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AAR A ENGI AAA ALICUL LL CIDADE & ALMA Traducado Gustavo Barcellos e Liicia Rosenberg Universidade Braz Cubas Biblioteca Coniral boot Qa. .-J?. Alek JI EN el CNA A, MPB 409fAlfvros Studio Nobel Lida, DOAGAO Livros Studio Nobel Ltda. Alameda Itu, 174 - sobreloja 1 1421-001 Sao Paulo - SP. Tel.; (011) 285-5986 mys Fax: (01 t) 287-7501 oo DistribuigaoVendas NN Livraria Nobel S.A. 5 Rua da Balsa, 559 2910-000 Siio Paulo - SP Tel.: (011) 876-2822 Telex: 1181092 LNOB BR Fax: (O11) 876-6988 £ PROIBIDA A REPRODUCAO Nenhuma parte desta obra poderd ser reproduzida sem a permissdo por escrito dos edi- tores por qualquer meio: xerox, fotocépia, fotogréfico, fotomecinico. Tampouco poderé ser copiada ou transcrita, nem mesmo transmitida por meios eletrénicos ou gravagées. Os infratores serio Punidos pela lei 5.988, de 14 de dezembro de 1973, arti- gos 122-130. Impresso no Brasil/Printed in Brazil Sumario Prefacio .. 7 1. Anima mundi... 3° 2, Sobre a cultura e a desordem crénica .... 29 3. Cidade e alma... oesgnensenee 37 4, Interiores no design da cidade: 0 teto .... 43 5. Caminha. 51 6. Fantasias psicolégicas nos problemas do transporte... 58 7. Cidade, esporte e violéncia... ‘ we 65 8. Guerras, armas, Aries, Marte........ 81 9. Alma e cinheiro .... 99 10. Anthropos phusei politikon zoon.... 11. Beleza aatural sem natureza 122 12, A repressao da beleza .. wee 128 13. E o que é enorme € feio .... . 14. Bibliogratia wees Prefacio - Psicandlise das geladeiras e cinzeiros? A frase: “Foi preciso algumas décadas para que a terapia aprendesse que 0 - corpo € psique, que aquito que 0 corpo faz, 0 mado como se move, aquilo que ele percebe é psique. Mais recentemente, a terapia esta aprendendo que a psique existe - inteiram: em sistemas de relagdes. Ela no € um radical livre, uma m6nada, nio € auto-determinada. O préximo passo é reconhecer que a cidade, ondé 0 corpo vive e se move, ¢ onde a teia das relagdes é tecida; também € psique”. (Hillman, em seu mais receate livro, We've had a hundred years of psychotherapy and the world's getting worse, 1992.) ‘ O livro: este livro nfo existe; ndo existe enquanto tal, um livro de James Hillman originalmente em inglés, aqui traduzido para o portugués. A idéia deste livro nascs daf: reunirmos e editarmos textos e artigos esparsos de Hillman em torno de um mesmo tema, alguns publicados em revistas, outros conferéncias inéditas, e fazermos um livro que, a principio, teria a originalidade de estar sendo publicado primeiramente em portugués, para o piiblico brasileiro. Um livro que, da maneira ccmo est4 organizado, s6 existiria aqui. © tema: j4 hd alguns anos Hillman vem se ocupando de levar a reflexiio psi- colégica para além dos limites do consultério dos analistas; para além das questées clinicas encaradas exclusivamente dentro do enfoque analitico. A preocupagao em. trazer 0 mando para dentro do pensamento psicolégico, que também traz 0 mundo de volta para essesimesmos consultérios j4 estava desde sempre abrigada no proje- to de uma psicologia arquetfpica, cujos. vinculos fundamentais sempre estiveram mais.com a cultura ¢ a imaginagao do que com a psicologia médica e empfrica. ° Diferentemente das épocas de Freud e Jung, hoje nao s6 a alma do homem, mas princizalmente a-alma do mundo est4 doente, € $40 seus os sintomas que mais nos atingem, afligem e agridem, que mais falam conosco. Seguir os sintomas, como diz Hillman, foi o que inaugurou todo o campo da psicéterapia moderna, e em cidades, como Viena e Zurique: uma atividade urbana, para cidadiios.da polis. . 4 A andlise ¢ a compreensdo também das coisas do mundo, também daquilo que est4 sofrendo do lado de fora dos consultérios; insistir em escrever e refletit sobre a alma do mundo, anima mundi, mostrando a alma como uma possibilidade de e em todas as coisas; procurar por essa alma que, reprimida ou rejeitada, nos con- sultérios e nos homens, ainda assim est4 ai, na patologia de nossas cidades, de nossa tecnologia, de nossas instituigdes, de nossa politica, de nossos padrdes de consumo, de nossa arquitetura; tudo isso parece estar em sintonia com a tradigao de uma psicologia profunda, numa época de ecologia profunda. O piblico: a insergaio deste volume numa colegao originalmente dirigida a arquitetos e urbanistas mostra imediatamente a abrangéncia das reflexdes e a von- tade do analista de falar nao s6 com analistas. Nao s6 a psicoterapia, mas a propria: arquitetura, o planejamento urbano, o design ¢ todas as chamadas ciéncias humanas sao atingidas pela percepgao da alma do mundo, da cidade como realidade psiquica. O retorno da alma ao mundo, como propée Hillman nesses ensaios, dessubjetiviza o enfoque puramente ecolégico, inclui a urbanidade como campo valido de experiéncias e nos sensibiliza, analistas ¢ arquitetos, 4 patologia e & beleza do que estd a nossa volta. Se depois de cem anos de psicoterapia o mundo estd ficando pior, talvez seja tempo de comegarmos a encarar 0 mundo como paciente, e nossos pacientes como cidadaos. - Gustavo Barcellos 1 1 Anima mundi O retorno da alma ao mundo* Maior autem animae pars extra corpus est** Sendivogius Realidade psiquica Falar, pedir para se ter ouvintes hoje no mundo, requer que falemos ao mundo, pois o mundo est4 na audiéncia; ele também est4 escutando o que dizemos. Portanto, estas palavras sao enderegadas ao mundo, seus problemas, seus sofrimen- tos de alma, pois fato como um psicdiogo, um filho da alma falando para a psique. Dizer “filho da alma” é falar num modo renascentista, florentino, seguindo o exemplo de Marsilio Ficino, que foi o primeiro a colocar a alma num ponto central, uma visao que nao exclui nada dos interesses do mundo, porque a psique inclui o mundo — hi alma em todas as coisas. Cada coisa de nossa vida urbana construida tem uma inaportancia psicolégica. O renascimento de uma psicologia que restitui uma realidade psiquica ao mundo encontrar seu ponto de partida na psicopatologia, nas realidades' do sofri- mento da prépria psique, em que a psicologia profunda sempre comega, em vez de em quaisquer conceitos psicolégicos sobre essa realidade. Onde mais aparece a dis- +A palestra da qual se originou este texto foi.apresentada pela primeira vez numa sessio plendria da Academiz Americana de Psicandlise em San Francisco, em maio de 1980, e-tinha o titulo de “Re-trabalhaz o conceito de realidade psiquica”, Muitas alteragdes foram acrescidas por Hillman, ag repetir a palestra em lugares como St, Paul, Buffalo, Santa Barbara, Brown University ¢ Emory University. A presente versio do texto, novamente revisto e ampliado, baseada na palestra proferida em Florenga, Itélia, no Palazzo Vecchio, sob os auspfcios da Comuna di Firenze, em outubro de 1981, mantém, come outros textos presentes neste voliyme, um pouco de seu estilo oratério original. **A maior parte da alma estd fora do corpo. crepancia entre a verdadeira realidade psiquica e os conceitos da psicologia é na propria psicologia, que hoje est mais exausta que os pacientes que a ela recorrem. A psicofogia profunda busca seu préprio renascimento;, tornou-se fechada em si mesma, pretensiosa, comercial, impregnada de mauvais foi de poder disfargado, nao refletindo o sentido de alma de Ficino, mas insidiosamente adaptando-se a um mundo que tem cada vez mais ignorado essa alma. Contudo, a psicologia reflete um mundo no qual atua; isso implica que 0 retorno da alma a psicologia, o renasci- mento de sua profundidade exige uma devolugio das suas profundidades psiquicas ao mundo. Atualmente, acho que os pacientes sio mais sensiveis do que os mundos nos quais vivem. Em vez de os pacientes nfo serem capazes de perceber e se adaptar “realisticamente”, € a realidade dos fendmenos do mundo que parece incapaz de se adaptar a sensibilidade dos pacientes. Fico estarrecido pela vivacidade ¢ beleza dos pacientes vis-d-vis ao mundo insensivel e feio que habitam. A consciéncia cres- cente das realidades subjetivas, essa sofisticagéo da alma resultante de cem anos de psicandlise, tornou-se incomensuravel em relagdo ao estado retardado da realidade exterior, que se deslocou durante os mesmos cem anos a wma uniformidade brutal e & degradagiio da qualidade. . Quando digo que as queixas dos pacientes sio reais, quero dizer realisticas, equivalentes ao mundo exterior. Quero dizer que as distorgdes da comunicagao, o sentido de preocupagao e alienacao, a privagiio da intimidade com o meio ambiente préximo, o sentimento de falsos valores e de falta de valor interior experimentados implacavelmente no mundo que habitamos em comum sao avaliagées realisticas genuinas ¢ nao meramente apercepgGes de nossos “eus” intra-subjetivos. Minha pritica clinica diz que nao posso mais distinguir claramente entre neurose do “eu’ e neurose do mundo, psicopatologia do “eu” ¢ psicopatologia do mundo. Além disso, também digo que situar a neurose ¢ a psicopatologia unicamente na reali- dade individual é uma repressiio iluséria do que esté sendo verdadeira e realistica- mente vivenciada. Ademais, isso imptica que minhas teorias sobre neurose e cate- gorias de psicopatologia devem ser radicalmente ampliadas — do contrdrio, conti- nuarao promovendo as préprias patologias que meu trabalho busca melhorar. Nao faz muito tempo, a queixa do paciente estava em seu interior. Um proble- ma psicolégico era considerado intra-subjetivo, a terapia consistia em reajustan as psicodinamicas interiores. Os complexos, fungées, estruturas, recordagées, emog6es — a pessoa interior precisava realinhar-se, libertar-se, desenvolver-se. Ent&o, mais recentemente, por causa das terapias de grupo e de familia, a queixa do paciente foi localizada nas suas relagées sociais. Um problema psicolégico era considerado inter-subjetivo; a terapia consistia em reajustar as psicodindmicas 10 ' interpesscais nas relagdes entre cénjuges, entre membros das familias. Nos dois casos, a realidade intra e interpsiquica estava confinada ao subjetivo. Nos dois casos, 0 mundo permanecia exterior, material e ameagador, simplesmente como uma tela de fundo, dentro e em volta, na qual a subjetividade manifestava-se. Portanto, o mundo nao era a esfera de agao do foco terapéutico, Os terapeutas que focalizavam esse ponto eram de uma ordem inferior, mais superficial: assistentes sociais, conselheiros, mentores. O trabalho profundo realizava-se no interior da subjetividade de cada um. ‘ Naturalmente, a psiquiatria social, seja behaviorista, marxista ou de con- cepgdes ainda mais abertas enfatiza fortemente as realidades exteriores ¢ localiza as origens da psicopatologia em determinantes objetivas. O “14 fora” determina largamente o “aqui dentro”, de acordo com este ponto de vista, Isso era justamente 0 sonho americano, um sonho de imigrante: mude 0 mundo e vocé muda a.pessoa. No entanto, essas determinantes sociais permanecem condigdes externas, econ6mi- cas, culturais ou sociais; elas nfo sfio em si psiquicas ou subjetivas. O exterior provoca sofrimento, mas ele nfo é em si sofrimenté. Por toda sua relagéo com 0 mundo exterior, a psiquiatria social também trabalha com a idéia de mundo exte- rior que nos foi transmitida por Aquino, Descartes, Locke € Kant. Claramente, essa visio exterior ¢ nio-subjetiva do mundo precisa agora ser reclaborada. Antes de continuarmos, precisamos primeiro recordar a idéia de realidade que normalmente atua em todas as partes da psicologia profunda. Os diciondrios de psi- cologia ¢ as escolas de todas as orientagées concordam que a realidade é de dois tipos: primeiro, o mundo significa a totalidade dos objetos materiais existentes ou a soma das condigdes do mundo exterior. A realidade é ptiblica, objetiva, social e, normalmente, fisica; segundo, existe uma realidade psiquica nao avaliada em espago — 0 reino da experiéncia particular, que € interior, desejosa, imaginativa. Tendo separado a realidade psiquica da realidade exterior ou bruta, a psicologia elabora varias teorias para juntar as duas ordens, j4 que a divisdo é realmente pre- ocupante. Isso significa que a realidade psiquica nao foi concebida para ser puibli- ca, objetiva ou fisica, enquanto a realidade exterior, a soma dos objetos ¢ das condigdes materiais existentes, foi concebida para ser completamente destituida de alma. Assim como a alma existe sem mundo, 0 mundo também existe sem alma. Portanto, quando algo d4 errado na vida, a‘psicologia profunda ainda olha para a intra ¢ a intersubjetividade em busca da causa ¢ da terapia. O mundo das coisas publicas, objetivas c fisicas — prédios, formularios, colchGes, placas de tran- sito, embalagens de leite e Snibus — é, por definigdo, excluido da etiologia e terapia psicolégizas. As coisas permanecem fora da alma. : Il A psicoterapia tem trabathado com sucesso na sua esfera de realidade Ppsiquica concebida enquanto subjetividade, mas nao tem revisto a nogio da prépria subjetividade, E, agora, mesmo seu sucesso nesse ponto entra em discussdo no locante ds queixas dos pacientes se ajustarem aos problemas que nZo séo mais meramente subjetivos no sentido antigo, pois, durante todo o.tempo que a psicote- rapia teve éxito em aumentar a consciéncia da subjetividade humana, o mundo no. qual toda subjetividades sao estabelecidas se desintegrou. A crise esta num lugar diferente — Vietni e Watergate, poluigdo e crime nas ruas, a queda no nivel de instrugdo e o aumento de lixo, fraudes e exibigdes. Agora encontramos a patolo- gia na psique da politica ¢ da medicina, na linguagem e no design, no alimento que comemos. A doenga esta agora “4 fora”. Q uso contemporaneo da palavra “crise” revela o que quero dizer. A usina nuclear da Pensilvania, Three Mile Island, é simpiesmente um exemplo vivo de uma crise possivelmente incuravel e crénica. O sistema de trdfego, os sistemas educacionais, os tribunais € o sistema de justiga criminal, as gigantescas indist os governos municipais, as finangas e os negécios banc4rios — todos atravessam crises, sofrem colapsos ou precisam se sustentar contra a ameaga de colapso. Os termos “colapso”, “desordem funcional”, “estagnagao”, “baixa produtividade” e “depression” sao igualmente validos para os seres humanos, para os sistemas piibli- cos objetivos ¢ para as coisas de dentro dos sistemas. A crise se esteade a todos os componentes da vida urbana, porque a vida urbana é agora uma vida construfda: nado vivemos mais num mundo biolégico onde a decomposigao, a fermentacao, a metamorfose € o catabolismo sao equivalentes para o colapso das coisas construi- das. Meu companheiro e amigo de Dallas, Robert Sardello, escreve: “Um individuo apresentava-se para a terapia no século XIX; jé no século XX, 0 paciente em crise € 0 préprio mundo... Os novos sintomas sio fragmentagio, especializacao, hiperespecializagio, depressio, inflagdo. perda de energ jargées ¢ violencia. Nossos prédios siio anoréxicos; nossos negécios, parandi- cos; nossa tecnologia, maniaca,” Onde quer que a linguagem da psicopatologia ocorra (crise, esgotamento, colapso), a psique esté falando de si mesma em termos patologizados, atestando a si mesma como sujeito do pathos. Assim como o esgotamento aparece em todos esses sintomas da lista de Sardello, 0 mesmo ocorre com a psique ou a realidade psiquica. O mundo, por causa de sua crise, est4 ingressando num novo momento de consciéncia: por chamar a ateng&o para si por meio de seus sintomas, esta se tor- nando consciente de si mesmo enquanto realidade psiquica. O mundo é agora obje- to de imenso sofrimento, exibindo sintomas agudos e grosseiros pelos quais sc defende contra o colapso. Assim, passa a ser tarefa da psicoterapia e de seus profis- 2 : sionais adotar a linha iniciada primeira por Freud: 0 exame da cultura com um olhar patolégico. Na conclusao de O mai-estar na civilizagdo, Freud escreveu: “existe uma questo que dificilmente posso evitar. Se o desenvolvimento da civilizagio possui tal... similaridade com o desenvalvimento do individuo... niio se justificaria chegarmos ao diagnéstico de que... alguns perfodos das eiviliza- des — possivelmente toda a humanidade — tornaram-se neuréticos? Uma disse- cagiio analitica de tais neuroses poderia conduzir a recomendagées terapéut que alzairiam um grande interesse pratico.” Transportemos a nogdo de Freud de neurose e a anélise terapéutica dela para além da comunidade de indivfduos até o meio ambiente comum. Esse exame, assim como o eros terapéutico que atrai o analista para o mundo visto como paciente, foi viciado no inicio por remontar a crise do mundo A subjetivi- dade individual. A psicologia profunda tem demonstrado que a arquitetura nao pode mudar, nem a politica ou a medicina, até que arquitetos, politicos e médicos fagam andlise. A psicologia profunda tem insistido que a patologia do mundo Ié fora resul- ta simplesriente da patologia do mundo aqui dentro. Os disttirbios do mundo sao produzidos pelo homem — representagdes e projegGes da subjetividade humana. Nao é essa visio a negagdo das coisas como elas sio pela psicologia profunda 86 para.manter sua visio de mundo? Nao pode a propria psicologia estar inconsciente de suas defesas egéicas? Se a psicologia profunda estiver errada quanto a esta avaliacdo, entao outra de suas detesas, sua idéia de projegao, também precisa ser revertida. Ndo apenas a minha patologia se projeta sobre um mundo; 0 mundo est4 me inundando com o seu sofrimento que nao se alivia. Depois de cem anos de solidio da psicandlise, tenho mais consciéncia do que eu projeto no mundo exterior do que daquilo que € projetado sobre mim pela inconsciéncia do mundo. Trabalhar com um paciente durante duas ou até cinco horas por semana, € estender esse trabalho a terapia do ambiente, da familia e dos colegas do trabalho nio pode prevenir a disseminagao da infeccao psiquica epidémica. Nao podemos inocular a alma individual, nem isol4-la da enfermidade da alma do mundo. Um casamento decadente pode ser analisado em suas rafzes intra e intersubjetivas. Mas, até que tenhamos considerado o designe os materiais dos espagos nos quais 0 casa- ‘mento se desenvolve, a linguagem na qual ele é falado, a roupa com que se apresen- ta, a comida ¢ 0 dinheiro que sao divididos, os remédios € os cosméticos usados, os sons, os cheiros € os sabores que diariamente entram no coragao do casamento — até que a psicologia admita o mundo na esfera da realidade psfquica, nao pode haver methora e, de fato, estamos conspirando para a destruigdo desse casamento por car- regar para a relagio humana e para a esfera subjetiva, a inconsciéncia reprimida do mundo das coisas. 13 A inclusao dessas questdes na hora analitica pode ter um efeito pratico ime- diato. Os cénjuges nao mais se concentram apenas em si mesmos e na sua relaciio. Juntos, eles passam a perceber as indignidades que hes sdo impostas pelo mundo. O rancor que um sente pelo outro se transforma em ultraje, e até mesmo em com- paixiio 4 medida que despertam do sono anestesiado do subjetivismo. Eles saem da cavema mais sensiveis para a possibilidade de companheirismo, juntos para a luz do sol enevoada que a psicandlise Ihes ensinou ser um lugar de meras sombras, apenas o cenério ¢ os mecanismos onde representar seu drama inter e intra-subjeti- vo. Agora, eles podem analisar as influéncias sociais, as condigées ambientais, as projegdes das coisas sobre eles com a mesma acuidade que até entio reservavam apenas para si mesmos. Essas pessoas que foram para a terapia de casa! passam a ser 0 casal terapéutico cujo paciente é seu mundo. Anima mundi Em vez da nogao usual de realidade psiquica fundamentada num sistema de Sujeitos particulares animados e objetos piiblicos inanimados, quero propor uma visio predominante ém muitas culturas (chamadas primitivas e animistas pelos antropdlogos culturais do Ocidente) que também retornou, durante pouco tempo, na nossa, e que teve sua gléria em Florenca com Marsilio Ficino, Estou me referindo 4 alma do mundo do platonismo, que significa nada menos que o mundo almado. Imaginemos a anima mundi nem acima do mundo que a circunda, como uma emanacio divina e remota do espirito, um mundo de poderes, arquétipos'e princi- pios transcendentes as coisas, nem dentro do mundo material como seu principio de vida unificador panpsiquico. Em vez disso, imaginemos a anima mundi como aquele lampejo de alma especial, aquela imagem seminal que se apresenta por meio de cada coisa em sua forma visivel. Entio, a anima mundi aponta as possibili- daces animadas oferecidas em cada evento como ele €, sua apresentagao sensorial como um rosto revelando sua imagem interior — em resumo, sua disponibilidade para a imaginagao, sua presenca como uma realidade psiquica, Nao apenas animais e plantas almados como na visio romantica, mas a alma que é dada em cada coisa, as coisas da natureza dadas por Deus e as coisas da rua feitas pelo homem. O mundo se revela em formatos, cores, atmosferas, texturas — uma exposi¢io de formas que se auto-apresentam. Todas as coisas exibem rostos, 0 mundo nao é apenas uma assinatura codificada para ser decifrada em busca do significado, mas uma fisionomia para spr encarada. Como formas expressivas, as coisas falas mostram as configuragdes que assumem. Elas se anunciam, atestam sua presenga: 14 “Olhem, estamos aqui”. Elas nos observam independente do modo como as obser- vamos, independente de nossas perspectivas, do que pretendemos com elas e como as utilizamas. Essa exigéncia imaginativa de atengio indica um mundo almado. Mais ~ nosso reconhecimento imaginativo, o ato infantil de imaginar o mundo, anima o mundo e o devolve a alma. Entdo, percebemos que o que a psicologia determinou chamar “projegao” € simplesmeme animagao, A medida que esta ou aquela coisa ganha vida, chama nossa atengao, atrai-nos. No entanto, essa stibita iluminagao do objeto nao depende de sua parte formal e estética que 0 faz “belo”, mas sim dos movimentos da anima mundi animando suas imagens e afetando nossa imaginagao. A alma do objeto cor- responde ot une-se a nossa, Esse insight de que a realidade psiquica manifesta-se na forma expressiva ou qualidade fisionémica das imagens permite a psicologia escapar de sua armadilha na “pritica”. Ficino liberta a psicologia dos aprisiona- mentos de Agostinho, Descartes, Kant € seus sucessores, [reqiientemente Freud e, algumas vezes, Jung. Durante séculos, identificamos a interioridade com a expe- riéncia reflexiva. Naturalmente, os objetos sio inanimados, diz a velha psicologia, porque eles nao “vivenciam” (sentimentos, recordagoes, intengdes), Eles podem ser animados através de nossas projegdes, mas imaginar a projegao deles sobre nés € cada uma de suas idéias e demandas, considerd-los como recordagdes armazenadas ou exibir suas caracteristicas de sentimento ein suas qualidades sensiveis — isso € pehsamente mégico. Porque os objetos niio sentem, ndo possuem subjetividade, interioridadz, profundidade. A psicologia profunda poderia ir apenas até 9 intra e 0 inter na busca da interioridade da alma. Essa visio ndo apenas mata as coisas por vé-las como mortas; ela nos apti- siona naquele pequeno e apertado cubiculo do ego. Quando a realidade psiquica iguala-se & experiéncia, 0 ego se toma necessdrio A légica psicoldgica. Temos que inventar ur testemunho interior, um sujeito no centro da subjetividade — e nio podemos imaginar diferentemente. Com as coisas restituidas & alma, sua realidade psiquica dada com a anima mundi; enlZo sua interioridade ¢ profundidade — € a psicologia profunda também — _dependem nao de suas préprias experiéncias ou de sua automotivagao, mas de uma testemunha de outro tipo. Um objeto presta testemunho de si mesmo na imagem que oferece, e sua profundidade est4 nas complexidades dessa imagem. Sua inten- cionalidade é substantiva, dada com sua realidade psfquica, reclamando, mas nao exigindo nosso testemunho. Cada evento particular, incluindo os seres humanos com seus pansamentos, sentimentos ¢ intengées invisiveis revela uma alma em seu aspecto imaginativo. Nossa subjetividade humana também aparece em nosso aspecto. A subjetividade aqui esta livre da literalizagdo da experiéncia reflexiva e ‘ . 15 de seu sujeito ficticio, o ego. Em vez disso, cada objeto é um sujeito, e sua auto- reflexao € sua auto-exibigdo, seu brilio. Interioridade, subjetividade, profundidade psiquica — tudo ali e, portanto, também a psicopatologia. Assim, qualificar um negécio de “parandico” significa examinar a forma como ele se apresenta em posturas defensivas, em sistematizagdes e cédigos arcanos, as relagGes enganosas entre o produto e o que se fala sobre 0 produto, quase sempre necessitando de distorgdes gritantes dos significados de palavras como bom, honesto, verdadeiro, sadio etc. Qualificar um prédio de “cataténico” ou “anoréxico” significa examinar 0 modo como ele se apresenta, seu comportamento em sua estrutura descarnada, alta, rigida, magra, sua fachada envidracada, frieza dessexualizada, sua explosiva agressividade reprimida, seu trio interior vazio sec- cionado por colunas vert is. Qualificar 0 consumo de'“mantaco” refere-se & instantancidade de satisfagiio, descartabilidade, intolerancia para interrupgio (con- sumismo), a euforia de comprar sem pagar (cartiio de crédito) e 0 véo das idéias que se tornam visfveis e concretas nas revistas e antincios de televisio. Quailificar a agricultura de “viciada” refere-se & sua obsessao por produgées sempre mais altas, necessitando cada vez mais de - quimicos (pesticidas, herbicidas) A custa de outras formas de vida e da exaustio do terreno da agricultura. Esse novo sentido de realidade psiquica requer um novo faro. Mais que faro psicanalitico que busca a profundidade de sentido e conexdes ocultas, precisamos do faro de sentido animal comum, uma resposta estética ao mundo. Essa resposta vincula’‘a alma individual & alma do mundo; sou animado Por essa anima, como um animal. Reentro no cosmo platénico, que sempre reconhece que a alma do indivi- duo nunca pode avangar além da alma do mundo, porque elas sio insepardveis, uma sempre implica a outra, Qualquer alteragao na psique humana ressoa com uma alteracao na psique do mundo. Temos tentado até agora, dentro da Psicologia pro- funda, recuperar a psique do mundo através das interpretagdes subjetivistas. O carro afogado e a estrada bloqueada tornaram-se meus problemas de energia, o grande buraco onde se inicia uma construgdo passou a ser um novo operatio ocor- rendo no meu corpo adamico. Podemos dar subjetividade ao mundo dos objetos so- mente se os transportarmos para 0 nosso interior, como se estivessem expressando nossa queixa. Mas aquele carro afogado, seja no meu sonho ou na entrada da minha garagem, ainda € uma coisa incapaz de realizar seu propésito, ele permanece la, encalhado, com problemas, solicitando atengao. A grande ferida na terra ver- melha, seja no meu sonho ou no meu bairro, ainda é um lugar de sublevagao des- figurada, solicitando uma resposta estética tanto quanto hermenéutica. Interpretar as coisas do mundo como se fossem nossos sonhos priva 0 mundo de seu sonho, sua queixa. Embora esse movimento possa ter sido um passo em diregdo ao reco- 16 nhecimento ¢a interioridade {das coisas, ao final fracassa por causa da identificagio de interioridade apenas com a experiéncia subjetiva humana. Isso significa que os psicoterapeutas agora analisarao sbus divas? Eles iro mostrar aos ventiladores do escritério que seus funciondrios sao autématos pre- suncosos que interrompem os assuntos com uma monotonia fria, passiva/agressiva € cronometrada? Iremos agora analisar os carros e colocar os motoristas num esta- cionamento-creche? Claro que nao! Mas irei propor o que podemos fazer com essa visio ampliada da realidade psiquica, 1 Aisthesis Podemes reagir com 0 corag&o, despertar novamente o corago. No mundo antigo, o érgio da percepgdo era o coracio. O coraciio era imediatamente associado as coisas pebos sentidos. A palavra em grego para percep¢io ou sensagao era ais- thesis, que significa, na origem, “inspirar” ou “conduzir” o mundo para dentro, a respiragao entrecortada, “a-ha”, o “uhh” da respiragao diante da surpresa, do susto, do espanto, uma reagdo estética & imagem (eidolon) apresentada. Na psicologia grega antiga e na psicologia biblica 0 coracao era o érgio da sensagdo: era também o lugar da imaginag&o. O senso comum (sensus communis) alojava-se dentro e em volta do coragdo e sua fungao era apreender imagens. Também para Marsilio Ficino 0 espiito dentro do coragao recebia ¢ transmitia a impressao dos sentidos. A fungaio do cazagiio era estética. Sentir & imaginar 0 mundo nao se separam na reaciio estética do coragio como em nossas psicologias posteriores, derivadas dos escoldsticos, cartesianos € enipiristas britdnicos. Suas idéias favoreciam o assassinato da alma do mundo através da separagao da atividade natural do coragio em sentir os fatos por um lado €, por outro, intuir fantasias, deixando-nos imagens sem corpos € corpos sem ima- gens, uma imaginag&o subjetiva imaterial separada de um mundo amplo de fatos objetivos inanimados. Mas 0 coragao percebe tanto sentindo como imaginando: para sentir penetrantemente devemos imaginar e, para imaginar com precisdo, devemos semair. Por “ceragio” nio me refiro ao subjetivismo sentimental que surgiu como unia conseqi:$ncia romantica da perda da aisthesis. Nao estou falando de sentimen- tos do corpo numa psicologia simplista — tudo que sinto é bom; bem no fundo de meu coragdo, eu estou bem; 0 que vem do coragdo,é bom per se. Conservemos, por um lado, esses significados mais comuns de coragao: a idéia bomba-e-miisculo, a idéia de ccnfissdo agostiniana, a idéia.de conversao religiosa, a idéia do amor 7 valentino. Cada quat tem sua histéria ¢ sua raziio. Fiquemos com o coragiio estético de nossa tradi¢fo antiga e florentina. E esse coragdo que estou tentando despertar numa resposta estética para 0 mundo. A anima mundi simplesmente nao é percebida se 0 6rgio dessa percepgao permanece inconsciente ao ser concebido apenas como uma bomba fisica ou um reservatorio pessoal de sentimentos. Despertar 0 coragao imaginativo e sensitivo deslocaria a psicologia de uma reflexdo mental cm diregio a um reflexo estimulante. A psicologia pode entio vir a ser Morentina novamente, pois o movimento “em diregdo ao sul” sobre o qual venho insistindo nesses ultimos dez anos — desde as clinicas de Zurique e Viena, dos laboratérios brancos e florestas negras da Alemanha, das dissecagées positivis- tas e empiristas da Gra-Bretanha e Estados Unidos, isso sem mencionar a gindstica da lingua francesa — ndo pode ser consumado sem movimentar também 0 centro da alma: do cérebro para 0 coragio; e o método da psicologia da compreensio cog- a A sensibilidade estética. Com o coragao, entramos imediatamente na imagi- nagao. Quando o cérebro é considerado o centro da consciéncia, procuramos loca- lizages literais, ao passo que nado podemos considerar o coragdo com o mesmo literalis~ mo fisiolégico. O movimento para o coragdo j4 é um movimento de poesis: metaférico, psicolégico. Outro 6rgdo e outro método deslocam a psicologia para outro altar, Vénus. Além de Saturno, com sistemas e pais; além do desenvolvimento do ego e o herofs- mo de Mie c Filho; ou da elucidagao apolénica e do distanciamento médico; ou de Minerva, a conselheira pratica de olhos cinzentos, ou da participagio dionisfaca na alma comunitéria; ou das lransagdes ¢ da comunicagiio mediadora de Hermes — existe também Afrodite, que foi chamada a alma do mundo na tradugdo que fez Ficino de Plotino, ¢ a quem Ficino concede o mundo sensivel. Para compreender a descrigdo grega de percepgao a pessoa jé devia estar, como fez Psiqué na histéria de Apuleio, no templo de Afrodite, reconhecer que cada coisa sorri, possui fascinacio, Pprovoca aisthesis. “‘Provocar”, motivar, kaleo: essa era a derivacéo de Ficino da principal caracteristica de Afrodie, kallos, beleza. Se pudéssemos recriar a psicologia na sua origem ocidental em Florenga, um caminho poderia se abrir novamente em diregdo A metapsicologia, que é uma cos- mologia, uma visio poética do cosmo, que satisfaz a necessidade da alma ao se colocar em meio a uma vasta combinagio de coisas. Isso nao é possivel desde que a psicologia teve seu ponto de origem no “norte” alienigena, onde a cosmologia foi absorvida pela ontologia e pela metaffsica, sistemas conceituais sem imagens estéticas, sem mitos e rostos dos Deuses, sem imagens patologizadas — uma alie- nagio que deforma o cuidado da aima, transformando-o num tratamento alienista. 18 Precisamos fazer uma distingao entre o sentido grego de kosmos ¢ 0 universo lati- no, unus verto, revertendo um ponto: a unificagde monoteista do sentido grego especifico e plurat das coisas, o mundo como mundos. Para os est6icos, kosmos significa também anima mundi, e a palavra é fundamentalmente estética. Ela sig- nifica “ordem”, “arrumagao”, como uma demonstragio, unindo as nogées de ética e de estética, o bom e 0 belo platénicos, em conotagées tais como “propriamente”,. “corretamerte”, “decentemente”, “honradamente”. Kosmos era usado especial- menle para mulheres ¢ seus adornos. Cosméticos aproxima-se mais de seu sentido original: as cores no aspecto dis coisas, o esplendor dos Deuses brilhando no mundo material, a visibilidade, a apresentagdo. Com a perda de Afrodite, 0 cosmo se tornou césmico — imenso, vazio, fantastico. Retor:ando ao nosso prdéprio coragao: suas agitagdes, 4 medida que ele chega a consciéncia, podem ser um fator de contribuigao crucial para os disturbios con- temporfneos cardiacos e circulatérios. Sistomas enigmaticos tém freqiientemente precedido novos perfodos de consciéncia psicolégica: histeria e Freud, esquizofre- nia e Jung... Se vivemos num mundo cuja alma é doente, entdo o érgdo que diaria- mente se depara com essa alma enferma do mundo, bsica e diretamente através da aisthesis, tembém sofreré, como sofrerfo as vias circulatérias que transmitem as percepgdes ao coragéo. A psicoterapia precisa confirmar os sofr entos do coragio, suas enfermidades no mundo das coisas — que elas so feias, vazias, erradas, des-ituidas de um cosmo que faz sentido e que, por meio dessa afirmagio, lemos certamente 0 coragdo partido porque vivemos num mundo de coisas par- tidas, a psicoterapia dispersard o estupor an-estesiado de nossas reagGes, dissipara a repressao da feitra das préprias coisas; assim a psicoterapia pode se mover de novo, como sempre deve fazer, na diregiio em que os sintomas a estio conduzindo, agora a uma apreciz7ao do mundo almado. Os principais responsdveis pela mortalidade nao se restringem somente as doengas cardfacas ¢ ao cancer. A morte se oculta nas coisas: asbestos ¢ aditivos alimentares, chuva acida ¢ tampées, inseticidas e medicamentos, escapamentos de carro ¢ adocantes, televisdo e fons. A matéria est4 mais endemoniada do que jamais esteve em qualquer calamidade. Lemos os avisos de perigo, sentimos males invisiveis descendo pelo ar, infiltrando a 4gua e impregnando nosso alimento vege- tal. O mundo material & habitado de novo, o reprimido retorna da matéria declarada morta por Aquino e Descartes, agora no papel da propria Morte e, por causa desse fantasma exumado pela matéria, por fim conscientizamo-nos novamente da anima mundi. A psicologia sempre promove ‘sua consciéncia por meio de revelagdes pato- logizadas, etravés do submundo da ansiedade. Nossos receios ecolégicos anunciam que as coisas estiio onde a alma agora reclama atengo psicolégica. “19 As coisas siio compostas de substancias t6xicas e inflamaveis, prensadas em formas uniformes, lacradas de uma maneira facil e barata, intocadas pela mio humana. Nao sofrem a agaio do tempo, nem amadurecem, Sua existéncia é apressa- da pela pressfio da obsolescéncia, J4 que ‘uma gerago sucede a outra em pouces meses. Vendidas por camelés no mercado, competindo somente pelo prego, e nio Por orguiho ou beleza inerente, 0 sofrimento delas se estampa em seus rostos. As Posturas dos corpos de formas estranhas, como figuras no Inferno, mostram-nas amaldigoadas pelo materialismo 4 imagem de que foram feita m nenhum epistrophé possivel, nenhum caminho de volta xos Deuses, Mover-se com 0 coragio em diregao ao mundo faz com que a psicoterapia deixe de se conceber como uma ciéncia e passe a se imaginar mais como uma atividade estética. Se a inconsciéncia pode ser redefinida como insensibitidade ¢ 0 inconsciente como o antiestético, entio a formagio de psicoterapeutas requer uma sofisticagao da percepgio. A formagiio serd baseada no coragao sensitivo e imagi- nativo: provocd-lo e educé-lo. A psicoterapia estudaré em seus Programas de for- magio as personificagdes da anima mundi, seja na linguagem, nas artes ou nos ritu- ais, esforgando-se para treinar o olho e o ouvido, nariz e maos para sentir ver- dadeiramente, fazer os movimentos certos, os atos reflexivos certos, a habilidade correta. O trabalho invisivel de criar a alma encontrar4 suas analogias na visibili- dade das coisas bem-feitas. A tarefa cognitiva passar4 de compreensio do sentido a uma sensibilizacZo para os detalhes, a apreciagio da intcligibilidade inerente dada nos padrGes qualitativos dos eventos. Reconheceremos a sanidade da alma através de sua reagio estética, na qual © julgamento sempre é inerente, em vez de separar os julgamentos em avaliagdes morais (bom e mau), médicas (mal e bem, progresso € regresso), ou légicas (verdadeiro e falso), A educagio humanistica, conforme concebida em Florenga, volta a ser uma necessidade: linguagem diferenciada, . belas-artes, trabalhos manuais, biografia, critica, histéria, antropologia cultural, educagio ¢ costumes, vida entre as coisas do mundo, E nossas diividas serio enderegadas a 0 que sao as coisas, e onde, quem e de qual modo preciso elas sfo como sao, em vez de por que, como surgiram ¢@ para qué. Por favor, vou insistir: por Teagao estética nao me refiro a embelezamento. Nao quero dizer plantar 4rvores e ira galerias. Nao quero dizer nobreza, musica de fundo suave, jardins. bem cuidados — esse uso sanitarizado e desodorizado da Palavra estética que a destitui de seus dentes, lingua e dedos. Beleza, feitira e arte nao sdo nem a esséncia pura nem a base verdadeira da estética. Na interpretag#o neoplaténica, a beleza é simplesmente. manifestagao, a exposigao de fendmenos, a apresentacGo da anima mundi; nao houvesse beleza, Deuses, virtudes e formas nao poderiam ser revelados, A beleza 6 uma necessidade epistemoldgica; aisthesis 20 € como conhecemos o mundo. E Afrodite é a sedugo, a nudez das coisas como elas se revelam para a imaginagao sensual. oO . Assim, 0 que quero dizer por reacio estética aproxima-se mais de um sentido animal da palavra — um faro para a inteligibilidade aparente das coisas, seu som, cheiro, forma, falar para e através das reagdes de nosso coragdo, respondendo a olhares e linguagem, tons e gestos das coisas entre as quais nos movemos. A consciéncia das coisas poderia se estender @ nogao de autoconsciéncia a partir das constriges do subjetivismo. Um analista scntado cm sua poltrona o dia todo tens mais consciéncia das mais leves oscilagdes de seu desejo sexual do que do grande desconforto causado por essa sua poltrona: seu encosto construido de forma errada, o tecido que zetém calor, a tapecaria resistente e a cola de aldefdo férmico. Seu sentido animal foi treinado para reparar somente em um grupo de propriocepgées, a porito de excluir a realidade psfquica da cadeira. Um gato a co- nhece melhor. Alguns efeitos positivos O cultivo da reacao estética afetard as questées da civilizagiio que mais nos interessam hoje € que nfo passaram por uma resolugao psicolégica. Primeiro, uma resposta estética aos detalhes poderia nos desacelerar radicalmente. Reparar em cada acontecimento limitaria nosso apetite pelos acontecimentos e essa redugdo de consumo afétaria a inflagdo, o superdesenvolvimento, as defesas maniacas ¢ 0 expansionismo da civilizagio. Talvez os acontecimentos acelerem-se propor- cionalmente ao fato de nao serem apreciados, talvez os acontecimentos aumentem em dimensio e intensidade cataclisniicas proporcionalmente ao fato de ndo serem reparados. Talvez, 4 medida que os sentidos se tornem apurados haja uma escalada reduzida do gigantismo e do titanismo, esses inimigos miticamente perpétuos — gigantes ¢ tités — da cultura. A atencao para as qualidades das coisas exume a vetha nogio de notitia como uma atividade priniéria da alma. Notitia refere-se Aquela capacidade de formar nogées verdadeiras das coisas a partir da observagdo atenta — notar. E desse notar que depende o conhecimento. Na psicologia profunda, notitia foi limitada por nossa visic subjetiva da realidade psiquica, de modo que a atengao é aprimorada principalmente em relagio aos estados subjetivos. Isso se manifesta na nossa lin- guagem usual de descrigdes. Por exemplo, quando me perguntam: “Como foi o passeio de énibus?”. Respondo: “Deplordvel, terrivel, desesperador”. Mas essas palavras representam a mim, meus sentimentos, minha experiéncia, nao o passeio 21 de 6nibus que foi acidentado, estava abarrotado, insalubre, atrasado. Mesmo que eu reparasse no Snibus e na viagem, ‘minha linguagem transferiu essa aten¢ado para nogdes acerca de mim mesmo. O “eu” engoliu o énibus, e meu conhecimento do mundo exterior passou a ser um relat6rio subjetivo dos meus sentimentos. Uma resposta estética requer esses sentimentos, mas nao pode permanecer neles, ela precisa retornar 4 imagem. E 0 caminho de volta para 0 passeio de énibus necessita de palavras que observem suas qualidades. Desde o Iluminismo que nossos adjetivos passaram a quafificar o mundo para descrever o “eu” — fascinante, interessante, tedioso, excitante, depressivo; essas palavras negligenciam as coisas que evocam os estados subjetivos e, mesmo estes, perderam a precisio da imagem, metéfora e simile. Devolver a alma ao mundo sig- nifica conhecer as coisas naquele sentido adicional de nofitia: relagdes intimas, conhecimento carnal. A apreciagao da anima mundi requer advérbios e adjetivos que imaginem precisamente os acontecimentos particulares do mundo em imagens particulares, tanto quanto os Deuses antigos ficaram conhecidos através dos epite- tos adverbiais e adjetivais — Atena de olhos cinzentos, Marte de rosto corado, a virgem e 4gil Artemis. Perceber o valor das coisas e as virtudes nelas presentes requer uma linguagem de valores e virtudes, um retorno das qualidades secundarias das coisas — cores, texturas, sabores. Essa “revolugio adjetival” derrubaria o principio do bem escrever, o puri- tanismo ascético — “clareza, simplicidade, metodismo, sinceridade” ~ de Strunk € White e de Fowler, aquela forma contemporinea da iconoclastia protestante que profbe a omamentagio de adjctivos e advérbios em favor de substantivos e ver- bos simples produzindo assergdes detinidas na voz ativa — um mundo'gramatical de sujeitos fazendo coisas para os objetos, sem ambigiiidade, passividade ou reflexividade. Essas regras de estilo, tio inocentemente faceis e desprovidas de metafisica, realmente destiguram as caracteristicas fisionémicas do mundo e mantém nossa consciéncia dentro da visio de um mundo morto, onde todas as qualidades, de acordo com a principal linha da filosofia ocidental, referem-se apenas as mudancas no sujeito. O mundo parece apenas se estender A nossa volta, tao belo, tio variado, téo novo, pois, como escreveu Hume, “todas as qualidades sens{veis dos objetos, tais como duro, mole, quente, frio, branco, preto etc., so meramente secundarias e ndo existem nos prdprios objetos, mas séo percepgdes da mente, sem qualquer ar- quétipo ou modeio externo que representem”. E Kant continuou: “O sabor de um vinho nfio pettence ao... vinho... mas 4 constituigao especial do sentido no sujeito que o prova. As cores nao sao propriedades dos corpos... mas somente modifi- cagdes do sentido Ya visio”. 22 A melaora da qualidade de vida depende da restauragao de uma linguagem que preste zzengo as qualidades da vida. Nosso retorno ao Snibus leva-nos de volta & insisténcia renascentista sobre a ret6rica, incorporando ao longo do caminho os métodos poéticos do Imagismo, do Concretismo, do Objetivismo e do Verso Projetivo — modos de linguagem que nio se expressan na “pratica” e que realmente animam as coisas, devolvendo-lhes seus rostos animados. Um segundo efeito: na psicoterapia esse silencioso fervor teligioso deslocaria © foco de slvar a alma pessoal do paciente para salvar a alma do mundo, a ressur- reigao do mundo em vez da sessurreigao do homem, a celebracao da criagdo antes da redencao da criatividade no individuo. Nesse ponto, refiro-me novamente @ Ficino, que escreve que."‘a criago é um ato mais excelente que a iluminagio”, de modo que a tarefa de “despertar a consciéncia” (como a redengao da alma é agora mascarada na terapia moderna) passa a ser um despertar da consciéncia de coisas criadas, uma terapia da realidade psiquica do mundo construido. Esse novo foco afetaria 0 movimento ecolégico e aquelas “questées mun- danas” como politica energética, alimentagao, cuidado hospitalar, design de inte- riores. Essas atividades ndo scriam mais exteriores, ou seja, apenas atividades politicas ou profissionais, mas um foco da psicoterapia, jf que no mais sériamos capazes de separar o despertar da’ consciéncia do paciente da prépria criagdo, enquanto a iluminagdo do paciente seria dependente da terapia da criagao. O senti- do mais amplo de terapia comega nos menores atos da observacao. Um terceiro efeito positivo seria um retomo de valor do sujeito para a coisa, valor esse que tem sido apropriado pelo prego. A mais universal de tadas as religides modemas, a economia, incorporou ao seu literalismo 0 sentido de valor, removendo a realidade psiquica do crédito, encargo, lucro, inflag&o ¢ qualquer coisa parecida. Compramos a fim de economizar, 4 medida que economizar foi completamente reduzido 4 um termo econémico. Também a apreciagio, a ver- dadeira chave para a aisthesis, refere-se mais freqiientemente a pre¢os muito eleva- dos. Comc.o valor se rende ao prego, os ntimeros simbdlicos de importancia psiquica —

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