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BIBLIOTECA LUSITANA

o Jaime Cortesão

concionein
I
P Antologia Precedida dum Estudo Critico
O õ

EDIÇÃO DA
RENASCENÇA PORTUGUESA
PORTO
k*

Direitos reservados
Cancioneiro Popular
:

Do autor

A Morte da Águia, 1909.


A Arte e a Medicina, 1910.
Esta História é para os Anjos, 1912.
Sinfonia da Tarde, 1912.
. . . Daquem e Dalém Morte, 1913.
Glória Humilde, 1914.
BIBLIOTECA LUSITANA

Jaime Cortesão

Cancioneiro Popular
Antologia Precedida dum Estudo Crítico

Edição da
Renascença Portuguesa
Porto
ESTUDO CRITICO
I

o FIM DESTA OBRA

PARA que todos os Portugueses possam


inteirar-seda sua própria Alma, e fun-
damente sintam a prendê-los e a diri-
gi-los os laços Íntimos do Espírito, para que
emfim se forme ou se torne clara a consciên-
cia nacional dando-nos a possível unidade
finalista, é indispensável o conhecimento do
Cancioneiro popular, porque nele se revela
toda a alma do Povo.
O estudo das canções populares, ramo
dum outro mais vasto estudo — as Tradições
populares — ha muito que preocupa todas as
nações da Europa, movidas mais pelo senti-
mento nacional, do que pela pura curiosi-
dade scientífica e tanto assim que as primeiras
movimento foram exactamente
a iniciar esse
aquelas, como observa Gaston Paris, que
procuravam, em meio da sua hesitação, for-
mar uma consciência histórica.
Essa herdamos nós, e de tão elevada tradi-
ção, que nos deveria inspirar os actos da
10 Cancioneiro Popular

mais pura nobreza e largo interesse huma-


nitário.
Mas .perdemo-la Alguns séculos de
. . !

abatimento e corrução, de jesuitismo e inépcia


real e embasbacaçâo estólida perante o estran-
geiro deram comnosco nesse ululante doido
da Pátria, que enche a noite de gritos, à
procura da própria Alma.
Bem de nós, que nos resolvemos emfim a
buscá-la na história, na literatura, nas tradi-
ções populares e, o que vale o mesmo, den-
tro daquele espírito que as criou!
•A esse alto fim visa também e principal-
mente este trabalho. Não nos move a pura
curiosidade scientífica, o desejo de alardear
uma estéril erudição, nem sequer o gosto de
serenamente, friamente exercitar faculdades
críticas. Nem esse propósito podia estar em
nosso animo. .

É antes a fé nos destinos da Pátria e o


desejo de a comunicar à nova geração pelo
conhecimento das energias latentes no fundo
da Alma popular. Como poderia deixar de
ser assim, se nós vimos de conviver com
ele, com o Povo, nas mais espontâneas
e sinceras das suas manifestações, se, para
nós esses milhõis de bocas humildes e
sôfregas de amor, cheias de riso ou hir-
tas de angústia, se abriram e nos entre-
garam os hinos da sua esperança, os beijos
trémulos do seu carinho, os lamentos e
os gritos das suas espantosas afliçõis e os
! !

Estudo Critico 11

VOOS doidos da Alma nos arrebatamentos


da Paixão ?
Mas vamos devagar.
O estudo das tradiçõis populares entre
nós tem já acumulado um tesoiro riquíssimo
de materiais; faltam apenas por emquanto
os bons trabalhos de sintese e interpreta-
ção. Quem quiser, porventura, conhecer a
história dessas investigaçõis, consulte os En-
saios etnográficos de Leite de Vasconcelos,
onde o sábio filólogo e etnólogo reuniu as
noticias de muitíssimos desses trabalhos. Pelo
que mais nos importa, o cancioneiro popular,
diremos que é vastíssima a colecção de can-
tigas populares, hoje existentes, pois só os
Cantos populares portugueses, de Tomaz Pi-
res, contam mais de onze mil cantigas
Teófilo Braga calcula em quarenta mil o
numero das que até hoje foram guardadas nas
nossas colecçõis. A selecção das centenas de
quadras que constituem este pequeno can-'
cioneiro foi realisada em dezenas de milhares
delas, ainda que escrupulisamos em consultar
apenas as colecçõis, cujos coordenadores
oferecessem garantias de seriedade, tais como:
Os cantos populares portugueses, de To-
maz Pires, o Cancioneiro popular e Cantos
populares do Arquipélago açoreano, de Teó-
filo Braga, a Poesia amorosa do povo por-

tuguês, de Leite de Vasconcelos, as Cançõis


populares da Beira e as Velhas cançõis e
Romances populares portugueses, de. Pedro
12 Cancioneiro Popular

Fernandes Tomaz, o Romanceiro e Cancio-


neiro do Algarve de Francisco Xavier de
Ataíde Oliveira e as vastas colecçõis disper-
sas pela Revista Lusitana, Revista de Gui-
marãis, Revista do Minho, etc. Algumas,
mas poucas, foram por nós colhidas da boca
do Povo, mas, por constituírem excepção,
levarão nota especial.
Quanto aos trabalhos de síntese e inter-
pretação, os melhores, afigura-se-nos que se-
jam os estudos parciais de Leite de Vascon-
celos, como as Cançõis do berço na Revista
Lusitana, a Introdução ás Cançõis da Beira
e o estudo na Poesia amorosa do Povo por-
tuguês.
Esses constituíram para nós um subsídio
valioso, ainda que a índole deste trabalho
tenha de ser muito diferente, dada a feição
mais particularmente scientifica da obra da-
quele escritor.
E, na verdade, ha nos cancioneiros populares
elementos variadíssimos de estudo tanto para
a Etnologia, como para a Filologia, pela re-
velação de costumes, ideias e superstiçõis,
pela investigação de vestígios míticos e pelas
construçõís, particularidades múltiplas de lin-
guagem, que tudo as simples cantigas con-
teem.
O que seria então, se quizessemos fazer
entrar também o nosso cancioneiro na árvore
genealógica das cançõis populares, a enge-
nhosa criação de Gaston Paris!
Estudo Critico 13

«Emfim, diz ele, virá um dia em que o tra-


çado geral da árvore genealógica das nossas
cançõis seja lançado aproximadamente assim,
indo sempre do mais vasto para o mais res-
trito; ir-se-ha da humanidade inteira para a

raça branca, — para


os Árias, —
para cada
grupo dos povos arianos (slavo, germânico,
greco-romanico, céltico, etc), para cada povo,
para cada província, para cada distrito. Por
outras palavras, sendo dada uma canção po-
pular qualquer, será necessário poder deter-
minar em que percentagem cada um desses
factores entrou na sua formação. Encontrar-
se-hão algumas que não tenham raizes e não
vão além da aldeia, onde se cantem; outras,
pelo contrário, que, durante séculos voaram
sobre as bocas dos homens, e que resoavam
já talvez, num tempo anterior a toda a histo-
ria, sobre os planaltos da Ásia central, onde

os nossos primeiros pais guardavam os reba-


nhos.» (^)
Mais modestamente se poderia ainda fazer
aqui o estudo comparativo das cantigas por-
tuguesas, com o cancioneiro das outras na-
çõis, para, assim, fundamentar a originalidade
do espirito, que anima as nossas.
Esse estudo, tornaria demasiadamente eru-
dito este livro, o que o afastava do fim a que
o destinamos. Todavia, antes de chegar a
qualquer conclusão, estudamos também um

(^) Cit. na «Histoire du Lied», Schuré.


14 Cancioneiro Popular

pouco os cancioneiros hespanhol, francês,


alemão e italiano em especial, e podemos
afirmar desassombradamente a elevação e es-
pírito original da nossa poesia popular.
O presente trabalho, inédito entre nós, é
uma em que reunimos o que de
antologia
melhor encontramos em dezenas de milhares
de cantigas. Pretendemos realisar obra vulga-
risadora e de educação, o que explica algumas
particularidades de plano, a que obedeceu.
O automatismo da linguagem, o incessante
trabalho de criação sofrido pelas cantigas, ao
passar de boca em boca e de época para
época, a sua adaptação intencional a casos
individuais fazem que um só tipo de cantiga
dê de si muitas variantes, quer na essência,
quer na forma, sucedendo até que do mo-
delo primitivo se aproveita para muita va-
riante unicamente o fundo construtivo, geral-
mente pelo que de incisivo, espontâneo ou
perfeito ha no arranjo verbal.
O que procuramos aqui foi dar, dentre
muitas variantes, o modelo primitivo, quando
este éde mais nitida intenção ou, porventura,
alguma daquelas, que durante as remodela-
çõis sucessivas alcançam maior pureza ou
elevação.
Damos apenas as variantes para o caso de
aparecerem dois ou mais sentimentos diver-
sos e egualmente reveladores, verbalisados
dentro do mesmo fundo construtivo.
Acontece também bastas vezes encontrar
:

Estudo Critico 15

nos cancioneiros algumas cantigas visivel-


mente deturpadas segundo a pro-
e escritas
núncia estritamente popular, porque os cole-
cionadôres, em obediência ao dogma da
inviolabilidade, na frase feliz da snr/ D.
Carolina Michaêlis de Vasconcelos, entendem
dever guardá-las, segundo a exacta versão
colhida. Não procedemos assim nesta antolo-
gia: vamos pela opinião da sábia romanista
...«não pode haver lei intransigente que mande
perpetuar erros evidentes e falsificaçõis cons-
cientes ou inconscientes, nem ha necessidade
de o folklorista erudito se fazer escravo dum
principio. Ninguém está obrigado a aceitar
e imprimir tiitto quanto! Quem emendar um
verso visivelmente corrompido ou fragmen-
tário, em harmonia com a fala singela e po-
pular dos romances (e consequentemente das
cantigas), cumpre simplesmente o seu dever.
Só quem modifica arbitrariamente e sem ne-
cessidade, falsifica e estraga.» (^)
Entende também a ilustre escritora que
em obras destinadas a vulgarisar e educar
se deve imprimir unicamente «uma selecção
das produçõis mais puras e características da
alma popular, em redacção limpa de todos
os defeitos.» Se rasõis pessoais não bastas-
sem a decidir-me a proceder assim na redac-
ção de algumas cantigas, essa opinião me

(') «Estudos sobre o romanceiro peninsular, na


«Revista Lusitana», tomo ii, pag. 169.
16 Cancioneiro Popular

autorisaria a fazê-lo, guardando, é certo, as


devidas reservas.
Com o mais possivel resti-
efeito procurei
tuir aquelas cantigas, que deparei adulteradas
nos cancioneiros, à pureza do ritmo e da di-
ção popular, sem que isso fosse nunca alte-
rar-lhes o sentido. Devo dizer que poucas
vezes fui obrigado a isso, porque as mais
belas cantigas são as que menos estropiadas
aparecem nos cancioneiros, talvez por serem
cantadas também por criaturas de eleição en-
tre o Povo. E se é certo que ha nesses can-
cioneiros por outro lado, muita cantiga de
evidente origem culta, as popiilarisadas,
podendo esses colecionadores abonar a sua
escolha com a opinião da snr.^ Dona Caro-
lina Michaêlis de Vasconcelos, que define
por cantiga popular tudo o que o povo canta,
devo dizer que procurei quanto possivel evi-
tá-las, pois destoam por vezes horrivelmente
em meio daquelas formosissimas flores rústi-
cas e, por belas que sejam, não são tão re-
veladoras da alma popular.
Ao menos dado a estes estudos,
leitor
àquele que menos de perto tenha vivido
com o Povo, como nós, e não tenha dado
atenção á beleza dos seus conceitos e viva
naturalidade da linguagem, hão de ainda as-
sim afigurar-se-lhe muitas destas cantigas de
tão rara beleza, que, em sua opinião, não po-
deriam ter sido criadas por essas almas sim-
ples e incultas. Ha, demais, eruditos, que
Estudo Critico 17

professam egualmente essa opinião, prees-


tabelecendo, pelo dogma da imperfeição,
que tudo quanto sai do Povo é imperfeito
e vulgar em todo o sentido.
Contra a opinião desses dirá ainda a in-
signe escritora: «Embora o profanam vai-
gus, que repete boçalmente versos mal en-
tendidos, seja a maioria, ha ao lado dos
destruidores inconscientes uma valiosa mino-
ria, espíritos de excelente memória, de são

critério e senso artístico, que, contrabalan-


çando e detendo a influência dos primeiros,
conservam gostosamente e com verdadeiro
interesse entusiástico de artista, a herança dos
antepassados, posto que sem submissão servil.
— —
Cantam e contam com correcção, sem
que o seu ouvido certeiro deixe escapar dos
tais versos errados, conservando aos textos
a sua pureza e o cunho de primordiais,
mesmo na recitação; teem inteligência sufi-
ciente para cortarem infiltraçõis postiças e
para preencherem habilmente lacunas, sem-
pre que a sua aliás admirável memória lhes
falhe, e para modificarem, modernisando-as,
frases e incidentes arcaicos, cujo sentido lhes
escapa. Quando se canta em coro, são eles
que guiam os outros. São emfim verdadeiros
artistas, continuadores dos poetas, que cria-
ram o «Liederschatz» (^) da nação, improvisa-
dores e repentistas de ambos os sexos que

(^) Thesoiro das Canções.


18 Cancioneiro Popular

estabelecem por meio das versõis por eles


escolhidas e adoptados os textos-tipos de
uma certa região, criando assim o Standart-
book (^) de uma aldeia.»
Nós acrescentaremos que muitos desses
improvisadores e repentistas, poetas popu-
lares, alguns duma elevadissima inspiração,
se teem conhecido nestes últimos tempos.
A Revista Lusitana tem dado noticias de
muitos e entre esses poetas humildes, deve-
mos citar o célebre Manuel Alves o Poeta—
Cavador, o Potra e o Cantador de Setúbal.
E' bem claro que todas essas cantigas são
na sua origem de criação pessoal, obra de
poetas anónimos, que um dia inteiro revol-
vem a terra com a enxada, ou lançam as
redes ao mar, ou afeiçoam a pedra e a ma-
deira, pobre gente abandonada, cuja única
educação lhes foi transmitida pela grande
Mãi Natureza, em grandeza, bondade, sin-
geleza e amor.
E porque essas cançõis brotam instintiva-
mente nas suas bocas, com a graça e a fres-
cura natural das flores silvestres, que são
também a canção da Terra, moldadas pelo
ritmo dos braços que cavam o chão ou pelo
ritmo dum peito, que desabafa em soluços,
límpidas, frescas, singelas, mas grandes na
sua humildade, é que todo o Povo as adopta

(^) Livro-modelo.
Estudo Critico 19

e de boca em boca, de aldeia em aldeia as


entrega a todos os seus pobres irmãos, como
a dádiva sagrada do seu amor, tesoiro, orgu-
lho da raça, para que se cantem em toda a
santa terra da Pátria.
Assim, da terra de Portugal, pelas tardes
portuguesas, em que as nossas almas tras-
bordam de sonho e paixão, nas noites em
que o Luar, fluindo, arrasta os coraçõis pre-
sos nos límpidos raios, a iluminar também
em relâmpagos de intuição o doloroso lusco-
fusco da vida, eleva-se para o ceu, repetido
por milhares de bocas trémulas, o mesmo
canto eterno de amor, de dor e esperança,
nesta doce e clara lingua lusitana.
E tudo quanto, esses pobretõis, cavadores
e rudes artífices, pescadores e marinheiros,
podem sentir de carinhoso, alegre ou sofre-
dor, podem sonhar de grande ou fantasioso,
— emoçõis, conceitos morais, ironias, senti-
mentos religiosos, tudo nas suas cantigas,
chora, soluça, moteja, ri, afaga e increpa ou
ala o voo da vidência religiosa num ilimi-
tado espaço de fogo e bruma.
Por isso me resolvi a dar neste livro ape-
nas o que é representativo do Povo pelo lado
afectivo, moral e filosófico, isolando as mais
belas cantigas, arrancando esses puros dia-
mantes à torrente de ganga que inunda os
nossos cancioneiros e limpando-as aqui e
acolá da jaca ocasional.
Aqueles que quiserem conhecer o Povo
20 Cancioneiro Popular

português, teem-no aqui, em íntima e pro-


funda virtualidade.
O Povo é hoje o alicerce para todos os
grandes edificios que se queiram construir
nesta Pátria. Sem que se conheçam bem a
naturesa dos fundamentos, a sua fragilidade
ou a sua resistência, as suas afinidades e re-
pulseis, não pode haver edifício sólido, por
mais grandioso que se afigure.
Debruçem-se um pouco sobre o seu cora-
ção, auscultem-lhe os movimentos e o ritmo,
que hão de ganhar com isso a maior das
liçõis.
II

o POEMA DO POVO

porque o Povo o canta é um


ESTEPoema, livro,
e porque nele está a sua vida,
que uma índole essencialmente afectiva
leva a encarar com seriedade e paixão e que,
mercê do abandono a que o lançaram, tem
profundidades amargas, não falando já do
lado trágico de toda a Vida, é também e es-
sencialmente um Drama —
o Poema dramático
do Povo . Com efeito tratámos de coligir e
. .

coordenar algumas centenas de quadras, de


sorte que pela sua disposição natural for-
massem uma obra com entranhas de vida e o
interesse dum drama, em cujo desfecho cola-
boram, conforme julgamos, o Destino im-
presso no sangue e a vontade contrária dos
homens.
O homem do Povo aparece primeiro em
meio da Natureza, sobre a qual possui tam-
bém a sua filosofia; canta depois o elogio do
trabalho e revela-nos o sentimento da própria
força, que donde em onde o leva ao crime;
22 Cancioneiro Popular

afirma a sua moralidade por meio de senten-


ças singelas, ironias e sarcasmos abre~nos o;

seu coração de filho enternecido; e deixa-nos


perceber como um fundo religioso original
reagiu perante os preceitos artificiais duma re-
ligião imposta. Mas o sentimento essencial
em volta do qual gira toda a vida do Povo
é o Amor. O
desejo, o enleio, o arroubo es-
piritual, a exaltação apaixonada, a saudade, o
carinho e o anseio de eternisar o amor, tudo
a alma popular vai dizendo sucessivamente
em versos inexcediveis de beleza e revelação
íntima.
Depois ou vem o casamento com a felici-
dade conjugal e as alegrias e ternuras do
amor materno, ou a morte e a traição lançam
a vida do amoroso num trágico desespero.
Seguem-se ainda as queixas do homem que
se consome na fadiga dum trabalho mal pago
e essa imensa tristeza dum povo, entregue
aos impulsos naturais, a quem roubaram al-
guns dos mais nobres desejos e motivos de
vida e sobre quem pesa uma imensa desgraça
histórica. Por fim esse Povo vai buscar espe-
ranças à Morte, que encara com serena audá-
cia, na qual vê uma formula suprema da jus-
tiça e que para ele, constitui a possibilidade
e a certeza duma vida superior, dando ao
seu Amor, que é a própria essência de Deus,
em gritos proféticos, as garantias da eter-
nidade !

De canto a canto, o Poema sobe do


:

o Poema do Povo 23

mesmo passo em emoção, interesse, arrojo e


elevação de pensamento. É que os diferentes
cantos deste Poema não se relacionam com
as cantigas em si, mas antes com o homem
moral, amoroso, trágico e religioso por todas
elas revelado.
Afastamo-nos assim do método seguido,
por exemplo, por Tomaz Pires, que classifica
as cantigas, por vezes, segundo uma palavra
— objectos, pedras, metais, vegetais — que aci-
dentalmente apareça neste ou naquele verso,
ou segundo aquele adoptado por Teófilo
Braga, separando as cantigas em grupos pro-
vinciais.
E porque nem só a pureza e correcção da
forma nos interessa, mas também a beleza
intrínseca e a inteira documentação do que
ha de elevado no espírito popular, hão de
aparecer ao lado de muitas quadras de tão
pura beleza, que nenhum poeta culto conse-
guiu atingi-la, outras de forma mais hesitante,
ainda que egualmente necessárias ao plano
desta obra. Vamos provar agora, de canto
a canto, como ha sequência emotiva, en-
redo dramático e profunda unidade neste
Poema.

I
— A Natureza e a Terra Natal. Homem
da beira-mar, em
perpétua simpatia com o
murmurado ritmo das ondas, o português
canta
: : !

24 Cancioneiro Popular

Sou gaivota, sou gaivota


E venho da beira-mar. . .

A imensidade e a beleza do Oceano ensi-


naram-lhe a poesia, que ele quer oferecer a
todos os que a não sabem, como uma dádiva
preciosa

Trago cantigas na boca


Pra quem não souber cantar.

O mar, que banha a «praia ocidental» e


dá a esta pequena cantiga uma frescura sadia
de agua salina e a generosa larguesa dum
voo pela imensa planície oceânica, tinha de
ser uma razão essencial de poesia para o
povo português.
É que ele bem sabe que o destino do
homem é ligado ao da Terra, a qual, em seu
pensamento, tem obrigações morais para com
o género humano (2) (^) sabe que o Sol, por
;

ser a fonte da vida terrestre é o senhor de


toda a alegria (3); e, em horas de scisma ou
tristeza, comunga a beleza da noite, concava
de escuridão

Oh ! noite que vais crescendo,


Tão cheia de escuridão,
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração

(^) Estes algarismos indicam as quadras, se-


gundo a numeração por que se encontram nas
diferentes secçõis da antologia.
: !

o Poema do Povo 25

Não admira, assim, que, num lampejo de


intuição genial, o homem do povo adivinhe
o seu parentesco com todo o Universo e te-
nha um momento de atónita confusão perante
a sua prodigiosa imensidade, para logo adqui-
rir uma tranquila certeza, ao descobrir-lhe uma

lei íntima —
o Amor

Eu sou filho das estrelas,


Junto do Céu fui criado,
Perdi-me na noite escura,
Fui em teu peito encontrado

Esta pequena cantiga, pela sua puresa cris-


talina, profundeza e plenitude de sentido, é

já de si um poema inteiro.
Desta primeira e notável concepção da
vida derivou logicamente toda uma série de
sentimentos e pensamentos filosóficos a ad- :

miração pela Natureza, que manifesta por


várias formas a alegria de viver (6) a com- ;

preensão simplista, mas verdadeira, de que


uma lei cósmica geral regula todos os astros
e por consequência toda a vida (10); e a cer-
teza de que uma onda de amor inunda toda
a Terra: amam as aves, os peixes, as flo-
res e até as pedras são susceptíveis
de sofrer
(12, 13, 14, 15, 17). O homem
reconhece
egualmente a bondade na Natureza e elogia
a árvore —
a oliveira, que dá o fruto que
alumia, a amoreira, que dá o sirgo para nos
vestirmos, a cheirosa laranjeira, quando se
26 Cancioneiro Popular

cobre de flor, e até a humana tristeza do ci-

preste (19, 20, 21, 22).


Mas em todo o mundo o logar eleito e
mais amado é a terra natal. Essa, ainda que
seja uma pobre e ignorada aldeola, é sempre
« a mais linda em Portugal » (23) e mais que
isso é o próprio « centro da natureza » (24), à
volta do qual tudo são flores (25). Que prazer
andar ao ar livre, à luz do Sol, correndo os
atalhos das vinhas na terra natal! (26, 27).
Longe dela o português sente-se morrer,
porque lhe falta alguma coisa de essencial à
vida que é « o ceu natural » e tão entranhada-
;

mente ama a sua pátria, que, fiel á tradição


histórica, porque o Sol nasce das bandas de
Castela, queria, ingenuamente, roubá-lo aos
castelhanos! (29,30,32).

II— O Elogio do Trabalho e o Valor He-


róico, Junto do Universo, no seio duma Natu-
reza, onde palpita um coração semelhante ao
seu e na terra natal, que lhe deu as primei-
de beleza, o homem vive e trabalha,
ras lições
porque o trabalho é uma condição de vida
moral, que a própria mulher lhe exige em
nome do seu elevado amor, e que aos olhos
dela, por mais rude que seja o mister, não
faz^senão exaltá-lo (33, 34, 41, 46).
É atentar na rasgada altivez com que
ela proclama a esforçada virtude do na-
morado :
! ; ;

o Poema do Povo 27

Todas me lavam a cara


Do meu amor ser ganhão
É bonito, gosto dele,
É honrado e ganha pão.

O homem chega a louvar a mesma po-


breza, num desinteresse de todos os tesou-
ros, porque a fadiga, que todos os dias lhe
verga o corpo, alagado em suor, hade permi-
tir que a morte não tenha contas a pedir-lhe

e a mulher afirma-se orgulhosa da rusticidade


do seu trajo, indício duma humilde mas
nobre condição (35, 47). E perante o esforço
do seu companheiro tem exclamaçõis duma
ingénua admiração:

Não sei como os homens podem


As ondas do mar vencer

E é por isso que o marinheiro

Anda sempre a trabalhar


Em cima da sepultura!

Mas também.

Se ele não fora do mar.


Não vinha aqui a sardinha.

Noutras profissões ainda a mulher mede a


beleza pela quantidade de perigo, que se
corre (36, 37, 38, 42).
Mas o esforço tempera rijamente o espírito
28 Cancioneiro Popular

do homem poder do trabalho,


e eis que, pelo
nele acorda o ímpeto heróico, como no la-
vrador, por cuja virtude, o seio da terra é
fundamente rasgado ou para o contraban-
dista, que luta com os guardas frente a frente,
afrontando pistolas e punhais (39, 40, 45);
ou logo a consciência pura do valor próprio
ergue-o audaciosamente, numa sede de domí-
nio sobre a terra.
E ora se compara a um gavião, ave de luta
e sangue, que.

Quando abaixa até ao chão,


Nunca alevanta sem presa,

ora, na consciência do seu misterioso poder,


desafia os astros a que lhe venham habitar o
ou (52) se compara a uma
peito (49, 50, 51)
onda de tempestade tão alta e violenta que

Três dias choveu areia.


Toda a praia se arrasou!

III. Ameaça e crime. Neste povo inculto a


afectividade violenta transforma por vezes os
mais belos sentimentos, pelos excessos pas-
sionais, em
tragédias de sangue e perdição.
Quem leu os romances de Camilo Castelo
Branco, em cuja obra se agita uma tão
completa série de tipos nacionais e cujo
enredo passional parte frequentemente daque-
les desvios de sentimento, observará como as
suas criaçõis se justificam perante esta som-
o Poema do Povo 29

bria faceda alma popular. A nuvem pacifica,


que ainda ha pouco amamentava a terra em-
bebendo-a generosamente em sadia frescura,
carregou-se de negrumes minazes e súbita e
cegamente descarrega o raio impetuoso.
O que era esforço criador e Ímpeto heróico
transformou-se em ameaça sanguinária (53,
55, 56, 58), em visão fatalista de crime e so-
berbo despreso pela morte (59, 60).
Esse fundo passional da alma popular,
criando os destinos trágicos, aparece bem
claro nesta expressiva quadra em que o amor
se compara ao crime, tornado fatal, perse-
guidor e irremediável como um remorso:
O meu coração, por artes,
Entrou no teu pensamento; (O
É como o crime de faca
Que nunca tem livramento.

IV. Máximas e pensamentos. Mas o crime


é a excepção e existe apenas como um des-
vio afectivo. O a sua moral, que
Povo tem
transparece nesta ou
naquela cantiga e é,
quantas vezes, mais humana e elevada que a
das classes cultas a quem o egoismo ou os
artificialismos da educação perverteram o
senso ético. Também as cantigas revelam ele-
vaçõis de pensamento assombrosas. A musa
popular chega a ter a intuição da liberdade e
da inviolabilidade do pensamento (63):

(í) Entrou, no teu pensamento, aqui deve significar en-


trou a pensar em ti.
30 Cancioneiro Popular

Não ha machado que corte


A raiz ao pensamento

proclama ela ; assim como


sabe descrever por
uma intuição e forma superior esse encantado
segredo em que vive a Alma e a traz não só
exilada de toda a vida exterior, inas até em
desharmonia com as aparências dum rosto
alegre ou triste (64):

Eu, cantando, estou calada,


Chorando me estou a rir.

Andando fico parada,


Desperta estou a dormir.

E porque tem essa intuição, atinge o me-


lindroso pudor de revelar o seu peito, que
sofre e ama, pois que (65)

Quem o seu peito descobre


É a si mesmo traidor.

Depois o homem pobre exalta a pobreza,


que é amada de Deus (67), pois a fortuna é
vária (68) e a verdadeira riqueza é a felici-
dade moral (69) e condena com um rigor de
Eclesiastes as vaidades e a ostentação (70, 71).
Castiga as murmuraçõis (72); reflecte sobre
o poder que o tempo possui de curar as fe-
ridas do coração (73); nota como à volta da
mulher formosa se acende o coro unanime
dos desejos, e proclama até, perante a Natu-
reza, os direitos do Amor, fora de toda a
sanção, pois que a mulher que morre don-
o Poema do Povo 31

zela tem uma morte inglória (74, 75). A pró-


pria mulher deseja casar emquanto é rapa-
riga, para que se não perca a sua fecundidade
(76) obedecendo assim á Natureza, cujas leis
são invioláveis (77).
Ele bem sabe que entra, como parte no
Amor, a exaltação dos sentidos (78), assim
como reconhece a sua cegueira desatinada
(79) e adivinha esse estado da alma amorosa
a quem incomoda o bulicio da vida exterior
e se compraz com o silêncio e a escuridão da
noite, que mais lhe consente a interiorisa-
ção(80):

Toda a moça que namora


Pelos olhos se conhece:
São tristes pela manhã,
Alegres, quando anoitece.

O amor veemente e sincero funda-se na


livre escolha, (84), porque acima da lei da obe-
diência filial do próprio amor (85),
está a lei

o qual deve procurar sempre a mocidade


ainda que pobre e a formosura com a condi-
ção de ser aureolada pelo esplendor da sim-
patia (81, 83).
E é tão poderoso o amor, que um pai
comete uma criminosa crueldade, sempre que
abandona uma filha, que se deixou seduzir:
maior que o erro da filha é o crime do pai
que a entrega às tentaçõis e às férreas leis
do mundo (86).
A queda da mulher pode obedecer á con-
:

32 Cancioneiro Popular

dição da sua própria inocência, que a redime


da culpa, em detrimento do sedutor, cuja alma
fica para sempre perdida. É o sentimento da
dignidade intacta, que arranca à mulher se-
duzida e traída este belo grito de indignação

Não cuides, por me deixares,


Que no Céu ganhaste palma;
Eu caí por inocente:
Desgraçada da tu'alma!

É talvez, pensando na infidelidade e trai-


ção dos homens, que ela é capaz de chegar
ao curioso caso de narcisismo moral e in-
sensibilidade amorosa, expressa nesta qua-
dra (91):

Vai-se o dia, vem a noite,


Vai-se a noite, o dia vem,
S'tou gostosa de mim mesmo.
Não quero bem a ninguém.

V. Ironias e gracejos, O prolóquio latino


— « Ridendo mores», forma superior
csatigat
de ironia pela intenção moral, seria a melhor
das epígrafes a este capitulo. Nós não temos
no génio nacional nada que se pareça com o
humor francês, exercício do espírito pelo es-
pírito, espécie de ironia intelectual, a que o
nosso povo é avesso pela profundidade e até
pelas demasias de sentimento. A nossa ironia
tem geralmente antecedentes morais; não ri-
dicularisa apenas, castiga quasi sempre, e
quando a paixão amorosa, o orgulho ou o
o Poema do Povo 33

desprezo a dita, torna-se invectiva sarcástica,


como havemos de vêr num capítulo à parte.
Aqui o Povo chasqueia o egoísmo dos
ricos, capaz mais absurdas exigências
das
(92), dos que repreendem os ví-
a irreflexão
cios alheios sem curar dos próprios, e, como
o seu espírito é humilde, chão e natural, mo-
teja a vaidade feminina com imagens duma
graça e precisão admiráveis (94, 95, 96), sa-
tirisando com gargalhadas francas a vaidade
das senhoras, 3. quem a moda transforma
em seres de artificio e monstruosidade (98,
99, 100).
Seguem-se alguns gracejos em cantigas de
desafio com expedientes ingénuos e até in-
fantis, a provar a prímitividade dos seus pen-
samentos (101, 102, 103, 104), e outras que
denunciam o poético arrojo da imaginação
popular (105, 106).
VI. Amor filial. Se o Povo, em geral, não
ri desintencionadamente, é porque o primeiro
e quasi exclusivo móbil de todas as suas acçõis
é o Amor. Não só o enlevado e estático amor
entre indivíduos de sexo diferente, mas tam-
bém o amor filial, de gratidão e respeito pelo
pai (107) mas, mais que isso, de carinho e
exaltado enternecimento pelas Mais, as san-
tas, as sagradas, as puríssimas Mais, cujo co-
ração como uma fonte de amor, se desentra-
nha em ternura, e sacrifícios perenes (108 a
114). Todo este pequeno canto é um formo-
síssimo indicio da riqueza amorosa da alma
34 Cancioneiro Popular

popular, tanta é a singela e pura fragrância


que respira e o religioso enlevo de oração,
em que se exalta.
VIL Religiosidade popular, É este um
dos aspectos, sob que o cancioneiro popular
é mais afirmativo de verdades originais. Um
povo que ama a Natureza e a representa
intrinsecamente movida de espírito amoroso,
para se guiar pelos seus ensinamentos, tinha
que reagir contra as hirtas e severas fórmulas
do catolicismo e transformar todas as ascéti-
cas representaçõis da divindade, que lhe pre-
garam, —o Cristo, a Virgem, os Santos,—
moldando-as, segundo o seu génio e com
arte irreverente, no tosco barro das cantigas,
O povo, sabedor das verdades eternas,
leva todas essas contritas e dolorosas divin-
dades a fazer as pazes com a boa Natureza,
reintegra-as no convívio do homem e.no goso
sereno das doces alegrias humanas, santifi-
cando apenas a pobreza, a humildade, o ino-
cente desejo, a fecundidade materna e todas
as virtudes do Amor.
Já Unamuno, observador do espírito por-
tuguês, proclamou o paganismo e o panteísmo
da nossa religiosidade, contraposto ao cató-
lico espírito castelhano. Essa afirmação docu-
menta-se claramente no nosso cancioneiro.
Até o culto do Sol, comum a todos os po-
vos arianos, cujos vestígios alguns mitólogos
vão buscar às festas de S. João e do Natal,
que coincidem com o Solstício do Verão e o
o Poema do Povo 35

Solsticio do Inverno, existe bem


evidente
no cancioneiro, quer isolado, quer fundido
com os símbolos cristãos. Haja em vista esta
curiosíssima cantiga, que nós deparamos na
Revista de Guimarães:

ORAÇÃO AO SOL

Vou-me despedir de vós,


Adeus, oh! Sol que te vais,
Deixais-me ficar sósinha
No meio dos pinheirais.

Oh! Sol, torna amanhã,


Eu quero-te ver nascer,
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer.

A seguir ha esta nota: «Esta oração só


deve ser dita ao pôr do Sol; a qualquer ou-
tra hora é pecado».
Perante este precioso documento não po-
dem restar dúvidas de que existam entre nós
restos daquele culto. Demais, em muitas can-
tigas aparece a expressão Sol divino, como
teremos ainda ocasião de ver. Outro curioso
documento mas este da fusão do mito solar
com o cristianismo ou do reaparecimento da-
quele sob as representaçõis cristãs, posterior-
mente recebidas, é o Terço da Aurora, coli-
gido nas Tradiçõis de Serpa, na Revista
Lusitana, por M. Dias Nunes e cuja notícia
queremos dar tal e qual ali aparece, por ser
muito significativa:
:

36 Cancioneiro Popular

O TERÇO DA AURORA
<íEsta cerimónia realiza-se por
religiosa
ocasião das festas em
louvor da Senhora dos
Remédios, Conceição, Prazeres, e também
pela Páscoa e Quinta-feira de Ascensão. Na
madrugada do dia em que a festividade se
celebra, os devotos que prim.eiro chegam á
respectiva igreja, saem em grupo, e vão de
porta em porta a procurar os seus confrades
retardatários, cantando
A ADORAÇÃO .

Os devotos que hão de vir a rezar o sa-


cratíssimo rosário de Maria Aurora —soberana podem
vir que é tempo— para que
que nos entregamos — ao esque-
esta

——Podem
não diga
cimento. vir que é tempo.

Depois de todos reunidos— todos os ir-


mãos particularmente convidados para toma-
rem parte no terço —
percorrem as principaes
ruas da vila entoando repetidas vezes em coro
e num ritmo extremamente arrastado e mo-
nótono o padre-nosso, â ave-maria e a gloria-
patri; tendo o cuidado de sempre que se
aproximam de qualquer igreja du de qual-
quer passo fazer um poiso e recitar o
OFERECIMENTO
Soberana, divina Aurora
Mãe do eterno Sole,
Quem como vós pudera,
Soccorrer-nos melhore!
o Poema do Povo 37

Quando o nado, recolhem á igreja


sol é
donde saíram, e ahi pronunciam em altas vo-
zes:
(Voz), Gloria patri, é filho, é desprito
santo,
(Coro). Secundire de príncipe, é de nunca
é semper, é de sedo sécloro. Amei; (^)
É de notar que a cerimónia se realisa de
madrugada até que o Sol é nado e a clara
substituição ou fusão da Virgem com a di-
vina Aurora e de Cristo com o eterno
Sol,
E essa Oração ao Sol nascente, conjura-
ção de bruxa ciumenta, exortando o Sol,
numa rajada de ardorosa paixão, a que lhe
sirva de intermediário e realise, com o divino
poder, os seus desatinados e raivosos dese-
jos!
Vejamos agora como a Virgem é repre-
sentada: atribuem-se-!he todos os encantos
físicos —
a beleza carnal, a graciosidade, a
frescura apetitosa (119, 120) e ora aparece
cortando o mar, num barco de flores, como
Vénus, ou, pelo Douro acima, como uma Ce-
res, de cestinha no braço, para fazer a vin-
dima (122, 121). Celebra-se-lhe a feminina
condição, que a obriga ás dores do parto, o
seu carinho protector pelo amor das aves, en-
volve-se em disvelos e exalta-se a sua mater-

(^) Tradições de Serpa, «Revista Lusitana»,


volume 4.0 pag. 105 e 106.
38 Cancioneiro Popular

nidade tanto mais santa, quanto é tão pobre


e humilde, que a doce Virgem para lavar o
Menino só tem as lagrimas dos olhos, para o
limpar a manguinha da camisa, e as manti-
lhas do rosto para lhe envolver o corpo pe-
quenino! (125 a 129).
O Cristo raras vezes se evoca na sangrenta
e dramática figura do crucificado, a expiar os
crimes duma raça maldita, e quando isso
acontece, nunca na cantiga solta, mas nalgu-
mas cantilenas de egreja, percebe-se a origem
culta da obra ou a sua restrita aceitação den-
tro dum publico devoto ou fanatisado.
O que o Povo canta carinhosamente é o
menino Jesus e frisando frequentemente (130,
132, 135 e 136) o motivo da sua predileção
-—a humildade do seu nascimento,

Num tempo de tanto frio


Desprezado e pobresinho.

Mas é tão humano esse deus, que tem «bo-


quinha de sangue e leite», «boquinha de re-
queijão», que apetece comer e num dia que
foi á fonte as heréticas moças deram-lhe açoi-
tes e obrigaram-no a chorar (133, 134, 137).
Noutra cantiga ainda (139) que ora se
aplica ao Anjo da Guarda, ora ao Senhor da
Serra, a divindade aparece unicamente como
um pobre deus das selvas, dando aos seus
o Poema do Povo 39

devotos a agua da fonte e a sombra dos cas-


tanheiros.
Os santos mais queridos do Povo, toda-
profusão de cantigas, que
via, a avaliar pela
os celebram, são S. João e S. António. O
conflito entre a tradição católica e a po-
pular aparece mesmo numa cantiga, em que
S. João é representado tendo, a custódia
numa das mãos, como convinha ao Precursor,
mas empunhando na outra um ramalhete,
mais próprio duma divindade pagã (142).
Mas é sob este último aspecto, que ele vive
na alma popular, moço e rústico pastor, de
figura e alma tão paganisada, que se permite
todas as aventuras duma divindade do Olim-
po, e partilhando a vida dos mortais, vai aos
montes colher braçadas de giesta para as suas
fogueiras, beija as raparigas, faz uma fonte de
prata para as ver, mistura-se nos seus diver-
timentos e desmanda-se a ponto, o bom do
santo, que lhe chamam velhaco (143 a 151)!
Emfim, o homem fez a divindade á sua
imagem e semelhança e agora, espelho dos
seus devotos, já pode escutar a súplica dum
dos fieis que lhe pede para fazer as raparigas
bem doidas (145).
Santo António, no mesmo altar, perde
toda a compostura, para acenar ás raparigas,
quando não vai até ao mato esperá-las (140,
141); e o nosso povo, tal qual o povo romano,
que ha dezenas de séculos maltratava os deu-
ses, quando estes o não atendiam, assim es-
40 Cancioneiro Popular

pança também o santinho, porque ele não


quer favorecer todas as exigências dos amo-
rosos (152).
E desde que os Santos são os intermediá-
amores dos homens e eles pró-
rios entre os
prios também amam, desejam e sofrem de
amor, como poderia o Povo deixar de olhar
irreverentemente para os sacerdotes católicos,
a quem a religião impõi preceitos tais, que
nern os santos acatam?!
É exactamente, por causa dessa imposição,
observa o Povo, que o padre é o que mais
namora e, vivendo em continua mentira, me-
rece da sua musa os mais acerbos e virulen-
tos sarcasmos (153, 154, 155, 156, 157, 159).
Mas esse protesto contra as falsidades
duma religião, que pretende desmentir a Na-
tureza, pode atingir a veemência lancinante
dum coração dilacerado pelo sofrimento.
É o caso da mulher, a quem roubaram to-
das as alegrias do amor e da maternidade,
para a enclausurar num convento e, que,
louca de dôr e saudade e ansiosa de vida li-
vre, canta essa dolorosissima elegia (160),
composta com o estalar das fibras dum cora-
ção despedaçado pelo desespero e onde de
quando em quando soam gritos sublimes,
como este:

Agora que aqui me acho


Metida nesta clausura,
Parece-me noite escura
o Poema do Povo 41

O meio dia,
O meio dia!

Este cântico evidentemente arcaico, ainda


hoje se canta com uma toada tristíssima em
todo o Portugal (^), e Teófilo Braga regista
no seu Cancioneiro popular {edição de 1867)
um outro muito semelhante, em que o mo-
tivo elegíaco é a vida do frade. Ainda que
nâo mantenha a unidade daquele, possui no
entanto este belíssimo passo:

Eu á força professei
Por meu pai assim querer;
Ser defunto, sem morrer
Amortalhado!

VIÍI. A
criatura amada. Vamos assistir
agora a umatransformação maravilhosa. O
homem, que nos seus humildes cantos nós
temos escutado até aqui de entusiasmo sa-
grado perante a Natureza, de louvor ao tra-
balho, de bravura heróica, ternura filial e vaga
religiosidade panteista ou cristã, pode ter
nesta ou naquela estrofe do seu poema he-
sitaçõis de forma e imagem, sempre que a

(^) Na minha terra adoptiva, S. João do Cam-


po, junto de Coimbra, o ouvi eu a mais que uma
pessoa.
:

42 Cancioneiro Popular

nebulosa criadora não prenda de todo nas


suas espirais o espírito do poeta.
Aqui não. Desde que o homem ama, pre-
sente-se que uma força prodigiosa o anima e
o seu cântico sai numa espontaneidade, fres-
cura, singeleza e rapto líricos duma elevação
sem mácula.

O Amor eis o primeiro, o maior e talvez
o exclusivo principio de inspiração para o
Povo:

Todas as águas que correm


Todas ao mar vão parar;
Todas as minhas cantigas
Ao meu amor vão a dar.

Assim se explica a superioridade lirica da


sua musa. Coligindo e coordenando as can-
tigas em que se pintam as perfeiçõis da pes-
soa amada, conseguimos formar esse exta-
siado retrato, em que a justeza e combinação
perfeita das cores se junta a um íntimo e pu-
ríssimo enlevo e que atinge a frescura de
imagens do Cântico dos cânticos, como nes-
tas duas límpidas cantigas

És como a prata lavrada,


Como o leite sem a espuma;
És perfeita, oh! minha amada,
Sem teres falta nenhuma.
.

o Poema do Povo 43

Os vossos peitos, menina,


Ambos de dois são eguais:
Não são altos, nem são baixos,
São como vós precisais.

IX. Confissão d'amôr. Vem após, pri-


meiro como uma névoa de ante-manhã, ru-
borisada de longínquos clarõis, a revelação
do amor. Que subtil delicadeza aliada ao sen-
timento da grandeza infinita do amor, que ha
neste alvorescente canto dum coração que se
oferta:

Quem embarca, quem embarca,


Quem vem para o Mar, quem vem?
Quem embarca nos meus olhos,
Que linda maré que tem?! . .

Por vezes num peito (e deve ser de mu-


lher) o amor e o pudor, a paixão e o respeito
combatem-se (189); até que o amor, como
mais forte, vence e afirma-se subitamente com
a jurada violência semítica dalguns trechos da
Bíblia (190), ou então com o clangôr épico
dum clarim, cuja harmonia se espalha por
todo o mundo e se ouve por toda a vida (192)!
O amor do português é essencialmente da-
divoso, define-se claramente como uma oferta
absoluta e constante de toda a vida (195, 203,
206); chega a dar-se no amor correspondido
:

44 Cancioneiro Popular

uma transfusão de vida, que o génio popular


traduz por imagens como estas

O sangue das minhas veias


Gira no teu coração;
Os teus braços são cadeias
E eu entrego-me á prisão.

Amor religioso, que vê o próprio Deus na


pessoa amada (207) e que torna o amante
juntamente, criatura e Criador, não só a es-
cravisada, absoluta pertença de outrem, em
corpo e alma (208), mas também a sua exal-
tação e condição única de vida (196).
X. Desejo e posse. Esse elevadíssimo
amor não é isento de desejo, antes por esse
motivo arranca da alma popular pequenos
cantos líricos, em que ele se afirma em ansie-
dade ideal (209) ou em suavíssimas queixas,
em que o amoroso inveja o linho que passa
pela boca da sua amada ou as contas do colar
que lhe descançam no seio, (212, 213) para
logo, em arrojos de imaginação, se julgar, no
desejo da amada, como a verdizela «que se
enleia pelo trigo» (211).
Vêemdepois os sonhos, as ternas con-
fidências,os doces pedidos e propostas de
amor (226, 219, 227, 230), as súplicas auda-
ciosas, como nesta cantiga em que a delica-
deza e a malícia se dão as mãos com inexce-
divel perfeição (229):
o PoEM.v DO Povo 45

Deixai-me ir com as mãos ambas


Ao talho do teu colete,
Á parte mais delicada,
Onde pois o ramalhete.

Por vezes o desejo é duma violência quasi


brutal (233), até que a ideia da posse apa-
rece, como sanção moral do amor (234) e a
seguir a mulher exprime a profunda pertur-
bação dos sentidos causada pelos beijos do
amado e este a doçura dum beijo que lhe fica
perenemente a saber nos lábios (235 e 236),
ou a arrebatadora alegria sensual da posse
(238, 240, 244).
XI. Ironias, sarcasmos e pragas de
amor. Do amor, dos ciúmes, das desilusões,
enredos e ingratidõis nascem tanto as iro-
nias de puro gracejo, como a invectiva de in-
dignada veemência. Assim, esta parte é uma
continuação das máximas morais. Atravez dos
sarcasmos e das pragas, entrevê-se o princí-
pio moral —lealdade, constância, fidelidade,
— ditando os seus protestos ou lançando a
maldição sobre os que transgrediram as leis
sagradas do Amor.
É de notar aqui a felicidade e riqueza de
imagens (245, 262, 264, etc.) e a violência
da linguagem, que sob a forma popular de
jura ou praga, se pode comparar às desespe-
radas expressõis de génio do Livro de Job
(268, 272, 273).
XII. O Amor, Eis-nos na região das altu-
46 Cancioneiro Popular

ras, esubindo sempre Do alto a paisagem


. . .

contemplada vai-se alargando ilimitadamente


e, para alem das últimas fugidias cristas dos

montes, o olhar embebe-se na imensidade


azul. É que o homem, quando espontanea-
mente se revelou a essência do Amor, reco-
nheceu que era dentro de si a divindade.
O amor é uma lei natural: e pelo mesmo
motivo que o campo se recama de flores e o
Céu é cheio d'astros é que o amor nasce no
coração da mulher (274, 275). Mais: a pró-
pria essência da vida e o Amor (280):

Só amando é que se vive

e quem não ama, triste dele,

Vivo está na sepultura,

E, porque ele é o único valor da vida, an-


tes a morte do que viver sem amar (281):

Mais vale morrer d'amôres,


Do que sem eles viver.

Por via do amor e da pessoa amada é que


os astros gravitam (278):

Nasce o Sol para adorar-te,


Dá volta ao mundo por ver-te,

o Poema do Povo 47

e é pelo amor, e só por ele, também que o


tempo adquire realidade (279):

O dia tem duas horas,


Duas horas, não tem mais:
Uma é quando eu vos vejo,
Outra, quando me lembrais.

Uma força misteriosa regula os movimen-


tos ocultos dos coraçõis, que se aproximam e
nas mãos do poderoso Destino o coração do
homem vai, arrastado, como um pedaço de
madeira sobre as aguas impetuosas (283).
E então, sob essa omnipotente força, as duas
vidas fundem-se unem-se os coraçõis, o san-
:

gue vasa-se na mesma onda, os próprios


olhos se desconhecem de se misturarem na
contemplação (285, 287, 288, 289) e quando
a solicitude do amor é sequiosa de se entre-
gar em carinhos, que arte subtilima! hesita,
porque não sabe a qual dos dois coraçõis se
dirigir (286):

Dois coraçõis, que se amam,


Unidos fazem um só;
Ambos eles estão feridos:
De qual dos dois terei dó?!

Fusão de vida, multiplicação de energias,


potenciação súbita do espirito! ... e eis que
o Amor atinge a divindade, com todas as
suas miraculosas virtudes (293):
!

48 Cancioneiro Popular

Quando António vai à missa


A egreja resplandece,
A herva que António pisa,
Se está seca reverdece!

Qual o poeta culto que jamais excedeu a


profundidade lírica deste pequenino poema,
latejante dos poderes ocultos do Amor?!
Simí o Ámôr investe a pessoa amada com as
!

supremas virtudes de Deus; por ela «se sal-


vam as almas» (296) e ela também, como
Cristo, pode dizer a Lázaro (294):

Resuscita que aqui estou

E eis que as Almas, na consciência da sua


divindade, partem unidas para o Ceu (292),
voam arrebatadas e pelo esforço das suas
misteriosas energias, o Amor torna-se eleva-
ção épica, levitação deslumbrada pelo éter
azul (298):

Subi com a minha amada


Té onde ninguém se viu;
As nuvens diziam: basta.
Até qui ninguém subiu!

E, atingida a consciência sublime, épica,


divina, o Amor revela-se em violência apai-
xonada, com a presença directa das grandes
forças da Natureza (300) e, trasbordante de
si mesmo, define-se como de essência dadi-
!

o Poema do Povo 49

vosa (302) e, encapelado e tumultuoso, em


seu poder de exaltar a pessoa amada, com-
para-se às temerosas torrentes que alagam de
vida as florestas (303):

Meu coração é um rio,


Cheio d'água, mete medo;
Seca-se o meu coração,
Rega-se o teu arvoredo!

Na sede de se dar, o amante quer realisar


os supremos sacrifícios: dar a vida pelo
objecto amado (304, 305); tecer-lhe as ale-
grias com tormentos e lágrimas de sangue
(306); esquecer-se de si a ponto de amar as
mesmas ingratidõis de seu amor chorar tris-
;

tissimamente, quando mulher abandonada,


pela certeza de que o amante não encontrará
nenhuma outra, que lhe queira tanto bem
(309); ou oferecer-se, enlouquecida pelo an-
seio de sacrifício, para dilacerar a carne, num
grito lancinante de paixão dolorosa (310):

Se os meus olhos te dão pena,


Tira-os e deita-os ao chão;
Não quero ter no meu corpo
Coisa que te dê paixão

Amor ínexgotavel, sempre inédito e egual-


mente poderoso, floridocomo uma eterna
primavera (316) e capaz também de en-
cher de flores o coração alheio (311). . .

Este amor exalta a vida interior de modo


50 Cancioneiro Popular

que o amante tem diálogos com o próprio


coração, forma de se dirigir à criatura amada
(318), interiorisa-se, a ponto que deseja viver
a sonhar, encerrado em si mesmo, vendo, de
olhos fechados (319):

Olhos, que sonhando vedes,


Olhos para que acordais?
Se vós, sonhando, estais vendo
Tudo quanto desejais?!

ou sente,em noites de misteriosa emoção,


um desabrochar de todas as rosas dentro da
Alma extasiada (320)!
A
vida íntima do Amor decorre em regiõis
inacessíveis à palavra e daí toda uma lingua-
gem amorosa, que se escuta por adivinhação
ou se lê na Alma, atravez as confissõis trans-
parentes do olhar (321, 322, 323, 324, 325,
etc), quando não é a amaviosa linguagem
das ternuras e carinhos, ora velados e pro-
fundos numa linguagem de mistério e eleva-
ção (348), ora claros e doces como um afago
duma pureza lírica de veio d'água refrige-
rante (346, 347, 349):

Oh! que calma está caindo


Por cima dos ceifadores!
Quem fora ramo de palma,
Que cobrira os meus amores!

Fidelidade e constância, A firmeza


XIII.
de sentimentos, condição essencial do cara-
o Poema do Povo 51

ao menos outrora, característica do


cter, foi,
No amor, o que não é de
espírito português.
forma nenhuma menos representativo, vem o
nosso cancioneiro afirmar exuberantemente
essa rijeza austera do caracter popular, tra-
duzindo-se em fidelidade e constância, ca-
paz de afrontar desgraças, perigos, maldiçõis,
a própria morte. Quisemos, assim, formar um
cântico à parte,, quanto mais que não des-
merece em beleza dos cantos anteriores. A fi-
delidade no amor encontra por vezes a
sua suprema expressão, oferecendo-se, por
alternativa única, a Morte, como naquela
cantiga (366) em que uma donzela exclama:

Eu aquela que disse:


fui
«Ou contigo òu com \a terra!»
Sé não cazasse contigo •

Queria morrer donzda.

Na própria maneira de separar a frase mais


expressiva, ha uma
admirável intenção ar-
E a ligação inquebrantável de duas
tística.

Almas ligadas pelo Amor, dranaâtisa-sè. pela


ameaça da separação e buscã;''paíá se definir,
a imagem fúnebre da agonia, árripi^nte de
sagrado pavor (383):

P meu coração dò tçu


É mui ruim de apartar;
É como a alma do corpo,
Quando Deus a quer levar.
52 Cancioneiro Popular

A felicidade
XIV. do lar e a ternura
maternal A felicidade do lar, quando alegria
conjugal, raras vezes inspira o Povo, como é
fácil de calcular pelo reduzido numero de
cantigas, que neste cancioneiro se lhe refe-
rem. A Alegria não é a musa predilecta do
nosso Povo, muito mais quando, como no
caso presente, se traduz em serenidade e paz
fecunda do casal.
O amor materno, esse, mais dado a trans-
portes e carinhosos delírios, ele, que é uma
fonte inexgotavel de inspiração moral, tor-
na-se também inspiração poética, trémula,
embaladora, receiosa, na boca das Mais. Can-
tigas de adormecer, beijadas, resadas, cicia-
das. tão santas, que as Mais, ao canta-las so-
. .

bre o berço dos filhos, estancam as lágrimas


para não cortarem a voz de soluços (389) e
em seu extasis. maternal, para que alguém as
entenda, falam com os anjos e as aves, suas
irmãs em pureza e amor! (386, 391, 392,
394, 396) (^).
XV. A Saudade, Dizíamos ainda ha mo-
mentos que este poema era uma continua
ascenção: mais alto, sempre mais alto...

(') É fértil em cantigas de berço o nosso can-


cioneiro. Nós escolhemos apenas para aqui algu-
mas das mais belas. Se algum dos nossos leitores
desejar mais desenvolvidamente conhecer este ca-
pítulo do cancioneiro, queira ler as Cançõís do
Berço de Leite de Vasconcelos, Revista Lusitana,
vol. X.
o Poema do Povo 53

Contemplámos a alma popular em altura;


vel-la-hemos agora em profundidade.

As saudades são raizes,


Que alcançam grande fundura,

diz uma cantiga: são as raizes do amor, cuja


florde mistério exala o perfume pelas alturas.
A ausência é a tentação da montanha: foi
ao alto e quiz descer o Amor. Com as mãos
enclavinhadas esforçou-se demoniacamente
por arranca-lo das puríssimas culminâncias,
mas tão arraigado ele está, que a cada novo
empuchão, mais vitoriosamente se lhe ergue
o corpo lacerado (408):

Como o vento é para o fogo


É amor:
a ausência pro
Se é pequeno apaga-o logo,
Se é grande torna-o maior.

O verdadeiro, o mais alto amor revela-se


pela ausência: é a Saudade; e a musa popular
vai até à afirmação de que (397)

Aonde não ha saudade


Não pode haver bem querer.

E, se o Amor é de essência divina, a sua


divindade tanto pode revelar-se pela presença
corpórea da pessoa amada, como pela Saíi-
dade, que é a sua presença espiritual:
54 Cancioneiro Popular

De qualquer forma que existas


És a mesma Divindade:
Ventura, quando te vejo,
Se te não vejo, Saudade.

As almas conhecem-se, ha laços invisíveis


que as prendem (399) e só se podem revelar
pela Saudade, que é a sua visão directa em
beleza e perfeição ideal (404).
ASaudade é definida até como a luta do-
lorosa e feliz pelo ideal (400):

Quem adora o impossível


Que esperança pode ter?
Vive numa saudade,
Gosa pena até morrer.

A sua angustiosa aflição volve-se num es-


tado de visão telepática o seu misterioso po-
;

der destruiu o espaço e a mulher que ama


pode ver ao longe o seu amado (409) e até,
pelo esforço da vontade, partir, atravessar o
mar e socorrê4o no momento do perigo (410,
414): a Saudade tornou-se o drama épico do
Amor!
Fundiu-se a ausência e a presença, a dor e
a esperança (401) e a Saudade é um clarão
de sol-posto (406), é a escuridão aflitiva, nim-
bada dum esplendor ideal (407):

Passei pela tua porta,


Não te vi, oh! alma minha;
Fiquei comiO a noite escura,
Metida na nevoinha!
o Poema do Povo 55

Assim como o Povo personifica o Amor,


assim personifica a Saudade e dirigindo-se à
criatura amada, chama-llie «minha saudade»
tal qual, como diria «meu amor», o que
exemplificamos neste cancioneiro com três
cantigas, que não sendo da mais elevada
inspiração, são, todavia, necessárias para do-
cumentar este facto.
É
riquíssimo o cancioneiro da Saudade, já
quando traduz o momento lancinante da des-
pedida nalgumas cantigas, que são puros gri-
tos de agudíssima aflição (427, 430, 432,
etc), ora, tornada solicitude que acompanha
a pessoa amada, em extremos de carinho
(446, 447) ou nos ternos expedientes, que
imagina para lhe comunicar os seus cuidados
e pensamentos de amor (448, 449, 450, 451,
452, etc).
A Saudade, expressão suprema do Amor,
não se rende às violências do Destino, e ar-
dendo na pura chama do sentimento, a alma
popular prefere a morte —
morrer de sau-
dade —
a ter que negar o divino Amor. Mor-
rer de amor e morrer de saudade são casos
passionaes quasi vulgares nas nossas cantigas
(417, 418, 419, 420, 421, 422, 424, 425,
426).
É que a Saudade, não vimos, um
é, como
sentimento acidental, mas sim o esplendor
ideal do Amor, a sua face religiosa que só
por si constitui para a metafísica popular uma
fonte de imortalidade (560).
: :

56 Cancioneiro Popular

Queadmira, assim, que nos seus anseios


atinja imagens poéticas sublimes e, inebreada
da sua deliciosa tortura, crie o desejo de
poisar nos altos, e exalar o melindroso per-
fume, como a flor agreste da esteveira, ao
vento da imensidade (467)

Quem me dera estar tão alto,


Como a esteveira na serra,
Que avistara o meu amor,
Onde quer que ele estivera.

XVI. Desgraça de amor, Á elevada e


aguda sensibilidade, à melindrosa delicadeza
de Alma corresponde, como era de razão,
o amor desgraçado, ensombrando a poesia
popular dum tom elegíaco dominante. A
desgraça do amor traído, maltratado ou fe-
rido de morte, vasa a sua dor nos moldes da
elegia. São queixas duma infinita plangência
revestindo as formas delicadíssimas (469,
473, 485) coração que se lamenta, mas
dum
não acusa, ou adoçando-se na resignação ex-
trema de quem se entrega nas mãos de Deus
(490), ou subindo até à piedade pelos males
do coração que nos agravou (475), logo ve-
lado de humildade e receio de maguar, quei-
xando-se (478)

Já os atalhos tem herva


Depois que aqui não vieste;
Dize-me, amor da minh'alma,
Que agravo de mim tiveste?
; :

o Poema do Povo 57

enfim, turvo de tão maguado abandono, que


nos sentimos invencivelmente tomados da
mesma pungente agonia, pelo poder do seu
doloroso queixume, cuja sublime inspiração
é tão molhada de lágrimas (495)

A minha amada morreu,


Eu já não a torno a ver
A flor no campo renasce,
Ela não torna a nascer!

XVIL Tristeza, A delicadíssima impressio-


nabilidade, gerando os amores desgraçados,
pode também por infortúnios de toda a na-
tureza lançar as almas na tristeza. Somos de
opinião que as grandes desgraças nacionais
que desde o fim do XVI século tem afligido
a Pátria,roubando-nos as grandes alegrias
colectivas dos Povos que de facto vivem,
teem contribuído profundamente para criar
esse fundo de tristeza, que entenebrece a
poesia do Povo.
É bem verdade que essa tristeza pode ser
mui diversamente motivada. É algumas vezes
o sentimento da inferioridade a que um fadi-
goso e mal recompensado trabalho condena
tanto o homem como a mulher (518, 519);
outras vezes a fealdade e a pobreza reunidas,
que inspiram a uma rapariga este sentido
queixume contra o Destino (522):
58 Cancioneiro Popular

Sou feia, não tenho graça,


É disforme o corpo meu,
Não tenho bens de fortuna:
Mas que culpa tenho eu?!

ou o abandono da engeitada, que nunca co-


nheceu carinhos de Mãe e cuja alma, infinita-
mente deserta, grita a sua sede de morte (533):

Oh! quem me dera ter mãi,


Embora fosse uma silva,
Inda que ela me arranhasse.
Sempre eu era sua filha!

Mas, em geral, não é esta a tristeza das can-


tigas do Povo: é, sim, uma tristeza, que des-
conhece a sua origem, profunda e brumosa,
subindo do coração e abafando a voz, como
a névoa dos rios que empana a luz da manhã.
Ainda assim, não é aqui, na alma do Povo,
que se deve procurar a «apagada e vil tris-
teza», porque a sua é nobre e alevantada.
Nalgumas dessas cantigas (527, 528), como
esta, mistura de desafio e revolta (529):

Oh! triste sombra acompanha-me,


Desgraçados dai-me a mão;
Venha tudo o que for triste
Afligir meu coração!

a alma afronta a Desgraça e compraz-se com


a imensidade da Dor porque lhe admira a
grandeza.
o Poema do Povo 59

Mas um Povo, que criou este canto do seu


Poema, sente-se que tem grandes e seculares
feridas no coração e que essa brava energia
com que afronta as próprias dores, bem esti-
mulada e dirigida, seria o melhor remédio
para as cicatrizar de vez.
XVIII. A Morte e a Eternidade do Amor,
Eis-nos chegados ao último, ao supremo
canto deste Poema. Aqui, a alma do Povo
vence as mais elevadas culminâncias e junta-
mente abisma-se nas derradeiras profundida-
des; aqui, a Morte representa-se como a
suprema Justiça; aqui, perante esse mal irre-
mediável, afrontando o inimigo invencível, o
coração do homem, pelo poder épico da
Saudade, ergue o Amor vitoriosamente para
além da própria Morte; aqui, o homem, no
rapto da inspiração dramática, fantasmisa-se
e na figura pávida dos desenterrados, vem,
já de Alem-Mundo, afirmar a eternidade, a
essência religiosado Amor!
•Tal como o Amor, a Morte é uma lei na-
tural, perante a qual o ser corpóreo tem de
se curvar com resignação (538), mas essa lei
inspira-se num pensamento de elevada justiça,
e todas as ostentações, vaidades, diferenças
sociais, desaparecem, misérrimamente eguala-
das pela Morte (544, 545, 548):

Debaixo da terra fria


Todos nós somos eguais.
60 Cancioneiro Popular

de sorte que dos restos do homem, tornados


cinza, fundidos no pó comum, não resta o
mais humilde sinal sobre a face da Terra
(539, 546)!
Por um momento,ao lembrar-se que a
terra vai comer amada,
a carne formosa da
que foi o gostoso alimento dos seus desejos,
o homem tem um assomo de revolta (541);
e se atenta, porventura, em que essa mesma
terra irá devorar a tenra e mimosa delicadeza
dum corpo de criança, dum anjinho, a sua
alma desata-se numa queixa, que é um fio
puríssimo de lágrimas, de piedade, carinho e
amargura (542):

Oh! adro, terra de egreja.


Onde se enterram anjinhos,
Oh! terra, que estás comendo
Corpos tão delicadinhos!

Masquê! que importa a piedade humana


à terrível e impiedosa Morte, se a sua foice
pode também ceifar na ceara dos mundos e
a nossa Terra, sob a infinita lamina, é como a
chama, que mal bruxuleou, já vasqueja para
morrer (549):

Nós cuidamos que este mundo


Que nos dura para sempre;
É uma luz que se acende
E se apaga de repente!
!

o Poema do Povo 61

Sim! tudo é vão, efémero, transitório pe-


rante a Morte; mas, esperança suprema! o
Povo afirma numa iluminação íntima, tradu-
zindo-se em formas riquíssimas, que o Amor
vencerá a Morte, dilatando-se para alem da
Terra e do Tempo, por toda a Eternidade.
Toda a Eternidade repare-se, porque
. . .

Antes da noite ser noite,


Antes do dia ser dia.

(552) na caótica indecisão do Cosmos, ou no


seio de Deus, já os coraçõis dos amantes an-
siosamente se buscavam e morriam um pelo
outro
Essa sublime cantiga é o complemento da
outra célebre quadra, traduzida por Byron e
Musset, uma das mais belas do nosso Can-
cioneiro:

Chamaste-me tua vida,


E eu tu'alma quero ser;
A vida acaba co*a morte,
A alma eterna ha de ser!

Mas como estas, ha um feixe de formosís-


simas cantigas, com que este Poema termina,
egualmente repassadas dessa insaciabilidade
amorosa, pequeninas epopeias, batidas dum
sopro religioso e rimadas com o próprio vôo
62 Cancioneiro Popular

arrebatado de duas asas, que escalam vitorio-


samente o Ceu.
Pela essência e sublimidade emotiva não
são inferiores àquela e nem pela essência, nem
pela pureza da forma lhe cedem essas, em que
o homem, já afirmada a eternidade do Amor,
se queixa, na sepultura, dos males que os vi-
vos lhe causam (562) ou surge d'alêm túmulo,
espectro, transido d'Amôr, para dar o último
adeus à pessoa amada (563):

Já morri, já me enterrei,
E agora já estou aqui;
Nem a terra me comia
Sem me despedir de ti!

O drama tornou-se epopeia; mas os actos


do herói, transcendendo a Vida, realisam-se
no Mistério. É a victoria definitiva do Espí-
rito,o triunfo do Amor invencivel. A alma
despiu-se de todas as aparências, desfez-se
o corpo em cinza, sumiram-se as riquezas, tom-
baram de rastos no pó as ambições e as
vaidades e sobre a destruição de todas as
coisas efémeras o Amor ergue a voz e canta
a sua eternidade.
Ah! mas nós podemos ainda, acompa-
nhando os voos dessa imaginação arrebatada,
ao desaparecimento da própria Terra,
assistir
que aliínentou os nossos sonhos, e, chama de
luz passageira, tão depressa se ergueu, logo
o Poema do Povo 63

se extinguiu, quando, como um deus es-


e,

tranho à sorte dos astros, contemplamos as


cinzas do Mundo, vemos que ha uma braza
ainda, que lampeja, entre os destroços fume-
gantes, clarões de relâmpago: —
é o coração
dos portugueses, que ha de ficar por toda a
Eternidade ardendo em puro Amor!
III

CONCLUSÃO

CHEGADOS que somos ao fim do nosso


estudo, — a que chamamos crítico, à
falta de palavra melhor, e que, a
não ser a demasia das palavras, melhor-
mente seria chamado estudo de interpretação
e análise estética, — escarvoado a largos tra-
ços, podemos resumir ainda algumas obser-
vaçõis gerais sobre o Cancioneiro do Povo.
Certas conclusõis a que chegamos deviam
ser conjugadas com os elementos epo-histó-
ricos fornecidos pelo Romanceiro e com os
elementos musicais, que o estudo das melo-
dias populares nos ha de certamente trazer
a confirmar as afirmaçõis do Cancioneiro.
Infelizmente quanto ao Romanceiro, ha
ainda muitos problemas a resolver, sem o que
se não devem inferir conclusõis fáceis da sua
leitura, e quanto às melodias populares, reco-
lhidas apenas numa pequeníssima parte, estão
quasi inteiramente por estudar. Para o com-
pleto estudo da poesia épica do nosso Povo, é
66 Cancioneiro Popular

indispensável o estudo dalguns romances, cuja


originalidade é em parte ainda muito debatida.
Uma primeira conclusão nos dá a leitura
deste cancioneiro:a extrema simplicidade
morfológica das nossas cantigas. Quasi po-
deríamos dizer que o tipo único de versos é
a redondilha maior e da estrofe, a quadra.
Originalidade? Não, porque a quadra em
redondilha maior é comum, a quasi todas as
naçõis da Europa. Pobreza? também não,
porque, se é certo que ha no Cancioneiro
dos outros povos maior variedade morfoló-
gica, talvez em nenhum outro a quadra atin-
gisse a perfeição do nosso. No hespanhol,
por exemplo, em que ha maior variedade de
formas poéticas, a quadra não atinge a per-
feição do nosso Cancioneiro as rimas toantes
:

são em muito maior número que nas nossas,


chegando quasi a egualar o numero das rimas
consoantes e até as próprias toantes são
muito mais imperfeitas. Também o nosso
Povo, quasi reduzido unicamente a esse tipo
de verso e estrofe, conseguiu o máximo de
emoção pensamento no mínimo de frases
e
poéticas.Ora na mesma quadra se formula a
pergunta e se dá a resposta, num começo de
realisação teatral, como por exemplo:

Oh! meu amor, meu amor.


Quando me has de tu esquecer?
— Quando Deus me não der vida
Nem olhos para te ver.
Conclusão 67

ora se exprime um pedido, seguido da sua


imediata realisação:

Deita-te daí abaixo,


Meu sol, minha luz, meu bem.
Eu te apararei nos braços.
— Ai! Jesus, que ela lá vem!

ou todo um pequenino drama se resume


numa cantiga:

Abre-me a porta que eu morro;


Não abras que eu já morri:
Já que foste assim ingrata,
Fica-te agora sem mim!

Já morri, já me enterrei
E agora já estou aqui . . .

Quanto à essência, as maiores conclusõis


a tirar são asque dizem respeito ao senti-
mento e ao Amor. Existem no
religioso
nosso Cancioneiro elementos vários para o
estudo do religiosismo popular lusitano. O
que desde já podemos afirmar é que esse
religiosismo está em oposição ao catolicismo,
pois é antes, nas suas mais elevadas manifes-
taçõis,de forma panteísta. Para o português
o Amor é de essência divina e manifesta-se
em toda a Natureza; e o próprio Amor ou a
Saiidade é a origem da imortalidade da Alma,
que se eternisa para amar eternamente dum
68 Cancioneiro Popular

Amor, divino na sua humanidade, e nunca


para os perpétuos castigos do Inferno ou as
perenes glórias do Ceu.
Se é certo que o cancioneiro do Povo re-
vela egualmente o amor à Natureza e ao tra-
balho e virtudes de esforço sofredor e heróico
aliadas a um superior sentido moral, a
verdade é que o tema predilecto da sua
poesia é o Amor e um amor único, ja-
mais sentido ou cantado pelos outros povos.
De velha data que estrangeiros e nacionais
observaram o natural amoroso, o tempera-
mento amaviôso, o exclusivo ou predomi-
nante sentir da saiidade e o «morrer d'amor»
dos portugueses. Seriam demoradas e quiçá
duns e outros, desde
fastidiosas as citaçõis
Cervantes a Edgar Quinet e de D. Duarte ou
D. Francisco Manuel de Melo á Senhora
D. Carolina Michaêlis de Vasconcelos. A um
caso único não fugiremos.
Pela leitura deste cancioneiro conclui-se
que o amor dos portugueses é sentimento
religioso e de essência divina, e em conse-
quência de caracter absoluto. O Amor tem
em si mesmo a sua causa e fim: amar por
Amor e para o Amor, sem que outro fim seja
necessário invocar a legitimá-lo. Ha ainda no
nosso amor uma ternura bem nossa, em que
um delicadíssimo desejo dos sentidos se alia
a uma profunda ansiedade ideal, traduzin-
do-se tímido encantamento, em volúpia
em
sagrada e extática adoração. Em certas canti-
:

Conclusão 69

gas d'amôr o desejo ergue-se como uma


nuvem de místico incenso e os versos can-
tam, arrulham, ciciam com o murmúrio com-
binado das orações e dos beijos.
A Saudade, «sentido do coração», no ilu-
minado dizer de D. Duarte, é o mais alto
amor, porque vê em espírito e perfeição e o
seu drama épico, por ser a contínua vitória,
continuamente dolorosa, porque, iludindo o
espaço, vence na Vida e, transcendendo o
tempo, vence na Eternidade. E como é abso-
luto, o Amor não tem princípio nem fim: en-
volve-se abismalmente num círculo eterno.
Jamais esse profundo anseio de eternisar
o Amor se nos revelou com tamanha agu-
duza e profundidade, como na poesia portu-
guesa e designadamente na popular: apenas
uma vez esse mesmo alto pensamento nos
surgiu animando versos sublimes em obra
estrangeira: foi nalguns sonetos de Mrs.
Elisabeth Barret-Browning, a maior de quan-
tas Poetisas conhecemos. Um deles termina
assim

I love thee with breath,

Smiles, tears, of ali my life! and, if God choose,


I shall but love thee better after death.

SON. XLII

Amo-te com o sopro da respiração, com os


sorrisos e as lágrimas, com toda a minha vida! E,
se Deus o permitir, amar-te-hei ainda mais depois
da morte.
70 Cancioneiro Popular

E outro:

But love me for love's sake, that evermore


Thou may'st love on trough Iove's eternity.

SON. XIV

Antes me ames pelo amor de amar, para que


possas amar-me eternamente, na eternidade do
amor.

Mas a esses sonetos, a autora do poemeto


Catarina to Camoens, adeus de Saudade,
dirigido por Catarina ao poeta exilado, deu o
título de Sonnets from the Portuguese, so-
netos portugueses, indicando assim clara-
mente a origem do profundo espirito que os
animou.
Que seja este o núcleo mais resistente e o
rosto original e inconfundível do espírito por-
tuguês é para nós induvídavel verdade. A
arte popular, primeiramente é a mais original
por menos influenciavel; nem escolas, nem
correntes, nem ideais literários e até, desgra-
çadamente, uma isoladora ignorância secular
tem furtado o nosso Povo à mínima parcela
de cultura do espírito. Se alguma influência
houvéssemos de buscar-lhe teríamos que se-
guir-lhe a memoria ancestral, atravez do san-
gue, até remotas origens étnicas. Essa
às
influênciadeve existir, mas não virá provar,
assim o julgamos, nada contra os assertos
da nossa originalidade espiritual. A arte po-
Conclusão 71

pular é, pois, por mais original, a mais ver-


dadeira.
E, como tal, a virtualidade íntima e aparte,
que surge do nosso cancioneiro popular está
confirmada na literatura e realisada na histo-
ria. Quanto á história, considerai: o mesmo

anseio de eternisar o amor que alarga e bate


as azas na cantiga popular é que leva o alu-
cinado D. Pedro a escrever sobre o túmulo
de Inês, na pedra, religiosamente lavrada pela
sua paixão aquele trágico adeus: «Até ao fim
do mundo » mais tarde o Conde de Avran-
;

ches a exclamar para o infortunado amigo e


Infante D. Pedro «... Se as almas no outro
:

mundo podem receber serviço uma das ou-


tras; no dia da vossa morte, a minha irá
acompanhar e servir para sempre a vossa!»
e ha de um dia fazer com que esse Povo,
porque lhe roubam a glória, durante séculos
fique sonambulamente fiel ao último rei que
a representou!
Trabalho, virtude, amor, heroísmo e reli-

gião, tudo aqui está.


Poetas, navegadores, heróis e santos, todos
eles, os lusíadas, vieram aqui beber o san-
gue no coração do Povo.
Estes são os Lusíadas do Povo, os Lusía-
das eternos, porque daqui nascem e nasce-
rão os fastos de todas as nossas epopeias.
Vejam que o sentido épico existe latente no
espírito do Povo: quando ao seu esforço
arrancaram a epopeia nacional, fez do último
72 Cancioneiro Popular

heróium culto religioso de Saudade e por-


que lhe deixaram para a actividade suprema
do espírito unicamente o Amor, fez desse
sentimento uma epopeia!
Venham aqui os heróis e os poetas d'hoje:
leiam, decorem este Poema.
Sente-se por vezes que estamos nos cumes
duma montanha: elevação, pureza d'ambien-
te, o largo sopro que toca as alturas, a verti-
gem e o frémito dos sublimes entusiasmos,
tudo nos afirma que nos acercámos dalguma
grande verdade eterna e entra comnosco á
orgulhosa convicção da própria grandeza.
Tudo quanto pode tornar excelso um poeta
aí está: é o relevo da imagem directa, a vio-
lência aguda da expressão, a verbalisação de
estados d'alma indefenidos, a exactidão do
conceito, a leveza na ironia e a largueza no
voo, enfim o que torna a forma clara, concisa,
própria, a única capaz de definir certa emo-
ção ou pensamento. Esse mesmo poder se
revela na excelência dos afectos e elevação
dos pensamentos; que profundidade e fir-
i

meza no sentir, que intima e melindrosa deli-


cadeza nos impulsos da alma, que extra-
nha consciência das mais ocultas forças do
espirito, que instinto directo da grandeza do
Universo, da imensidade da Vida que passa e
que sublime intuição do mistério divino que
nos rodeia!
Não! Não é decerto a bárbara e dramática
violência do hespanhol, não é também a ele-
Conclusão 73

vação metafísica, que, a espaços, ilumina al-


guns cantos franceses ou o instincto da li-
berdade, a comunicação com a Natureza, o
poder imaginoso da Germânia ou o alado
arrojo de certos cantos italianos.
Mas nós temos uma segurança e energia
tão funda de Amor, de tão carinhoso e timido
enleio, e um tão alado [anseio de o eternisar,
como nenhum outro. Criámos também um
fundo sombrio ao nosso espírito em que entra
o receio de quem aperta ao coração o objecto
amado, a defendê-lo da morte, e a elevada me-
lancolia da Alma que comunica secretamente
com o Mistério.
.
Dissemos, a principio, que este livro daria
aos que atentamente o lessem, uma grande
lição.Voltamos a afirma-lo: este livro é uma
bela lição de Esperança quando surgirá en-
:

fim a geração, que reconhecendo a seriedade


e arraigada profundidade afectiva deste povo
lha saiba encaminhar para os nobres desti-
nos?!
ANTOLOGIA
A NATUREZA E A TERRA NATAL

Sou gaivota, sou gaivota


E venho da beira-mar;
Trago cantigas na boca
Pra quem não souber cantar.

Oh! terra, que tudo crias,


Oh! terra, que tudo comes,
Oh! terra que has-de dar conta
Das mulheres mais dos homens.

Quem disser que o sol que chora.


Digam todos que é mentira;
Como pode o sol chorar.
Se ele é o rei da alegria?!

Oh! noite que vaes crescendo.


Tão cheia de escuridão.
Tu és a flor mais bela
Dentro do meu coração!
78 Cancioneiro Popular

Eu sou filho das estrelas,


Junto do Ceu fui criado,
Perdi-me na noite escura,
Fui em teu peito encontrado.

Já chove água das nascentes


Já correm os regatinhos;
Já os campos são contentes,
Já cantam os passarinhos.

Desceram do ceu á terra


Dois anjos embaixadores
A buscar a Primavera,
Que lá no ceu não há flores.
8

Embarquei-me no mar largo,


Já perdi vistas á terra,
Já não vejo senão Céo
Agua e vento que me leva!

Minha mãe é uma ribeira.


Meu pai um rio corrente;
Sou filho das aguas claras,
Não tenho nenhum parente.

10

Oh! linda estrela do norte


Para onde caminhais?
Caminho para o nascente
Pra onde correm as mais.
A Natureza e a Tei^ra Natal ?§

11

Muito lindo é o Ceu,


Todo cheio d'alegria;
Lá não ha noite, nem sombra,
Tudo é um claro dia!

12

O passarinho no bosque
Busca algum da sua cor;
Mostra em tudo a Natureza
A doce união do amor.
13

O rouxinol canta alegre


Por ter a dama no ninho;
Olhem como é constante
O amor dum passarinho.
14

Até os peixes no mar,


Aqueles lá mais no fundo,
Também têm os seus amores,
Como nós cá neste mundo.
15

A do manjaricão
flor
Não abre senão de noite,
Para não dar a saber
Os seus amores a outrem.
16

Até o milho miúdo


Tem sua velhacaria
Conserva a água no bico
Para beber todo o dia.
80 Cangioneii^o Popular

17

As pedras, com serem pedras,


Senfos golpes que lhe dáo;
Como não hei-de eu sentir
Essa tua ingratidão.

18

É o Sol um lavrador
O Sete-estrelo abegão
A Lua é o celeiro
Onde o sol recolhe o pão.

19

Não cortes a oliveira,


Não lhe metas o machado,
Que dá fruto que alumia
A Jesus crucificado.

20

Chamais á amoreira triste: ,

Mas que tristeza lhe achais?!


A amoreira cria o sirgo
Com que vós vos enfeitais.

21

Deitei-me e adormeci
Debaixo da laranjeira,
Caiu-me uma flor no rosto:
que também cheira!
Ai! Jesus,

22

Oh! ciprestre, verde-triste.


Cofre cia minha figura.

Verde qual minha esperança,


Triste qual minha ventura.
A Natureza e a Terra Natal 8^1

23

Lisboa por ser Lisboa


E ter navios no mar,
Não é como a minha terra,
A mais linda em Portugal

24

Adeus bairro de Silvalde,


Em te deixar bem me peza;
Inda espero de tornar
Ao centro da natureza.

25

D'aqui para a minha terra


Tudo é caminho é chão;
Só ha rosas só ha cravos
Que eu puz pela minha mão.
26

Chamaste-me trigueirinha,
Isto é de andar ao sol;
Toda a fruta, que é sombria,
Nem por isso é da melhor.

27

Oh! que vida regalada


Hei-de eu levar este verão
Pelos atalhos das vinhas
Com meu amor pela mão!
28
Adeus campos, adeus vales.
Adeus amor que eu amei;
Inda hoje adoro o sitio.
Onde comtigo falei.
82 Cancioneiro Popular

29

Pena triste, pena triste,


Oh! quem não ha-de chorar!
Ver-me assim em terra alheia,
Fora do céo natural

30

Oh! ares da minha terra


Vinde por aqui, levai-me.
Que os ares da terra alheia
Nâo fazem senão matar-me.
31

Oh! Brazil, terra de enganos,


Quantos lá vão enganados;
Tantos lá vão por três anos
E lá ficam sepultados.

32

O sol nasce de Castelã:


Queres amor que nós lá vanios?
Não quero que o sol esteja
Em poder dos castelhanos.
;

II

o ELOGIO DO TRABALHO E O VALOR


HERÓICO

33

Trabalhai, dobrai o corpo,


Se quereis ter algum bem
Olhai que nas eras de hoje
Quem não trabalha não tem.
34

Toda a moça que não tem


Seu amor trabalhador
Não é moça, não é nada,
Não tem prenda de valor.

35

Eu quero bem à pobreza,


A riqueza não me importa;
Trabalho, mato o meu corpo.
Não devo contas à morte.
36

Oh! Mar, tu ésum leão,


Que a todos queres comer;
Não sei como os homens podem
As ondas do Mar vencer.
84 Cancioneiro Popular

37

A sorte do marinheiro
É uma verdade pura:
Anda sempre a trabalhar
Em cima da sepultura.

38

Meu amor é marinheiro


E' do Mar, por vida minha,
Se elle não fora do Mar,
Não vinha aqui a sardinha.

39

Eu sou ganhão de manzeira,


E lavro em terras de barro,
Trago junta carreteira,
Onde passo tudo esgarro.

40

Eu sou ganhão de manzeim


E não no posso negar,
Trago junto carreteira
Que faço a terra estalar.

41

Todos me lavam a cara


Do meu amor ser ganhão;
É bonito, gosto dele,
É honrado e ganha pão.
42

O meu amor é carreiro,


Tem uma vida arriscada,
Ao descer uma ladeira,
Ao cerrar duma carrada.
o Elogio do Trabalho e o Valor Heróico 85

43

Alfaiate ou sapateiro,
Isso sim que é bom artista
Trabalha ganha dinheiro,
Sempre está à nossa vista.

44

Eu hei de abalar pr'à eira


Só p'ra casar c'um ratinho Q),
Só pr'a andar de feira em feira:
«Quem merca pano de linho!»

45

Contrabandista valente,
Corri campinas e vais
Com guardas na minha frente.
Com pistolas e punhais.
46

Trigueirinha e engraçada,
Sou filha dum lavrador.
Vou ao mato vou à lenha,
Assim me quer meu amor.

47

Não quero saia de chita,


Que me hão de chamar senhora,
Quero saia de estamenha.
Que é traje de lavradora.

C) Ratinho é o nome que no Alentejo se dá aos jorna-


leiros, que do Minho ou da Beira para ali vão trabalhar.
86 Cancioneiro Popular

48

O meu amor foi à lenha


De sapatos e de meias,
Tamanho foi o carrego,
Arrebentaram-lhe as veias!

49

Viva a malta e trema a terra,


Daqui ninguém arredou;
Quem ha-de temer a guerra,
Sendo homem como eu sou?

50

Eu sou como o gavião.


Que no ar faço firmeza.
Quando abaixo até ao chão,
Nunca alevanto sem presa.

51

Oh! sol! oh! lua! oh! estrelas!


Andae dae luz em meu peito.
Vinde achar morada firme
Em palácio tão estreito.

52

Eu fui a primeira onda,


Que no mar se levantou
Trez dias choveu areia.
Toda a praia se arrazou!
III

AMEAÇA E CRIME DE MORTE

53

Se ha por ahi alguém,


Que na estrada se atravesse,
Traga mortalha a vestir
E confessor que o confesse.
54

Olha como ficam bem


Na minha mão cinco dedos
Para jogar bofetadas
A quem andar com enredos.

55

Oh! cantador corta as barbas


E semeia-as numa leira;
Inda hoje has-de ficar
Aos pés desta cantadeira.

56

Canta, camarada, canta,


Canta que ninguém te afronta.
Que esta minha espada corta
Dos copos até à ponta.
Cancioneiro Popular

57

Oh! rapaz enrola a esteira,


Mete a espada na bainha;
Não has-de fazer poeira
Em casa de gente minha.

58

Oh quem me dera encontrar-te


!

No caminho mais estreito


Para eu brigar comtigo
Com faca de peito a peito.
59

Tenho sina de morrer


Na ponta d'uma navalha;
Tod'á vida ouvi dizer
Morra o homem na batalha.

60

Eu hei-de morrer d'um tiro


Ou d'uma faca de ponta,
Se hei-de morrer amanhã,
Morra hoje, tanto monta.

61

Oh ! meu amor quem me dera


Uma faca bem aguda
Para dar uma facada
Na minha triste ventura!

62

O meu coração por artes


Entrou no teu pensamento;
E' como o crime de faca
Que nunca tem livramento.
IV

MÁXIMAS E PENSAMENTOS

63

Não ha machado que corte


A ao pensamento,
raiz
Não ha letrado que diga
O que tenho no intento.
64

Eu cantando, estou calada,


Chorando me estou a rir,

Andando, fico parada,


Desperta, estou a dormir.

65

Ninguém descubra o seu peito


Por maior que seja a dor.
Quem o seu peito descobre
É a si^^mesmo traidor.

66

Oh! mar largo, oh! mar largo,


Oh mar
! largo semfundo.
ter
Mais vale andar no mar largo
Que andar nas bocas do mundo.
; ;

90 Cancioneiro Popular

67

Desprezaste-me por pobre,


A pobreza Deus a amou
Não me penteio por ti,
Assim pobre como sou.

68

Oh! meu amor não desprezes


O pobre por nada ter,
Pode a riqueza faltar-te
E o pobre não te querer.

69

Oh ! alta serrada neve.


Onde se pinta a lindeza
Quem tem a alma no Céo
Para que quer mais riqueza?

70

Como alcatruzes da nora.


São as vaidades do mundo;
Os que enchem vão acima,
Os que vasam vão ao fundo.
71

Valha-me Deus tanto luxo


Com tanta ostentação!
Tanto calote no povo;
Quem ganha é o esrivão.
72

Oh! meu amor, se tu queres


Toda a vida viver bem,
Has-de ouvir, has-de calar,
Não dizer mal de ninguém.
:

MÁXJMAs E Pensamentos 91

73

Fui chorar ao pé da água


Lágrimas de sentimento,
A água me respondeu
Nada cura como o tempo.

74

Tod'a moça que é bonita


Mais valera não o ser,
É como a pêra madura,
Todos a querem comer.

75

Rapariga dá-te ao mundo,


Não queiras morrer donzela,
Não queiras levar teu brio
Para debaixo da terra.

76

Minha mãe case-me cedo.


Enquanto sou rapariga.
Que o milho sachado tarde,
Não dá palha nem dá espiga,

77
A rosa quer-se apanhada,
Antes de sair o sol,
O cravo ao meio dia
P'ra seu cheiro ser melhor.

78

Quem pintou o amor cego


Não o soube bem pintar,
O amor nasce dos olhos.
Quem não vê não pode amar.
: ;

92 Cancioneiro Popular

79

Quem pintou o amor cego


Soube bem o que pintou
Amor firme a nada atende,
É pr'a onde se inclinou.
80

Toda a moça que namora


Pelos olhos se conhece
São tristes pela manhã,
Alegres quando anoitece.

81

Rapariga se casares
Toma conselho primeiro;
Mais vale um rapaz sem nada
De que um velho com dinheiro.
82

Namorados falai baixo


Que as paredes tem ouvidos, •

Os segredos mais secretos


Esses são os mais sabidos.

83

Oh! amor procura agrado,


Não procures formosura.
Formosura sem agrado
É peor que a noite escura.
84

Foste pedir-me a meu pai,


Sem saberes o querer meu;
Em tudo meu pai governa,
Mas nisso governo eu.
:

Máximas E Pensamentos 93

85

Como pode um pai p^ribir


Que uma filhaqueira bem ?
Se a lei do pai é sagrada,
O amor mais força tem.

86

Ó pais bárbaros, cruéis,


Que uma filha abandonais;
Por ela cair num erro
Já ao mundo a entregais.

87

Quem tiver filhas no mundo,


Não das malfadadas,
fale
Pois as filhas da desgraça
Também nasceram honradas.
88

Não se riam de quem chora,


Que podeis chorar também;
*
Quem chora também se ria
Dos males que agora tem.ÍN
i
'

Não cuides, j>Qgpre deixares.


Que no céâá|IWbaste palma.
Eu caí pllrífíocente
;graçada da tu'alma!

90
Quem nasce no triste fado
Nunca pode fim;
ter bom
Quem mal anda mal acaba,
Ponham os olhos em mim.
94 Cancioneiro Popular

91

Vai-se dia, vem a noite,


Vai-se a noite, o dia vem,
S'tou gostosa de mim mesmo.
Não quero bem a ninguém.
V

IRONIAS E GRACEJOS

92

Quatro coisas quer um amo


Dum criado que o serve,
Erguer cedo, deitar tarde,
Comer pouco, andar alegre.
93

Minhas faltas me nomeias,


Só para ás tuas não olhas;
Oh! Hngua, que não semeias
Semente, que não recolhas!

94

Aquela menina cuida


Que não ha outra no mundo!
Não é o poço tão alto
Que se lhe não veja o fundo.
95
Além vem a presunçosa
Rua cheia, sem ninguém.
Ela cuida que é bonita,
Ela nada disso tem.
96 Cancioneiro Popular

96

Além vem a presunçosa,


Até no andar tem brio,
Lá vem o assucar em ponto,
De doce mete fastio.
97

Entendo que na mulher


A pequenez é um dom;
Uns dizem do mal o menos,
Outros dizem pouco e bom.

98

As senhoras da cidade
Teem grande opinião;
Não sabem como hão-de andar,
Nem poisar os pés no chão.

99

Coitadinhas das mulheres.


Já vivem tão desgraçadas!
Pra passearem nas ruas.
Vão com as pernas atadas.

100

As senhoras com as modas


Parecem umas serpentes;
Andam metidas em sacos,
Metem medo aos inocentes.
101

Diz-me lá tu cantador
Quantas penas tem um pato,
Quantos picos um ouriço.
Quantos cabelos um gato.
Ironias e Gracejos 97

102

Está bem feita a pergunta,


Agora respondo eu:
Penas, picos e cabelos
Só tem os que Deus lhe deu.

103

Tu que és poeta
dizes
Na matéria do cantar;
Pois diz-me lá, por cantigas,
Quantos peixes ha no mar?

104

Quantos peixes ha no mar


Eu to vou já a dizer:
São metade e outros tantos,
Fora os que estão por nascer.

105

Eu já vi um valentão
A brigar c'uma cidade;
Logo ao primeiro encontrão
Derrubou mais de metade.

106

Chovam raios de toucinho,


Centelhas de queijo mole,
Venham quartilhos de vinho
Que este maltez tudo engole.
VI

AMOR FILIAL

107

Oh! minha mãi da minh'alma,


Oh! meu pai do coração,
Duzentos anos que eu viva
Não lhes pago a criação.

108

Minha mãi, minha mãisinha,


Minha mãisinha do Céo,
Que me trouxe nove mezes
Debaixo do seu mantéo.

109

Minha mãi, minha mãisinha,


Oh! minha mãi, minha amiga,
Quem perde o amor de mãi
Perde tudo nesta vida.

110

Minha mãi que me criou


Ao peito com tanto mimo,
Se um dia lhe pagar mal.
Não foi por falta de ensino.
Amor Filial 99

111

Não ha amor de mulher,


Por mais pura e virtuosa,
Não ha amor que eu compare
Ao duma mãi carinhosa.
112

Já me morreu minha mãi,


Minha doce companhia,
Caixinha dos meus segredos.
Espelho aonde eu me via.

113

Minha mãi era uma santa.


Por quem sempre chorarei.
Porque amor egual ao dela
Nunca mais encontrarei.

114

Quando deixei minha aldeia,


Olhei para traz chorando:
Minha mãi do coração
Tão longe me vais ficando.

115

Oh! morte, tirana morte,


Que mataste minha mãi!
Deixaste-me ao desamparo,
Sem abrigo de ninguém.
VII

RELIGIOSIDADE POPULAR

116

ORAÇÃO AO SOL

Vou-me despedir de vós,


Adeus, oh Sol, que te vais,
!

Deixais-me ficar sósinha


No meio dos pinheirais.
Oh! Sol, torna amanhã,
Eu quero-te ver nascer.
Só a vós é que eu adoro,
Só por vós quero morrer. Q)

117

DO TERÇO DA AURORA (2)

Sob'rana, divina Aurora,


Oh Mâi do
! eterno Sole,
Quem como vós poderá
Soccorrer-nos melhore.

(') Veja-se a pag. 34


(2) Veja a pag. 35, 36 e 37.
! ;

Religiosidade Popular 101

118

ORAÇÃO AO SOL NASCENTE

Deus te salve, Sol divino


Tu corres o mundo inteiro
Viste lá o rneu marido?
Se tu o viste não mo negues,
Não mo negues, não negues, não.
Esses raios que vens deitando.
Ao teu nascimento,
Sejam dores e facadas.
Que atravessem o seu coração;
Que ele por mim endoudeça
Que ele não possa comer,
Nem beber, nem andar, nem amar,
Nem com outra mulher falar,
Nem em casa particular.
Todas as mulheres que ele veja
Lhe pareçam cabras negras,
E bichas feias.
Só eu lhe pareça bem no meio delas!

119

Nossa Senhora da Veiga


É pequenina e airosa;
Vai a gente de tão longe
Só p'ra ver tão linda rosa.

120

Nossa Senhora da Póvoa,


Minha boquinha de riso,
Minha maçã vermelhinha,
Criada no Paraíso.
102 Cancioneiro Popular

121

Nossa Senhora da Veiga


Ela lá vae Douro, acima,
Com a cestinha no braço
Fazer a sua vindima.

122

Além vem a barca nova,


Que fizeram os pastores,
Nossa Senhora vem dentro.
Toda coberta de flores.

123

Oh mar! largo, oh ! mar largo


Cheirava que rescendia:
Era o manto da Senhora,
Que um marinheiro trazia.
124

A Senhora do Sameiro
Dá um cheiro que rescende:
É o manto da Senhora,
Que pelo mundo se estende.
125

A que vai rolando,


rola
Onde fazer o ninho?
irá
Aos pés de Nossa Senhora
No mais alto do raminho.
126

Esta noite ç noite cheia,


Não é noite de dormir.
Das onze pra meia noite
Stá a virgem pra parir.
!

Religiosidade Popular 103

127

Pastor do gado branco,


Não arranques rosmaninho,
Pois é onde a Virgem pura
Estende os seus cueirinhos.

128

Cantai anjos ao Menino,


Emquanto a Virgem dorme.
Mas cantai-lhe de mansinho,
Com que a Virgem não acorde.

129

ORAÇÃO DE NATAL

A Virgem Nossa Senhora


Stáno portal de Belém
Co seu menino nos braços,
Jesus que está tanto bem
!

Cantou-lhe uma cantiguinha:


Filho meu, que te farei ?
Não tenho cama nem berço.
Em braços te embalarei.
Com as lágrimas dos olhos,
Filho meu, te lavarei.
Na manguinha da camisa.
Filho meu, te aUmparei.
Nas mantilhas do meu rosto.
Filho meu, te embrulharei. (^)

(1) Esta pequenina poesia lembra na forma os roman-


ces populares. Teófilo Braga classifica-a até de romance
sacro. Não a julgamos, todavia, descabida no Cancioneiro.
; ; ;

104 Cancioneiro Popular

130

Eu hei-de ir para o presépio


Assentar-me a um cantinho,
Só p'ra ver o Deus menino
A nascer tão pobresinho.

131

No presepe de Belém
Quiz nascer o Deus menino
Num tempo de tanto frio,
Desprezado e pobresinho.

132

Pastores do verde prado,


Deitai o gado á verdura
Vinde ver o Deus menino
Nos braços da Virgem pura.
133

Oh! meu amado Menino,


Boquinha de sangue e leite
Vossa mãi é uma rosa.
Vosso pai um ramalhete.

134

Oh! meu amado Menino,


Boquinha de requeijão
Quem vo-la comera toda
C*um bocadinho de pão.
135

Oh! meu amado Menino,


Oh! minha tão bela flor;
Quizestes ser pequenino.
Sendo tão alto senhor.
; ! :

Religiosidade Populaí^ 105

136

O Menino está dormindo


Nas palhinhas despidinho
Os anjos lhe estão cantando
Pobre amor tão pobresiuho.

137

Eu hei de dar ao Menino


Cinco pedras preciosas,
Cada pedra cinco quinas,
Cada quina cinco rosas.

138

Oh! meu menino Jesus,


Quem vos deu, porque chorais?
Deram-me as moças na fonte,
Não hei-de lá tornar mais.

139

Oh! Anjo da minha guarda,


Que dais aos vossos romeiros?
Dou-lhe água da minha fonte.
Sombra dos meus castanheiros. (^)

140

Santo António me acenou


De cima do seu altar;
Olha o maroto do santo.
Que também quer namorar

(í) Esta quadra canta-se na romaria anual do Anjo da


Guarda em Alpedrinha (Beira-Baixa).
!

106 Cancioneiro Populaf^

141

Fui ao mato cortar lenha,


Santo António me chamou,
Quando o santo chama a gente,
Que fará quem já pecou

142

Lá vem o Baptista abaixo,


Vestido de azul ferrete.
Numa mão traz a custódia
E na outra um ramalhete.

143

Além vem o barco novo,


Que fizeram os pastores,
Trazem dentro S. João,
Todo coberto de flores.
144

Para fazer as fogueiras


Na noite da sua festa,
S. João traz lá do monte
Um braçado de giestas.

145

Ai!meu rico S. João,


Ouve as trovas dos festeiros
Faz as moças bem doidas
E os velhos bem gaiteiros.
146

S. João, quando era novo,


Tinha uns sapatinhos brancos,
Pra visitar as raparigas
Domingos e dias santos.
Religiosidade Popular 107

147

S.João era bom moço,


Se não fora tão velhaco,
Foi com três moças á fonte,
Foi com três, veio com quatro.

148

S. João, por ver as moças,


Fez uma fonte de prata;
As moças não vão à fonte
S. João todo se mata.

149

S. João se adormeceu
Nas escadinhas do coro,
Deram as freiras com ele
Depenicaram-no todo.

150

Lá vem o Baptista abaixo.


Comendo num cacho d'uvas,
Dando os bagos ás solteiras,
Os engaços ás viuvas.
151

Lá vem o Baptista abaixo,


Subindo aquellas ladeiras,
Dando abraços ás viuvas,
E beijinhos ás solteiras.
152

Minha avó tem lá em casa


Um Santo António velhinho;
Em as moças não me querendo.
Dou pancadas no santinho.
108 Cancioneiro Popular

153

Canta o pardal no loureiro,


O rouxinol na silveira;
Os padres cantam no coro,
Rogam a Deus por dinheiro.
154

Todos os padres de missa


Aos infernos são chamados;
Inda eles tem mais filhos
Que os homens que são casados.
155

Não ha padre que não seja


Amigo de namorar:
É desforra que lhe tiram
Prós não deixarem casar.

156

Menina se fores á missa


Põe-te para o pé do coro.
Que o padre é muito ratão,
Também busca o seu namoro.
157

O padre quando namora


Logo põe a mão na crôa,
Namora padre, namora.
Que Roma tudo perdoa.

158

O meu amor é um padre.


Padre a quem eu quero tanto;
Inda hei-de ir a pé a Roma
Pedi-lo ao Padre Santo.
!

Religiosidade Popular 109

159

Tomei amores com um padre,


Nunca melhor coisa fiz:
Logo me fez uma saia
Da sua sobrepeliz.

160

ELEGIA DA VIDA DE FREIRA

Já não ha, não pode haver


Uma vida tão penosa
Sendo eu a mais formosa,
Me encerram, me encerram.

A meu pai aconselharam


Que me não desse o meu dote,
Que era a minha melhor sorte
O ser freira, o ser freira.

Avisaram a Rodeira,
E juntamente a Abadessa,
Que me metesse em cabeça
Que casaria, que casaria.

Eu como tolinha cria.


Cuidando que era verdade,
Que qualquer freira ou frade
Casar podia, casar podia.

Cuidando que assim seria.


Que, depois de professar,
Inda podia casar.
Caí no laço, caí no laço.
;

110 Cancioneiro Popular

Agora que aqui me acho


Metida nesta clausura,
Parece-me noite escura
O meio-dia, o meio-dia!

Já não tenho alegria.


Que alegria posso ter?!
Lembrar-me eu que hei-de ir comer
Ao refeitório, ao refeitório!

Á sombra do dormitório.
Onde dormem outras madres
Suspiram por seculares
Cá entre nós, cá entre nós.

Cuidar que dormimos sós


Nos causa grande agonia.
Sempre toda a noite fria
Me alevanto, me alevanto.

Acordo, faço o meu pranto


Toda me lavo em choro,
Em ouvir tocar ao coro
E às matinas, e às matinas.

Resando resas divinas


Lá por certos corredores.
Me lembram os meus amores
Por quem morro, por quem morro!

Toda a minha cela corro,


E vejo-me ao meu espelho
Vejo o meu rosto já velho ...
Malfadada! malfadada!
!

Religiosidade Popular IH

O regalo das casadas


É lograr os seus amores,
De contínuo os seus favores,
Mas eu nada, mas eu nada

Antes ser mulher casada,


De noite embalar meninos,
Do que ser freira professa
Tocar os sinos, tocar os sinos! (O

0} Ha outros cantos populares com esta mesma forma,


como a Elegia da Vida de frade, no Cancioneiro Popular
de Teófilo Braga e a Paródia do Pelo Sinal, canto patriótico,
cheio de sarcasmo, que se refere ás invasõis dos franceses,
no Cancioneiro politico de Tomaz Pires. É até um dos raros
cantos patrióticos ou políticos, dignos de menção.
VIU

A CRIATURA AMADA

161

Todas as águas que correm,


Todas ao mar vão parar;
Todas as minhas cantigas
Ao meu amor vão a dar.
162

Toda a moça que é solteira


Pelo andar se conhece;
Poisa o pé à miudinha,
Todo o corpo lhe estremece.

163

Graças a Deus para sempre!


Já vi a quem eu queria;
E já se defez a nuvem,
Que o meu coração trazia.

164

Deus te salve rosa branca,


Já que foste aparecida!
Ha tanto tempo que andavas
Entre as nuvens escondida.
;

A Criatura Amada 113

165

Muito bonita é a chita,


Amor, do teu avental;
És a cara mais bonita,
Que passeia em Portugal!

166

O meu amor é mais lindo


Do que quando abre.
a rosa
Todo o mundo mo cubica.
Nossa Senhora mo guarde!

167

És como a prata lavrada.


Como o leite sem a espuma;
És perfeita, oh! minha amada.
Sem teres falta nenhuma!

168

No dia em que tu nasceste


Todas as flores brotaram,
Té na pia do batismo
Lindos rouxinóis cantaram.

169

Uma estrela se perdeu,


Que no céo não aparece,
No teu peito se meteu,
No teu rosto resplandece.

170

Vossos cabelos, menina,


É que vos dão toda a graça
Parecem meadas de ouro
Aonde o sol se embaraça.
114 . Cancioneiro Popular

171

Lindos cabelos que tendes,


Qúe vos dão pela cintura,
Á noite servem de cama,
De dia dé formosura.
172

Que o teu cabeio entrançado


Dizbem de toda a maneira,
Quem me dera te-lo breve
Sobre a minha travesseira.

173

Tens o rosto cor de rosa.


Os olhos da cor do Céo,
Tens o cabelo tão Hndo,
Não precisas de chapéu.

174

Tua boca me parece


Um botãosinho de rosa;
Tenho visto bocas lindas,
Mas nenhuma tão airosa. .

175

Os olhos do meu amor


São dois navios de guerra;
. Quando vão para o mar largo.
Alumiam toda a terra.
176

Hei de te mandar dourar


Os arcos das sobrancelhas;
São laços de finas fitas,
Que prendem duas estrelas.
A Criatura Amada 115

177

Quando abres os teus olhos,


Parece que nasce o dia;
Fui céguinho até agora,
Antes de os ver nada via.

178

Graças a Deus para sempre


Que já ouvi tua fala:
Parece que vem do céo
E os anjos a acompanha-la.
179

Cantas bem, não cantas mal,


Garganta de pura neve,
Fonte d'agua cristaHna,
Onde o Sol divino bebe.

180

Tendes garganta de neve.


Nela se pode escrever;
Quem me fora estudantinho
Que nela aprendera a ler!
181

Vossos ombros engraçados,


(Engraçados que eles são!)
São apoio desses braços,
Firmeza das vossas mãos.

182

Tuas mãos são branca neve.


Teus dedos são lindas flores
Teus braços cadeia douro.
Laços de prender amores.
116 Cancioneiro Popular

183

A forma desse colete


E' o que mais me namora
Revela coisas bonitas,
Cá por dentro e lá por fora.

184

Esses vossos lindos peitos


Ambos de dois são eguais,
Não são altos, nem sáo baixos,
São como vós precisais.

185

Nunca vi cara mais linda,


Nem corpo mais delicado,
Nem andar com mais decência.
Nem falas com mais agrado.

186

Vossos pés são doiro fino.


São doiro puro e mais não,
Doiro toda sois formada
Prenda do meu coração.

187

Com fios doiro eu entrei


A notar vossos sinais.
Pois que menina sois doiro.
Oiro sois e assim ficais.
IX

CONFISSÃO D'AMOR

188

Quem embarca, quem embarca,


Quem vem para o mar, quem vem?
Quem embarca nos meus olhos?
Oh! que linda maré tem!

189

Entre o dizer e o calar


Ha guerra viva em meu peito,
O amor manda que fale,
Que cale diz o respeito.

190

Se eu te não amo deveras,


Deus do céo me não escute,
Estrelas não m'alumiem,
A terra me não sepulte!
191

Eu amo-te sem mau fim


E' nobre a minha paixão
Sigo a lei da Natureza,
Oiço a voz no coração.
118 Cancioneiro Popular

192

Nas partes que o sol descobre,


Nas que o sol não chega a ver,
Em toda a parte do mundo
Hei-de amar-te até morrer!

193

Tenho dentro do meu peito


Mil velas, mil castiçais,
No altar onde tu moras
Estás tu e ninguém mais.

194

Olhei pró meu lado esquerdo,


Não achei meu coração;
De repente me lembrei
Que estava na tua mão.
195

Aqui tens meu coração


E a chave para o abrir;
Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.
196

Aqui tens meu coração,


Se o queres matá-lo podes;
Olha que estás dentro dele.
Se o matas também morres.

197

Oh! meu Deus dai-me juizo


E dai-me força e valor,
Que não posso resistir
Contra a força deste amor.
:

Confissão d'Amor 1 19

198
»

Ribeirinha, ribeirinha
Ao largo é ribeirão,
Também tu és pequenina.
Mas chegas ao coração.
199

Quanto mais fundo é o poço,


Mais frescas lhe são as águas,
Quanto mais falo contigo,
Mais te aprecio as palavras.

200

Quem me dera a liberdade.


Que do Luar tem
a restea
Entrava pela janela,
Ia falar ao meu bem.

201

Quem me dera ser pombinho


Ou rolinho do sertão,
Que queria fazer o ninho
Dentro do teu coração.

202

Os meus olhos estão cegos


Mas não o sei confessar.
Se foi o Sol que deu neles,
Se será de te fitar.

203

Aqui tens a minha mão,


Ajunta-a palma com palma.
Domina o meu coração,
Toma posse da minfi' alma.
;' ; ;

120 Cancioneiro Popular

204

O sangue das minhas veias


Gira no teu coração;
Os teus braços são cadeias,
Eu já me entrego à prisão.
205

Passei pela tua porta,


Meu coração se assustou
Poisei os olhos em terra,
Toda a gente reparou.

206

Que meu bem, que queres


queres,
Que queres tu deste meu peito ?
Se queres o meu coração,
Mete a mão, tira-o com geito.

207

Em eu vejo a Deus
te ver
Não peco ou se não
sei se
Trago a Deus na minh'alma,
A ti no meu coração.

208

O coração, alma e vida,


Tudo, tudo eu já te dei
Se tens tudo o que me anima.
Como sem ti viverei?
! ;

DESEJO E POSSE

209

Oh! fonte, quem te chegara,


Oh! água, quem te bebera.
Oh! cravo, quem te cheirara,
Oh! rosa, quem te colhera!

210

Oh! mina, quem te minara.


Toda por baixo do chão,
Oh! amor, quem te lograra
Sem haver murmuração
211

A verdizela é enleio,
Que se enleia pelo trigo
Ai! quem fora verdizela.
Que se enleara contigo.

212
Quem me dera ser o Hnho,
Que vós menina fiais,
Que vos dera tanto beijo,
Como vós no linho dais.
!
.

1 22 Cancioneiro Popular

213

Quem me dera ser as contas


Desse teu lindo colar
Para dormir em teu seio
E nunca m^ais acordar.
214

Tendes o cravo na boca


Com a raiz na garganta,
Quem vo-lo tirara a beijos
Á hora em que o galo canta.
215

Eu venho a esta função


Pra lograr os teus carinhos:
É chegado o gavião,
Fujam, fujam passarinhos.

216

Francisquinho, cacho d'uvas,


Oh! quem te depenicara,
De baguinho em baguinho,
Nem um bago te deixara. .

217

Quando eu te vi logo disse


Lindos olhos para amar,
Linda boca para beijos . .

Ai quem tos pudera dar


!

218

Oh minha pombinha branca,


Oh! minha branca pombinha.
Quando ha-de chegar a hora
Em que te hei-de chamar minha ?
! ! ; ;

Desejo e Posse 123

219

Se o teu retrato falasse,


Se o teu retrato sentisse,
Ele mesmo te dizia
O que fiz e o que lhe disse.

220

Cravo roxo em teu peito,


Quesepultura tão rica
Quem morre nesses teus braços
Não morre, que ressuscita

221

O meu coração é terra,


Hei-de manda-lo lavrar
Para dispor os desejos,
Que eu tenho de te lograr.
222

Defronte de mim estão olhos,


Olhos que me estão matando,
Que contas darão a Deus
Das penas que m'estão dando ?

223

Eu aonde estou bem vejo


Olhos que me estão matando
Matai-me devagarinho,
Que estou morrendo, penando.
224
Os meus olhos mais os vossos
De longe se estão mirando
Os vossos dizem-me: sim;
Os meus perguntam-lhe: quando?
;

1 24 Canconeiro Popular

225

Daqui onde estou bem vejo


Correr as bicas da fonte
Ai de mim que morro à sede,
!

Tendo o remédio defronte.

226

Esta noite sonhei eu


Que te estava dando beijos;
Acordei, achei~me só,
Tive dobrados desejos.

227

Dai-me uma gotinha d'água,


Da Hngua fazei a bica;
Quanto mais água me dais,
Tanto mais sede me fica.

228

A silva é prendediça
Prende na terra lavrada.
Também os meus olhos prendem
Na parte mais delicada.

229

Deixa-me ir com as mãos ambas


Ao talho do teu colete,
Á parte mais delicada.
Onde pus o ramalhete.
230

Os pombinhos inocentes
Namoram-se e dão beijinhos:
Façamos amor, façamos.
Como fazem os pombinhos.
Desejo e Posse 125

231

Aperta-me esses meus dedos


Té que eu diga: deixa, amor;
Quem mais aperta m.ais quer,
Quem mais quer mais sente dor.
232

Amor com amor se paga


E não ha coisa mais justa;
Paga-me comtigo mesmo,
Meu amor, pouco te custa.

233

Boa herva é o poejo,


Que se deita na açorda,
Racha-me a cara com beijos,
Tem cautela não me mordas.

234

António vem a meus braços


Unirmos peito com peito;
Ao depois dessa união
Ter-te amor não é defeito.

235

Quando o meu amor me beija,


Não sei dizer o que sinto;
Fico parva, fico doida,
P^alo verdade, não minto.

236

O beijo, que tu me deste,


Nunca mais me ha-de esquecer:
Inda tenho a boca doce,
Inda me está a saber.
126 Cancioneiro Popular

237

Oh! madre-silva cheirosa,


Aonde deixaste o cheiro?
Nas ondas do mar, lá longe.
Nos lábios dum marinheiro.

238

Esta noite estive, estive,


Á conversa com o amor,
Co'a tua boca na minha,
Como o orvalho na flor.
239

Quem vive junto ao seu bem


Não pode ter mais desejos;
Mata a fome com amor,
Apaga a sede com beijos.

240

Meu amor, dei-te os meus beijos.


Tu com beijos me pagaste.
Ai! Deus te pague a alegria.
Todo o bem que me causaste!
241

Não posso comer sem dar-te.


Nem beber sem dar a ti:

Nem fazer a minha cama


Sem dizer: deita-te aqui.

242

Vê lá meu bem se te lembras


Daquela noite de vento
Que te tive desmaiada
Nos meus braços tanto tempo.
Desejo e Posse 127

243

Lembras-te daquela noite,


Que contamos, ao Luar,
Eu as areias do chão,
Tu as estrelas do ar?

244

Dois amantes que se amam,


Quando chegam a unir seu rosto.
Morrem de consolação;
Não pode haver melhor gosto.
XI

IRONIAS, SARCASMOS E PRAGAS DE AMOR

245

És água, náo matas sede,


És pimenta, não queimais;
És uma, pareces outra,
Quando comigo falais.
246

Náo te quero bern nem mal.


Coração no mesmo ser,
Nem morro por te adorar,
Nem desgosto de te ver.
247
Perguntais-me como passo;
Obrigado passo bem.
Ando com os pés pelo chão.
Como vós andais também.
248

Oh! senhor juiz de fora,


Faça justiça brincando;
Prenda-me aqueles dois olhos,
Que me estão desafiando.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 129

249

Já furtaram ao moleiro
A sua filha Isabel,
Cuidando que era o cortiço
Que estava cheio de mel.
250

O amor que é firme,


diz
Que no amar,
é firme
Com'ó vento no bulir,
Com'ó vidro no estalar.

251

O amor do estudante
É como a pomba ferida;
Pelo ar derrama o sangue.
Chega à terra, acaba a vida.

252

São tantas as saudades


Que eu tenho de ti ás vezes;
Em sendo os dias pequenos,
Não como senão trez vezes.
253
Dizes tu que tenho amores,
Jesus! cruzes! anjo bento!
Nem os tenho, ném espero,
Nem me vem ao pensamento.

254
O teu pai diz que não quer,
Porque eu não tenho fazenda;
Nem o teu pai é tão rico.
Nem tu és tão boa prenda.
130 Cancioneiro Popular

255

O meu amor, de polido,


Não assenta o pé no chão;
Assenta, meu bem, assenta.
Não dês passadas em vão.
256

Menina, não te namores,


De homem que já viuvou.
Uma fala, duas falas:
Mulher que Deus me levou!

257

Dois pobres a uma porta


Ambos co'a mesma tenção,
Qual será o desgraçado,
Que levará o perdão?
258

Toda a vida meu pai disse:


Filho não sejas maroto.
Foge sempre das mulheres.
Como a camisa do corpo.
259

Se pensas que eu por ti morro.


Eu nem por ti adoeço.
Já me teem oferecido
Panos de mais alto preço.

260
No domingo fui á missa.
Vi os teus olhos em praça;
Disse prás minhas amigas:
Lancem naquela fogaça.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 131

261

És bonita como a morte,


Alegre como um enterro,
Direita como um anzol,
Delicada como um cerro.
262

Chamaste pobre ao meu pai,


Tu abonado.
és rico, és
Tens uma terra no campo,
Onde cabe um cão deitado. Q)
263

O meu amor me deixou


Para amar outra mais rica;
Menos honra, mais fazenda,
Tudo em casa lhe fica.

264

Foste dizer mal de mim


Ao meu amor por desprezo.
Deitaste azeite no lume,
Inda ficou mais aceso.

265

que me vendeste.
Ingrato,
Quanto deram por mim?
te
Que é das galas que compraste
Co dinheiro que eu rendi?

(^) Recolhida por mim em S. João do Campo.


132 Cancioneiro Popular

266

Ès íalsa, trez vezes falsa,


Que assim quero dizer;
te
Quanto te deram por mim,
Quando me foste vender?
267

Murmurai, murmumdeims,
Murmurai todas de mim,
Deus vos dará o castigo,
Uma pena sem ter fim.
268

A sepultura se me abra,
A vida me caia dentro,
Se eu tenho outros amores.
Senão tu no pensamento.

269

Justiça de Deus te caia,


Do Céo venha o castigo,
te
Pois se tens novos amores,
Para que falas comigo?

270
Olhos, que me querem mal.
Tirados os visse eu,
Apresentados num prato.
Pedindo perdão aos meus.

271

Apartada eu veja a vida


E o corpo do coração
A quem foi o causador
Da nossa separação.
Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor 133

272

Meu amor abandonou-me,


Não sei qual fosse a razão:
Ao beber lhe falte a água,
Ao comer lhe falte o pão.

273

Já que és ingrata comigo,


Contra ti o tempo vejas,
A fortuna de ti fuja,
Não logres o que desejas.
;

XII

AMOR

274

O Mar pediu a Deus peixes,


O campo pediu-lhe flores,
O Céo pediu as estrelas
E a mulher pediu amores.

275

Não devia amar-te e amo-te,


Confesso a minha fraqueza
A culpa não é só minha,
É também da Natureza.

276

O Céo se vista de galas,


As estrelastenham véo,
Se já tenho amores novos,
É justo se alegre o Céo.
; ; !

Amor 135

277

Já fui cravo, já fui rosa,


Já stive num alegrete,
Agora stou no teu peito,
Servindo de ramalhete.

278

Nasce o Sol para adorar-te.


Dá volta ao mundo por ver-te,
Quando o sol deseja amar-te.
Como não hei-de eu querer-te.

279

O dia tem duas horas.


Duas horas não tem mais
Uma é, quando vos vejo.
Outra, quando me lembrais.

280

Quem não ama e não adora


Vivo está na sepultura
Só amando é que se vive.
Sem amar não ha ventura.
281

Dizem que o amor é morte


Oh quem me
! dera morrer
Mais vale morrer de amores,
Do que sem eles viver.

282
Para que quero eu os olhos.
Senhora Santa Luzia,
Se não hei de ver meu bem
A toda hora do dia.
!

136 Cancioneiro Popular

283

Eu sou cavaco do rio,


Veio a cheia e levou-me;
A água fez um remanso,
Á tua porta deixou-me. Q)
284

Cantae-me uma cantiguinha,


D'essas tantas que sabeis:
Espalhai folhas de rosa,
Que nessa boca trazeis.
285

O Sol posto vai doente


E sangram logo morre.
se o
Pois o sangue é como o amor.
Por todas as veias corre.

286

Dois corações que se amam.


Unidos fazem um só: .

Ambos eles estão feridos


De qual dos dois terei dó ?

287
Ai,que linda troca de olhos
Fizeram agora ali
Trocaram dois olhos pretos
Por dois azues, que eu bem vi.

(1) Recolhida por mim em S. João do Campo.


; !

Amor 137

288

Amor, se queres, façamos,


Uma troca sem lezão,
É trocar alma por alma.
Coração por coração.

289

Costumei tanto os meus olhos


A namorarem os teus.
Que de tanto confundi-los,
Nem já sei quais são os meus.

290

Oh! água tem-te nos vales


Não sejas tão corredia
Quem namora não se ausenta,
Quem quer bem não se desvia.
291

Dizes que amar é pecar . . .

Ai de mim que já pequei


Se em amar se perde o Céo,
Ai não se salva ninguém.
!

292

Repara meu bem, repara,


Olha cá p'ró peito meu:
Unamos as nossas almas.
Vamos ambos pró céo.

293
Quando António vai à missa
A igreja resplandece;
A terra que António pisa.
Se está seca reverdece.
138 Cancioneiro Popular

294

Anda cá meu amor morto,


Dize lá quem te matou;
Se te matou minha ausência,
Ressuscita que aqui estou.

295

Aqui tens meu coração.


Mete a mão tira-o com geito;
Lá verás que amor tão grande
Em palácio tão estreito.

296

Oh! bela rosa encarnada,


Como tu nenhuma cheira;
Por se salvam as almas
ti

E a minha seja a primeira.

297

Oh! coração, toma azas,


Oh! azas, tomai valor,
Que havemos de ir esta noite
Ao resgate duma flor.
298

Subi com a minha amada


Té onde ninguém se viu;
As nuvens diziam: basta.
Até que ninguém subiu!

299

Oh mar, que andas tão bravo.


!

Que assim andas furioso


Oh! mar, se fosses casado.
Serias mais amoroso.
!

Amor 139

300

Os meus olhos não são olhos,


Quando os teus estão defronte:
São dois rios de água turva,
Quando vão de monte a monte.

301

Amar e saber amar


São dois pontos dehcados.
Os que amam são sem conta,
Os que sabem são contados.
302

O amor nasce de dar,


Meu amor, que te darei?
O amor que não dispende,
É certo que não tem lei.

303

O meu coração é rio,


Cheio d'água mete medo:
Seca-se o meu coração,
Rega-se o teu arvoredo

304
Eu, vivendo, por vós morro,
Vós por mim viveis, morrendo,
Quizera acabar a vida
Para ficares vivendo.

305
Tira-me a seta do peito,
Deixa o meu sangue correr;
Se tu por mim dás a vida.
Eu por ti quero morrer.
140 Cancioneiro Popular

306

Choro lágrimas de sangue


Para teu divertimento;
Quero que vivas alegre,
A custa do meu tormento.

307

Se os meus olhos te encomodam


Quando estão na tua frente,
Eu prometo de arranca-los
Para te amar cegamente.

308

Eu quero tanto ao meu bem,


Amo-o com tanta paixão,
Que até chego a adorar
Sua própria ingratidão.

309

Não choro por me deixares.


Que o jardim mais flores tem.
Choro que não has-de achar
Quem te queira tanto bem.
310
Se os meus olhos te dão pena,
Tira-os e deita-os ao chão;
Não quero ter no meu corpo
Coisa que te dê paixão.

311

Trago dentro do meu peito


Um botão de rosa a abrir:
São os olhos do meu bem,
Que pra mim se estão a rir.
;

Amor 141

312

Tenho dentro do meu peito


Uma capela de flores,
Rosas, cravos, violetas,
Martírios, chagas e amores.

313

Não ha flor como a perpétua,


Que nasce de madrugada.
Nem amor como o primeiro.
Porque nasce dentro d'alma.

314

Oliveira arreda a rama.


Que eu quero passar além.
Trago o meu peito a arder,
Não quero queimar ninguém.
315

És espelho, onde me vejo


Cada vês que te visito.
És egual ao meu desejo.
Não ha nada mais bonito.
316
Tudo o que é verde se seca.
Em vindo o pino do v'rão.
Só meu amor reverdece
Dentro do meu coração.

317
Anoiteceu-me no campo
Num sitio desconhecido
Abracei-me à própria terra.
Cuidando que era contigo.
1 42 Cancioneiro Popular

318

Chamaste-me fala só,


Oh! que falsa opinião,
Estava a falar contigo,
Falando ao meu coração.

319

Olhos, que sonhando vedes.


Olhos, para que acordais?
Se vós, sonhando, estais vendo
Tudo quanto desejais!

320

Esta noite buliu vento


Com pontinhos de suão;
Abriram-se as rosas todas
Dentro do meu coração. (O

321

Suspiro, que nasce d'alma,


Que à flor dos lábios morreu,
Coração, que o não entende,
Não o quero para meu.
322

Ontem era meia noite,


A meia noite seria.
Ouvi cantar um anjinho
No coração de Maria.

Q) Colhida por mim em Ançã.


; .
.

Amor 143

323

Cartas, cartas são papeis,


Os papeis falsos serão,
Mas as palavras dos olhos
São vozes do coração.

324

Amavas-me e não dizias,


Junto a mim ficavas mudo
Tua boca não falava,
Os olhos diziam tudo.
325

Tenho dentro do meu peito


Um frasquinho de licor.
Quando o coração tem sede
Diz o frasco bebe amor.

326

Os teus olhos, oh! menina,


Quando se encontram co'os meus.
Dizem coisas, dizem coisas . .

Ai Jesus valha-me Deus


! ! ! . .

327
Toma lá colchetes doiro,
Aperta o teu coletinho:
Coração, que é de nós dois.
Deve andar conchegadinho.

328
O amor, quando se encontra,
Causando pena, dá gosto,
Sobresalta o coração,
Faz subir a cor ao rosto.
.

144 Cancioneiro Popular

329

Eu passei e bem te vi
Stavas à janela lendo
As cartinhas do amor ...
Tu a chorar e eu vendo.

330

Já que me chamaste estrela,


Dai-me Ceo, onde eu me ponha,
Que as estrelas neste mundo
Padecem muita vergonha.

331

No tronco da verde faia


O teu nome fui gravar;
A mesma faia chorou,
Só de me ver suspirar.

332

Como juntos e unidos


Os teus cabelos estão,
Permita o Ceo que se una
O meu ao teu coração.
333
A sombra d'esse teu corpo
Quando eu a vejo no chão . .

Aperto, pra não fugir,


O meu pobre coração.

334
Aqui tens meu coração
Vinga nele os meus delitos,
Crava-lhe um punhal agudo.
Não te embaracem meus gritos.
;

Amor 145

335

A roseira com a rosa


Toda se humilha ao chão,
Quando a rosa se humilha,
Que fala meu coração?!

336

Cada vês que vou á missa


E no adro te não vejo,
Enchem-se-me os olhos d'água.
Fico cego, nada vejo.

337

Amar e não ter ciúmes.


Issonão é querer bem
Quem não zela o que bem ama
Muito pouco amor lhe tem.

338

Pergunta a quem sabe amar


Qual é mais para sentir?
Se é amar, vivendo ausente.
Se é ver e não possuir.

339
Rosa, que estás em botão,
Deixa-te estar fechadinha.
Que eu vou para a minha terra.
Quando eu vier serás minha.

340
Olhos verdes, côr de esperança.
Olhos verdes, côr da hera,
Quem espera sempre alcança.
Por isso minha alma espera.
10
; ; !

146 Cancioneiro Popular

341

Quatro coisas são precisas


Para saber namorar,
Olho vivo e pé leve,
Cautela, saber falar.

342

O meu amor é tão lindo


Com quem o compararei?
Com as estrelas não posso,
Com Jesus do Ceo não sei.
343

Eu não sei que simpatia


Minh'alma contigo tem
Quando te vejo a chorar,
Meto-me a chorar também.

344

Meu amor, se tu te vires


No deserto sem ninguém.
Dá um ai com sentimento
Que eu sou contigo, meu bem.
345

Não se cance a Natureza


A em vão
criar coisas
Se não é para te amar.
De que serve o coração ?

346

Oh! que calma está caindo,


Á sombra me estou queimando;
Que será do meu amor
La na eira trabalhando.
Amor 147

347

Põe-te, põe-te Sol divino,


Mas não te ponhas parado,
Meu bem é trabalhador
E chega à noite enfadado.

348

Vem cá minha pequenina


Que o vento quer-te levar,
Pela manhã vento norte,
Á noite vento do mar.
349

Oh! que calma está caindo


Por cima dos ceif adores!
Quem fora ramo de palma,
Que cobrira os meus amores!
350
Menina tu és a tumba,
Eu serei o corpo morto;
Não se me dava morrer,
Sendo tumba o vosso corpo.
; ;

XIII

FIDELIDADE E CONSTÂNCIA

351

Oh meu amor, meu amor,


!

Quando me has-de tu esquecer?


— Quando Deus me não der vida,
Nem olhos para te ver.

352

Esta noite sonhei eu


Que me morria o meu bem
Sonhando, pedi a Deus
Que me levasse também.

353

Jurei pelo junco verde.


Que é a jura dos pastores,
Que, enquanto tu me quizeres.
Serei firme aos meus amores.
354

A neve na serra alta.


Faz a maior assistência
O amor quanto mais firme.
Mais querido é na ausência.
;

Fidelidade e Constância 149

355

Bem pode a Terra mover-se,


Bem pode o Mundo acabar,
Tudo pode ter mudança,
Menos eu em te adorar.
356

O meu coração é teu


Aqui e em toda a parte;
Antes cegar que não ver-te,
Antes morrer que deixar-te.

357

Já fui roseira caída,


Três anos stive no chão
De todos fui esquecida
E só do meu amor, não.
358

Se querer-te bem é delito,


Venha o juizque me prenda.
Abra as portas da prisão,
Que eu não quero ter emenda.
359
No mais terrível deserto
Contigo q'ria viver,
E juro-te pela minh'alma
De ser firme até morrer.

360
Para amar-te eternamente
Eu eterno q*ria ser;
Ja que eterno ser não posso,
Hei-de amar-te até morrer.
:

150 Cancioneiro Popular

361

Se te aborrece eu querer-te,
E é forçoso desprezar-te,
Ensina-me a aborrecer-te,
Que eu não sei senão amar-te.
362

O amor que nasce d^alma


Nunca poderá ter fim;
Aí tens tu a razão
De me não 'squecer de ti.

363

Hei-de amar-te, que é meu gosto,


Ninguém nisso tem que ver;
Amar-te e casar com outro,
Mais me valera morrer!

364

Tenho o meu peito fechado,


Stâo as chaves no Brazil;
O meu peito não se abre,
Sem as chaves de lá vir.

365

Amar, emquanto atendido.


Não é fineza de amante:
Amar, depois de ofendido.
Só o faz quem é constante.

366

Eu aquela que disse


fui
Ou contigo ou com a terra,
Senão cazasse contigo,
Queria morrer donzela.
Fidelidade e Constância 151

367

Firme, por firme, me assino


Firme, constante serei,
Firme, leal 'té à morte,
Por ti firme morrerei.

368

Se cuidas que eu amo outra


Perde essa desconfiança;
Antes sepultar-me em vida
Que eu em amor ter mudança.

369

Oh! olhos de amante firme.


Bem entendo o teu olhar;
te
Podes viver-no seguro
Que eu outro não sei amar.
370

Meu amor chorando disse.


Com lágrimas prometeu:
Emquanto o mundo existir.
Não deixarei de ser teu.

371

O meu leal coração


Ao teu falso obedece,
Se o meu leal te não lembra,
O teu falso não me esquece.

372
Inda que meu pae me mate
Minha mãe me tire a vida
Minha palavra está dada
Minh'alma está promettida.
152 Cancioneiro Popular

373

Teu pai, tua mãi, não querem


Cara linda que te logre;
Queira eu e queiras tu,
Contra o amor ninguém pode.

374

Nunca o amor se conhece


Senão depois da tormenta;
Quanto mais se contraria.
Mais ele, o amor, aumenta.

375

Bem pode o norte ventar,


A nau fazer-se em pedaços,
Mas p'ra deixar de te amar,
Nem que haja mil embaraços.

376

Quando as pedras soltem gritos


E o sol deixe de girar
E o mar deixe de ter água,
Deixarei eu de te amar.

377

No prazer sinto tristeza,


Parece-me a noite o dia,
O mesmo dia é um pranto.
Sem a tua companhia.

378
Triste sorte foi eu ver-te,
Atrevimento falar-te,
Delito era pretender-te.
Pena de morte deixar-te.
Fidelidade e Constância 153

379

Eu, se te não amo, morro.


Se te adoro, ha quem me mate,
Se de toda a sorte morro,
Quero morrer e adorar-te.

380

Impossível, sem ser Deus,


Haver quem de ti me aparte,
Se ele tem esse poder.
Antes venha a mim, me mate.

381

p meu coração do teu


É mui ruim de apartar,
É como a alma do corpo.
Quando Deus a quer levar.
;

XIV

A FELICIDADE DO LAR E A TERNURA


MATERNAL
382

O casal que é bem unido


Vive bem e com prazer;
Por pouco que o homem ganhe,
Sempre chega pra comer.

383

Minha sogra quer-me muito,


Minha cunhada também.
Meu sogro muito me quer
E o filho mais que ninguém.
384

Eu casei-me e cativei-me,
Inda não me arrependi
Quanto mais vivo contigo,
Menos posso estar sem ti.
385
No tempo em que era solteira
Usava fitas e laços.
Agora que sou casada
Uso os meus filhos nos braços.
: ! !: :.

A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal 155

386

O meu amado menino


Tem soninho e quer dormir,
Venham os anjos do Céo
Ajuda-lo a dormir.

387

Quando uma creança dorme,


Estão os anjos a sorrir,
Abrem-se as portas do Céo
Para Deus a ver dormir.

388

Lindo cantar é o dos anjos . .

Quem cantara como eles,


Quem estivera cantando,
Cantando no meio deles!

389

Quem tem meninos pequenos


Por força lhe ha-de cantar
Quantas vezes as mais cantam.
Com vontade de chorar
390
Quem tem meninos pequenos
Alivia o coração
De dia tem-nos nos braços,
Á noite no coração.

391

O menino está no berço,


Coberto co'o cobertor.
Os anjos lhe estão cantando
— Bemdito seja o Senhor
! ! .

156 Cancioneiro Popular

392

O meu menino tem sono,


Tem soninho e quer dormir,
Venham os anjos do'Céo
Com roupa para o cobrir.
393

Uma mãi que um filho embala.


Todo o seu fim é chorar,
Só por não saber a sorte,
Que Deus tem para lhe dar
394

O meu menino é um anjo,


E o teu é um
passarinho,
O meu voa para o Céo,
E o teu voa para o ninho.

395

Oh meu
! filho, dorme, dorme,
Olha o papão que alem está

. .

OJi papão vae-te embora,


!

Que o menino dorme já


396
Vae-te embora, passarinho.
Deixa a baga ao loureiro,
Deixa dormir o menino.
Que está no sono primeiro.
XV

SAUDADE

397

Desgraçado malmequer,
Onde vieste nascer!
Aonde não ha saudades,
Não pode haver bem querer.
398

De qualquer sorte que existas.


És mesma divindade,
a
Ventura, quando te vejo.
Se te não vejo, Saudade.

399
Quero dar-te as despedidas,
Quero da-las e não posso;
Tenho o meu coração prezo
Por um fio d'oiro ao vosso.

400

Quanto se sente na morte,


Quanto se sente na ausência,
A morte é ausência eterna,
A ausência, morte aparente.
;

158 Cancioneiro Popular

401

Uma saudade me mata,


Uma ausência me detém,
Uma esperança me anima:
Sobre tempo tempo vem.

402

Quanto se sente na morte,


Quanto se sente na ausência,
A morte é ausência eterna,
A ausência, morte aparente.

403

Tudo quanto o mar encerra,


Tudo quanto a terra cria.
Tudo é nada no Mundo,
Sem a tua companhia.

404

Oh! meu amor, meu amor.


Nada me alegra o sentido,
Ninguém sabe o bem que perde.
Senão depois de perdido.

405

Se fossem pedras as lágrimas.


Que eu por ti tenho chorado.
Já formavam um castelo
No centro do mar salgado.

406

Ausente dum bem que adoro.


Não posso viver com gosto
Nasce o Sol e põe-se o Sol,
Para mim sempre é Sol posto.
Saudade 159

407

Passei pela tua porta,


Não te vi, oh! alma minha,
Fiquei como a noite escura,
Metida na nevoinha.

408

Como o vento é para o fogo,


É a ausência pro amor.
Se é pequeno apaga-o logo.
Se é grande torna-o maior.

409

Vejo mar, não vejo terra.


Vejo espadas a luzir;
Vejo o meu amor em guerra
E não lhe posso acudir.
410

Oh meu
! amor, se te vires
Nas ondas do mar aflito.
Brada por mim que eu irei
Logo ao teu primeiro grito.

411

Atrevido pensamento,
Onde me foste levar?
Além do mar outro tanto,
Como é daqui ao mar.
412

Se o meu coração tivera


Azas, que fora voando.
Achavas tu quem stivera
Sempre contigo falando.
;

160 Cancioneiro Popular

413

Nas azas do pensamento


Vai beijinho, vai voando,
Visitar o meu amor.
Que por mim stá esperando.
414

Quando eu te chamar, acode,


Manda cá teu coração,
Não queiras tu que eu padeça.
Tendo o remédio na mão.

415

A pena do meu martírio


Mais cruel não pode ser:
Ter boca não te falar,
Ter olhos e não te ver.

416

Este meu coraçãosinho,


Tão pequenino que é;
É um mar de saudades,
Onde não entra a maré.

417
O meu amor me deixou
Sosinha neste deserto
Hei de me ir deitar ao mar,
Levam-me as ondas decerto.

418
Abra-se uma sepultura
Na terra forte e valente;
Var mais estar sepultado
Que viver de ti ausente.
; ;

Saudade 161

419

Se ouvires tocar os sinos,


Não perguntes quem morreu,
Ausente do meu amor,
Ninguém morreu senão eu.
420

Abre meu peito à lança


este
Verás meu coração morto,
E verás a tua ausência
O estado em que me tem posto.

421

Eu não quero viver mais


Que o tempo que tu existes
Que me serve viver tanto,
Se os dias serão tão tristes ?

422

Se tu fores, eu hei-de ir

Se ficares, ficarei
Quando não, tira-me a vida,
Que eu apartar-me não sei.
423

Oh! olhos, preparem lenços.


Oh! lenços, preparem fios;
É chegada a ocasião
De os meus olhos serem rios.

424
Mal o haja o querer bem,
A mim própria me praguejo!
Não ha um Deus que me leve
Nas horas que te não vejo!
u
;

162 Cancioneiro Popular

425

Quem disser que uma saudade


Que não leva à sepultura
Coma pouco, viva triste,
Verá o tempo que dura.

426

Ai! Jesus, arde-me o peito


Em labaredas de fogo;
Se eu não vejo um bem que adoro,
Ai! Jesus do Céo, que morro.

427

Nesta cruel despedida


Diz amor, que hei-de fazer
Levar-te não é possivel,
Deixar-te não pode ser.

428

Diz alguém que a despedida


Nada custa ao coração;
Quem tal diz que se despeça
E verá se custa ou não.

429

Amor, não digas adeus


Com esse adeus me matais;
Parece que mé dizeis
Adeus para nunca mais.

430

Meu amor na despedida


Nem só um ai poude dar;
Apertou-me a mão ao peito
E depois pôz-se a chorar!
!;! ;

Saudade 163

431

Se os meus suspiros podessem


Tua jornada impedir,
As lágrimas dos meus olhos
Não te deixavam lá ir.

432

Vai-te que o teu bem cá fica,


Suspirando, amor, por ti
Vai tu a ver outros climas.
Mas não te esqueças de mim.
433

Oh ! triste segunda-feira
Da semana que ha-de vir?
O meu amor diz que embarca:
Quem o ha-de ver sair

434

Meu amor me deixa,


diz que
Digam-me o que hei-de eu fazer?
Deixa-me, vai para* longe.
Não o torno mais a ver
435
Estes campos por aqui
Talvez já os não aviste
Adeus amor da minh'alma.
Que despedida tão triste!

436
Quem me dera ver agora
Quem a minh'alma deseja;
Quem os meus braços apertam,
Quem a minha boca beija.
164 Cancioneiro Popular

437

Já lá vaide barra fora


Quem no meu colo dormia!
Deus te leve, Deus te traga
Para a minha companhia.

438

Ausente dum bem que adoro,'


Não tenho gosto de nada.
Na solidão em que vivo
"^
Somente o chorar me agrada.

439

Adeus, meu pai, minha mãi


Adeus, oh minha saudade.
!

Eu vou a servir o rei.


Cativar a liberdade.

440

Adeus, oh minha saudade.


!

Espelho do meu sentido;,


Por ver vossa magestade
Eu ando cego e perdido.
441

Adeus, oh minha saudade,


!

Já você por cá não vem?


Venha como vinha dantes.
Não lhe importe de ninguém.

442

Cada vez que considero


Que de ti me hei-de apartar.
Meus olhos se arrazam d'água,
Não faço senão chorar.
Saudade 165

443

Vistam-se os campos de luto,


Toquem os clarins de prata,
Saiba-o quem o não souber:
Meu amor de mim se aparta.
444

Dei um ai entre dois montes,


Responderam-me as montanhas;
Ai! Jesus, que eu já não posso
Sofrer ausências tamanhas.

445

Abre-te centro da terra


Que me quero meter dentro,
Na ausência do meu amor
Quero mostrar sentimento.

446

Amor, Deus te dê saúde


Prás terras aonde fores,
A água, que tu beberes.
Ela se cubra de flores.

447

O meu amor foi-se embora,


Sem se despedir de mim,
O mar se lhe torne em rosas,
O navio num jardim.

448
Oh! Sol, que te vais cair
Lá para as bandas de Chaves,
Dize ao meu amor que venha,
Porque eu morro de saudades.
166 Cancioneiro Popular

449

Oh! que vais correndo,


rio,
Passa a ver o bem que adoro;
Se te faltarem as águas
Leva as lágrimas que eu choro.

450

Carta, vae onde te eu mando,


Lindos olhos vais a ver;
Carta pôi-te de joelhos.
Quando te quiserem ler.
451

Vai-te carta, vai-te carta,


Entra na primeira sala.
Se te não quiserem ler,

Abre-te carta e fala.

452

Vai-te carta venturosa,


Olha se sabes falar.
Os olhos que te escreveram
Cá ficaram a chorar.

453

Vai-te embora dia de hoje


Não queiras mais dia ser.
Que estou à espera do amor.
Que à noite me ha-de vir ver.

454

Triste sou, triste me vejo,


Sem companhia.
a tua
Tanto é que nem me lembro
Se fui alegre algum dia!
Saudade 167

455

Tanto ai, tanto suspiro,


Do fundo d'alma me vem!
Não são ais nem são suspiros,
São ausências do meu bem.

456

A ausência tem uma filha,


Que se chama saudade
Eu sustento mãi e filha.
Bem contra minha vontade.

457

O meu amor foi à ceifa


P'ra lá de Campo Maior,
Mandei-lhe um lenço encarnado
Para ahmpar o suor.

458

Oh ! meu amor, se tu fores,


Leva-me na tua alminha;
Eu sou como a primavera,
Onde quer vou metidinha.
459
Eu ausente e tu ausente.
Qual de nós mais penas tem?
Se o que vae para voltar,
Se o que espera por quem vem?

460
Eu hei-de mandar fazer
Torres com altas varandas,
Já que te não vejo amor.
Vejo as terras por onde andas.
168 Cancioneiro Popular

461

Puz-me a chorar saudades


Ao pé d'uma fonte fria;
Mais choravam os meus olhos
Que a triste fonte corria.

462

O meu amor foi-se, foi-se,


Foi-se para não voltar;
Deus lhe deparasse um rio,
Que o não pudesse passar.

463

Não chores amor, não chores


Eu inda aqui stou contigo,
Chorarás, quando me vires
No mar largo e em perigo.

464

Coitadinho de quem tem


Seu amor pra lá do rio,
Vai pra falar e não pode,
Faz do coração navio.

465

O cego, que nascer cego,


A sua vida é cantar;
Eu que te via e não vejo,
A minha vida é chorar.

466

Meu amor, que estás tão longe,


Chega-te cá para o perto;
Já me doi o coração
De te ver nesse deserto.
Saudade 169

467

Quem me dera estar tão alto,


Como a esteveira na serra,
Que avistara o meu amor.
Onde quer que ele estivera.
;

XVI

DESGRAÇA DE AMOR

468

Os nossos dois corações,


Uni-los o Céo não quiz,
É forçoso separa-los,
Pouco tempo fui feliz.

469

Deixaste-me, amor, por pobre


Outra falta não na tinha
Como hade o Sol romper
Uma manhã de neblina?
470
Á entrada desta rua
Levantei meus olhos, vi
Meu amor nos braços doutro,
Não sei como não morri!

471

Eu me queixo, tu te queixas.
Qual de nós terá razão?
Tu te queixas dos meus erros,
Eu da tua ingratidão.
Desgraça de Amor 171

472

Oh! que ai tão dolorido


Que o meu bem agora deu!
Meu coração estava morto
Deu um gemido, tremeu.
473

Já não tenho coração,


Já o dei ao meu amor,
E ele foi da-lo a outro!
No seu logar fica a dor!
474

Amar a quem me não ama


Não ha caso mais tirano:
Conhecer o próprio erro
E viver do mesmo engano.

475

Se eu te via bem casada,


Que gosto seria o meu!
Vejo-te mal empregada
Choro o meu mal e o teu.

476
Oh! rio dos desenganos.
Engrossa, faze-te mar;
Que eu desejo em tuas águas
O meu amor afogar.

477
Eu sofro, se te não vejo,
E se te vejo também;
Primeiro sofro da ausência
E depois do teu desdém.
!

172 Cancioneiro Popular

478

Já os atalhos tem herva


Depois que cá não vieste;
Dize-me, amor da minh'alma,
Que agravo de mim tiveste?
479

Nem contigo, nem sem ti

Tem remédio o pesar meu;


Contigo porque me matas,
Sem ti porque morro eu.
480

Oh! ingrato quem poderá


Viver sem ter coração
Eu arrancaria o meu
P'ra não sentir a paixão!

481

Aqui tens meu coração.


Todo ensanguentado;
Ingrato, pelos teus erros,
É que ele anda maltratado.

482

Coitadinho do meu peito,


Que deita sangue pisado;
A culpa tive-a eu
Em te amar demasiado.

483
Eu sou sombra e tu és Sol,
Qual de nós será mais firme?
Eu, como sombra a buscar-te,
Tu, como o Sol a fugir-me?
;

Desgraça de Amor 173

484

Por te amar perdi a Deus,


Por teu amor me perdi
Agora vejo-me só,
Sem Deus, sem amor, sem ti.

485

Oh! meu amor não maltrates


Uma mulher que foi tua;
Para castigo já basta;
Se é teu gosto continua.

486

Eu puz-me a chorar, chorei.


Este rio fiz correr.
Em me pôr a imaginar
Onde o meu brio foi ter.

487

Perdi-me, fiquei perdida.


Mal haja quem me perdeu!
Venceu-me, fiquei vencida
Dum amor, que era só meu.
488

Minha mãi chamou-me Rosa


Para eu ser mais desgraçada,
Que não ha rosa no Mundo,
Que não seja desfolhada.

489

Sou casada, vivo triste,


Casara eu a meu gosto,
Mais vale pobre e alegre
Que rico e viver sem gosto.
!

174 Cancioneiro Popular

490

Qrido filho, porque choras?


Por tua mãe ser errante?
Se teu pai te desprezar
O Deus do Céo é bastante.
491

Inda que o lume se apague,


Na cinza fica o calor;
Inda que o amor se ausente,
No coração fica a dor.
492

O Céo se cobriu de luto,


A mesma Terra tremeu;
Os ares se escureceram,
A minha jóia morreu

493

Abre-te, porta, que eu morro;


Não abras que eu já morri;
Jâ que és assim tão ingrata
Fica-te agora sem mim.

494
Sepultura, sepultura.
Quantos corpos tens em ti?
Já lá meu amor.
tens o
Quando me levas a mim?
495 ^

Minha amada já morreu.


Eu já não a torno a ver;
A flor no campo renasce.
Ela não torna a nascer.
XVII

TRISTEZA

496

Nem só de alegre se canta,


Nem só de triste se chora,
De alegre tenho eu chorado,
E de triste canto agora.
497

Oh! penas não venhais tantas.


Vinde mais poucas e poucas;
Vinde mais bem repartidas,
Dai logar umas às outras.

498

meus amigos,
Passarinhos
Eu também sou vosso irmão:
Vós tendes penas nas azas,
Eu tenho-as no coração.

499

Passarinhos, que cantais


Nas manhãsinhas serenas,
A todos aliviais.
Só a mim dobrais as penas.
176 Cancioneiro Popular

500

As nuvens no Céo se tingem


Num arco de sete cores;
São sete as dores de Maria,
São setenta as minhas dores.

501

Oh ! fonte, que estás correndo.


Não tardarás a secar;
Também meus olhos são fontes,
Que não param de chorar.

502

As ondas do Mar coalham


Em perlas todos os dias,
E, se o meu pranto coalhasse,
Que lindo colar fazias.
503

Oh meu
! amor, pede a Deus
Terra para um pomar,
Os meus olhos são dois rios.
Dão água para o regar.
504

Abre-te penha constante.


Serás minha sepultura
E se os meus. ais não te abrandam,
Fecha-te penha, que és dura.

505
Oliveiras, oliveiras.
Ao longe são olivais,
Trago o coração mais negro
Que a azeitona que vós dais.
Tristeza 177

506

A serpente larga a pele,


Também larga a lá o gado,
Só a mim nunca me largam
Os meus dias desgraçados.

507

Oh! olhos da minha cara


Não olheis para ninguém;
Já que perdestes a graça,
Perdei o olhar também.

508

Hei-de embarcar os meus olhos


Para o Rio de Janeiro,
Olhos mal afortunados
Que váo pra reino estrangeiro.

509

A alegria dos meus olhos,


Nem eu sei quem ma levou,
Táo alegre que era dantes,
Tão tristeque agora sou!

510
Penas, que eu tenho no peito.
Não as dou a conhecer;
Eu as fiz, eu as causei.
Eu as quero padecer.
511

O coração mais os olhos


São dois amantes leais.
Quando o coração tem penas.
Logo os olhos dão sinais.
12
178 Cancioneiro Popular

512

Oh! coração, coração,


Oh! coração, coitadinho!
Andas coberto de penas.
Pareces um passarinho.

513

Quando eu nasci, nasceram,


Nascemos quatro num dia:
Nasci eu, nasceu desgraça.
Tristeza, melancoHa.

514

Hei-de subir a um outeiro,


Onde a terra for mais dura.
Para enterrar os meus olhos.
Olhos de pouca ventura.

515

Ternas aves, que me escutam.


Chorosas me vem cantar;
Não ha mortais que não chorem.
Depois de me ver chorar.

51-6

O Sol para todos nasce.


Só para mim escurece;
Desgraçada criatura.
Que até o sol me aborrece.

517

É tal a minha desgraça


Que nem a esperança me resta
De ver um dia acabar
A minha sorte funesta,
Tristeza 179

518

Se queres saber a glória


Que alcança um pobre ganhão,
É a mão cheia de cabos
Do cabo do enxadão.
519

Ando desde pequenino


Pelas casas a servir,
Não tenho nada de meu
Mais que a roupa de vestir.

520

Quem me dera dar um ai,

Que chegasse à minha terra,


Que dissesse a minha mãi
Que tal filho não tivera.

521

Órfã, sósinha no mundo,


Vida assim será viver?
Para quem é desgraçada
Mais lhe valera morrer.

522

Sou feia, não tenho graça,


É disforme o corpo meu.
Não tenho bens de fortuna
Mas que culpa tenho eu?!
523
Oh! quem me dera ter mâi
Embora fosse uma siíva,
Inda que ella me arranhasse.
Sempre eu era sua filha!
180 Cancioneiro Popular

524

Tudo o que é triste no Mundo,


Tomara que fosse meu,
Para ver se tudo junto
Era mais triste do que eu.

525

Das lágrimas faço contas,


Por onde rezo às escuras;
Oh! morte, que tanto tardas,
Oh! vida, quo tanto duras!

526

Alegria não a tenho.


Sou um poço de paixão;
Toda a tristeza tem fim.
Só a minha, essa, não.

527

Eu quero bem à desgraça


Que sempre me acompanhou,
E tenho ódio à ventura,
Que no melhor me deixou.
528

Mas que me quer a desgraça.


Que atraz de mim corre tanto?!
Hei de parar e mostrar-lhe
Que de vê-la não me espanto.
529

Oh! triste sombra, acompanha-me,


Desgraçados dai-me a mão;
Venha tudo o que for triste
Afligir meu coração.
.

Tristeza 181

530

Meus males, minhas desditas


Remédio não podem ter;
Só deixarei de ser triste,
Quando acabar de viver.

531

Oh! alcachofra, tu ardes,


Ardes para florescer.
Eu sou diversa de ti
Ardo só para morrer.

532

É de noite, é de noite. .

Quer seja noite, quer não,


Para mim sempre é de noite
Dentro do meu coração.

533

Desgraça e pouca ventura


Só em mim caiu a sorte!
Haja quem me tire a vida
Que eu lhe perdoarei a morte.
534
Quem era, como eu era,
E se vê como eu me vejo!
Da vida não faço caso,
A morte já a desejo.

535
Se pensas que, por cantar,
A vida alegre me corre,
Eu sou como o passarinho.
Que até canta, quando morre.
XVIII

A MORTE E A ETERNIDADE DO AMOR

536

Já fui alegre, cantei,


Agora sou desta sorte :

Já da vida
fui retrato
Agora o serei da morte.

537

Meu coração já não bate


Não sei o que quer dizer,
Devem ser sinais de morte:
Amor, vem-me ver morrer.

538
Devo a minha vida à morte,
A alma a Deus que me criou,
O meu corpo à terra forte:
Ai! Jesus que nada sou!

539
Debaixo do frio chão,
Onde o Sol não tem entrada,
Abre-se uma sepultura,
Mete-se uma desgraçada.
;; ;

A Morte e a Eternidade do Aíwor 183

540

Oh morte, traidora morte,


!

ti tenho mil queixas


Contra
Quem has-de levar, não levas.
Quem has-de deixar, não deixas.
541

Com o bálsamo cheiroso


Hei-de embalsamar meu bem
Não quero que a terra coma
Tão lindos sinais que tem.

542

Oh ! adro, terra de egreja,


Onde se enterram anjinhos.
Oh terra, que estás comendo
!

Corpos tão delicadinhos.

543

Quando eu morrer enterrai-me


Ao pé dum vale sombrio.
Onde não chova, nem vente
Não dê sol, nem faça frio.
544

O dinheiro e mais dinheiro


Faz a paz e mais a guerra
Belos condes e marquezes,
Em morrendo, tudo é terra.

545
Não ha nada como a morte
Pr'ácabar a presunção,
Com quatro varas de chita
E sete palmos de chão.
;

184 Cancioneiro Popular

546

Abre-se uma sepultura


Na terra mais recalcada,
Enterra-se a criatura,
Fica a terra como estava.

547

Oh morte, para que levas


!

Desejosos de viver?
Oh morte, leva-me a mim
!

Que bem desejo morrer.

548

Não te faças mais do que eu


Que não és menos nem mais
Debaixo da terra fria
Todos nós somos eguaes.

549

Nós cuidamos que este mundo


Que nos dura para sempre,
É uma luz que se acende
Que se apaga de repente.
550
Se Deus me agora levava.
Depois da palavra dada.
Nem a terra me comia
Que o amor cá me ficava.

551

Quando eu era pequenina


Que minha mãi me embalava.
Já uma voz me dizia
Que eu para ti me criava.
!

A Morte e a Eternidade do Amor 185

552

Antes da noite ser noite,


Antes do dia ser dia,
Já meu coração te amava,
Minli'alma por ti morreria.

553

Eu não amo como os mais,


Que eu no amar sou diferente;
Todos amam por emquanto,
Eu amo eternamente.

554

Ferros d'El-rei são grilhõis,


Inda o amor é mais forte;
Para os ferros inda ha lima,
Para o amor nem a morte.

555

Quanto mais estou contigo,


Menos posso estar sem ti.
Que a paixão, que nasce d'alma,
Tem principio e não tem fim.

556
Hei de amar-te até à morte,
Até depois de morrer.
Até lá, na outra vida.
Te hei-de amar, podendo ser.

557
Amar-te na sepultura,
Oh meu amor, quem poderá
!

Seria a última coisa,


Que por teu amor fizera.
; ;

186 Cancioneiro Popular

558

Hei-de deixar que me enterrem


Aonde tu fores à missa,
Que inda depois de enterrado
Quero estar à tua vista.

559

Puz um pé na sepultura,
Uma voz me respondeu
Tira o pé que estás pisando
Um amor, que já foi teu.
560

Quem disser que a vida acaba,


Digo-lhe eu que nunca amou:
Quem morre e deixa saudades
Nunca a vida abandonou.

561

Chamaste-me tua vida


E eu tua alma quero ser,
A vida acaba co'a morte,
A alma não pode morrer!

562

Pelo amor de Deus te peço:


Move de vagar teus passos
Debaixo desses teus pés
Anda meu corpo em pedaços.
563

Já morri, já me enterrei
E agora já estou aqui:
Nem a terra me comia,
Sem me despedir de ti!
; :

ERRATAS PRINCIPAIS: -

a pag. 58, linha 8 (533) em vez de (523)

a pag. 137, quadra 292,

Vamos ambos pró ceií.

em vez de

Voemos ambos pró ceu.

a pag. 142, quadra 320,

Com pontinhos de suão

em vez de

Com pontinhas de suão

a pag. 145, quadra 335,

Que fala meu coração?!


em vez de

Que fará meu corav;áo ? !


índice

Estudo Critico

I
—O Fim desta Obra 8
II —O Poema do Povo . . . . ^ 21

III— Conclusão 65

Antologia

I —A Natureza e a Terra Natal 77


II— O Elogio do Trabalho e o Valor Heróico ... 83
III —
Ameaça e crime de Morte 87
IV —
Máximas e Pensamentos 89
V— Ironias e Gracejos 95
VI— Amor filial 98
VII— Religiosidade Popular 100
VIII — A Criatura Amada 112
IX — Confissão d'Amôr 117
X — Desejo e Posse 121
XI — Ironias, Sarcasmos e Pragas de Amor .... 128
XII— Amor 134
XIII — Fidelidade e Constância 148
XIV— A Felicidade do Lar e a Ternura Maternal . . 154
XV— Saudade 157
XVI — Desgraça de amor 170
XVII— Tristeza 175
XVIII— A Morte e a Eternidade do Amor 182
— ——

BIBLIOTECA

RENASCENÇA PORTUGUESA

A Águia (2/ série) — Revista mensal — 10 centavos.


A Vida Portuguesa— Boletim— l.** volume de 162 páginas, 40 centavos.
Regresso ao Paraíso — Teixeira de Pascoaes~\ yol., 50 centavos.
A Evocação da Viási — Augusto Casimiro— \ vol., 40 centavos.
Cortesão— vol., 10 centavos.
Esta Historia é para os kn]Os-- Jaime ^

O Espírito Lusitano Teixeira de Pascoaes 1 vol., 10 centavos. —


A Sinfonia da l^iráo.—Jaime Cortesão— \ vol., 10 centavos.

O Criacionismo Leonardo Coimbra 1 vol., 80 centavos. —
Romarias — /4. Correia d'Oliveira—\ vol., 10 centavos.
A Educação dos povos peninsulares — Ribera y Rovira — 1 vol., 10 centavos.
A Primeira ^2in — Augusto Casimiro — vol., 10 centavos. 1

Cinixdi- Mário Beirão— \ vol., 10 centavos.


O Doido e a Morte — Teixeira de Pascoaes— 20 centavos. \ vol.,

. . . Daquem e dalém Morte — (Contos com ilustrações de Cervantes de Haro e


Cristiano de Carvalho) — Jaime Cortesão— 60 centavos. \ vol.,

O Último Lusíada — Mário Beirão— 50 centavos. l vol.,

O Génio português na sua expressão poética, filosófica e religiosa — Teixeira de



Pascoaes 1 vol., 20 centavos.
Elegias Teixeira de Pascoaes — 1 vol., 30 centavos.
Camilo Inédito — Prefácio e notações de Vila-Moura—l vol., 50 centavos.
Só — António Nobre {3.^ edição, esgotada).
A Morie — Leonardo Coimbra—] vol., 40 centavos.
A Teoria da lAutaç^o —Armando Cortesão—] vol., 70 centavos.
Doentes da Beleza — Vila-Moura—l vol. de 160 páginas, 50 centavos.
GlóriaHumilde — Tíz/m^ Cortesão— vol. de 192 páginas, 50 ^ centavos.
Verbo Escuro — r^/.v^/ra: de Pascoaes— 50 centavos. l vol.,

Á Catalunha — ^«^«5/0 Casimiro— 20 centavos. l vol.,

Miss DoWy — Costa Macedo— 10 centavos. ] vol,,

O Problema da Cultura — ^/z^dmo Sérgio — l vol., 20 centavos.


A Era Lusíada— Teixeira de Pascoaes — 1 vol., 20 centavos.
Cancioneiro Popular Jaime Cortesão — 1 vol. 40 centavos.
O Génio PeuhisiúdT - Ribera y Rovira (No prelo).
A Saudade Portuguesa — Cíi/'o////a Micaclis de Vasconcelos (No prelo).
Humor e VúosoWa— Vila-Moura (No prelo).
Nova Teoria do Sacrifício — José Teixeira Rego (No prelo).
^oh(òmio<à— Visconde de Vila-Moura—i^o prelo).
Crónica de D. Duarte, de Rui de Phm—Alfredo Coellio de Magalhães —{^o prelo).
>

ACABOU DE SE IMPRIMIR
NA TIPOGRAFIA DA «RENASCENÇA PORTUGUESA
PRAÇA DA REPUBLICA, 160, 161, 162. PORTO.
AOS 6 DE JUNHO DE 1914,
TÍRANDO-SE DEZ EXEMPLARES
EM PAPEL DE LINHO
NUMERADOS E RUBRICADOS PELO AUTOR.
SOB A DIRECÇÃO
DE
]RIME CORTESnO e ALFREDO
COELHO DE MRQRLHHES

COM A COLABORAÇÃO
DE
CD C3 CD CD Braga C3 CD CD CD
Teófilo
D. Carolina Micaelis de Vasconcelos
CD CD CD CD Ricardo Jorge CD CD CD CD

CD CD Leite de Vasconcelos c^ cd

]osé Pereira de Sampaio (Bruno)


a CD Joaquim de Vasconcelos ^ cd
CD CD Teir^eira de Pascoaes a cd

CD CD CD CD fintónio 5érgio CD CD CD CD

CD CD CD Plfonso Lopes Vieira CD CD CD

CD CD CD Virgílio Correia cd cd a cd

José Teijceíra Rego a cd cd

CD CD CD Francisco Torrinha o a cd

CrZD t=D C=D CD etC.| etC. CD C=D C=D C=»

A SEGUIR
CROífICâOEO. DUARTE dei DE P!l
COM ESTUDO CRÍTICO, NOTAS E GLOSSÁRIO
POR

fliíredo Coelho de Haíalliães

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