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COMPREENDER E TRANSFORMAR CO ENSINO F Ginna: OTE a Mle Se Le ee CAPITULO 1 As FUNGOES SOCIAIS DA ESCOLAS DA REPRODUCAO A RECONSTRUCAO CRITICA DO CONHECIMENTO E DA EXPERIENCIA A. I. Pérez Gomez EDUCAGAO E SOCIALIZACGAO A educagao, num sentido amplo, cumpre uma iniludivel funcao de socia- lizagao, desde que a configuragio social da espécie se transforma em um fator decisivo da hominizagao e em especial da humanizagio do homem. A espécie humana, constitufda biologicamente como tal, elabora instru- mentos, artefatos, costumes, normas, cédigos de comunicagao e convivéncia como mecanismos imprescindiveis para a sobrevivéncia dos grupos e da espé- cie. Paralelamente, e posto que as aquisigdes adaptativas da espécie as peculia- ridades do meio nao se fixam biologicamente nem se transmitem através da heranga genética, os grupos humanos poem em andamento mecanismos e sis- temas externos de transmissao para garantir a sobrevivéncia nas novas gera- gGes de suas conquistas histéricas. Este processo de aquisicao por parte das novas geragoes das conquistas sociais — processo de socializagao ~ costuma de- nominar-se genericamente como processo de educacio. Nos grupos humanos reduzidos e nas sociedades primitivas, a aprendiza- gem dos produtos sociais, assim como a educagiio dos novos membros da comuni- dade aconteceram como socializacao direta da geracao jovem, mediante a partici- pacao cotidiana das criangas nas atividades da vida adulta. No entanto, a acelera- gao do desenvolvimento histérico das comunidades humanas, bem como a complexizagao das estruturas e a diversificacao de fungoes e tarefas da vida nas sociedades, cada dia mais povoadas e complexas, torna ineficazes ¢ insuficientes os processos de socializagao direta das novas geragdes nas células primérias de convi- véncia: a familia, o grupo de iguais, os centros ou grupos de trabalho e produgao. Para suprir tais deficiéncias surgem desde o inicio e ao longo da histéria diferentes formas de especializacio no processo de educagao ou socializagao secundaria (tutor, preceptor, academia, escola religiosa, escola laica...), que con- duziram aos sistemas de escolarizacao obrigatéria para todas as camadas da populacao nas sociedades industriais contemporaneas. Nestas sociedades a preparacao das novas geracées para sua participacao no mundo do trabalho e na vida publica requer a intervengao de instdncias especificas como a escola, cuja peculiar fungao é atender e canalizar o proceso de socializagio. 14_J. Gimeno SacnstAn & A. I. Pérez GOMEZ. ‘ ‘A fungao da escola, concebida como instituicao especificamente configu- rada para desenvolver 0 processo de socializacao das novas geracées, aparece puramente conservadora: garantir a reprodugao social e cultural como requisito para a sobrevivéncia mesma da sociedade. Por outro lado, a escola nao é a nica instancia social que cumpre com esta fungdo reprodutora; a familia, os grupos sociais, os meios de comunicacao sao instancias primérias de convivéncia ¢ intereambios que exercem de modo dire- to o influéncia reprodutor da comunidade social. No entanto, a escola, ainda que cumpra esta fungio de forma delegada, especializa-se precisamente no exercicio exclusivo e cada vez mais complexo e sutil de tal fungao. A escola, por seus contetidos, por suas formas e por seus sistemas de organizacio, introduz nos alunos/as, paulatina, mas progressivamente, as idéias, os conhecimentos, as concepcies, as disposigdes e os modos de conduta que a sociedade adulta requer. Dessa forma, contribui decisivamente para a interiorizacio das idéias, dos valores e das normas da comunidade, de maneira que mediante este pro- cesso de socializacao prolongado a sociedade industrial possa substituir 0s me- canismos de controle externo da conduta por disposigSes mais ou menos acei- tas de autocontrole. De qualquer forma, como veremos ao longo deste capitulo, 0 processo de socializagao das novas geracdes nem é tao simples, nem pode ser caracterizado de modo linear ou mecAnico, nem na sociedade, nem na escola. A tendéncia con- servadora l6gica, presente em toda comunidade social para reproduzit 0s com- portamentos, os valores, as idéias, as instituicdes, os artefatos e as relagées que so titeis para a propria existéncia do grupo humano, choca-se inevitavelmente com a tendéncia, também légica, que busca modificar os caracteres desta forma- ao que se mostram especialmente desfavordveis para alguns dos individuos ou grupos que compdem o complexo e conflitante tecido social. O delicado equili- brio da convivéncia nas sociedades que conhecemos ao longo da histéria requer tanto a conservagao quanto a mudanga, e o mesmo ocorre com o fragil equilibrio da estrutura social da escola como grupo humano complexo, bem como com as relagées entre esta e as demais instancias primérias da sociedade. CARATER PLURAL E COMPLEXO DO PROCESSO DE SOCIALIZACAO NA ESCOLA Dentro deste complexo e dialético processo de socializagao que a escola cumpre nas sociedades contemporaneas, é necessério aprofundar a andlise para compreender quais sao os objetivos explicitos ou latentes do processo de socializagéo e mediante que mecanismos e procedimentos ocorrem. Estudare- mos neste trecho os objetivos de tal processo, abordando as formas e os modos de sua realizacio. Parece claro para todos os autores e correntes da sociologia da educagao que 0 objetivo basico e prioritario da socializacéo dos alunos/as na escola é preparé-los para sua incorporagio no mundo do trabalho. Desde as correntes funcionalistas até a teoria da correspondéncia, passan- do pela teoria do capital humano, do enfoque credencialista ou das diferentes posigdes marxistas ¢ estruturalistas, todos, ainda que com importantes matizes diferenciais, concordam em admitir que, ao menos desde o surgimento das so- ciedades industriais, a fungao principal que a sociedade delega e encarrega 4 escola € a incorporagao futura ao mundo do trabalho, (uma andlise detalhada dessas posigdes pode ser vista em Fernandez Enguita, 1990b; Lerena, 1980). CComPritENDER E TRANSFORMAR O ENSINO_ 15, As discrepancias entre tais enfoques tedricos surgem quando se trata de definir o que significa a preparagao para o mundo do trabalho, como se realiza este processo, que conseqiiéncias tem para promover a igualdade de oportuni- dades ou a mobilidade social, ou para reproduzir e reafirmar as diferengas so- ciais de origem dos individuos e grupos. Como veremos ao longo deste capitu- lo, nao facil definir 0 que significa, em termos de conhecimentos, disposicoes, habilidades e atitudes, preparar os alunos /as para sua incorporacao nao-confli- tante no mundo do trabalho, especialmente em sociedades pés-industriais, nas quais emergem diferentes postos de trabalho auténomos ou assalariados e nas quais o desenvolvimento econémico requer mudangas aceleradas nas caracte- risticas do mercado de trabalho. De qualquer forma, é importante indicar que a preparacao para o mundo do trabalho requer o desenvolvimento nas novas geragoes, nao s6, nem princi- palmente de conhecimentos, idéias, habilidades e capacidades formais, mas também da formacao de disposicées, atitudes, interesses e pautas de comporta- mento. Estas devem ajustar-se as possibilidades e exigéncias dos postos de tra- balho e sua forma de organizacao em coletividades ou instituigées, empresas, administracGes, negécios, servigos... ‘A segunda fungao do processo de socializagao na escola é a formagao do cidadao/a para sua intervengdo na vida priblica. A escola deve prepara-los para que se incorporem vida adulta e publica, de modo que se possa manter a dinamica e 0 equilibrio nas instituigdes, bem como as normas de convivéncia que compéem o tecido social da comunidade humana. Como afirma Fernandez Enguita (1990a): “O estado responde pela ordem social e a protege em tiltima instincia e, em sua forma democratica, é um dos principais eixos do consenso coletivo que permite a uma sociedade, marcada por antagonismos de todo tipo, nao ser um cendrio permanente de conflitos” (p. 34). Preparar para a vida ptiblica nas sociedades formalmente democraticas na esfera politica, governadas pela implacavel e as vezes selvagem lei do mer cado na esfera econdmica, comporta necessariamente que a escola assuma as vivas contradigdes que marcam as sociedades contemporaneas desenvolvidas. O mundo da economia, governado pela lei da oferta e da procura e pela estrutu- ra hierdrquica das relacSes de trabalho, bem como pelas evidentes e escandalo- sas diferencas individuais e grupais, impde exigéncias contraditérias aos pro- cessos de socializacaio na escola. O mundo da economia parece requerer, tanto na formagio de idéias como no desenvolvimento de disposigdes e condutas, exigéncias diferentes 4s que demanda a esfera politica numa sociedade formal- mente democratica na qual todos os individuos, por direito, sao iguais perante a lei e as instituigdes. Acompanhando Fernandez Enguita (1990a) em sua excelente andlise, a sociedade é mais ampla do que o Estado. Na esfera politica, efetivamente, todas as pessoas tém, em principio, os mesmos direitos; na esfera econémica, no en- tanto, a primazia nao é dos direitos da pessoa mas os da propriedade. Dessa forma, a escola encontra-se frente a demandas inclusive contraditérias no pro- cesso de socializagao das futuras geragdes. Deve provocar o desenvolvimento de conhecimentos, idéias, atitudes e pautas de comportamento que permitam sua incorporacio eficaz no mundo civil, no Ambito da liberdade do consumo, da liberdade de escolha e participacao politica, da liberdade e responsabilidade na esfera da vida familiar. Caracteristicas bem diferentes daquelas que requer sua incorporagao submissa e disciplinada, para a maioria, no mundo do trabalho assalariado. 16_J. Giweno Sactistan k A. I. Pérez Gomez ‘ E evidente que dentre exigéncias tao dispares e contraditérias descansa uma ideologia tao flexivel, ffouxa e eclética que aceita e assume a dissociacao e as inevitaveis respostas esquizofrénicas do individuo e dos grupos. Uma ideo- logia que nao apela para a lgica da razao para sua legitimacao, mas que se justifica exclusivamente com a forca do que existe, a aceitacao e a consolidagao do status quo, da realidade que se impée inexoravelmente. Neste sentido a socializagio, a escola transmite e consolida, algumas vezes de forma explicita e em outras implicitamente, uma ideologia cujos valores s0 0 individualismo, a competitividade e a falta de solidariedade, a igualdade formal de oportunidades e a desigualdade “natural” de resultados em fungao de capaci- dades e esforcos individuais. Assume-se a idéia de que a escola é igual para todos e de que, portanto, cada um chega onde suas capacidades e seu trabalho pessoal Ihes permitem . Impée-se a ideologia aparentemente contraditéria do individua- lismo e do conformismo social (Goodman, 1989b; Green, 1990). “J4 que apenas uns poucos individuos podem na realidade manifestar seus singulares pensamentos, valores e capacidade artistica, dentro da estrutura social, a grande maioria é abandonada a uma comum e pobre uniformidade (...). Enquanto se cria uma poderosa imagem do homem ou da mulher solitario fa- zendo-se por si memo, as sociedades que se baseiam no individualismo propor- cionam, na realidade, poucas oportunidades para que a maioria das pessoas ma- nifeste sua individualidade. E um paradoxo significativo que o individualismo e © conformismo social coexistam como partes da mesma ordem social dentro das sociedades avangadas” (Goodman, 1989b, p. 102). Dessa forma, aceitam-se as caracteristicas de uma sociedade desigual e discriminatéria, pois aparecem como o resultado natural e inevitavel das dife- rengas individuais evidenciadas em capacidades e esforcos. A énfase no indivi- dualismo, na promocao da autonomia individual, no respeito a liberdade de cada um para conseguir, mediante a concorréncia com os demais, o maximo de suas possibilidades, justifica as desigualdades de resultados, de aquisigdes e, portanto, a divisao de trabalho e a configuragao hierarquica das relagGes sociais. O carater aberto da estrutura social para a mobilidade individual oculta a deter- minagao social do desenvolvimento do sujeito como conseqiiéncia das profun- das diferencas de origem que se introjetam nas formas de conhecer, sentir, espe- rar e atuar dos individuos. Este processo vai minando progressivamente as possibilidades dos mais desfavorecidos social e economicamente, em particular num meio que estimula a competitividade, em detrimento da solidariedade, desde os primeiros momentos da aprendizagem escolar. Este é, pois, um dos pilares do processo de socializaco como reprodugao na escola. As pessoas chegam a aceitar como inevitaveis, e inclusive convenien- tes, as peculiaridades contraditérias da ordem existente, nao restando senao a oportunidade de se adaptar e se preparar para ascender, mediante a participa cdo competitiva, até o maximo de suas possibilidades na escala aberta para to- dos pela “igualdade de oportunidades” que a escola comum e obrigatéria ofe- rece. A instituicio educativa socializa preparando o cidadao/da para aceitar como natural a arbitrariedade cultural que impde uma formacio social contin- gente e hist6rica (Bourdeiu e Passeron, 1977). Assim, a escola legitima a ordem existente e se converte em valvula de escape das contradicdes e desajustes so- ciais. Como veremos a seguir, este proceso de reprodugao da arbitrariedade cultural implicita na ideologia dominante nem é linear, nem automético, nem isento de contradig6es e resistencias, como mostraram os trabalhos de Appel € Giroux, entre outros. Como a escola realiza este complexo processo de socializagao? (COMPREENDER & TRANSFORMAR © ENSINO 17 OS MECANISMOS DE SOCIALIZACAO NA ESCOLA De uma perspectiva idealista, habitualmente hegem@nica na andlise pedagé- gica do ensino, geralmente se descreveu a escola e suas fungOes sociais, 0 processo de socializagdo das gerages jovens, como um processo de inculcagio e dou- trinamento ideolgico. Dentro desta interpretacdo idealista, a escola cumpre a fun- ao de impor a ideologia dominante na comunidade social mediante um processo mais ou menos aberto e explicito de transmissao de idéias e comunicacao de men- sagens, selecao e organizagao de contetidos de aprendizagem. Dessa forma, os alu- nos/as, assimilando os contetidos explicitos do curriculo e interiorizando as men- sagens dos processos de comunicagao que se ativam na aula, vao configurando um corpo de idéias e representagdes subjetivas, conforme as exigéncias do status quo, a aceitagao da ordem real como inevitavel, natural e conveniente. No entanto, o processo de socializagao da escola, apesar da importéncia do doutrinamento ideolégico e da inculcacao de representacdes particulares e idéias dominantes foi e é, sobretudo nas sociedades com férmulas politicas de representacao democratica, muito mais sutil, sinuoso e subterraneo. Isto ocorre para fazer frente as contradigdes crescentes entre seus objetivos politico-sociais © os estritamente econémicos. Corho afirma Fernandez Enguita (1990b), desde o funcionalismo de Durkheim ao estruturalismo de Althusser, passando pelas anidlises realizadas por Foucalt ou a teoria da correspondéncia de Bowles e Gintis, apesar de suas diferentes concepgdes, todos eles consideram que: “A escola é uma trama de relagées sociais materiais que organizam a ex- periéncia cotidiana e pessoal do aluno/a com a mesma forga ou mais que as relagdes de produgdo podem organizar as do operério na oficina ou as do peque- no produtor no mercado. Por que entdo continuar olhando-o espaco escolar como se nele néo houvesse outra coisa em que se fixar além das idéias que se transmitem?” (Fernandez Enguita, 1990b, p. 152). Aatengio exclusiva a transmissao de contetidos e ao intercambio de idéi- as supés um corte na concepcao e no trabalho pedagdgico induzido pela prima- zia da filosofia idealista e da psicologia cognitiva como bases prioritérias da teoria e da pratica pedagégica. O influéncia crescente da sociologia da educagio e da psicologia social no terreno pedagégico provocou a ampliagao do foco de andllise, de modo que se compreenda que os processos de socializacaio que ocor- rem na escola acontecem também, e preferencialmiente, como conseqiiéncia das @praticas sociais, das relagdes sociais que se estabelecem e se desenvolvem em tal grupo social, em tal cendrio institucional, Os alunos/as aprendem e assimilam teorias, disposigdes e condutas nao apenas como conseqiiéncia da transmisso e intercdmbio de idéias e conheci- mentos explicitos no curriculo oficial, mas também e principalmente como con- seqiiéncia das interacdes sociais de todo tipo que ocorrem na escola ou na aula. Além disso, normalmente, o contetido oficial do curriculo, imposto desde fora para a aprendizagem dos alunos/as, como veremos depois com mais profundi- dade, nao cala nem estimula os interesses e preocupacoes vitais da crianga e do adolescente. Converte-se assim numa aprendizagem académica para passar nos exames e esquecer depois, enquanto que a aprendizagem dos mecanismos, estratégias, normas e valores de interacao social, que requer o éxito na comple- xa vida académica e pessoal do grupo da aula e do colégio, configura paulatina- mente representacdes e pautas de conduta que estendem seu valor e utilidade além do campo da escola. Esta vai induzindo assim uma forma de ser, pensar e agit, tanto mais valida e sutil quanto mais intenso seja o isomorfismo ou seme- 18 J. Greno SacrisrAn & A. I. Pérez Gomez ‘ Ihanga entre a vida social da aula e as relagdes sociais no mundo do trabalho ou na vida publica. Assim, para compreender a extensio, a complexidade e a especificidade dos mecanismos de socializagéo na escola se requer uma anélise exaustiva das fontes e fatores explicitos ou latentes, académicos ou sociais, que exercem influéncia relevante na configuragao do pensamento e acdo dos alunos/as. De pouco ou nada serve restringir 0 estudo aos efeitos explicitos dos contetidos tam- bém explicitos do curriculo oficial. O que o aluno/a aprende e assimila mais ou menos consciente, e que condiciona seu pensamento e sua conduta a médio e longo prazo, se encontra além e aquém dos contetidos explicitos nesse curriculo. Acompanhando a interessante andlise do modelo ecolégico de Doyle (Doyle, 1977; Pérez Gémez, 1983b), que se desenvolveré mais amplamente no capitulo dedicado ao ensino, é importante indicar que os mecanismos de socia- lizagdo na escola se encontram no tipo de estrutura de tarefas académicas que se trabalhe na aula e na forma que adquire a estrutura de relagées sociais da escola e da aula. Convém nao esquecer que ambos os componentes da vida da aula e da escola encontram-se mutuamente inter-relacionados, de modo que uma forma de conceber a atividade académica requer uma estrutura de relagdes sociais compativeis e convergentes. De modo inverso, uma forma de organizar as rela- Ges sociais e a participacao dos individuos e dos grupos exige e favorece uns € nao outros modos de conceber e trabalhar as tarefas académicas. Nesse sentido, nado querendo ser exaustivo, jd que sera objeto de andlise ao longo dos préximos capitulos, pode-se afirmar que alguns aspectos do de- senvolvimento do curriculo, que indicamos a seguir, si0 especialmente rele- vantes para entender os mecanismos de socializagao que a escola utiliza: 1. A selecdo e a organizagao dos contetidos do curriculo. Concretamente, © que se escolhe e 0 que se omite da cultura publica da comunidade e quem tem o poder de selecionar ou intervir em sua modificagao. 2. O modo e o sentido da organizagao das tarefas académicas, bem como © grau de participacao dos alunos/as na configuragao das formas de trabalho. 3. A ordenacao do espaco e do tempo na aula e na escola. A flexibilidade ou rigidez do cendrio, do programa e da seqiiéncia de atividades. 4, As formas e estratégias de valorizacao da atividade dos alunos/as. Os critérios de valorizacao, assim como a utilizagao diagnéstica ou clas- sificatéria dos resultados e a prdpria participacao dos interessados no proceso de avaliacao. 5. Os mecanismos de distribuicao de recompensas como recursos de mo- tivagao extrinseca e a forma e grau de provocar a competitividade ou a colaboracio. 6. Os modos de organizar a participagio dos alunos/as na formulagao, no estabelecimento e no controle das formas e normas de convivéncia e interacao. 7. Odlima de relagdes svciais presidido pela ideologia do individualismo e da competitividade ou da colaboragao e solidariedade. Enfim, a andlise deve abarcar os fatores que determinam o grau de parti- cipagéo e dominio dos prdprios alunos/as sobre 0 processo de trabalho e os modos de convivéncia, de maneira que se possa chegar a compreender o grau de alienacao ou autonomia dos estudantes quanto a seus proprios processos de producao e intercambio no ambito escolar. Somente assim se poderé enten- der os conhecimentos, as capacidades, as disposigdes e as pautas de conduta CComPReENDER E TRANSFORMAR 0 ENSINO 19 que os estudantes desenvolvem como recursos mais adequados para resolver com relativo éxito os problemas que a interacdo e o intercdmbio real e simbélico colocam no cendtio de relagées sociais, as quais constituem 0 grupo da aula e a estrutura social da escola. CONTRADICOES NO PROCESSO DE SOCIALIZACAO NA ESCOLA Como jé apontamos anteriormente, o processo de socializacéo como re- produgao da arbitrariedade cultural dominante e preparacao do aluno/a para o mundo do trabalho e para sua atividade como cidadao/da nao pode ser conce- bido como um processo linear, mecanico. Pelo contrério, é um processo comple- xo e sutil marcado por profundas contradigGes e inevitaveis resisténcias indivi- duais e grupais. Em primeiro lugar, a vida da aula como a de qualquer grupo ou institui- g40 social pode ser descrita como um cendrio vivo de interagdes onde se intercambiam explicita ou tacitamente idéias, valores e interesses diferentes e seguidamente enfrentados. “A escola é um cenério permanente de conflitos (...) © que acontece na aula 6 0 resultado de um processo de negociacao informal que se situa em algum. lugar intermediério entre 0 que o professor/a ou a instituigio escolar querem que os alunos/as facam e 0 que estes estio dispostos a fazer” (Fernandez Enguita, 1990a, p. 147), De qualquer forma, na aula sempre acontece um processo explicito ou disfargado de negociacao, relaxada ou tensa, abertamente desenvolvida ou provocada por meio de resisténcias nao confessadas. Inclusive nas aulas, em que reina uma aparente disciplina e ordem impostos unilateralmente pela auto- ridade indiscutivel do professor/a, e em particular em tais aulas, ocorre um potente e cego movimento de resisténcias subterraneas que minam todos os processos de aprendizagem pretendidos, provocando, a médio e longo prazo, no pensamento e na conduta dos alunos /as, os efeitos contrérios aos explicita- mente pretendidos. O professor/a acredita governar a vida da aula quando apenas domina a superficie, ignorando a riqueza dos intercambios latentes. Como Wood (1984) afirma: “Os alunos/as que pertencem a culturas dominadas, por meio de seus atos na escola, constantemente penetram na faldcia da escola e assim recusam suas mensagens ocultas. Uma variedade de situagdes ocorre com as mensagens nas aulas, de modo que com freqiiéncia, so completamente ignoradas (...) estas men- sagens ocultas amitide sao diretamente recusadas (...) outras vezes s4o simples- mente ignoradas de forma passiva (...) os estudantes criam suas prdprias estrutu- ras culturais que utilizam para se defender das imposigées da escola” (p. 231). Portanto, pode-se afirmar que na escola, como em qualquer instituigio social marcada por contradigées e interesses em confronto, existem espacos de relativa autonomia que podem ser utilizados para desequilibrar a evidente ten- déncia a reproducao conservadora do status quo (Pérez Gomez, 1979). Assim, 0 processo de socializagio acontece sempre através de um complicado e ativo movimento de negociacdo em que as reagGes ¢ resisténcias de professores/as e alunos/as como individuos ou como grupos podem chegar a provocar a recusa e ineficiéncia das tendéncias reprodutoras da instituigao escolar. 20 _J. Gimeno SacristAn & A. I. Pitrez Gomez x “Existe nas escolas (...) mulheres e homens que tratam de modificar as instituigdes educativas em que trabalham. Para que essas modificagdes tenham efeito duradouro é necessério vincular tais atos a uma série de andlises das rela- ges entre a escolaridade e a dindmica de classe social, raga e sexo que organiza nossa sociedade” (Apple,1989, p. 9). Em segundo lugar, o processo de socializagao na escola, como preparagio para o mundo do trabalho, encontra hoje em dia fissuras que séo importantes, que se referem as caracteristicas plurais e as vezes contraditérias entre os dife- rentes ambitos do mercado de trabalho. A simplificagio e especializacao do tra- balho auténomo nas sociedades pés-industriais estabelecem para a escola, como ja vimos, demandas plurais e contraditérias no processo de socializacao. Aescola homogénea em sua estrutura, em seus propésitos e em sua forma de funcionar dificilmente pode provocar 0 desenvolvimento de idéias, atitudes e pautas de comportamento tao diferenciadas para satisfazer as exigéncias do mundo do trabalho assalariado e burocratico (disciplina, submissao, padroniza- do) ao mesmo tempo que as exigéncias do ambito do trabalho auténomo (ini- Ciativa, risco, diferenciacao). Dessa forma, nas sociedades avangadas contemporaneas, a escola enfrenta um processo de socializagéo com demandas diferenciadas e contraditérias na propria esfera da ocupagao econémica. Comega a aparecer com forga a quebra em alguma medida do isomorfismo entre as relagGes sociais na aula e as que se cons- troem no Ambito da produgao. Aquelas tém correspondéncia em grande medida com as relages que se mantém no mundo da empresa e das instituigdes burocra- ticas, mas nao com as que emergem em outros ambitos da economia. Em terceiro lugar, a correspondéncia da socializac3o escolar com as exi- géncias do mundo do trabalho dificultam a compatibilidade com as demandas de outras esferas da vida social, como a esfera politica, a esfera do consumo e a esfera das relagées de convivéncia familiar nas sociedades formalmente democraticas. Ao menos em aparéncia e no terreno tedrico se manifesta uma grande contradigao entre a sociedade que requer para seu funcionamento politico e social a participagao ativa e responsdvel de todos os cidados considerados por direito como iguais, e essa mesma sociedade que na esfera econémica, ao me- nos para maioria da populagio, induz a submissao disciplinada e a aceitacao de escandalosas diferencas de fato. A contradicao evidenciada entre as exigéncias das diferentes esferas da sociedade dissolve-se em grande parte, quando se comprova que também na pritica a esfera politica e 0 ambito civil requerem apenas a aparéncia de comportamentos democraticos ou, em outras palavras, quando os mecanismos formais de participacao, independente da eficacia e ho- nestidade de seu funcionamento, sao garantia suficiente para manter o equili- brio instavel de uma comunidade social assolada pela desigualdade e pela in- justica. Pense-se como as estruturas democréticas formais podem funcionar por meio de mecanismos de delegagao distanciada, os parlamentos escolhidos a cada quatro ou cinco anos, sem outra necessidade de contatos e controles so- ciais intermedidrios, inclusive quando nao participem nem sequer 50% do elei- torado ou 30-40% da populagao nos processo eleitorais. Convém considerar, neste sentido, a tendéncia crescente a absten¢ao eleitoral nas sociedades ociden- tais, cujo expoente mais escandaloso sao os EUA. ‘Da mesma forma, na escola, os processos de socializacao para as diferen- tes, e na aparéncia contraditorias, esferas da vida social devem assumir um certo grau de hipocrisia e esquizofrenia em relacao as peculiaridades da socie- dade, Mediante a transmissao ideolégica — e em especial mediante a organiza- cdo das experiéncias académicas e sociais na aula -, 0 aluno/a comeca a com- (ComPREENDER PTRANSFORMARO ENSINO 21 preender e interiorizar idéias e condutas que tém correspondéncia com a aceita- S40 da dissociagao do mundo do direito e do mundo da realidade factual. Aceitar a contradicao entre aparéncias formais e realidades factuais faz par- te do prprio proceso de socializacao na vida escolar, na qual, sob a ideologia da igualdade de oportunidades numa escola comum para todos, se desenvolve len- ta mas decisivamente o processo de classificacao, de exclusao das minorias e do posicionamento diferenciado para o mundo do trabalho e da participacao social. A fungao compensatéria da escola em relagao as diferencas sociais de ori- gem dilui-se no terreno das declaragées de principio, pois, como bem demons- traram Bemstein, Baudelot e Establet, Bowles e Gentis.... a orientagio ho- mogeneizadora da escola nao suprime sendo que confirma ~e além disso legi ma ~ as diferencas sociais, transformando-as em outras de cardter individual Diferente grau de dominio na linguagem, diferengas nas caracteristicas cultu- rais, nas expectativas sociais e nas atitudes e apoios familiares entre os grupos e classes sociais, transformam-se na escola uniforme, em barreiras e obstéculos intransponiveis para aqueles grupos distanciados socialmente das exigéncias cognitivas, instrumentais e de atitudes que caracterizam a cultura e a vida aca- démica da escola. As diferengas de origem consagram-se como diferencas de saida, a origem social transforma-se em responsabilidade individual. Quando se evita esta andlise em profundidade, aceitam-se as aparéncias de um curriculo e certas formas de organizar a experiéncia dos alunos/as co- muns e iguais para todos, é facil aceitar a ideologia da igualdade de oportunida- des, confundir as causas com os efeitos, aceitando a classificagao social como conseqiiéncia das diferencas individuais em capacidades e esforcos. Viver na escola, sob 0 manto da igualdade de oportunidades e da ideo! gia da competitividade e meritocracia, experiéncias de diferenciacao, discrimi nagdo e classificagéo, como conseqiiéncia do diferente grau de dificuldade que tem para cada grupo social 0 acesso A cultura académica, é a forma mais eficaz de socializar as novas geracdes na desigualdade. Deste modo, inclusive os mais desfavorecidos aceitarao e assumirao a legitimidade das diferengas sociais e econémicas e a mera vigéncia formal das exigéncias democraticas da esfera po- Iitica, assim como a relevancia e utilidade da ideologia do individualismo, a concorréncia e a falta de solidariedade. SOCIALIZACAO E HUMANIZACAO: AFUNCAO EDUCATIVA DA ESCOLA Apesar da veracidade da argumentagao sociol6gica sobre o carter repro- dutor, embora complexo, da instituicao escolar, a relativa autonomia da agao na escola nao provém exclusivamente das contradicées internas e externas so geradas no préprio proceso de reproducao conservadora da cultura dominan- te, A funcdo educativa ultrapassa, vai mais além da reproducao, pelo menos. leoricamente. A mesma tensao dialética que aparece em qualquer formacao so- cial, entre tendéncias conservadoras que se propdem garantir a sobrevivéncia mediante a reproducao do status quo e das aquisigdes historicas ja consolidadas (socializagao) e as correntes renovadoras que impulsionam a mudanga, 0 pro- gresso e a transformacao, como condicao também de sobrevivéncia e enriqueci- mento da condigao humana (humanizagao), acontece de forma especifica e sin- gular na escola. A funcao educativa da escola ultrapassa a funcao reprodutora do proces- so de socializagao, jd que se apdia no conhecimento ptiblico (a ciéncia, a filoso- 22 J. Ginueno Sacnistan & A. I. Pérez Gomez t fia, a cultura, a arte...) para provocar 0 desenvolvimento do conhecimento priva- do de cada um dos seus alunos/as. A utilizagéo do conhecimento ptiblico, da experiéncia e da reflexdo da comunidade social ao longo da histéria introduz um. instrumento que quebra ou pode quebrar o processo reprodutor. O conhecimento nos diferentes ambitos do saber é uma poderosa ferramenta para analisar e com- preender as caracteristicas, os determinantes e as conseqiiéncias do complexo processo de socializacao reprodutora. A vinculacio iniludivel e prépria da escola com o conhecimento ptiblico, exige dela e dos que trabalham nela, que identifi- quem e desmascarem o carter reprodutor das influéncias que a propria institui- do exerce sobre todos e cada um dos individuos que nela convivem bem como 08 contetidos que transmite e as experiéncias e relagdes que organiza. Dessa forma, as inevitdveis e legitimas influéncias que a comunidade exerce sobre a escola e sobre o processo de socializacao sistematica das novas geracées devem sofrer a mediagao critica da utilizacao do conhecimento, em virtude de suas exigéncias e necessidades econémicas, politicas e sociais. A escola deve utilizar esse conhecimento para compreender as origens das influéncias, seus mecanismos, intengdes e conseqiiéncias, e oferecer para debate publico e aberto as caracteristicas e efeitos para 0 individuo e a sociedade desse tipo de proces- sos de reproducao. A fungao educativa da escola, portanto, imersa na tensdo dialética entre reprodugio e mudanca, oferece uma contribuicao complicada mas especifica: uti- lizar o conhecimento, também social e historicamente construido e condicionado, como ferramenta de andlise para compreender, para além das aparéncias superfi- ciais do status quo real — assumido como natural pela ideologia dominante -, 0 verdadeiro sentido das influéncias de socializacao e os mecanismos explicitos ou disfarcados que se utilizam para sua interiorizagao pelas novas geracoes. Deste modo, explicitando o sentido das influéncias que o individuo recebe na escola e na sociedade, pode oferecer aquela espacos adequados de relativa autonomia para a construcdo sempre complexa e condicionada do individuo adulto. Utilizando a légica do saber, a estrutura de conhecimento construido criti- camente em cada ambito e a pluralidade de formas de investigagao e busca racio- nal, deve-se analisar na escola a complexidade particular que 0 processo de socializacio adquire em cada época, comunidade e grupo social, assim como os poderosos e diferenciados mecanismos de imposigao da ideologia dominante da igualdade de oportunidades numa sociedade marcada pela discriminagio. ‘Em nossa opiniao, a funcao educativa da escola na sociedade pés-indus- trial contemporanea deve-se concretizar em dois eixos complementares de in- tervengao: * Organizar o desenvolvimento radical da fungao compensatéria das desigualdades de origem, mediante a atengao e o respeito pela diver- sidade. * Provocar e facilitar a reconstrugao dos conhecimentos, das disposigdes e das pautas de conduta que a crianga assimila em sua vida paralela e anterior a escola. Como diria Wood (1984, p. 239), preparar os alunos/as para pensar criticamente e agir democraticamente numa sociedade nao-democratica. Desenvolvimento radical da funcado compensatéria Para nao sucumbir, ao longo do discurso, no terreno facil de um otimismo ingénuo, proprio de posigdes idealistas, convém partir de uma constatago am- plamente aceita: a escola como instituicao social, que cumpre fungées especifi- COMPREENDER E TRANSFORMAR © ENSINO 23 cas e restringidas, nao pode compensar as diferencas que uma sociedade de livre mercado provoca, dividida em classes ou grupos com oportunidades e possibilidades econdmicas, politicas e sociais bem desiguais na pratica. Nas sociedades industriais avancadas, apesar de sua constituicao formal- mente democratica na esfera politica, sobrevive a desigualdade e a injustica. A escola nao pode anular tal discriminacao, mas sim atenuar seus efeitos e des- mascarar 0 convencimento de seu caréter inevitAvel, se se propde uma politica radical para compensar as conseqiiéncias individuais da desigualdade social, Com este objetivo, deve-se substituir a Iégica da homogeneidade, impe- rante na escola, com diferentes matizes, desde sua configuracao, pela légica da diversidade. A escola comum para todos e o curriculo compreensivo que evita as. diferengas e a classificagao prematura dos individuos em ramos diferentes do sistema escolar, que dao acesso a possibilidades profissionais bem diferentes, nao evitaram a classificagao lenta mas também definitiva dos alunos/as em fungao quase mecanica de sua origem social (Skibeck, 1989), Embora seja certo que tanto Nos modelos uniformes quanto nos diversificados pode-se fomentar e reproduzir a desigualdade e discriminacao que existe na sociedade, uma vez consolidado o curriculo comum e a organizacao escolar unificada, gratuita e obrigatoria até os 16 anos, na maioria dos paises desenvolvidos, o perigo de discriminacao aloja-se de modo mais decisivo nos modelos uniformes de trabalho académico. Defender a conveniéncia de um curriculo comum e compreensivo para a formagao de todos os cidadaos nao pode supor de modo algum impor a Idgica didatica da homogeneidade de ritmos, estratégias e experiéncias educativas para todos e cada um dos alunos/as. Se o acesso destes A escola esté presidido pela diversidade, refletindo um desenvolvimento cognitivo, emocional e social eviden- temente desigual, em virtude da quantidade e qualidade de suas experiéncias e intercambios sociais, prévios e paralelos a escola, 0 tratamento uniforme nao pode supor mais do que a consagracao da desigualdade e injustica de sua origem social. A intervengao compensatéria da escola deve revestir-se de um modelo didatico flexivel e plural que permita atender as diferencas de origem, de modo que 0 acesso a cultura priblica se acomode as exigéncias de interesses, ritmos, motivagdes e capacidades iniciais dos que se encontram mais distantes dos cé- digos e caracteristicas em que se expressa. Assim, a igualdade de oportunida- des de um curriculo comum na escola compreensiva obrigatéria nao é mais do que um principio e um objetivo necessdrio numa sociedade democratica. Sua realizacao é um evidente e complex desafio que requer flexibilidade, diversi- dade e pluralidade metodoldgica e organizativa. Como afirma Turner (1960), nas sociedades ocidentais a mobilidade patroci- nada foi substituida pela mobilidade competitiva. No primeiro caso, a sociedade seleciona desde o principio os que gozarao das melhores oportunidades escola- res e sociais. No segundo, deixa que a selecao aconteca a partir dos préprios alunos/as, por meio de uma prolongada concorréncia entre eles. Coneorrencia desigual desde o comeco, pela diferente posigao de partida em todos os aspec- tos, a partir do movimento em que se deparam com as tarefas escolares, A légica da uniformidade no curriculo, nos ritmos, nos métodos e nas expe- riéncias didéticas favorece os grupos que, precisamente, nao necessitam da escola para o desenvolvimento das habilidades instrumentais que a sociedade atual re- quer: aqueles grupos que, em seu ambiente familiar e social, se movem numa cultura parecida a que a escola trabalha e que, por isso mesmo, no trabalho acadé- mico da aula sé consolidam e reafirmam os mecanismos, as capacidades, as atitu- des e as pautas de conduta jé induzidos “espontaneamente” em seu ambiente. Pelo contrario, para aqueles grupos sociais cuja cultura é bem diferente da académica da aula, a légica da homogeneidade nao pode sendo consagrar a 24 J. Gimeno SacristAn & A. I. Perez GOMEZ x discriminagao de fato. Para estas criancas, o trato de igualdade na aula supe de fato a ratificagao de um atraso imediato e de um fracasso anunciado a médio prazo, jd que possuem cédigos de comunicagao e intercmbio bem diferentes dos que a escola requer. Manifestam deficiéncias bem claras na linguagem e na légica do discurso racional, assim como nas habilidades e capacidades que a vida académica requer, nao dispondo de apoio familiar nem quanto as expecta- tivas sociais e protissionais que a escola pode Ihes abrir, nem quanto ao clima de interesses pelo mundo da cultura. O desenvolvimento radical da fungao compensatéria requer a légica da diversidade pedagdgica dentro do marco da escola compreensiva e comum. para todos. As diferencas de partida devem ser enfrentadas como um desafio pedagégico dentro das responsabilidades habituais do profissional docente. A escola obrigatéria que forma o cidadao/ da nao pode dar-se ao luxo do fracasso escolar. A organizacio da aula e da escola, e a formacao profisisional do docen- te, devem garantir o tratamento educativo das diferengas trabalhando com cada aluno/a desde sua situagio real, e nao do nivel homogéneo da suposta maioria estatistica de cada grupo de classe. O ensino obrigatério, que nos paises desenvolvidos é, pelo menos, de 10 anos, deveria comecar antes para cobrir os anos da infancia, quando a maior plasticidade permite a maior eficdcia compensatoria. Se a escola se propde 0 desenvolvimento radical da intervengao compensatéria, mediante o tratamento pedagégico diversificado, tem tempo suficiente, respeitando os ritmos dos indi- viduos, para garantir a formacao basica do cidadao/ da, o desenvolvimento dos instrumentos cognitivos, de atitude e de conduta que permitam a cada jovem se posicionar e intervir com relativa autonomia na complexa trama social. A igualdade de oportunidades nao é um objetivo ao alcance da escola. O desafio educativo da escola contempordnea é atenuar, em parte, os efeitos da desigualdade e preparar cada individuo para lutar e se defender, nas melhores condigdes possiveis, no cendrio social. Queremos abranger 0 conceito de igualdade tanto a que tem sua origem nas classes sociais como a que se cria nos grupos de marginalizagao, ou nas deficiéncias fisicas ou psicolégicas hereditérias ou adquiridas. Para todos eles, somente a légica de uma pedagogia diversificada no marco da escola compre- ensiva tem a chance de provocar e favorecer um desenvolvimento até o maximo de suas sempre indefinidas possibilidades. Cabe fomentar, por outro lado, a pluralidade de formas de viver, pensar e sentir, estimular o pluralismo e cultivar a originalidade das diferencas individu- ais como a expressdo mais genuina da riqueza da comunidade humana e da tolerancia social. Assim, se se concebe a democracia mais como um estilo de vida e uma idéia moral do que como uma mera forma de governo (Dewey, 1967), onde os individuos, respeitando seus diferentes pontos de vista e proje- tos vitais, se esforgam através do debate e da aco politica, da participacio e cooperacao ativa, para criar e construir um clima de entendimento e solidarie- dade, onde os conflitos inevitaveis se oferecam abertamente ao debate puiblico. No entanto, na situagao atual, a divisdo do trabalho e sua conseqiiente hie- rarquizacao numa sociedade de mercado provoca a diferente valorizacao social dos efeitos da diversidade. Nao é a mesma coisa, da perspectiva da considera- ¢a0 social, dedicar-se a atividades manuais do que a tarefas intelectuais, A eco- nomia que arte. Por isso, e como teremos oportunidade de desenvolver nos capitulos seguintes, é delicado encontrar 0 equilibrio perfeito entre 0 curriculo comum e a estratégia didatica da diversidade dentro da escola compreensiva, se nos propomos evitar na medida do possivel os efeitos individuais da desi- gualdade social. (COMPREENDER E TRANSFORMAR © ENSINO 25 A reconstrugao do conhecimento e da experiéncia O segundo objetivo da tarefa educativa da escola obrigatéria nas socieda- des industriais deve ser, em nossa opiniao, provocar e facilitar a reconstrugao: dos conhecimentos, atitudes e formas de conduta que os alunos/as e alunos/as assimilam direta e acriticamente nas préticas sociais de sua vida anterior e para- lela a escola. Na sociedade contemporanea, a escola perdeu o papel hegeménico na trans- misao e distribuigéo da informagao. Os meios de comunicacaio de massa, e em especial a televistio, que penetram nos mais recOnditos cantos da geografia, ofere- cem de modo atrativo e ao alcance da maioria dos cidadaos uma abundante baga- gem de informagées nos mais variados ambitos da realidade. Os fragmentos apa- rentemente sem conexo e assépticos de informacio variada, que a crianga recebe por meio dos poderosos e atrativos meios de comunicacao, ¢ os efeitos cognitivos de suas experiéncias e interagGes sociais com os componentes de seu meio de de- senvolvimento, vao criando, de modo sutil e imperceptivel para ela, incipientes mas arraigadas concepgoes ideolégicas, que utiliza para explicar e interpretar a realidade cotidiana e para tomar decisdes quanto a seu modo de intervir e reagir. A crianga chega a escola com um abundante capital de informacées e com poderosas e acriticas pré-concepgées sobre os diferentes Aibitus da realidade. Como é evidente, tanto o mundo das relagées sociais que rodeiam a crianga como a esfera dos meios de comunicagao que transmitem informagies, valores e concepgSes ideoldgicas, cumprem uma funcdo mais préxima da reprodugio da cultura dominante do que da reelaboracio critica e reflexiva da mesma. E ingénuo esperar que as organizacées politicas, sindicais ou religiosas, ott 0 Ambito da em- presa, mercado e propaganda estejam interessados em oferecer ao futuro cidadao/ da as chaves significativas para um debate aberto e racional, que permita opgdes relativamente auténomas sobre qualquer aspecto da vida econémica, politica ou social. Seus interesses, mais ou menos legitimos, orientam-se em outras diregdes mais préximas da inculcagao, persuasio ou sedugio do individuo a qualquer preco do que da reflexao racional e da comparacao critica de pareceres e propostas. Somente a escola pode cumprir esta funcao. Para desenvolver este com- plexo e conflitante objetivo, a escola compreensiva, apoiando-se na légica da diversidade, deve comecar por diagnosticar as pré-concepgées e interesses com que os individuos e os grupos de alunos/as interpretam a realidade e decidem sua pratica. Ao mesmo tempo, deve oferecer o conhecimento puiblico como fer- ramenta inestimavel de andlise para facilitar que cada aluno/a questione, com- pare e reconstrua suas pré-concepgées vulgares, seus interesses e atitudes con- dicionadas, assim como as pautas de conduta, induzidas pelo marco de seus intercdmbios e relagées sociais. Como afirma Bernstein (1987): “Aescola deve transformar-se numa comunidade de vida e, a educacao de- ve ser concebida como uma continua reconstrugo da experiéncia. Comunidade de vida democratica e reconstrucao da experiéncia baseadas no diélogo, na compara- Gao e no respeito real pelas diferencas individuais, sobre cuja aceitagao pode se assentar um entendimento mtituo, 0 acordo e os projetos solidarios. O que importa nao é a uniformidade, mas o discurso. O interesse comum realmente substantivo e relevante somente € descoberto ou € criado na batalha politica democritica e per- manece ao mesmo tempo tao contestado como compartilhado” (p. 47). Isto nao significa de modo algum, que o conhecimento, as atitudes ou formas de atuagao reconstruidos pelo aluno/a na escola se encontrem livres de condicionamentos e contaminagao; sao resultado, também condicionado, dos novos intercimbios simbélicos e das novas relacdes sociais. A diferenca est 26 J. Gimeno SacRISTAN A. I Pérez GOMEZ £ em que o aluno/a teve a oportunidade de conhecer os fatores e influéncias que condicionam seu desenvolvimento, de comparar diferentes propostas e modos de pensar e fazer, de descentrar e ampliar sua limitada esfera de experiéncia e ero enriquecido pela comparagao e pela reflexao, chegar a opgdes que sabe provisérias. Enfim, a escola, ao provocar a reconstrugao das preocu- pages vulgares, facilita o processo de aprendizagem permanente, ajuda 0 in- dividuo a compreender que todo conhecimento ou conduta encontram-se con- dicionados pelo contexto e, portanto, requerem ser comparados com represen- tagdes alheias, assim como com a evolugao de si mesmo e do préprio contexto. Mais do que transmitir informacio, a fun¢ao educativa da escola contem- pordnea deve se orientar para provocar a organizagao racional da informacao fragmentaria recebida e a reconstrucao das pré-concepgses acriticas, formadas pela pressdo reprodutora do contexto social, por meio de mecanismos e meios de comunicagao cada dia mais poderosos e de influéncia mais sutil. Agora, nao se consegue a reconstrucéo dos conhecimentos, atitudes e modos de atuacdo dos alunos/as, nem exclusiva, nem prioritariamente, me- diante a transmissao ou intercambio de idéias, por mais ricas e fecundas que sejam. Isto ocorre mediante a vivéncia de um tipo de relagdes sociais na aula e na escola, de experiéncias de aprendizagem, intercdmbio e atuagio que justifi- quem e requeiram esses novos modos de pensar e fazer. De acordo com o primeiro objetivo educativo anteriormente proposto, colo- car a exigéncia de provocar a reconstrugao por parte dos alunos/as, de seus conhe- cimentos, atitudes e modos de atuacao requer outra forma de organizar 0 espaco, 0 tempo, as atividades e as relacoes sociais na aula e na escola. E preciso transformar a vida da aula e da escola, de modo que se possam vivenciar praticas sociais e intercimbios académicos que induzam 4 solidariedade, 4 colaboragao, a expe- rimentagao compartilhada, assim como a outro tipo de relagdes com o conhecimen. toe a cultura que estimulem a busca, a comparacao, a critica, a iniciativa ea criacao. Provocar a reconstrucao critica do pensamento e da acao nos alunos/as exige uma escola e uma aula onde se possa experimentar e viver a comparacao aberta de pareceres e a participagao real de todos na determinacao efetiva das formas de viver, das normas e padrdes que governam a conduta, assim como das relagdes do grupo da aula e da coletividade escolar. Apenas vivendo de forma democratica na escola pode se aprender a viver e sentir democraticamen- te na sociedade, a construire respeitar 0 delicado equilibrio entre a esfera dos interesses e necessidades individuais e as exigéncias da coletividade. ‘Como veremos nos préximos capitulos, a fungao da escola, em sua ver- tente compensatéria e em sua exigéncia de provocar a reconstrugao critica do pensamento e da aco, requer a transformacao radical das praticas pedagégicas € sociais que ocorrem na aula e na escola e das fungies e atribuigdes do profes- sor/a. O prinefpio basico que se deriva destes objetivos e fungdes da escola contempordnea ¢ facilitar e estimular a participagio ativa e critica dos alunos/as nas diferentes tarefas que se desenvolvem na aula e que constituem o modo de viver da comunidade democratica de aprendizagem.

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