FACULDADE DE EDUCAÇÃO Psicanálise, Educação e Cultura – Profa. Mônica do Amaral Gabriela Ruggiero Nor – no. USP 5418871
Entre os muros da escola e a indisciplina escolar
O filme Entre os muros da escola (França, 2008) retrata o cotidiano
de uma escola parisiense, dando especial atenção ao relacionamento dos alunos com seu professor de francês. Das questões levantadas pelo filme, uma das mais significativas é aquela que diz respeito à indisciplina escolar, problematizada em alguns momentos devido ao delicado contexto de sala de aula, que envolve alunos de diversas origens. Isso faz com que surjam conflitos relativos à identidade, singularidade e necessidades específicas na aprendizagem dos conteúdos propostos pelo professor e na interação social com os colegas. Dentre os relacionamentos professor-aluno expostos no filme, chama a atenção o percurso de Souleymane, aluno, e M. Marin, professor de francês. O estudante, constantemente acusado por seus professores de indisciplinado e desatento, desenvolve ao longo do filme um relacionamento razoável com o professor. Parecem existir esforços sinceros da parte de Marin para motivar o aluno e agir com paciência. Algumas atitudes de Marin visam a um diálogo mais aberto; de fato, o professor não se esquiva dos questionamentos dos alunos. Mas é interessante ver que, mesmo estando aberto a dúvidas a respeito de conteúdos extracurriculares, não se utiliza dos interesses específicos dos alunos para suas aulas. Este entendimento entre aluno e professor se compromete numa determinada passagem do filme, mudando os rumos da interação entre os dois: isto tem início em uma reunião de professores, da qual participam duas alunas, colegas de Souleymane. Nesta reunião, professores e diretor avaliam os alunos. Marin releva e relativiza muitos dos aspectos que incomodam aos outros profissionais nas atitudes e no comportamento de Souleymane. A intenção é a princípio defender o aluno dos ataques; entretanto, Marin sugere que o estudante é limitado, e que seu limite já havia sido atingido. É importante mencionar que, ao longo do filme, por intervenções de colegas durante as aulas, torna-se claro que Souleymane tem dificuldades com a escrita da língua francesa, e não recebe auxílio específico. A opinião de Marin vem a público durante uma de suas aulas, através da manifestação das alunas presentes na reunião com os professores. Com isso, instala-se uma situação de grande conflito em sala de aula, e o professor acusa as alunas de agirem como pétasses, palavra que alude à vulgaridade e à prostituição. Em decorrência disso, Souleymane se manifesta, discute com o professor, com outros alunos, torna-se agressivo, e é levado à sala do diretor. O incidente culmina na expulsão de Souleymane. Existem diversos pontos interessantes para discussão na situação apresentada no filme. Primeiramente, o que aparece de maneira clara na interação entre o professor e seus alunos é a necessidade de Marin definir seus estudantes, inserindo-os em categorias estanques no que diz respeito a suas possibilidades de aprendizagem. A pouca atenção, a apatia e a subestimação envolvidas nesta atitude são, de acordo com Cintia Freller, em seu livro Histórias de Indisciplina Escolar, temas incômodos aos alunos, que percebem e desaprovam o comportamento do professor. Segundo a autora, existe necessidade de reconhecimento por parte dos alunos, o que muitas vezes não é proporcionado pelos docentes. Isto fica muito claro no filme quando, ao final, Marin se surpreende ao saber que uma aluna havia lido Platão – ironicamente, uma daquelas acusadas de pétasse. O professor parecia partir do pressuposto de que alunos mais questionadores e descontentes com os conteúdos ministrados em sala de aula eram apáticos ou desestimulados de maneira geral. O que vemos é que muitas vezes o desinteresse do aluno restringe-se à sala de aula, e, fora dela, pode cultivar interesses culturais e intelectuais. Freller discute este ponto em sua tese, mostrando que o julgamento feito pelos professores muitas vezes não é pertinente, pois o estudante tem curiosidade e vontade de aprender (ver p. 81, por exemplo). Durante muitas das aulas retratadas no filme, o professor é irônico quando trata das habilidades intelectuais de alunos considerados difíceis, usando termos como “duvido!” quando algum aluno indisciplinado se propõe a realizar alguma atividade. Com relação aos alunos com bom rendimento escolar, basta mantê-los onde estão: é o caso de um aluno oriental, considerado excelente estudante. Este mesmo aluno tem dificuldades de comunicação e interação social, não contempladas pela escola. O que fica é que um aluno que não representa ameaças à organização escolar deve ser mantido onde está; já os alunos indisciplinados devem ser controlados, domados, mas pouco se fala quanto ao seu aproveitamento nos estudos – isto é secundário; o mais urgente é manter a ordem. Entretanto, desafiar e ser punido faz parte dos riscos assumidos por alunos “tidos como indisciplinados”, que “não aceitam humilhações, não fazem concessões que consideram alvitantes ao que lhes parece vital” (p. 65). A atitude desrespeitosa do professor, ao tratar suas alunas com termos pejorativos, é extremamente problemática. Não parece ser recusado pelos alunos o status de autoridade do professor em sala de aula; o que os preocupa nisso é como o professor faz uso dessa posição. A incoerência da atitude de Marin, exigindo respeito dos alunos ao mesmo tempo em que os desrespeita, é incabível para os estudantes. Isto é também colocado no texto de Cíntia Freller, que nos mostra que muitas vezes aquilo que é entendido como indisciplina pelo professor não é visto pelos alunos da mesma forma. Como exemplo, podemos citar a revolta da sala com a atitude do professor. Na perspectiva dos alunos, é bem possível que isto possa ser entendido como uma defesa frente às acusações; outra hipótese poderia se basear na percepção da incoerência entre aquilo que é pedido pelo professor e aquilo que ele efetivamente emprega em seu comportamento. Para o professor, a interpretação é somente o desrespeito. O aspecto positivo deste conflito é o fato de ele mostrar, de maneira exemplar, que embora a escola não perceba os alunos como sujeitos participantes na dinâmica escolar, eles se enxergam desta forma. De modo mais claro: enquanto as autoridades escolares vêem os alunos como passivos dentro do sistema educacional, eles mesmos se consideram ativos e participantes. Isto é positivo na medida em que dá pistas para um melhoramento no relacionamento entre professor e aluno, uma forma de agir que ajude a evitar conflitos e situações trágicas como aquelas vistas no filme. No caso de Souleymane e Marin, por exemplo, seria preciso atentar para diversos elementos para harmonizar a relação entre os dois. Observar a singularidade do aluno, tanto no que diz respeito à sua identidade, quanto às suas necessidades na aprendizagem, que deveriam ser contempladas pelo professor. Junto a isso, perceber que o aluno se enxerga como indivíduo digno e merecedor e, assim, não deve ser restringido à categoria de aluno-problema nem de aluno limitado, como se estas fossem fatalidades incontornáveis. De maneira análoga, também não pode ser ofendido pelo professor, que usa de sua autoridade para se justificar. Outro aspecto que se torna bastante claro no filme é o questionamento daquilo que se ensina e do método empregado. Por que motivos o professor apresenta aquele conteúdo? E por que daquela forma? A necessidade de ver um propósito e um sentido naquilo que é ensinado na escola é perceptível. Em vez de trabalhar no sentido de esclarecer as motivações para o ensino de determinado conteúdo ou na apresentação de determinada proposta (como os auto-retratos, no filme), o professor apenas defende o currículo. Mas não é contra o conteúdo em si que os alunos se rebelam, mas sim quanto à sua função e pertinência. Talvez uma atenção maior a este ponto ajudasse a evitar que o conflito se estabelecesse em sala de aula, simplesmente porque assim seria possível trazer o aluno à aula, torná-lo interessado. Os problemas colocados neste parágrafo foram, em minha opinião, os principais elementos que contribuíram para o desfecho na relação entre Marin e Souleymane. Em Histórias de indisciplina escolar, Winnicott serve como base teórica para muitas das reflexões da autora. Uma das propostas mais interessantes é o entendimento do aluno como “uma estrutura ambiente- indivíduo” (p. 238), ou seja, como relacional ao mundo de que faz parte e seu contexto. Sob esta perspectiva, o estudante não é uma unidade isolada. Entender as redes de relação das quais o aluno participa e levá-las em consideração na abordagem da indisciplina parece um caminho mais proveitoso. Entretanto, a partir do que é visto no filme e nos depoimentos colhidos por Freller, este tipo de aproximação do problema é raro: o que mais aparece é a transferência de responsabilidades, por parte da escola ou da família. Professores atribuem o mau comportamento aos ambientes familiares dos alunos ou a problemas individuais; as famílias pedem ajuda aos professores e cobram mais controle. Já nas redações dos alunos, o que chama a atenção é a frustração com o sistema escolar como um todo; professores que não explicam ou que passam atividades sem propósito, estrutura física da escola em más condições etc. Em suma, procura-se um tipo de “núcleo original” do problema da indisciplina, enquanto parece claro que não existe um foco isolado que motive comportamentos específicos. Esta busca, como já foi dito, culmina muitas vezes na categorização de alunos e na atribuição de problemas específicos aos estudantes. Com isso, incorre-se frequentemente em afirmações como: os alunos não respeitam as autoridades, não querem estudar, têm problemas com a obediência de regras, são hiperativos. São diagnosticados comportamentos patológicos com os quais a escola não pode se envolver, e cuja solução mais imediata é a expulsão. No filme estudado, este conflito entre as explicações sobre a indisciplina é explícito. Alunos, familiares e professores parecem trabalhar em registros completamente diferentes, isolados uns dos outros. E o aluno fica à mercê do julgamento feito na escola e em casa, com poucas oportunidades para argumentar, defender sua posição, procurar um modo de articular e harmonizar suas convicções com aquilo que lhe é exigido na escola. Não pretendemos com isso vitimizar o aluno, mas sim demonstrar que, quando alunos e professores operam em lógicas e razões diversas, o primeiro grupo é, por motivos óbvios, mais reprimido e também mais exigido. A escola se assemelha muito mais a um organismo vivo, em modificação dinâmica, do que a uma estrutura acabada e imóvel. Como todos os elementos interagem – família, meio social, alunos, professores – se existem alterações em uma das esferas, todas as outras precisam estar atentas e dispostas a se revisarem e se refazerem no sentido de preservar o bom funcionamento do sistema escolar. A escola concebida como unidade rígida, na qual os alunos não podem se expressar e de cuja estrutura não podem participar, não terá outros instrumentos para lidar com a indisciplina além da expulsão do aluno problema.