ESTADO DE MINAS//PENSAR
5 . S Á B A D O , 2 6 D E J U N H O
Portrait de Stéphane Mallarmé, de Edouard Manet, de 1876, óleo sobre tela da coleção do Museu d’Orsay, Paris
LER, reler Mallarmé
O
Reintroduzir a obra do escritor no Brasil é gesto que destaca poesia
e crítica, mostrando que teoria e poema são, de fato, inseparáveis
EDUARDO JORGE
poeta francês Stéphane Mallarmé
(1842-1898) é autor de uma obra de-
terminante no século 20. Em seus
poemas e ensaios coincidem a cria-
ção poética (enquanto ato de fazer)
e uma tarefa crítica para com o pró-
prio poema, em que Mallarmé se de-
bateu com a forma do poema-críti-
co. Un coup de dés, na versão brasi-
leira Um lance de dados, que integra
o volume Mallarmé, foi traduzido
criticamente por Augusto e Haroldo
de Campos com Décio Pignatari.
Tradução crítica, no aspecto das inú-
meras notas e cuidados que o grupo
tomou para apresentar o poeta ao
público brasileiro. Essa apresenta-
ção, no entanto, não está ausente de
um projeto estético em que a forma
crítica do poema de Mallarmé era
partilhada por uma comunidade de
autores reagrupados pela poesia
concreta nos meados dos anos 1950.
Augusto de Campos, inclusive,
elaborou um tombeau para Mallar-
mé que consiste em: “Ah mallarmé/
a carne é triste/ e ninguém te lê/ tu-
do existe/ pra acabar em tv”. Em
maio, Augusto de Campos publicou
na revista Poiesis, editada pela Casa
das Rosas, em São Paulo, um novo
tvgrama para Mallarmé que, saindo
de sua apresentação gráfica, se mos-
tra assim: “Ah mallarmé/ a poesia
resiste/ se a tv não te vê/ o cibercéu
te assiste/ em quick time e flv/ já
pairas sobre os sub/ tudo existe/ pa-
ra acabar em youtube”. Augusto de
Campos se apropria do verso clássi-
co e sarcástico do poema “Brisa ma-
rinha”: “A carne é triste, sim, e eu li
todos os livros”.
O poeta francês não leu tão so-
mente todos os livros, mas também
foi ao teatro, frequentou espetácu-
los de dança, pantomima e fez críti-
cas e comentários, cujos textos pu-
blicados integraram o livro Divaga-
ções, em 1897. O único livro publica-
do em vida de Mallarmé. Rabiscado
no teatro foi editado pela capricho-
sa coleção Mimo, da Autêntica Edi-
tora. O livro tem autonomia justa-
mente porque Divagações é um li-
vro sem arquitetura, como o próprio
autor ressalta na apresentação. Boa
parte das crônicas de Mallarmé foi
publicada entre 1886 e 1887, ou seja,
10 anos antes da publicação de Diva-
gações. O destaque de Rabiscado no
teatro vai para a questão da dança:
valendo-se dos próprios movimen-
tos de Loïe Fuller, Mallarmé fala da
“vertigem de uma alma como que
posta no ar por um artifício”. Depois
de Mallarmé, por exemplo, temos o
encadeamento de um contato con-
tínuo entre poesia e dança de onde
surgem nomes como os de Paul Va-
léry e João Cabral de Melo Neto, poe-
tas que, notadamente influenciados
D E 2 0 1 0
AO LER SEUS
TEXTOS SOBRE
TEATRO, NOTA-SE
UM POETA
IMPREGNADO
DE MUNDO
por Mallarmé, mantiveram nesse
ponto um diálogo sutil.
Assim, reintroduzir Mallarmé no
Brasil, em distintos sinais de entrada,
é um gesto de enfatizar que poesia e
crítica, enfim, teoria e poema são, de
fato, inseparáveis. O pensamento crí-
tico de Mallarmé está justamente no
fazer (poiesis) que aproxima da ma-
téria do poema o mais silencioso dos
gestos, como o que está contido em
“Mímica”, na tradução de Tomaz Ta-
deu: “O silêncio, único luxo após as
rimas, uma orquestra não fazendo
com seu ouro, seus raspões de pen-
samento e de fim de tarde senão de-
talhar-lhe a significação igual a uma
ode calada e que cabe ao poeta, sus-
citado por um desafio, traduzir!”. E
Mallarmé traduziu as múltiplas es-
critas do corpo, como a bailarina, co-
mo um “poema liberado de todo
aparato do escriba”. Frequentar o tea-
tro, para Mallarmé, isto é, ver uma
montagem de Hamlet ou uma apre-
sentação de dança, era criar elemen-
tos para uma teoria do poema. É nes-
se aspecto que se nota que epítetos,
cujo objetivo seria diminuí-lo, tal co-
mo “hermético”, seriam para Mallar-
mé algo que não se sustenta. Ao ler
seus textos sobre teatro, nota-se um
poeta impregnado de mundo ou ain-
da das técnicas de sua época. Mas a
técnica pode ser um naufrágio. E, a
partir de Mallarmé, nota-se que o tra-
balho do poeta hoje não se resumiria
a seguir as novas tecnologias, mas a
ultrapassá-las, surpreendê-las.
A edição de Rabiscado ao teatro é
bilíngue e a tradução de Tomaz Ta-
deu tem um conjunto cuidadoso
com várias notas de leitura. O tradu-
tor, ao compartilhar suas notas, res-
salta que elas devem ser vistas como
“apontamentos que se emprestam a
um amigo ou a uma amiga que vai
ler, ou até já leu, o mesmo livro”. Mas
tais notas não passam despercebidas
quando notamos que traduzir
Mallarmé é uma tarefa que põe a tra-
dução como procedimento.
ESTÉTICA E POLÍTICA Enfim, ler, reler
Mallarmé. Sobretudo sua prosa, que
não se afasta de sua poesia enquan-
MUSEU D’ORSAY/REPRODUÇÃO
L A N Ç AM E N TO S
FILOSOFIA
COMO LER LACAN
De Slavoj Zizek
Editora Jorge Zahar,
160 páginas, R$ 29
Estudo de autoria de
um dos filósofos mais
importantes da
atualidade, o livro
pretende colocar o
leitor face a face com
J. ZAHAR/REPRODUÇÃO
os textos do mestre
francês da
psicanálise, fazendo associações com diferentes
áreas. Zizek procura mostrar que há Lacan em
Shakespeare e em Casablanca, em Nietzsche e
num radical muçulmano, em Stanley Kubrick e
nas novelas mexicanas. A conhecida dificuldade
de linguagem e dos conceitos de Lacan são
tratados com utilização de recursos vindos de
diversas áreas do conhecimento e da arte, além
da indicação de uma cronologia biográfica e de
indicações de leitura. O esloveno Slavoj Zizek,
além de escrever sobre temas como política,
filosofia, estética e psicanálise, mantém intensa
militância política em seu país, tendo concorrido
às eleições para presidente em 1990.
ROMANCE
O FARAÓ NEGRO
De Christian Jacq
Editora Bertrand
Brasil, 434
páginas, R$ 46
Mais um romance
escrito pelo francês,
especialista na
cultura do antigo
Egito, autor de
BERTRAND BRASIL/REPRODUÇÃO
Ramsés e A rainha
Liberdade. Os
templos do Norte do Egito estão desertos, os
deuses foram esquecidos. Todos têm um
único objetivo: a obtenção máxima de lucro.
É o reinado da injustiça e da corrupção. Cinco
séculos depois de Ramsés, o império, longe
do esplendor do passado, parece caminhar
rapidamente para a ruína irreparável. E só
to projeto estético. E nessa sede pa- quem pode evitar esta fatalidade é o núbio
Piankhy, chamado de o Faraó Negro. Ao
ra reler Mallarmé, simultaneamen-
te, foi editado Divagações. No en- narrar um período marcante da história
egípcia, o autor mistura ficção e fatos reais.
tanto, a tradução de Fernando
Scheibe segue por outro caminho.
Recentemente lançado pela editora
da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), o volume contém
apenas a tradução em língua portu-
BIOGRAFIA
guesa, o que em momento algum
compromete o livro. Aliás, compro-
ALEXANDRE, O
va a necessidade de múltiplas vias
GRANDE
de entrada para o poeta e suas leitu-
De Pierre Briant
ras críticas. Mallarmé fica em outra
Editora L&PM, 128
divisa, a da apresentação de um
páginas, R$ 12
conjunto que compreende seus
poemas em prosa, intitulado “ane-
Buscando ir além do
dotas ou poemas”, bem como os
seu personagem,
textos “Quanto ao livro” e “Crise do
Alexandre, o Grande
verso”. A tradução de Scheibe fez
(356-323 a.C), o
parte de um pós-doutorado na Uni-
estudo biográfico vai
camp e conta com um texto crucial L&PM/REPRODUÇÃO
às origens da
para uma releitura do poeta. Trata-
dominação e os
se de “O túnel, o poeta e seu palácio
objetivos do imperador, trata da natureza e da
de vidro”, de Marcos Siscar. É justa-
importância das resistências que enfrentou,
mente nos tempos de esgotamento
discorre sobre a organização de um exército de
das vanguardas que reler Mallarmé,
milhares de homens em territórios hostis e
segundo o crítico, o despe de redu-
analisa as relações entre conquistadores e
cionismos e altera sua recepção nos
populações conquistadas. Alexandre, o Grande,
dias atuais. E a partir da questão Sis-
filho do rei da Macedônia Felipe II e aluno de
car acentua: “O nome do poeta foi,
Aristóteles, se espelhava nos heróis homéricos
durante o século 20, não só uma gri-
para tomar decisões no campo administrativo,
fe para atiçar os fogos de artifício do
político e cultural. O livro faz parte da série
experimentalismo, como também
Encyclopaedia da editora L&PM, que publica
o bode expiatório preferido do ve-
volumes sobre personagens e fatos
lho tribunal contra o ‘esteticismo’
históricos e culturais.
sem consciência política”.
Enfim, a velha separação entre
estética e política que assombrou
os mais diversos regimes e perío-
ARTE
dos do século 20, e que parecia se
esgotar com o esfacelamento das CARTAZES MUSICAIS
vanguardas, pelo menos em tese. De Kiko Farkas
Em Mallarmé seria interessante ob- Editora Cosac &
servar que nenhum desses lados se Naify, 156 páginas,
sobressai quando o poema torna 126 ilustrações,
única a experiência da teoria e do R$ 49
fazer. Nesse sentido, a simultanei-
dade das duas edições, uma com Destinado a
uma atenção para o fragmento Ra- interessados em
biscado no teatro e a outra apre- design gráfico, o livro
sentando Divagações, favorece ca- apresenta os
madas múltiplas que enriquecem COSAC & NAIFY/REPRODUÇÃO
cartazes de Kiko
a leitura de Mallarmé no Brasil. Por Farkas e seus
isso Rabiscado no teatro e Divaga- elementos, como escala, forma,
ções são duas peças fundamentais, complexidade, padrão, textura, linha, cor,
que tornam Mallarmé nosso con- minimalismo, tensão, força e lirismo. Kiko
temporâneo do futuro. Farkas é um dos mais premiados designers
brasileiros, criador de mais de 300 cartazes
para concertos da Orquestra Sinfônica do
DIVAGAÇÕES Estado de São Paulo, entre outros grupos
De Stéphane Mallarmé, tradução e apre- musicais. O volume, que reproduz os cartazes
sentação de Fernando Scheibe com riquezas de detalhes e qualidade gráfica,
Editora da UFSC, 270 páginas, R$ 41 agrupou os trabalhos por núcleos temáticos,
permitindo assim, além da visualização, um
RABISCADO NO TEATRO estudo de maior profundidade analítica. O
De Stéphane Mallarmé, tradução e notas crítico Arthur Nestrovski, no primeiro capítulo,
de Tomaz Tadeu aproxima a produção do designer ao universo
Autêntica Editora, 286 páginas, R$ 41,90 da música.
Eduardo Jorge é mestre em
estudos literários pela UFMG.