negam como idéias; ou se inviabilizam como prdticas ou permanecem no imaginério e nas priticas sociais. A capacidade que a nova visio de mundo tenha de subtrair os intelectuais as antigas ideologias dominantes é absolutamente decisive para a liquidacio de uma dada visio de mundo. E, precisamente, nesse sentido que Gramsci afirma a necessidade de que o partido, e a concepgio de mundo a ele subjacente, ocupem nas consciéncias o posto anteriormente ocupado pela religiao. A melhor demonstragao da necessidade de se liquidar a concepgdo adversdria 6 dada pela afirmacao das repetidas mortes da filosofia da praxis, registradas nos cartérios da luta politica e das ideologias reaciondrias. Qual é, em suma, o significado da “crise” permanente da filosofia da préxis? Por que ela deve ser, permanente e duramente, atacada? Isto decorre, sem diivida alguma, de sua eficdcia. A filosofia da praxis é eficaz por que “con- cebe a realidade das relacées humanas de conhecimento como elemento de “‘hegemonia’ politica” (1245).'! Essa sua eficdcia como projeto hegemdnico, critico das outras visées de mundo, faz com que ela propria seja criticada, Processo que é uma tentativa de transformé-la, obtendo assim sua desca- racterizagao, esterilizagio ou neutralizagio. A atividade critico-tedrica é parte vital da hegemonia. Croce tra- balhou muito nesse sentido.’? Denunciando os “erros” da filosofia da préxis, tratou de subordiné-la ao seu préprio projeto.! A afirmagdo crociana da aparéncia das superestruturas, identificando aparéncia e erro, buscava neu- tralizar a filosofia da praxis.’ Deve-se ter em mente que a aparéncia “no é senao 0 juizo da ‘historicidade’ delas, expresso na polémica com con- cepgées dogméticas populares, e donde com uma linguagem ‘metaforica’ adaptada ao ptiblico ao qual é destinada.” (1224, CDH 219) A redugio cro- ciana da “histéria apenas a histéria ético-politica” (idem, idem), aparece clara- mente como indevida e arbitrdria. O processo é simples: primeiro reduz-se a filosofia da praxis a um economicismo e, depois, proclama-se a sua insufi- ciéncia e estreiteza; depois apresenta-se a critica, nao como uma alternativa, mas como a verdade. Facamos aqui um paréntesis muito importante para afirmar que 0 procedimento que reduz o pensamento gramsciano a valorizagao da cultura €, ao mesmo tempo, desvalorizagao da totalidade social, em especial das POMUNDO FERNANDES DIAS a sis bases materiais, 6 precisamente a reiteracao do procedimento crociano id wedugio da “histéria apenas a histéria ético-politica” (idem, idem). S6 que in Croce isso era premeditado, desejado, consciente. £ uma ironia perversa: iwhaler quem quis fazer o anti-Croce, com o anti-Gramsci. Gramsci seria um efoelano sem o saber. Melhor: tentam fazer dele um crociano. A “‘difusio da filosofia da prdxis é a grande reforma dos tempos ‘wodernos, é uma reforma intelectual e moral que realiza em escala nacional, © que © liberalismo nao teve éxito em realizar, sendo para camadas restritas da populagdo” (1292, CDH 256). Como novo projeto hegeménico, ela neces- wta realizar um “trabalho educativo-formativo que um centro homogéneo dy cultura desenvolv(a) a elaboragio de uma consciéncia critica” que atue Nw promogio e no favorecimento “sob uma determinada base histérica que contenha as premissas materiais a esta elaboragao (e que) nao pode limitar- sw ao simples enunciado teérico de principios ‘claros’ de método; esta seria pura agdo de ‘filésofos’ do século dezoito. O trabalho necessrio é complexo © deve ser articulado e graduado: devem existir a dedugao e a indugao com- binadas, a identificagao e a distingao, a demonstragao positiva e a destruigio do velho. Mas nao no abstrato, no concreto: sobre a base do real e da ex- periéncia efetiva” (2268, IOC 174).'° Racionalidade economica e constituigao do saber Os processos de construgao dos intelectuais das classes fundamen- tnis sao essencialmente diferenciados. Na burguesia, esse processo é sistematico, na escola e na producdo material imediata. Identificando pro- dugio capitalista e sociedade humana, sem qualificativos, abstratamente, ‘Sse processo se torna imensamente mais facil. Todos os elementos vitais do proceso produtivo nada mais so, em tiltima andlise, do que racionalizagbes do processo vital da classe dominante: “o que ¢ ‘prética’, para a classe fun- damental se torna ‘racionalidade’ e especulagdo para os seus intelectuais” (1359). Esse simples fato, a imposigao pratica da racionalidade econémica dominante, acaba por transformer-se no campo dos discursos possiveis. De- fine-se, assim, nao apenas o campo do praticdvel, mas também, e sobretudo, © do pensavel, como naturalidade, como eternidade. Os técnicos, os economistas etc, sio projegées ao nivel do co- nhecimento do projeto de uma dada classe. Os moderados italianos, do Ri- sorgimento, foram um exemplo tipico. Eles néo eram apenas intelectuais organicos mas também condensados pela realizagao da “identidade de repre- sentado e representante” (2012, R 98. Grifo nosso) e por serem a “vanguarda real, organica das classes altas: em intelectuais e organizadores politicos e ao a -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA ‘mesmo tempo chefes de empresa, grandes agricultores ou administradores de pro- priedades, empresdrios comerciais e industriais” (idem, ibidem. Grifo nosso). Pos- Sulam, assim, uma concentracao organica.’® Tiveram capacidade de absorver a maioria dos demais intelectuais no seu projeto. Para as classes subalternas, 0 Processo é distinto. Na produgao e no conjunto da sociedade, elas e seus intelectuais so elementos organizados a partir da racionalidade dominante. Para elas, 0 processo de formagéo dos Seus intelectuais tende a ser errético, fragmentario. Enquanto 0 intelectual da classe dominante tem seu proceso de formagao taylorizado,”” integrado Positivamente a0 mundo produtivo, o intelectual das classes subalternas se faz, se cria, apesar e contra essa corrente. Mais do que isso. Devem ser criados para propor a transformagao daquela forma de civilizagao, Partidos ¢ sindicatos sio, no fundamental, as “academias” possiveis para as classes subalternas. A formacao dos intelectuais varia do Processo lento, gradual, acu- mulativo, feito na e pela escola ao longo de duas décadas de escolarizagao (taylorizagao do intelectual) até a impossibilidade (ou quase) de acesso a essa escola: “a elaboracio das camadas intelectuais, na realidade concreta, Nao ocorre em um terreno democratico abstrato, mas segundo processos histéricos tradicionais muito concretos” (1518, IOC 10). Mesmo no que se refere as classes que se destinam a formagio dos intelectuais, a situacdo é bastante desigual. Rarfssimos sio os casos de in- dividuos das classes subalternas que realizam e completam esse proceso de taylorizacao. E os que concluem o processo normalmente acabam sendo as- similados a racionalidade dominante. O Conjunto das classes subalternas funciona como “reserva de cérebros” Para as classes dominantes. Esta é outra das formas da desorganizagéo dos subalternos, do poder dos domi- nantes. No conjunto da sociedade, produziram-se “camadas que tradicio- nalmente ‘produzem’ intelectuais; trata-se das mesmas camadas que, muito freqiientemente, se especializaram na ‘poupanea’, isto &, a pequena e média burguesia fundidria e alguns estratos da pequena e média burguesia das cidades” (idem, idem). Estas camadas acabam por ter quase que o monopélio das atividades intelectuais intermedidrias € ser o grande celeiro de quadros para os dominantes. A apropriagéo da escola pela racionalidade dominante e pelas Praticas e relagdes sociais que a sustentam revelam aqui um dos segredos da dominacao: 0 acesso diferenciado ao saber e as possibilidades da sua sistematicidade. A disciplina necesséria a construgio do conhecimento é negada — como massa —ao conjunto das classes subalternas, a quem, em geral, resta i POMUNDO FERNANDES DIAS = () aitodidatismo. Mesmo nas chamadas escolas profissionalizantes, essa di- forenclagio permanece. Sob esse titulo se realiza uma formacao destinada & HxeCUGHO € Nao a deliberagio.’* Mesmo nos mais modemos processos de “formagdo profissional”, a tendéncia basica é a da polivaléncia Spersnia e Iwo a politecnia. Busca-se “fabricar” o trabalhador capaz de novas e impor- lantes capacidades de decidir, quando necessdrio, dentro de um limitado Gampo de opgies, jé previstos por uma tecnologia (relagio de poder) que Ihe ¢ externa e que o domina. Nao se trata mais, necessariamente, ou ape- tis, do gorila amestrado. Trata-se sim do trabalhador unilateral, adequado ‘tw relagies sociais de producao ditas modernas e nao do individuo unila- {eral com capacidade de elaboracao de conhecimentos novos. Existe ainda uma outra forma de apropriagao da escola por essa melonalidade. O conjunto dos recursos do capital social que se destinam as \nnvestigagdes sobre assuntos de interesse dessa racionalidade aparecem — \nwisto, aparéncia necessaria — como de interesse coletivo. Néo falaremos também da relagao ébvia dessas “escolaridades” com a institucionalidade vigente, Nesse sentido, e dada a solidariedade intrinseca entre essas racio- tilidade e institucionalidade, privilegia-se a escolaridade oficial. Outras for- tiws pedagogicas, as formas de educacio popular, quando reconhecidas (néo institucionalmente) nada mais sio do que acess6rias, “altemativas”, etc. Re- forga-se novamente a questao da destinagdo dos recursos, o que, ainda uma vez, Sobredetermina a desigualdade bésica. Para o conjunto das classes trabalhadoras, “o partido no é senéo © modo préprio de elaborar sua categoria de intelectuais organicos, que se formam assim, e nao podem deixar de se formar, (..) direlamente no campo politico e filoséfico, e ji néo mais no campo da técnica prodution.” (1522, loc 14. Grifo nosso) Ele “é precisamente o mecanismo que realiza na sociedade civil, a mesma fungao desempenhada pelo Estado, de um modo mais vasto e mais Sintético, na sociedade politica, ou seja, proporciona a fusdo entre os intelec- tuais organicos de um dado grupo, o grupo dominante, e os intelectuais tradicionais; esta fungo é desempenhada pelo partido precisamente na re- alizagao de sua fungao fundamental, que é a de elaborar os préprios compo- nentes, elementos de um grupo social nascido e desenvolvido como ‘econémico’, até transforma-los em intelectuais politicos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e fungdes inerentes ao de- senvolvimento orginico de uma sociedade integral, civil e politica.” (idem, idem. Grifo nosso) © partido, embrido do futuro Estado, ao elaborar seus préprios com- ponentes, a0 “fabricar 0 fabricante” (2018, R 106), realiza a tarefa vital para a construgéo da nova hegemonia. No seu Ambito, ele “desempenha sua fungéo ” HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA muito mais completa e organicamente do que o Estado realize a sua em Ambito mais vasto: um intelectual, que passa a fazer parte do partido Politico de um determinado grupo social, confunde-se com os intelectuais organicos do préprio grupo, liga-se estreitamente ao grupo, 0 que nao ocorre através da participagdo na vida estatal, senao mediocremente, ou mesmo nunca” (idem, IOC 14-5). Gramsci adverte para o fato de que a uni- versalidade estatal nao lhe confere a mesma abrangéncia, a mesma efetivi- dade, na construgao dos intelectuais. O partido realiza essa funcao de “um modo mais vasto e mais sintético” e pode fazé-lo porque é o instrumento Privilegiado da racionalidade de uma classe. O Estado, lembremo-nos, atua para “criar as condigées favordveis & expansao méxima do grupo” (1584, MPE 50). © capitalismo, como pritica material e estatal, padronizou os in- telectuais. Ampliou enormemente seu ntimero. Suas fungbes ndo sao apenas “justificadas pelas necessidades sociais da produgao”, mas também, e prin- cipalmente, “pelas necessidades politicas do grupo fundamental dominante” (1520, IOC 12). A complexidade das grandes estruturas, a intervengao “regu- ladora” do Estado nao podem mais ser “tocadas” empiricamente. A raciona- lidade crescente obriga a formagao ¢ renovagio, sem cessar, de intelectuais. As miiltiplas interrelacées entre institucionalidade e racionalidade econémica exigem que 0 novo intelectual seja essencialmente politico. Produziu-se, todavia, uma burocratizagao dessas fungdes e acabou- se por determinar “os mesmos efeitos que ocorrem em todas as outras mas- sas padronizadas: concorréncia que coloca a necessidade da organizagao Profissional de defesa, desemprego, super produgao escolar” (idem, idem). Gramsci antecipa aqui toda uma problematica da relacao intelec- tuais/mundo da producao/dominagio de classe. Esta claramente esbocada @ questaio do peso da burocracia nesses dois campos.” Antecipa também sobre o debate da questao da organizagio dos intelectuais e da correlagio desemprego-"superprodugéo” escolar. Os intelectuais sio pensados assim nao apenas como portadores de racionalidade mas com o peso da materia- lidade da sua situagao de trabalhadores assalariados. Ainda que grandes ientistas ou criadores culturais, eles so também sujeitos das relacées de trabalho. Gramsci aprofunda o exame da enorme e densa interpenetragao en- tre burocracias privadas e estatais, 0 que permite compreender o profundo imbricamento entre Estado e burguesia. Essas burocracias circulam entre as esferas do ptiblico e do privado quase que indiferentemente, como se fosse apenas uma questdo de atuacéo em foros diferenciados, mas da mesma natureza, que viabilizam/potenciam a mesma racionalidade. Pode-se dizer, SUMUNDO FERNANDES DIAS a usin, que a privatizacao do Estado nao é uma excegao, mas a sua forma tlissiea de atuagdo. E, se assim é, a qualificagio do Estado como “gerente” «ii propriedade comum da classe dominante — como afirmado no Manifesto lo Partido Comunista — ganha pleno sentido. O Estado aparece entéo como forma superior de racionalidade capitalista. Intelectuais e estrutura A relagao intelectuais-mundo da produgao nao é, jamais, imediata, “é ‘mediatizada’, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais sao precisamente os ‘fun- clondrios’.” (1518, IOC 10) Gramsci trabalha com “dois grandes ‘planos’ super estruturais: 0 ue se pode chamar de ‘sociedade civil’, isto 6, 0 conjunto dos organismos comumente chamados ‘privados’, e 0 da ‘sociedade Politica ou Estado’, que forrespondem a fungao de “hegemonia’ que 0 grupo dominante exerce em toda a sociedade, e ao de ‘dom{nio direto’ ou de comando que se expressa no Estado e no governo ‘juridico’.” (1518-9, IOC 10-1) Esses planos sao mo- Mentos analiticos do conceito de Estado. Nao devem ser substancializados. As fungées exercidas pelos intelectuais enquanto comissérios “do grupo dominante para o exercicio das fungdes subalternas da hegemonia social e do governo politico” (1519, IOC 11) sao, por um lado, a tentativa de obter 0 consenso “espontaneo” que as massas dao A politica impressa pelas classes dominantes e, por outro, o uso da coercao estatal para assegu- rar legalmente a disciplina daqueles “que nao ‘consentem’ nem ativa nem passivamente, mas que é constitufdo por toda a sociedade na previsio de momentos de crise no comando e na diregdo, quando fracassa o consenso espontaneo” (idem, idem). Os intelectuais e os aparelhos de hegemonia, tanto no que se refere 4 fungao de consenso quanto a de coer¢do, no plano estatal ou no plano da producao, apresentam gradacées. Ocupam graus diferenciados na hierar- quia: “inclusive do ponto de vista intrinseco; estes graus, nos momentos de extrema oposigao, dao lugar a uma verdadeira e real diferenga qualitativa: no mais alto posto devem-se colocar os criadores das varias ciéncias, da filosofia, da arte, etc; no mais baixo, os mais humildes ‘administradores’ e divulgadores da riqueza intelectual j4 existente, tradicional, acumulada. O organismo militar, também neste caso, oferece um modelo destas complexas gradagées: oficiais subalternos, oficiais superiores, Estado maior; e nao se devem esquecer os pracas graduados, cuja importancia real 6 superior a que habitualmente se cré.” (1519-20, IOC 11-2) HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA A “cultura” da organizagao é, sem duivida alguma, uma forma es- sencial das “tradigdes” que articulam a sua existéncia com a totalidade so- |. Tradugao tipo senso comum da hegemonia, essa cultura tem forte poder integrativo: aparece como solidariedade que ao des-historicizar as contradigoes, faz da organizagao 0 solo das possibilidades do conjunto dos individuos que elas recobrem. Mais: funcionam para eles como uma segunda natureza. “E interessante notar que todas estas partes se sentem solidarias, ou antes, que os estratos inferiores manifestam um espirito de corpo mais evidente, do qual resulta neles uma ‘vaidade’ que freqiiente- mente os expde aos gracejos ¢ as trogas” (1520, idem). A “propria fungao organizativa da hegemonia social e do dominio estatal dé lugar a uma certa divisdo de trabalho e, portanto, a toda uma gradacao de qualificagées, em alguma das quais nao aparece nenhuma di- retiva e organizativa: no aparato da diregao social e estatal existe toda uma série de empregos de cardter manual e instrumental (de execugao e nao de conceito, de agente e nao de oficial ou funciondrio, etc).” (1519, IOC 11) Isto se refere & divisdo entre os grandes intelectuais e aqueles que desempenham fungées intermediarias ou mesmo as menos sofisticadas atividades em qualquer um dos aparelhos da sociedade. Um belo exemplo das gradagées entre os intelectuais pode ser visto nas universidades. A{ existem classificagdes “baseadas” no chamado “mérito”: a existéncia de um “alto clero” e de um “baixo cleo”. Alids, ja é sintomatica em si mesma a auto designagio de “alto clero” que os chamados grandes intelectuais se atribuem. Sem tocar na questéo de que esse mérito, muitas vezes discutivel,” 6 freqtientemente arma e processo de poder. E, portanto, capacidade de determinar a reprodugéo do préprio processo in- telectual. Para nao falarmos dos poderes das chamadas sociedades cientifi- cas, dos que participam das diregdes dos chamados érgios de fomento a pesquisa, daqueles que tem acesso aos editores, etc. Importa-nos ressaltar a complexidade dessa fungio nos Estados modemos. A hierarquizagao e a especializacio, além da densidade da rede escolar, indicam seu peso e sua expansdo: “quanto mais extensa 6 a ‘area’ escolar, e quanto mais numerosos os ‘graus’ ‘verticais’ da escola, tanto mais € complexo 0 mundo cultural, a civilizagao, de um determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparagao na esfera da técnica industrial: a in- dustrializagao de um pais se mede pela sua capacidade na construgio de maquinas para construir méquinas, ¢ na fabricagio de instrumentos cada vez mais precisos para construir m4quinas, etc. O pais que possuir a melhor capacitagéo para construir instrumentos para os laboratérias dos cientistas, © para construir instrumentos que testem estes instrumentos, pode ser con- — = a 0 — HOMUNDO FERNANDES DIAS Zz tiderado © mais complexo no campo técnico-industrial, 0 mais civilizado, ete.” (1517, IOC 9) A complexidade desse mundo cultural passa nao apenas pelos sistemas formais de aprendizado (do pré-primério & pés-graduagio), mas pelo conjunto das formas de comunicacao (das grandes cadeias de radio ¢ Uelevistio as grandes casas editoriais, pasando necessariamente pelos jornais ® tevistas de consumo de massa, as formadoras de opinio e/ou especial- gadas. Sobre tudo isso € altamente ilustrativa a trajetéria de Croce. Normalmente, a censura nao 6 necesséria. A “liberdade” que um editor dos grandes jomais didrios e das revistas de informagao tem de pu blicar algo ou deixar de fazé-lo basta para conformar a chamada opiniao publica. Ou ainda mais expressivamente o poder que um editor de televisdo lem: Se nao saiu no Jornal Nacional, por exemplo, & quase sinénimo de que Mo ocorreu. Afora o fato de que, no Brasil, o Poder Executivo, até muito ‘recentemente, tinha 0 monopélio da concessio de canais de rédio e tele- visio. Se estes eram generosamente distribufdos a qualquer politico si- 'uacionista ou empresdrio amigo eram, pelo contrdrio, rigorosa e sistematicamente negados ao movimento sindical e popular. Trata-se, evi- dentemente, de um cardter ditatorial, de uma radical exclusao. Tudo isso demarca o pensdvel, 0 campo da producao e reprodugio dos intelectuais. Demasiado dizer que para as classes subalternas, isto cons- titui uma “quase” impossibilidade. Relembremos, ainda uma vez, a assertiva gramsciana, de que essa produgao nao se faz em um terreno abstratamente democratico. Se cada classe fundamental, dominante ou dominada, constréi os seus intelectuais organicos, 0 mesmo no ocorre com as classes nao funda- mentais (ainda que dominantes). Estas, por exemplo, os latifundidrios, acabam por servir de massa de formacao de intelectuais que se destinam a outras classes. Nao tendo um projeto civilizatério, inovador, capaz de ofere- cer alternativas as outras classes, elas acabam perdendo seus quadros que passam a racionalizar a prdtica eo dominio das outras, Os intelectuais das classes turais, tradicionais na sua maioria, ‘poem em contato a massa campenesa com a administragao estatal ou local (advogados, tabelides, etc.)” e estio “ligados A massa social do campo, eA Ppequena burguesia de cidades (notadamente dos centros menores), ainda nao elaboradas e mobilizadas pelo sistema capitalista” (1520-1, IOC 13). Esse intelectual exerce um papel de diferenciagdo em relagao ao camponés, diante do qual aparece como modelo: “possui um padrao de vida médio superior ou pelo menos, diverso daquele do camponés médio e por isso representa para este camponés um modelo social na aspiragao a sair da sua condigio . ‘HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA ¢ melhord-la. O camponés acredita sempre que, pelo menos, um de seus filhos pode tornar-se intelectual (notadamente padre), isto é, tornar-se um senhor, ele- vando o grau social da familia ¢ facilitando sua vida econémica pelas ligacdes que nao poderé deixar de estabelecer com os outros senhores.” (1521, IOC 13)?! Identifica-se aos senhores como projeto de vida. Pensa sua existéncia a partir da existén- cia de outra classe. Desse modo, 0 camponés se coloca em “subordinacdo efetiva aos intelectuais: todo desenvolvimento organico das massas camponesas, até um certo ponto, esta ligado aos movimentos dos intelectuais e deles dependem” (idem, idem)? Sobre tudo isso, é paradigmatico o texto dos Alcuni tem della questione meridionale, de 1926. Os intelectuais rurais desempenham assim uma ativa fungdo politica, em contraposigao 4 sua pequena interferéncia na economia. O mesmo no ocorre com os intelectuais urbano-fabris: eles “no exercem ne- nhuma fungio politica sobre suas massas instrumentais ou, pelo menos, esta € uma fase j4 superada; por vezes ocorre precisamente o contrério, ou seja, que as massas instrumentais, pelo menos, através seus préprios intelectuais organicos, exergam uma influéncia politica sobre os técnicos.” * (idem, idem) Estao na mesma situagao dos oficiais “subalternos”, que nao possuem, € nem podem possuir, “nenhuma funcao auténoma na elaboragio dos planos de construgao; colocam em relagio, articulando-a, a massa instrumental com © empresario; elaboram a execucao imediata do plano de produgio esta- belecido pelo estado maior da industria, controlando suas fases executivas elementares.” (1520, IOC 12) Como conjunto, exercem fungées normalmente repressivas, ainda que organizativas. Sua funcdo é de policia do trabalho. Nos processos de trabalho mais recentes, sua fungio pode até ser progres- sivamente eliminada visto aparecerem como fontes potenciais de problemas e dado que os processos de informatizacao tendem a substitui-los, possibili- tando — se necessério — a sua expulsio do chao da fAbrica. Isso leva & redefinigéo do que seja um intelectual. Da perspectiva das classes trabalhadoras, é preciso romper com o preconceito mitificador do intelectual. Todo aquele que exerca funcdes organizativas, no campo da producao como no campo administrativo-politico, é um intelectual, embora nem todos atuem como intelectuais profissionais, As classes fundamentais io 0 campo privilegiado a partir do qual podem examinar-se a natureza, a qualidade e o significado dos intelectuais. A simples existéncia das classes sociais nascidas “sobre o terreno originério de uma fungao essencial no mundo da produgao econémica” (1513, [0 ’) coloca para elas a necessidade de criar para si “uma ou mais camadas de intelectuais que Ihe dao homogeneidade e consciéncia da propria fungao, nao apenas no campo econdmico, mas também no social € POMUNDO FERNANDES DIAS 2 40 politico” (idem, idem). O desdobramento da atividade econdmica cria “o Wenieo da industria, o cientista da economia politica, o organizador de uma Nova cultura, de um novo direito, etc.” (idem, IOC 3-4) Estas atividades nao Podem ser entregues ao acaso, requerem conhecimento técnico. Esses “in- lelectuais ‘organicos’, que cada nova classe cria consigo e elabora no seu desenvolvimento progressivo, séo, no mais das vezes, ‘especializagdes’ dos Aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu a luz.” (1514, IOC 4) O capitalismo, a um s6 tempo nove modo de produzir e nova civi- Naagio, criou, necessariamente, um conjunto variado de intelectuais. O em- presirio ou “pelo menos uma elite deles, deve possuir a capacidade de organizador da sociedade em geral, em todo 0 seu complexo organismo de servigos, até o organismo estatal, em vista da necessidade de criar as con- digdes mais favordveis A expansio da prépria classe; ou, pelo menos, deve Possuir a capacidade de escolher os ‘prepostos’ (empregados especializados) 4 quem confiar esta atividade organizativa das relacdes gerais extemas A empresa.” (1513-4, idem) Capacidade dirigente de “ser um organizador da ‘confianga’ dos que investem em sua empresa, dos compradores de sua mer- cadoria”. (1513, idem) Intelectuais e partido A andlise da relagao de forgas determina o significado das crises economicas. Estas por si podem apenas “criar um terreno favoravel a di- fusio de certos modos de pensar, de colocar e de resolver as questdes que arrastam todo o ulterior desenvolvimento da vida estatal.” (1587, MPE 52) Quando falamos em “terreno favordvel” estamos, claramente colocando que a crise é a atualizagao das contradigées da estrutura. £ 0 famoso “terreno do ocasional” que, em absoluto, quer dizer aleatério, onde os antagonismos af presentes se fazem conjuntura decisiva. O pensamento gramsciano, dado seu feroz ataque a estratégia que colocava a revolugdo permanente como decorrente de forma imediata e mecanica das crises econédmicas, foi reduzido instrumentalmente a uma forma de “anti-Rosa”, de “anti-Trotski”. Mas devido exatamente ao cardter dessa leitura, “esqueceu-se” de Ié-la conseqiientemente no que se refere a tatica stalinista da classe x classe, na virada da década de 20, e mais, “silenciou-se” sobre as possibilidades ou nao da passagem da Itélia ao socialismo apés a derrota do fascismo, sobre a questéo da Constituinte, por exemplo. Estas questdes foram colocadas por Gramsci no carcere, e o levaram ao isolamento em relagao aos companheiros na dramitica situagéo carceraria. w -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA No movimento comunista internacional dos anos 20, uma das questées centrais foi a possibilidade ¢ a atualidade da revolugio perma- nente, um debate carregado de economicismo e de voluntarismo! Ao invés de, pura e simplesmente, anatematizé-la, como era a pratica do tempo stali- nista, Gramsci localiza a revolugio permanente, como sendo “propria de um periodo histérico em que nao existiam ainda os grandes partidos politicos de massa e os grandes sindicatos econémicos, e a sociedade estava ainda, por assim dizer, no estado de fluidez sob muitos aspectos: maior atraso do campo e monopélio quase completo da eficiéncia politico-estatal em poucas cidades, ou mesmo em uma tinica (Paris, para a Franca), aparelho estatal relativamente pouco desenvolvido, e maior autonomia da sociedade civil em relacao a atividade estatal, determinado sistema de forcas militares e do ar- mamento nacional, maior autonomia das economias nacionais nas relagdes econdmicas do mercado mundial, etc.” (1566, MPE 91-2) No periodo imperialista, pés 1870, pelo menos nos paises centrais do mundo capitalista, criou-se um campo novo — o de uma hegemonia rea- lizada. As relacdes organizativas estatais, internas e externas, “se tornam mais complexas e massivas e a formula quarentotesca da ‘revolugio perma- nente’ é elaborada e superada na ciéncia politica na formula da ‘hegemonia civil” (idem, MPE 92).° Muda fundamentalmente o cardter da luta politica. O Estado nao aparece mais como um simples alvo a conquistar. Tomou-se algo complexo e se enraizou na sociedade. Nao pode mais, se é que alguma vez isso foi correto, ser visto como exterioridade. Com sua imensa burocra- cia, ele é capaz de vigiar e punir, mas também de organizar e representar. Com isso, Gramsci assinalava, para os pafses capitalistas onde a instituciona- lidade estava avancada, a passagem ao momento da guerra de posigées, vale dizer, onde a institucionalidade estava densamente enraizada na populagao, capturando sua emogao e sua razdo, enquadrando-a no todo da ordem capi- talista. Nao existe, contudo, como poderia parecer. primeira vista, uma per- feita simetria entre 0 territério do imperialismo e 0 da guerra de posigoes. Gramsci assimila — praticamente — a idéia de revolugio perma- nente a idéia de sociedade “oriental”. Isso permite, parcialmente, explicar a pouca simpatia que os stalinistas dedicavam a Gramsci. Procedendo assim, ele desconstrufa a possibilidade da aceitagio genérica, acritica, do chamado “modelo bolchevique”, negava a possibilidade no campo teérico do mar- xismo da exportagao de modelos. A revolugdo é sempre uma tarefa original. A complexidade institucional das sociedades ditas ocidentais 6, na verdade, um fndice da eficdcia da estrutura ideolégica. Relembrando uma tese grams- ciana de 1917, podemos afirmar que onde a lei aparece como existente, isto 6, onde é percebida pelas classes como algo que funcione, a exasperacdo das contradigées classistas tendem a diminuir em impacto. Nesses casos, existe PDMUNDO FERNANDES DIAS a # possibilidade de exercicio da hegemonia pelos dominantes. As crises sio Potenciadas ow neutralizadas pela capacidade dessas instituigdes de ab- forverem as classes subalternas, Fica assim qualificado o quadro onde os partidos social-democratas atuaram, em geral, integrando-se passivamente A ordem. Ou seja, sendo hegemonizados pelas praticas do capitalismo e do Pensamento liberal. Sobre isso, ver o peso das estruturas sindicais inglesas @ alemis na conformacao de verdadeiros partidos da ordem (do Labour Marty ao Partido Social-democrata alemao) e da subordinagdo dessas estru- furas partidérias as sindicais (ver o pacto de alianga do Partido Socialista Italiano com a CGT). A derrota da Comuna jogou as massas francesas na defensiva por, pelo menos, meio século. A hegemonia burguesa seguiu-se a derrota das classes subalternas. “A estrutura de massa das democracias modemas, seja Como organismos estatais, seja como complexo de assaciagées na vida civil, Se constitu para a arte politica como as ‘trincheiras’ e as fortificagbes per- Manentes do fronte na guerra de posicdo: elas tormam apenas ‘parcial’ o ¢lemento do movimento que antes era ‘toda’ a guerra” (1567, idem). Os in- tolectuais s4o absorvidos, nao apenas no campo da produgio e da adminis- tragio, mas sobretudo no campo simbélico: ver as notas gramscianas sobre © peso das universidades e academias. As classes subalternas deixaram, como no caso dos conselhos de fabrica, de exercer o seu fascinio. O capita- lismo consolida assim sua hegemonia. A perda dos intelectuais é a perda da capacidade de elaboracao. “Os partidos nascem e se constituem em organizacao para dirigir as situagdes em momentos historicamente vitais Para as suas classes.” (1604, MPE 56) Contudo, 0 peso da hegemonia da classe burguesa é capaz de i corporar os partidos socialistas e operdrios no seu seio, tanto pela incapaci dace destes elaborarem uma visio altemativa, sua, propria, quanto porque eles se colocam dentro da prépria ordem. A rigor, podemos afirmar que a postura da social-democracia ¢ exatamente essa. Nao ha, para ela, con- tradicdo fundamental entre capitalismo e movimento operdrio. Podemos sin- tetizar afirmando que, para a social-democracia, 0 capitalismo é, e deve continuar sendo, 0 horizonte ideolégico dos trabalhadores. Toda a obra de Kaustki, nao obstante 0 seu “classismo”, por exemplo, se coloca nessa pers- pectiva.”* Este, repetimos, é 0 terreno classico da guerra de posigées. A nao tradutibilidade automatica das crises econdmicas em crises politicas cria, em especial, para os partidos que se pretendem construtores de uma nova civilizagéo, novos problemas. E novas possibilidades, Nao Thes basta seguir 0 fluxo da tradicao. E preciso criar algo novo e para tal é vital, antes de mais nada, reconhecer a existéncia de “governados e governantes, a -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA dirigentes e dirigidos.” (1752, MPE 18) Colocada essa questao, na formagio dos seus dirigentes, ¢ preciso que se responda, concretamente, se se deseja manter ou eliminar essa premissa, se se parte “da premissa da perpétua di- visio do género humano, ou se se acredita que ela 6 apenas um fato histérico, correspondente a certas condigdes.” (idem, MPE 19) Essa divisio expressa e cristaliza a divisio da sociedade de classes. No entanto, qualquer que seja a resposta (permanéncia ou eliminacio) coloca-se como tarefa cen- tral a criagao dos dirigentes. Recoloca-se, ainda uma vez, a questo de saber 0 que sao 0s in- telectuais. Gramsci recusa as formas usuais de classificagdo: “O erro meto- dolégico mais difundido, ao que me parece, consiste em se ter buscado este critério de distingdo no que é intrinseco das atividades intelectuais, ao invés de buscé-lo no conjunto do sistema de relages no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram no conjunto geral das relages sociais.” (1516, IOC 6-7) Isto nos permite encaminhar a resolugéo dos segredos da domi- nagao. E 0 trabalho realizado “em determinadas condigdes e em determinadas relagées sociais” (idem, IOC 7. Grifo nosso) que caracteriza 0 operdrio e nao 0 fato de que esse trabalho seja “manual ou instrumental” (idem, idem). O mesmo vale para a caraterizagao do empresdrio. Assim, tanto o operdrio quanto 0 empresério devem possuir um mimero de qualificagSes minimas. Se para as classes fundamentais — burguesia e proletariado — Estado nao é concebfvel a nao ser como a forma concreta de um determi- nado mundo econémico, de um determinado sistema de produgdo” (1360), destruir as velhas relagdes de poder e construir novas e afirmar um novo modo produtivo sio uma tinica coisa; por isso mesmo, “a propaganda para uma coisa é também propaganda para a outra” (idem). A demonstragao dessa afirmagio esté patente em todo processo revolucionério, seja o burgués (na Franca, na Inglaterra), seja o proletario (na Rtissia): “na realidade s6 nesta coincidéncia reside a origem unitéria da classe dominante, que é econémica € politica em conjunto” (idem). Podemos dizer entdo: “Todos os homens sao intelectuais (...) mas nem todos os homens desempenham na sociedade a fungao de intelectuais” (1516, IOC 7).”” Esse exercicio diferenciado ocorre paralelamente com a for- magao de “categorias especializadas para o exercicio da fungao intelectual.” (idem, IOC 8) Esta é uma necessidade objetiva das classes sociais. Assim “todo grupo que se desenvolve no sentido do dominio (...) luta pela assimilagio e conquista ‘ideolégica’ dos intelectuais tradicionais, assimilagio e conquista que sio tio mais répidas e eficazes quanto mais 0 grupo em questio elabora simultaneamente. seus préprios intelectuais organicos.” (1517, IOC 9) PD)MUNDO FERNANDES DIAS 3 A insergdo dos intelectuais nao se reduz a um s6 campo, nem o tla produgdo nem 0 do dominio. Obviamente que, pela propria organizagio io mundo da produgao, as classes dominantes tentam inibir a formagio de livtelectuais para as classes subaltemnas. Um bom exemplo disso & 0 projeto do Taylor de transformar o operério em um gorila amestrado. J4 no proprio processo fabril, tenta-se obter uma disciplina que impeca ou, pelo menos, dificulte a constituigao de outras concepgées de mundo. Estado e hegemonia A identificagao entre construgio de um novo tipo de Estado e a realizagao de uma hegemonia nao é uma construgao artificial, elaborada por intelectuais, nem 0 produto de uma visao sectaria de militantes. Cada modo de produgao é uma maneira de resolver a materialidade mas é, também, a construgao das condigdes necessérias para tal. £ a criagio, rigorosamente falando, de uma nova racionalidade. Nesse sentido, o Estado (a polftica con- centrada das classes dominantes) nada mais faz do que criar um novo nexo psico-fisico e potenciar a possibilidade da hegemonia, elemento de sua propria permanéncia como Estado. Produgdo material, producdo simbélica, articulagao de direitos, criagao de intelectuais que expressem e ampliem a nova racionalidade em Ago. Isso é, no essencial, a nova civilizagao. Para que seja possivel a cons- trugao de uma nova racionalidade e resolver a materialidade dela decor- rente, € fundamental produzir uma nova Wellanschavung que fecunde e alimente “a cultura de uma era histérica.” (881, CDH 93) O Estado, qualquer que seja, para ser fundado, construfdo, exige a criagao de uma visio de mundo. Este é 0 sentido da expressdo segundo a qual o operdrio € 0 herdeiro da filosofia clssica alema, a filosofia entendida como a “teoria de uma classe que se tornaria Estado” (882, idem). A filosofia, feita histéria, realiza projeto(s) classista(s). Assim, a “hegemonia realizada sig- njfica a critica real de uma filosofia, « sua dialética real’ (idem, CDH 94. Grifo nosso) Aqui esté, com todas as letras, a impossibilidade de se pensar, pelo menos gramscianamente, a hegemonia como dominio ideolégico ou como maioria eventual. Se hegemonia significa a critica real de uma filosofia ela 86 pode ser pensada e articulada como projeto politico capaz de construir a identidade da classe hegeménica, ou candidata a, de permanentemente redefini-la, de articular a partir dessa identidade 0 seu projeto de signifi- cagao da histéria, significagao que terd que se construir no processo da luta. Com e contra aliados e adversdrios. Guardemos esta formulagio. — wW HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA Quando a burguesia, no proceso da sua revolucao, construiu seu Estado, criou, ao mesmo tempo, uma nova concepgao de Direito, uma nova ética e tratou de obter ativamente, do conjunto da sociedade, um confor- mismo de novo tipo. Criow solidariamente uma concepgao de Economia Politica, de Satide, de Educagao, de Ciéncia, de suas praticas e aparelhos. O Estado nacional-popular nao se apresentou, como os anteriores como um Estado de classe. Ele “é a manifestagao particular da totalidade mercantil organica do capitalismo”.* Foi essa nova ética estatal que permitiu a pos- sibilidade de “elaborar uma passagem organica das outras classes A sua, isto 6, ampliar a sua esfera de classe ‘técnica’ e ideologicamente (...). A classe burguesa se coloca a si mesma como um organismo en continuo movimento, capaz de ab- sorver toda a sociedade, assimilando-a ao seu nivel cultural e econdmico; toda a fungio do Estado é transformada: (...) se torna 'educador’.” (937 MPE 147. Grifo nosso) Quando, pelo contrario, a burguesia perde sua capacidade expansiva, se satura, “se desagrega; nao apenas nao assimila elementos novos, mas de- sassimila uma parte de si mesma (ou pelo menos as desassimilagdes sdo muito mais numerosas que as assimilagdes).” (idem, idem) Quando, como na fundagao do Estado burgués, se coloca com clareza a necessidade de trazer as demais classes para a esfera da classe dirigente e/ou dominante, se coloca necessariamente a forma universal da lei, que requer a igualdade juridica formal. Coloca-se, tendencialmente, a postura da luta ideolégica como construgao de um “conformismo” politico que assumiu, e nao poderia deixar de fazé-lo, a forma do pacto social fun- dador dessa nova racionalidade estatal. O pacto original correspondia assim a duas finalidades: a da articulagao entre as fraces politicas e, isso é fun- damental, a necessidade de equaliz4-las juridicamente para evitar que sua luta pusesse em perigo a nova ordem. Sobre isso é sempre titil ver a for- mulagao de Maquiavel sobre os perigos para o principe novo. O campo de agao das classes e dos seus Estados passa necessaria- mente pela questo da hegemonia: ampliagao da esfera de classe, absorgio da sociedade, momentos concretos da identificagio da classe dirigente/dominante com a sociedade. Hegemonia: projeto que permite ex- Pressar 0 programa, o horizonte ideolégico, no qual as demais classes se movem. Horizonte que, ao proceder 4 padronizacao, ao “conformismo”, desorganiza, inviabiliza, ou tenta, os projetos das demais classes. Desor- ganiza ativa ou passivamente: ativamente ao sobrepor com o seu projeto aos outros projetos e assim descaracteriza-los; passivamente pela repressao pura e simples aos demais projetos. Horizonte que é estruturagéo do campo das lutas, das aliangas, do permitido e do interdito. Racionalidade de classe que se faz histéria e que obriga as demais classes a pensar-se nessa histéria que nao é a delas. PPIMUNDO FERNANDES DIAS 35 Tanto © capitalismo quanto o Estado nacional tendem cada vez Wis & criagdo e utilizagdo dos intelectuais. A criagio dos intelectuais e de utras racionalidades, das condigdes de existéncia delas. E isso se fez, no caso das revolugées burguesas inglesa ¢ francesa, “privadamente”, como “naturalidade”, como simples extensdo dessa racionalidade sobre a so- éiedade. Como hegemonia. Racionalidade que se traduz em cada um dos campos de intervencdo histérica: da produgio e reprodugio da materiali- dade ao campo do estético e/ou da afetividade. A especializagio tipica das formagées sociais capitalistas acabou por criar para si “todo um corpo burocratico pois, além dos escritérios espe- dializados de pessoas competentes, que preparam o material técnico para os corpos deliberantes, cria-se um segundo corpo de funciondrios mais ou menos ‘voluntarios’ e desinteressados, escolhidos as vezes na industria, nos bancos, nas finangas. Este 6 um dos mecanismos através dos quais a burocracia de carreira terminou por controlar os regimes democraticos e parlamentares; atualmente, 0 mecanismo vai se ampliando organicamente € absorve em seu circulo os grandes especialistas da atividade pratica privada, que controla assim, quer os regimes, quer as burocracias.” (1532, IOC 119) Através desse poder especializado, a burocracia domina o aparelho do Estado, exercendo de forma aparentemente técnica 0 dominio das classes dominantes. Estado e capitalismo tendem, assim, a fundir-se ainda mais in- timamente. Funcionarios do Estado e das empresas tendem a formar um corpo relativamente homogéneo e intercambidvel. Essa integragéo do “pes- soal especializado na técnica politica com o pessoal especializado nas questdes concretas de administragao das atividades praticas essenciais das grandes e complexas sociedades nacionais modernas” (idem, idem), € 0 re- sultado do processo de renovacao dos dirigentes estatais, necessdrios ao de- senvolvimento do estado nacional no momento atual do capitalismo. O empirismo politico nao é s6 insuficiéncia mas, principalmente, ineficdcia. “O tipo tradicional do ‘dirigente’ politico, preparado apenas para as atividades juridico-formais, torna-se anacronico e representa um perigo para a vida es- tatal: 0 dirigente deve ter aquele minimo de cultura geral técnica que The permita, se nao ‘criar’ autonomamente a solugio justa, pelo menos, saber julgar entre as solugées projetadas pelos especialistas, ¢ escolher ento a solucao justa do ponto de vista ‘sintético’ da técnica politica.” (idem, IOC 119-20) Na andlise do modo de insercao dos intelectuais no mundo mo- derno, isso fica claramente colocado. A prépria afirmagio de um tipo de intelectual sobre os demais jé expressa a dominacao. Hierarquiza e classifica © conjunto desses intelectuais em relagao a racionalidade dominante. Para as classes dominantes, sob 0 capitalismo, isso nao é diferente. Leva-se em — ” -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA conta “to somente a imediata fungio social da categoria profissional dos intelectuais, isto é, leva-se em conta a diregao sobre a qual incide 0 peso maior da atividade profissional espectfica, se na elaboragao intelectual ou se no esforgo muscular-nervoso.” (1550, IOC 7) Isso, em si mesmo, jé reproduz uma dominagao de classe. Desqualifica o “saber” e 0 “fazer” das outras classes, apropria-se deles. Caracterizado o saber das classes subalternas como “prético” e “experiéncia limitada”, este é transformado pelo passo magico da “ciéncia” — saber codificado por outra racionalidade — as vezes sem grandes modificagoes em tecnologia, em progresso cientifico. Desquali- ficagao nao apenas de um saber de outra(s) classe(s), mas também de outras civilizagoes. Desqualificar 0 trabalho cognitivo das classes subalternas, pensar suas criagdes como “praticas empiricas”, significa negar aqueles produtores de conhecimento, cultura, arte, etc. a identidade de intelectual. Negar, ob- viamente, direito de cidadania a toda essa producao. Esse procedimento am- Plia @ reforca a subalternidade das outras classes. “Mas a propria relagdo entre esforco de colaboragao intelectual-cerebral e esforgo muscular-nervoso nao é sempre igual; por isso existem graus diversos de atividade especifica intelectual. Nao existe atividade humana da qual se possa excluir toda in- tervencao intelectual, ndo se pode separar o homo faber do homo sapiens. Fie nalmente, todo homem fora de sua profissio, desenvolve alguma atividade intelectual, ou seja, € um ‘filésofo’, um artista, (..) participa de uma con- cepgao de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui, Portanto, para manter ou para modificar uma concepgio de mundo, isto é, Para promover novas maneiras de pensar. O problema da criagto de wma nova camada intelectual consiste em elaborar criticamente a atividade intelectual que existe em cada um, em um determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relagio com 0 esforgo muscular nervoso, no sentido de um novo equilibrio, e con- seguindo-se que 0 préprio esforgo muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade pritica geral, que inova continuamente 0 mundo fisico e social, se torne 0 fundamento de uma nova e integral concepgao de mundo.” (1550-1, IOC 7-8. Grifos nossos). Insisto: trata-se de “fabricar 0 fabricante.” (2018, R 105) Por fim, € preciso mostrar a contradicao espelhada no fato de que, tradicional e vulgarmente, se Ppensam como intelectuais o literato, o filésofo, © artista. Embora estes se vejam, e até mesmo sejam vistos, como os “ver- dadeiros intelectuais”, tendem a ser subalternos. Na racionalidade capita- lista, em especial em pafses como o Brasil, eles sio uma espécie de ormamento, na prética uma desnecessidade. No mundo moderno, “a edu- cagdo técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais Primitivo ou desqualificado, deve construir a base do novo tipo de intelec- tual. (...) O modo de ser do novo intelectual nao Pode consistir mais na elo- (OMUNDO FERNANDES DIAS 37 qiéncia, motor exterior e momentineo das paixdes, mas em um imiscuir-se itivamente na vida pratica, como construtor, organizador, ‘persuasor per- Mmanente’ (...) —e, todavia, superior ao espirito matematico abstrato. Da téc- nica-trabalho, chega-se @ técnica-ciéncia e A concepgo humanista histdrica, sem a se permanece ‘especialista’ e nao se torna ‘dirigente’ (especialista + polilico).”” , 1OC 8. Grifo nosso) Nao se trata, obviamente, de responder a um determinismo economicista com um outro, ideologicista, voluntarista, mas de afirmar essa \nidade indissolivel de economia e politica que se expressa, se faz, refaz e desfaz, se reforga ou se enfraquece, pela expressao ativa das classes em con- fronto. Economia, Direito, Ideologia, Politica... Estrutura de Classes em movimento. S6 a classe “que coloque a si mesma como passivel de assimilar toda a sociedade, e seja, ao mesmo tempo, realmente capaz de exprimir este proceso, leva a perfeigao esta concepcao de Estado e de direitos” (937, MPE 147), € pode pensar o fim do Estado e do direito, “toads intteis por trem exaurido as suas tarefas ¢ terem sido absorvidos pela sociedade civil” (idem, idem), podendo, em suma, propor uma nova Weltanschauung. Quando o Estado “atua essencialmente sobre forgas econdmicas (...) reorganiza e (...) desenvolve o aparelho de produg&o econdmico, (...) inova a estrutura; ndo (Se) deve deduzir conseqiientemente que os fatos da super- estrutura sejam abandonados a si mesmos, ao seu desenvolvimento espon- neo, a uma germinagdo casual ¢ esporédica. O Estado, mesmo neste campo, 6 um instrumento de ‘racionalizacao’, de aceleragdo ¢ de taylori- zacao, atua segundo um plano, pressiona, incita, solicita, e ‘pune’.” (1571, MPE 96)” © Estado, como “educador”, varia sua forma e seus métodos ten- dendo “precisamente a criar um novo tipo de civilizagao e de cidadao” (1570, idem). Ou, pelo contrario, a assumir a pura conservagio do status quo. Mesmo quando aparentemente ele se mantém “afastado” da luta. Educa mesmo por auséncia. O que significa que jé foi suficientemente incorporado enquanto agao. Como ordem. Toda forma estatal, todo processo produtivo, produz necessaria- mente uma forma particular de conformismo. Todos os membros de uma dada sociedade sao organizados, saibam-no ou nao, no interior dela. Cada individuo é um entrecruzamento, um carrefour, de orientagdes diversas, freqiientemente contraditérias. Cada indivfduo 6, assim, a “unidade na di- versidade”, a “sintese de miltiplas determinagées”. Membro, consciente ou nao, de uma “multiplicidade de sociedades particulares, de cardter duplo, natural e contratual ou voluntario, uma ou mais prevalecem relativa ou ab- solutamente, constituindo 0 aparato hegeménico de um grupo social sobre ” HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA © resto da populacao ou sociedade civil), base do Estado entendido estri- tamente como aparato governativo-coercitivo” (800, MPE 151), ele nao é nunca “desorganizado e sem partido” (idem, idem). As classes trabalhadoras sao organizadas por uma légica e por aparelhos (partidos, escolas, etc.) que se podem expressar seus interesses imeciatos, ndéo podem, contudo, fazé-lo com seus projetos. E nao podem Porque esses aparelhos ¢ essa légica foram construfdos para realizar outra racionalidade. Assim, as classes trabalhadoras aparecem objetivamente desorganizadas em relacéo a si mesmas, porque organizadas em relacdo a racionalidade capitalista. O caréter democrético ou ndo de uma dada so- ciedade é clarificado pela eticidade de um Estado, de um determinado nexo psico-fisico que expressa, também, a consciéncia ou nao do conjunto das classes. Organizar € um verbo transitivo. Organizar é organizar algo. Coloca-se, assim, como atual a questao da necessidade de se definir “a von- tade coletiva e a vontade politica em geral, no sentido moderno, a vontade como consciéncia atuante da necessidade histérica, como protagonista de um drama hist6rico real e efetivo.” (1559, MPE 7) Organizar implica definir com quem e para que. Ou seja, remete objetivamente a questao dos intelec- tuais. Organizar é um verbo que admite a reflexividade: organizar-se, auto- organizar-se. Vale dizer: o trabalho de organizagao de, para e com, comeca pelo trabalho consigo mesmo. De subalterna a hegemonica O significado da passagem de uma classe subalterna & posicéo hegeménica se expressa pela tomada de posse de si mesma, pela sua afir- magao enquanto coletividade individualizada face as demais classes. “Nao se Pode falar de elite-aristocracia-vanguarda como uma coletividade indistinta © caética. (...) A coletividade deve ser entendida como produto de uma elaboragio de vontade e pensamento coletivo atingido pelo esforco indivi- dual concreto, e no por um processo fatal, estranho aos individuos: portanto, obrigagio da disciplina interior e nado apenas daquela externa e mecanica.” (751, IOC 168. Grifo nosso) Essa idéia de coletividade nao supde, nem poderia supor, a idéia de homogeneidade. As polémicas e cisdes, normais no desenvolvimento da identidade da classe, devem ser enfrentadas, pois “evité-las. significa apenas postergé-las para quando serao perigosas e diretamente catastréficas.” (idem, idem) Essa néo 6 uma declaragao de principio, abstrata. f, antes pelo con- trdrio, condigio vital da construcao da politica na perspectiva da construgio da hegemonia: “a auséncia de uma democracia real, de uma real vontade HPMUNDO FERNANDES DIAS 39 toletiva nacional” (750-1, idem) e a passividade dos individuos leva “a um despolismo mais ou menos larvar da burocracia.” (751, idem. Grifo nosso) Critica # Wutocritica (mas nao o simulacro ritualistico dos tempos stalinistas) silo, portanto, condigdes essenciais para um projeto que deseja a construgio do five bloco histérico. Aqui esté expressamente colocada a profunda dialética da relagio Mecanicismo/subalternidade/perda de liberdade, que nos permitiré ter elareza do campo de possibilidades. Campo que se atualiza, se poténcia ou nega, pela presenca/auséncia da intervengio consciente da vontade hu- mana. A autonomia nao é apenas um requisito face (s) outra(s) classe(s). A classe como “unidade na diversidade” é especificada, ela propria, pela Autonomia dos individuos que a compéem. Pensé-la como matriz tnica a partir da qual se constituem os individuos como sua repetigéo ao nivel mi- éro é nao entendé-la como produto da multiplicidade desses individuos. A classe é, portanto, um coletivo de individuos. Coletivo que deve ser enri- quecido pela histéria empirica desses individuos enquanto construtores da(s) racionalidade(s) social (ais). O intelectual — ai compreendido o partido — tem que ser de- mocratico como express’o de uma necessidade ¢ nao meramente por cél- culo: ele se concebe como ligado “por milhées de fios a um dado grupamento social e, por seu trémite, a toda a humanidade (...) nao se poe como algo de definitivo e rigido, mas como algo tendente a ampliar-se a todo um agrupamento social, que é, ele também, concebido como tendente 4 unificar toda a humanidade.” (750, IOC 167) A obtengéo da autonomia enquanto projeto ideolégico é um dos elementos fundamentais para a criagdo de uma vontade coletiva nacional- popular. Essa autonomia requer e exige que se venca a tentagdo economi- cista, dado que esta conduz necessariamente a subordinagio ideolégica O papel do partido, enquanto experimentador historico,*? 6 fundamental. Cabe a ele, enquanto projeto, construir com a classe, e nao sobre ela, a questio da vontade coletiva recusando permanentemente as posturas economicistas e/ou voluntaristas. O exame da questao do livre cambismo e do sindicalismo teérico feito por Gramsci permite-nos compreender 0 peso da subordinagao ideol6gica ou, pelo contrario, a forca da autonomia de classe. Enquanto o livre cambismo expressa a postura de uma classe dominante e dirigente, 0 sindicalismo teérico é uma postura de classe ainda subalterna. O movimento do livre-cambismo se baseia na “distingéo entre sociedade politica e so- ciedade civil, que de distingao metédica se torna e é apresentada como distingao organica. Assim, se afirma que a atividade econdmica é propria HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA da sociedade civil, e que o Estado nao deve intervir na sua regulamentacao. Mas como na realidade fatual sociedade civil e Estado se identificam, deve- se considerar que também o liberalismo é uma ‘tegulamentagao’ de cardter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos préprios fins, ¢ nao a expresséo espontanea, automatica, do fato econdmico. Portanto, o liberalismo é um programa Politico, destinado a mudar, enquanto triunfe, os dirigentes de um Estado e © programa econdmico do proprio Estado, isto é, de mudar a distribuigio da renda nacional.” * (1590, MPE 32) Programa politico de classe dominante:# J4 o sindicalismo te6rico é uma postura de classe subalterna que ainda nao ultrapassou a fase econémico-corporativa e, portanto, nao se coloca como apta a “elevar-se a fase da hegemonia ético-politica na so- ciedade civil, e dominante no Estado.” (idem, MPE 33) No fundamental ele nada mais é do que um economicismo, “justificado com algumas afirmacSes mutiladas e, portanto, banalizadas da filosofia da praxis” (idem, idem) que ou nao coloca a possibilidade de transformagio da classe subaltema em classe dirigente, ou se apresenta “em formas incongruentes e ineficientes” (1591, idem) ou “porque se afirma o salto imediato do regime dos grupos aquele da perfeita igualdade e da economia sindical” (idem, idem). © economicismo, forma particular de determinismo mecanico, tende a negar as “expressdes de vontade, de iniciativa e de aco politica e intelectual, como se estas nao fossem uma emanacao organica das necessi- dades econdmicas e, mesmo, a tinica expressdo eficiente da economia”. (idem, idem) Nao perceber essa relagdo fundamental impedir-se de colocar a questao da hegemonia, é condenar-se & perpétua subalternidade. Na forma de “superstigao economicista” (1595, MPE 37), a filosofia da praxis adquiriu enorme prestigio “entre as massas populares ¢ entre 0§ intelectuais de meia pataca, que ndo querem cansar 0 cérebro, mas querem Parecer espertissimos” (idem, idem). Prestigio ganho ao preco de sua capaci- dade de “expansividade cultural na esfera superior do grupo intelectual” (idem, idem). Prestigio estéril dado que, no essencial, representa uma grave perda de sua capacidade de intervencao politica. Reduzindo tudo mecani- camente ao econémico, as leis férreas ¢ exteriores de um desenvolvimento a-hist6rico, 0 economicismo acaba por esquecer a “tese segundo a qual os homens adquirem consciéncia dos conflitos fundamentais sobre o terreno. das ideologias” (idem, idem); transformou-se em negacao da pesquisa histérico-cientifica e reduziu o conhecimento histérico em “um continuo marché de dupes, um jogo de ilusionismos e de prestidigitagao. A atividade ‘critica’ se reduziu em desvelar truques, em suscitar escndalos” (idem, idem). Gramsci, dizia em 1917, em aberta polémica com Claudio Treves, que nessa HOMUNDO FERNANDES DIAS a Versio naturalista a filosofia da prixis se transformara em “teoria da inércia lo proletariado”. Perde-se nao apenas a propria concepglo de totalidade. Ao jogar-se a crianga com a Agua do banho, mutila-se a dialética e caminha- % para a derrota. O abastardamento do marxismo, tal como vivido por muitos dos seus “prdticos”, no fundamental, esqueceu-se de algo fundamental: 0 da éringio rigorosa dos seus préprios intelectuais. Com isso, sucumbiu ao ma- terlalismo mecanicista. Ganhou nao a massa das classes subalternas, mas apenas a aparéncia disso. Aqui, aparéncia é sindnimo de ilusao e, portanto, de equivoco, de auto-desconhecimento que se volta contra quem acredita nele. Ao criar seus intelectuais dogmiatica e sectariamente, ao subrotind-los # um pensamento estatico, ele foi absorvido, neutralizado e esterilizado. Nao colocou a elevagao do pensamento como necessidade e optou na relacio in- telectuais-simples, como a igreja, pela disciplina dos intelectuais. $6 que como sao projetos distintos o que para a religido pode ser forca, para a vulgata da filosofia da prévis, mutilada e reduzida a nulidade, era pura perda. Sob 0 stalinismo (nome coletivo), essa vulgata da filosofia da praxis passou a ser uma teologia, com dogmas infaliveis, leis inevitaveis. Vale dizer, ndo compreendeu a histéria, Sofreu-a, visto que perdeu capacidade de intervengao e de educagio politica. Perdeu, no circulo dos intelectuais, a luta pela hegemonia. O marxismo, que exercera um enorme fascinio entre os grandes intelectuais, ao reduzir-se a um mero catecismo, nao conseguiu produzir, sequer, seus intelectuais. Facilitou a absorcdo, a captura, dos seus militantes pelas ideologias e projetos adversérios. Um bom exemplo disso é a perplexidade de certos “marxistas” diante da chamada crise do Leste e sua passagem ao campo do pensamento liberal. Cometeu-se outro equivoco complementar, e téo grave quanto o anterior: 0 de “esquecer-se” de que “as ‘crengas populares’ ou as crengas do tipo das crengas populares tém a vali- dade de forgas materiais” (idem, idem). O economicismo combinado com a auséncia de democracia interna levou, como Gramsci jé salientara, ao “despotismo mais ou menos larvar da burocracia”. (751, IOC 168) Veremos mais adiante que, quando a vulgata da filosofia da préxis assume a forma de religiéo, no mais como expresso de um grupo subalterno, mas de um grupo que jA é dirigente, esse fatalismo leva necessariamente a permanente subalternidade, @ permanente possibilidade de der- rota e, 0 que & mais grave, ao isolamento no interior das classes tralalhadoras. Em um processo de transformagao revolucionéria, 0 mecanicismo tende a absolutizar os interesses imediatos sem analisar a relagao de forcas, nao distingue os aliados, nem compreende seus projetos. Néo pode, por- tanto, perceber que a “hegemonia pressupée, indubitavelmente, que se a -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA levem em conta os interesses e as tendéncias dos grupos sobre os quais a hegemonia seré exercida, que se forme um certo equilfbrio de compromisso, isto 6, que o grupo dirigente faga sacrificios de ordem econémico-corpora- tiva, mas é também indubitével que tais compromissos e sacrificios nao pos- sam referir-se ao essencial, dado que se a hegemonia é ético-politica, nao pode deixar de ser econdmica, nao pode deixar de ter o seu fundamento na fungao decisiva que o grupo dirigente exerce no nticleo decisivo da ativi- dade econémica.” (1591, MPE 33) O campo da hegemonia ndo é apenas o da luta politica, mas também o da teoria. A formagao da vontade coletiva nacional-popular O partido se pretende ser o intelectual das classes subalternas, tem que colocar para si duas tarefas basicas: a formagao de uma vontade coletiva nacional-popular e a correlata reforma intelectual e moral das massas. Ou seja, construir uma nova forma civilizatéria. Tem que colocar na ordem do dia a “reforma econémica e a modificagdéo na posigio social e no mundo econémico” (1561, MPE 9) que sao as formas e as possibilidades concretas de sua realizagdo. Deve, a um sé. tempo, descontruir “todo o sistema de relagoes intelectuais e morais” (idem, idem), base sobre a qual se assenta a velha racionalidade e, ao mesmo tempo, “inventar”, construir o novo bloco histérico. O projeto da hegemonia da classe operdria é entao pensado — e nao poderia deixar de s¢-lo — como projeto de autonomia dos individuos: “A afirmagio de que o Estado se confunde com os individuos (com os in- dividuos de um grupo social), como elemento de cultura ativa (como. movimento para criar uma nova civilizagao, um novo tipo de homem e de cidadao) deve servir para determinar a vontade de construir no invélucro da so- ciedade politica uma complexa e bem articulada sociedade civil, em que 0 simples individuo se governe por si, sem que por este seu autogoverno entre em conflito com a sociedade politica, pelo contrério, tomando-se-lhe a con- tinuagio normal, o complemento organico.” (1020, PP 210-1) Isso sé é possivel para a classe que coloque “o fim do Estado e de si mesm(a) como fim a atingir”, s6 ela “pode criar um Estado ético, tendente a por fim as divisdes intemas de dominados, etc. e a criar um organismo social unitario técnico-moral.” (1050, MPE 145) Trabalhar a questao da formagio de uma vontade coletiva significa trabalhar as formas de articulagéo mental das classes subalternas e das dominantes. Significa construir uma racionalidade distinta da racionalidade dominante, construir a “ ‘concepgéo de mundo e da vida’, implicita em JDMUNDO FERNANDES DIAS a grande medida, de determinados estratos (...) da socledade, em con- traposigdo as concepgées do mundo ‘oficiais’ (...) que se sucederam no de- senvolvimento histérico.” (2311, LVN 184) Concepgdes do mundo caracterizadas por sua nao elaboracao, sua assistematicidade, fragmen- tariedade e multiplicidade. Normalmente, essas concepgoes aparecem como folclore, como justaposigio mecanica, como um “aglomerado indigesto de fragmentos de todas as concepgdes do mundo e da vida que se sucederam na historia.” (2312, idem)*° A concepgao de mundo das classes subalternas, obviamente, nao se reduz ao folclore, nem mesmo se apresenta tio des- tacada da racionalidade dominante. Ilustrativo desse argumento é a cultura da classe operéria, até mesmo pela sua insergdo na racionalidade da pro- dugio capitalista. Nao se pode deixar de reconhecer ¢ trabalhar com as concepgdes das demais classes subalternas. Isto permitiré “conhecer que outras con- cepgdes do mundo e da vida trabalham, de fato, a formagao intelectual e moral das jovens geracées.” (2314, LVN 186) Sé6 assim se poderé trabalhar de forma mais eficaz e determinar realmente “o nascimento de uma nova cultura has grandes massas populares” (idem, LVN 186-7) e desaparecer “a separacio entre cultura moderna e cultura popular ou folclore” (idem, idem). O pressuposto do trabalho de critica/desconstrugao 6, pois, 0 co- nhecimento do(s) saber(es), da(s) experiéncia(s), dos subaltemos. A cultura dessas classes nao pode ser vista como exterioridade, como erro e/ou atraso. Trata-se, nés 0 sabemos, de concepgdes que organizam praticas e permitem entender 0 porqué e 0 como da subordinagao, do isolamento, da hierarqui- zacao vigente. E sobre elas, transformando-as, mas tomando-as em consi- deragao, que se pode atuar. Essas concepgies nao sao o erro, mas a linguagem desse conjunto da populagao. Isso nada tem a ver com uma hipécrita Vox populi, vox dei. Elas sao 0 campo, o laboratério onde a filosofia da praxis atuaré na elevagio dos “estratos deprimidos da populacao”. Esse trabalho de tradugdo, de construcao politico-teérico 6 equiva- lente “intelectualmente ao que foi a Reforma nos paises protestantes.” (idem, LVN 187) O sentido de elevagao das classes deprimidas da sociedade nao se refere tinica e exclusivamente ao plano da materialidade imediata. O es- tudo da filosofia se coloca como condigo da construgao de uma nova visio de mundo, elemento vital na realizacio da hegemonia. Antes de mais nada é preciso desconstruir 0 mito ideolégico da impossibilidade, ou quase, das camadas populares de realizarem o trabalho filos6fico e/ou teérico. £ pre- ciso “demonstrar que todos os homens sao ‘filésofos’, definindo os limites e os caracteres desta ‘filosofia espontanea’ de ‘toda gente”. (1375, CDH 11) HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA A afirmagao segundo a qual “nao existe homem normal e sao in- telectualmente, que nao participe de uma determinada concepgio de mundo” (1063) enfatiza que a cultura, a filosofia, enfim, a atividade intelec- tual no é patriménio especifico de nenhum grupo. Todos sao filésofos, a seu modo. Trata-se de determinar o nivel da critica e da consciéncia: “E preferivel ‘pensar’ sem ter consciéncia critica disso, de modo desagregado e ocasional, isto ¢, ‘participar’ em uma concepcio de mundo ‘imposta’ me- canicamente pelo ambiente externo, isto é, por um dos tantos grupos sociais Nos quais todos est4o automaticamente envolvidos desde a sua entrada no mundo consciente (que pode ser a prdpria aldeia ou provincia, que pode ter origem na paréquia e na ‘atividade intelectual’ do cura ou do velho pa- triarca cuja ‘sabedoria’ dita lei, na mocinha que herdou a sapiéncia das fei- ticeiras ou no pequeno intelectual tornado Acido na propria estupidez e impoténcia para agir); ou € preferivel elaborar a propria concepsao de mundo, consciente e criticamente e, portanto, em conexao com tal trabalho do préprio cérebro, escolher a prépria esfera de atividade, participar ati- vamente na producao da histéria do mundo, ser guia de si mesmo e nao aceitar, passiva e cegamente, do exterior a marca da propria personalidade?” (1375-6, CDH 12) A teligido, 0 senso comum e a filosofia sdo formas intelectuais, cu- jas especificidades ¢ articulagoes 6 necessdrio pensar. “Nao existe apenas um ‘senso comum’, mas ele é também um produto e um devir histérico. A filosofia é a critica e a superagao da religido e do senso comum, e em tal sentido coincide com o ‘bom senso’ que se contrapde ao senso comum” (1378, CDH 14). Do mesmo modo, também nao “existe a ‘filosofia’ em geral: existem diversas filosofias, e sempre se escolhe entre elas” (idem, idem). A filosofia 6 a mais racional e coerente das concepgdes de mundo. A atividade filoséfica é, a0 mesmo tempo, “elaboragao ‘individual’ de con- ceitos sistematicamente coerentes (...) luta para transformar a ‘mentalidade’ popular e difundir as inovagbes filoséficas que se demonstraram ‘histori camente verdadeiras’ ” (1330, CDH 36). Essa questao é decisiva: todo e qualquer “ato histérico s6 pode ser realizado pelo ‘homem coletivo’, (..) Pressupée a obtengao de uma unidade ‘cultural-social’ pela qual uma mul- liplicidade de quereres desagregados, com heterogeneidade de fins, sobre a base de uma (igual) e comum concepgao de mundo (geral e particular, tran- sitoriamente [por via emocional] ou permanentemente operante, por cuja base intelectual assim radicada, assimilada, vivida, que se pode tornar paixao)”. (1331, CDH 36-7) Trata-se da producdo critica de uma visio de mundo diferenciada © em antagonismo com a das classes dominantes. Visio unitéria” que tra- EDMUNDO FERNANDES DIAS: ro balhe as visdes errdticas, fragmentarias, parcelares e subordinadas das classes subalternas. Processo de critica sobre todo 0 actimulo de experiéncias anteriores do mundo do trabalho que deve, necessariamente, estar em de- bate critico com a racionalidade dominante. Movimento duplo de buscar autonomizar-se dentro de um campo minado por outras racionalidades, A definig’o desse campo de construgao de identidade das classes (rabalhadoras € essencialmente o terreno da hegemonia. “Toda relagiio de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relagao pedagégica, e se verifica no apenas no interior de uma nagio, entre as diversas forgas que a compoem, mas em todo o campo internacional e mundial, entre complexos de civilizagdes nacionais e conti- nentais.” (idem, CDH 37. Grifo nosso) Pedagégica nao no sentido de que ela se reduza “as relagoes especificamente ‘escolares’, pelas quais as novas Beragoes entram em contato com as antigas, e lhes absorvem as experiéncias © os valores historicamente necessérios, ‘amadurecendo’ e desenvolvendo luma relacdo prépria, histérica e culturalmente superior” (idem, idem); pelo contrario, ela “existe em toda a sociedade no seu conjunto e para todo in- dividuo em relagio aos outros individuos, entre camadas intelectuais e nao- intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e sequazes, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército” (idem, idem). Ela € pedagégica no sentido em que é experiéncia coletiva de emancipagio. Experiéncia que nega/supera hierarquias. Lembremos a afirmacao anterior sobre 0 reconhecimento pela ciéncia politica da existéncia de dirigentes e dirigidos, de governantes e govemados. Existéncia essa que deve ser negada ou afirmada quando se propde um novo projeto. Experiéncia que supoe sempre, € necessariamente, que “a relacdo entre mestre e aluno é uma re- lacao ativa, de relagdes reciprocas e, portanto, todo mestre 6 sempre aluno, @ todo aluno professor.” (idem, idem) Uma nova visio de mundo supe ¢ exige necessariamente 0 de- bate-ruptura, que nunca é pura negacao abstrata, com toda a experiéncia historica. Supde a criagio de um novo tipo de intelectual. £ sempre uma interferéncia contraditoria entre as classes, seus intelectuais ¢ © complexo cultural vigente: “a personalidade de um filésofo individual é dada também pela relagio ativa entre ele e o ambiente cultural que ele quer modificar, ambiente que reage sobre 0 filésofo e, obrigando-o a uma continua autocritica, funciona como ‘professor” (idem, idem). As liberdades de pen- samento ¢ de expressio e a luta histérica pela sua realizagio sto condigées politicamente necessdrias para poder-se realizar historicamente “um novo tipo de fildsofo que se pode chamar ‘filésofo democratico’, do filésofo con- vencido de que a sua personalidade nao se limita ao préprio individuo fisico, mas é uma relagio social ativa de modificagio do ambiente cultural,” (1332, CDH 37-8) -HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA A afirmagao segundo a qual “nao existe homem normal e sdo in- telectualmente, que nao participe de uma determinada concepcao de mundo” (1063) enfatiza que a cultura, a filosofia, enfim, a atividade intelec- tual nao € patriménio especifico de nenhum grupo. Todos sio filésofos, a seu modo. Trata-se de determinar o nivel da critica e da consciéncia; “E preferivel ‘pensar’ sem ter consciéncia critica disso, de modo desagregado e ocasional, isto é, ‘participar’ em uma concepgao de mundo ‘imposta’ me- canicamente pelo ambiente externo, isto é, por um dos tantos grupos sociais nos quais todos esto automaticamente envolvidos desde a sua entrada no mundo consciente (que pode ser a propria aldeia ou provincia, que pode ter origem na paréquia e na ‘atividade intelectual’ do cura ou do velho pa- triarca cuja ‘sabedoria’ dita lei, na mocinha que herdou a sapiéncia das fei- ticeiras ou no pequeno intelectual tornado Acido na prépria estupidez ¢ impoténcia para agir); ou € preferivel elaborar a prépria concepgao de mundo, consciente e criticamente e, portanto, em conexdo com tal trabalho do préprio cérebro, escolher a propria esfera de atividade, participar ati- vamente na producao da histéria do mundo, ser guia de si mesmo e nao aceitar, passiva e cegamente, do exterior a marca da pr6pria personalidade?” (1375-6, CDH 12) A religiao, o senso comum e a filosofia sao formas intelectuais, cu- jas especificidades e articulacdes é necess4rio pensar. “Nao existe apenas um ‘senso comum’, mas ele é também um produto e um devir histérico. A filosofia € a critica e a superagao da religiao e do senso comum, e em tal sentido coincide com o ‘bom senso’ que se contrapée ao senso comum” (1378, CDH 14). Do mesmo modo, também nao “existe a ‘filosofia’ em geral: existem diversas filosofias, e sempre se escolhe entre elas” (idem, idem). A filosofia 6 a mais racional e coerente das concep¢des de mundo. A atividade filoséfica é, a0 mesmo tempo, “elaboragao ‘individual’ de con- ceitos sistematicamente coerentes (...) luta para transformar a ‘mentalidade’ Popular e difundir as inovagées filoséficas que se demonstraram ‘histori- camente verdadeiras’ ” (1330, CDH 36). Essa questdo é decisiva: todo e qualquer “ato hist6rico sé pode ser realizado pelo ‘homem coletivo’, (..) Pressupée a obtencao de uma unidade ‘cultural-social’ pela qual uma mul- tiplicidade de quereres desagregados, com heterogeneidade de fins, sobre a base de uma (igual) e comum concepgao de mundo (geral e particular, tran- sitoriamente [por via emocional] ou permanentemente operante, por cuja base intelectual assim radicada, assimilada, vivida, que se pode tornar paixao)”, (1331, CDH 36-7) Trata-se da producao critica de uma visio de mundo diferenciada © em antagonismo com a das classes dominantes. Visdo unitéria®” que tra- EDMUNDO FERNANDES DIAS 6 balhe as vis6es errdticas, fragmentérias, parcelares ¢ subordinadas das classes subalternas. Proceso de critica sobre todo o actimulo de experiéncias anteriores do mundo do trabalho que deve, Necessariamente, estar em de- bate critico com a racionalidade dominante. Movimento duplo de buscar autonomizar-se dentro de um campo minado por outras racionalidades, A definigio desse campo de construgao de identidade das classes trabalhadoras 6 essencialmente o terreno da hegemonia. “Toda relagito de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relagio pedagégica, e se verfica ndo apenas no interior de uma nagio, entre as diversas forcas que a compoem, mas em todo 0 campo internacional e mundial, entre complexos de civilizagdes nacionais e conti- nentais.” (idem, CDH 37. Grifo nosso) Pedagégica nao no sentido de que ela se reduza “as relagées especificamente ‘escolares’, pelas quais as novas geragoes entram em contato com as antigas, ¢ Ihes absorvem as experiéncias € os valores historicamente necessérios, ‘amadurecendo’ e desenvolvendo tuma relacao prépria, hist6rica e culturalmente superior” (idem, idem); pelo contrario, ela “existe em toda a sociedade no seu Conjunto e para todo in- dividuo em relagao aos outros individuos, entre camadas intelectuais e ndo- intelectuais, entre governantes e governados, entre elites ¢ sequazes, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos de exército” (idem, idem). Ela € pedagégica no sentido em que é experiéncia coletiva de emancipagio. Experiéncia que nega/supera hierarquias. Lembremos a afirmacao anterior sobre o reconhecimento pela ciéncia politica da existéncia de dirigentes e dirigidos, de governantes e govemados. Existéncia essa que deve ser negada ou afirmada quando se propde um novo projeto. Experiéncia que supse sempre, e necessariamente, que “a relagéo entre mestre e aluno 6 uma re- lagao ativa, de relagdes reciprocas e, portant, todo mestre é sempre aluno, e todo aluno professor.” (idem, idem) Uma nova visio de mundo supée e exige necessariamente o de- bate-ruptura, que nunca € pura negagio abstrata, com toda a experiéncia hist6rica. Supde a criagao de um novo tipo de intelectual. £ sempre uma interferéncia contraditéria entre as asses, seus intelectuais e o complexo cultural vigente: “a personalidade de um filésofo individual é dada também pela relacio ativa entre ele e ambiente cultural que ele quer modificar, ambiente que reage sobre 0 filésofo e, obrigando-o a uma continua autocritica, funciona como ‘professor’ (idem, idem). As liberdades de pen- samento e de expressdo e a luta histérica pela sua realizagao so condigdes Politicamente necessérias para poder-se realizar historicamente “um novo tipo de filésofo que se pode chamar ‘filésofo democratico’, do filésofo con- vencido de que a sua personalidade nao se limita ao proprio individuo fisico, mas é uma relagdo social ativa de modificagdo do ambiente cultural.” (1332, CDH 37-8) . — HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA O marxismo é essa nova visio de mundo, essa nova filosofia su- perior. Vé 0 processo economia/ politica como construgao ativa dos homens, ¢ afirma a estrutura como a articulagao especifica das classes, de suas prati- cas e confrontos. “A unidade é dada pelo desenvolvimento dialético das contradi¢des entre o homem e a matéria prima (natureza-forcas materiais de produgao).” (868, CDH 112) Essa filosofia superior postula a intervengao dos homens, negando sempre, como elemento deteriorado, toda forma de deter- minismo economicista. A filosofia 6, entao, “relagao entre a vontade humana (superestru- Tura) ¢ a estrutura econémica” (idem, idem). Gramsci vé como, na economia, “os negadores da teoria do valor caem no crasso materialismo vulgar, colo- cando as maquinas em si — como capital constante ou técnico — como pro- dutoras de valor, exteriormente ao homem que as conduz”.®® (idem, idem) O mesmo ocorrendo na politica, local da “intervengio do Estado (vontade cen- tralizada) para educar 0 educador, 0 ambiente social em geral” (idem, idem). Filosofia e autonomia A necessidade de “destruir 0 preconceito muito difundido de que a filosofia seja algo de muito dificil” (1375, CDH) € 0 ponto de partida da questao dos intelectuais. Para Gramsci essa atividade nao 6 apenas “a ativi- dade intelectual propria de uma determinada categoria de cientistas espe- cializados, ou de filésofos profissionais e sistematicos” (idem, idem). Ela, pelo contrario, é possivel a todos, dado “que todos sao filésofos” (idem, idem). O trabalho filoséfico tem, assim, seu campo ampliado. Nés 0 en- contraremos na chamada filosofia espontanea, propria de toda a gente. Esté contido na linguagem, no sentido comum, no bom senso, na religiao popular. A linguagem é assim o lugar onde se cristalizam as nogdes e os conceitos, 0 senso comum, a religiao e o folclore se expressam, onde ga- nham vida e se generalizam. Ela permite o ocultamento ou o esclare- cimento: nela ganha forma todo e qualquer material ideolégico, toda e qualquer concepcdo de mundo. Sinteticamente; & 0 locus da transfor magao cultural necessdria. Estamos falando na linguagem em sentido am- plo, ndo reduzindo-a A forma escrita ou falada. A questo 6 saber como se trabalha essa linguagem. Ser auténomo é ter, entre outras questdes, a possibilidade de construir a linguagem adequada ao processo de trans- formagao, é “elaborar a propria concepgdo de mundo consciente e criti- camente (...), em conexdo com tal trabalho do préprio cérebro, escolher a propria esfera de atividade, participar ativamente na producdo da histéria do mundo, ser guia de si mesmo.” (1376, CDH 12) £, em suma, BDMUNDO FERNANDES DIAS: a decodificar os signos da linguagem anterior e ser capaz de construir a lin- guagem necessaria a articulagao dos nossos projetos. Falamos em autonomia, em elaboragdo da visio de mundo espectfica das classes trabalhadoras, das classes subalternas, quando estas se liberam da racionalidade capitalista, ou seja, da organicidade pratico-discur- siva promovida pelas classes dominantes. Se “somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos” (idem, idem), 6 necessdrio definir que tipo de conformismo corporificamos. O grau de fragmentariedade e desagregacéo de uma dada concepcao de mundo revela como somos constitufdos enquanto personalidades. “Criticar a prépria concepgao do mundo significa, portanto, torné-la unitéria e coerente, € eleva-la ao ponto que atingiu o pensamento mundial mais avancado. Sig- nifica, entéo, mesmo, criticar toda a filosofia até agora existente, enquanto cla deixou estratificages consolidadas na filosofia popular” (idem, idem). O processo de construcdo da identidade da classe é, portanto, 0 da critica em relagdo aos diversos niveis de consciéncia anteriores, sempre e sempre, em contraste com a racionalidade dominante. Esse ¢ 0 processo da construgao de uma “concepgao do mundo criticamente coerente”, ciente da sua historicidade. Sem isso, estarfamos em uma posigéo anacrénica, serfamos “fosseis e no seres viventes modemamente. Ou pelo menos (...) ‘compostos’ bizarramente.” (1377, CDH 13) A percepgito de um anacronismo relativo é documento do préprio nivel de estruturagio da classe — sempre em debate com as racionalidades passada e presente dos dominantes, e com a hist6ria da sua propria racionalidade (consciente ou nao, desagregada ou’ nie). A linguagem 6 vital, “contem os elementos de uma concepgao de mundo e de uma cultura” (idem, idem). E nela, com ela, que se pode comu- nicar e processar o debate hegeménico. Assim o conhecimento/desco- nhecimento da linguagem permite criar/destruir, controlar/libertar a capacidade de estruturar projetos e praticas. O paralelo da politica com a linguagem € oportuno: “Quem fala apenas o dialeto ou compreende a lingua nacional em graus diversos, participa necessariamente de uma intuigio do mundo mais ou menos restrita e provincial, fossilizada, anacrénica em con- fronto com as grandes correntes de pensamento que dominam a historia mundial” (idem, idem). Uma cultura e uma visio de mundo mais restrita tendem a expres- sar visdes “mais ou menos corporativas ou economicistas, nao universais.” (idem, idem) Uma concepgao de mundo avangada, assim como uma lingua desenvolvida, ¢ capaz de “traduzir-se na lingua de uma outra grande cul- tura, isto é, uma grande lingua nacional, historicamente rica e complexa, pode traduzir qualquer outra grande cultura, isto é, ser uma expressio HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA mundial, Mas um dialeto nao Pode fazer a mesma coisa”, (idem, idem) Por isso a filosofia da pritis tem que necessariamente Promover o de- bate/critica/ruptura com o discurso da racionalidade capitalista. Tem que criticar, em outro nivel, as formas néo capitalistas de elaboragio ideolégica, mas seu interlocutor /adversério privilegiado 6, insistimos, 0 pensamento burgués. Uma concepgio de mundo pobre nto apenas é ineficaz para traduzir-se em outra, como é acima de tudo impotente para organizar, na perspectioa da trans- Fformagio social, quem ¢ 0 que quer que seja. E, portanto, condigéo estrutural per- manente de subordinagao. Imiciado 0 proceso de criagao dessa concepgio de mundo nova, um dos elementos mais importantes ser necessariamente a sua capaci- dade de traducao. Ela deve ser capaz de “difundir criticamente verdades jd descobertas, ‘socializé-las’ (...) fazé-las tornar-se base de agdes vitais, elemento de coordenagao’e de ordem intelectual ¢ moral.” (1377-8, CDH 13) A hegemonia € exatamente isso: a criagio de uma massa de homens capazes de “pensar coerentemente e de modo unitério” o presente e, portanto, de projetar Para o futuro, na perspectioa de um novo patamar civilizatério. Nese sentido, © elaborador ¢ o sistematizador séo igualmente necessérios. Fazer de uma nova cultura 0 patriménio de todos “é fato ‘filos6fico’ bem mais importante e ‘original’ do que a descoberta Por parte de um ‘génio’ filosofico de uma nova verdade que permaneca patriménio de pequenos srupos intelectuais.” (idem, CDH 13-4) Nito pode haver exterioridade entre a filosofia da prixis ¢ o con junto das classes subalternas, Ou ela é capaz, por um lado, de perceber 0 conjunto das questies colocadas por aquelas classes e resolvé-las no interior da sua problemética, e, por outro, ser capaz de fazer-se compreender por elas; ou ndo ha possibilidade de hegemonia, O material sobre 0 qual se construir essa nova visio de mundo, desta filosofia, € 0 conjunto dos produtos histéricos da sociedade. Senso comum, religido, filosofia so nomes coletivos. Séo muiltiplos. A filosofia é a ordem intelectual fundamental, pois é a um sé tempo critica e superagio dos demais, e nesse sentido “coincide com o ‘bom senso’, que se contrapée a0 senso comum.” (idem, CDH 14) Miltiplas também sao as filosofias, dado gue a filesofia em geral & apenas uma hipétese. Miiltiplas e contraditérias entre si, racionalidades de diversas classes, em diversos momentos e conjunturas, as filosofias sempre requerem que se escolha entre elas. Nao hd, contudo, perfeita compatibilidade entre fato intelectual ¢ norma pratica de conduta. Pelo contrario, freqiientemente encontramos um telativo desequilibrio e mesmo contradicées entre elas. A questao decisiva € saber qual “seré entdo a real concepgao de mundo: aquela logicamente EDMUNDO FERNANDES DIAS 0 afirmada como fato intelectual, ou aquela que resulta da atividade real de cada um, que esta implicita no seu agir? E dado que o agir é sempre um agir politico, nao se pode dizer que a filosofia real de cada wm estd contida por inteiro na sua politica?” (1378-9, idem. Grifo nosso) Esta contraditoriedade en- tre pensar e agir é “a expressio de contrastes mais profundos de ordem historico-social. (..) Significa que um grupo social, que tem uma concep¢lo de mundo, sua, prépria, ainda que embriondria, que se manifesta na aco, (..) ocasionalmente, (...) tomou, por razées de submissio e subordinagao in- telectual, uma concepgo que nao é sua, por empréstimo de outro grupo.” (1379, CDH 15) Isto demonstra que “a escolha e a critica de uma concepgao de mundo sao elas também fatos politicos” (idem, idem). A critica as outras concepgées, a partir da nova racionalidade cons- trufda ou em construcio, torna-se necessidade efetiva. A pratica cotidiana dessa necessidade esta presente na prépria linguagem popular. Quando a Populagio fala em “tomar a coisa com filosofia”, ela expressa, contraditoria- mente, seja “um convite implicito a resignacdo e a paciéncia” (1380, CDH 16), seja um “convite a reflexdo” (idem, idem). Filosofia e filosoficamente tém af “um significado muito preciso, de superagao das paixdes bestiais e ele- mentares em uma concepgdo da necessidade que d4 ao préprio agir uma direcao consciente. £ este 0 nticleo sadio do senso comum, que se poderia precisamente chamar bom senso, e que merece ser desenvolvido e tornado unitério e coerente” (idem, idem). © problema fundamental que se coloca para “toda concepgio de mundo, de toda filosofia, que se tornow nm movimento cultural, uma ‘religiao’, uma ‘fé, isto € que tenha produzido uma atividade pritica e uma vontade ¢ que nela «steja contida como ‘premissa’ tedrica implicita (se poderia dizer uma ‘ideologia’, se ao termo ideologia se dé precisamente o significado mais alto de uma concepgao de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econémica, em todas as mani festacdes de vida individuais e coletivas), 0 problema de conseroar a unidade ideolégica em todo 0 bloco social, que é precisamente cimentado e unificado por aquela ideologia’” (idem, idem). Problema para o qual as respostas variam. A Igreja Catélica conseguiu manter unidos seus intelectuais e suas “almas simples”. Unidade construfda gracas a repressio dos seus movimen- tos intelectualmente mais avancados. A existéncia de um “problema dos ‘sim- ples’ significa precisamente que houve ruptura na comunidade dos ’fieis’, Tuptura que ndo pode ser sanada elevando os ‘simples’ ao nivel dos intelec- tuais.” (1383, CDH 19) Para realizar esta tarefa unitéria, a Igreja teve que impor uma “disciplina férrea sobre os intelectuais, para que nao ultra- we HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA pass(ass)em certos limites na distingdo, e no a tornem catastrofica ¢ ir- repardvel.” (1383-4, idem) Abrir mao dessa disciplina e liberar a critica dos seus intelectuais implicava nao apenas colocar em questio todo o conjunto das interpretagdes sobre as quais repousavam a explicagio mas, e sobretudo, ameacar as hie- raro 1ias alicergadas sobre aquelas explicacdes. Significaria permitir aber- tamente 0 questionamento do conjunto dos dogmas e das hierarquias e, principalmente, a colocagdo em debate do proprio sentido intimo e decisivo da crenca. A liberdade da critica implicaria, em xiltima instancia, a possibili- dade da prépria eliminacao da organizacao eclesial. Implicaria, de fato, em uma grande “reforma intelectual e moral”, visto gue abriria o espaco para a resolugio da contradigao dirigentes/dirigidos.”” Para evitar tal coisa, a estrutura eclesidstica pas em marcha a Contra-Reforma. Essa liberdade de critica seria fatal, pois implicaria desmontar uma visio de mundo que nao coloca, e nem o poderia, a superacdo dessa divisdo entre dirigentes e dirigidos como tarefa histérico-atual, para individuos hist6rico-reais, mas, pelo contrario, reforca essa divisdo como natural, eterna. Uma concepgio que jamais poder ser imanentista, que nio pode privilegiar © hic et nunc como ultima ratio. A postura da religido é a plena projegio da sua visio de totalidade. As filosofias imanentistas colocavam abstratamente 0 hic ef nunc como horizonte. Justo o contrario da teligido que denunciava essa desigualdade histérica como nao-natural, como arlificial, dado que o plano verdadeiro natural, nao é histérico, mas eterno, sobrenatural. As filosofias imanentistas, como a religiao, tiveram, na manutengao da unidade dos sim- ples e dos intelectuais, a impossibilidade da sua superagao. As filosofias imanentistas sio criticas, em geral, da teligido e do seu transcendentalismo. Elas, contudo, sequer tentaram “construir uma concepgaio que pudesse subs- tituir a religiao na educagao infantil.” (1381, CDH 17) E, ao proceder assim, permaneceram, embora laicas, prisioneiras do discurso e das praticas re- ligiosas. O pensamento liberal burgués, embora trabalhasse a legitimidade da racionalidade capitalista nascente, o fazia a partir das leituras religiosas (Hobbes, Locke, etc.), 0 que mostra o limite objetivo dessas filosofias e des sas politicas liberais. Ruptura apenas parcial com o passado. Manutengaio do discurso Teligioee: como elemento fundamental de controle ideolégico so- bre as massas.* Em um pélo oposto se coloca a filosofia da prixis que se recusa a “manter os ‘simples’ na sua filosofia primitiva de senso comum, mas, pelo contrério, tende a conduzi-los a uma concepgao superior da vida.” (1384, CDH 20) Essa exigéncia de contato entre intelectuais e simples nao é feita PDIMUNDO FERNANDES DIAS. SI “para limitar a atividade cientifica e manter uma unidade no baixo nivel das Massas, mas precisamente para construir um bloco intelectual-moral que torne politicamente possfvel um progresso intelectual de massa, ¢ ndo apenas de es- casos grupos intelectuais,” (1384-5, idem, Grifo nosso) Que fique bem claro: flo se trata de célculo, mas de necessidade vital para a sua possibilidade de realizagao. Nao basta que os simples demonstrem “um entusiasmo sincero e uma forte vontade de elevar-se a uma forma superior de cultura e de con- copgiio de mundo.” (idem, CDH 173) Nao basta querer dar voz a quem nao tem voz. Quem dé voz, da a sua voz. & necessério ir além. E preciso construir a ruptura dos simples com 0 senso comum, Mais do que “ajuda-los”, trata-se de trabalhar em conjunto. O limite do pensamento imanentista foi o de nado se colocar como pensamento que supere a cisdo intelectuais-simples. A Superagdo dessas cisdes s6 poderia ocorrer se entre esses intelectuais e aquelas massas nao houvesse exterioridade, se eles “tivessem sido or- yanicamente os intelectuais daquelas massas, isto 6, se tivessem elaborado « tornado coerentes os principios e os problemas que aquelas massas colo- cavam com a sua atividade pratica, constituindo assim um bloco cultural © social.” (1382, CDH 18) Os chamados movimentos de “ida ao povo”, como as chamadas Universidades populares, fracassaram por nao realizarem uma ligacao or- winica, por nao existir entre eles “a mesma unidade que deve existir entre teoria e pratica.” (idem, CDH 18) Pelo contrério, apresentavam-se como paternalismo e tutela. Como verdade exterior a ser assimilada pelos subal- ternos. Como “pacotes” culturais, nunca como didlogo critico com os “sim- ples”, Criticas 6 verdade, de parcelas do discurso dominante, as filosofias imanentistas se apresentavam como projeto para as elites e nao para as mas- sas. Estas deveriam ser “iluminadas”, “esclarecidas”. © projeto de construgao da hegemonia sé sera possivel se e quando 0 “trabalho de elaboragdo de um pensamento superior ao senso comum e cientificamente coerente nao (se) esquece(r) nunca de permane- cer em contato com os ‘simples’” (idem, idem). Somente neste contato, “ama filosofia se toma ‘histérica’, se depura dos elementos intelectua- Iisticos de natureza individual e se faz ‘vida’.” (idem, idem) Deixa de ser arbitraria para ser organica. A filosofia da praxis, se pretende ser a filosofia das classes traba- Ihadoras, “nao pode deixar de apresentar-se em atitude polémica e critica, como superagao do modo de pensar existente (...) acima de tudo como critica do ‘senso comum’.” (1383, idem) Nao se trata da apologia do secta- rismo, ou da diferenga pela diferenca, mas da necessidade de construir uma a HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA nova racionalidade, A relagio entre filosofia e senso comum 6 assegurada pela politica, assim como “a relagio entre o catolicismo dos intelectuais e o dos ‘simples’ ” (idem, CDH 19). Existem, como vimos, contradigies entre o agir pritico ¢ a cons: ci€ncia te6rica. “O homem ativo de massa age praticamente, mas nao tem uma clara consciéncia tedrica deste seu agir que (..) 6 um conhecer o mundo énaianto © transforma” (1385, CDH 20). Essa consciéncia contraditéria, que oscila entre a agéo ¢ aquela consciéncia “Superficialmente explicita e verbal que herdou do passado e que acolheu sem critica” (idem, idem) vinculada a “um grupo social determinado, influi na conduta moral, na diregao da von ‘ade, de modo mais ou menos enérgico, que pode chegar até a um ponto ef que a contraditoriedade da consciéncia nao permita nenhuma ado, ne- nhuma deciséo, nenhuma escolha, e produz um estado de passividade moral e politica” (idem, CDH 20-1). Ser critico de si mesmo é ter clareza sobre estas contradigbes. Essa compreensio critica “ocorre entdo através de uma luta de “hegemonias’ polfti- cas, de diregées contrastantes, Primeiro no campo da ética, depois no da Politica, para chegar a uma elaboragio superior da propria concepeio do real. A consciéncia de ser parte de uma determinada forca hegeménica (isto é, a consciéncia politica) é a primeira fase para uma ulterior ¢ Progressiva autocons- " Nesta carta ele critica os métodos educativos que apressavam a formagio profis- sional deixando pouco espago para a fantasia infantil. No s6 pela escolari- EDMUNDO FERNANDES DIAS 6 zacao formal mas também pelo proprio uso e/ou confecgio de brinquedos infantis se faz avangar uma dada concepglo de mundo. Nao é nossa preocupagio a questio do americarismo como articu- lagao especifica de processos produtivos, mas como uma ideologia constitui- dora do real. Para Gramsci 6 americaniino se apresentava como uma forma do capitalismo. Processo de diferenclagio em relagio aos Estados regidos pelo imperialismo, ele altera 0 padnio socletirio. Repensa-se ndo apenas as praticas fabris mas, ¢ prineipalmente, suas condigdes de existéncia. Tal é a alteragio efetuada que # introdugio do fordismo, na Itélia, é recebida, pela burguesia e por seus intelectuais, com imensas “resisténcias ‘intelectuais’ e ‘morais’.” (2141, MPE 377) Uma indicagio precisa da relevancia do ameri- canismo é © contraponto que Gramsci faz entre ele ¢ 0 movimento ordi- novista. A forma americana exigia, desde logo, uma composigao de- mografica raclonal, 0 no existéncia de “classes numerosas sem uma fungao essenclal no mundo produtivo, (...) classes absolutamente parasitdrias” (idem, idem). A existineia dessas classes, criadas pelas lutas de classe ao longo dos séeulos, representa, na Europa e, em particular na Itélia, uma “camada de chumbo”, um enorme contingente populacional cuja fungio era basicamente politica, Elas sao “pensionistas da histéria econdmica” (idem, idem). A sua inexisténcia na América é uma das mais fortes caracterizagdes do ambiente produtivo americano, tornando assim “relativamente facil racionalizar a pro- dugao e 0 trabalho, combinando habilmente a fora (destruigao do sindica- lismo operdrio de base territorial) com a persuasao (altos salérios, beneficios sociais diversos, propaganda ideolégica e politica habilissimas) (...). hegemonia nasce da fabrica e nao tem necessidade para exercer-se senao de uma quantidade minima de profissionais intermediérios da politica e da ideologia.” (2145-6, MPE 381-2) Vale a pena acentuar que nem sempre a “hegemonia nasce da fabrica”. Isto ocorre quando a forca de trabalho é incorporada ao projeto capitalista, como veremos abaixo, de maneira ativa (convencimento ativo, em especial pela impregnagao da nova racionalidade) ou passiva (neutrali- zacao das organizacées proletarias). A “hegemonia nasce da fabrica” quando ha adequagao entre racionalidade estatal e racionalidade econémica, quando esta uiltima se faz horizonte de classe, identificando-se como patamar civili- zatério. Quando entao se faz necessério apenas “uma quantidade minima de profissionais intermedirios da politica ¢ da ideologia.” (idem, idem). A hegemonia nao é apenas um projeto politico, mas 6 o campo do possivel do pensdvel, do praticdvel. Ela ocorre quando as producées /praticas se pen- F “ HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA Sam na producdo/racionalidade material, quando ela é campo de articulacao do saber/fazer/sentir/agir. americanismo foi, entéo, a criagio de “um novo tipo humano, correspondente ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo” (2146, MPE 382), de uma nova “fase da adaptacao psico-fisica & nova estrutura industrial” (idem, idem). Essa adaptacao, viabilizada por uma composigio de- mogréfica racional, combinou consenso e represséo. Materializou um novo modo de vida. Considerando o seu estado inicial e a inexisténcia de sedi- mentagoes politicas, inclusive de resisténcia, 0 americanismo ao tempo de Gramsci nao conhecera ainda? nenhum desenvolvimento ideolégico mais forte. Aparecia mesmo como “a forma deste tipo de sociedade racionalizada, em que a ‘estrutura’ domina mais imediatamente as superestruturas, e estas so ‘ra- Cionalizadas’ (simplificadas e diminuidas de niimero).” (idem, idem. Grifo nosso) A racionalizacao da producao passa pela “liberdade industrial”, Pela luta contra a “propriedade do officio”. A quebra de um tipo de sindi- cato, que era a expresso corporativa da propriedade dos oficios qualifi- cados, era uma necessidade vital para o capitalismo americano. Diferentemente da cena européia do século XIX, essa luta encontrava as massas americanas em estado bruto e, além disso, sobredeterminada pela questéo dos negros, de outras nacionalidades e culturas. Falamos de criacdo de um novo nexo psico-fisico, de um novo tipo de trabalhador. Fabricar 0 novo trabalhador supse a criacdo de um novo homem, isto é, a destruicao ativa de uma personalidade histérica. Para tal Se exige “uma luta continua contra o elemento ‘animalidade’ do homem, um proceso freqiientemente doloroso e sangrento, de subjugacao dos ins- tintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a cada vez mais novas, complexas ¢ rigidas normas e habitos de ordem, de exatidao, de preciso que tornam possivel as formas cada vez mais complexas de vida coletiva, que sao a consequéncia necesséria do desenvolvimento do industrialismo.” (2060-1, MPE 393) Processo, sem duivida alguma, violento 0 da gestacao de uma nova classe trabalhadora e de uma nova cultura®? Gramsci acentua essa dolorosa adaptacao ao criticar a politica de militarizacéo do trabalho — defendida por Trotski ¢ aceita pela diregio bolchevique — e, assim, de “dar supremacia, na vida nacional, a industria e aos métodos industriais, de ‘acelerar com meios coercitivos exteriores, a disciplina e a ordem na produgio, de adequar os costumes necessidade do trabalho.” (2164, MPE 396. Grifo nosso) Redefinir habilidades e praticas: “a vida na industria exige um ti- rocinio geral, um processo de adaptacdo psico-fisico a determinadas con- digdes de trabalho, de nutrigio, de habitagio, de costumes, etc, que nao é algo inato, ‘natural’, mas demanda ser adquirido, (...) a baixa natalidade ur- HDMUNDO FERNANDES DIAS o bana demanda um gasto continuo e relevante para o tirocinio dos con- linuamente novos urbanizados, e traz consigo uma continua mudanga da composigdo sécio-politica da cidade, colocando continuamente sobre ovas bases o problema da hegemonia.” (2149, MPE 391)* Racionalizar a producao significa racionalizar 0 modo de viver: “os novos métodos de trabalho sao indissohiveis de um determinado modo de viver, de pensar e de sentir a vida: nao se podem obter sucessos em um campo sem obter resultados tangiveis no outro.” (2164, MPE 396) Racionalizar a relaco corpo-mente, redefinir o erdtico, a sexuali- dade; disciplinar o gasto das energias fisicas e mentais fora do espaco fabril, para preservé-las para a realizagio do trabalho. Ampliar para a sociedade © campo da disciplina da fabrica. “Na América, a racionalizagao do trabalho © 0 proibicionismo estao conectados indubitavelmente: as pesquisas dos in- dustriais sobre a vida intima dos operarios, os servigos de inspecdo criados por algumas empresas para controlar a ‘moralidade’ dos operérios sao ne- cessidades do novo método de trabalho. Quem risse dessas tentativas (ainda se falidas) e visse nisso apenas uma manifestagao hipécrita de ‘puritanismo’, se negaria toda possibilidade de compreender a importancia, o significado © 0 alcance objetivo do fenémeno americano, que é mesmo o maior esforgo coletivo verificado até agora para criar com rapidez inaudila e com uma consciéncia de finalidade jamais vista na histéria, um novo tipo de trabalhador e de homem.” (2164-5, idem. Grifo nosso) Redefinir habilidades e praticas, racionalizar 0 modo de viver, ra- cionalizar a relagdo corpo-mente, redefinir o erético, a sexualidade, em suma, uma redefinigéo muito mais complexa do que se poderia supor. A simples “urbanizagio” de uma populacao (isto vale fortemente para a andlise da constituicdo da classe trabalhadora na Unido Soviética, por exem- plo) implica esforgos inauditos como a compreensao de todo o imenso mundo de valores e significagdes urbanas, que deve ser apreendido com fulminante rapidez. Altera os préprios ritmos biolégicos. As esferas de lealdade e solidariedade secularmente construfdas sao pulverizadas. As ca- begas dessas pessoas vivem permanente um redemoinho. A religiao e 0 “pa- triotismo” — forma especifica de concregao da forma estatal nos individuos —acabam por ser elementos de continuidade nesta brutal descontinuidade. Viver e atuar com novas dimensdes, quando as antigas ainda estao forte- mente enraizadas, este é, em suma, 0 desafio ao qual esses novos traba- Ihadores estao submetidos e ao qual ndo podem escapar. Eis a construgio de uma nova personalidade, radicalmente distinta da anterior, criagdo e ge- neralizagao do novo homem, do homem-massa, do homem-coletivo. Repeti- ” ‘HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA mos: este proceso é vivido, também, na Rtissia, com a criagio da nova classe operdria. Esse complexo conjunto de redefinicdes implica, portanto, a cons- trugdo de um novo trabalhador que deve maximizar “as atitudes maquinais € automaticas” (2165, MPE 397), minimizar os gestos desnecessArios, elimi- nar a porosidade do processo fabril e, para tanto, é preciso despedagar “o | velho nexo psico-fisico do trabalho profissional qualificado, que exigia uma | certa participagio ativa da inteligéncia, da fantasia, da iniciativa do traba- Ihador, e reduzir as operacdes produtivas apenas ao aspecto fisico maqui- nal” (2165, idem). A quebra desse nexo psfco-fisico implica aquilo que Taylor chama cinicamente. de gorila amestrado, “fase mais recente de um longo | Processo que se iniciou com o nascimento do proprio industrialismo, fase que é apenas mais intensa que as precedentes e se manifesta em formas mais brutais, mas que serd todavia superada com a criagio de um novo | Nexo psico-fisico de um tipo diferente dos precedentes e indubitavelmente de um tipo superior. Ocorreré inelutavelmente uma selegio forcada, uma | parte da velha classe trabalhadora ser4 desapiedadamente eliminada do mundo do trabalho e talvez do mundo tout court.” (2165, idem) Regulagao do instinto sexual e fortalecimento da familia: estas ndo sao posturas moralizantes ou hipécritas, “a verdade é que nio pode desen- volver-se 0 novo tipo de homem requerido pela racionalizagio da produgio e do trabalho, até que o instinto sexual nao esteja regulado de acordo, nao tenha sido também ele racionalizado.” (2150, MPE 392) A estabilidade ope- réria (familiar, sexual, etc.) passa a ser condigdo essencial de eficdcia no tra- balho. O “desregramento” sexual, 0 alcoolismo e, diriamos hoje, as drogas interessam fundamentalmente como condigéo de racionalizagao da pro- dugao e nao apenas do ponto de vista moral “As iniciativas ‘puritanas’ tm apenas a finalidade de conservar, fora do trabalho, um certo equilibrio psico-fisico que impeca 0 colapso fisio- l6gico do trabalhador, espremido pelo novo método de produgio. Esse novo equilfbrio nao pode ser senao puramente exterior e mecdnico, mas poder tor- nar-se interior se ele for proposto pelo préprio trabalhador e néo imposto de fora, com uma nova forma de sociedade, com meios apropriados e originais. O industrial americano se preocupa em manter a continuidade da eficiéncia fisica do tra- balhador, da sua eficiéncia muscular-nervosa: é seu interesse ter um opera- riado estdvel, um complexo confidvel permanentemente, porque mesmo o complexo humano (0 trabalhador coletivo) de uma empresa é uma maquina que nao deve ser freqiientemente desmontada e renovada nas suas partes individuais sem perdas ingentes.” (2166, MPE 397-8. Grifo nosso) Trata-se assim da construgao de uma nova socializag3o que rompe.com as formas a BDIMUNDO FERNANDES DIAS oo anteriores de socializagio baseadas na familia e, de agora em diante, cen- tralizadas pela estrutura produtiva, A afirmacio feita por Gramsci, segundo a qual esse novo equilfbrio para ser eficiente ter que ser vivido como interioridade, “proposto pelo proprio trabalhador e nado imposto de fora” demonstra seguramente a im- portincia, tanto do reforgo do puritanismo quanto do seu sucedineo laico, o americanismo, religido da patria, do bom cidadao; interioridade que sig- nifica, em ultima instancia, a absorgdo subjetiva dessa objetivacao social, a introjegio da hegemonia: o atuar segundo normas conformes a esse ambi- ente produtivo. Essa interioridade é o indice da hegemonia em processo. O american way of life mais do que instrumento de propaganda é a forma que assume esse novo modo de ser, necessério ao novo ambiente produtivo. O americanismo é a elevagao do trabalhador ao maximo de me- canicidade, diante da qual a humanidade e espiritualidade do trabalhador, existente ainda no periodo do artesanato, deve ceder: “precisamente contra este ‘humanismo’ luta o novo industrialismo.” (2165-6, MPE 397) Ele tem que ser desqualificado ao maximo, tornado desnecessédrio e, portanto, inter- cambidvel. Aqui claramente se diferenciam o americanismo do projeto de construgaéo de uma nova classe trabalhadora soviética. Esta ultima nao ne- cessita lutar contra a “humanidade e espiritualidade do trabalhador”, neg4- las, mas construir uma nova significagdo para essas humanidade e espiritualidade. Altos saldrios, regulagdo sexual, estabilidade familiar, construgio do corpo e da afetividade operdrias, pecas de uma nova tentativa de hegemonia. A um s6 tempo fundamentais para a atividade econdmica e a constituigdo de uma nova ética: “o alto salério tem dois gumes: é necessdrio que 0 trabalhador gaste ‘racionalmente’ os tostées mais abundantes, para manter, renovar ¢ possivelmente para acrescer a sua eficiéncia muscular-ner- vosa, nao para destruf-la ou corroé-la.” (2166, MPE 398) O americanismo (curiosa ou perversamente?) realiza completamente a afirmagao do Manifesto do Partido Comunista: 0 capitalismo acaba com a familia como elemento so- cializador fundamental. O mundo fabril e seus aparelhos passam a centrali- zar essa socializagao. Diante dessa plataforma politica de exclusao-inclusao resta saber, contudo, se essa tendéncia & mecanicidade é inelutavel, se 0 gorila ames- trado ser4 necessariamente o destino ultimo do trabalhador. “Quando o proceso de adaptacéo ocorreu, verifica-se que, na realidade, 0 cérebro do operdrio, ao invés de mumificar-se, atingiu um estado de completa liber- dade. Mecanizou-se completamente apenas o gesto fisico; a meméria dos oficios, reduzida a gestos simples repetidos com ritmo intenso se ‘aninhou’ i - , .* S HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ | nos feixes musculares e nervosos, deixando 0 cérebro livre para outras ocu- Pages.” (2170-1, MPE 404) A percepgao desse proceso é claramente acusada pelos préprios mentores da nova forma e aparece indicado pelas iniciativas “educativas” Tegistradas nas obras de Ford e Philip. Outro conjunto de questées relativas ao americanismo 6 a Possi- bili ide ou nao de ele ser absorvido e praticado por outros pafses capita- listas e chegar a ser a forma geral da dominagio burguesa: “o problema nao € se na América existe uma nova civilizagéo, uma nova cultura (...) e se elas estado invadindo ou jé invadiram a Europa. (.... O problema é (..) sea América, com 0 peso implacdvel de sua produgio econdmica, (isto 6, indi- retamente) obrigard ou esta obrigando a Europa a uma modificacio das suas bases econémico-sociais muito antiquadas. (...) Se se est4 verificando uma transformagio das bases materiais da civilizacio européia, que a longo Prazo (e ndo muito longo, porque no periodo atual tudo é muito mais rapido que nos periodos passados) levaré a uma derrubada da forma de civilizagao existente e ao nascimento forcado de uma nova civilizagao.” (2178-9, MPE 411) Limite objetivo para esse processo ¢ a prépria estrutura de classes, O fordismo “requer um ambiente dado, uma dada estrutura social (oua vontade decidida de crid-la) e um certo tipo de Estado. O Estado € 0 Estado liberal, nao no sentido do liberalismo alfandegario ou da liberdade politica efetiva, mas no sentido mais fundamental da livre-iniciativa e do individua- lismo econémico que atinge com meios préprios, como ‘sociedade civil’, Pelo préprio desenvolvimento histérico, o regime da concentragio industrial e do monopélio.” (2157, MPE 388) Gramsci falando do proceso do americanismo afirmou, como vi- Mos que ocorrerd “inelutavelmente uma selecao forcada, uma parte da velha classe trabalhadora ser desapiedadamente eliminada do mundo do tra- balho e talvez do mundo tout court.” (2165, MPE 397) Impiedosa na andlise, a afirmacao gramsciana antecipa em mais de trés décadas todo um debate ideolégico sobre “o adeus ao proletariado”. Gramsci aponta aqui com clareza que 0 processo de construcéo do trabalhador coletivo, do homem- massa, estava sendo realizado. Lembremos: trata-se da “fase mais recente de um longo proceso que se iniciou com o nascimento do préprio indus- trialismo”. Os processos fordista e taylorista nada mais fizeram do que am- Pliar 0 processo de desqualificagao do trabalho jé anteriormente iniciado. O capitalismo que nos anos 30 necessitou do keynesianismo, como conjunto de medidas de contra-tendéncia, redefine hoje 0 conjunto das relacdes clas. sistas. A chamada “revolugio” cientifico-tecnolégica em curso atua na cone. truco de uma nova eficdcia capitalista, que se funda em técnicas de gestio EDMUNDO FERNANDES DIAS: m do capital sobre a forga de trabalho (cireulo de controle da qualidade, just in time, kanbam, etc). Os trabalhadores sito diretamente chamados a se asso- ciarem ao capital, a “vestir a camisa” da empresa, O trabalhador de que o capital necesita é aquele que é capaz de dar resposta, pronta ¢ adequada, as situagdes que possam ocorrer no ato produtivo. Requer-se, portanto, 0 trabalhador polivalente. Ao mesmo tempo em que leva a desqualificagio do trabalhador ao maximo e caracteriza a sua dispensabilidade, esse processo tem a aparéncia de recuperagao e reintegragao do saber operario, Tudo isso marcado pela tentativa de tornar desnecesséria a atividade sindical na pers- pectiva classista e, com isso, possibilitar que a hegemonia capitalista nasca na cotidianeidade do ato do trabalho. Ganhar coragdes e mentes dos traba- Ihadores significa, portanto, desestruturar-lhes a identidade de classe. A perspectiva do “desaparecimento” das classes, a proposta im- plicita de um pacto social automatico no cotidiano e, portanto, despolitizado e despolitizante, requer ndo a mera reafirmagéo de dogmas, mas a cons- trucdo da identidade das classes trabalhadoras, respeitada a sua diversidade, conhecidas as suas lutas, linguagens e tradices. A terciarizagio 6 funda- mentalmente um momento da expropriagao do especificamente operario do processo fabril, forma superior de desterritorializacdo do trabalho, de desconstrugao das classes trabalhadoras, desconstrugéo que passa pela sua desconcentragao. Ela coloca um novo desafio para as centrais sindicais ¢ para os partidos que se afirmam ligados umbelicalmente as classes traba- thadoras. O de responder a essa desterritorializagao com a construcao, efetiva das identidades classistas acima mencionadas. Significa repensar es- trategicamente a intervengdo das classes trabalhadoras. Tornar cada ponto de dispersao, um ponto de reconstrugo. Assim se o “adeus ao proletariado” tem um significado positivo, este sera o da afirmagdo de que uma centrali- dade operdria meta-hist6rica, de mito constituidor do real passou a obs- téculo politico concreto. Falar em classes trabalhadoras (no plural) significa pensar essa diversidade como riqueza constitutiva de uma nova racionali- dade possivel. Conclusoes ou problemas? notas provisorias A répida sintese das andlises gramscianas sobre 0 processo da uni- dade italiana e sobre 0 americanismo nos coloca face a uma série de questdes renovadas. Se é correto afirmar “que a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘dominio’ e como ‘direcao intelec- tual e moral”, é preciso ter clareza de que uma classe 6 sempre “dominante dos grupos adversérios que tende a ‘liquidar’ ou a submeter, mesmo com ” /HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA a forga armada, e é dirigente dos grupos afins e aliados” (2010, R 96). Que @ construgéo da sua hegemonia, a realizagdo da sua racionalidade, caminha lado a lado com a construgao do seu Estado, do seu tipo novo de persona- lidade (feminina e masculina), etc. Enfim, que toda essa construgdo supée que essa classe social “pode e deve mesmo ser dirigente, ja antes de con- quistar o poder governamental (e esta é uma das condicées principais para a propria conquista do poder)” (idem, idem) Que, mesmo quando se torna “dominante, (...) deve continuar a ser também ‘dirigente’.” (2011, idem) Essa dupla articulagio mostra a forca do proceso do america- nismo, cuja hegemonia tendencialmente nasce na fébrica, e pode diminuir o ntimero dos “comissérios ideolégicos”, que ao impor sua racionalidade, na bela dialética do senhor e do escravo, obtém o consentimento das classes Subalternas. Mostra a debilidade do proceso de unidade italiana que, separando dominagao de diregao e privilegiando o primeiro termo, requereu © férceps fascista para realizar a disciplina dos trabalhadores. Na via ameri- cana, esta disciplina foi obtida mais pelo consentimento, embora também tenha tido necessidade da quebra, pela forga, das antigas formas sindicais. Via prussiana ou via fordista: eis os impasses que a transigio para a Constituigio do novo nexo psico-fisico vivenciou. A via fordista implicou o po- tenciamento das forgas capitalistas em expansio. Disciplinou-os, subordinou-as a uma nova ética. Construiu a relagio coragies ¢ mentes necesséria & imple- mentagao da racionalidade capitalista mais avangada. Realizou a repressio, mas comandou pelo consenso (0 american way of life), trabalhou as aparéncias ne- cessarias e dominou o desejo. A via prussiana se caracterizou como revolugio pelo alto, revolugdo sem revolugao. Ela foi o procedimento de cortar os pen- sionistas intiteis da histéria, privilegiando os que puderam proceder ao aggior- namento, aos que tiveram capacidade de atualizagio. Alids nao serd exatamente isso que uma certa ciéncia social conservadora chama de modemnidade? Nao seré 0 velho ensinamento do Gatopardo lampedusiano: “para que tudo fique como esté & preciso que tudo mude”? A anilise gramsciana sobre as revolugies do final da década de 10 nos coloca uma adverténcia intrigante. Gramsci advertia: “a revolugio nao € necessariamente proletéria e comunista enquanto se propde e obtém a der- rubada do governo politico do Estado burgués: (...) sequer quando propée © consegue aniquilar as instituigdes e a m4quina administrativa através das quais o governo cenitral exerce o poder politico da burguesia; (...) mesmo se a onda da insurreicao popular entrega o poder nas mios dos homens que se dizem (e sao sinceramente) comunistas. A revolugao $6 6 proletéria e comunista quando ela é a liberacéo das forcas produtivas proletarias e comunistas que vinham sefido elaboradas no seio da sociedade dominada EDMUNDO FERNANDES DIAS a pela classe capitalista, (,..) na medida em que consegue favorecer e promover a expansao ¢ a sistematizagio de forgas proletarias ¢ comunistas capazes de iniciar 0 trabalho paciente e metédico, necessirio para construir uma nova ordem nas relagdes de produgdo e de distribuigio; uma nova ordem em base qual seja tornada impossfvel a existéncia da sociedade dividida em classes, € cujo desenvolvimento sistematico tenda por isto a coincidir com um pro- cesso de exaustéo do poder do Estado, com um dissolver-se sistematico da organizagao politica de defesa da classe proletdria que se dissolve como classe para tornar-se humanidade”.°° O problema reside em determinar como se constituiu uma racio- nalidade que se pretendia nova e teve que fazer em 50 anos o que o capi- talismo levou pelo menos trés a quatro séculos. E esse capitalismo realizou essa trajetéria constitutiva de um novo nexo psico-fisico e de uma nova ci- dadania sem enfrentar um embate ideoldgico (a guerra fria) de uma racio- nalidade que se coloca como regra o “renovar-se ou perecer”. De modo algum se trata de justificar 0 chamado processo stalinista. Os campos de con- centragao, parteiros da classe operdria soviética,” expressam a incapacidade de realizar, em sua plenitude, 0 proceso revoluciondrio. & bom lembrar, con- tudo, nestes tempos de intolerancia travestidos de homogeneidade liberal, que © cercamento dos campos, as leis dos pobres, a opressao colonial, etc, etc, foram as parteiras do capitalismo e de uma certa cidadania que inclui excluindo — em especial em pafses como o Brasil — mantendo contudo a ilusdo de que existe uma cidadania e regras universalistas de decisio politica. Via prussiana ou socializagao efetiva da produgio, com construgio de uma nova cidadania —a dos trabalhadores? Serd possivel criar o homem Novo se 0 cotidiano (em especial o cotidiano “espiritual”) segue regulado pela burocracia na permanente tentativa de construir administrativamente 0 novo nexo psico-fisico? E tentar esse caminho atento a necessidade, ressal- tada por Gramsci, de que esse novo equilibrio para ser eficiente terd que ser vivido como interioridade, “proposto pelo proprio trabalhador e nao im- posto de fora”. Por fim, e apenas como indicagio de problemas, sera que néo estd af uma das mais importantes pistas para a chamada crise do Leste? Este € 0 desafio. Como Edipo, de preferéncia sem sua cegueira, de- vemos responder ao desafio da construcio de uma nova civilizagao. A cegueira edipiana, a do desejo, é certamente a que nos remete a indiferen- ciagdo entre nossos projetos /desejos e a andlise do real. Um discurso instru- mental seré sempre cego. Confundiré, necessariamente, seu desejo com a andlise que se faz da realidade. Dispensaré 0 procedimento da critica. Ou vencemos a tentagio do discurso que confunde desejo e realidade, ou entao poderemos ser tentados a admitir que o resultado desse processo da sinistra- n HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA mente razio aos novos-velhos mandarins chineses que afirmam “nao importa € 05 gatos sdo negros ou séo pardos... importa que cacem os ratos”. NOTAS 1 £ claro, desde logo, que nao estamos falando de partido no sentido de partido ins- titucional, partido parlamentar. 2 Ver, em especial, as interpretacoes de Texier. 3 Ao falarmos de racionalidade nao estamos, obviamente, excluindo a questéo com- plexa da afetividade. Nao existe, sabemos, racionalidade sem subjetividade, sem con- strugao rica e contraditéria de personalidades individuais, sempre originais, Relembremos a afirmagao gramsciana de que cada homem é, nesse nivel, um bloco historico. 4 Ver a afirmagao gramsciana pela qual o Partido Socialista 6 “um Estado em potén- cia, que vai amadurecendo, antagonista do Estado burgués, que busca, na luta diéria contra este ultimo e no desenvolvimento de sua dialética interior, criar para si os 6r- 8405 para supera-lo e absorvé-lo”. in “Neutralita attiva ed operante’, I Grido del Popolo, de 31-10-1914, republicado em Gramsci, 1980, p. 10. Grifo nosso. Esta é uma das inémeras passagens dos escritos de 14 a 21 que falam dessa questao. 5 Esta 6 uma limitagao da racionalidade capitalista. Apesar da sua imensa abrangén- cia ela ndo consegue a universalidade e requer a ideologia de tipo religioso como elemento que funda a sua concepcao de individualidade. 6 Ver 0 debate gramsciano no periodo consilhista. 7 Marx, 1957, cuja formulagao causa até hoje inumeraveis debates sobre a existén- cia ou nao de uma postura determinista. 8 Ponto de partida da cultura da ordem burguesa a citica radical a ordem “natural” feudal: foi como que “um exército invisivel de livros, de opdsculos (...) que prepararam homens ¢ instituigdes para a revolugao necessaria”. (Socialismo e Cul- tura, Il Grido del Popolo (GP), 29-1-1916, Gramsci, 1982, Pp. 102. Grifo nosso.) Foi elemento de diregao intelectual e politica das massas. Tal deverd ser, também, 0 ponto de partida da cultura socialista. A consciéncia do proletariado também se forma na critica dos seus inimigos, os capitalistas: como 0 iluminismo, a cultura so- cialista podera — e ter que — ser uma magnifica revolugao. E © poderd ser, dado que “conhecer a si mesmo quer dizer ser si mesmo, quer dizer ser senhor de si mesmo, distinguir-se, sair fora do caos.” (idem. Grito nosso.) 9 Marx, 1928, p. 23. EDMUNDO FERNANDES DIAS a 10 Um bom exemplo do peso politico ¢ cultural diferenciade das grandes cidades € a reflexao que Gramsci faz sobre Turim como locus dos Consellios (1920), “Turin (..) € a cidade operaria por exceléncia (...) € como uma dnica fabrica: a sua popur lacao trabalhadora é de um mesmo tipo, ¢ fortemente unificada pela produgio indus- trial. (...) A cidade, organismo industrial e de vida civil (...) este magnilico aparelho de produgdo industrial, de produgdo intelectual e de propulséo da vida civil,” La funzione storica delle citta, ON, 17-1-1920, Gramsci 1987, p. 320. Grifo nosso, Ver também I movimento torinesi dei Consigli di fabbrica, Relatério enviado em julho de 1920 a0 Comite Executive da Internacional : “O proletério turinés torma-se assim 0 dirigente espiritual das massas operérias italianas, que estdo vinculadas a esta ci- dade por miltiplas ligagées: paremtesco, tradicéo, hist6ria e por ligacdes espirituais (0 ideal de todo operério italiano € poder trabalhar em Turim.” L’Ordine Nuovo (diario) 14-3-1921, Gramsci 1970, p. 179. Grifo nosso. 11 Ver o papel que o iluminismo (reforma intelectual e moral da burguesia) fez no inicio da revolugao burguesa: ele foi “uma magnifica revolugao (...) criou em toda a Europa (...) uma consciéncia unitdria, uma intemacional espiritual burguesa”, Socia- lismo e... op. city, p. 101. Grifo nosso. 12 Para uma compreensao da obra de Croce e seu sentido revisionista é interessante consultar: Garin, 1974; Badaloni e Muscetta, 1977; Abbate, 1976; ¢ Gustafsson, 1975. 13 Croce combate as outras teorias “como partidos, isto 6, como {atos politicos, nao as combate, mas as (...) compreende em si, isto € submete a si, (...) como partido en- tte partidos, momento entre os momentos do desenvolvimento hist6rico”, como ele proprio afirma em “Contro la troppa filosofia politica’ (citado por Abbate, op. cit., p. 95). Coloca-se assim, (idem, p. 96), como “consciéncia critica de todo um curso histérico” ou como preferimos: “Como horizonte intelectual. Como hegemonia.” (Dias, op. cit, p. 52) 14 Nao cabe nos limites deste trabalho examinar, com profundidade, a questio da aparéncia na perspectiva marxista, Contudo Marx, reiteradamente, falou em aparén- cia necessdria. O exemplo tipico dessa aparéncia esta, como j4 nos referimos, na igualdade dos individuos no “mercado”. A transformacao da desigualdade real em igualdade formal permite subtrair/interditar a dupla questao da exploracao e da opressao. Pelo contrario, ela expressa a “verdade” do capitalismo; ela é, pois, “cons- tituidora” do real. Para uma andlise sobre esse problema, ver Rieser, 1966. 15 Sobre essa problematica ver a produgao gramsciana de 14 a 21, em especial: “Socialismo e Cultura’, Il Grido del Popolo (GP), de 29-1-1916; “Tre principii tre or- dini”, “Disciplina e liberta”, publicados no La Citta futura (CP), de 11-2-1917, “Per un’associazione di cultura”, Avanti! (A), de 18-12-1917, todos republicados em Gramsci, 1980. © debate sobre a questao da cultura, ligando o problema do par- tido, do sindicato e da revolugao, ¢ amplo durante todo periodo dos Conselhos Operarios (1919-20), 0 chamado biennio rosso. 16 Ver sobre isso o item Uma hegemonia nao realizada: unidade italiana e revolugao passiva. No Brasil, se pensamos as classes trabalhadoras, podemos ver em Lula um intelectual condensado. ” _HEGEMONIA: RACIONALIDADE QUE SE FAZ HISTORIA 17 “Um erro muito difundido consiste em pensar que cada estrato social elabora a sua consciéncia ea sua cultura do mesmo modo, com os mesmos méodos, isto é, © método dos intelectuais profissionais. O intelectual um ‘profissional’ (killed) que conhece 0 funcionamento de ‘maquinas’ especializadas; tem o seu ‘titocinio', @ tem © seu sistema Taylor. € pueril e ilusério atribuir a todos os homens esta capacidade, ‘adquirida’ e nao inata, como seria pueril crer que qualquer operdrio manual possa ser maquinista ferroviério. € pueril pensar que um ‘conceito claro’ oportunamente di- fundido se insira nas diversas consciéncias com os mesmos efeitos ‘organizadores’ de clareza difundida: este 6 um erro ‘iluminista’.” (2267-8, IOC 173-4) 18 A escola acaba sendo “uma incubadeira de pequenos monstros aridamente ins- truidos para um oficio, sem idéias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas apenas com olho injalivel e mao firme.”, Uomini o macchine?, Avanti!, 24-12-1916, in Gramsci, 1980, p. 671. 19 Esse debate j4 pode ser encontrado claramente nas andlises feitas por Gramsci no biennio rosso, em especial, na critica que ele fazia tanto ao partido quanto aos sindicatos. E mesmo na critica a0 Estado burgués e sua subordinacao 4 burocracia. Sobre tudo isso ver Dias, 1987, capitulo 3. 20 Apés ter falado em uma hierarquia de méritos, José Arthur Giannotti, 1986, quali- fica com clareza seu pensamento: “existem assistentes muito mais qualificados do que muitos doutores que passaram suas teses as escondidas. Numa votacdo, porém, © critério formal deve ser levado em conta. Nao estou propondo que a universidade se transiorme numa repiblica de doutores, mas tao-s6 que ela considere especial- mente aqueles que, dum ponto de vista formal, s40 definidos como seus cidadaos plenos”, p. 82. Grifo nosso. £ inutil relembrar que definir jé 6 hierarquizar. O problema € sempre o dos critérios dessa definigao, dessa hierarquizagao. 21 Dois belos exemplos do papel desses intelectuais rurais sto dados pela literatura: na Italia Fontamara, obra de Ignazio Silone, ¢ no Peru o classico de Ciro Alegria, El mundo es ancho y ajeno. 22 O exame da conjuntura do biennio rosso j4 antecipa a andlise do “monstruoso bloco agrario”: “O estado para o desenvolvimento do aparelho industrial, absorve a Pequena burguesia dos campos, os intelectuais, nos seus organismos administrativos, nos jomais, nas magistraturas; assim 0 campo nunca teve um partido politico Préprio, nao exerceu nunca um peso nos negécios publicos”. Il potere in Italia, A, 11-2-1920, L’Ordine Nuovo (ON semanal), Gramsci, 1987, p. 410. 23 Gramsci tem aqui presente 0 momento dos Conselhos de Fabrica. 24 “Para analisar as fungoes sociais dos intelectuais, é necessario pesquisar ¢ exami- nar a sua atitude psicoldgica face as grandes classes que eles colocam:em contato nos diversos campos: tem atitude ‘paternalista’ em relacdo as classes instrumentais? Ou cr@em ser uma expressao organica delas? tem atitude ‘servil” face as classes dirigentes ou se créem eles proprios dirigentes, parte integrante das classes dirigen- tes?” (2041). Na edi¢ao argentina faltam seis parsgrafos no texto, entre os quais jus- tamente o desta citagao,) 25 Na edigao brasileira quarantottesca (referéncia as revolugées de 1848) é traduzi- do por “jacobina-revolucionaria”. EDMUNDO FERNANDES DIAS: 7 26 Ver sobre isso, 0 livro de Salvadori, 1976, Kautsky via no Estado Moderno, ¢ em suas condigdes materiais de existéncla — 0 capitalismo — como jé aprsentando as condigoes da passage ao socialismo, A tarefa nado era, pois, de destrulr a maquina do Estado burgués. Mas de obter a maioria no Parlamento, para 0 qual se deslocaria © centro de decisoes politicas, Nesse sentido, veja-se Salvadori, 1977, 1979, 1979a, 1980 e 1980a. Ver também Colletti, 1967. 27 Em 1917, um exemplo entre muitos, ele ja colocava essa questao de modo claro: “dou a cultura este significado: exercicio do pensamento, aquisigdo de idéias gerais, habito de conectar causas ¢ efeitos. Para mim, todos j4 sao culos, porque to- dos pensam, todos conectam causas e efeitos. Mas 0 sdo empiricamente (...) nao or- ganicamente. E assim como sei que a cultura é também um conceito basilar do socialismo, porque integra e concretiza 0 vago conceito de liberdade de pen- samento, assim gostaria também que ele fosse viviticado por outro. Pelo de organi- zagao. Organizemos a cultura, assim como buscamos organizar toda atividade pratica.” Filantropia, buona volonta e organizzazione, A, 24-12-1917, Gramsci, 1982, p. 519. Grifo nosso. 28 Juarez Guimaraes, Especulagdes gramscianas, datilo, p. 1. 29 “O direito 6 0 aspecto repressivo e negativo de toda atividade positiva de civili- zaGao desenvolvida pelo Estado.” (1571, MPE 97) 30 Todo “Estado € ético enquanto uma das suas fungdes é a de elevar a grande massa da populagao a um determinado nivel cultural e moral, nivel (ou tipo) que corresponde a necessidade de desenvolvimento das forcas produtivas e, donde, aos interesses das classes dominantes. A escola como fun¢ao educativa positiva e os tribunais como fungao educativa repressiva e negativa s4o as atividades estatais mais importantes em tal sentido: mas no final, na realidade, tendem a uma multiplicidade de outras iniciativas @ atividades ditas privadas que formam o aparelho da hegemo- ria politica ¢ cultural das classes dominantes” (1049, MPE 145). 31 Na andlise da revolugao russa, em 1918, Gramsci mostra 0 economicismo como fonte de subordinagao ideolégica. Na critica dos reformistas a0 proceso revolu- cionario, Gramsci chama a atengao para aquilo que ele considera 0 sentido basico da obra de Marx, que nao era o de dar um modelo “objetivo” da sociedade, mas de tomar possivel sua compreensao € sua transiormagao. Com isso, os bolcheviques libertaram o legitimo pensamento marxista das deformages positivistas. Gramsci critica Treves que “no lugar do homem realmente existente’ pde ‘o determinismo' ‘ou a “forca transformadora’, assim como Bruno Bauer colocava a ‘autoconsciéncia’. Porque Treves, na sua alta cultura, reduziu a doutrina de Marx a um esquema exte- rior, a uma lei natural, ocorrendo fatalmente de fora da vontade dos homens, da sua atividade associativa, das forcas sociais que essa atividade desenvolve, tornando- se ela propria determinante do progresso, motivo necessério de novas formas de pro- ducao.” (La critica critica, GP, 12-1-1918, Gramsci, 1982, p. 554-555. Referéncia clara a obra de Marx A Sagrada Familia ou Critica da Critica Critica ou contra Bruno Bauer e seus consortes) Mais precisamente: Treves, segundo Gramsci, fez do marxismo uma teoria da inércia do proletariado, a partir do que cessa toda a ativi- dade de proselitismo e de organizacao por parte dos velhos socialistas de direita,

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