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150 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE do presente e do pasado é fecunda em todos os dominios: em parte alguma ela o 6 mais do que na filosofia. Decer- to, temos algo novo para fazer e talvez, tenha chegado 0 momento de dar-se plenamente conta disso; mas, por se tratar de algo novo, nao precisaré necessariamente ser revolucionario. Estudemos antes os antigos, impregne- mo-nos de seu espitito e procuremos fazer, na medida de nossas forcas, aquilo que eles prdprios fariam caso es- tivessem entre nés, Iniciados na nossa ciéncia (nao digo apenas na nossa matematica e na nossa fisica, que talvez nao mudassem radicalmente seu modo de pensar, mas sobretudo na nossa biologia e na nossa psicologia), che- gariam a resultados muito diferentes daqueles que obti- veram. E isso que me impressiona mais particularmente no que diz respeito ao problema que me propus a tratar diante de voods, o da mudanga. Escolhi-o porque o tomo por capital e porque con- sidero que, caso estivéssemos convencidos da realidade da mudanca e nos esforcdssemos para resgaté-la, tudo se simplificaria. Dificuldades filos6ficas, que sao julgadas in- transponiveis, desapareceriam. Nao apenas a filosofia ga- nharia com isso, mas nossa vida de todos os dias — que- ro dizer, a impressio que as coisas deixam em nés ¢ a reagdo de nossa inteligéncia, de nossa sensibilidade e de nossa vontade sobre as coisas ~ talvez fosse com isso transformada e mesmo transfigurada.1E que, normalmen- te, bem que olhamos a mudanga, mas nao a percebemos. Falamos da mudanga, mas no pensamos nela. Dizemos que a mudanga existe, que tudo muda, que a mudanca é a propria lei das coisas: sim, dizemo-lo e repetimo-lo; mas temos af apenas palavras, e raciocinamos e filosofamos como se a mudanga nao existisse. Para pensar a mudan- sa e para vé-la, ha todo um véu de prejuizos que cabe A PERCEPCAO DA MUDANCA 151 afastar, alguns artificiais, criados pela especulacdo filos6- fica, outros naturais ao senso comum. Acredito que aca- batemos por nos pér de acordo a esse respeito ¢ que constituiremos entao uma filosofia na qual todos colabo- rato, acerca da qual todos conseguirao entender-se. E por isso que eu gostaria de fixar dois ou trés pontos acer- ca dos quais o entendimento me parece j ter sido obti do; ele ird estender-se pouco a pouco ao resto. Nossa primeira conferéncia versaré portanto menos sobre a pr6- pria mudanga do que sobre as caracteristicas gerais de ‘uma filosofia que se apegaria a intuigdo da mudanga. Eis, para comecar, um ponto acerca do qual todo mundo concordat. Se os sentidos e a consciéncia tives sem um alcance ilimitado, se, na dupla direcao da maté ria e do espirito, a faculdade de perceber fosse indefinida, nao precisarfamos conceber nem tampouco raciocinar, ,Conceber é um paliativo quando nao é dado perceber, e ‘0 raciocinio é feito para colmatar os vazios da percepcao ou para estender seu alcance., Nao nego a utilidade das idéias abstratas e gerais - como tampouco contesto 0 va- lor do papel-moeda. Mas assim como © papel-moeda nao 6 mais que uma promessa de ouro, assim também uma concepgao 86 vale pelas percepgies possiveis que repre- senta. Nao se trata apenas, é claro, da percepgao de uma coisa, ou de uma qualidade, ou de um estado. Podemos: conceber uma ordem, uma harmonia, e, mais geralmen- te, uma verdade, que se torna entdo uma realidade., Digo que todo mundo esta de acordo a esse respeito. Todo mundo péde constatar, com efeito, que as concepgies mais engenhosamente conjugadas e os raciocinios mais cientificamente esteados desabam como castelos de car- tas no dia em que um fato - um tinico fato realmente percebido— vem chocar-se contra essas concepgdes e es- 152 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE ses raciocinios, Aliés, néo h4 um Gnico metafisico, um Ainico tedlogo que nao esteja pronto a afirmar que um ser perfeito é aquele que conhece todas as coisas intuitiva- mente, sem ter de passar pelo raciocinio, a abstracdo e a generalizacdo. Portanto, nenhuma dificuldade acerca do primeiro ponto . Nem tampouco acerca do segundo, que apresento agora,A insuficiéncia de nossas faculdades de percepcao ~ insuficiéncia constatada por nossas faculdades de con- cepgaio e de raciocinio ~ foi o que deu origem a filosofia. Ahist6ria das doutrinas vem atesté-lo. As concepgies dos mais antigos pensadores da Grécia eram, decerto, muito vizinhas da percepgio, uma vez que é pelas transforma- ges de um elemento sensivel, como a égua, 0 ar ou 0 fogo, que elas completavam a sensago imediata. Mas, assim que as filosofias da escola de Eléia, criticando a idéia de transformacio, mostraram ou acreditaram mostrar a impossibilidade de se manter to proximo dos dados dos sentidos, a filosofia embrenhou-se na via pela qual veio caminhando desde entao, aquela que conduzia a um mun- do “supra-sensivel”: por meio de puras “idéias”, dora- vante, cabia explicar as coisas. fi verdade que, para os fi- ldsofos antigos, o mundo inteligivel estava situado fora e acima daquele que nossos sentidos e nossa consciéncia percebem: nossas faculdades de percepcao s6 nos mos- travam sombras projetadas no tempo e no espaco pelas Idéias imutaveis e eternas.|Para os modernos, pelo con- trério, essas esséncias s4o constitutivas das préprias coi- sas sensiveis; so verdadeiras substancias, das quais os fenémenos nao sio mais que a pelicula superficial. Mas todos, antigos e modemos, concordam em ver na filosofia uma substituicao do percepto pelo conceito. Todos ape- Jam, da insuficiéncia de nossos sentidos e de nossa cons- A PERCEPCAO DA MUDANCA 153 ciéncia, a faculdades do espitito que j4 nao so mais per- ceptivas, quero dizer, as fungdes de abstracio, de gene- ralizagdo e de raciocinio. Acerca do segundo ponto, conseguiremos entao nos por de acordo. Passo, entdo, para o terceiro ponto, o qual, creio eu, também nao levantaré discussao. Se tal é realmente o método filosdfico, no hé, nao pode haver numa filnsafia como hA uma ciéneia; haverd sempre, pelo contrério, tantas filosofias diferentes quan- tos pensadores originais houver. Como poderia ser de ou- tro modo? Por abstrata que seja uma concepedo, é sem- pte numa percepeio que ela tem seu ponto de partida. A inteligéncia combina e separa; ela arranja, desarranja, coordena; ela nao cria. £-Ihe preciso uma matétia, e essa matéria s6 Ihe pode vir dos sentidos ou da consciéncia. Uma filosofia que constréi ou completa a realidade com puras idéias, portanto, nao fara mais que substituir ou acrescentar, ao conjunto de nossas percepgées concretas, tal ou tal dentre elas, elaborada, adelgada, subtilizada, convertida dese modo em idéia abstrata e geral. Mas, na escolha dessa percepcao privilegiada, haverd sempre algo de arbitrério, pois a ciéncia positiva tomou para si Ludu que é incontestavelmente comum a coisas diferentes, a guantidade, e 86 resta entio a filosofia 0 dominio da qua- lidade, no qual tudo é heterogéneo a tudo, e no qual uma parte s6 representard o todo em virtude de um decreto contestével, senao arbitrdrio.\A esse decreto ser sempre possivel opor outros. E muitas filosofias diferentes surgi- 10, armadas de conceitos diferentes. Lutarao indefini- damente entre si. Eis entio a questo que se poe e que tomo por essen- cial. Uma vez que toda tentativa de filosofia puramente conceitual suscita tentativas antagonistas e que, no ter- 154 (OPENSAMENTO EO MOVENTE reno da dialética pura, nao ha sistema ao qual ndo se pos- sa opor outro, iremos nds permanecer nesse terreno ou serd que nao deveriamos antes (sem renunciar, nem é preciso dizé-lo, ao exercicio das faculdades de concep¢ao e de raciocinio) voltar A percepgao, conseguir dela que se dilate e se estenda? Eu dizia que 6 a insuficiéncia da per- cepgao natural que levou os fildsofos a completar a percep- go pela concepgao ~ esta devendo colmatar os inter- valos entre os dados dos sentidos ou da consciéncia e, assim fazendo, unificar e sistematizar nosso conheci- mento das coisas. Mas 0 exame das doutrinas mostra- nos que a faculdade de conceber, a medida que progride nesse trabalho de integracio, est reduzida a eliminar do real um grande nimero de diferencas qualitativas, a apa- gar em parte nossas percepcdes, a empobrecer nossa vi- so conereta do universo. E mesmo pelo fato de ser leva- da, de bom ou mau grado, a assim proceder que toda fi- losofia suscita filosofias antagonistas, cada uma das quais reergue algo daquilo que ela deixou cair. 0 método vai portanto de encontro ao objetivo: ele devia, em teoria, estender e completar a percepgio; é obrigado, de fato, a pedir a um sem-fim de percepgdes que se apaguem para que tal ou tal dentre elas possa tornar-se representativa das outras. - Mas suponham que, ao invés de querermos nos elevar acima de nossa percepcao das coisas, nela nos afundassemos para cavé-la e alargé-la.,Suponham que nela inserissemos nossa vontade e que essa vontade, di- latando-se, dilatasse nossa visdo das coisas. Obteriamos desta vez uma filosofia na qual nao se sacrificaria nada dos dados dos sentidos e da consciéncia: nenhuma qua- lidade, nenhum aspecto do real se substituiria ao resto sob o pretexto de explicd-lo. Mas, sobretudo, teriamos uma filosofia & qual nao seria possivel opor outras, pois, ‘A PERCEPCAO DA MUDANCA 155 nada teria deixado fora de si que outras pudessem reco- Iher: teria tomado tudo. Teria tomado tudo 0 que é dado, mesmo mais que aquilo que é dado, pois os sentidos e a consciéncia, instados por ela a um esforco excepcional, ter-lhe-iam entregue mais do que fornecem natural- mente. A multiplicidade dos sistemas que lutam entre si, armados de conceitos diferentes, se sucederia a unidade de uma doutrina capaz de reconciliar todos os pensado- Tes em uma mesma percepgao — percepgao que iria alids se alargando, gracas ao esforgo combinado dos filésofos em uma diregio comum.| Dirdo que esse alargamento é impossivel. Como pe- dir aos olhos do corpo ou aos do espitito que vejam mais do que aquilo que véem? A atengao pode tornar mais pre- ciso, iluminar, intensificar: ela nao faz surgir, no campo da percepcao, aquilo que ali n@o se encontrava de inicio. Eis a objegao. ~ Ela é refutada, cremos nés, pela experién- cia. Com efeito, hé séculos que surgem homens cuja fun- Gao é justamente a de ver e de nos fazer ver 0 que nao percebemos naturalmente, Sao os artistas. O que visa a arte, a nao ser nos mostrar, na nature- za eno espitito, fora de nés e em nds, coisas que nao im- pressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciéncia? O poeta e o romancista que exprimem um estado de alma'decerto nao a criam pega por pega; nao 08 compreenderiamos caso nio observassemos em nés, até certo ponto, aquilo que dizem de outrem. A medida que nos falam, aparecem-nos matizes de emocio que podiam estar representados em nés ha muito tempo, mas que permaneciam invisiveis: assim como a imagem foto- gréfica que ainda nao foi mergulhada no banho no qual ird ser revelada. O poeta é esse revelador. Mas em parte alguma a fungio do artista se mostra tao claramente 156 (0 PENSAMENTO EO MOVENTE quanto naquela dentre as artes que abre maior espaco para a imitacdo, refiro-me a pintura, Os grandes pintores so homens aos quais remonta uma certa vis4o das coi- sas que se tornou ou se tornaré'a visio de todos os ho- mens. Um Corot, um Turner, para citar apenas estes, per- ceberam na natureza muitos aspectos que nao nétéva- mos. ~ Acaso se diré que ndo viram, mas criaraniy que nos entregaram produtos de sua imaginagao, que adota- mos suas invengdes porque nos agradam e que simples: mente nos divertimos olhando a natureza através da ima- gem que os grandes pintores dela nos tragaram? — Isso verdade, em certa medida; mas, se fosse unicamente as- sim, por que diriamos acerca de certas obras — a dos mes- tres ~ que elas sio verdadeivas? Onde estaria a diferenca entre a grande arte e a pura fantasia? Aprofundemos o que experimentamos diante de um Turner ou de um Corot: descobriremos que, se os aceitamos e os admiramos, € porque jé haviamos percebido algo daquilo que nos mos- tram, Mas haviamos percebido sem aperceber. Era, para nés, uma viséo brilhante e evanescente, perdida nessa multidao de visdes igualmente brilhantes, igualmente eva- nescentes, que se recobrem em nossa experiéncia usual como "dissolving views” e que constituem, por sua in- terferéncia reciproca, a visao pélida e descolorida que te- mos habitualmente das coisas. O pintor isolou-a; fixou-a tao bem sobre a tela que, doravante, néo podemos nos impedir de aperceber na realidade aquilo que ele préprio viu nela. Bastaria a arte, portanto, para nos mostrar que uma extensio das faculdades de perceber é possivel. Mas, como se efetua essa extensio? - Notemos que o artista sempre passou por um “idealista”. Entende-se com isso que ele esté menos preocupado do que nés com o lado positivo A PERCEPCAO DA MUDANCA 157 e material da vida. E, no sentido proprio da palavra, um “distraido”. Por que consegue ele, sendo mais despren- dido da realidade, ver nela mais coisas? Isso seria incom- preensivel, caso a visio que temos ordinariamente dos objetos exteriores e de nés mesmas nao fosse uma visio que nosso apego a realidacle, nossa necessidade de viver e de agir, nos levou a estreitar e a esvaziar. De fato, ndo seria dificil mostrar que, quanto mais estamos preocupa- dos em viver, tanto menos estamos inclinados a contem- plar, e que as necessidades da aco tendem a limitar 0 campo da visto. Nao posso entrar na demonstragao des- se ponto; considero que muitas questdes psicoldgicas psicofisioldgicas seriam iluminadas por uma nova luz caso reconhecéssemos que a percepsao distinta é sim- plesmente recortada, pelas necessidades da vida pritica, num conjunto mais vast. Gostamos, na psicologia alhures, de ir da parte para o todo, e nosso sistema habi- tual de explicagdo consiste em reconstruir idealmente nossa vida mental com elementos simples, e depois su- por que a composicao desses elementos entre si tenha realmente produzido nossa vida mental. Caso as coisas se passassem assim, nossa percepedo seria de fato inex- tensivel; seria feita pela jungao de certos materiais deter- minados, em quantidade determinada, e nunca encon- trarfamos nela algo diferente daquilo que nela foi depo- sitado de inicio, Mas os fatos, quando os tomamos tais ¢ quais, sem segundas intengdes de explicar o espirito me- canicamente, sugerem uma interpretacao inteiramente diferente. Mostram-nos, na vida psicolégica normal, um esforgo constante do espirito no sentido de limitar seu horizonte, de desviar o olhar daquilo que ele tem um in- teresse material em nao ver. Antes de filosofar, é preciso viver; ¢ a vida exige que ponhamos antolhos, que nio } 158 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE olhemos a esquerda, a direita ou para trés, mas sim reto & nossa frente na diregaio que devemos seguir. Nosso co nhecimento, longe de se constituir por uma associagao gradual de elementos simples, é o efeito de uma disso- ciagéo brusca: no campo imensamente vasto de nosso conhecimento virtual, colhemos, para fazer um conheci- mento atual, tudo o que concere a nossa ago Sobre as coisas; negligenciamos o resto.,O cérebro parece ter sido construido tendo em vista esse trabalho de selegéio, Nao seria dificil mostré-lo no que diz. respeito as operagdes da meméria. Nosso passado, assim como 0 veremos em nossa préxima conferéncia, conserva-se necessariamen- te, automaticamente. Sobrevive inteiro. Mas nosso inte- resse pratico esta em afasté-lo ou, pelo menos, em s6 aceitar aquilo que, nele, pode esclarecer e completar de forma mais ou menos itt a situagao presente. O cérebro serve para efetuar essa escolha: atualiza as lembrangas liteis, mantém no subsolo da consciéncia aquelas que de nada serviriam. O mesmo poderia ser dito acerca da per cepedo. Auxiliar da agao, ela isola, no conjunto da reali- dade, aquilo que nos interessa; mostra-nos menos as coisas mesmas do que o partido que delas poclemos ti- rar. Antecipadamente as classifica, antecipadamente as etiqueta; mal olhamos objeto, basta-nos saber a que categoria ele pertence. Mas, de longe em longe, por um acidente feliz, homens surgem cujos sentidos ou cuja consciéncia séio menos aderentes a vida.,A natureza es- queceu de vincular sua faculdade de perceber & sua fa~ culdade de agir- Quando otham para alguma coisa, veem- na por ela mesma, e no mais para eles; percebem por perceber ~ por nada, pelo prazer. Por um certo lado deles préprios, quer por sua consciéncia, quer por um de seus sentidos, nascem desprendidos; e, conforme esse despren- A PERCEPCAO DA MUDANCA 159 dimento seja o de tal ou de tal sentido, ou da conscién- cia, s4o pintores ou escultores, mtisicos ou poetas. E por- tanto realmente uma vis4o mais direta da realidade que encontramos nas diferentes artes; e é pelo fato de o artis- ta nao pensar tanto em utilizar stia percepgdo que ele per- cebe um maior nuimero de coisas.., Pois bem, aquilo que a natureza faz de longe em lon- ge, por distraco, para alguns privilegiados, seré que a fi- Josofia, em semelhante matéria, ndo poderia tentar fazé- Jo, num outro sentido e de outro modo, para todo mun- do? O papel da filosofia porventura nao seria, aqui, o de nos levar a uma percepgao mais completa da realidade gracas a um certo deslocamento de nossa atencao? Tra- tar-se-ia de afiastar essa ateng&o do lado praticamente interessante do universo e de volté-la para aquilo que, praticamente, de nada serve. Essa conversio da atengéo seria a propria filosofia. A primeira vista, parece que isto jé tenha sido feito hd muito tempo. Com efeito, mais de um fil6sofo disse que 0 desprendimento era condicao para filosofar e que especular era 0 inverso de agir, Falévamos, hd pouco, dos fildsofos gregos: nenhum exprimiu essa idéia com mais forga do que Plotino. “Toda acao, dizia ele (¢ ele acres- centava mesmo “toda fabricagao”), é um enfraquecimento da contemplagio” (navea:z00 87 avevproopey tiv noinow ai thy apabw A Godeveray Bempig H napoxoRovenpe). E, fiel ao espirito de Platao, ele pensava que a descoberta do verdadeiro exige uma conversio ¢motpogi) do espi- rito, que se desprende das aparéncias ca de baixo e se apega as realidades 14 de cima: “Fujamos para nossa amada patria!” - Mas, como vocés podem ver, tratava-se de “fugir”. Mais precisamente, para Platao e para todos aqueles que assim compreenderam a metafisica, despren- 160 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE der-se da vida e converter sua atencao consiste em trans- portar-se imediatamente para um mundo diferente da- guele onde vivemos, em suscitar faculdades de percep- 0 outras que os sentidos e a consciéncia, Nao acredita- ram que essa educagio da atengio pudesse consistir 0 mais das vezes em lhe retirar seus antolhos, em desabi tud-la do encolhimento que as exigéncias da vida Ihe im- poem. Nao julgaram que o metafisico, no que diz respe toa pelo menos metade de suas especulagies, devesse continuar a olhar aquilo que todo mundo olha: nao, se- tia sempre necessirio voltat-se para outra coisa. Daf vem que recorram invariavelmente a faculdades de visao di- ferentes daquelas que, a cada instante, exercemos no co- nhecimento do mundo exterior e de nés mesmos. E é justamente porque contestava a existéncia des- sas faculdades transcendentes que Kant acreditou que a metafisica fosse impossivel. Uma das idéias mais impor- tantes e mais profundas da Critica da raztio pura 6 a se- guinte: se a metafisica é possivel, é por uma visa6 e nio por uma dialética, A dialética conduz-nos a filosofias opos- tas; demonstra tanto a tese quanto a antitese das antino- mias. Apenas uma intuigdo superior (que Kant chama de intuigio “intelectual”, isto 6, uma percepeto da realidade metafisica, permitiria 4 metafisica se constituir. Assim, 0 resultado mais claro da Critica kantiana é 0 de mostrar que nao se poderia penetrar no além a nao ser por uma visdo e que uma doutrina sé vale, nesse dominio, por aquilo que contém de percepodo: tomem essa percepeao, analisem-na, recomponham-na, vitem-na e revitem-na em todos os sentidos, facam-na sofrer as mais sutis ope- rages da mais alta quimica intelectual, nunca extrairdo do cadinho de voeés algo que ali nao tenham posto; o tan- to de visio que ali tiverem posto é 0 tanto que reencon- ‘A PERCEPCAO DA MUDANCA 161 trardo; ¢ o raciocinio nao os terd feito progredir um pas- so sequer para além daquilo que haviam percebido de infeio, Eis 0 que Kant trouxe a plena luz; e este 6, a meu ver, 0 maior servigo que ele tenha prestado a filosofia e: peculativa, Estabeleceu definitivamente que, se a metafi- sica é possivel, s6 pode ser por um esforco de intuigao. — $6 que, tendo provado que apenas a intuigao seria capaz de nos dar uma metafisica, acrescentou: essa intuigao é impossfvel. Por que a julgou impossivel? Precisamente porque concebeu uma visdo desse género — quero dizer, uma vi- so da realidade “em si” — nos termos em que Plotino a havia concebido, nos termos em que a conceberam em geral aqueles que recorreram a intuigo metafisica. Todos a entenderam como uma faculdade de conhecer que se distinguiria radicalmente tanto da consciéncia quanto dos sentidos e que estaria até mesmo orientada na diregio inversa. Todos acreditaram que desprender-se da vida pratica era voltar-Ihe as costas. Por que pensaram assim? Por que Kant, seu adver- sétio, pariilhou seu erro? Por que julgaram assim todos, ainda que tirando conclusdes opostas, estes construindo imediatamente uma metafisica, aquele declarando a me- tafisica impossivel? Pensaram assim porque imaginaram que nossos sen- tidos e nossa consciéncia, tal como funcionam na vida de todos os dias, nos faziam apreender diretamente 0 mo- vimento, Acreditaram que por meio de nossos sentidos e de nossa consciéncia, trabalhando como trabalham de ordindrio, perceberiamos realmente a mudanga nas coi- sas ea mudanga em nés. Entao, como é incontestvel que, ao seguirmos os dados habituais de nossos sentidos e de nossa consciéncia, desembocamos em contradigdes 162 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE insoliveis na ordem da especulacio, concluftam a partir daf que a contradigao era inerente & propria mudanga que, para subtrair-se a essa contradi¢ao, cabia sair da es- fera da mudanga ¢ elevar-se acima do Tempo. Tal é 0 fun- do do pensamento dos metafisicos, assim como também daqueles que, com Kant, negam a possibilidade da me- tafisica , ‘A metafisica nasceu, com efeito, dos argumentos de Zendo de Eléia relativos 4 mudanga e ao movimento. Foi Zendo, ao chamar a atenco para o absurdo daqui- Jo que ele chamava de movimento e de mudanga, quem Jevou 0s fildsofos ~ Plato em primeiro lugar ~ a procurar arealidade coerente e verdadeira naquilo que nao muda. Eé pelo fato de acreditar que nossos sentidos e nossa consciéncia se exercem efetivamente num Tempo verda- deiro, quero dizer, num Tempo que muda incessantemen- te, numa duragdo que dura, e, de outro lado, pelo fato de se dar conta da relatividade dos dados usuais de nossos sentidos e de nossa consciéncia (detida por ele, alids, bem antes do termo transcendente de seu esforgo) que Kant julgou que a metafisica fosse impossivel sem uma visio inteiramente diferente da dos sentidos e da consciéncia = visio da qual, por outro lado, ele nao encontrava rastro no homem.’ ‘Mas, caso pudéssemos estabelecer que aquilo que foi considerado como movimento e mudanga primeiro por Zeno, depois pelos metafisicos em geral, nao é nem mudanga nem movimento, caso pudéssemos estabelecer que eles retiveram da mudanca aquilo que nao muda e do movimento aquilo que nao se move, que tomaram por uma percepcao imediata e completa do movimento e da mudanca uma cristalizagao dessa percepgao, uma solidificagao tendo em vista a pratica; ~e se pudéssemos A PERCEPCAO DA MUDANCA 163 mostrar, por outro lado, que aquilo que foi tomado por Kant pelo proprio Tempo é um tempo que nao flui nem muda nem dura; ~ entao, para subtrair-se a contradigdes como as que Zenao assinalou e para libertar nosso co- nhecimento cotidiano da relatividade que segundo Kant a afetava, nao haveria que sair do tempo (jd saimos dele!), no haveria que se desligar do movimento (dele esta- mos, alids, por demais desligados!), caberia, pelo contré- rio, recuperar a mudanga e a duragdo em sua mobilida- de original. Entdo, nao veriamos apenas desaparecer uma por uma muitas dificuldades e desvanecer-se mais de um problema: através da extensao e da revivificago de nossa faculdade de perceber, talvez também (mas por enquanto est fora de questéo elevar-se a tais alturas) através de um prolongamento dado a intuigéo por almas privilegiadas, restabelecerfamos a continuidade no con- junto de nossos conhecimentos — continuidade que nao seria hipotética e construida, mas experimentada e vivida. Seria possivel um trabalho desse tipo? Eo que in- vestigaremos juntos, pelo menos no que diz respeito a0 conhecimento de nosso entorno, em nossa segunda conferéncia. Segunda conferéncia Vocés me concederam ontem uma atengao tao con- centrada que no irdo estranhar se eu me sentir tentado a abusar dela hoje. Irei pedir-Ihes que facam um esforgo violento para afastar alguns dos esquemas artificiais que interpomos, sem o sabermos, entre a realidade e nds mes- mos. Trata-se de romper com certos habitos de pensar e de perceber que se nos tornaram naturais. Cabe voltar & 164 (OPENSAMENTO E 0 MOVENTE percepgao direta da mudanga e da mobilidade. Eis um pri- meiro resultado desse esforco. Representar-nos-emos toda muudanca, todo movimento, como absolutamente indivisteel. Comecemos pelo movimento. Tenho a mao no pon- to A. Transporto-a para 0 ponto B, percorrendo 0 inter- valo AB. Digo que esse movimento de A para B é algo simples. . Ora, disso cada um de nés tem a sensacdo imediata Sem diivida, enquanto levamos nossa mao de A para B, dizemo-nos que poderiamos deté-la num ponto inter- medidrio, mas entao jé nao lidarfamos mais com o mes- mo movimento. J4 nao haveria mais um movimento ini co de A para B; haveria, por hipétese, dois movimentos, com um intervalo de parada. Nem de dentro, pelo senti- do muscular, nem de fora, pela vista, terfamos a mesma percepgao. Se deixamos nosso movimento de A para B tal como ele é, sentimo-lo indiviso e devemos declara-lo indivistvel, E verdade que, quando olho minha mao ir de A para B descrevendo 0 intervalo AB, eu me digo: “o intervalo AB pode dividir-se em tantas partes quantas eu quiser, portanto 0 movimento de A para B pode dividir-se em tantas partes quantas me aprouver, uma vez que esse movimento se aplica sobre esse intervalo”. Ou ainda: “a cada instante de seu trajeto, o mével passa por um certo ponto, portanto podemos distinguir no movimento tan- tas etapas quantas quisermos, portanto 0 movimento é infinitamente divistvel”. Mas reflitamos um pouco a res- peito. Como poderia 0 movimento aplicar-se sobre o es- aco que percorte? Como haveria 0 movente de coinci- dir com o imével? Como haveria 0 objeto que se move de estar num ponto de seu trajeto? O objeto passa pelo ponto, ou, em outros termos, poderia estar nele, Estaria A PERCEPCAO DA MUDANGA 165 nele, caso nele parasse: mas, caso nele parasse, jé ndo se- tia mais com o mesmo movimento que lidariamos.,E sem- pre num tinico pulo que um trajeto € percorrido, quando nao hé parada no trajeto.,O pulo pode durar alguns se- gundos, ou dias, meses, anos: pouco importa. A partir do momento em que ele é tinico, é indecomponivel. $6 que, uma vez.o trajeto feito, como a trajetéria é espago e 0 es- paco é infinitamente divisivel, figuramo-nos que 0 pré- prio movimento seja indefinidamente divisfvel.,E isso nos apraz porque, num movimento, nao é a mudanga de posicdio que nos interessa, sao as prdprias posigies, aque- la que o mével deixou, aquela que ele assumiré, aquela que ele assumiria caso parasse no meio do caminho. Pre- cisamos de imobilidade e quanto mais conseguirmos nos representar 0 movimento como coincidindo com as imo- bilidades dos pontos do espaco que ele percorre, tanto melhor acreditaremos compreendé-lo.,A bem dizer, nao hd nunca imobilidade verdadeira, se entendemos com so uma auséncia de movimento. O movimento é a pré- pria realidade e 0 que chamamos de imobilidade ¢ um certo estado de coisas andlogo aquele que se produz quando dois trens caminham com a mesma velocidade, no mesmo sentido, em duas vias paralelas: cada um dos dois trens est entao imével pata os viajantes sentados no outro, Mas uma situacdo desse género, que, afinal de contas, é excepcional, parece-nos ser a situago regular e normal porque é aquela que permite que ajamos sobre as coisas e que permite também as coisas que ajam so- bre nés: os viajantes dos dois trens s6 poderdo trocar apertos de mao pela portinhola e falar uns com os outros caso estejam “iméveis’, isto é, caso andem no mesmo sentido com a mesma velocidade. A “imobilidade” sendo aquilo de que nossa aco precisa, erigimo-la em realida- 166 ( PENSAMENTO E 0 MOVENTE de, dela fazemos um absoluto e vemos no movimento algo que a ela vem se acrescentar. Nada mais legitimo na pratica. Mas, quando transportamos esse habito de espiri- to para o dominio da especulacao, desconhecemos a tea- lidade verdadeira, criamos alegremente problemas insolii- veis, fechamos 03 olhos ao que ha de mais vivo no real. ‘Nao preciso lembrar-Ihes os argumentos de Zendo de Eléia. Todos eles implicam a confuséio do movimento com 0 espaco percortido ou, pelo menos, a conviccio de que se pode tratar 0 movimento como se trata 0 espaco, dividi-lo sem levar em conta suas articulagdes. Aquiles, dizem-nos, nunca alcancard a tartaruga que ele perse- gue, pois, quando chegar ao ponto em que estava a tar- taruga, esta terd tido tempo de andar, e assim por dian- te, indefinidamente.,Os filésofos refutaram esse argu- mento de muitas maneiras, e de maneiras tao diferentes que cada uma dessas refutagdes retira as outras o direito de se acreditarem definitivas. Haveria, no entanto, um meio muito simples de resolver a dificuldade: teria sido interrogar Aquiles. Pois, uma vez, que Aquiles acaba por alcangar a tartaruga e, mesmo, por ultrapassé-la, ele deve saber, melhor do que ninguém, como consegue fazé-lo, filésofo antigo que demonstrava a possibilidade do movimento andando estava certo: seu Unico erro foi fa- zer 0 gesto sem Ihe juntar um comentério, Pecamos en- ‘Go a Aquiles que comente sua corrida: eis, sem diivida alguma, 0 que nos responderd. “Zeno quer que eu me desloque do ponto em que estou até o ponto que a tar taruga deixou, deste até 0 ponto que ela novamente dei- xou, etc,; é assim que ele procede para me fazer correr Mas eu, para correr, procedo diferentemente. Dou um primeiro passo, depois um segundo, e assim por diante: finalmente, apés um certo ntimero de passos, dou um A PERCEPCAO DA MUDANCA 167 Ailtimo passo com o qual pulo por cima da tartaruga. Rea- lizo assim uma série de atos indivisiveis. Minha corrida € a série desses atos. Tantos sao 0s passos, tantas sero as partes que vocés podem distinguir nela. Mas vocés nio tém o direito de desarticulé-la segundo uma outta lei, nem sup6-la articulada de uma outra maneira. Proceder como 0 faz Zenao é admitir que a cortida possa ser decompos- ta arbitrariamente, como o espaco percortido; é acreditar que o Lrajeto se aplica realmente sobre a trajetéria; é fa- zet coincidir e, por conseguinte, confundir um com 0 ou- tro movimento e imobilidade.” Mas nosso método habitual consiste precisamente nisso. Raciocinamos sobre 0 movimento como se este fosse feito de imobilidades e, quando 0 olhamos, é com imobilidades que o reconstituimos. O movimento, para rnés, 6 uma posigio, depois uma nova posigéo, e assim por diante, indefinidamente. Bem que nos dizemos, 6 verdade, que deve haver outra coisa e que, de uma posi- go para outra posigdo, hé a passagem pela qual se trans- poe 0 intervalo. Mas, assim que fixamos nossa atencéo sobre essa passagem, rapidamente fazemos dela uma sé- tie de posigdes, ao prego de reconhecer novamente que enitte duas posigdes sucessivas é preciso de qualquer for- ma supor uma passagem. Essa passagem, nés adiamos indefinidamente 0 momento de consideré-la. Admiti- mos que ela existe, damos-Ihe um nome, isto nos basta: uma vez as coisas em ordem desse Jado, voltamo-nos para as posicdes e preferimos lidar apenas com elas. Te- ‘mos instintivamente medo das dificuldades que seriam suscitadas para nosso pensamento pela visio do movi- mento naquilo que este tem de movente; ¢ estamos cer- tos, a partir do momento em que o movimento foi carre- gado por nés de imobilidades. Se o movimento nao for 168 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE tudo, nao seré nada; e, se de inicio pusemos que a imobi- lidade pode ser uma realidade, o movimento escorregard entre nossos dedos quando acreditarmos té-lo pego. Falei do movimento; mas diria o mesmo acerca de toda e qualquer mudanga. Toda mudanca real é uma mu- danga indivisivel. Gostamos de traté-la como uma série de estados distintos que, de certa forma, se alinhariam no tempo. Isso também é natural. Se a mudanga é continua em nés e continua também nas coisas, em compensacio, pata que a mudanga ininterrupta que cada um de nos chama “eu” possa agir sobre a mudanca ininterrupta que chamamos “coisa”, é preciso que essas duas mudancas se encontrem, uma com relagdo a outra, numa situacao andloga a dos dois trens de que falévamos ha pouco. Di- Zemos, por exemplo, que um objeto muda de cor ¢ que a mudanca consiste aqui numa série de tons, os quais se- tiam os elementos constitutivos da mudanga e, eles, nao mudariam. Mas, primeiro, aquilo que existe objetivamen- te em cada tom & uma oscilagao infinitamente répida, é mudanga. E, por outro lado, a percepcio que deles te- mos, no que ela tem de subjetivo, é apenas um aspecto isolado, abstrato, do estado geral de nossa pessoa, 0 qual sem cessar muda globalmente e faz participar de sua mu- danga essa percepeio dita invaridvel: de fato, nao hé per- cepgao que nao se modifique a cada instante,,De modo que a cor, fora de nés, 6 a prépria mobilidade e nossa prépria pessoa também é mobilidade. Mas todo o meca- nismo de nossa percepcao das coisas, assim como 0 de nossa ago sobre as coisas, foi regrado de maneira que pro- duzisse aqui, entre a mobilidade extema e a mobilidade interior, uma situagdo comparavel 4 de nossos dois trens = mais complicada, sem diivida, mas de mesmo géne- 0: quando as duas mudancas, a do objeto e a do sujeito, ocortem nessas condicdes patticulares, suscitam a apa. A PERCEPCAO DA MUDANCA 169 réncia particular que chamamos um “estado”. E nosso espftito, uma vez de posse de “estados”, com eles recom- poe a mudanca, Nada de mais natural, repito: 0 despe- dagamento da mudanga em estados pae-nos em condi- ses de agir sobre as coisas, ¢é ttl praticamente interes- sar-se antes pelos estados do que pela propria mudanca, Mas 0 que favorece aqui a ago seria mortal para a espe- culagio, Representemn-se uma mudanca como realmente composta par estados: ao fa78-lo, voces também fazem surgir problemas metafisicos insoliveis. Estes versam ape- nas sobre aparéncias. Voeés fecharam os olhos a realida- de verdadeira. Nao insistirei mais. Que cada um de nés faga a ex- periéncia, que obtenha a visdo direta de uma mudanca, de um movimento: terd um sentimento de absoluta in- divisibilidade. Passo entdo para o segundo ponto, que é vizinho préximo do primeiro. Hd mudangas, mas nfo hd, sob a mudanca, coisas que mudam: a mudanca néo precisa de unt suport. Hé mavimentos, mas nfo hé objeto inert, ioa- ridvel, que se mova: 0 movimento nao implica um mével’ 1. Reproduzimas essas concepgbes sob a forma exata que Ihe de- ‘mos em nossa conferéncia, sem nos esconder que provavelmente ira0 suscitar 0s mesmos mal-entendides que na ocasiio, a despeito das apli- ‘aches ¢ explicagSes que apresentamos em trabalhos ulteriores. Do fato de que um ser € acfo, acaso se pode concluir que sua existéneia soja eva- nescente? O que é que se diz de diferente daquilo que dizemos, quanclo se faz com que ele resida mam “substratum” que nada tem de determi- nado, uma vez.que, por hipétese, sua determinagio e, por conseguinte, sua esséncia é essa agio mesma? Por acaso uma existincia assim conce- bida cessa alguma vez de estar presente asi mesina, sea duragio rel implica a perssténcia do passado no presente ea continuidade indivist ‘vel de um desenrolamento? Todos os mal-entendidos provém do fato de ‘que as pessoas abordaram as aplicagBes de nossa concepcio da duracio real com a idéia que se faziam do tempo espacializado, 170 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE ‘Temos dificuldade em nos representar assim as coi- sas, porque o sentido por exceléncia é 0 da vista e por- que 0 olho tomou o habito de recortar, no canjunto do campo visual, figuras relativamente invaridveis que en- to supomos que se desloquem sem se deformarem: 0 movimento acrescentar-se-ia ao mével como um aciden- te. E de fato titi] lidar, todos os dias, com objetos estaveis ¢, de certa forma, responsdveis, aos quais nos enderega- mos como que a pessoas. Q sentido da vista arranja-se de modo que tome as coisas por esse viés: batedor do tato, prepara nossa ago sobre o mundo exterior. Mas jé tere- mos menos dificuldade em perceber 0 movimento e a mudanga como realidades independentes se nos ende- recarmos ao sentido da audigéo. Escutemos uma melo- dia, deixando-nos embalar por ela: nao temos nés a per~ cepcao nitida de um movimento que nao esté vinculado a um mével, de uma mudanga sem nada que mude? Essa mudanga se basta, ela é a coisa mesma. E, por mais que tome tempo, é indivistvel: caso a melodia se inter- rompesse antes, jé nao seria mais a mesma massa sono- ra; seria outra, igualmente indivisivel. Sem dtivida, temos uma tendéncia a dividi-la e a nos representar, ao invés da continuidade ininterrupta da melodia, uma justaposi- G0 de notas distintas. Mas por qué? Forque pensamos na série descontinua de esforgos que fariamos, pondo- nos a cantar, para recompor aproximativamente 0 som ouvido e também porque nossa percepeao auditiva con- trait o habito de se impregnar de imagens visuais. Escu- tamos ento a melodia através da visdo que dela teria um maestro olhando sua partitura. Representamo-nos notas justapostas a notas sobre uma folha de papel imagindi Pensamos num teclado sobre o qual se toca, no arco que vai e vem, no miisico, cada um dos quais executa sua APERCEPCAO DA MUDANCA 71 parte ao lado dos outros. Fagamos abstragao dessas ima- gens espaciais: resta a mudanga pura, bastando-se a si mesma, de modo algum dividida, de modo algum vincu- lada a uma “coisa” que muda ‘Voltemos entao a visao. Fixando um pouco mais nos- saatengao, perceberemos que tampouco aqui 0 movimen- to exige um veiculo, como tampouco a mudanca exige uma substancia, no sentido corrente da palavra. Jé a cién- cia fisica nos sugere essa visio das coisas materiais, Quan- to mais progride, tanto mais resolve a matéria em agdes que caminham através do espago, em movimentos que correm aqui e ali como arrepios, de modo que a mobili- dade se torna a propria realidade. Sem divida, a ciéncia comeca por conferir a essa mobilidade um suporte. Mas, & medida que ela avanga, o suporte recua; as massas pul~ verizam-se em moléculas, as moléculas em atomos, os 4tomos em elétrons ou corptisculos: finalmente, 0 su- porte conferido ao movimento parece realmente nao ser mais que um esquema cémodo ~ simples concesséo do cientista aos habitos de nossa imaginacao visual. Mas de modo algum era preciso ir to longe. O que é 0 “mével” a0 qual nosso olho vincula o movimento, como que a um vefculo? Simplesmente uma mancha colorida, que sabe- ‘mos bem que se reduz, em si mesma, a uma série de os- cilages extremamente rapidas. Esse pretenso movimen- to de uma coisa nao é na realidade mais que um movi- mento de movimentos. Mas em parte alguma a substancialidade da mudan- ga € t&o visivel, tao palpavel, quanto no dominio da vida interior. As dificuldades e contradigdes de todo género nas quais desembocaram as teorias da personalidade vem do fato de que estas se representaram, de um lado, uma série de estados psicolégicos distintos, cada um deles in- 172 (OPENSAMENTO E 0 MOVENTE varidvel, que produziriam as variagdes do cu por sua su- cessio mesma, ¢, de outro, um eu, ndo menos invariével, que Ihes serviria de suporte. De que modo essa unidade © essa multiplicidade poderiam confluir? De que modo, nenhuma das duas durando — a primeira porque a mu- danga é algo que Ihe vem por aeréscimo, a segunda por- que € feita de elementos que nao mudam -, poderiam elas constituir um eu que dura? Mas a verdade é que ndo hé nem substratum rigido imutavel nem estados distintos que passam por ele como atores por um palco. Ha simples- mente a melodia continua de nossa vida interior — melodia que prossegue e prosseguiré, indivisivel, do comego ao fim de nossa existéncia consciente, Nossa personalidade 6 exa- tamente isso. E justamente essa indivisivel continuidade de mu- danca que constitui a duragao verdadeira, Nao posso en- trar aqui no exame aprofundado de uma questo da qual tratej alhures. Limitar-me-ei entio a dizer, para respon- der aqueles que véem nessa duracio “real” algo de inefa- vel e de misterioso, que ela é a coisa mais clara do mun- do: a duragao real é aquilo que sempre se chamou tevipo, ‘mas o tempo percebido como indivisivel. Que o tempo im- plique a sucesso, nao 0 contesto. Mas que a sucessao se apresente primeiro a nossa consciéncia como a distin Go de um “antes” e de um “depois” justapostos, € 0 que eu nao conseguiria conceder. Quando escutamos uma melodia, temos a mais pura impressao de sucessiio que possamos ter ~ uma impressao tao afastada quanto pos- sivel daquela da simultaneidade ~ e, no entanto, 6a pré- pria continuidade da melodia e a impossibilidade de de- compé-la que nos dao essa impressio. Se a recortamos em notas distintas, em tantos “antes” e “depois” quan- tos nos aprouver, é porque nela misturamos imagens es- A FERCEPGAO DA MUDANCA 173 paciais e porque impregnamos de simultaneidade a su- cessao: no espaco, e apenas no espaco, ha distingao niti- da de partes exteriores umas as outras. Reconhego, por outro lado, que é no tempo espacializado que nos insta- lamos normalmente. Nao temos nenhum interesse em escutar 0 rumorejo ininterrupto da vida profunda. E, no entanto, a duracao real esté af. E gracas a ela que tomam lugar num tinico e mesmo tempo as mudangas mais ou menos longas as quais assistimos em nés e no mundo exterior. Assim, trate-se do dentro ou do fora, de nés ou das coisas, a realidade é a propria mobilidade. £ 0 que eu ex- primia dizendo que ha mudanga, mas que nao hé coisas que mudam. Diante do espetéculo dessa mobilidade universal, al- guns dentre nds sero tomados de vertigem. Esto habi- tuados a terra firme; nao conseguem se acostumar a0 jogo e ao balango do mar. Precisam de pontos “fixos” aos quais fixar a vida e a existéncia, Estimam que se tudo pas- sa, nada existe; e que se a realidade é mobilidade, ela jé nao é no momento em que a pensamos, ela escapa ao pensamento. O mundo material, dizem, ird dissolver-se © 0 espitito afogar-se no fluxo torrencial das coisas. Que se trangiiilizem! A mudanga, se consentirem em olha-la diretamente, sem véu interposto, bem rapidamente Ihes aparecer como o que pode haver no mundo de mais subs- tancial e de mais durdvel. Sua solidez.é infinitamente supe- ior 4 de uma fixidez que nao é mais que um arranjo eféme- ro entre mobilidades. Passo aqui, com efeito, ao terceiro ponto para o qual queria chamar a atencao de vocés. que, se a mudanga é real e mesmo constitutiva da realidade, precisamos encarar 0 passado de modo intei- ramente diferente do que fomos acostumados a fazé-lo 174 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE pela filosofia e pela linguagem. Inclinamo-nos a nos re- presentar nosso passado como inexistente e 0s fil6sofes encorajam em nés essa tendéncia natural. Para eles ¢ pata nés, apenas o presente existe por si mesmo: se algo sobrevive do passado, s6 pode ser por um socorro que o presente Ihe presta, por uma caridade que o presente Ihe faz, enfim, para sair das metéforas, pela intervengao de uma certa fungéo particular que se chama meméria e cujo papel seria o de conservar excepcionalmente tais ou tais partes do passado armazenando-as numa espécie de caixa, ~ Erto profundo! Erro ttil, eu 0 concedo, necessé- rio talvez & aco, mas mortal para a especulagio. Nele encontrarfamos, encerrados “in a nutshell”, como vocés dizem, a maior parte das ilusdes que podem vieiar o pen- samento filoséfico. De fato, reflitamos acerca desse “presente” que seria © tinico a existir. O que 6, ao certo, o presente? Caso se trate do instante atual - quero dizer, um instante mate- miético que estaria para o tempo como o ponto matemé- tico esta para a linha -, é claro que um semelhante ins tante é uma pura abstracéio, uma visao do espitito; ele nao poderia ter existéncia real. Com semelhantes instan: tes, vocés nunca fariam um tempo, como tampouco com- poriam uma linha com pontos mateméticos. Suponham mesmo que ele exista: como haveria um instante ante- rior a este? Os dois instantes s6 poderiam ser separados por um intervalo de tempo, uma vez que, por hipétese, vocés reduzem o tempo a uma justaposigéo de instantes. Portanto, eles nao seriam separados por nada e, por con- seguinte, seriam um sé e o mesmo: dois pontos matema- ticos que se tocam confundem-se. Mas deixemos de la- do essas sutilezas. Nossa consciéncia nos diz que, quando falamos de nosso presente, 6 num certo intervalo de du- APERCEPGAO DA MUDANCA 175 ragio que pensamos. Que duragéo? Impossivel fixé-la exatamente; é algo um tanto indeciso. Meu presente, nesse momento, é a frase que me dedico a pronunciar. “Mas isso se dé apenas porque me agrada limitar 4 minha frase 0 campo de minha atengao. Essa atencao € algo que pode se alongar ou se encurtar, como o intervalo entre as duas pontas de um compasso. Neste momento, as pon= tas afastam-se 0 suficiente para ir do comeco ao fim de minha frase; mas, se ine viesse a vontade de afasté-las ainda mais, meu presente abarcaria, além de minha tl- tima frase, aquela que a precedia: ter-me-ia bastado adotar uma outra pontuagdo. Podemos ir mais longe: ‘uma atengéio que seria indefinidamente extensivel man- teria sob seu olhar, com a frase precedente, todas as fra- ses anteriores da aula, e os acontecimentos que prece- deram a aula, e uma porgdo t4o grande quanto quiser- mos daquilo que chamamos nosso pasado. A distingéo que fazemos entre nosso presente ¢ nosso passado é, portanto, sendo arbitréria, pelo menos relativa a exten so do campo que nossa atencao a vida pode abarcar.O “presente” ocupa exatamente tanto espago quanto esse esforco. Assim que essa atengao particular larga algo daquilo que mantinha sob seu olhar, imediatamente a parte do presente que ela abandona torna-se ipso facto passado. Numa palavra, nosso presente cai no passado quando deixamos de Ihe atribuir um interesse atual, Ocorre com o presente dos individuos o mesmo que com © das nagdes: um acontecimento pertence ao passado e entra na historia quando nao interessa mais diretamen- te a politica do dia e pode ser negligenciado sem que os negécios sofram com isso. Enguanto sua agéo se fizer sentir, ele adere a vida da nacao e permanece presente para esta. 176 0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE Desde entao, nada nos impede de recuar t4o longe quanto possivel a linha de separacéo entre nosso pre- sente e nosso passado. Uma atengo a vida que fosse su- ficientemente poderosa ¢ suficientemente desprendida de todo interesse pratico abarcaria assim num presente indiviso a histéria passada inteira da pessoa consciente — nao como algo instantaneo, nao como um conjunto de partes simuultaneas, mas como algo continuamente pre- sente que seria também algo continuamente movente: assim come, repito, a melodia que percebemos indivist- vel e que constitui de uma ponta & outta, se quisermos estender o sentido da palavra, um presente perpétuo, ain- da que nada haja de comum entre essa perpetuidade e a imutabilidade, nem entre essa indivisibilidade e a ins- tantaneidade. Trata-se de um presente que dura Esta nao é uma hipétese. Ocorre, em casos excepcio- nais, que a atengao renuncie de repente ao interesse que tomava pela vida: imediatamente, como que por encan- to, 0 passado torna-se novamente presente, Em pessoas que véem surgir & sua frente, de forma imprevista, a amea- ga de uma morte stibita, no alpinista que escorrega no fundo de um precipicio, nos afogados e nos enforcados, parece que uma conversao brusca da atengio possa se produit ~ algo como uma mudanga de orientagao da consciéncia que, até ento voltada para 0 porvir e absor- vida pelas necessidades da acio, subitamente deles se desinteressa. Isso basta para que milhares e milhares de detalhes “esquecidos” sejam rememorados, para que a histéria inteira da pessoa se desenrole & sua frente num movente panorama. A memiéria nao precisa, portanto, de explicagao. Ou antes, nao hé faculdade especial cujo papel seja o de re- ter o passado para verté-lo no presente. O passado con- A PERCEPCAO DA MUDANGA 17 serva-se por si mesmo, autornaticamente. Decerto, se fe- chamos 0 olhos & indivisibilidade da mudanga, ao fato de que nosso mais longinquo passado adere a nosso presente e constitui, com ele, uma tinica e mesma mu- danga ininterrupta, parece-nos que o passado é normal mente algo abolido e que a conservagao do passado tem algo de extraordinério: acreditamo-nos entao obrigados a imaginar um aparelho cuja fungao seria a de registrar as partes do passado suscetiveis de reaparecer para a consciéneia. Mas, se levamos em conta a continuidade da vida interior e, por conseguinte, sua indivisibilidade, nao & mais a conservagao do passado que se tratard de expli- car, é pelo contrério sua aparente aboligao. Nao teremos mais que dar conta da lembranca, mas sim do esqueci: mento. Essa explicagao serd aliés encontrada na estrutu- 1a do cérebro..A natureza inventou um mecanismo para canalizar nossa atencio na direcao do porvir, para des- vid-la do pasado - quero dizer, dessa parte de nossa histéria que nao ‘interessa mais nossa acao presente -, para lhe trazer no maximo, sob forma de “lembrancas”, tal ou tal simplificacio da experiéncia anterior, destinada a completar a experiéncia do momento; nisso consiste aqui a funcio do cérebro.'Nao podemos abordar a dis- cusso da teoria que quer que 0 cérebro sirva para a con- servacao do passado, que ele armazene lembrangas co- mo tantos clichés fotogréficos dos quais em seguida tira~ riamos provas, como tantos fonogramas destinados a voltarem a ser sons, Examinamos essa tese alhures, Essa doutrina inspirou-se em grande parte numa certa meta~ fisica da qual a psicologia e a psicofisiologia contempo- raneas estao impregnadas e que é naturalmente aceita: daf sua aparente clareza. Mas, 8 medida que a conside- ramos de mais perto, vemos acumularem-se as dificul 178 0 PENSAMENTO EO MOVENTE dades e as impossibilidades. Tamemos o caso mais favo- rével A tese, o caso de um objeto material causando uma impressio sobre 0 olho e deixando no espirito uma lem- branga visual. O que poderd ser essa lembranga, caso re- sulte verdadeiramente da fixagao, no cérebro, da impres- so recebida pelo olho? Por pouco que o objeto se tenha mexido, ou que o olho se tenha mexido, houve, no uma imagem, mas dez, cem, mil imagens, tantas e mais do que no filme de um cinematégrafo. Por pouco que 0 ob- jeto tenha sido considerado por um certo tempo, ou te- nha sido revisto em momentos diversos, so milhdes de imagens diferentes desse objeto. E tomamos 0 caso mais simples! ~ Suponhamos todas essas imagens armazena- das; de que nos serviriam? Qual é aquela que utilizare- mos? - Admitamos mesmo que tenhamos nossas tazGes para escolher uma delas, por que e como a jogaremos de volta no passado quando a percebermos? — Passemos até mesmo sobre essas dificuldades. Como se explicarao as doengas da meméria? Naquelas dentre essas doencas que correspondem a lesdes locais do cérebro, isto é, nas afasias, a lesio psicoldgica consiste menos numa abo! co das lembrangas do que numa incapacidade de evo- cé-las.,Um esforco, uma emogéo podem trazer brusca- mente 4 consciéncia palavras que acreditévamos defini- tivamente perdidas. Esses fatos, assim como muitos ou- tros, concorrem para provar que o cérebro serve aqui para operar uma escolha no passado, para diminuf-lo, simpli- ficd-lo, utilizd-lo, mas nao para conserva-lo. Nao terfa- mos dificuldade nenhuma em considerar as coisas por esse viés se nao tivéssemos contraido o habito de acre- ditar que 0 passado é abolido. Entao, sua reaparigéo par- cial da-nos 0 efeito de um acontecimento extraordinario, que reclama uma explicagao. E é por isso que imagina- ‘A PERCEPCAO DA MUDANCA 179 mos aqui ali, no cérebro, caixas de lembrancas que con- servariam fragmentos de passado — o cérebro conservan~ do-se alids a si mesmo. Como se isso nao fosse rectiar a dificuldade e simplesmente adiar 0 problema! Como se, ao pér que a matéria cerebral se conserva através do tem- Po ou, mais geralmente, ao par que toda matéria dura, nao se Ihe atribuisse precisamente a meméria que se pretende explicar por ela! Seja ld 0 que for que fagamos, mesmo se supomos que o cérebro armazene lembran- as, ndo escapamos a conclusao de que 0 passado pode conservar-se a si mesmo, automaticamente. Nio apenas nosso préprio passado, mas também 0 passado de toda e qualquer mudanca, com a condigao, todavia, de que se trate de uma mudanga tinica e, por isso mesmo, indivisivel:|a conservagao do passado no presente nao é nada além da indivisibilidade da mudan- ga. E verdade que, para as mudangas que se realizam la fora, quase nunca sabemos se lidamos com uma mudan- gatinica ou com um composto de varios movimentos en- tre 05 quais se intercalam paradas (a parada nunca sen- do mais que relativa). Seria preciso que f6ssemos interio- Tes aos seres e as coisas, como o somos a nds mesmos, para que pudéssemos nos pronunciar a esse respeito Mas nao é isso que importa. Basta ter-se convencido de uma vez por todas de que a realidade é mudanca, de que a mudanca é indivisivel e de que, numa mudanga indivi- sivel, o passado se consubstancia com o presente, Imbuamo-nos dessa verdade e veremos derreter € evaporar um belo niimero de enigmas filos6ficos. Deter- minados grandes problemas, como o da substancia, da mudanga e de sua telacio, deixardio de se pér. Todas as di- ficuldades levantadas em torno desses pontos — dificul- dades que pouco a pouco fizeram a substincia recuar até 180 0 PENSAMENTO £ 0 MOVENT 0 dominio do incognoscivel ~ provinham do fato de que fechamos os olhos a indivisibilidade da mudanga. Se a mudanga, que ¢ evidentemente constitutiva de toda nos- sa experiéncia, é a coisa fugidia da qual a maior parte dos fil6sofos falou, se nela vemos apenas uma poeira de es- tados que substituem estados, por forga temos de resta- belecer a continuidade entre esses estados por um liame artificial; mas esse substrato imével da mobilidade, ndo podendo possuir nenhum dos atributos que conhece- mos ~ uma vez que todos eles sio mudangas -, recua medida que procuramos dele nos aproximar; ele é tao inapreensivel quanto o fantasma de mudanga que ele era chamadio a fixar, Esforcemo-nos, pelo coniratio, para per- ceber a mudanca tal qual ela 6, em sua indivisibilidade natural: vemos que ela 6 a propria substancia das coisas, nem o movimento nos aparece mais sob a forma eva- nescente que o torna inapreensivel pelo pensamento, nem a substancia com a imutabilidade que a tornava inaces- sivel & nossa experiéncia,A instabilidade radical e a imuta- bilidade absoluta nao sao entio mais que vistas abstratas que foram tomadas, de fora, da continuidade da mudanga real, abstragOes que o espirito em seguida hipostasia em estadoe miiltiplos, de um lado, em coisa ou substdncia, de outro. As dificuldades levantadas pelos antigos em tor- no da questao do movimento e pelos modernos em torno da questio da substincia desvanecem-se, estas porque a substancia é movimento e mudanga, aquelas porque o movimento e a mudanca sdo substanciais. ‘Ao mesmo tempo em que obscuridades tedricas se dissipam, entrevé-se a possivel solugio de mais de um problema considerado insoltivel. As discussées relativas a0 livre-arbitrio chegariam a um fim caso nos percebés- semos a nés mesmos ali onde realmente somos, numa nate A PERCEPCAO DA MUDANCA 181 duragao conereta na qual a idéia de determinagao neces- sfria perde toda espécie de significagdo, uma vez que 0 passado ali se consubstancia com o presente e com ele ria incessantemente — quando mais nao seja pelo fato de a ele se acrescentar ~ algo de absolutamente novo,E a relagdio do homem com 0 universo tornar-se-ia susce- tivel de um aprofundamento gradual caso levassemos em conta a verdadeira natureza dos estados, das qualida- des, enfim, de tudo 0 que se apresenta a nds com a apa- réncia da estabilidade. Em semelhante caso, 0 objeto e 0 sujeito devem estar um em Tace do outro numa situacéo andloga 4 dos dois trens de que falévamos de inicio: uma certa ajustagem da mobilidade pela mobilidade que produz.o efeito da imobilidade. Imbuamo-nos entéo des- sa idéia, ndo percamos nunca de vista a relagéo particu- lar do objeto com o sujeito que se traduz numa visdo es- tatica das coisas: tudo o que a experiéncia nos ensinar acerca de um deles aumentaré o conhecimento que te- mos do outro, ¢ a luz que este tiltimo recebe poderé, por reflexdo, iluminar por sua vez aquele. Mas, como eu o anunciava de inicio, a especulagao pura néo seré a tinica a se beneficiar dessa visio do uni- versal devir, Poderemos fazé-la penetrar em nossa vida de todos os dias e, gracas a ela, obter da filosofia satisfa~ ces andlogas as da arte, mas mais freqiientes, mais con- tinuas, mais acessiveis também ao comum dos homens. Aarte sem dtivida nos faz descobrir nas coisas mais qua- lidades e mais matizes do que percebemos naturalmen- te. Dilata nossa percepetio, mas antes na superficie do que na profundidade. Enriquece nosso presente, mas real- mente nao nos faz ultrapassar o presente. Pela filosotia, podemos nos habituar a nao isolar nunca o presente do passado que ele arrasta consigo. Gracas a ela, todas as 182 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE coisas adquirem profundidade - mais que profundidade, algo como uma quatta dimensio que permite que as per~ cepges anteriores permanecam solidarias das percep- ges atuais e que o porvir imediato venha, ele préprio, desenhar-se em parte no presente. A realidade j4 nao aparece mais no estado estatico, em sua maneira de ser; afirma-se dinamicamente, na continuidade e na variabi- lidade de sua tendéncia,O que havia de imével e de con- gelado em nossa percepsao se reaquece e se poe em mo- vimento. Tudo se anima a nossa volta, tudo se revivifica em nés. Um grande eli carrega todos os seres e todas as coisas. Por ele nos sentimos levantados, arrastados, car~ regados. Vivemos mais, ¢ esse acréscimo de vida traz con sigo a convicgio de que graves enigmas filos6ficos pode- rao resolver-se, ou mesmo a de que talvez: nao se devam or, tendo nasciclo de uma visio enrijecida do real e sen- do apenas a tradugao, em termos de pensamento, de um certo enfraquecimento artificial de nossa vitalidade Com feito, quanto mais nos habituamos a pensar e a perce- ber todas as coisas sith specie durationis, tanto mais nos afundamos na duragao real. E quanto mais nela nos afun- damos, tanto mais nos reinserimos na diregao do prine- pio, no entanto transcendente, do qual participamos cuja clernidade nao deve ser uma eternidade de imuta- bilidade, mas umaeternidade de vida: de que outro modo poderfamos nds viver e nos mover nela? In ca vivinus et movemur et surtus. CAPITULOVI - “INTRODUGAO A METAFISICA? Se comparamos entre si as definigdes da metafisica e as concepcies do absoluto, percebemos que 0s fildso- fos, a despeito de suas aparentes divergéncias, concordam 1a ci bl pend al Rere tepals cm in ao rsa mains Fo io tome 9 cain dt deinso a ition ences com em i ee deconkesine,Polerciaate eam, TE at clon pa), globe fudo na metafa, No ae ee a aiqued coherent oven ian leo bem SI reece fates anda t eeliac cn vin ocle Ar a ee at meomo ivan da out, Sunn Ei ae ee prides lanes teresa decor seen eas Baldae,Mosteros quo pmelii ee eT aiite cosepena to soot 8 Doe Se podan sero. aes dos cto ah 20 mite a ciao um slo to. Ne eel Fee ee scalinda coms esp t0 500% Se ain ea ea eas OH, rr. dae det Se ee na conbecmnenioc “mente” ‘gundo. E enido na conta da metafsica que langaremos essa “Filosofia da 184 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE em distinguir duas maneiras profundamente diferentes de conhecer uma coisa. A primeira implica que se déem voltas ao redor dessa coisa; a segunda, que se entre nela A primeira depende do ponto de vista no qual nos colo- camos e dos simbolos pelos quais nos exprimimos. A se- gunda nao remete a nenhum ponto de vista e nao se apdia em nenhum simbolo, Do primeiro conhecimento diremos que se detém no relatioo; do segundo, ali onde ele é possivel, que atinge o absolute. Seja, por exemplo, o movimento de um objeto no espaco. Percebo-o diferentemente conforme 0 ponto de vista, mével ou imével, do qual eu 0 observo. Exprimo-o diferentemente conforme o sistema de eixos ou de pon- tos de referéncia ao qual o remeto, isto é, conforme os simbolos pelos quais o traduzo. E chamo-o relativo por essa dupla razdo: num caso como no outro, coloco-me fora do préprio objeto., Quando falo de um movimento absoluto, é porque atribuo ao mével um interior ¢ como que estados de alma, é também porque simpatizo com 08 estados e neles me insiro por um esforco de imagina- (a0, Entao, conforme o objeto for mével ou imével, con- forme adotar um movimento ou um outro, nao experi- mentarei a mesma coisa®. E 0 que eu experimentar nao cia” ou “metafisica da ciéncia” que habita o espirito dos grandes cientistas, que é imanente & sua ciéncia e que freqiientemente é sua in- visivel inspiradora, No presente artigo, ainda a deixavamos na conta da ciéncia, pelo fato de ter sido praticada, de fato, por investigadores que se concorda geralmente em chamar antes de “cientistas” do que de “me- tatisicos” (ver, acima, pp. 35 a 48). Nao se deve esquecer, por outro lado, que o presente ensaio foi es crito numa época em que o criticismo de Kant e 0 dogmatismo de seus sucessores eram admitidos de forma bem geral, sendo como conclusio, ppelo menos como ponte de partida da especulagio filoséfica. 2, Acaso sera necessiirio dizer que nao propomos de modo algum aqui um meio de reconhecer se um movimento € absolut ou se ndo 0 6? INTRODUGAO A METARISICA 185 ird depender nem do ponto de vista sobre 0 objeto que “eu poderia adotar, uma vez que estarei no préprio obje- to, nem dos simbolos pelos quais poderia traduzi-lo, uma vez que terei renunciado a toda tradugao para possuir o original. Enfim, o movimento nao seré mais apreendido de fora e, de certa forma, a partir de mim, mas de dentro, nele, em si. Apreenderei um absoluto. Seja ainda um personagem de romance do qual me contam as aventuras. O romancista poderé multiplicar os tragos de carter, fazer seu her6i falar e agir tanto quan- to Ihe aprouver: nada disso iré valer o sentimento sim- ples e indivisivel que eu experimentaria caso coincidisse por um instante com a préprio personagem. Entiio, pa- recer-me-iam fluir naturalmente, como que da fonte, as ages, os gestos e as palavras. Jé nao se tratariam mais de acidentes que se acrescentam & idéia que eu me fazia do personagem, enriquecendo cada vez mais essa idéia sem nunca chegar a completé-la. O personagem ser-me-ia dado de um sé golpe em sua integralidade, e os mil in- cidentes que o manifestam, ao invés de se acrescentarem a idéia e de enriquecé-la, parecer-me-iam pelo contraio desprender-se dela, sem no entanto Ihe esgotar ou em- pobrecer a esséncia. Cada uma das coisas que me con- tam sobre a pessoa me fornece um outro ponto de vista sobre ela. Todos os tragos pelos quais me a descrevem, ¢ que s6 me podem fazer conhecé-la por outras tantas comparagdes com pessoas ou coisas que j4 conheso, sao signos pelos quais ela é expressa de forma mais ou me- nos simbélica. Simbolos e pontos de vista colocam-me portanto fora dela; s6 me entregam aquilo que ela tem Simplesmente definimos o que semos em mente quando falamos de um. movimento absoluto, no sentido metafisico da palavza. 186 © PENSAMENTO E © MOVENTE em comum com outras e que nao Ihe é préprio. Mas aquilo que é propriamente ela, aquilo que constitui sua esséncia, ndo poderia ser percebido de fora, sendo, por definigo, interior, nem tampouco ser expresso por sim- bolos, sendo incomensuravel com qualquer outta coisa, Desctigéio, histéria e andlise deixam-me aqui no relativo. Apenas a coincidéncia com a prépria pessoa me daria 0 absoluto. E nesse e apenas nesse sentido que absoluto é sind- nimo de perjeicdo. Por mais que todas as fotografias de uma cidade tomadas de todos os pontos de vista possi- veis se completassem indefinidamente umas as outras, elas nao equivaleriam de modo algum a esse exemplar em relevo que é a cidade na qual passeamos. Por mais que todas as tradugdes de um poema em todas as lin- guas possiveis acrescentassem matizes a matizes e des- sem, por uma espécie de retoque miituo, corrigindo-se uma a outra, uma imagem cada vez mais fiel do poema que traduzem, nunca restituiriam o sentido interior do original. Uma representacao tomada de um certo ponto de vista, uma tradugao feita com certos simbolos perma- necem sempre imperfeitas em comparacao com o objeto do qual a vista foi tomada ou que os simbolos procuram exprimir. Mas 0 absoluto é perfeito na medida em que ele € perfeitamente aquilo que ele & £ pela mesma razao, sem duivida, que freqiientemen- te se identificou o absoluto com o infinito, Se quero co- municar aquele que nao sabe grego a impressao simples que me deixa um verso de Homero, darei a tradugéo do verso, depois comentarei minha tradugio, depois desen- volverei met comentario e, de explicagao em explicacao, aproximar-me-ei cada vez mais daquilo que quero expri- mir; mas nunca o conseguirei. Quando alguém levanta 0 INTRODUGAO A METAFISICA 187 braco, realiza um movimento do qual tem interiormente a percepgao simples; mas exteriormente, para mim que 0 alho, o seu brago passa por um ponto, depois por outro €, entre esses dois pontos, haverd outros pontos ainda, de modo que, se comego a contar, a operacéo nunca terd fim. Visto de dentro, portanto, um absoluto é algo sim- ples; mas, considerado de fora, isto é, relativamente a ou- tra coisa, torna-se, com relagio a esses signos que o expri- ‘mem, a moeda de ouro que nunca terminaremos de tro- car em mitidos. Ora, 0 que se presta ao mesmo tempo a uma apreensao indivisivel e a uma enumeragio inesgotd- vel é, por definigao, um infinito. Segue-se dai que um absoluto $6 poderia ser dado numa iniuigiio, ao passo que todo o resto é da algada da andlise. Chamamos aqui de intuigao a simpatia pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de tinico e, por conse- guinte, de inexprimivel. Pelo contrario, a andlise 6 a ope- Tago que reconduz 0 objeto a elementos jé conhecidos, isto 6 a elementos comuns a esse objeto ¢ a outros, Ana. lisar consiste portanto em exprimir uma coisa’em funcao daquilo que néo é ela. Toda andlise 6 assim uma tradu- 40, um desenvolvimento em simbolos, uma represen- tago tomada de pontos de vista sucessivos a partir dos quais anotamos a cada vez. um novo contato entre 0 ob- jeto novo, que estudamos, e outros, que acreditamos jé comihecer. Em seu desejo eternamente insaciado de abar- car 0 objeto que ela esté condenada a rodear, a anélise multiplica incessantemente os pontos de vista para com- pletar a representacao sempre incompleta, varia sem des- canso 0s simbolos para perfazer a traduco sempre im- perfeita. Prolonga-se portanto ao infinito. Mas a intuicao, se ela é possivel, é um ato simples. 188 (© PENSAMENTO E 0 MOVENTE Isto posto, vé-se facilmente que a ciéncia positiva tem por fungao habitual analisar. Trabalha portanto an- tes de tudo com simbolos. Mesmo as mais concretas das cidncias da natureza, as ciéncias da vida, atém-se & for- ma visivel dos seres vivos, de seus érgaos, de seus ele- mentos anatémicos. Comparam as formas umas as ou- tras, reconduzem as mais complexas 4s mais simples, enfim, estudam o funcionamento da vida naquilo que, por assim dizer, é seu simbolo visual. Se existe um meio de possuir uma realidade absolutamente, ao invés de co- nhecé-la relativamente, de se colocar nela ao invés de adotar pontos de vista sobre cla, de ter uma intuicao dela a0 invés de fazer sua andlise, enfim, de apreendé-la fora de toda expressio, traducao ou representacio simbdlica, a metafisica é exatamente isso. A metafisica é portanto a ciénoia que pretende passarse de sintbolos. Hé pelo menos uma realidade que todos apreende- mos pot dentro, por intuigéo e nao por mera anélise. E nossa prdpria pessoa em seu escoamento através do tem- po. E nosso eu que dura. Podemos nao simpatizar intelec- tualmente, ou antes, espiritualmente, com nenhuma outra coisa. Mas certamente simpatizamos com nés mesmos. Quando fago vaguear sobre minha pessoa, suposta~ mente inativa, 0 olhar interior de minha consciéncia, percebo primeiro, como se fosse uma crosta solidificada na superficie, todas as percepgées que Ihe chegam do mundo material, Essas percepg6es sao nitidas, distintas, justapostas ou justaponiveis umas 8s outras; procuram agtupar-se em objetos. Percebo depois lembrancas mais ou menos aderentes a essas percepcdes e que servem para interpreté-las: essas lembrangas como que se despren- deram do fundo de minha pessoa, atrafdas para a perife- INTRODUGAO A METAFISICA 189 tia pelas percepcdes que se Ihes assemelham; esto pou- sadas sobre mim sem serem absolutamente eu mesmo. E, por fim, sinto manifestarem-se tendéncias, h4bitos mo- tores, um sem fim de ages virtuais mais ou menos soli- damente ligadas a essas percepgdes e a essas lembran- sas. Todos esses elementos de formas bem definidas pa- tecem-me tanto mais distintos de mim mesmo quanto mais distintos so uns dos outros. Orientacos de dentro para fora, constituem, reunidos, a superficie de uma esfe- ra que tende a se alargar e a se perder no mundo exte- rior. Mas se me contraio da periferia para 0 centro, se pro- curo no fundo de mim aquilo que mais uniformemente, mais constantemente, mais duravelmente é 0 meu pr prio eu, encontro algo bem diferente. O que eu encontro, por baixo desses cristais bem re- cortados e desse congelamento superficial, é uma conti nuidade de escoamento que néo ¢ comparvel a nada daquilo que vi escoar-se. E uma sucessio de estados, cada um dos quais anuncia aquilo que a ele se segue e contém aquilo que o precede. A bem dizer, s6 constituem esta- dos mitiltiplos quando jé os ultrapassei e me volto para trds para observar-lhes 0 rasiro, Enquanto os experimen- tava, estavam tio solidamente organizados, t4o profun- datnente animados por uma vida comum que eu nao sa- beria dizer onde um deles acaba, onde o outro comeca. Naealidade, nenhum deles comega nem acaba, mas pro- Tongam-se todos uns nos outros. __ E, se quisermos, o desenrolamento de um rolo, pois nao ha ser vivo que nao se sinta chegar pouco a pouco ao fim de sua corda*; e viver consiste em envelhecer. Mas _ "Bergson, na verdade, diz “au bout de son rd’, “ao fim de seu pa- pel” (no sentido teatral ou cinematogratico de “papel”), mas em francés 190 (0 PENSAMENTO E © MOVENTE € igualmente um enrolamento continuo, como o de um. fio num novelo, pois nosso passado nos segue, avoluma- se incessantemente com o presente que recolhe pelo ca- minho; e consciéneia significa meméria Abem dizer, nfo é nem um enrolamento nem um desenrolamento, pois essas duas imagens evocam a re- presentacao de linhas ou de superficies cujas partes so homogéneas entre si e superponiveis umas as outras. Ora, nao ha dois momentos idénticos num ser consciente, To- mem 0 sentimento mais simples, suponham-no constan- te, absorvam nele a personalidade inteira: a consciéncia que acompanhar esse sentimento nao poderd permane- cer idéntica a si mesma durante dois momentos conse- cutivos, uma vez que 0 momento seguinte sempre con- tém, além do precedente, também a lembranga que este deixou. Uma consciéncia que tivesse dois momentos idénticos seria uma consciéncia sem meméria. Portanto, pereceria e renasceria incessantemente. De que outro modo nos representariamos a inconsciéncia? Caberd portanto evocar a imagem de um espectro de mil matizes, com gradagoes insensiveis que fazem com que se passe de um matiz para o outro. Uma corrente de sentimento que atravessasse 0 espectto tingindo-se su- cessivamente de cada um de seus matizes experimenta: ria mudangas graduais, cada uma das quais anunciaria a seguinte e resumiria em si as que a precedem. Mesmo as- sim, os matizes sucessivos do espectro permanecerao ex- teriores uns aos outros. Justapdem-se. Ocupam espaco. Pelo conirdrio, o que é duracao pura exclui toda idéia de justaposigao, de exterioridade reciproca e de extensao. essa expressio ecoa claramente “at bout de son roudonw", “no fim de sua corda'’ (como tum mecanismo chega 20 fim de sua corda), 0 que explica 6 vinculo com a iia de “desenrolamento de um rolo’.(N. do) INTRODUGAO A METAFISICA 191 Entdo imaginemos antes um elastico infinitamente pequeno, contraido, se isso fosse possivel, num ponto miatematico, Estiquemo-lo progressivamente de modo que faca com que do ponto saia uma linha que iré sempre aumentando. Fixemos nossa atengao, no sobre a linha enquanto linha, mas sobre a acao que a traca. Conside- temos que, a despeito de sua duracao, essa agéo é indi- visfvel, se supomos que se realiza sem parar; que, se nela intercalarmos uma parada, faremos dela duas acdes a0 invés de uma e que cada uma dessas agées serd entao 0 indivisivel de que falamos; que ndo é nunca a propria aco que é divisivel, mas a linha imével que ela deposita embaixo de si como um rastro no espaco. Libertemo-nos por fim do espago que subtende o movimento para 6 le- var em conta 0 proprio movimento, o ato de tens&o ou de extensao, enfim, a mobilidade pura. Teremos desta vez uma imagem mais fiel de nosso desenvolvimento na duragio. E no entanto essa imagem ainda seré incompleta, ¢ alids toda comparacao sera insuficiente, pois 0 desenro- lamento de nossa duracao se assemelha por certos lados A unidade de um movimento que progride, por outros a uma multiplicidade de estados que se esparramam, e ne- nhuma metéfora pode restituir um dos dois aspectos sem sacrificar 0 outro. Se evoco um espectro de mil ma- tizes, tenho & minha frente uma coisa jé feita, ao passo que a duragao se faz continuamente. Se penso num elds- tico que se alonga, numa mola que se comprime ou se distende, esqueco a riqueza de colorido que 6 caracteris- tica da duragao vivida para ndo ver mais que o movi- mento simples pelo qual a consciéncia passa de um ma- tiz ao outro. A vida interior é tudo isso ao mesmo tem- Po, variedade de qualidades, continuidade de progresso, 192 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE unidade de diregiio. Nao se a poderia representar por imagens. ‘Mas se poderia menos ainda representa-la por con- ceitos, isto &, por idéias abstratas, ou gerais, ou simples, Sem diivida, nenhuma imagem restituird perfeitamente ‘0 sentimento original que tenho do escoamento de mim mesmo. Mas também nao me é necessério procurar res- titus-lo. Aquele que nao fosse capaz de dar-se a si mes- mo a intuigdo da duragao constitutiva de seu ser, nunca nada poderia da-la, nem os conceitos nem tampouco as imagens. O Gnico objetivo do filésofo deve ser aqui o de provocar um certo trabalho que os hébitos de espitito mais titeis & vida tendem a entravar na maior parte dos homens. Ora, a imagem tem pelo menos a vantagem de nos manter no conereto, Nenhuma imagem substituiré a intuigio da duragdo, mas muitas imagens diversas, toma- das de empréstimo a ordens de coisas muito diferentes, poderio, pela convergéncia de sua agio, dirigir a cons- ciéncia para 0 ponto preciso no qual ha uma certa intui- G0 a aprender, Escolhendo imagens tao disparatadas quanto possivel, impedit-se-d uma qualquer dentre elas de usurpar o lugar da intuigéo que ela esta encarregada de convocar, uma ver que seria entao imediatamente ex- pulsa por suas tivais. Fazendo com que todas exijam de nosso espirito, a despeito de suas diferencas de aspecto, a mesma espécie de atengao e, de certa forma, o mesmo grau de tensSo, acostumaremos pouco a pouco a cons- ciéncia a uma disposicao inteiramente particular e bem determinada, precisamente aquela que a consciéncia pre~ cisaré adotar para aparecer a si mesma sem véu. Mas ain- 3, Asimagens de que aqui se trata so aquelas que podem se apre- sentar ao espitito do filsofo quando este quer expor seu pensamento INTRODUGAO A METAFISICA 193 da serd preciso que ela consinta nesse esforco. Pois nada Ihe tera sido mostrado. Ela terd sido simplesmente colo cada na atitude que deve assumir para fazer 0 esforgo re- querido e chegar por si mesma a intuigo. Pelo contrario, 6 inconveniente dos conceitos excessivamente simples, em semelhante matéria, é o de serem verdadeiramente simbolos, que se substituem ao objeto que simbolizam e nao exigem de nds nenhum esforco. Olhando de perto, verfamos que cada um deles guarda do objeto apenas 0 que é comum a esse objeto e a outros. Verfamos que cada um deles exprime, mais ainda do que a imagem o faz, uma comparagiio entre o objeto e aqueles que a cle se as~ semelham. Mas como a comparacao extraiu uma seme- Ihanca, como a semelhanga é uma propriedade do obje- to, como uma propriedade tem todo 0 jeito de ser uma parte do objeto que a possui, persuadimo-nos facilmen- te de que, justapondo conceitos a conceitos, recompore- mos 0 todo do objeto a partir de suas partes e obtere- mos; por assim dizer, um equivalente intelectual dele. B assim que acreditamos formar uma representacao fiel da duragio ao alinhar 03 conesitos de unidade, de multipli- idade, de continuidade, de divisibilidade finita ou infi- nita, ete, Precisamente af se encontra a ilusdo. Ai tam- bém se encontra o perigo. Na mesma medida em que as idéias abstratas podem ser titeis & andlise, isto 6, a um es- tudo cientifico do objeto em suas relagdes com todos os outros, também sao incapazes de substituir a intuicdo, isto &, a investigagao metafisica do objeto naquilo que este tem de essencial e de proprio. De um lado, com efei- para outem. Debamos de adoa imagem, vicinha da inti, a qual blot pode necesaliae pam meso, que eqentenente perma nce inexpesa 194 (0 PENSAMENTO E 0 MOVENTE to, esses conceitos postos um na ponta do outro nunca nos dardo mais que uma recomposicao artificial do obje- to, do qual s6 podem simbolizar alguns aspectos gerais € de certa forma impessoais: é portanto em vao que acre- ditarfamos apreender, com eles, uma realidade da qual se limitam a apresentar a sombra. Mas, por outro lado, além da ilusdo, ha também um perigo muito grave. Pois co conceito generaliza ao mesmo tempo em que abstrai. O conceito $6 pode simbolizar uma propriedade especial tornando-a comum a uma infinidade de coisas. Defor- ma-a portanto sempre em maior ou menor grau pela ex- tensio que lhe confere. Reinserida no objeto metafisico que a possti, uma propriedade coincide com ele, molda- se pelo menos por ele, adota os mesmos contornos. Ex- traida do objeto metafisico e representada num conceito, alarga-se indefinidamente, ultrapassa o objeto, uma vez que doravante precisa conté-lo junto com outros. Os di- versos conceitos que formamos das propriedades de uma coisa, portanto, desenham em volta dela outros tantos circulos bem mais largos, nenhum dos quais se aplica a ela exatamente. E, no entanto, na coisa mesma, as pro- priedades com ela coincidiam e coincidiam por conse- guinte entre si, Por forca teremos entao de buscar algum artificio para restabelecer a coincidéncia. Tomaremos um qualquer desses conceitos e tentaremos, com ele, ir a0 encontro dos outros. Mas, conforme partirmos deste ou daquele, a juncio nao serd operada da mesma maneira. Conforme partirmos da unidade ou da multiplicidade, pot exemplo, conceberemos diferentemente a unidade miiltipla da duracao. Tudo dependeré do peso que atti- Duirmos a tal ou tal dentre os conceitos, e esse peso sera sempre arbitrario, uma vez que 0 conceito, extraido do ob- jeto, ndo tem peso, nao sendo mais que a sombra de um INTRODUCAO A METAFISICA 195 compo. Assim surgira uma multidéo de sistemas diferen- tes, tantos quantos so os pontos de vista exteriores so- bre a realidade que examinamos ou os circulos mais lar- gos nos quiais podemos encerré-la. Os conceitos simples, portanto, nao tém apenas o inconveniente de dividir a unidade conereta do objeto numa quantidade corres- pondente de expresses simbélicas; também dividem a filosofia em escolas distintas, cada uma das quais reser- va seu lugar, escolhe suas fichas ¢ enceta cor as vulras uma partida que nao terminaré nunca. Ou a metafisica é apenas esse jogo de idéias ou entdo, se ¢ uma ocupacio séria do espirito, € preciso que transcenda os conceitos para chegar a intuigao, Decerto, os conceitos so-Ihe in dispensaveis, pois todas as outras ciéncias trabalham normalmente com conceitos e a metafisica nao poderia passar-se das outras ciéncias. Mas ela s6 6 propriamente ela mesma quando ultrapassa 0 conceito, ou pelo menos quando se liberta dos conceitos rigidos e ja prontos para criar conceitos bem diferentes daqueles que normal- mente manejamos, quero dizer, para criar representacdes flexiveis, méveis, quase fluidas, sempre prontas a se mol- darem pelas formas fugidias da intuicdo. Voltaremos adiante a esse ponto importante. Que nos baste ter mos- trado que nossa duracio pode nos ser apresentada dire~ tamente numa intuigao, que ela nos pode ser sugerida in- dirétamente por imagens, mas que nfo poderia ~ se da- ‘mos A palavra conceito o seu sentido proprio ~ encerrar- se numa representagao conceitual. Procuremos, por um instante, fazer dela uma multi- plicidade. Seré preciso acrescentar que os termnos dessa multiplicidade, ao invés de se distinguirem como os de uma multiplicidade qualquer, sobrepoem-se uns aos ou- tros e que, além disso, embora certamente possamos, por 196 (© PENSAMENTO EO MOVENTE um esforco de imaginagio, solidificar a duragéio uma vez escoada, dividi-la eto em pedacos que se justapdem e contar todos os pedacos, essa operacdo seré efetuada so- bre a lembranca congelada da duragio, sobre o rastro imével que a mobilidade da duragao deixa atrds de si, ¢ nao sobre a prépria duracdo. Confessemos entao que, se ha aqui uma multiplicidade, essa multiplicidade ndo se assemelha a nenhuma outra. Acaso diremos entao que a duragio tem unidade? Sem diivida, uma continuidade de elementos que se prolongam uns nos outros participa da unidade tanto quanto da multiplicidade, mas essa uni- dade movente, cambiante, colorida, viva, pouco se asse- melha a unidade abstrata, imével e vazia que o conceito de unidade pura circunscreve. Acaso iremos concluir a partir daf que a duragao deva se definir ao mesmo tem- po pela unidade e pela multiplicidade? Mas, fato singu- lar, por mais que eu manipule os dois conceitos, que eu os dose, os combine entre si diversamente, por mais que eu pratique neles as mais sutis operagdes de quimica mental, nunca obterei algo que se assemelhe a intuigdo simples que tenho da duragao; ao passo que se me reins- talo na duragao por um esforco de intuigio, percebo ime- diatamente de que modo ela é unidade, multiplicidade e muitas coisas mais. Esses diversos conceitos eram portan- to, todos eles, pontos de vista exteriores sobre a duracio Nem separados, nem reunidos eles nos fizeram penetrar na prépria duragio. Nela penetraremos, no entanto, e s6 pode ser por meio de uma intuig&o, Nesse sentido, um conhecimento interior, absoluto, da duragao do eu pelo prdprio eu é pos- sivel. Mas, se a metafisica reclama e pode obter aqui uma intuigdo, nem por isso a ciéncia necesita menos de uma andlise. E é de uma confusao entre o papel da andlise e INTRODUGAO A METAFISICA 197 0 da intuigdo que iro nascer aqui as discussdes entre es- colas ¢ 0s conflitos entre sistemas. ‘A psicologia, com efeito, procede por meio de uma andlise como as outras ciéncias. Resolve o eu, que lhe foi dado de inicio numa intuigdo simples, em sensacdes, sen- timentos, representagies, etc., que cla estuda separada- mente. Substitui portanto o eu por uma série de elemen- tos que sio os fatos psicol6gicos. Mas esses elementos se- rao eles partes? Toda a questo é essa, e € por té-la elu- dido que se foi freqiientemente levado a por em termos insoliveis o problema da personalidade humana E incontestavel que todo estado psicoldgico, pelo simples fato de pertencer a wma pessoa, reflete o conjun- to de uma personalidade. Nao hé sentimento, por sim- ples que seja, que nao encerre virtualmente o passado © presente do ser que o experimenta, ou que possa ser dele separado e constituir um “estado”, salvo por um es- forco de abstracao ou de andlise. Mas é ndo menos in- contestavel que, sem esse esforgo de abstragao ou de andlise, nao haveria desenvolvimento possfvel da ciéncia psicol6gica. Ora, em que consiste a operagio pela qual 6 psicdlogo separa um estado psicoldgico para erigi-lo em entidade mais ou menos independente? Comega por negligenciar 0 colorido especial da pessoa, que nao se po~ dria exprimir em termos conhecidos e comuns. Depois, esforea-se por isolar, na pessoa ja assim simplificada, tal ou tal aspecto que se presta a um estudo interessante. Trata-se, por exemplo, da inclinagio? Deixard de lado 0 inexprimivel matiz. que a colore e que faz. com que minha inclinagdo nao seja a de vocss; depois, deter-se-4 no mo- vimento pelo qual nossa personalidade se dirige para um certo objeto; ira isolar essa atitude, e ¢ esse aspecto es~ pecial da pessoa, esse ponto de vista sobre a mobilidade 198 (© PENSAMENTO E 0 MOVENTE da vida interior, esse “esquema” da inclinagao concreta que 0 psicdlogo ira erigir em fato independente. Ha at tum trabalho andlogo ao do artista que, cle passagem por Pari, tomaria, por exemplo, um croqui de uma torre de Notre-Dame. A torre est inseparavelmente ligada ao edi- ficio, que esta nao menos inseparavelmente ligado a0 solo, a0 entorno, a Patis inteira, etc. E preciso comecar por separé-la; do conjunto, s6 se anotaré um certo aspec- to, que 6 essa torre de Notre-Dame. Agora, na realidade a torre é constituida por pecras, e 6 0 agrupamento par- ticular destas que dé a ela a sua forma; mas o desenhista nao se interessa pelas pedras, anota apenas o perfil da tor- te. Substitui portanto a organizagao real ¢ interior da cois por uma reconstituic&o exterior e esquematica. De modo que seu desenho responde, em suma, a um certo ponto de vista sobre o objeto e a escolha de um certo modo de Tepresentacio, Ora, ocorre exatamente o mesmo na ope- ragao pela qual 0 psicélogo extrai do conjunto da pessoa um estado psicoldgico. Esse estado psicolégico isolado realmente nao é mais que um croqui, um comego de re- composigao artificial; 60 todo encarado sob um certo as- pecio elementar que desperta em nés um interesse espe- cial e que tivemos o cuidado de anotar. Nao é uma parte, mas um elemento. Nao foi obtido por fragmentacao, mas por anélise. : __ Agora, na base de todos os eroquis tomaclos em Pa- ris, 0 estrangeiro sem dtivida iré inscrever “Paris” & gui sade memento. E como realmente viu Patis, saberd, des- cendo novamente da intuigio original do todo, nela si tuar seus croquis ¢ conecté-los assim uns aos outros. Mas nao hé nenhum meio de executar a operacao inver- sa; 6 impossivel, mesmo com uma infinidade de eroquis tio exatos quanto se queira, mesmo com a palavra "Pa- INTRODUCAO A METAFISICA 199 ris” indicando que € preciso conecté-los entre si, remon- tar a uma intuig&io que nao se teve e dar-se a impressio de Paris caso nao se tenha visto Paris. £ que aqui nao li- damos com partes do todo, mas com notas tomadas do conjunto. Para escolher um exemplo mais marcante, um caso onde a anotacao é mais completamente simbélica, suponhamos que me apresentem, misturadas ao acaso, letras que entram na composi¢ao de um poema que ig- noro, Fossem as letras partes do poema, eu poderia pro- curar reconstituf-lo com elas tentando diversos arranjos possfveis, como faz a crianga com um jogo de paciéncia. Mas nao 0 cogitarei nem por um instante, porque as les tras no so partes componentes, mas expressdes parciais, que é algo inteiramente diferente. § por isso que, se co- nheco 0 poema, ponho imediatamente cada uma das le- tras no lugar que Ihes cabe e as conecto sem dificuldade por um traco continuo, ao passo que @ operagio inversa é impossivel. Mesmo quando acredito tentar essa operagao inversa, mesmo quando ponho letras umas na frente das outras, comeso por me representar uma significagao plau- sivel: dou-me portanto uma intuigao, e € partindo da intui- gdo que procuro descer de volta pata os simbolos elemen- tares que Ihe reconstituiriam a expressdo. A propria idéia de reconstituir a coisa por meio de operagdes praticadas exclusivamente sobre elementos simbélicos implica um tal absurdo que nunca ocorreria a nenhum de nds, caso nos déssemos conta de que nao lidamos com fragmentos da coisa, mas, de certa forma, com fragmentos de simbolo. Tal 6, no entanto, o intento dos filésofos que com es~ tados psicolégicos procuram recompor a pessoa, quer se atenham aos proprio estados, quer acrescentem um fio destinado a conectar os estados entre si. Empiristas ¢ ra~ cionalistas s40 aqui vitimas da mesma ilusao. Ambos to- 200 O PENSAMENTO E 0 MOVENTE mam as antotacdes parciais por partes reais, confundindo assim 0 ponto de vista da andlise com o da intuigao, a incia com a metafisica. Os primeiros dizem com razfio que a anélise psico- logica nao descobre, na pessoa, nada além dos estados psicolégicos. E tal &, de fato, a funcdo, tal é a definico mesma da andlise. © psicdlogo nao precisa fazer nada além de analisar a pessoa, isto é, anotar estados; no ma- ximo ird pér a rubrica “eu” sobre esses estados dizendo que sio “estados do eu”, assim como o desenhista escre- ve a palavra “Paris” em cada um de seus croquis, No ter- reno no qual o psicdlogo se instala e no qual precisa se instalar, o “eu” é apenas um signo pelo qual é relembra- da a intui¢ao primitiva (muito confusa, alids) que forne- ceu A psicologia seu objeto: trata-se apenas de uma pa- lavra, e 0 grande erro é 0 de acreditar que se poderia, permanecendo no mesmo terreno, encontrar por tras da palavra uma coisa. Tal foi o erro desses fildsofos que nao se puderam resignar a serem simplesmente psicdlogos em psicologia, Taine e Stuart Mill, por exemplo. Psicslogos pelo método que aplicam, permaneceram metafisicos pelo objeto que se propdem. Almejam uma intuicao e, por uma estranha inconseqiiéncia, pedem essa intuigao A anéllise, que é sua negacéio mesma. Procuram o eu, e pretendem encontré-lo nos estados psicol6gicos, ao passo que s6 pu- deram obter essa diversidade de estados psicolégicos ao se transportarem para fora do eu, para tomar da pessoa uma série de croquis, de anotagdes, de representagdes mais ou menos esquemiticas e simbdlicas. Assim, por mais que justaponham os estados aos estados, que hes mul- tipliquem os contatos, que Ihes explorem os intersticios, © eu escapa-Ihes sempre, de modo que acabam por nao ver nele nada além de um vao fantasma. Seria o mesmo que INTRODUGAO A METAFISICA 201 negar que a Ilfada tenha um sentido, sob o pretexto de que se procurou em vao esse sentido nos intervalos das letras que a compéem. O empirismo filosofico nasceu portanto aqui de uma confuso entre o ponto de vista da intuigio e o da anéli- se. Ele consiste em procurar o original na tradugo, onde natufalmente nao pode estar, e em negar 0 original sob o pretexto de que este nao se encontra na traducio. Desem- boca necessariamente em negagdes; mas, olhando de per- to, percebemos que essas negacSes significam simples- mente que a andlise nao é a intuic&o, o que é a prépria evidéncia. Da intuigdo original e, alids, confusa, que dota a ciéncia de seu objeto, a ciéncia passa imediatamente para a andlise, que multiplica ao infinito os pontos de vista sobre esse objeto, Bem depressa chega a crer que poderia, compondo entre si todos os pontos de vista, re- constituir o objeto. Acaso seria, entio, de se espantar que ela veja esse objeto fugir dela, como a crianga que gosta- tia de fabricar um brinquedo sélido com as sombras que se perfilam ao longo dos muros? Mas 0 racionalismo é vitima da mesma ilusdo. Ele parte da confusdo que o empirismo cometeu e permane- ce tao ineapaz quanto este de atingir a personalidade. Como empirismo, toma os estados psicolégicos por ou- tros tantos fragmentos separados de um eu que os reuni- ria. Como © empirismo, enfim, vé a unidade da pessoa esquivar-se indefinidamente como um fantasma diante do esforgo que ele renova incessantemente para agarré- Ja. Mas, a0 passo que o empirismo, entregando os pon- tos, acaba por declarar que nao hd nada além da multi- plicidade dos estados psicol6gicos, o racionalismo insiste em afirmar a unidade da pessoa. E verdade que, procuran- do essa unidade no terreno dos préprios estados psico- i i HSBLOTECA cAuPY 202 (OPENSAMENTO EO MOVENTE l6gicos, e obrigado, por outro lado, a langar a conta dos estados psicolégicos todas as qualidades ou determina- Ges que ele encontra pela anélise (uma vez que a andli- se, por defini¢éo mesmo, desemboca sempre em esfa- dos), s6 the resta, para a unidade da pessoa, algo de pu- ramente negativo, a auséneia de toda determinagdo. Os estados psicolégicos tendo necessariamente tomado e guardado para si, nessa andlise, tudo aquilo que apre- sentasse a menor aparéncia de materialidade, a ”unidade do eu” ja nao podera ser nada além de uma forma sem matéria. Serd o indeterminado e 0 vazio absolutos. Aos estados psicoldgicos separados, a essas sombras do eu cuja colegao era, para os empiristas, 0 equivalente da pes- 80a, 0 racionalismo acrescenta, para reconstituir a perso- nalidade, algo de ainda mais irreal, o vazio no qual essas sombras se movem, o lugar das sombras, poderiamos di- zer. Como essa “forma”, que 6 verdadeiramente infor me, poderia ela caracterizar uma personalidade viva, agente, concreta e distinguir Pedro de Paulo? Acaso seria entéo de se espantar se os fildsofos que isolaram essa “forma” da personalidade a descobrirem depois incapaz de determinar uma pessoa ¢ forem levados, de grau eh grau, a fazer de seu Eu vazio um receptécula sem fundo que no pertence mais a Paulo do que a Pedro e no qual haverd lugar, como quisermos, para a humanidade int ra, ou para Deus, ou para a existéncia em geral? Aqui, entre o empirismo ¢ 0 racionalismo vejo esta tinica dife- renga de que o primeiro, procurando a unidade do eu os intersticios, de certa forma, dos estados psicolégicos, € levado a colmatar os intersticios com outros estados, e assim por diante, indefinidamente, de modo que 0 eu, espremido num intervalo que vai sempre se estreitando, tende para Zero & medida que se leva a andlise mais lon INTRODUCAO A METAFISICA 203 ge, a0 passo que 0 racionalismo, fazendo do eu o lugar ho qual os estados se alojam, esta em presenga de um espaco vazio que nao temos nenhuma razao para deter aqui ao invés de acolé, que ultrapassa cada um dos limi- tes sucessivos que pretendemos lhe conferit, que vai sem- pre'se alargando e que tende a perder-se, ndo mais no Zero, mas no Infinito. Hi, portanto, uma distincia bem menor do que se supde entre um pretenso “empirismo” como aquele de Taine e as mais transcendentes das especulagées de cer- tos panteistas alemaes, O método é andlogo nos dois ca- sos: consiste em raciocinar sobre os elementos da tradu- Gao como se fossem partes do original. Mas um empiris- mo verdadeiro ser aquele que se propée seguir de tao perto quanto possivel o proprio original, aprofundar-Ihe a vida e, por uma espécie de auscultacto espiritual, sentir- Ihe palpitar a alma; e esse empirismo verdadeiro é a ver- dadeira metafisica. O trabalho é de uma extrema dificul- dade, porque nenhuma das concepgGes jé prontas das quais 0 pensamento se vale para suas operagoes cotidia- nas pode ser nele empregue. Nada mais facil do que di- zor que o eu é multiplicidade ou que é unidade ou que é a sintese de ambas. Unidade e multiplicidade so aqui representagées que nao precisamos talhar & medida do objeto, que encontramos jé fabricadas e que nos basta escolher numa pilha, vestes de confecgdo que servirao to bem em Pedro quanto em Paulo porque nao dese- ham a forma de nenhum dos dois. Mas um empirismo digno desse nome, um empirismo que s6 trabalha sob medida, vé-se obrigado a despender, para cada novo ob- jeto que estuda, um esforgo absolutamente novo. Tatha para 0 objeto um conceito apropriado apenas a esse ob- jeto, conceit do qual mal se pode ainda dizer que seja

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