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As mensagens sobre drogas no rap:

TEMAS LIVRES FREE THEMES


como sobreviver na periferia

Messages about drugs from rap:


how to survive in the periferia

Vinícius Gonçalves Bento da Silva 1


Cássia Baldini Soares 1

Abstract The objective was to analyze the mes- Resumo O objetivo é analisar as mensagens so-
sages about drugs of the rap lyrics from represen- bre drogas nas letras de rap de grupos com repre-
tative and influential groups among the youth sentatividade e influência entre jovens da perife-
living in the periferias of São Paulo. It under- ria de São Paulo. O rap é um gênero musical que
stands that rap is a kind of music that is part of faz parte de um movimento cultural – o hip hop –,
cultural movement – the hip hop – that dissemi- que difunde uma visão social de mundo, princi-
nates a particular set of ideas, mainly in the peri- palmente nas periferias das grandes cidades. Por
ferias of the big cities. Through Discourse Analy- meio da Análise de Discurso estudaram-se 11 le-
sis 11 lyrics of 9 rap groups were taken as a sam- tras de 9 grupos. O tema marcante é a vida na pe-
ple. The outstanding theme of the lyrics is the sit- riferia retratada pelo tráfico e consumo de dro-
uation of the segregated areas of the city, includ- gas, pela violência e pela discriminação. O uso de
ing the presence of drug trafficking and consump- drogas é compreendido por alguns grupos como
tion, as well as violence and discrimination. The conseqüência do modo de produção, e por outros,
problem of drug consumption is understood by a pelas características individuais, pela influência
few rappers as a consequence of capitalism, and da família e dos amigos. As propostas para o en-
by others as individual characteristics and the in- frentamento e para a superação dos problemas es-
fluence of family and friends. The rap proposal to tão voltadas à responsabilização do sujeito que,
confront and to overcome those problems is mak- através de um esforço pessoal, não se envolveria
ing a personal effort to keep a distance from drug com o tráfico e consumo de drogas consideradas
trafficking and consumption, especially from crack perigosas e destrutivas como o crack e a cocaína.
and cocaine, considered risky and potentially de- O fortalecimento de laços familiares e de amizade
structive. Family empowerment, friendship and e a educação são também vistos como saídas para
formal education are also listed as important to os problemas advindos do envolvimento com as
prevent drug problems. Therefore, the rap propos- drogas. As propostas invocam um discurso que,
1 Departamento de al relies strongly on individual power, making a além de denunciar a situação dos jovens da peri-
Enfermagem em Saúde discourse that goes beyond denunciation, it pro- feria, propõe mecanismos de proteção para criar
Coletiva da Escola
de Enfermagem da poses developing protection mechanisms to live uma alternativa de “vida possível” – de convivên-
Universidade de São Paulo. with violence, drug trafficking and consumption. cia com a violência, com o tráfico e consumo de
Av. Dr. Enéas de Carvalho Key words Deprived areas, Rap, Drug of abuse drogas.
Aguiar 419, 05403-000,
São Paulo SP. Palavras-chave Periferia, Rap, Consumo de
nagre@ig.com.br drogas
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Silva, V. G. B. & Soares, C. B.

Introdução lização de uma nova norma da lingüística. Pretti


(1984) analisa que os hábitos lingüísticos estão
O artigo analisa as mensagens sobre drogas nas ligados de maneira indissolúvel ao modo de viver
letras de rap, manifestação cultural juvenil bas- e encarar a vida. A sociedade, portanto, rege o
tante difundida em grandes centros urbanos. O uso da linguagem e cria o que o autor denomi-
rap será analisado como uma cultura produzi- na de norma lingüística. A criação de uma lin-
da por jovens, negros e pobres de periferia, que guagem especial pode atender ao desejo de ori-
se torna produto de consumo e de influência ginalidade, mas também pode ter outras finali-
para os jovens da cidade de São Paulo. dades como servir de código a ser entendido
Esse estilo musical faz parte de uma vertente apenas por indivíduos de um grupo ou como
cultural mais ampla denominada de cultura hip elemento de auto-afirmação.
hop, estruturada em três pilares principais, que Dessa forma compreende-se que a gíria é
constituem sua expressão artística ideológica: a um fenômeno que é construído por um deter-
dança representada pelo break; a pintura pelo minado grupo, que a utiliza como um signo de
grafite; e finalmente a música expressa através grupo. Pretti (1984) afirma que quanto maior o
do rap (Guasco, 2001; Oliveira, 1999; Sposito, sentimento de união entre as pessoas de um
1994). Atualmente o hip hop adquire importân- grupo mais a linguagem servirá como elemento
cia de movimento artístico e fenômeno socio- identificador e de auto-afirmação.
cultural, refletindo transformações econômicas No Brasil, o movimento hip hop teve como
e sociais das últimas décadas (Guasco, 2001). berço a cidade de São Paulo, na década de 1980,
A música rap, criação tecnológica feita a par- manifestando-se primeiramente através do break,
tir de elementos acústicos e fragmentos de di- dançado nos bailes blacks e na Estação São Ben-
versos outros padrões musicais, com batidas rít- to do Metrô, zona central da cidade.
micas influenciadas principalmente pelo funk, O movimento hip hop no Brasil se estrutu-
começou como uma música para dançar o break rou também em organizações comprometidas
e para servir de base rítmica para uma improvi- com a formação do jovem através de atividades
sação poética que tem como conteúdo princi- comunitárias, seja shows de grupo de rap, mí-
pal o protesto social e o retrato da vida dos jo- dia escrita ou convivência promovidos na peri-
vens negros de periferia envolvidos no movi- feria, com intuito de formar junto do jovem de
mento hip hop. Tem suas origens no bairro do periferia uma consciência política, de cidada-
Bronx em Nova York por volta de 1970 (Andra- nia, artística e cultural. As posses promovem ati-
de, 1996; Sposito, 1994). vidades envolvendo conteúdos que não são
O rap não se reduz somente a um estilo mu- abordados pela escola formal com a profundi-
sical ou mecanismo habitual da sociedade de con- dade desejada pelo movimento hip hop – como
sumo, mas adquire caráter de instrumento de por exemplo, a questão racial (Sposito, 1994).
comunicação do jovem que expressa seu coti-
diano e critica o mundo que o cerca. Sposito
(1994) confirma a característica do rap como O rap como visão de mundo da periferia
um produto da sociabilidade juvenil (...) capaz
de mobilizar jovens excluídos em torno de uma Em primeiro lugar, compreende-se aqui que os
identidade comum. Os rappers vêm utilizando rappers tendem a expressar artisticamente um
esse estilo não somente como forma de comu- conjunto de idéias que fazem parte da visão so-
nicação e de expressão, mas também como for- cial de mundo da classe a que pertencem (Lowy,
ma de lazer, posicionando-se diante de seus pa- 2002), engendrando, a partir do lugar que ex-
res e de toda a cidade. pressam, dimensões inovadoras e subjetivas da
Sposito (1994) vem destacando a condição condição humana, da aspiração que os homens
do rap como uma manifestação cultural da pe- têm de se completarem, de exercer sua criativi-
riferia que se caracteriza por dois tipos de fenô- dade. No capitalismo essa inquietude da cria-
menos: o primeiro diz respeito ao RAP enquanto ção é lida como subversiva da ordem dominan-
gênero musical, consumido pela juventude, em te sendo solapada por outro conjunto de idéias:
especial negra e trabalhadora, (...) o segundo (...) a ideologia dominante (Konder, 2002).
envolve a disseminação do RAP enquanto prática Nesse sentido, o rap, no contexto específico
de produção cultural. da periferia, poderia estar contribuindo para o
O rap utiliza uma forma particular de ex- processo de emancipação humana, no sentido
pressão para alcançar o jovem: a gíria, materia- marxista, que vai se conformando pela capaci-
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dade de adquirir cidadania plena, ou seja, parti- Procedimentos metodológicos
cipar socialmente, desenvolvendo as potenciali-
dades de realização humana abertas por essa Para delimitar o objeto de estudo, em primeiro
forma de expressão e apropriando-se dos bens lugar, procedeu-se à identificação dos grupos
materiais e culturais construídos socialmente através dos critérios de influência e penetração
pelos homens (Coutinho, 2000). no meio juvenil, principalmente entre os jovens
Em segundo lugar, o estudo toma também das periferias da cidade de São Paulo, onde o
como referência teórica a compreensão de que movimento hip hop aglutina diversos grupos.
a problemática do consumo de drogas na con- Para tanto, os grupos foram selecionados
temporaneidade deve necessariamente passar através de duas revistas especializadas em rap: a
por uma análise de âmbito estrutural, ou seja, RAP Brasil e a RAP Rima, que circulam entre os
pela concepção de que este processo é determi- rappers. O critério de escolha levou em consi-
nado socialmente, a partir do modo de produ- deração a freqüência com que o grupo foi cita-
ção dominante. De acordo com Baratta (1994), do em entrevistas, matérias ou propagandas,
as drogas diferenciam-se no capitalismo por as- que ocuparam no mínimo uma página. Para es-
sumir as características de uma mercadoria. Sa- sa seleção foram consultados os números 1, 2,
be-se que o tráfico de drogas é por excelência 3, 4, 5, 7, 8 e 15 (de um total de 15 números edi-
um negócio capitalista, uma vez que se vale de tados) da revista RAP Brasil e os números 1, 2 e
uma organização e ideários empresariais, sendo 3 (de um total de 5 números editados) da revis-
estimulado pelo lucro e regulado pelas leis do ta RAP rima. A partir da seleção dos grupos,
mercado e do consumo (Coggiola, 2001). procedeu-se a um primeiro levantamento das
Embora o consumo prejudicial de drogas letras, utilizando como critério a presença dire-
possa afetar todas as classes sociais, Kaplan ta ou indireta de mensagens sobre drogas. As le-
(1997), ao analisar o narcotráfico nos países la- tras dos grupos selecionados foram levantadas
tino-americanos, chama a atenção para o fato a partir da discografia encontrada no comércio
de que os mais prejudicados são os que vivem de CDs e revistas, e sites da internet.
em condições precárias e por isso se envolvem Os grupos, autores das letras pré-seleciona-
também com o tráfico, como é o caso de mui- das, foram estudados, apreendendo-se caracte-
tos jovens na periferia, que se tornam vítimas rísticas como: tempo de existência; importância
da droga e da criminalidade ao cometerem deli- quantitativa da produção artística; reconheci-
tos para poder consumir a droga. mento no cenário do rap e popularidade no
No caso brasileiro, a periferia atual das gran- meio juvenil. Para essa tarefa utilizaram-se co-
des metrópoles tem suas origens nas décadas de mo principal fonte de dados sites da internet,
1930 e 1940 como conseqüência do processo de revistas, jornais e os próprios encartes dos dis-
industrialização e urbanização que não foi acom- cos. Foram utilizados diferentes revistas e jor-
panhado de uma política de reforma agrária. A nais como Rap Rima e Rap Brasil, revista Trip e
periferia paulistana se constituiu num primeiro revista Raça e o jornal a Folha de S. Paulo.
momento pela ocupação desordenada dos es- Das várias letras encontradas que fazem alu-
paços acessíveis da metrópole pelos imigrantes são às drogas, nos diferentes grupos seleciona-
que buscavam uma alternativa de vida na região dos, finalmente, priorizaram-se as letras que
e procuravam trabalho nas indústrias. Num se- trazem a droga como tema central para, em se-
gundo momento, após a crise estrutural dos anos guida, dar lugar às letras que tratam das drogas
70 e 80, com a globalização econômica apoiada sem que este seja seu tema central. Quando ha-
pelo projeto neoliberal, a periferização se am- via mais de uma letra por grupo, o critério de
pliou para incluir setores da cidade cujos mora- escolha foi a popularidade da música verificada
dores foram atingidos por um processo de pro- através do site <www.usinadosom.com.br>.
letarização (Maricato, 2002; Santos, 1996). No total, foram analisadas onze letras dos
A ausência de políticas públicas de educa- nove grupos selecionados, sendo: Crime vai e
ção e saúde, saneamento, entre outras, aliada vem, Mágico de Oz e Mano na porta do bar, do
aos altos índices de desemprego tornam a peri- grupo Racionais MCs; Paranóia delirante do
feria um espaço privilegiado de pobreza e mar- grupo XIS; A lei do grupo RZO; Malandragem
ginalidade. A violência e o tráfico de drogas tor- dá um tempo do grupo Thaide e DJ Hum; Olha
naram-se portanto problemas que a afligem de o menino do grupo 509 E; Gangsta Joe do grupo
maneira especial. Doctors MCs; Nada é mais como antigamente
do grupo Facção Central; Cavando sua própria
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Silva, V. G. B. & Soares, C. B.

cova do grupo SNJ e finalmente Cocaína do gru- tórico exterior ao próprio sujeito – responden-
po Sabotage. do a determinações sociais singulares –, mas
Dessa forma e procurando contemplar to- não só, o sujeito teria possibilidade de construir
dos os períodos históricos do rap paulistano, um discurso diferente das idéias dominantes,
foram analisadas uma letra de cada grupo, com em espaços de conflitos e contradições que per-
exceção dos Racionais MCs que tiveram três le- mitem rupturas, discussões e interpretações da
tras analisadas, sendo uma de 1993 – primeiro realidade diferenciados, constituindo a crítica
período do grupo, outra de 1997 e a terceira do da ideologia existente (Pêcheux, 1990).
último disco de 2002. A apreensão dos significados das letras e a
Os Racionais MCs constitui o grupo mais análise, através dessa metodologia, pretende-
popular e mais antigo entre os selecionados. Es- ram entender como o enunciador vê o mundo e,
se grupo, bem como, o RZO e o Facção Central portanto, reconhecer, interpretar e reinterpretar as
adotam um discurso de denúncias sobre como concepções sobre determinado objeto (Car, Berto-
o capitalismo destrói a vida de jovens negros e lozzi, 1999).
pobres da periferia. Já o Thaíde & DJ Hum, o Do ponto de vista operacional a primeira
XIS e o Doctor´s MC´s têm seu foco nas expe- coisa a ser feita para conhecer um discurso é a
riências individuais, familiares e de relaciona- consideração das condições em que esse dizer
mento interpessoal. O grupo 509 E está preocu- foi produzido. Neste caso, em particular, saber
pado em denunciar mais especificamente os ca- quem fala (rapper), para quem fala (jovens), de
minhos da criminalidade (509 E se refere à cela que forma (rap) e de que lugar da sociedade (de
na qual os integrantes do grupo se conhece- uma classe social que integra a periferia das
ram). Já o grupo SNJ define seu trabalho como grandes cidades) são elementos fundamentais
“rap futurista”, procurando disseminar mensa- no processo de comunicação estabelecido pela
gens “positivas”, desvalorizando toda postura linguagem (Oliveira, 1992).
pessimista.
Procurou-se, empírica e aprioristicamente,
apreender a ideologia nas letras do rap através Resultados e discussão
dos temas: problemas relacionados às drogas e
propostas de superação da realidade. A análise do O rap em suas letras procura denunciar os pro-
discurso revelou a recorrência de um outro te- blemas da periferia, principalmente a exclusão
ma – a vida na periferia – configurando-se na social, as injustiças e a discriminação do jovem
verdade como categoria empírica central nas le- negro e pobre. Pretende também alertar o jo-
tras analisadas. Para tratar especificamente dos vem para as possíveis situações perigosas e criar
encaminhamentos operacionais da análise de uma identidade comum de proteção entre eles.
discurso propriamente dita utilizou-se Pêcheux Para a sociedade o rap se apresenta como um
(1990) e Fiorin (1990). discurso de enfrentamento, de ameaça, como se
Para colocar em evidência a relação entre chamasse a atenção: olhem o que a sua sociedade
discurso e ideologia recorreu-se a Fiorin (1990) produziu, estamos de olho em vocês! Oliveira
que resgata primeiramente a relação entre lin- (1999) reitera esta percepção: é um discurso de
guagem e discurso. A linguagem pode ser lida revolta, de denúncia da realidade, e que para os
através de um discurso que, em si, diz respeito a rappers é um importante instrumento de catarse,
uma formação historicamente situada, havendo de descarga emocional da violência e da cólera. O
um campo de expressão através de símbolos da grupo Facção Central exemplifica essa afirmati-
linguagem (sintaxe) e um campo de expressão va, na letra Nada é mais como antigamente:
dos significados (semântica). É a semântica dis-
cursiva que constitui o campo da determinação Bem humilde esquecido como toda a quebrada
ideológica. A cada discurso, portanto, existe uma Um detento em formação
determinada visão de mundo que pode ser ideo- Um cadáver, as coisas boas não foram
lógica ou utópica. ensinadas
Assim, o discurso relaciona-se com a ideo- Ninguém é santo, mas também não tem
logia na medida em que materializa um con- demônio aqui, morô?
junto de idéias correspondentes a uma determi- Se têm dois 157 121 eu se atiro na cabeça
nada visão de mundo (Fiorin, 1990). do boy
O sujeito do discurso é, nessa concepção, re- É só o fruto da semente que o Brasil plantou
presentativo de um determinado contexto his- Desde pivete, choque, no DP
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Polícia, barulho de tiro, cadáver no chão cialmente produzidos (bairros pobres ou perifé-
Com miolo em volta e tiazinha gritando: ricos).
ajuda meu filho Os rappers assumem portanto a periferia
Ninguém nunca respeitou nossos direitos como espaço de exclusão, seja pela ausência de
Deram o crack uma glock 22 de pente cheio Estado, seja pela presença perniciosa do crime,
A mesma que usam pra roubar o seu rolex do tráfico, da corrupção policial e da discrimi-
no sinal nação social e racial. Mas a descrevem também
Ou a mesma do assalto a banco como espaço de igualdade e de solidariedade,
Que passa batida pelo seu detector de metal compartilhados no “lar” da exclusão social. É
Em Alphaville é piscina compreendida então como uma categoria social
......... com características comuns aos bairros pobres
Tá aqui a receita com problemas semelhantes. Diferencia-se dos
O Brasil dá o revólver bairros ricos justamente pela exclusão e discri-
Põe no seu cachimbo uma pedra e adiciona minação. O rap denuncia a ausência de Estado
a cinza na periferia o que contribui também para ca-
Depois um, dois, três, pá racterizar o que seria a vida na periferia, infor-
Mais um caixão na coleção da polícia mação também disseminada pela mídia. Essa
generalização acaba por reforçar a noção de pe-
O rap procura também levar conhecimento riferia como um determinado meio social e não
ao jovem a respeito dos mecanismos de sobrevi- como um lugar espacial (Guasco, 2001). A qua-
vência na periferia. Cria informações que con- lificação negativa do discurso dos rappers sobre
trapõem a ideologia veiculada através da mídia – a periferia homogeneíza as diversas periferias.
da importância do status econômico e dos meios Esse fato faz com que os rappers dos diferentes
para conquistá-lo – principalmente televisa, que bairros em condição de periferia construam
é considerada um dos maiores vilões na confor- identidades iguais, aproximando-se indepen-
mação das mentalidades e do imaginário juvenil dentemente do lugar de origem. É por isso que
(Sposito, 1994). os rappers valorizam a solidariedade e a lealda-
A análise das letras mostrou que se trata de de entre os moradores da periferia.
uma forma de expressão marcada predominan- Assim para os rappers as influências negati-
temente pela gíria. Dessa forma, de um lado, a vas ou positivas da família e dos amigos são
gíria imprime a marca da particularidade de compreendidas como fatores preponderantes
um grupo, defendendo sua identidade – a de jo- para que o jovem ingresse no crime e no consu-
vens pobres de periferia. De outro lado, vai se mo de drogas. Portanto as propostas que ficam
afirmando como símbolo de denúncia das con- mais evidentes nos seus discursos são as de va-
dições de vida. Um e outro aspecto do duplo ca- lorização individual e familiar. O estudo, a prá-
ráter da gíria (Pretti, 1984) somam-se para aler- tica de esporte, a música e o bom relacionamen-
tar a sociedade sobre a existência de um grupo to com as pessoas que vivem na periferia, bem
que se forma no seio da marginalidade social. como a religiosidade e a compreensão das con-
A preocupação central dos rappers com a seqüências “da vida do crime e da droga” tor-
periferia, com suas tensões e problemas, estava nam-se instrumentos potentes para a supera-
de certa forma anunciada, uma vez que além de ção dos problemas em contraposição ao poder
sua origem estar vinculada à própria periferia, do consumo e do tráfico como meio de obtê-lo.
de aí ter sua força, é ao falar dela que o rap ga- Zaluar (1996) elucida tal invocação dos rappers,
nha visibilidade e carisma diante de seu público teorizando sobre sua reação em recorrer a refe-
(Guasco, 2001), criando uma identidade que es- rências como a família e os amigos, pois na pe-
tá profundamente arraigada à experiência local riferia desaparecem outras figuras masculinas até
(Rose, 1997). Portanto, os rappers, ao denun- então valorizadas, respeitadas e influentes (...)
ciarem os problemas de seus pares, remetem-se como o bom jogador de futebol, o bom sambista,
imediatamente ao espaço ocupado por eles. Es- o bom pai de família, o trabalhador habilidoso, o
paço que não pode ser compreendido como lo- malandro esperto (...). O poder do bandido ar-
cal geográfico em contraposição a um local cen- mado e montado na grana é incontestável (...) o
tral, mas que deve ser compreendido no seio da adolescente que procura seus espelhos vê cada vez
contradição inclusão e cidadania (econômica e mais apenas essa figura.
política dos bairros ricos) versus exclusão ou Dessa forma a periferia aparece nas letras
impossibilidade de acessar os bens que são so- através de dualidades que são marcantes em seu
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Silva, V. G. B. & Soares, C. B.

cotidiano. Pode ser retratada como lugar que cotidiano retratado nas letras exige dos jovens
valoriza os talentos individuais, principalmente comportamentos e atitudes necessários para sua
da música e esportes, mas que pode se tornar sobrevivência e para uma “vida do bem”, basea-
empecilho, devido à dificuldade de acesso e des- dos nas próprias contradições apresentadas na
valorizar a condição humana devido à violência vida da periferia. Se o jovem não tiver certas
e às drogas. Possibilita portanto a ascensão in- qualidades pode ser atraído pelo tráfico, uso de
dividual e a destruição, a amizade e a discórdia, drogas ou criminalidade. Tais qualidades posi-
uma vida comum ou de criminalidade. tivas são encaradas pelos grupos como uma ma-
Conforme relatado, a ausência do Estado na neira de compensar os aspectos negativos da
periferia e a corrupção são denunciadas pelos periferia.
rappers, sendo que o governo e a polícia são as Dessa forma, o jovem é responsabilizado com
instituições públicas com maior descrédito e ao muita veemência pelos seus caminhos e esco-
mesmo tempo são tidas como indispensáveis lhas. As letras assumem, portanto, duas possibi-
para a melhoria das condições de vida. A ma- lidades de resposta às condições desfavoráveis
neira como essas instituições se apresentam na da periferia: sucumbir e morrer através da vio-
periferia é vista pelos rappers como uma má in- lência ou das drogas ou se adaptar e enfrentar
fluência para os jovens que acabariam por to- as “armadilhas da sociedade”.
má-las como exemplo. A polícia, por exemplo, Os que não permanecem firmes são com-
no caso do porte de drogas, tem o poder de clas- preendidos como vítimas das condições sociais
sificar o infrator como usuário ou traficante, a que foram submetidos (Guasco, 2001).
apoiando-se na subjetividade interpretativa do Na periferia não é proibido sonhar, mas os
delito (...) para julgar os que cometem um crime sonhos de ascensão social parecem passar pela
de maior ou menor gravidade (Zaluar, 1996). mesma dualidade: a satisfação de desejos de con-
A polícia acaba por ter um papel discrimi- sumo pode ser encontrada pelo envolvimento
natório com uma atuação confusa que é perce- com o tráfico ou, por outro lado, pelo desenvol-
bida e denunciada pelo rap. Zaluar (1996) lem- vimento de talentos individuais notadamente a
bra ainda que muitas vezes o efeito esperado da música (rap) ou o futebol.
atuação policial torna-se oposto, terminando O tráfico de drogas e o crime apresentam-se
freqüentemente na antipedagogia da corrupção e concretamente como meios para satisfazer am-
da violência arbitrária. Assim como os rappers, bições e anseios de uma vida material com mais
a autora entende que a presença do Estado atra- bens e mais prestígio. Zaluar (1996) reitera essa
vés da escola – de um projeto pedagógico que va- percepção afirmando que a vontade de enrique-
lorize o diálogo, os meios verbais de negociação do cimento é um grande estímulo que leva o jovem
conflito, em detrimento da força bruta (...) – são ao crime. A autora também aponta que a mera
atributos importantes para a melhoria da cri- existência de opções informais do mercado ilegal
minalidade e conseqüentemente das condições de drogas e demais crimes contra a pessoa e con-
de vida na periferia. tra o patrimônio minou a perspectiva da profis-
Os rappers compreendem que a criminali- sionalização e da educação como saídas para a
dade e o envolvimento com o “mundo” das drogas pobreza.
podem levar a conseqüências desastrosas para Dessa forma, mesmo que as dificuldades do
os jovens e suas famílias, como a morte, a pri- jovem da periferia sejam explicadas pela sua im-
são e a violência. Com isso também concorda possibilidade como classe social de acessar os
Zaluar (1996), assinalando que o tráfico pode bens que são socialmente produzidos – media-
ocasionar a morte dos jovens e a conseqüente das por dificuldades de reprodução social das
diminuição das rendas das famílias da periferia. famílias, pela violência doméstica, pela falta de
Kaplan (1997), assim como os rappers, associa oportunidades e perspectivas futuras, ou pela
o tráfico de drogas à violência como uma das insatisfação e inconformismo gerados pela vida
conseqüências da conexão entre a droga e a es- cotidiana da periferia –, a disposição individual
trutura montada pelo crime. aparece como fator preponderante na escolha
Um dos aspectos marcantes nas letras é a de vida do jovem.
dupla possibilidade de o jovem ter uma vida co- Os rappers compreendem que a omissão do
mum e respeitosa permeada por valores familia- Estado se manifesta também na ausência de in-
res de amizade e com poucos bens materiais fraestrutura urbana, tornando a vida ainda mais
(longe dos aspectos negativos da periferia) ou difícil e o lazer ficando a cargo dos bares e das
de ter uma vida de tráfico e criminalidade. O esquinas.
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Para os rappers o estudo também é conside- uma ênfase especial nos danos causados pelo
rado um dos fatores que promovem a supera- crack. Às demais drogas não são atribuídas as
ção dos problemas dos jovens na periferia. mesmas características de destruição do crack
Apresenta-se aqui também outra contradição ou da cocaína. É considerado viciado quem é
no discurso. Os rappers cultuam o ensino esco- usuário dessas drogas. Este acaba por ter um
lar como um importante valor e o apontam co- comportamento inconsciente perdendo o con-
mo uma saída para a transformação social. Ao trole da situação, tornando-se violento, uma
mesmo tempo o estudo formal é considerado pessoa anormal, e dominada pela droga. Muitas
um conhecimento distante da realidade, omi- vezes perde o respeito em sua “área”.
tindo informações úteis para as transformações A visão que os rappers têm a respeito do
propostas. Guasco (2001) afirma que para os crack e da cocaína como drogas que incitam a
rappers a grande diferença é que aquilo que se ob- violência e levam à morte ou ao envolvimento
serva é experimentado na prática cotidiana das com o tráfico é explicada por Zaluar (1996). Es-
ruas e essa seria a única possibilidade efetiva de sas drogas contribuem para um clima de des-
contato com a realidade. confiança entre todos na medida em que produz
Adorno (1991) fala da socialização incomple- uma paranóia em que o jovem se imagina cerca-
ta explicando porque os jovens pobres acabam do de inimigo por todos os lados. Para sair da de-
por evadir-se da escola. De um lado associam pressão causada após o consumo e da vontade
trabalho (geralmente no mercado informal) a incontrolável de repetir a dose (...) o usuário cria
estudo para poder contribuir com a renda fami- dívidas com o traficante ou com policiais corrup-
liar ou para prover seus novos agrupamentos fa- tos e passa a furtar, roubar e até matar para man-
miliares. De outro lado sentem a humilhação de ter seu vício, não morrer por falta de pagamento
fracassos freqüentes a que são submetidos pelo ou não ser preso quando apanhado (Zaluar, 1996).
não-saber, pela falta de tradição de freqüência Os rappers, em geral (pois somente parte
escolar da sua família ou pela sua origem pobre. dos grupos adotam essa noção), fazem também
Refere também um certo ceticismo proveniente uma outra distinção entre as drogas. Algumas
da equação entre “se dar bem” e estudar. Adorno são consideradas “naturais”, como a maconha e
(1991) em pesquisa biográfica retrata que mes- outras “químicas”, como o cigarro, o álcool, o
mo entre os jovens que param de estudar por crack e a cocaína. As drogas “naturais” podem
motivos econômicos (...) não há firmes convic- estar associadas à noção de paz, felicidade e so-
ções a propósito da utilidade da escola. Esta é vista cialização, não trazendo prejuízos ao jovem. Na
de forma negativa pela imposição de um aprendi- direção oposta, as drogas “químicas” podem as-
zado estranho ao seu universo cultural. sumir um poder metafísico capaz de controlar
Para Adorno (1991) o trabalho infantil pro- o indivíduo, levando-o à dependência e possi-
porciona um bloqueio na escolarização e na velmente à morte e à prisão. Nota-se que o rap
profissionalização do jovem. O autor argumen- parece fortalecer uma outra classificação, equi-
ta que a incorporação precoce ao mercado de tra- vocada do ponto de vista científico, drogas “le-
balho, longe de amenizar a pobreza, cumpre o pa- ves” – como a maconha e o álcool – e drogas
pel de preservá-la. “pesadas” – crack e cocaína. As drogas “leves e
Diante dessa realidade, apesar da negação da naturais” são associadas à periferia da paz e as
educação formal, os rappers ainda apostam na drogas “pesadas e químicas” à periferia perigosa.
escola como um espaço de mediação entre eles e Ocorre uma ambigüidade em relação ao álcool
os jovens. Sposito (1994) aponta que os rappers que pode ser considerado destrutivo ou sociali-
percebem a importância da utilização das de- zador. O Grupo Sabotagem exemplifica essa
pendências da escola para reuniões e ensaios e co- percepção na letra de Cocaína:
mo via de acesso aos alunos, realizando apresen-
tações e debates para divulgar sua mensagem. Mesmo estando ausente haverá sempre
Os rappers, ao tratarem da problemática das quem critique
drogas, evidenciam a questão do tráfico como Cerveja, uísque, um trago, uísque
uma preocupação central, porém não deixam Dos manifestos maléficos o homem
de qualificar negativamente também o consumo é o próprio fim
de drogas, principalmente o de crack e cocaína. A química é o demo e quer então nos destruir
Essas drogas são compreendidas como substân- Vários da função só sangue bom que viciaram
cias que trazem desgraça ao indivíduo e que Do Brooklin ao Canão tem branca pura
realmente causam dependência e alienação. Há em Santo Amaro
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Silva, V. G. B. & Soares, C. B.

Muitos que estão com o pensamento ções que se estabelecem no modo de produção
ao contrário capitalista contemporâneo.
Quem não se aposentou só se tá preso Veja-se por exemplo alguns trechos da letra
ou é finado de Malandragem dá um tempo do grupo Thaíde
Alguns pedindo nos faróis, desnorteados e DJ Hum:
Tem química na fita, contamina os brasileiros
Criança de seis anos com o cigarro nos dedos Crescemos juntos sempre quis te ver numa boa
Só no descabelo como disse o sem cabelo Mais parece que você não quer se ajudar
eu creio o que que há?
Que o poder quer atitude e respeito Você não era de dar sopa pro azar, de repente
Mas observe os pretos sendo tirado no Brasil ficou diferente
inteiro Não troca mais idéia com a gente
Então prefiro sim um fininho do que me diz Só te vejo correndo pra cima e pra baixo
Do que a pedra no cachimbo e o pó no nariz angustiado descarregando pente
Afinal é tipo assim, pretendo usufruir Às vezes nem me reconhece no meio da rua
Já vi vários lutarem contra o vício e consegui outro dia até me estranhou
Basta saber esperar, ligeiro e não vacilar Qual é a sua?
Na moralina toda estrela sei que há E você não precisa mentir pra mim dizendo
de brilhar por que que sua família tá bem a pampa
Cá cocaína vou parar Faz uma cara que você não da noticias
Eu sei coca eu sei que mata em casa
Por isso eu tenho que parar de cheirar E se acaba de graça com os manos
Dessas eu não posso desandar da sua banca
O que fazer se você escolheu assim revólver
Os grupos têm uma preocupação em mos- pó pedra covardia enfim
trar os aspectos internos à realidade do pequeno Uma vida perigosa pra você e pros outros
tráfico, procurando alertar o jovem para as con- que certamente lhe trará o fim
seqüências do envolvimento. Nas letras não exis- .........
te menção às conexões do pequeno tráfico com Na brincadeira de criança você nunca
os grandes esquemas de produção e distribui- queria ser o bandido
ção dessa mercadoria. Hoje dá perdido em uns vende pedras
Embora o rap não se preocupe em relacio- pra outros
nar o tráfico no espaço da periferia com o gran- Se você sai do buraco te expulsam do morro
de tráfico, os problemas dos bairros e particu- Muitos dos seus camaradas só colam na sua
larmente do consumo de drogas são relaciona- quando você tá com dinheiro pra bancar
dos com o lugar que a periferia ocupa no modo várias cervejas
de produção capitalista. Compreendem que Ou então também quando a grana fácil
quem vive na periferia faz parte de uma classe não vem você é o cara que tem como
social duplamente submetida, às relações de completar a seda
produção capitalistas e, na sua forma contem-
porânea, às condições da globalização e do pro- E trechos da música Crime vai e vem dos Ra-
jeto neoliberal. Assim como os países da perife- cionais MCs:
ria do capitalismo, a periferia circunscrita em si
mesmo serve aos interesses de reprodução do Dinheiro, segredo palavra-chave
capital, ocupando a função de prover uma força Manipula o mundo e articula a verdade
de trabalho mal remunerada, a quem a forma- Compra o silêncio, monta a milícia
ção social destina muito pouco. Paga o sossego, compra a política
As teorias explicativas para o consumo de dro- Aos olhos da sociedade mais um bandido
gas entre os jovens apresentadas pelo rap osci- E a bandidagem paga o preço pela vida
lam das compreensões de cunho microssocial, Vida entre o ódio, traição e o respeito
como apresenta o grupo Thaíde & DJ Hum (en- Entre a bala na agulha e uma faca cravada
volvendo o contexto social mais próximo – fa- no peito
mília e amigos – e o próprio usuário), até as de Daquele jeito ninguém ali brinca com fogo
cunho macrossocial, exemplificado pelo grupo Perdedor não entra nesse jogo
Racionais MC´s, que atribui o consumo às rela- É como num tabuleiro de xadrez
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Xeque-mate vida ou morte um dois três ter perverso desse comércio que vai recrutar
Vê direito, pare pensa nada a perder consumidores privilegiadamente nos cinturões
O réu acusado já foi programado pra morrer e bolsões de pobreza, como a periferia. Os gran-
Quem se habilita a debater des traficantes utilizam-se da força de trabalho
Quem cai na rede é peixe não tem pra onde dos bairros pobres para a comercialização da
correr droga e dos moradores como um grande mer-
O crime vai o crime vem cado consumidor.
A quebrada tá normal e eu tô também As propostas dos rappers consistem em en-
O movimento dá dinheiro sem problema frentamentos individuais, familiares, religiosos
O consumo tá em alta como manda o sistema ou pela abstinência das drogas “pesadas” – do
......... crack e cocaína que, conforme visto anterior-
Eu tô aqui com uma nove na mão mente, constituem as grandes vilãs na opinião
Cercado de droga e muita disposição ladrão dos rappers. A proposta mais evidente é a de va-
Fui rotulado pela sua sociedade lorização individual e familiar e no caso dessas
Um passo a mais para ficar na criminalidade drogas a abstinência. O estudo, a prática de es-
O meu cotidiano é um teste de sobrevivência porte, a música e o bom relacionamento com as
Já tô na vida então paciência pessoas que vivem na periferia também são
propostas recorrentes. A maconha na visão de
É possível que a ênfase dada por alguns rap- alguns grupos não representa perigo para o jo-
pers ao sujeito e ao contexto social mais próxi- vem da periferia, sendo que o uso é tolerado.
mo na explicação do consumo de drogas se de- Não há propostas relativas a outras drogas. To-
va a uma necessidade de chamar a atenção para ma-se o exemplo do grupo SNJ em Cavando sua
aspectos da realidade que poderiam ser “con- própria cova para exemplificar essa abordagem:
trolados”, uma vez que modificações na estru-
tura e dinâmica do modo de produção signifi- Pare, pense, tente se conscientizar
cariam ações mais distantes e mais globais. Sa- Palavras apenas não, não adiantará
be-se que a desconsideração de qualquer dos Agir com perfeição pode lhe ajudar por que
elementos presentes no consumo de drogas ma- então oha
cro ou microssocial – o sujeito, os contextos Faca cravada na sua garganta
mais próximos e a droga propriamente dita – Irá explodir nas suas veias
pode levar à uma supervalorização da droga, Você não prevê seu futuro se não quiser
sua demonização (Zaluar, 1994) ou à atribuição
de um peso excessivo ao indivíduo (Soares, Ja- As propostas do rap para a superação dos pre-
cobi, 2000). juízos que podem advir do envolvimento com o
Esse processo é acompanhado pela relação tráfico e o consumo de drogas refletem um con-
entre drogas e violência difundida socialmente junto de proposições relacionadas à concepção
com facilidade tanto pela mídia (Noto et al., de “guerra às drogas”, propondo a abstinência
2003) quanto por produções de caráter científi- de algumas drogas como um fator de proteção
co e que como chama a atenção Minayo e Des- para os jovens. Consideram que o consumo,
landes (1998) necessita ser desmistificada. Qua- principalmente, da cocaína e do crack está dire-
se sempre a violência é produto da droga; a dro- tamente ligado à violência e à desgraça do jo-
ga é produto da periferia ou dos bairros pobres, vem, portanto, o não envolvimento com essas
fechando-se um círculo que se esgota em si drogas no mundo da periferia seria fundamen-
mesmo, sem que explicações estruturais sejam tal para a resolução dos problemas relacionados
invocadas (Minayo & Deslandes, 1998). à violência e a fins trágicos.
Para completar, parece haver um descom- Tal proposta, no limite, pode ser considera-
passo entre os perfis epidemiológicos relaciona- da idealista, uma vez que, como se viu, a perife-
dos ao consumo de drogas e a atenção dada pe- ria é o centro privilegiado do tráfico de crack.
la mídia a drogas como o tabaco e derivados de Pedir ao jovem que não se deixe alistar no exér-
coca (Noto et al., 2003). cito de traficantes e consumidores é certamente
Rodrigues (2003), Coggiola (2001) e Kaplan desconsiderar o peso da trama formada pelo
(1997) concordam com a explicação macroes- tráfico na periferia, propondo uma resistência
trutural dada por alguns rappers que aponta a praticamente irreal ao sujeito.
droga como uma mercadoria. Coggiola (2001) Isso talvez explique também o fato de que,
e Kaplan (1997) chamam a atenção para o cará- apesar do envolvimento dos rappers com ins-
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Silva, V. G. B. & Soares, C. B.

tâncias políticas de atuação como as posses que não há no horizonte mudanças radicais pa-
(Sposito, 1994), não foram observadas propos- ra essa condição e uma vez que o comércio da
tas políticas como a participação dos jovens em droga que parasita os jovens da periferia é a pri-
movimentos sociais, por exemplo. meira mais lucrativa empresa produzida pela
globalização e pelo neoliberalismo e não vem
sendo honestamente combatido (Coggiola, 2001;
Considerações finais e implicações Kaplan, 1997). Ou seja, nos três pólos envolvidos
para as políticas públicas de saúde na equação do consumo de droga, o indivíduo, a
droga e o contexto, os rappers têm potência para
As mensagens do rap fazem a denúncia dos pro- buscar a atenção dos sujeitos para que façam es-
blemas relacionados à periferia, principalmente colhas mais saudáveis para si e sua família.
a exclusão e a violência, alertam o jovem para Uma das características da arte é a expressão
tais problemas e pretendem criar informações de insatisfação, questionamento, freqüentemente
desvinculadas da mídia – ideologia dominante de revolta, em face do modo como está organiza-
– para que os jovens construam mecanismos de da a sociedade (Konder, 2002), contrapondo-se
enfrentamento das adversidades. Os rappers à visão social de mundo dominante e o rap o faz
compreendem periferia como bairros que apre- na denúncia das condições de vida na periferia,
sentam problemas de exclusão social e discri- mostrando-se potente também para fazer pro-
minação – principalmente policial –, mas tam- posições que tenham como objeto a transfor-
bém como lugar de amizade e ascensão social. mação desse contexto. Ao negarem as informa-
Dessa forma a periferia pode ocupar qualquer ções produzidas pela mídia e pela “sociedade
espaço geográfico na cidade. não periférica” sobre os problemas da periferia,
Os rappers apontam duas possibilidades de o rap poderia veicular uma proposição utópica,
vida na periferia: a de se corromper pelo “siste- ou seja, transformadora em relação àquela por
ma” ou por influências familiares e de amizade eles criticada.
ingressando no mundo da criminalidade e/ou O rap assume a “função a que veio”, trazen-
no consumo de drogas ou, por méritos pessoais, do um discurso que além da denúncia, propõe
adaptar-se e enfrentar a dinâmica social impos- uma alternativa de vida possível na periferia, de
ta tendo assim uma vida respeitosa. As relações convivência com a violência, com o tráfico e
de amizade, família e religião são valorizadas com o consumo de drogas. No contexto da ex-
pelo rap e entendidas como fundamentais para clusão, do desemprego, da agressão policial, da
um convívio social saudável, longe da crimina- descriminação e da violência do tráfico, o rap
lidade e das drogas. Portanto as propostas estão torna-se uma referência e cria uma identidade
sempre associadas à valorização individual, fa- através da qual o jovem de periferia pode se
miliar e de laços de amizades. (re)estruturar.
Em relação aos problemas relativos ao con- Este estudo reitera a necessidade, já aponta-
sumo contemporâneo de drogas pelos jovens, da em outros trabalhos, de ampliar a qualifica-
pode-se concluir que no campo explicativo há ção da força de trabalho em saúde na área de
uma tendência de alguns grupos em expressar drogas, para além do que tradicionalmente vem
através do rap uma compreensão estrutural do sendo ensinado – o tratamento de dependentes
consumo de drogas, localizando-as como merca- –, procurando superar preconceitos, socialmen-
doria cuja produção, distribuição e consumo te disseminados e que compõem a ideologia do-
envolvem os jovens da periferia numa teia per- minante, que faz recair sobre o indivíduo todo
versa que acaba muitas vezes na criminalidade o peso relacionado ao consumo e às suas conse-
quando não na morte. No campo propositivo, qüências (Soares, Campos, 2004).
as práticas se conformam em propostas de forta- A prevenção ao consumo prejudicial de dro-
lecimento do sujeito através de um esforço de gas demanda do setor saúde a tarefa de recolo-
não envolvimento com o tráfico e de abstinên- car a complexidade dessa discussão, evidencian-
cia das drogas consideradas problemáticas co- do a sua dimensão estrutural, politizando os di-
mo o crack e a cocaína, drogas às quais é atri- ferentes setores sociais e em especial a juventude
buído um poder quase sobrenatural, capaz de negra e pobre sobre os determinantes desse pro-
“dominar” e alienar a vida do jovem. cesso e oferecendo apoio e acolhimento para o
Nesse caminho o peso dado ao indivíduo po- jovem, inclusive adotando práticas de redução
de parecer espetacular. Tal tarefa deve ser com- de danos, que possam fortalecer os jovens e evi-
preendida no contexto da periferia, uma vez tar desfechos trágicos (Soares, Jacobi, 2000).
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Colaboradores

VG Bento da Silva elaborou o artigo a partir da disserta-


ção de mestrado de sua autoria. CB Soares foi orientadora
do estudo, tendo colaborado também na elaboração do
artigo.

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