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A história em outros termos

As narrativas indígenas aqui publicadas dispensariam qualquer apresentação —


quanto mais uma assinada por um branco —, não fosse o fato de que seu
destinatário somos precisamente nós, os brancos. É apenas por isso que não me
parece impróprio introduzi-las, fazendo votos de que elas nos possam abrir os
ouvidos, e reavivar a memória. Escutemos pois o que dizem os Desana, os Baré, os
Mawé, todos esses que viemos a chamar, por esquecimento, ‘índios’, como quem
diz os outros, quando fomos nós que nos tornamos outros. Os que foram
esquecidos não esqueceram.
O que se lerá aqui é a história destes quinhentos anos, uma história que
pensamos conhecer — mas contada em outros termos. Não é, para começar, uma
história (dos índios) contada pelos brancos, mas uma história (dos brancos)
contada pelos índios. Uma história, ou melhor dizendo, várias. Pois estas histórias
impressionam pela diversidade: diversidade das posições enunciativas, dos
contextos discursivos, dos gêneros de fala, dos recursos semânticos, dos registros
epistêmicos, dos processos de textualização. Fala-se aqui do passado ‘imemorial’,
mas também do ontem e do amanhã; falam vozes muito distantes, outras muito
próximas; falam povos com experiência secular dos brancos, outros cujo ‘contato’
conosco é coextensivo ao tempo de vida do narrador; contam-se o que
chamaríamos ‘mitos’, como se contam memórias pessoais, inscrevem-se
fragmentos de conversas, e depoimentos formais, e entrevistas, e conferências;
diz-se o que se diz há muito, e diz-se o que nunca foi dito; conta-se muito do que
contamos, mas de modo bem diferente. Conta-se, em suma; mas também explica-
se, critica-se, lamenta-se, justifica-se, reivindica-se, pergunta-se. Há muito o que
dizer.
Tal impressão de heterogeneidade emerge não apenas da relação entre as
narrativas, mas de muitas delas em si mesmas, em particular daquelas que buscam
o fio que liga o presente ou o passado recente às condições gerais de possibilidade
do mundo. Os personagens ‘históricos’ (isto é, que figuram em nossos mitos
históricos) coexistem sem solução de continuidade ontológica com personagens
‘míticos’; temas clássicos da tradição indígena panamericana refletem, absorvem e
transformam motivos igualmente clássicos da mitologia do Velho Mundo; juízos
etnográficos profundos sobre a sociedade dos brancos buscam sua justificação em
amplas caracterizações antropológicas e cosmológicas. Há, dir-se-ia, de tudo.
Exatamente como na história que conhecemos, aliás, cuja heterogeneidade é
apenas menos sensível a nossos olhos e ouvidos, acostumados que estão às nossas
próprias convenções narrativas, onde coabitam escalas temporais incomensuráveis,
e aos nossos saltos ‘naturais’ entre múltiplos registros discursivos.
Não é difícil perceber, entretanto, a presença de um grande tema que
atravessa muitos dos textos a seguir. Pois a diversidade aparente reflete, ou antes,
refrata uma convicção fundamental. Esta diz: os índios são anteriores aos brancos,
na ordem do parentesco e na ordem do território. Os brancos não chegaram aqui,
eles saíram daqui; não descobriram os índios, mas se encobriram a si mesmos, até
voltarem para o que pensaram ser um encontro com o desconhecido, mas que não
foi senão um reencontro com o olvidado. Somos, recordam-nos os Desana, seus
irmãos mais moços. Abandonamos nossos maiores no princípio dos tempos, e
muito mais tarde (apenas quinhentos anos atrás), acreditamos tê-los descoberto.
Os que vieram a ser chamados índios são aquele fragmento da humanidade
originária que decidiu, para o melhor ou para o pior, não seguir conosco. O retorno
dos brancos era esperado — estava previsto —, mas se esperava, talvez, um pouco
mais deles: que se comportassem como parentes que retornam, não como algozes;
que partilhassem o que haviam aprendido lá aonde foram morar, não que
voltassem para tomar o pouco que aos índios coubera; que seu engenho não
tivesse sido adquirido às custas da sabedoria, que sua arte não lhes houvesse
embaralhado o entendimento, que sua escrita não fosse usada para calar a voz dos
que ficaram.
O que dizem, então, estas narrativas, é que a relação com os brancos
sempre existiu. Não houve nem há ‘contato’ que não fosse ou seja uma atualização
— por mais que desastrosa — de uma virtualidade traçada no discurso das origens.
Ailton Krenak observa agudamente que “o encontro e o contato entre nossas
culturas e nossos povos, ele nem começou ainda e às vezes parece que ele já
terminou”. Mas vale também, e pelas mesmas razões, o inverso: ele jamais
começou, pois ele estava lá antes do começo. No começo foi o desencontro, e este
ainda não terminou, quinhentos anos passados.
Mas quinhentos anos não é nada, conclui Ailton. É verdade. Sobretudo para
quem tem boa memória, para aqueles cujo pensamento não está, como fulmina
David Kopenawa, cheio de vertigem e de esquecimento. Possamos ao menos
lembrar daqui para a frente, nós que somos verdadeiramente ‘muito esquecidos’.

Eduardo Viveiros de Castro

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