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EDUARDO LOURENCGO TEMPO DA MUSICA, MUSICA DO TEMPO ORGANIZACAO E PREFACIO BARBARA ANIELLO EDUARDO LOURENGO PREMIO PESSOA 2011 gradiva OBRAS DE EDUARDO LOURENCO, Heterodoxia f, Coimbra Edicora, 1949 Heterodoxia I ¢ Il, Assitio e Alvim, 1987 Heterodoxia I, Gradiva, 2005 Heterodoxia If, Gradiva, 2006 © Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, Coimbra Editora, 1955 Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, Publicagdes Dom Quixote, 1968 Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista, Gradiva, 2007 Pessoa Revisitado, Inova, 1973; 20 ed., Moraes Editores; Gradiva, 2000 Tempo e Poesia, tnova, 19745 2. ed., Relogio d’Agua, 1988 ‘Tempo ¢ Poesia, Gradiva, 2003 Os Mititares e 0 Pader, Accédia, 1975 Situagéio Africana ¢ Consciéncia Nacional, Lisboa, 1979 © Eascisino nunca Existin, D. Quixote, 1976 © Labirinto da Saudade — Psicandlise Mitica do Destino Portugués, 12 ed., D. Quixote, 1978; 5 ed., D. Quixote, 19925 Circufo de Leitores, 1988; Gradiva, 2000 © Complexo de Marx, D. Quixote, 1979 Espelbo Imagindrio, Imprensa Nacional, 1981 Poesia e Metafisica — Camées, Antero, Pessoa, SA da Costa, 1983 (Prémio de Ensaio do Pen Club} Poesia ¢ Metafisica ~ Canes, Antero, Pessoa, Gvadiva, 2002 Ocasionais 1, A Rega do Jogo, 1984 Fernando, Rei da Nossa Baviera, Imprensa Nacional, 1986 Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Gradiva, 2008 Nés ¢ a Europa ou as Dutas Razées, Imprensa Nacional, 1988 (Prémio Europeu do Ensaio «Charles Veillon»), Lausana, 1988; 4.' ed., 1994 © Canto do Signo, Editorial Presenga, 1994 O Esplendor do Caos, Gradiva, 1998 Portugal como Destino seguido de Mitologia da Sandade, Gradiva, (999 A Nau de fearo seguida de Imagem ¢ Miragem da Lusofonia, Gradiva, 1999 A Europa Desencantada — para Uma Mitologia Europeia, 1994, ed. Visio; Gradiva, 2001 Destrogos — O Gibdo de Mestre Gil e Outros Ensaivs, Gradiva, 2004 O Lugar do Anjo — Ensaios Pessoanos, Gradiva, 2004 A Morte de Colombo — Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito, Gradiva, 2005 As Saias de Elvira ¢ Outros Ensaios, Gradiva, 2006 Antero ou a Noite Intacta, Gradiva, 2007 A Esquerda na Encruaitbada ow Fora da Histéria? — Ensaios Politicos, Gradiva, 2009 Teinpo da Misica, Miistca do Tempo, Gradiva, 2012 Em francés: Le Labyrinthe de la Sandade, L'Kurope Introuvable, Paris, Montaigne ow la Vie Ecrite, Mythologie de la Saudade, Pai Fernando Pessoa, roi de notre Bawi agres-Europa, Bruxelas, 1987 . Marie Métailié, (994 mpette, Bordéus, 1992 1. Chandeigne, (997 , Paris, Ed. Chandeigne, 1997 T M EDUARDO LOURENCO TEMPO DA MUSICA, MUSICA DO TEMPO ORGANIZACAO E PREFACIO BARBARA ANIELLO gradiva © Eduardo Lourengo/Gradiva Publicagées, $. A. - Organizacao ¢ prefacio Barbara Anicllo Revisio de texto Maria de Fatima Carmo Fotocomposigéo Gradiva Capa, impressfio ¢ acabamento Multitipo — Artes Graficas, LY Reservados os direitos para Portugal por Gradiva Publicagées, 5. A. Rua Almeida e Sousa, 21 - s/c esq. — 1399-041 Lisboa Telef. 21 393 37 60 — Fax 21 395 3471 Dep. comercial Telefs. 21 397 40 67/8 — Fax 213971411 geral@gradiva.mail.pt / www.gradiva.pt 1 edigio Fevereiro de 2012 Depdsito legal 339 743/2012 ISBN 978-989-616-462-4 gradiva Editor Gui.HerMe VALENTE - Visite-iios nia Internet. www.gradiva.pt A muisica é como um mar de Deus. Epuarpno Lourenco, Publico, Lisboa, 25-5-2003 O fio condutor do que venho fazendo, e procuro ainda fazer, 6 uma reflexdo constante sobre o Tempo. Ou, melhor, a temporalidade. Epuarpo Lourrenco, Didrio de Noticias, Lisboa, 21-3-1998 Indice Prefacio: Espetho da miisica: tempo imagindrio, Barbara Aniello 13 Nota da organizadora do volume ... 37 1. SINE DATA 1.4 Barroco. Bach, Suite 1.° 4 en £6 majeur icc 41 1.2 Schumann, Sonate en la mineur 1.3 Wilhelm Friedemann Bach, Sinfonia em ré menor 43 1.4 Prokofiev, Ballet de Roméo et Juliette .... 44 1.5 Webern, § piéces, opus 10, 2° symphonie, op. 21 45 1.6 Jolivet, Symphonie 1.7 Alban Berg, Letlu . 1.8 Stravinsky, Petrouchka, Oiseau de Feu 1.9 Bach, Paixdo segundo $. Mateus 50 1.10 Alban Berg, Concerto @ la mémoire d’un Ange 52 1.11 Rachmaninov, Concerto n." 2. 1.12 Entre Wagner e Maher ... 1.43 Xenakis ... 1.14 Mozart, Sinfonia n.° 39 LAS Musica —Tentpo [Perfeifto 1.16 117 1.18 149 1.20 1.21 1.22 1,23 1.24 1.25 24 2.2 2.3 24 2.5 2.6 27 2.8 2.9 2.10 2.11 242 3.4 3.2 3.3 Ora nada mais propicio do que a miisica Berlioz . Maurice Jarre, Mobiles Opera Ravel, Gaspard de lo Nui Barték, Concerto Critica. G. B. Shaw .. Estética. Tchaikovsky Miles Davis Um som sem conceito 2, PER[ODO COIMBRAO Coimbra, Apontamentos, sine dat 78 Triste. Tarde de 3-VI-1948 Intermezzo, 8-VII-1951 Schubert, 11-X1-1951 Bach, 1952 veces Kierkegaard e Beethoven, 1952. Chopin, Valsa n.° 10, 25-11-1952 Prokofiev, Concerto n.° 3 para piano e orquestra, TAV1952 veces Brahms, Sinfonia .° 2, 1S1V-1952. Ravel e Bach. Chaconne, 21-V-1952 Béla Barték, Musica para cordas, percussio e ce- lesta, 3-XII-1952 . Chopin, Sonata em si menor n.* 3, 9-XII-1952.... 90 3. PERIODO ALEMAO Sozinbo no meu escritério, 1953 Bach, Beethoven, Chopin, Schénberg, 1953 ........ 94 Honegger, feanne d’Arc au biicher, 23-I-1953 (1.8 versao) meta 3.4 3.5 3.6 3.7 3.8 3.9 3.10 3.11 3.12, 3.13 3.44 3.45 3.16 3.17 3.18 3.19 3.20 3.21 3.22. 3.23 3.24 3.25 3.26 3.27 3.28 3.29 Honegges, Jeanne d’Arc au bitcher, 23-1-1953/10-V- -2003 (2.° versio) Bach, 8-VUI-1953 Nunca sei nem como nem quando vem o espirito da noite, 30-V-1953... O louco ¢ o génio, 29-VHI-1953 Tristdo ¢ Isolda, 29-VIU-1953........ Brahms, Fin Deutsches Requiem, 21-1X-19. As minhas incoeréncias, 15-X1-19 Barték, 6-V-1954 . Beethoven, Konzert fiir Klavier und Orchestre WES, T-VoLIS4 coeceseeee Bach, Tocata e Fuga, 16-XI-1954 .. Bartok, Suite para piano, opus t, 16-X1-1954, Beethoven, Sonata ao Luar 22-1-1955 Wagner, Lohengrin, 22-1-1955.... Hindemith, Newes vont Tage Overture, 22-1-1955 112 A fascinagéo da mtisica, 22-1-1955..... 143 A miisica, 7-IV-1955.. A muisica negra, 18-XII-195 Beethoven, §.* Sinfonia, 15-I-1956 ... ” Beethoven, Sinfonia n° 8, Schumann, Concerto ent lé menor, 29-IV-1956 .. Beethoven, 4.* Sinfonia, 28-X-1956 . Contingéncia da Gléria, 15-X1-1956 ( Coutingéncia da Gloria, sem data (2.* versao) ..... 122 Sobre a contingéncia da gloria, 28-X1-1976 (3. ver- Bach, Quaresma de 1957. Musica abstracta. Festival de Berlim-Ocste, 23/29- X-1957. Debussy, Mart io de S, Sebastidc, 1-X1I-1957 41 42 43 4A 4.5 4.6 47 4.8 49 4.10 4.14 4.12 4.13 414 4.15 4.16 4.17 4.18 4.19 4.20 4.21 A422 4.23 4.24 4.25 10 4, PERLODO FRANCES Stravinsky, 1960 .. Milhaud, Orphée ¢ et 1 Euvydice, 1960... Hindemith, Thémes et Variations, 1960 Wagner, Tristéo, Margo de 1960 .. Tango, Beethoven, VII Sinfonia, Bach, Suite em ré, HI-VL-1960 ve : vee Schumann, Concerto para violoncelo ¢ @ orquestra, 26-[-1962 ... . 40 O Lied, 27-II-1962 - 141 Beethoven, 7." Sinfonia Schumann, Concerto ent ld, 1S-TX-1963 veces 142 Brahms, Rhapsodie | pour contralto, 29-XI-1964... 143 Desintrodugao a estética. Henry Barraud, Quatuor a@ cordes, 1-1-1965... Liszt, Concerto en la 1 mineur, 13 1965 Bach, Suite .° 2 en si mineur, 11-VI-1965 Amalia, 11-10-1965. Verdi, Le Bal Masqué, 6-X1-1965 Schumann, Symphonie n.” 4 en ré mineur, opus 120, 18-XL-1965 ve ISL . 132 » 133 . 134 . 146 . 147 ~ 148 . 149 . 180 Debussy, Schumann, Arrigo, 24. TH-1966 . .1S1 Cangdes, 17-V-1966 wae . 152 Schénberg, Noite Transfigurada, 12-V1-1966 - 153 A danga da morte, {a morte] como danga, 6-VIIL- 1966 .. » LSS Bach, Passion ‘selon St. fean, 20-11-1967 .. 157 Béla Barték, Concerto pour Orchestre, 16- IV 1967 158 Schumann, Concerto pour piano et orchesire en la mineur, 19-V-1967 .. wee 159 Musica da camara, 29- Ty- 1967. . 160 No gozo de uma obra, 6-X- 1967 . 161 Haydn, 20-X-1967 163 4.26 4.27 4.28 4.29 SL 5.2 5.3 5.4 Algumas citagSes musicais dispersas A poesia? 2-X-1967... Schénberg, Barték, 26- 1-196 Beethoven, 3." Sinfonia, dir. Karajan, 15-XT- 1973 167 Schumann, Carnaval, 27-I-1975 5. RECENTES Une musicienne du Silence, 2000? ...... ” Da muisica antes de tudo o mais... 25- VIL: 2001 ” Siléncio para Eugénio, 2004 Da Muisica, 18-X-2006 .... ANEXO PREFACIO Fspelho da musica: tempo imaginario Narciso entre espethos paralelos [...} mas Narciso gosta de ouvir-se no siléncio.! Gostariamos de tocar do lado de la sem quebrar 0 vidro nem turvar a dgua? «Nao nasci sendo para ver ¢ ouvir». Imagem e som, arte e musica. Eis uma das duas tabuas em que se des- dobra este diptico ideal do visivel ¢ do audivel: Tempo da Musica, Mtisica do Tempo. E hora de dar a conhecer o lado mais secreto do universo critico e estético de Eduardo Lourengo, j4 apreciado glosador de obras de ' Eduardo Lourengo, «Literatura e simplicidade», Seara Nova, Lis- boa, 27 de Margo de 1948. 2 Eduardo Lourengo, «Esfinge ou a poesia», in Arvore, n.° L, Dezem- bro de 1951. 5 Pagina do Diario disperso de Eduardo Lourengo, Montpellien, 4 de Dezembro de 1956, publicada em Prelo, Revista da Imprensa Na- cional —Casa da Moeda, ntimero especial dedicado a Eduardo Lou- rengo, Lisboa, Maio de 1984, p. 117. arte nO Espelho Imagindrio, mas até agora desconhe- cido ouvinte e comentador de eventos musicais. Concebidas entre 1948 e 2006, as 212 reflexdes sobre a miisica, na quase totalidade inéditas, abrangem todo © arco temporal da sua carreira, acompanhando o per- curso do fildsofo e do homem, desde os seus anos de Coimbra até ao tempo alemao, e testemunhando, atra- vés dos parénteses brasileiro e italiano, a sua fixagado em Franga e a condigdo actual de viajante permanente, cidadao do mundo, curioso e incansavel fruidor de luga- res € eventos. Como muitas descobertas, também esta da miisica é filha do acaso. Trabalhando na Biblioteca de Arte da Fundagdo Calouste Gulbenkian, li pela primeira vez o texto lourenciano Da Musica. Em meméria de Fernando Lopes-Graca, que aqui, por um outro estranho jogo do destino, fecha este volume agora publicado. Foi 0 profes- sor Jodo Nuno Algada, responsavel do acervo, a propor- cionar-me esta leitura. E a ele que devo este trabalho, porque foi o seu infatigavel e precioso labor de arruma- ¢fo, inventariagaéo e catalogacaéo da obra completa de Eduardo Lourengo que me fez descobrir, a partir deste primeiro, os intimeros inéditos centrados na especulagao sobre a miisica e a arte. A partir dos manuscritos emer- gentes do acervo, tomou forma pouco a pouco a obra que © leitor est4 prestes a conhecer e que sem a pacién- cia e 9 cuidado do professor Jodo Nuno Alcada teria ficado ainda por muito tempo no esquecimento: o Did- rio perdido de Eduardo Lourengo. Folhas avulsas, amarelecidas pelo tempo, porventura dum azul desbotado ou cor-de-rosa palido, agendas de bolso mintisculas, paginas soltas ou agrafadas, algumas numeradas, outras ndo, encontradas em forma de paciéncia beneditina entre paginas de livros de Estética e Filosofia ou recolhidas numa caixa fragil de papelao branco. Este material é s6 uma parte do que resta do Didrio perdido de Eduardo Lourengo que mereceu varios titulos, o tiltimo dos quais, A Casa Perdida, sugere a ideia da dimensdo intima, familiar, quase religiosa que na mente do autor devia ter. «Este nao € © ‘Didrio’», repete-me muitas vezes, protestando, o Pro- fessor, «sao folhas diaristicas. O Didrio propriamente dito estava numa pasta preta debaixo da minha cama em Vence. JA nao o encontro, deitaram-no fora.» O Diario disperso, agora organizado pelo professor Joao Nuno Alcada, inclui reflexées filos6ficas, literarias, esté- ticas, politicas, privadas e também apontamentos de natureza varia: curiosidades cientfficas, noticias da moda e da sociedade, novidades desportivas, testemunhando o amplo leque de interesses do seu autor, homem de cultura habitado por uma curiosidade insaciavel, uma curiosidade sem fim. No vasto acervo do filésofo, 0 responsavel descobriu ¢ identificou estas folhas raras reservadas a misica. Uma vez separadas, arrumadas, inventariadas e ca- talogadas, comecou para mim a tarefa da transcrigdo que desempenhei ao longo de um ano e meio. Trabalho minucioso e por vezes desconsolado, numa luta didria com o halo de incompreensdo que velava palavras apa- gadas, cnigmaticos vestigios de pensamentos singula- res, tinicos, a partir duma grafia dificil, mitida e fasci- nante. Manuscritas a tinta preta, azul, vermelha, as consideragGes sfo muitas vezes apontadas na margem de paginas dedicadas a filosofia, 4 literatura, A arte ou a estética e, sobretudo nas pequenas agendas de bolso, comecgam num ponto ¢ continuam voltando atrds no tempo e nos dias. Outras vezes, para aproveitar ao maximo o exiguo espago da folha, a tinta preenche as entrelinhas com novas consideragées, formando assim uma preciosa, mas quase inextricavel, floresta de pensamentos. «Ha tempos um grafélogo descobriu na minha letra a expressio de uma excessiva necessi- dade de outros, uma espécie de dependéncia original», declara o autor. De certo modo, um anseio platénico do saber, uma sede inextinguivel de conhecimento, uma curiosidade por tudo e por todos, uma gencrosa aber- tura ao mundo distinguem a escrita e a personalidade de Eduardo Lourengo, Uma vez decifrados, os «hierdéglifos» restituitam pouco a pouco uma insélita imagem do pensador, retratado na intimidade do seu escritério, nas viagens solitdrias de automével, nas salas de concerto, nos teatros lotados, lugares privilegiados da sua audigao, revelando a parte mais secreta e profunda da sua personalidade e da sua historia. Fragmentos inesperados, gravados & margem duma obra extensa e varia, cujos pilares assentam na Filosofia e na Literatura, as meditagées musicais de Eduardo Lourengo tratam um arco de tempo vastissimo, do gregoriano 4 mtisica serial, de Josquin de Prés a *Tempos de Eduardo Lourengo: Fotobiografia, org. ¢ coord. Macia Manuela Baptista ¢ Maria Manuela Cruzeiro, Bertrand, Lisboa, 2003, p. 15. 16 Stockhausen. Apesar de nao ter formagao especifica na area, o ensaista eleva-se ¢ leva-nos até a esséncia do discurso musical, traduzindo, em forma de poesia ou de ensaio, a mensagem profunda do compositor. Através dum olhar préprio, fntimo, original, inevita- velmente entrelagado com um espago e um tempo bio- graficos, o filésofo restitui-nos um panorama pessoalis- simo, mas totalmente universal nas suas inesperadas conclusdes. Inicialmente relutante, Eduardo Lourengo nao que- ria tornar ptblico um material tao ocasional ¢ frag- mentado, declarando-se um simples amador. Todavia, deixou-se convencer de que ndo € o seu rigor musicold- gico que se pretende aqui testemunhar, mas 0 lado intui- tivo, arguto e iluminante de um pensador que respon- deu por completo a todos os apclos da sua vocagio estética. Assim, ao lado da Literatura, da Arte, do Cinema, estas paginas sobre a Miisica sio um «pre- texto», no sentido etimoldgico do termo, «encobrindo» o verdadeiro tema, fio condutor de toda a obra lou- renciana: o Tempo. Finalmente rendido ao projecto, o autor escolheu o titulo: «Tempo da Musica, Miisica do Tempo». Do particular ao universal, «do sensivel ao inteligivel», diria Platao. E é percorrendo transversal e cronologicamente a Miisica ¢ os seus autores que E. Lourengo se aproxima do grande tema do Tempo universal, o Tempo absoluto, o Tempo de Deus. Na reflexdo sobre a Misica, ainda mais do que nos seus trabalhos sobre a Histéria da Arte, o fildsofo consegue penetras, talvez porque se sinta livre de filtros derivados de uma formagao académica, 17 na zona mais secreta e pessoal do didlogo com Deus que é 0 didlogo com o passado, com os rostos familia- res, com a sua «casa perdida». «Nada, a nao ser a miisica e, as vezes, o encontro ou a recordacao de algum odor aspirado na infancia, me atira tio profundamente para o tempo perdido»’. E ainda: «noutras terras os reldgios das torres marcaram outro tempo. O nosso era um tempo sem tempo, alegoria de uma eternidade onde tudo quanto importava j4 tinha acontecido»’. Como um fio de Ariadne invisivel, a musica con- segue reconduzi-lo a casa. E muitas vezes esta casa tem os contornos e as paredes de um Deus e um eu que se perderam reciprocamente e que s6 na musica se reencontram, como o pai e o filho prédigo da para- bola. «Certamente se um dia voltar para Deus a ne- nhuma outra coisa o deverei senao a estas estradas de uma melancolia lancinante que desde o canto grego- riano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visivel» (cfr. 3.9). Muitas vezes é Bach, um dos compositores eleitos do universo mu- sical lourenciano, a criar a ponte para o divino (1.1, 1.9, 2.5, 2.10, 3.2, 3.5, 3.13, 4.5, 5.4), outras é Brahms a levar o apelo misterioso A alma do escritor: «A es- ponja seca de Deus que sou é ensopada sem mise- ricérdia pelas lagrimas de fogo da clara noite deste canto» (3.9), * Didrio, fotha sola com a indicagio «Julho de...», publicada em Coldquio/Letras, n.° 171, namero especial intitulade Eduardo Lourengo, Uma ideia do mundo, Fandagio Calouste Guibenkian, Lisboa, Maiof Agosto de 2009, p. 45. & Eduardo Lourengo, Piiblico Magazine, 21 de Abril de 1996, p. 29, 18 Mas se Deus fez do Tempo a sua «maior descober- ta»’, a Mitsica reinventa Deus. Tal como Ele, ela orga- niza, separa e recompoe, plasmando-os, os sons ¢ a sua duragdo. A Masica esculpe o Tempo ou, melhor, a Temporalidade. Alter-ego de Deus, por um lado imer- ge-nos «no oceano da temporalidade», por outro «sal- va-nos do tempo» (4.5). Balizas sonoras delimitam o Agora do Sempre, e € esta viagem, do Instante a Eter- nidade, que E. Lourengo percorre: uma viagem intima e pessoal que se traduz na busca de si mesmo. Assim, lemos numa pagina de agenda datada de 24 de Novem- bro de 1971: «Le Temps ¢’est l’expérience qui nous est donnée pour savoir que nous ne sommes pas dans l’éter- nité, mais cette expérience méme nous met en contact avec l’éternité.» Quet a Miisica quer o Tempo sao pretextos, confes- sa-nos o autor: «Tenho consciéncia de que tudo me é pretexto para nao falar de mim. Ou seja, para falar * Assim lemos numa folha solta do Didrio, datada de 13-IX-1952 ¢ publicada cm Coldquio/Letras, op. cit. p. 49: «A maior descoberta de Deus foi o Tempo. Por uma violéncia inconcebivel, um ser eterno ¢ necessério consentiu num efeite seu, temporal ¢ contingente. A cria- gio parece representar assim uma espécie de suicidio divino. A mul- tiplicidade indefinida clos seres faz frente 4 unidade divina ¢ isto mereé duma vontade dessa mesma unidade. Como compreender isto? O mesmo. ‘Tempo d& a resposta, Com a mesma mao com que consente na multi- plicidade com a mesma mao a aniquila. O tempo ¢ 0 estofo do possi vel ¢ o leito imével do nado mais possivel. O circule existe, O circulo & Deus. O tempo é a nossa visio de seres temporais. f a maneira de termos um nome, mas para Deus somos andnimos pois o ‘Tempo s6 existe para Ele como ideia ¢ realidade em nds, Tudo passa no Tempo mas o Tempo nao passa em Deus. Nisto consiste a sua Eterni- dade.» 19 incessantemente de mim. £ por isso que a minha escrita é lirica e passional»’. Por detras de Bach e Beethoven, de Chopin e¢ Schumann, de Schénberg e Bartdk, encon- tramos o «eu» do pensador eternamente ao espelho, um Narciso, sim, mas ao inverso. Como o sujeito cara- vaggiano mergulha em si, nas proprias Aguas, trocando o lago pelo seu ew, Eduardo Lourengo imerge num mundo outro, fora de si, para se encontrar, no fim da viagem, consigo mesmo. Mas no préprio instante do encontro do eu e do seu reflexo, ambos se afundam na evanescéncia da agua: «No abismo intemporal onde a miisica me mergulhou, sumiu-se a luz mondétona da lampada, a nitidez da hora nocturna, o meu préprio peso terrestre ¢ mortal» (1.9). Volta assim a imagem do cspelho. Se, por um lado, O Espelho Imagindrio relega na dimensdo visual todas as solicitagdes da arte e do espago, a imagem do Tempo é o lugar da percepgao sonora, o lugar do encontro entre a audigdo lirica e a escrita pessoal. No primeiro, o olhar avanga de dentro para fora, no segundo, de fora para dentro. Ea luz desta corrispondenza d’amorosi sensi que podemos, no meu entender, ler o diptico da Arte e da Musica, A misica torna-se espelho do autor e do seu imaginario: «nao sei se somos feitos do tecido dos sonhos, mas sei que somos feitos de uma matéria idéntica A deste canto» (4.4), Assim, Shakespeare ¢ Wagner sfio pretextos para falar do Homem. Poesia ¢ muisica apontam para um Unico fim: 0 encontro com a humanidade. Por isso, humana ¢ humanistica é a escrita § Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de Dezembro de 1986, pp. 1-6. 20 de Eduardo Lourengo, até quando vé —e olhando-a olha-se — a musica. A descoberta de Bartok representa uma revelagio ¢ ao mesmo tempo uma revolugdo no mundo lourenciano: «Foi em 1951 que o meu irm4o Anténio’, que estava mais a par do que eu (em questdes musicais modernas), me proporcionou a escuta de Béla Bartok, da famosa Musica para Cordas, Percussao e Celesta. Foi uma reve- lacéo de um outro mundo que j4 nao era esse da viséo mistico-religiosa do tempo de Deus, era um tempo sem Deus, em busca de outro Deus que seria a Mtisica»'® Ao longo das paginas diaristicas, Bartok surge varias vezes, A distancia de décadas, trazendo consigo suges- tdes pictéricas, como a das cores e espagos vazios de De Chirico. Os siléncios de Barték e a metafisica de De Chirico sdo intuitivamente postos em paralelo, uma solidao universal atravessa os dois numa das paginas mais belas de estética comparada das artes que este volume agora publicado encerra, e, enquanto as notas do fugato que conclui o primeiro movimento se apagam num unissono em pianissimo, vemos as gares vazias do pintor atravessadas por longas sombras de estdtuas ausentes (2.11). Da mesma maneira, 0 escritor compara o escandalo provocado pela miisica de Stravinsky com a revolugao de Picasso (4.1) e justamente porque, pro- > Anténio Loarengo de Faria (1927-2008), médico € contista. © Declaragao recolhida durante uma entrevista ao autox, conduzida por Barbara Aniello, em Lisboa, Dezembro de 2010, cuja tanscrigio integeard um dos volumes das «Obras Completas de Eduardo Lourengo», a cditar pela Eundagio Calouste Gulbenkian com a colaboragio cien- téfica da Universidade cle Evora (ef, Nota da Organizadora). 21 tagonistas da primeira vanguarda, ambos interpretam o seu lado pagado, obsessivo, barbaro e primitivo. No plano estético, sensivel ao didlogo entre as artes, o autor pée a misica em paralelo com a arquitectura, a escultura, a pintura ea poesia, expressando a sua singu- laridade através de oximoros: «rede luminosa, clara, de feixes obscuros» (3.19). Eduardo Lourengo confessa, noutros lugares da sua escrita, a prépria vocagao sines- tética: «a musica é para mim vitral» (4.3), E visual e visionario é de facto quando encosta a Crucificagao de Tintoretto 4 Paixao segundo Séo Jodo de Bach (4.20), semelhantes nos tons escuros e linhas angulosas, ou quando chama 4 memoria 0 arquétipo do labirinto (4.6, 4.22, 4.28) e os poemas de Pessoa para falar numa certa forma de Lied (4.7). E, esta tiltima, uma das mais altas reflexes no que toca ao tema do Tempo e do Eu nele imergido. O poder evocativo, atemporal e (a)espa- cial da miisica, que Fernando Pessoa intui na sua poe- sia, Eduardo Lourengo alcanga com a sua prosa. Quatro s&o essencialmente os estilos de abordagem ao tema. 1) O primeiro ¢ 0 do ja citado «pretexto», onde a musica funciona como centetha inicial, para de- pois atear os campos da Literatura, da Estética, da Arte, da Filosofia. Assim, de Bach passa a Rubens, depois a Han- del terminando em Leibniz, numa admiravel para- bola que passa do estimulo auditivo ao visual, ao plano especulativo, alcancando a Histéria das Artes e da Filosofia como um todo (1.1). Em torno 22 de Wilhelm Friedemann Bach tece um confronto entre a filosofia marxista ¢ a fenomenologia hege- liana e, em favor desta tiltima, critica a superes- trutura contra a lei do amor (1.3). Por vezes, nascem sugest6es visuais das audi- tivas. E assim que, em linhas como estas, quase se consegue vislumbrar a cor da Sinfonia n° 2 de Brahms: «Toalhas de mar batido de luz e noite sobrep6em-se na sua escrita e compéem esta es- pécie de cristalizagéo crepuscular que é a sua masica» (2.9). Outras vezes, a Literatura entra em didlogo com a Masica. B 0 caso de Pessoa, ou «os Pes- soa» com seus heterénimos, comparados com «os Chopin» dos andamentos contrastantes (2.12). Assim, Ricardo Reis esta para Alvaro de Campos como 0 scherzo molto vivace esta para o largo na Sonata n.° 3 do misico polaco. De facto, nos andamentos desta tiltima das sonatas de Chopin, duas almas perseguem-sc, uma efervescente, bri- Ihante e extrovertida, outra meditativa e profunda- mente melancélica, tal como as vozes do universo pessoano: a de Reis, classicamente equilibrada e ligada a tradigdo, e a de Campos, inovadora, intimista e por vezes nostalgica. Em particular, o sentido do vacuo e a impenetrabilidade dos espa- gos descritos por E. Lourengo condizem, no largo, com a progresséo duma harmonia rarefeita sobre a qual se delineia uma melodia intensamente soli- taria. Sobre este quase nocturno chopiniano entre- vé-se indistintamente o perfil de Campos na fase 23 24 mais niilista, desiludida, saudosa e abilica da sua existéncia. O encontro com o Tristéo wagneriano é oca- siio para uma preciosa iluminagéo, toda cen- trada na esséncia da Arte como mistura entre realidade ¢ irrealidade. O herdi da floresta wagne- riana torna-se emblema do homem em equilibrio instavel entre vida e morte, medindo as distancias entre si c scus sonhos, seus desejos, seus amores (4.4). A evocacao da selva (3.8), o amor fatal, os dois jovens mortos € ao mesmo tempo imortais, fazem um todo e, através da bruma wagneriana, parece quase entrar em contacto com estes sim- bolos do Eterno. Segue o género da citagdo dos didrios dos compo- sitores, muitas vezes retratados nos momentos mais angustiosos e atormentados da sua vida e da sua criagdo. Eo caso de Schumann (1.2, 3.22, 4,29); de Schubert (2.4); de Bach, de Mendelssohn, de Stravinsky. A citagao de Proust (1.15) & pre- texto para uma digress&o onde os temas do Tempo e da Masica transcendem a ocasido patticular, para se tornarem universais, em sintonia com 0 titulo e a inspiragio do Didrio. O terceiro estilo é mais intuitivo e intimo. Neste, o ouvinte funde-se e confunde-se com o objecto so- noro: aqui, o filésofo e o musicéfilo juntam a ponta do lapis. Por exemplo, falando em Prokofiev, E. Lourenco cita «esta transparéncia e este pudor astral» (1.4), traduzindo — é dificil dizer se volun- taria ou involuntariamente — conceitos préprios da linguagem técnico-musicolégica em sintonia com a orquestracdo do compositor. Prokofiev, com um brilho timbrico e um virtuosismo instrumental inigualaveis, exalta todas as possibilidades dinami- cas dos instrumentos, dos fortissimi explosivos aos pianissimi, to ligeiros que afloram o inaudivel, criando planos interpretativos e poéticos perfeita- mente claros, quase translicidos para o ouvinte, Quando, a propdsito de Webern, escreve: «Ce n'est pas la musique mais sa naissance (et ensemble sa mort). Entre les deux une fulguration d’une beauté dévastatrice car elle fait chanter le silence au quel le surgissement des fulgurations sonores sentble servir de rempart» (1.5), salienta com uma rara perspicd- cia o papel do siléncio na obra do compositor que, juntamente com Cage, é 0 grande cantor da ausén- cia do som no século xx. Mas o siléncio de Webern, célebre pela sua predilecgio pelas composicgées bre~ ves, € uma consequéncia da desmaterializagao pro- gressiva da linguagem musical a todos os niveis: na forma, na articulagaéo das frases, no timbre e na dindmica. O siléncio weberniano nao é apenas a insergao de pausas entre as notas, mas sinal de uma valorizag4o do vazio que toma posse da pauta, subs- tituindo-se aos sons. Eduardo Lourengo intui tudo isso: «il fait chanter le silence», diz, e apela A voz humana, reduzida na sua redundancia linguistica, a puro eco: «Rien ne chemine au long de ces allées phosphorescentes, personne dans ce labyrinthe d@échos, sauf ce silence qui monte du puits inexistant 25 26 oi nous croyons qu’il est enseveli, dans la multitude désolante des appels sonores & jamais sans centre» (1.5}. Por vezes, por detras do critico, viskumbramos o homem que dialoga com Bach ¢ Berlioz 4 pro- cura de si mesmo, mais uma vez a musica como espelho da intimidade, encerrando os segredos da esfinge, eterna ¢ inexoravelmente muda face as miiltiplas angtistias do eu-interlocutor (1,17). Outras vezes, é o poeta que fala, como neste exemplo acerca de Ravel: «Certas notas caem, tombam em qualquer ndo-sitio e caindo povoam uma noite branca de estrelas negras» (1.20). Mesmo citando o nocturno que faz de cenario aos textos de Aloysius Bertrand, é na poesia e, em particular, no oximoro, que E. Lourengo encon- tra o registo mais apropriado para descrever as romarias harmonicas de Ravel. Neste mar de es- trelas cadentes evocado pelo ensaista, visualizamos as notas que dos harpejos oniricos se soltam para cair no lugar-de-ninguém que é esta harmonia tao inesperadamente audaz e inédita que troca a noite pelo dia, o branco pelo preto, e vice-versa. Humana e ao mesmo tempo poética € a voz por detras da folha 2.6 onde, na equagio Beetho- ven : Bach = Kirkegaard : Lourengo, o ensaista se coloca do lado do repouso silencioso, da paz hu- milde, fugindo ao grito titanico e herdico dos gi- gantes da miisica e da filosofia. A evocagao melédica sela paginas autobiografi- cas como Sozinho no meu escritorio (3.1), ou Triste (2.2), Nunca sei nem como nem quando vem o espirito da noite (3.6), ou As minbas incoeréncias (3.10), em que o apelo a uma existéncia mais trans- parente, leve, pura, as notas de Bach, Schumann, Frank, Stravinsky, a caricia do vento formam um todo, labirinto inextricdvel de sentimentos, memé- vias da infancia, interrogagGes existenciais. E na mtsica que o filésofo se espelha, é nela que reencontra a parte mais auténtica de si: «Minha alma verdadeira: Noite transfigurada, Concerto para celesta, percussdo...» (4.18). Ela é «didlogo da nossa alma com o espago, didlogo do espago com o espago em nossa alma» (4.26). Nela, diz © poeta, «o que ha mais inomindvel de mim canta em surdina» (4.22). E na misica, enfim, que encontra «este acento que é do meu tempo e de nenhum outro» (4.18). Sujeito e Objecto identificam-se na sua natu- reza ¢ nas suas aspiragées, no presente c no futuro, no império da realidade ¢ no reino da possibili- dade: «Ce que je suis comme étre terrestre se trouve entier dans Vallegretto de la septiéme [de Beethoven]. Mais ce que je voudrais étre, ce que je n’ai pas le courage d’étre, se trouve dans la Suite n° 2 en si mineur de Bach» (4.12). 4) Enfim, a miisica torna-se ferramenta de critica literdria e filoséfica: —no caso do retrato de Eugénio de Andrade, inteiramente tecido entre som e verso, na busca de uma nova explicagiio da conhecida 27 28 musicalidade do poeta, no percurso pessoal de criador de um verso cantabile a compo- sitor de uma universalissima musica mundi (5.2), de cantor de notas nocturnas a fruidor do Siléncio platénico das Esferas (5.3); —nos ensaios dedicados a Jorge de Sena, o poeta-musico mais anti-simbolista e anti- -romAantico (cfr. volume em preparagao na série «Obras Completas» da Fundagao Ca- louste Gulbenkian) mas, ao mesmo tempo, veementemente Ifrico nos seus protestos con- tra a morte raptora de Mozart (A.27); —na aproximacio Pessoa/Wagner, cuja afini- dade aflora a identificagao do poeta com o miisico, na sua revisitagdo decadentista da morte (A.32), cujo «canto de dogura venenosa» faz dela uma «sedutora suprema» (A.31); — no caso também de Saramago e Scarlatti, onde 0 mtisico se torna «metdfora e espelho» do romancista, anulando a distancia entre terra e céu, humano e divino, profano e sacro (cfr. volume em preparagao acima referido). — na recorrente comparagio, enfim, entre com- positores € poetas, ou pintores, ou fildésofos, colocados em paralelo: Goethe e Beethoven (A.1); Mozart e Klee (A.3); Handel ¢ Velaz- quez (A.4); Shakespeare e Bach (A.5); Stra- vinsky e Hogarth (A.6); Beethoven e Keats (A.8); Moore ¢ Barték (A.15); Bach e Leibniz (A.17); Ruben A. e Debussy (cfr. volume em preparagdo acima referido). No plano metodolégico ¢ no processo cognitivo, o autor serve-se duma ponte para alcangar a Miisica: a Fenomenologia. A ansia tipicamente hegeliana de des- cobrir 0 espirito absoluto que o fendmeno musical vela; o primado da experiéncia intuitiva sobre o facto musi- cal, indissocidvel do ponto de vista do ouvinte, deriva- do de Husserl; a sintpatia ou a empatia entre um «eu» eum «tu», sujeito conhecedor e objecto do conheci- mento que se vio focalizando mutuamente numa reci- proca construgaéo da prépria identidade, segundo o ensinamento de Max Scheler e Edith Stein: tudo isso se revé no jogo de reenvios entre 0 autor e a matéria. Daqui a distingéo entre sentir e compreender a miisica (1.16); daqui os arquétipos que Eduardo Lou- rengo encontra na musica de Bach como circulo perfeito, infinito ¢ continuo (1.9), ou como a espiral descendente na partitura da Lalu de Berg (1.7), enquanto a diferenga entre os dois, circulo e espiral, serve para designar Wagner face a Mahler (1.12). Submerso numa sélida rede teérica e filoséfica, o autor nao se deixa constranger pelas suas malhas, entreabrindo caminhos e pontos de fuga com a ferramenta que the é mais natural: a ironia. Emblematico é 0 exemplo da Desin- trodugdo 4 estética (4.10) onde o autor, a propédsito de um quarteto de cordas de Henry Barraud, nao renuncia 4 glosa auto-irénica do final: «Da andlise fenromeno- légica s6 podemos extrair maravilhosos coelhos brancos com a condigao de l4 os termos postos antes ou de os levarmos nos bolsos como os bons prestidigitadores.» Distanciando-se da fenomenologia pura, Eduardo Lourengo ensina que «quadro ¢ musica sao hist6rias, 29 sio o lugar «onde» de um didlogo para entender o qual é literalmente exacto dizer que ¢ necessdrio convocar 0 passado de onde emergem, o presente em que nascem eo futuro que transportam.» Por isso Historia e Fenomenologia so ambas necessdrias ¢ complementa- res: «A Histéria sem Fenomenologia é cega, a Fenome- nologia sem Hist6ria é vazia.» Menos conhecida e nao facilmente intufvel € a rela~ go com Charles Péguy, que As vezes aflora a identifi- cacho, tratando-se de um poeta e filésofo de origens humilissimas, convertido ao catolicismo no fim da vida. Segundo me contou Eduardo Lourengo, foi Péguy a ajudé-lo na sua aproximagio a arte como verdade. Numa recensio ao Péguy de Romain Rolland, editada em Vértice com o pseudénimo Eduardo Coimbra, o ensaista cita: «Nao ha sendo um remédio: a verdade... Ver a vida como ela é e dizer como ela €. Idealistas, realistas, todos tém o mesmo dever: tomar por base a observacao real, os factos reais, os sentimentos reais, Que sobre esta base ergam em seguida a construgao que quiserem! Mas primeiro que a obra tenha os pés apoiados no solo! Que cla participe da vida da terra! Que o artista ouse olhar a realidade na cara! ‘O espi- rito do real é 0 verdadeiro ideal’, disse Gocthe... Qual- quer que seja a nossa esfera de acgao, sejamos os ser- vidores da verdade... Antes de tudo a verdade»". Do mesmo modo, os fendmenos musicais sao tratados como objectos reais, livres de superestruturas, embora " Revista de Cxltura e Arte, vol. tt, 0.° 40-42, Coimbra, Dezembro de 1946, pp. 153-155. 30 © autor, ouvinte esclarecido, tenha sempre em conta a prudéncia necessaria considerando os eventos histéricos, para nao incorrer numa cegueira fenomenolégica. De facto, antes de todas as dissertagdes, vem a obra. Ela esta em primeiro lugar. Paradoxalmente, «tudo vem da obra» —afirma E. Lourengo — «até o mal que dela se diga!» Mas também Malraux, Valéry, Poe, Baudelaire, Whitman, Pessoa, Proust, Beckctt, Rilke participam nas vozes que tecem a complexa partitura deste Tempo polifénico. No plano da linguagem musical, o autor consegue, com meios prdéprios da poesia ou da arte visual, alcan- gat, descrever ¢ visualizar conceitos técnicos que fica- riam, caso contrério, presos no restrito entourage do musicélogo. Embora nao seja especialista nesta area, através do telescépio fenomenoldgico consegue expli- cat, por exemplo, um dos géneros musicais mais com- plexos, nestes termos: «Na fuga o infinito procura o infinito sem © tocar» (3.2). A interpretagéo no plano técnico ¢ filoséfico é muito apropriada, uma vez que, na Fuga, o processo imitativo da repetigéo com varia- gaéo do mesmo tema sugere uma multiplicagdo infinita dos planos, criando uma estrutura entrelagada conti- nua ¢ potencialmente interminavel. A comparagao entre a Infinidade da Fuga e a Finitude é deveras sugestiva, remetendo para a ideia da Eternidade ¢ da Morte expres- sas nas Paixdes de Bach. Sibitas iluminagdes, em prodi- giosa sintese, abragam todo o arco da grande miisica numa pagina singela, como é © caso da folha de 1953 (3.2), onde os pilares da histéria sAo fotografados e¢ emoldurados do ponto de vista da sua aventura humana e do didlogo com o préprio ser. 31 Assim, a musica torna-se metafora da vida ¢ o silén- cio metafora do seu fim, e até uma galeria de retratos nas paredes da Opéra de Paris, estando numa fila a espera de lugar, é pretexto para reflectir sobre o efémero e a eternidade (3.5). Entre a Suite emt ré ea Cantata n.° 51 de Bach, sao de novo as imagens a levar o autor para esta sintética e aguda comparagao: «a Suite € de uma religiosidade real incomparavelmente superior 4 Cantata, arabesco admissivel ao divino sob 0 modo do andante que mais se diria uma verdadeira carga de cavalaria». A ideia do arabesco condiz com a forma extremamente rica dos abbellimenti ¢ a imagem da cavalaria pode ter sido evocada pelos inimeros ribattuti das duas trompetes que acompanham a melodia do soprano (3.27). Do mesmo modo, definigdes como esta: «O Leit- motiy & a presenca de um espirito que nao consente nem pode perder-se num instante da sua busca sem se perder» (3.16), condizem com a natureza técnica do termo musical. De facto, o Leitmotiv, embora tenha de ser claramente identificével de modo a manter a sua identidade, indicando uma personagem, um lugar ou uma ideia, é sempre alterado quando reaparece ao lon- go do drama. De qualquer forma, Eduardo Lourengo sugere © que acontece na partitura wagneriana: 0 mo- tivo condutor, uma vez enunciado, sofre uma metamor- fose em termos de ritmo, harmonia, orquestragao, por yezes misturando-se com outros temas, tal como na vida a realidade nunca ocorre sempre da mesma manci- ra, mas padece de uma continua, inexordvel mutagio. Daqui a ideia do encontro e da busca permanente. Daqui 32 a grande dicotomia entre identidade e variagdo. A ima- gem de Wagner como o mar que flui e reflui sobre si mesmo completa um quadro poética e musicalmente perfeito (3.16). Ao longo das paginas diaristicas, nascidas sem qual- quer propésito divulgativo, Eduardo Lourengo conduz pela mao o leitor inesperado, através de iluminagdes que percorrem toda a histéria da miisica ¢ so o sinal do seu gosto pessoal e da sua esclarecida profunda compreensio estética da linguagem musical. «Beethoven raciocina ainda 0 seu sentimento. Schu- mann sentimentaliza mesmo a sua raz4o» (3.22). «As notas de Chopin parecem pessoas infinitamente tristes. Esses mortos tém sé sonhos» (2.7). «Debussy: Wagner sem Leitmotiv, psicologia em vez de metafisica» (3.29). «[Bach] O génio é uma simplicidade que se ignora, uma cara privilegiada a quem o vento de Deus capri- chosamente tocou» (2.5). «Como um Jacob sonambulo, Bach nos oferece 0 seu sonho plantado no meio do seu coracdio» (3.27). «Barték, argonaute planétaire des solitudes stellaires» (4.21). «La musique de Xenakis nous donne Voreille avec laquelle nous devons aborder de nouveaux mondes» (1.13). Com estas rdpidas pinceladas, 0 autor consegue abarcar, duma forma escultérica, epigramatica, o vasto panorama artistico-musical tanto dos séculos longin- quos, quanto das tiltimas décadas. E importante subli- nhar o fascinio pelos compositores contemporaneos — Cage, Xenakis, Blacher, Hindemith, Boulez, Stock- hausen — que preenche muitas paginas do Didrio, sobre- tudo as do periodo francés. Como me referiu Eduardo Lourengo, foi por ocasido de algumas conferéncias no IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Acousti- que/Musique) que comegou a interessar-se pela musica moderna. A audig&éo de Verklirte Nacht de Schonberg, por exemplo, recorre ciclicamente ao longo do Didrio, representando um dos ancoradouros mais significativos da sua viagem musical. Eduardo Lourengo confiou-me num coléquio de trabalho que esta miisica representou um dos momentos mais deslumbrantes ¢ revoluciondrios da sua histéria pessoal de ouvinte. Melodioso e suave na propria escrita, surpreende pela musicalidade instintiva que demonstra com versos sempre ritmados ¢ finais com efeito cadenciado. E ja afirmagdo deste facto uma carta de Joel Serrao, datada de 8 de Margo de 1987, referindo uma impressdo simi- lar de Lopes-Graca: Quando ambos colaborévamos na Seara Nova, lem- bro-me de que, uma vez, o Lopes-Graca, que era o Chefe da Redacgao, me fez esta observagao: «V. j4 reparou como este rapaz escreve tao bem?» Reparei, a meu modo, claro esta, mas o Lopes-Graga era musico, e embora um tanto «dissonante», creio que ele me ajudou também a prestar atengao a transparéncia musical da sua prosa, instrumento admirdvel para as viagens que V. tem empreendido”. E eis que a musica de objecto se torna meio expres- sivo, penetrando no corpo do texto, condicionando as 2 Devo a leitura desta carta inédita de Joc! Serrdo a Eduardo Lou- rengo ao incansavel ¢ precioso trabalho do professor Joo Nuno Algada. 34 suas formas e graduando os seus contornos, Como na fabula de Narciso, o sujeito conhecedor ¢ 0 objecto conhecido mergulham um no outro e, nas aguas nivela- doras do saber, entre verdade e imagem, entre corpo e reflexo nao ha separagdo possivel. E assim que na sua prosa musical, Eduardo Lourengo, o «dialecta incuravel», o «sofista triste» — como gosta de se autodefinir'? —, canta e encanta'. BARBARA ANIELLO 8 Cf, infra, 19. 4 No dia L de Novembro de 2011, lendo este prefitcio, Eduardo Lourengo comentou: «Nés nfo pensamos nada, nao hd um homem propriamente ‘pensante’, nés ‘ouvimos’.> 35 Nota da organizadora do volume Dentro da produgio de Eduardo Lourengo, este li- yro sobre a musica é sui generis: surge como coleccao de apontamentos escritos num arco temporal vastissimo, a partir de estimulos musicais emoldurados numa época e num espago que nos fogem, mas que sdo fotogramas da biografia do seu autor. Por se tratar de material fragmentario e ocasional, tornou-se necessdrio fornecer elementos que melhoras- sem o seu entendimento, para facilitar ao leitor esse enquadramento e para poder a critica formular hipéte- ses. Por isso, respondendo a exigéncia de uma aborda- gem o mais exaustiva possivel ao tema, foi feita uma versaéo completa com comentarios musicoldégicos, notas de rodapé e anexos, a publicar na série «Obras Com- pletas de Eduardo Lourenco», editada pela Fundacdo Calouste Gulbenkian com a colaboragdo cientifica da Universidade de Evora. O presente volume, editado pela Gradiva, nasce para o grande ptiblico, omitindo cerea de dois tergos dos textos inéditos e conservando apenas um dos seis anexos, que apresenta excertos sobre miisica ja publicados em outros espagos da eserita lourenciana. Este anexo recolhe algumas citagées sobre criadores, intérpretes ¢ obras, inte- gradas em ensaios filosdficos e literdrios, ou em entrevis- tas jd editadas, enquanto a correspondéncia inédita entre Eduardo Lourengo e Fernando Lopes-Graga, alguns arti- gos recolhidos, outros fragmentos dispersos no Didrio € 0 material iconografico —— com programas, cartazes € bilhetes de concertos — ampliarao 0 volume das «Obras Completas» da Fundacgado Calouste Gulbenkian. Todo 0 material encontrado no acervo foi recolhido, ordenado cronologicamente e dividido em capitulos cotrespondentes aos lugares de residéncia do filésofo. £ oportuno que o leitor saiba, todavia, que, sendo impos- sivel cristalizar lugares e tempos de um homem de cul- tura como Eduardo Lourengo, incansdve! viajador em permanente movimento, esta ordem nao é absoluta. Como acidentalmente o proprio autor indica, muitas paginas nasceram durante as suas frequentissimas viagens. Em auséncia de titulos, salvo casos isolados em que é © préprio ensaista a apelidar as paginas do Didrio, optamos por denominar as consideragdes com o nome do compo- sitor ou da pega citados ao longo do texto. Onde nao é possivel, por se tratar de reflexdes gerais, escolhemos intitular a pagina com a primeira frase do manuscrito. Os parénteses rectos so utilizados para colmatar as lacunas; as reticéncias indicam falta de texto pelo facto de o manuscrito estar incompleto ou danificado; o carac- ter italico substitui as partes sublinhadas; 0 maitisculo foi deixado como no original. BARBARA ANIELLO 38 1. Sine data 1.1 Barroco. Bach, Suite 2.° 4 en ré majeur A ideia central é a da continuidade Rubens-Bach- -Haindel-Leibniz. A arquitectura podia incarnd-la menos bem. A es- cultura melhor. Como o Infinito € inexequivel por uma intuigdo (universo cartesiano), s6 a repetigao, o ciclo, a aproxi- magao infinita, o calculo infinitesimal traduzem o sen- timento poderoso da Infinidade desse Deus em tudo e todas as coisas, Fuga — Passacaglia. Efus&o discursiva —-cantora da criagéo — discurso sem principio — nem meio — nem fim de Deus. 41 1.2 Schumann, Sonate en la mineur Ma musique refléte les peines endurées pour obtenir ja main de ma chére Clara. Atteint d’une grande insta- bilité. Quitte Dresde «sans regrets» vient a Dusseldorf. Découragement. Difficulté d’imposer ct d’intéresser les gens 4 cette musique romantique alors si neuve. Sonate en la mineur. Ecrite en quatre jours fiévreux. Chant de l’Ame d’abord mais dans la technique héri- tée de Beethoven. Et ce chant nous touche toujours, labyrinthe sonore Pune tristesse qui reflue sans cesse vers Iui-méme, qui se berce et se redit d’une phase inachevée ct brilante de silence, se prend par la main et se dépose comme si elle avait un enfant mortellement blessé dans ses bras un peu plus loin. Prélude et Fugue en sol majeur. A Vorgue Anton Heiller (Fest{ival] de Besangon). 42 1.3 Wilhelm Friedemann Bach, Sinfonia em ré menor Retoma no Adagio a ouverture a la francaise (Lully) com tal originalidade que mais tarde Mozart the retor- nara no Requiem. Majesté-mouvement vive terminado por notas graves 1776 — do ainda jovem Friedemann Adagio —- Fugue O amor aprende-se no amor; a arte na arte. Esta é a grande lei da sucessio criadora e ndo a absurda teoria marxista da superestrutura. 43 1.4 Prokofiev, Ballet de Roméo et Juliette Cette musique prenante, d’une presque sensible mys- ticité, fut donc possible dans un monde officiellement «matérialiste». Comme les mots sont mensongers et les choses réelles portent avec elles des profondeurs autres! La douce tragédie, cette souffrance heureuse faite d’au- tant de lumiére que de détresse des amours exemplaires, de tout amour, a donné cette transparence, cette pudeur astrale 4 la musique de Prokofiev. Toute la spiritualité [1 44 1.5 Webern, 5 piéces, opus 10, 2° symphonie, op. 21 5 piéces, opus 10 Retenue-raffinement Trés calme et tendre Tres lent et extrémement calme Coulant 2%"* symphonie, opus 21 Le silence y entre comme composante. Le 1* mouvement la structure contrepointistique est trés rigourcuse. Ce n’est pas la musique mais sa naissance (et en- semble sa mort). Entre les deux une fulguration d’une beauté dévastatrice car elle fait chanter le silence auquel le surgissement des fulgurations sonores semble servir de rempart. Rien ne chemine au long de ces allées phosphorescentes, personne dans ce labyrinthe d’échos, sauf ce silence qui monte du puits inexistant oi nous croyons qu’il est enseveli, dans la multitude désolante des appels sonores a jamais sans centre. Dans une beauté anonyme seul le silence consent 4 se nommer. If recouvre si bien le nétre qu’on ne peut pas cesser de penser que eest lui qui enfin trouve sa voix, la premiére qui en Musique lui est offerte. Mallarmé appelait cette musique et ils se sont trompé ceux qui ont cru que c’était celle 45 de Wagner qui fleurissait le Néant mallarméen, Le Silence entoure la musique de Wagnes, mais elle-méme veut Je supprimex, Pencerclant sans fin dans sa spirale océanique, dans le seul continuum de toute Vhistoire musicale. Webern, lui, appartient 4 ce temps de la der- niére sagesse qui a appris qu’une table cst un désert stellaire composé de quelques myriades de fulgurations séparées par des années-lumiére. Il s’y installe dans ce discontinuum désormais familier et sur lui, comme un croyant du vide, il y fait sa prigre ardente et doulou- reuse. La voix humaine n’a plus te pouvoir d’unifier cette sphére trouée. Elle est un écho comme tous les autres au milicu de Pabime et si inintelligible ou intel- ligible, aprés tout, que la vibration déchirée de la harpe ou du piano. La musique finit ainsi son régne de bonne conscience millénaire qui est celui de nous tous, étonnés W@apprendre que notre sol le plus ferme est le vide mul- tiplié qui au-dehors et au-dedans nous constitue. 46 1.6 Jolivet, Symphonie Symphonie. Variagées do espirito ndo sobre as aguas mas sobre o lugar onde as procuramos em vao, despidos de todos os poderes. O nada busca-se a si mesmo, 0 caos procura um nome para oO seu tormento. Esse nome é 0 liquido frio do fundo do mar austral, sem relevo nem cor. Compressa de nada aplicada no umbigo intér- mino de uma angttstia que em vez de nos ligar a vida no-la torna longinqua, mitica, distante, fabulosa e a nés sem outra existéncia que esse gelo cintilante e musi- cal através do qual existimos enquanto a musica existe até cairmos no grau Zero quando o milagre cessa. 47 1.7 Alban Berg, Lulu Suite pour Lulu de A. Berg. Des portiques s’ouvrant vers des couloirs sans fin, des couloirs vers d’autres portiques, le tout encerclé d’une solitude minérale. Notre coeur introuvable, revenant d’ailleurs infigurable, méta- morphoses impuissantes de la mort se donnent dans cette musique un rendez-vous avec ses meurtrissures cosmiques les plus cruelles et les plus stires. De la tris- tesse inconnue des Ages passés. Des cris s’élangant dans une nuit sans mémoire de soleil vers des étoiles elles- -mémes en fuite. De faux retours de bras courant aprés des gestes sans retour. Navigations arrétées, les nétres, 4 ce minuit-méme of nous touchons la lune avec le doigt. Du Wagner refluant vers un centre qui n’existe plus et non d’un centre qu’on ne peut pas quitter comme Tristan vers des surfaces toujours plus amples. Descente en spirale. Descente plutét vers des abimes, cux-mémes coupures dans une nuit sans aucune transfiguration. La tristesse non-humaine au coeur de notre tristesse. 48 Y oe 4.8 Stravinsky, Petrouchka, Oiseau de Feu Il y a chez Stravinsky un cété foire qui lui est resté certainement du temps du futurisme. Le cirque, le music- -bail sont derriére (4 études pour orchestre) Petrouchka, mais aussi Oiseau de Feu, etc. C’est le bariolage du monde moderne, ses stridences 4 la recherche d’une expression et d’une harmonie qu’elles trouvent forte- ment chez Stravinsky. Mais il y a quelque superficialité dans ce brillant et éblouissant métier. C’est une musique sans souffrance et de plus de frénésie que de véritable joie, car la joie véritable ne peut étre que triomphe et surpassement gagné sur la souffrance ou tout au moins sur l’obstacle. | 1.9 Bach, Paixdo segundo S. Mateus Pascoa de ... Sexta-feira Santa. Meu irmao ligou para uma emis- sora americana e da distancia chegou até nos a Paixdo segundo S. Mateus. Uma expressio tao terrivel do meu sentimento fundamental da minha existéncia que desde a primeira fase toda a minha vida ficou oscilando fora da duragdo, convertida num insuportavel ponto de angtistia sem margens. No abismo intemporal onde a musica me mergulhou, sumiu-se a luz monétona da lampada, a nitidez da hora nocturna, 0 meu préprio peso terrestre e mortal. «O céu nao sera o céu se 14 ndo se tocar Jodo Sebastido.» Oh, Ana Madalena Bach, os citimes de Deus, se o teu Jodo Sebastido nao fosse ele préprio a incarnagio das harmonias esperadas pelo préprio Deus. Nenhuma expressao da humanidade tao proxima do pais inominado da divindade, esta tentagao que morre quando toca 0 que alcanga mas que ninguém poderd riscar do velho jogo mitico do homem, nem mesmo a evidente evidéncia da morte. A mim préprio, o dialecta incuravel da conciliacdo dos contraditérios, © sofista triste da esperanca terrestre pregada aos ou- tros, a magia humana de Joao Sebasti&o Bach arranca- -me por momentos da drida e solitdria planicie da Insignificagao, de que sou caminheiro sem tréguas. As lagrimas correm sem vergonha na minha face de ho- mem rendido e humilde e o cantico imortal rasga a minha carne até lA onde eu gosto de imaginar que esta o mais profundo que me sustenta, com 0 grito inexpidvel 50 do chamamento @ tinica presenca que desde a infancia eu sei que importa a minha vida. Agora € 0 coro do povo, o murmiirio anénimo que jamais tera fim dos que pedem a Crucifixdo, que cresce sobre a raiz tremulante da minha vida para a abalar O belo circulo das relagdes logicas onde a minha luci- dez gosta de repousar, Strauss e Loisy, Montaigne e Descartes, torna-se o simbolo do absurdo, a imagem louca onde o principio e o fim desafiam a nossa argticia e o nosso orgulho. Que pode interessar-me a perfeigao do circulo se nem sou capaz de saber o que significa esse simbolo sem comego nem fim? A miisica rompeu-o eo que parecia absurdo tornou-se luminoso, Tertuliano e Sao Paulo dialogam agora um didlogo transparente e estéo mais préximos do que verdadeiramente me im- porta que Voltaire, de quem nao obteria um sacrificio se lho pedisse. Como uma torrente fabulosa, a mtisica transmutou- -se em paisagens alucinadas de tentagGes insidiosas, uma mistura amarga onde nao distingo a face de Deus do rosto de Sata ou do Nada e lentamente o tempo recolhe as folhas da Paixdo segundo §. Mateus como véus que nunca mais regressam. Entre tantas formas de tentacga&o, e s6 aqueles que nada tém a perder nfo sabem o que é a tentacdo, a tentacdo de Deus & a mais perigosa, a mais irresistivel, porque Deus é a forma que em absoluto convém a nossa alma. Como é possivel (e é possfvel) deixar de responder ao apelo incansdvel, nunca extinto, mesmo na mais nocturna das noites, da voz infinita que nos convoca para a unidade com nés mesmos? 51 1.10 Alban Berg, Concerto 4 la mémoire d’un Ange Alban Berg, 1935. Concerto 4 la mémoire dun Ange, pour violon et orchestre. Mort de la fille de la femme de Mahler, Best-seller du Disque Isaac Stern avec Leonard [Bernstein]. Um tosto bem-amado, uma ferida sem cura criam a pintura e a misica que a tira do caos. 1935 —Leviata reinava sobre a terra. Alguns mor- tais o haviam adivinhado: Kafka, Pessoa. Outros escre- viam ja entre o intervalo que o monstro estava criando entre o Homem e a sua Histéria. A antiga Morte pintavamo-la do outro lado com a atroz mas sensivel forma do nosso mundo. Bis enfim a Morte invocada pelo que nao é, pelo que nao somos, ¢ tirando do silén- cio que nos deixa e os lancinantes apelos sem regresso que nos fabrica 0 seu rosto verdadeiro. E a morte mesma que se faz ponte entre as lagrimas glaciais, solitdrias como desertos sepatados por outros desertos que Alban Berg celebra, é cla o esplendor dilacerante que 0 grito eo fervor assumem quando o que nao existe vem to- mar em seus bracos para sempre um corpo habitado pelo sol e as estrelas. Ob monstrum vitae et profunditas mortis. 52 4.11 Rachmaninov, Concerto 2.° 2 Entre as mesas, o fumo ¢ as palavras, descia sobre ns como uma vaga 0 3.° movimento do IT Concerto de Rachmaninoy e como o vento entre arvores de Outono nos desfolhava segundo a regra da sua melancélica dissolugao. 53 1.12 Entre Wagner e Mahler Entre Wagner e Mahler a diferenca entre o circulo ¢ a espiral. Todo o nosso destino se descentra com ele definitivamente e na sua orbita Wagner aparece como o ultimo classico pois conhece ainda o costo dos deuses que de novo recria. Mahler comega a grande oragdo da nossa Auséncia que é ao mesmo tempo a de uma Busca como esta que desenrola os seus desertos ¢ as suas reverstveis miragens neste mar de mtisica em alma sem orla imagindvel. & 0 mar mesmo que se sabe mar ¢ busca o abismo que o adormece, mas em vao. Nem 0 Amor nem a Morte wagnerianos sao a sua agua inquieta mas eternamente parada. £ uma miisica sem comego nem fim, sem orla nem centro, ficgdo da sua ficgio, espelhos paralelos, reenviados éxtases sem figura, nds mesmos viajantes solitarios de nenhum caminho capaz de nos conduzir onde desde sempre supusemos que éramos. Esplendor dos mundos mortos ou fora de mao ¢ liquida angistia nela se entrelagam, formando este magma sonoro que parece dispensar um ouvido huma- no para existir como filho de ninguém, um mundo que h4 muito nao distingue a sua face da face anénima do universo. A oracdo que as Cantatas de Bach enderega- vam a um Deus que nos via c amava, Mahler a ditige a sua Auséncia. 54 1.13 Xenakis La musique de Xenakis nous donne Voreille avec laquelle nous devons aborder de nouveaux mondes. Elle est déjé ces nouveaux mondes musicaux, ce chant ja- mais oui qu’en silence les machines et les calculateurs se renvoient les uns aux autres. Oui, c’est fini Pintériorité, Pexpression de Phomme telle que nous la trouvons aux premiéres pages du Livre Saint. Enfin nous sommes au- -dehors de tout Paradis et nous le savons. Cette terre que nous habitons déja dans laventure, le pressentiment n’y a pas de place pour nous qui sommes purs dehors. Notre 4me nous la voyons non pas en regardant vers Vintérieur ot St. Augustin nous invitait 4 retrouver Dicu, mais vers l’univers le plus poli ct scientifique de ’Exté- riorité of nous sommes tous plus que ce que nous sommes, o notre science déja nous surprend comme si elle était devenue la science de personne, od, enfin, ce Dieu que nous n’avons jamais rencontré au-dedans ni en haut dans les cicux, selon Lalande, brille de l’éclat le plus irrésistible et mortel. Nous sommes enfin devenus des esclaves mais nulle part nous trouvons le visage du Seigneur qui nous libérerait de notre esclavage car lui c'est notre propre visage devenu Nécessité. Nous avons déja perdu Pidée que nous sommes a jamais perdus et il n’y a personne pour nous retrouver. Ce fut long mais nous avons fini pour faire dés-exister Dieu. 55 1.14 Mozart, Sinfonia n.° 39 Carta a J. Vitol $ Musica Sinfonia n° 39 de Mozart [emissdes que tém em conta que a vida do tout Paris € mais séria que a do centro comum] Falso ponto de vista: estas emissdes colocam-se no ponto de vista do ouvinte do século xx, mas este ouvinte é um mito, Nés nao estamos mais préximos do século xvi do que do xm. Depende da natureza. O Dies Irae do século xiu é mais moderno do que o de Mozart, em certo sentido. O de Mozart é barroco na contextura geral e sé se torna profundamente comovente quando adopta, quando é a promogdo gregoriana do admiravel motivo que ele descobre. O que na vossa emissdo nao foi visivel foi ser o gregoriano como a filosofia tomista sua contemporanea, como as catedrais e a Divina Comé- dia, um instante genial da expresso catélica do mundo, instante sobre o qual o futuro bordara sem fim motivos novos, mas que ¢ impossivel esquecer sendo na Estética o que Cristo mesmo é na Igreja: referéncia permanente. Descartes dizia que a crianga que sabia que 2 e 2 sao quatro sabia tanto desta verdade como ele. A Igreja catélica do século xm sabia #0 essencial o mesmo que a Igreja do século xx. O canto gregoriano fora da refe- réncia ao espirito donde procede, espfrito concreto de 56 r homens coneretos de uma Igreja concreta, € um puro exercicio de estética ininteligfvel e pode perfeitamente convir 4 absurdidade refinadamente pensada de Ray- mond Queneau. Se ha nele hoje algo que interessa aos n4o-catélicos isso nao é de tal modo misterioso: 0 cato- licismo além de ser o que 6, tem de comum coma huma- nidade toda nao-catélica mas religiosa, a religiosidade mesma a gual certamente tem uma forma arquétipa na alma de todos os homens, naqueles mesmo que nunca pensaram nisso e o ignoram. Mesmo se a religiao é como Marx pensava o mundo as avessas, a sublimagdo da distancia entre o homem e o homem {na histéria, dizia Marx; nés dizemos, no coragéo do homem) essa Falta é real e é a realidade dela que a poesia de todos os tempos toca e uma certa mtsica, mas sobretudo aquela que é 0 preenchimento sonoro dessa falta. Em grau eminente 0 canto gregoriano, Bach, etc. Por isso me parece nao defensavel lisonjear o pablico do século xx, e cair num relativismo que j4 hoje ndo tem defesa possivel, pedir quase desculpa ou espantar- -se porque 0 nosso tempo regressa ao gregoriano. Ele jamais saiu, como o homem n&o sai do homem, mesmo quando dorme. «Os leitores ¢ os auditores sio perdidos» diz um de vés? Como assim? O vosso colaborador falou de defei- tos de educacdo, de complacéncia para com o ptiblico que tem outros habitos, que quer efeitos, etc. Mas a vossa emissao destina-se a ser um bazar ou a uma pro- posigdo de gosto? Um de vés falou com justiga € justi- ficou os efeitos de Mozart como teferéncia a um publi- co que queria efeitos e vivia rodeado deles. E bem isso. 57 Mas dizem que a nossa civilizagéo néo comporta aquilo que foi a Stinumung de civilizagées passadas (0 da serenidade grega, ou a nova serenidade crista) sé é verdadeiro com cautelas infinitas c, mesmo indo ao fundo da questo, é falso. Nada esté perdido do ho- mem, Ha gregos de Péricles ante nds como ha homens do século xm. Répondre rue de Grenelle — VII — Paris. Radiodiffusion e télévision francaise. 58 ae 4.15 Musica —Tempo [Perfei]to «Na Rechferche] du Temps Perdu, a madeleine ea sonate de Vinteuil, o alimento ¢ a mtsica, elevam-se também 4 alrura do alimento perfeito e da musica su- pra-humana para revelar no ser do narrador um outro ger misterioso e secreto, que pensa ent&o, em alguns indiziveis instantes de eternidade, entrar na esséncia das coisas e no enigma da felicidade», Michel Carrouges jeune et festin, p. 28, T. Saint Jacques, n.° 2. Pela experiéncia da madalena, «o narrador transpor- tado deixa de se sentir ‘mediocre, contingente, mortal’ por um instante. No termo da sublime lamacenta, oced- nica procura do tempo perdido, o tempo nao é reen- contrado senao [nJo instante de um relampago e tudo s’engloutit na imunda caca (ruée) das échasses da velhi- ce, a beira do gouffre informe», p. 28. «$i aucun des grands mythes de Kafka, Proust, Jarry, Roussel ne nous désignent les vrais nourritures, que sig- nifient-ils done? Lindestructible présence de Vaffamé qui se cache en nous, au plus profond de nous-mémes», p. 29. Tal como a madalena, o instante proustiano nao é alimento, mas o relimpago que desmarca o esfomeado escondido, este «ser que nado aparecia scndéo quando por uma dessas identidades entre o presente e o passado, ele podia se encontrar no unico meio onde ele pode viver, gozar da esséncia das coisas, quer dizer, fora do tempo». 59 4.16 Ora nada mais propicio do que a musica Ora nada mais propicio do que a mtisica para jus- tificar o abismo que ha entre senti-la ¢ compreendé-la. £ evidente que a maioria dos ouvintes de Bach nao compreende a sua misica: sente-a, faz um todo com ela no momento em que a ouve e nada mais. Mas isso acontece-lhe com toda a expresséo musical. Sentir € 0 grau infimo da apropriagéo: é sé6 um ouvir com os sentimentos possiveis de prazer, desprazex, deleite ou aborrecimento, em suma, um ouvir gostando ou nao gostando. 60 4.17 Berlioz Filme sobre Berlioz com J.L. Barrault. Uma decep- ¢io como todas as reconstrugGes e todas as tentativas de comunicagao pela imagem da génese misteriosa do miisico importante — a prdépria obra que sé ela nos pode levar a ter algum interesse por quem a concebeu. Mas a noite nao foi perdida. Reencontrei novamente 0 clima duma outra noite memordvel dum festival inter- nacional de musica em Bordéus e a minha surpresa perante a Sinfonia Fantdstica. Mas mais importante foi a repetigao dessc sentimen- to de angiistia que a grande misica me deixa —~ uma exaltagdo frenética e um orgulho ferido. $6 a miisica me oferece esta vivéncia intolerdvel e desproporcionada dum momento humano em que a minha vida transpde o limiar da morte ¢ afronta o julgamento dos deuses. Todos os deuses so importantes na minha alma quando A Paixao ou uma Sinfonia como a de Berlioz constroem nela um inferno doce de muralhas de diamantes. Mas ao mesmo tempo o sentimento da minha existéncia confina-se num ponto misero, miseravel, informe, qual- quer coisa jamais acontecida ou definitivamente rejei~ tada para la das margens da tiltima das noites. Nem a pintura, nem a escultura, nem a poesia encontraram esta permanéncia, esta certeza vibrante de assassinar os deuses que a masica encerra, Pobre Baudelaire, quem pode colher a sinuosa amargura gelada dos teus labios, se nao se pode lembrar que na tua alma as harmonias mais raras da palavra lutavam em vao contra as har- 61 monias sangrentas, claramente imortais, do Berlioz ¢ do Wagner que tu admiravas ou odiavas. Tive um sonho preciso, mas a sua precisio mesma foi o surreal da sua nao-tealidade. E a vida que é con- fusa. No sonho nada ha mais que o sonho. A confusio que nele haja é da vida que lhe vem. Freud. 62. 1.18 Maurice Jarre, Mobiles En écoutant Maurice Jarre — Mobiles Aucun Temps a été plus exalrant que le nétre car nous nous battons pour la premiére fois avec le Diable rendu sensible, visible et il nous choit de choisir comme au paradis devant l’arbre de la science de prolonger la vie méme troublée of nous sommes ou d’accepter téte baissée de rendre au néant I’histoire de lumiére et feu que Dieu a utilisée en nous créant. Que nous ne finissions le « feu de joie de la Nature » évoqué par Gerard Manley Hopkins, le feu de joie de Phomme méme, car & celui-ci peut manquer «la Résur- rection, ce clairon du cceur» dont Hopkins parle dans le méme poéme merveilleux ct prophétique. 1** symphonie pour cordes Jacques Murgier: excellente. 63 1.19 Opera E espantoso o modo de existéncia de certas criagdes attisticas. Os meus irmaos estdo ouvindo épera. Gino Bechi acabou c o ptiblico de S40 Carlos aplaude-o com um frenesi de 1890. Como é possivel? Snobismo? Moda passageira? Nao me interessa a questéo. No que estou pensando é 0 seguinte: na mitica ideia de que uma obra tem de ser «actual», dizer respeito ao nosso mundo, a sua dos, A sua esperanga, as suas lutas, para ser aceita- vel. Ora, ha um factor com que tal teoria nao conta: a fascinag&o fabulosa do que foi artisticamente no pas- sado, idéntica a fascinagdo por uma edigéo Aldo. A fas- cinacio real dos filmes hist6ricos, a fascinagao real pela histéria passada, a fascinagdo que eu pressinto nas descrigdes de Ur por Leonard Wooley sao do mesmo tipo. Em resumo, é absurdo dizer que algo esta morto s6 porque actualmente ha outras formas que nés dize- mos traduzirem © nosso tempo. Por uma razdo simples: 0 nosso tempo é todos os tempos. O que se passa com a Opera no se deve ao facto de ser um espectaculo querido de uma sociedade que se evade através dela para o passado, como se evadiria para outro qualquer passado. Dir-se-4 que hoje nin- guém assiste A Opera com o mesmo sentimento de iden- tificagdo com que assistia em 1850, ou no tempo de Mozart. Mas se assim é isso significaria apenas que agora se assiste com mais profundo sentimento estético do que entdo, em que o estético estava muito enchar- 64 cado de sentimental e psicolégico. Mas 0 erro é outro: 6 pensar que a 6pera tivesse sido mesmo no seu prdprio tempo apenas psicologia. Ora nunca o foi. 65 1.20 Ravel, Gaspard de la Nuit Ravel. Gaspard de la Nuit. Do bom Ravel, do émulo de Debussy, como se a substancia da poesia estelar de Aloysius Bertrand o tivesse arrancado enfim do hori- zonte folclorizante dos amores bruxos de crepitante me- moria. Aqui tocamos a pura interioridade da exteriori- dade misteriosa, da noite e seus imaginarios sortilégios. Certas notas caem, tombam em qualquer nao-sitio e caindo povoam uma noite branca de estrelas negras. Isto me reconciliou com a desteridade habitual de Ravel, mas n4o se pode fugir a ideia de que ele foi investido por uma «outra alma», a do préprio Aloysius bem con- tente de ter mais esta aventura péstuma para acrescen- tar a Gaspard de la Nuit. 66 4.21 Barték, Concerto Concerto de Barték: quanto mais 0 ougo mais me convenco de que a ligquida angtistia de um mundo & procura do scu explodido corag&o encontrou na sua musica a estrada real, a pura busca sincopada e em éxtase que nos dar4 o improvavel futuro onde morte ¢ vida serfo apenas sonho. 67 1.22 Critica, G. B. Shaw Critica «Muitos admiradores de Mozart nado consentem que lhes digam que Mozart nao foi o fundador de uma dinastia. Mas, em arte, o maior sucesso é ser o ultimo de uma raga, ndo o primeiro. Qualquer, quase, pode originar um come¢o, a dificuldade € realizar (fazer) um fim: realizar o que ndo pode ser ultrapassado.» G. B. Shaw. Critico musical assinando Corno di Bassetto. «O artista que se queixa da minha censura (denegri- mento) alegando uma animosidade pessoal da minha parte, tem inteiramente razdo. Quando as pessoas fazem pior do que podem, ficando muito contentes consigo, horrorizam-me, detesto-as, odeio-as, gostaria de as partir aos bocadinhos (de as retalhar), membro a mem- bro ¢ atirar os pedagos para o ralo. Em troca, os artistas verdadeiros inspiram-me os sen- timentos mais calorosos que eu satisfago escrevendo as minhas notas sem fazer a menor menc¢ao a tao altas concepgécs como a justiga, a imparcialidade e o resto dos ideais. Quando o meu espirito critico esté em forma, nao é de ‘sentimentos pessoais’ que se deve falar, mas antes da ‘paixdo’: é a paix&o da perfeig&o critica, pela mais nobre beleza do som, de vista e da acco que se enraivece em mim. Que todos os jovens artistas estejam persuadidos disso e que néo tenham em conta os idio- tas que declaram que a critica deve ser desprovida de sentimentos pessoais. O verdadeiro critico, repito-o, é 68 aquele que se torna vosso inimigo pessoal pela simples provocagao de uma m4 performance (realizagao) e que nado se apazigua sendo com uma boa.» 69 1.23 Estética. Tchaikovsky Porque o belo movimento do 1.° Concerto em si bemol de Tchaikovsky na&o desperta a mesma impres~ sio de profundidade e néo nos despe tao brutalmente de nés como o faz a grande musica? Movimento que aproveitou para Romeo e Giulietta? Porque, malgrado a inegavel beleza, uma certa su- pexficialidade ai esté presente? (O pablico popular do Palais de Chaillot aplaude a quatro maos como em todo o lado.) 70 1.24 Miles Davis Contre la lampe, contre la bouffée de nuit de Miles Davis je regarde leurs photos comme Adam pouvait se rappeler le paradis. Lombre a passé au milieu, un mélange invisible met le feu aux pierres, aux fleurs, & la maison, au jour éperdument bleu of, céte a céte, ils étaient mari et femme transparents lun a autre. 71 1.25 Um som sem conceito Um som sem conceito. Um som bate noutro som ou confunde-se com ele, como agua com outra agua. Os sons como se alagam no ecra do siléncio para 0 medir. Recalcam-se como uma onda mais forte outra onda. Som como vozes que se extenuam noutra pura exal- tagao. [...] 72 2. Perfodo coimbrao 2.1 Coimbra, Apontamentos, sine data «Tout est musique pour un cocur musicien, Tout ce qui vibre et se meut et s’agite et palpite, les jours d’été ensoleillés, les nuits o& le vent siffle, la lumiére qui coule, le scintillement des astres, les orages, les chants oiseaux, les bourdonnements d’insectes, les frémis- sements des arbres, les voix aimées ou détestées, les bruits familiers du foyer, de la porte qui grince, du sang qui gonfle les artéres dans le silence de la nuit — tout ce qui est, est musique; if ne s’agit que de Pentendre» (p. 178). «On ne pouvait méme pas dire qu’il ftit trés égoiste: il p’avait pas assez de personnalité pour Petre. Il n’était tien. Terrible chose dans la vie que ces gens qui ne sont rien! Comme un poids inerte qu’on abandonne en lair, ils tendent 4 tomber, il faut absolument quils tombent; et ils entrainent dans leur chute tout ce qui est avec eux.» Romain Rolland, Jean-Christophe, p. 70. 7S Mafra — 1 hora da tarde do sdbado de 26 Um violino arrasta dolentemente sua cadéncia flui- dica por entre o siléncio do café vazio. Uma platinada fuma na mesa do cadete, Fuma tranquilamente. Os dedos finos acariciam um pequeno saco de costura colorido. 76 2.2 Triste. Tarde de 3-VI-1948 Triste, da infinita tristeza acumulada no tempo que este vento entorna nos meus olhos. Unicamente o vento é de tudo quanto existe aquilo onde o meu sentimento da inconstancia dos seres ¢ das almas recebe a mais perfeita das suas expresses. Nem estas aguas chcias duma pressa imemorial, nem 0 jogo destas nuvens in- sulares ancoradas no azul intermindavel, estao tao cheias do efémero de tudo o que vive como o vento desta tarde de comego de Verao, Se fosse apenas do que passa que o vento me falas- se... Mas o que passa é sobre a tranquilidade imével da eternidade que estd passando. A eternidade languida do rio correndo desde um longinquo tempo; a eternidade do verde sombrio dos laranjais ondulados pelo vento que enverdece ao seu contacto; a imobilidade, a angus- tiosa imobilidade da minha alma onde desde a minha breve infancia o vento acorda este doloroso apclo a uma pureza como talvez, nem sequer exista. Insuportavel pureza que nao escothe nem hora, nem dia e como o biblico espirito do Senhor sopra onde quer ¢€ como quer. Um apelo a uma existéncia tio transparente como a deste céu de pastoral lirica € tao leve como a caricia invisivel deste suave vento. O tinico apelo que nunca deixa de comparecer. As vezes ele chega e é Bach quem mo traz. Ou Schumann, ou Debussy, ou César Franck. Ou qualquer testemunho onde um idéntico desejo de pureza vital encontrou forma de se comunicar. 77 Tristdo, Kierkegaard, S$. Jodo da Cruz, Suso, a inter- mindvel dlea dos mortos que sobre mim entornam uma sombra inapagavel, mais densa que a opacidade impe- netrdvel ¢ iluséria da maioria dos vivos que me cercam. Tao longe o vento me arrastou. Ou tio perto que nunca saio do invisivel ponto donde todo o meu sentir das coisas e da vida irradia. Qualquer coisa, a mais imponderavel desceu 4 profundeza onde estou. Tudo é ocasido para desencadear esta absurda capacidade de iransformar o mais simples facto em metafisica. Tudo me serve para falsear a vida, para no estar jamais na unidade esponténea do que experimento, mas sempre na unidade desse ser cujo destino é desdobrat-se perpe- tuamente sobre si mesmo. [rm&o Kierkegaard, a atrac- cdo da infelicidade sera a mais subtil forma da felici- dade que nos é acessivel? Ou traziamos nés, ecos dum primordial pecado que nao nos pertence, esta incapaci- dade de nao saber viver a felicidade que nos esta tocan- do? Por que apelo invisivel ou em troca de que forma superior de destino trocaste R. Olsen pelo nada do amor que esta vida pode conceder? Porque 0 renunciar é mais fecundo que a posse? Ou a posse s6 é fecunda entre seres que podem colher nela uma forma qualquer de rentincia, um conyencimento de alguma coisa que os ultrapassa a um e outro? Nao radicard tudo isto no sentimento tantas vezes experimentado de que a mais pura forma do amor, aquele acto onde o amante «sofre» mais profundamente «a presenga» da «amada», é precisamente na forma da «auséncia>? Quando tu estas longe, quando a lembranga dum afastamento transitério me toca (nem quero falar 78 da outra, da auséncia definitiva, querida), ent#o a mi- nha vida inteira é nesse momento unicamente a angts- tia em face duma separacdo que nada pode remediar e a felicidade inexprimivel de te ter na minha alma como a mais querida das presengas. « Verde viento», onde estamos? A tristeza do comego transformou-se A medida que fui entendendo o que o teu misterioso perpassar parecia insinuar. E a minha alegria, a maior alegria dos filhos da terra 6 bem a per- sonalidade como queria um deles, 0 favorecido dos antigos deuses, o muito invejado Goethe, mas uma personalidade onde mais belo sao as razdes que desco- bre nas formas que vém ao seu encontro. As tuas razSes, as razées por que estremeco quando tu vens nestas tardes imprecisas e vas com a tua inquieta agitagdo lentamente eu as descobri. Falas da «neige d’antan», das faces que um dia unicamente me olharam e eu olhei, dos que se cscoaram para o rio da profun- didade ignorada que nos chama, dos meus amigos da amizade invis{vel, das paisagens belas que nunca con- templei e por isso sao tio belas, da minha infancia alded tio calma como esta tarde, tao inacreditavelmente pura como tu mesmo, vento suave, breve e imortal. 79 2.3 Intermezzo, 8-VII-1951 Ao ouvir Intermezzo revi a rapariga magnifica dessa aventura fechada e pensei em ti. Mas, caso curioso, tal- vez porque a muisica ndo me deixa senao angustia, o que eu experimentei foi a imagem duma tua aventura longe de mim. Veio-me a ideia de que seria necessario qualquer coisa desse género, um gesto fatal, para que eu pudesse ficar a vinica aventura séria do teu destino. Donde me vird este constante pensamento de que é necessdrio que Ela me perca? Sera do meu angustiosis- simo medo de perdé-la? 80 2.4 Schubert, 11-XI-1951 Quem disse isto de quem? «deve existir uma profunda tristeza na alma do com- positor» «sinto-me invadido a todo © instante por uma in- compreensivel ¢ perpétua melancolia» Schubert, compositor da profunda tristeza. 81 2.5 Bach, 1952 Bach: nunca soube que tinha génio. O génio ainda nao existia entéo. Sabia-se, isso sim, um conhecedor do seu oficio, um amador dele. E tinha génio. Depois do romantismo todos se sentiram geniais. E quase todos foram apenas talentosos. O génio é uma simplicidade que se ignora, uma cara privilegiada a quem o vento de Deus caprichosamente tocou. $6 uma concepg¢ao crista do génio é de aceitar: o génio como dom algumas vezes silencioso pata que o mundo nunca mais deixe de ouvi- -lo. BACH Minba fidelidade tem none igreja Fidelidade sem comego nem fim Pois a promessa a sustenta O génio consiste numa capacidade imensa para de- sempenhar com zelo uma tarefa. 82, 2.6 Kierkegaard e Beethoven, 1952 Enquanto escrevo sobre Kierk[egaard] estou ouvindo uma mtisica de Beethoven. As vozes perseguem-se num crescendo poderoso, arrependem-se, volvem, sobem, insistem, 0 grito faz-se mais grito, alonga-se, repete-se, ultra-repete-se, grita mais ainda, como um grito que nio procura Deus, mas a si mesmo se contempla ¢ per- segue como grito. Um movimento Aumano semelhante ao final da nona sinfonia. A verdadeira religiosidade esta ausente dele. O repouso do grito infinitamente humilde de Bach nao aparece. Titanismo puro, mesmo na missa. Beethoven. A minha alma ¢ amassada no pequeno ribeiro (Bach) mesmo nos dias tempestuosos. 83 2.7 Chopin, Valsa n.° 10, 25-I1I-1952 Comprar a valsa n.° 10 de Chopin. As notas de Chopin parecem pessoas infinitamente tristes. Esses mortos tém sé sonhos. 84 2.8 Prokofiev, Concerto n.° 3 para piano e orquestra, 7-1V-1952. Comprar: Prokofiev Concerto n.° 3 para piano ¢ orquestra. Orquestra sinfénica por Piero Coppola Maravilhosa 85 2.9 Brahms, Sinfonia n.° 2, 15-IV-1952 Como péde estar sepultado tanto tempo ou posto em segundo lugar este maravilhoso ¢ angustiado cons- trutor de espagos musicais de uma melancolia incon- fundivel, aspera e infinitamente solitdria? Toalhas de mar batido de luz € noite sobrepdem-se na sua escrita e compdem esta espécie de cristalizagdo crepuscular que é a sua musica. 86 2.10 Ravel ¢ Bach, Chaconne, 21-V-1952 Ravel sobre Bach: a sua mitsica constitui sé por si wm universo completo. Eu penso que mesmo sem J. S. Bach a nossa musica seria hoje aquilo que ela é Exacto: somente nos faltaria Bach. A propésito da Chaconne de Bach: a simples flutua- cdo, irradiagao, vida de Atomos nascentes que ao tocar se transfiguram em cintilagdes e choques mortais ou criadores de futuro s6 pelo facto de estarem juntos, prova-me o cardcter romédntico de toda a musica. 87 2.11 Béla Bartok, Miisica para cordas, percussdo e celesta, 3-X1I-1952. © mundo de Béla Bartok é um mundo de gares onde s6 resta a ideia de uma velocidade congelada, um grito, uma arquitectura cristalina de purezas insuspeitadas, uma perpétua invencdo de sonoridades ligadas por uma incoeréncia supremamente coerente, de um mundo que é do homem face a um universo totalmente deserto, onde sé o milagre do seu génio traca as leis do proprio espaco poético que prefere percorrer, A sugestfo 6 mediata, de um espago musical de uma homogeneidade pura e solitaria, universo de um tom que se cria avangando toda a sua lei como um triangulo cria um cone. Assimilagdo com o universo dos grandes espacos da pintura de Giorgio de Chirico. Uma pureza estelar, um vermelho gelado dos confins da tristeza, universo galdctico. Nada existe af sendo uma corres- pondéncia extatica de formas depuradas, pensamentos de Deus na aurora de um mundo onde o sentimento espera a sua hora de nascimento. $6 forma. Forma sem cor, sem luz. Formas puras do siléncio compéem um cendrio donde Deus esta ausente. O final do primeiro andamento é dos momentos mais deslumbrantes do universo musical de todos os tempos. No ultimo movimento, as notas, os universos estela- res perseguem-se, aproximam-se sem se tocar, parecem mesmo passar uns pelos outros, mas sio sempre nds pelos outros. $6 ha soliddo, a mais espantosa ¢ magica 88 ¢ pura soliddo musical que € possivel conceber. S6 uma gristeza como nunca houve podia arrancar de si tal musica do siléncio que se devora a si mesmo. 89 2.12 Chopin, Sonata em si menor n.° 3, 9-XII- -1952 Como difere de Reis o A. Campos? Como um scherzo molto vivace difere de um largo na mesma pega de Chopin (da Sonata em si menor ne 3) Questdo de forma No largo as notas vivem como universos de uma tristeza sufocante e cavam entre elas espagos subita- mente impossiveis de percorrer (Pessoa) 90 3. Periodo alemao 3.1 Sozinbo no meu escritério, 1953 Sozinho no meu escritério deixo que a musica suba até mim e ofereco-me a ela desarmado. E uma destas sinfonias onde as notas dilacerantes criam uma torrente longa e funda duma melancolia herdica. Qualquer coisa parecido com estes encontros com o tempo histérico colhido em momentos de uma grandeza fabulosamente distante. O espectador incorruptivel do meu destino segreda-me que esta miisica esté de acordo com tudo quanto sou. Esta melancolia selvagem encontra em mim uma complacéncia que nada mais desperta. Para me nao trair devo guardar intacta esta inviolavel e impar- tilhada solidao. E, contudo, como desejei um rosto querido para divi- dir a alegria destruidora desta soliddo necessdria ao meu deménio. Pareceu-me que se N. ou H. estivessem aqui, eu nio seria mais feliz, talvez, mas as suas presencas nao dei- xariam este estéril desespero roer-me como um cdo danado da mordedura inexpidvel de Deus. 3.2 Bach, Beethoven, Chopin, Schénberg, 1953 A aventura musical de Bach lembra-me uma expres- sdo infinita dos momentos infinitos da vida. A Fuga, a Paixdo, por exemplo. Na fuga, © infinito procura o infinito sem o tocar F preciso que ela se faga canto mortal como na Paixdo. A de Chopin é talvez mais tragica: dos momentos finitos, de uma vaga tristeza por uma auséncia do amor, dum acesso de tosse anunciador do fim, retirar a infinitude da tristeza e da dor. A so- nata em si bemol, por exemplo. Entre um e outro, a dialéctica de Beethoven: anjo tombado do paraiso de Bach, a totalidade dos sentimentos finitos de Chopin luta nele pela grande harmonia dum paraiso menos teoldgico e mais humano. Mas Bach, Beethoven, Chopin s4o ainda homens dum universo onde ha lugar para a transcendéncia. Sera preciso esperar Schénberg para vermos a mtisica do mundo de Deus morto buscar nos ritmos das suas possibilidades imanentes a unica lei dum jogo que é simultaneamente de vitima, adorador e deus (de que todos somos vitimas, ad{oradores] ¢ deuses). 94 i 3.3 Honegger, Jeanne d’Arc au biicher, 23-41-1953 (1.2 versdo) 23 Jan. 53 Com uma emog&o rara assisti 4 representacdéo de Jeanne au bicher que para mim nao o foi. Uma «repre- sentacio» nao teria as minhas lagrimas como a voz de Claude Tillier interrogando o livro espantoso do mais misterioso destino de mulher de todos os tempos. «Est- -ce 4 moi, Jeanne, que ga est arrivé?» Do siléncio a pergunta vem-lhe devolvida em espanto ¢ a pobre rapa- riga que vai arder na grande noite de Deus nao com- preende, nao compreende. Ninguém compreende. Foi assim, Nunca mais se repetira, Uma seara sem fim cres- ceré sobre o pequeno campo de Domrémy e havera uma Lorena no céu quando o Sena arder como uma vela nas maos do tempo. A minha emocio foi sem reserva como de cada vez que esse apelo, sendo de uma pureza que poucas vi e todavia alguns tocaram na terra, incarna tao cruelmente em miisica € palavra como nesta oragao bailada de Claudel-Honegger. Mas no fim per- guntci-me se eu me teria comovido tanto se a minha alma nao participasse, apesar de tudo o que o meu espirito julga pensar, do grande oceano sumptuoso e grave da Igreja Catélica ou, mais além, da nata nocturna c implacavel da Unidade que nao é, nem foi, nem sera, mas aquém e além de todas as coisas é quem é. Fosse eu chinés, fosse eu realmente ateu, a simples dimensao humana de um destino que aceitou a morte por saber que «Deus é 0 mais forte» ter-me-ia reduzido ao ponto humilde, angustiado ¢ liberto que eu fui hoje? 3.4 Honegger, Jeanne d’Arc au biicher, 23-I-1953/ 10-V-2003 (2.* versdo) Paris, 23-1-53 Emocionou-me assistir a representagéo de Jeanne au biicher. Que foi tudo menos uma «representagdo». Se o fosse nao me teria comovido como a voz de Claude Nollier interrogando o Livro do mais extraordindrio destino de mulher do Ocidente, «Est-ce 4 moi, Jeanne, que ¢a est arrivé?» Do siléncio as perguntas vém-lhe sem nenhum eco e a pobre camponesa que vai arder na grande noite de Deus ndo compreende. Ninguém com- preende., Foi assim. E um mistério que compromete Deus, o mistério do seu siléncio que sé Jeanne aceita. Que um dia se repetiré para a Humanidade intervit Mas para o de Domrémy havera sempre uma Lorena no céu quando a terra ja ter4 ardido como uma vela nas m&os do tempo, Porque ressenti tanta cmogao ouvindo este cantico de Claudel-Honegger? (Lembranga de Péguy?) Ter-me-ia tocado tanto se n&o me tivesse banhado em toda a minha infancia no oceano atormen- tado de uma Busca do tinico necessdrio, daquela Uni- dade que nao é, nem foi, nem sera, mas aquém e além dela, sé ela «é quem é»? Fosse eu chinés, fosse eu, em verdade, descrente, a simples dimensdo humana de um destino que aceitou a morte por saber que «Deus é 0 mais forte» ter-me-ia reduzido Aquele ponto obscuro, nulo e liberto que fui hoje? 96 i 3.5 Bach, 8-VIII-1953 O século xvi. Um tempo em que a Paixdo de Bach nao tinha ptiblico. $6 os que morrem tiveram a sua vida. Enquanto esperava numa grande bicha um lugar para as Indes Galantes \embrei-me disto ao othar os medalhées de Bach e Pergolesi desta Opéra de mau gosto. Toda esta eternidade lhes escapa. Mas esta eternidade € a sua auténtica vida. A outra, a deles mesmo, foi um sonho para este acordar sem fim. Que no mesmo Céu Bach dard concertos para Deus. 97 3.6 Nunca sei nem como nem quando vem 0 espirito da noite, 30-V-1953 Nunca sei nem como nem quando vem 0 espirito da noite. No meio do baile, a uma hora qualquer do dia ou da noite, a alegria da cidade ou uma pobre musica deixam no coragao esse espinho sem matéria da nossa vida invadida pelo sentimento de um incxordvel desas- tre. Descobrimos entao que eram certos ruidos familia- res — © eléctrico que passa, os sinos da cidade, esta trompete que inunda a noite com o eco de wma felici- dade quimérica — que nos salvavam desse abrago frio de um futuro onde subitamente nos vemos perdidos dessa pobre insubstituivel densidade de viver. Isso nos ligava, amigos, isso constituia o mundo onde outrora, mercé das pequenas coisas bem-amadas, ruas, jardins, gente passando, montras, antincios, mtisica banal e tao triste s6 por ser miisica, nos sentiamos quase eternos. Pois se ent&io nés no podiamos imaginar que a cidade estava submetida ao tempo, que a nossa humilde e si- lenciosa lingua fosse perecivel, como acredito que um dia vem sempre em que nos vemos longe de tudo, idén- tico aqueles que falharam este nosso admiravel presen- te, admirdvel prazer nosso. Um dia teremos ainda esta paisagem quotidiana e ndo teremos amigos para a ve- rem ¢ s6 por isso nds somos j& agora esse amigo que perdeu o mundo onde os amigos vivem ainda. Nao é verdade, meus amigos, que certos dias dis- cutindo, ouvindo a meias Stravinsky, lendo Pessoa, sonhando com Charlot, batendo-nos na rua por um 98 Siar mundo justo, nds acreditavamos que o tempo ia real- mente paray, que o unico milagre com interesse no uni- yerso era plausivel e o presente ficaria A nossa espera para que, indefinidamente jovens, indefinidamente o construissemos? A nossa alma era nesse tempo de uma matéria incorruptivel, sonho sem medida e medida do sonho. Todas as geragdes passaram e isso tinha sido justo. Mas nés éramos a manha ¢ a tarde do mundo, a excepcdo divina, o fim dos tempos, Nada do que merecera o nosso amor devia morrer, poemas e miisica, homens e mulheres e acontecimentos cujo ser é a pas- sagem. Nés queriamo-los de bronze na praga das ho- ras. Mas nés tinhamo-los visto, ndéds podiamos falar deles, recorda-los, té-los outra vez entre nds, passd-los de mao em mao como passaros de estima¢ao, prisionei- ros do nosso amor. E fazer isso sempre como deuses. Todavia, 4 simples ideia de [que] B. poderia morrer, esta musica, de um qualquer baile popular na outra margem do Mondego, pareceu-me uma muiisica ouvida j4 num mundo da auséncia de B., num espantoso ¢ sombrio mundo onde, separados uns dos outros, nao receberemos daquilo que chamAvamos o nosso mundo mais que retalhos. A ideia mesma do que seja existir tornou-se num instante confusa como deve ser um sonho de crianga. 99 3.7 O louco e o génio, 29-VIlI-1953 Espinho, 29-8-53 Compara-se muitas vezes 0 louco e o génio. Mas o louco nao se cré louco: cré-se muitas vezes génio. O génio tem uma certeza profunda da sua genialidade. A fortuna de César, a estrela de Napole#o, a confianga sobrenatural de D. Nuno, como exemplos militares. Mas quem pode esquecer o testemunho de Camécs, a genialidade confessada de S. Francisco, de Beethoven, de Mozart, de Leonardo? A divida auténtica é 0 lote dos talentos. Nao basta crer-se génio para o ser, mas todo 0 génio se quis ¢ soube génio. Mas talvez a forma mais auténtica do génio seja sé-lo sem o saber: Einstein aos 25 anos, Bach durante toda a vida. E entao uma espécie de santidade da intcligéncia, como a santidade quotidiana da pequena Santa Teresa é uma inteligéncia pura do coracao, 100 3.8 Tristao e Isolda, 29-VIH-1953 Eles morreram, mas ficaram jovens seus amores, puros diamantes da floresta de pedra onde nds outros agonizamos, por onde nés sonambulos passeamos. 101 3.9 Brahms, Ein Deutsches Requiem, 21-IX-1953 Hamburgo, 2.1 Nov. 53 — Dia dos Mortos na Alemanha Ein Deutsches Requiem, de Brahms. Certamente se wm dia voltar para Deus a nenhuma outra coisa 0 deverei sendo a estas estradas de uma melancolia lancinante que desde o canto gregoriano até Messiaen devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visivel. Con- tra, a propésito ou para a sua gléria, o oceano destes cantos tracava na minha alma a tnica miragem de Deus que me perturba desde a infancia. O que as palavras mesmo sagradas na&o conseguem a fabulosa arquitectura de um Requiem o alcanga misteriosamente. Como uma esponja seca de Deus o que eu me sinto é ensopado sem misericérdia pelas l4grimas tumultuosas desta clara noite. O que sou de melhor € 0 OUVINTE deste apelo que Brahms esta fazendo deste canto a parte eterna da minha alma. A minha patria é ai. Ai os meus mortos, a minha infancia, o meu ilimitado, o infinito céu. Ai a imagem sensivel do meu Deus. A esponja seca de Deus que sou é ensopada sem misericérdia pelas lagrimas de fogo da clara noite deste canto. Se nada mais ficasse da civilizagio passada que a musica do Bach, do Mozart, do Brahms, isso bastaria para que a ideia de Deus fosse imperecivel na meméria humana. Pecai. Pecai fortemente: 0 pecado vos libertara. ‘102 Queria ir cego de luz como S, Paulo, nao o merego, nao sou forte. Irci as apalpadelas como os tibios. Irei para Deus porque agora se tornou tao fantasti- camente inaceitavel recolher 4 sua sombra. 3.10 As minbas incoeréncias, 15-XTI-1953 Hamburgo, 15 Dez. 53 As minhas incocréncias, os meus vicios, os meus erros, as minhas lagrimas, a minha humildade, a minha tristeza formam um sistema. Cada um destes signos do meu cardcter se prende com outro. Onde esta o centro? E tudo quanto tento descobrir através deste passeio de bébado esperancado em descobrir isso mesmo. Creio que 0 centro ou esta nas minhas lagrimas, nesta absur- da capacidade que tenho de me deixar invadir pela vida, ou nos meus vicios, capacidade igualmente absurda de me deixar deslumbrar pelo lado fascinante deste mes- mo mundo. Talvez por isso a experiéncia mais proxima da felicidade que experimento é a do contacto com a grande obra de arte — beleza que me toca a beira das lagrimas — e assim por momentos resolve a grande contradigfo da minha vida. O amor, sim, o amor che- gou a ser isso.,, mas 0 amor em mim € 0 triunfo da beleza, da beleza deste mundo. $6 quando amei através das lagrimas amei como amo a misica. 104 spent 3.11 Barték, 6-V-1954 Bartok luta para harmonizar os blocos errantes de um mundo fulminado desde a origem, mas 0 seu génio nada mais consegue do que conduzit-nos como estatuas | através de espacos e constelagdes onde passeiam sem rosto, de alma alheia, estatuas cegas entre jardins petti- ficados. 105 3.12 Beethoven, Konzert fiir Klavier und Orchestre n.° 5, 7-V-1954 Konzert fiir Klavier und Orchestre n.° 5, Beethoven, W. Kempf. Em Beethoven como em todos os grandes a misica é a forma sonora da melancolia astral do anjo cafdo que é a humanidade toda. Mas, diferente da melancolia contemporanea, a sua masica discursa ao mesmo sobre a torrente da melancolia que cle esté em vias de ser. E uma melancolia racional, uma melancolia num mundo de formas que Intam com ele, lhe respondem, se opd6em para o tornar inteligivel, evidente. Mas a nossa nao discursa sobre a melancolia: € a separacao que se sabe separada porque jamais esteve unida. 106 3,13 Bach, Tocata e Fuga, 16-XI-1954 Tocata ¢ Fuga de Bach pela Orq[uestra] de Filadél- fia, Stokowski Eo mais belo comego que jamais foi escrito, 0 mergulhar mais fundo no oceano da miisica. As proprias aberturas de Beeth[oven] empalidecem junto deste juizo final, desta vinda tumultuosa e divina do arcanjo da ressurreicao. 107 3.14 Bartok, Suite para piano, opus I, 16-X1-1954 Heidelberga, 16-XI-54 Bartok. Suite para piano, opus I. O Coro existe na mésica moderna. Vozes inumera- veis gritam para as alturas a sua melancolia indissolivel mas © seu conjunto nao compde mais do que uma soliddo sonora, onde cabe ao mesmo tempo um mar cujas ondas fossem vagas de siléncio e um céu cujas nuvens fossem veleiros de deuses mortos sem ressurrei- co. Arquitectura sonora do descspero gelado de tudo e todos, 108 3.15 Beethoven, Sonata ao Luar, 22-1-1955 Heidelberga, 22-1-55 Sonata ao Luar. Beethoven escreve aqui a mais chopin[iana] das suas obras ¢ dizemos isto sem fazer de Chopin o «metron» de Becthoven. Mas por isso mesmo poucas obras servem melhor para descobrir (manifes- tar) a diferenca entre um e outro. Beethoven quer sempre dizer alguma coisa mesmo quando o que quer dizer diz respeito ao indizivel, a esta conversa entre o real e 0 sonho com a noite. Chopin conversa consigo sobre a tristeza, a melancolia da noite mas sem saber onde se dirige. Quem sabe é seu coracdo que seus dedos seguem. Em Beethoven o sentimento nunca est4 6, mesmo aqui onde parece nada mais haver que um rendez-vous do sentimento consigo mesmo. 109 3,16 Wagner, Lohengrin, 22-1-1955 Heidelberga, 22-1-55 Lohengrin. Como se compreende a explosao de Nietzsche ouvindo esta longa ndo velada oracgdo a um deus vago mas mais poderoso ainda que o seu Deus morto. Com Wagner a mtisica torna-se memoria. O Leitmotiv é a presenca de um espirito que nao consente nem pode perder-se num instante da sua busca sem se perder. Mas nessa marcha, nesse constante estar perto de si do espitito, ele se persegue a si mesmo tanto como persegue o Graal ou o Deus misterioso. Esta continui- dade nao é a de Bach, continuidade de entendimento e de um ouvido contentes com a sua riqueza e com a sua esperancga. Também nao é a de Beethoven, continuidade dramatica, continuidade cortada de siléncios abismais ¢ mudangas de humor mais abismais que os siléncios, continuidade sustentada pela vontade sentimental de se fabricar um mundo. Esta continuidade de Wagner é a continuidade do mar que flui no mesmo lugar, cuja espuma é mar ainda ¢ sobre si se levanta ¢ se atormenta, mar sem margens da memoria humana procurando um centro na floresta alema do universo, procurando-o misticamente por toda a parte e contando-se a si mesma sem fim como o mar no seu marulhar os pavores ¢ as fascinagdes menos do caminho que da sua prdépria inter- rogagado. Musica metafisica nao pelas suas ambigdes miticas confessadas, tantas vezes pueris, mas por esse ocednico didlogo da meméria musical consigo mesma, 110 esse éxtase que se extasia cm si mesmo, essa oragao das oragGes, essa toalha liquida de siléncio ¢ harmonia inseparaveis, essa melancolia de lava de um mundo sem matéria, harmonia de um espirito que por toda a parte procura essa matéria para fabricar um mundo ou se contar a si mesmo histérias impossiveis para ressusci- tar 0 universo desértico e desabitado onde ele se move. 111 3.17 Hindemith, Neues vom Tage Overture, 22-1-1955 Heidelberga, 22-1-55 Ouverture Neues vom Tage. Sinfonia de Hindemith. Que tristeza a da nossa alma nestes espelhos dos Hindemith, dos Barték, dos Alban Berg, uma tristeza que nao se quer triste pois esta miisica é anti-wagneriana até as profundezas e acaba numa tristeza concreta feita nao de nenhuma emogdo, mas sé da vida terrivelmente solitaria que estas miisicas descobriram nos objectos sobre que trabalham e que eles se péem a confrontar em espagos glaciais, deixando cada qual a lei das suas sonoridades mais raras, mais distantes do nosso ex- -ouvido musical, notas néo pungentes, mas rasgantes, dolorosas materialmente antes de o serem na alma, Miasica s6 misica, mais pungente e melancélica do que no tempo em que além de musica desejava e era pun- gente ¢ melancédlica. 112 Sess 3.18 A fascinacdo da misica, 22-1-1955 Heidelberga, 22-1-55 A fascinagaio da mtsica reside no facto de ela tornar a palavra humana uma decadéncia ¢ uma degradagao. | Ser homem torna-se entio uma melancolia. 113 3.19 A musica, 7-IV-1955 A musica goza da impenctrabilidade, da opacidade radical dos objectos naturais. A arquitectura musical é o humano, o inteligivel da mtisica, mas essa inteligibi- lidade é a rede luminosa, clara, de feixes obscuros, os préprios sons. Em rigor pode conceber-se uma «miisica» da natu- reza, quer dizer, uma arquitectura sonora obedecendo a ideia primordial do que seja mitisica: arquitectura sonora com propricdades estéticas (definida em oposi- ¢do ao ruido, por exemplo). Em rigor pode conceber-se o mesmo para a estatuaria € para a pintura. Nao para a Poesia: & impossivel. 414 3.20 A mtisica negra, 18-XII-1955 A musica negra como dissolvente do capitalismo. Um grupo de negros enlouquece esta multidao de for- cas alem&s tAo pouco prontas a enlouquecet. Eu sei que cles ndo tém a alma destes gestos. Mas dentro em breve terdio estes gestos e fabricaro neles a alma de onde eles procedem. 115 3.21 Beethoven, 5.4 Sinfonia, 15-J-1956 O que conduz a $5.“ Sinfonia n¥o € a paixdo de Beethoven, é a vontade musical e humana de Beethoven. A misica anterior a Bleethoven] é subjectiva porque nado ha misica que o nao seja, mas é um subjectivismo apesar dos autores. Mesmo no D. Jodo a experiéncia da paixéo humana de Mozart é a paixao objectiva do mito D. Joo. O heréi pede uma certa musica para existir segundo a sua mitologia. Mozart da-lhe a sua musica e cria com ela 0 tinico D. Jodo eterna e ideal- mente D. Jodo. Mas o tormento de Beethoven, o grande, © tnico tormento de Beethoven é ele mesmo. Pela primeira vez a mtisica nao vai ser escrita para divertimento de reis, para religido de reis, para a me- lancolia dos outros. E pata seu divertimento, para a sua melancolia, como orac¢do tumultuosa e ardente da sua alma oceanica, calma ou desesperada que ele a escreve. Como todos os génios, escreve a miisica que um génio pode escrever sobre a matéria herdada, escreve a sombra de Haydn e de Mozart. Mas com a Revolugio, os reis e os principes destes tiltimos haviam perdido a coragem de fazer encomendas aos seus miisicos, Os muisicos devem determinar 0 contetdo, a hora, a forma por eles mesmos. Beethoven encontrou-se numa encru- zilhada em que a sociedade liberta o artista e ao mesmo tempo o abandona. O abandono e a liberdade serio os grandes motores da alma beethoveniana. Para os fundir numa expresso musical valida era preciso uma grande ciéncia e uma vontade feroz. Ha épocas em que € pre- 116 ciso que o génio irrompa fatalmente porque tem de ser genial a forma capaz de abarcar um contetido novo ao qual as antigas formas nado podem corresponder. Beethoven é © primeiro miisico de um mundo novo: encontrando a forma para esse mundo, encontrou ao mesmo tempo o génio. Mas sé encontrou essa forma porque tinha génio. A sua situacgdo-humana-de-misico coincidiu © mais que é possivel com a situagao da alma ocidental depois da Revolugao. Uma coisa assombra ou gela segundo o ponto de vista: este homem estava longe da patria da Revolugdo. 117 3.22 Beethoven, Sinfonia n.° 8, Schumann, Concerto em ld menor, 29-IV-1956 Montpellier, 29 de Abril 56 Explicagdo alguma poderd jamais equivaler 4 de- monstragéo luminosa do que é o romantismo que a audig&o sucessiva da Sinfonia n.° 8 de Beethoven e 0 Concerto em ld menor de Schumann. Romanticos am- bos, mas a relagdo entre a yontade e o sentimento é inversa numa e noutra. Na sinfonia de Beethoven, a consciéncia, uma ténue mas bem sensivel consciéncia da subjectividade sentimental, esta bem patente. Semi- -abandono, pureza extrema bem medida todavia, sua- vidade que se ama suave, alternando com a alegria transbordante bem situada e natural da danga popular em Beethoven. Lamento abandonado 4 lei da sua tris- teza desunida, sem causa e sem razAo, tristeza de mar nocturno sob as estrelas num mundo de um instante imemoravelmente triste, oragdio continua aos deuses, melancolia pura, pensamento abismado no pensamento sem janelas para nés, nem arvore, nem mundo, mas apenas eco, reflexo de um coracgio magoado, solitario, levado de rastos pelos corredores de uma melancolia que, em vez de se ver como melancolia 4 medida que a musica avanga, se melancoliza mais profundamente ainda e se transforma no choro de alma humana aban- donada a complacéncia de uma tristeza estelar, Beetho- ven raciocina ainda o seu sentimento. Schumann sen- timentaliza mesmo a sua razdo. Este mar absoluto de 118 y sentimento, esta miisica-corpo de uma saudade inextin- guivel, é a mais romantica das misicas. $6 Chopin se | jhe compara. Um e outro s4o o romantismo no estado puro. A poesia romantica é um classicismo, comparada com esta vaga de tristeza. Concerto para violoncelo e orquestra em la menor de Schumann n° 129 119 3.23 Beethoven, 4.° Sinfonia, 28-X-1956 © comentador dos concertos Collone anuncia a i Quarta Sinfonia de Beethoven como um raio de felici- / dade na sua vida, a historia musical da sua esperanca de amoroso recentemente noivo de Teresa Brunswick. Que era ent&o a esperanga, o sol deste homem para comegar este cantico de alegria com uma tao irreme- didvel nota de melancolia que nenhum andante podera apagar? 120 3.24 Contingéncia da Gloria, 15-XI-1956 (1.* versao) Contingéncia da gléria. Houve um tempo em que Mozart era quase desconhecido. Em 1901, em Franca, Theodore de Wyzewa e outros fundaram uma Socieda- de de Mozart. Durou trés temporadas. Mesmo nesta famigerada «bela época», o Mozart tido entéo como amavel, fatil, delicioso, ndo teve sucesso. E isto na grande patria «mae das artes e das letras», Mae do snobismo igualmente. Em 1930, depois do sucesso de Franz Schalk a frente da Opera de Viena, a mesma Franca snob compreendera. Nova sociedade de estudos mozartianos se fundou para perpetuar o conhecimento daquele arcanjo que mais do que ninguém parecia prometido a uma gléria inusdvel. Nao ha nenhum mistério mais triste e mais profundo na experiéncia humana que 0 esquecimento. Todas as teorias da Histéria o deviam ter por certo. Mas como haveria «Histéria» sem esquecer precisamente 0 «es~ quecimento»? 121 3.25 Contingéncia da Gléria, sem data (2." versio) Contingéncia da gloria. Houve um tempo em que Mozart foi quase inaudivel. Em 1901, em Franga, Theodore de Wyzewa, George de Saint-Foix e Adolphe Boschot fundaram uma Sociedade de Mozart. Durou trés épocas [temporadas]. Mesmo nesta época dita «bela», ligeira e futil, Mozart tido entéo por musico amével, delicioso, mas tao frivolo... nao tinha lugar. Em Franga, antiga «mae das artes de das letras». Mae do snobismo igualmente. Em 1930, depois do sucesso de Franz Schalk 4 frente da Opera de Viena que apresentou O Rapto do Serralho, D. Jodo, As Bodas de Figaro e Cosi Fan Tutte, a Franca snob compreendeu. Nova sociedade de estudos mozar- tianos nasceu para conhecimento daquele arcanjo que mais do que nenhum outro parecia gozar de uma gléria inusdvel. Nao ha nenhum mistério mais triste ¢ mais profundo na experiéncia humana que o do esqueci- mento. Todas as «teorias da Histéria» o deviam ter por certo. Mas como evocar o inevocavel? 122 i 3.26 Sobre a contingéncia da gloria, 28-XJ-1976 (3." versao) Sobre a contingéncia da gloria. Tudo tem e teve um tempo. Em 1901, em Franca, Theodore de Wyzewa, George de Saint-Foix e Adolphe Boschot fundaram uma Sociedade de Mozart. Durou trés épocas. Mesmo nesta época dita bela, ligeira e futil, Mozart, contudo, era tido ainda por amavel, delicioso, mas tao frivolo... nao tinha lugar. Em Franca, «mie das artes de das letras». Mae do snobismo igualmente. Em 1930, depois do sucesso de Franz Schalk a frente da Opera de Viena que representa O Rapto do Serralbo, D. Jodo, As Bodas de Figaro e Cosi Fan Tutte, a Franca snob compreendeu. Uma nova sociedade de estudos mozartianos nasceu devido a devogdéo de Mad{ame] Octave Homberg. 123 3.27 Bach, Quaresma de 1957 Montpellier, Quaresma de 1957 Misica pura, a de Bach? Absurdo. Masica da pureza, da mais portentosa que o homem ousou confinar ao reino da musica. O mundo ai esta presente como os altos céus no ribeiro da miraculosa transparéncia. A Pureza é a imagem de um coragao imerso no mundo e no seu tormento mas dele liberto por um sé apelo. O eco das marchas triunfais, as curvas de uma cortesa~ nia divertida e reverente, o resplendor de um universo amante e submergido pelo esplendor ai estéo, mas desta matéria mundana, veemente, luminosa, dangante e célida monta uma intermindvel escada de harmonia por onde sobem e descem os anjos resplendentes da comunicagdo humana com o paraiso. Como um Jacob sondmbulo, Bach nos oferece o seu sonho plantado no meio do seu coragdo. Jamais encontramos uma escada igual para reinventar a aventura de Jacob. Cantata n° 51 «Louvor a Deus e em todos os paises.» Suite em ré de J. S. Bach. Curiosa confusio entre a inteng&o declarada e a realidade se pode colher na Sonata [Cantata] n.° 51 € na Suite em ré, Esta ltima declarada musica profana, aquela misica sacra. A Gnica verdade é que, sendo uma e outra de uma profunda espiritualidade, a Suite é de uma religiosidade real incomparavelmente superior a 124 i i | \ i : i i i | Cantata, arabesco admissivel ao divino sob o modo do andante que mais se ditia uma verdadeira carga de cavalaria. Na 1. parte, pois na 2." o ritmo galopante brusca- mente abandonado torna-se uma indizivel e sublime oragéo de lagrimas e abandonos que subitamente con- gelassem num rosario de pérolas ¢€ cristais magicos. Cantata [BWV] 103 — Elisabette Brassens «Je pleure et votre tristesse se changera em joie» Cantata [BWV] 104 Cantata [BWV] 50 — monumento a gléria de Deus € ao contraponto 125 3.28 Musica abstracta. Festival de Berlim-Oeste, 23/29-X-1957 No festival de Berlim-Oeste 1957, oct, 23-29. Scher- chen dirigiu Operas em 1 acto — Maura de Stravinsky, Aller-Retour de Hindemith ¢ a Opera abstracta n.° 1 de Blacher e Egk: épera sem acco, sem cendrios, encadea- mento de sete momentos capitais da vida dos homens, considerados na sua realidade puramente interior, «abs- tractos» de toda a contingéncia anedética e real; a angtistia, o medo, o amor essencialmente tornados sensi- veis pelo tinico poder expressivo da miisica e de onoma- topeias desprovidas de sentido inteligivel. Foi represen- tada e cantada extraordinariamente, como as outras obras da soirée, pelos jovens artistas do esttidio da Opera Municipal, que aprendem sob a direcgao de Wolf Volker. Pierre Boulez dirigiu na Galeria dos Carvalhos do Castelo de Charlottenburg, a luz algo ftinebre de velas, o seu Martelo sem Mestre depois de ter tocado ao piano em 1.* audig&o cinco movimentos de uma sonata-rio, ainda inacabada, que tem de particular que a ordem dos diferentes movimentos pode ser variada e no inte- rior de cada movimento a ordem das diferentes sequéncias igualmente. Ha nela a vontade de liquidar as cadeias «composicionais». Antoine Goléa — Arts, 23- -29 Oct. $7 126 3.29 Debussy, Martirio de S. Sebastido, 1-XII-1957 Martirio de S. Sebastiiio de Debussy ou 0 nascimento da sua masica lacustre do oceano de Wagner. Wagner sem Leitmotiv, psicologia em vez de metafisica, mas cer- tamente o melhor Debussy, bem superior 4s «catedrais submersas», 4s «imagens» e aos «mares» informes da sua musica mais banalizada. A psicologia facil que parece suportar a descrigéo musical esconde o hiato genial através do qual Debussy se separa de Wagner e sc ins- tala no universo dilacerado da miisica moderna. A cinquenta anos de distancia compreende-se ainda o «escandalo» musical de Debussy: primeiro encontro de um universo que a nada se refere senfo a si mesmo eA misteriosa capacidade de remover a vasa da alma com o seu jogo infindavel de espelhos sonoros rolados ao sabor de uma agitacdo ocednica aparentemente for- tuita como na primeira manh& da criagéo. A miisica conereta, o jazz futuro, os tons siderais de Barték, Stravinsky nele se podem ler em filigrana. E é isto um génio, nascido de outro. Comprar Martirio de 8. Sebastido Images 127 _ 4. Periodo francés 4.1 Stravinsky, 1960 Tout origine est irremplacable. Stravinsky. Ainda hoje € compreensivel a raiva, o espanto, o desnorteamento causado pelo Sacre. Tal como o é 0 causado pelas Demoiselles d’Avignon. Sao ambas es- candalosas c a justo titulo. Sdo os Poetas que criam: Stravinsky € anterior ao jazz e Mallarmé anterior a Stravinsky; esta é a Ordem eterna. 4.2 Milhaud, Orphée et Eurydice, 1960 Darius} Milhaud em «Orphée et Eurydice» vitima do verso francés anti-lirico. A [égica poética projecta sobre a mtisica uma obscuridade, uma sombra estética inegdvel. A beleza vem ao de cima logo que os coros intervém e a poesia se dissolve em articulacdo cujo sentido nfo nos é apresentado. Lamentagdo, éxtase. Exaltagao vocélica da dor sem palavras e sobretudo sem as medfocres palayras de Armand Lunel em que Euridice fala de men mavido referindo-se a Orfeu. Elias Salomon XIII siécle entendit que le chef d’orchestre satisfait seulement soi-méme — era igual aos outros. 4.3 Hindemith, Thémes et Variations, 1960 Para Hindemith, a baguette é 0 simbolo da poténcia. O chefe de orquestra défoule ses complexes. Nous sommes tous des tyrans. Conf[érence] a Yale. Universo do Compositor. P. Hindemith saiu da Alemanha para nado obedecer ao nazismo. Harmonias invadem-nos «como 0 mar» — sao j4 0 mat, nossa alma inteira. Comprar Thémes et Variations de Hindemith, diti- gido por Hindemith. Poucos trechos sem programa nos transmitem a fas- cinacdo musical em estado puro melhor que este «Tema e Variagdes». Sob os nossos olhos (a miisica é para mim vitral), o milagre musical nasce, morre, ressuscita € des- tas continuas metamorfoses uma continua fascinagdo toma conta de nés. Estas (sao) de uma beleza profunda. Explicar esta fascinagao e explicar a Misica é a mesma coisa. George Balanchine fez dele um ballet, um dos me- lhores. Variagées sob um tema de Weber: P. Hindemith. 133 4.4 Wagner, Tristdo, Marco de 1960 Um sé exemplo basta, estatua, quadro, canto, Area, sinfonia para desenhar em nés os contornos do territé- tio ARTE. Rita Gorr canta a morte de Tristo e tudo quanto Arte significa se instala em nés, nos invade como © mar de nés mesmos: somos transportados, transfigu- rados, arrancados de uma terra menos real para a eter na terra celeste de nosso infinddvel nascimento. Por que mistério? Tristéo nao somos nés, sua morte ndo é aquela carnal auséncia dos nossos amores teais, esta vox é outra coisa que © grito lancinante da mae diante do filho morto, da amante diante do amado e contudo ao seu contacto é um mar de tristeza e de lagrimas indistintamente reais ¢ irreais que envolve nosso cora- ¢do subitamente identificado a uma amargura, uma sau- dade, uma dor, tanto mais fundas quanto menos reais. Nao sei se somos feitos do tecido dos sonhos, mas sei que somos feitos de uma matéria idéntica 4 deste canto. Escolher nossa empirica realidade para dar conta da fascinagdo deste Canto é condenarmo-nos a nada com- preender nem deste Canto nem da nossa realidade. Que ai scjamos supremamente reais, que tudo quanto somos © ndo somos ai encontre voz, prova que nossa fealidade € essa e ndo a pobre terra de contradi¢ées a que recor: remos para explicar a mais rica. A Arte é um canto ininterrupto da fabulosa mistura de realidade e irreali- dade que nos constitui: ela é a solugdo, o paraiso e ao mesmo [tempo] 0 nosso delicioso inferno. Ai nos damos a infinita dor que a vida nos rouba, fazendo-nos infe- 134 i riores a dor real; ai nos damos uma alegria sem fim para relembrar o éxtase precdrio das nossas alegrias reais e passageiras. Como no amor, num andénimo e absoluto amor, a realidade volve-se ficgio ¢ a ficgéo volve-se realidade. O que ndo vemos em nés, esse espe- lho itreal no-lo mostra: a Arte € o imerecido beijo da nossa ressurreicao, o estranho beijo que a alma ador- mecida dos homens se dé a si mesma para despertar do encantamento mortal da floresta da vida. A arte nao é feita da Irrealidade do Mundo (ou da Irrealidade} mas da distancia entre nés mesmos e a maxima Realidade do mesmo mundo. Na Nona Sinfo- nia ou na Guerra e Paz nés colhemos do mesmo tempo um maximo de Realidade (como se a Vida com seus dedos de fogo nos tocasse os olhos) e um maximo de Melancolia (de distancia) pois essa Realidade de fogo nés a aproximamos ou ela se aproxima de nés sem que nés a sejamos. E mesmo nem a Sinfonia nem o Livro o sio. O que é esse mar de violenta emogao do primeiro movimento da Nona Sinfonia ou o mar sentimental e histérico de Natasha sendo o ritmo mesmo da nossa existéncia consciente, em grau intolerdvel da sua subs- tancia finita? 135 4.5 Tango, Beethoven, VII Sinfonia, Bach, Suite em ré, 11-VI-1960 Celleneuve, 11 Junho 60 Interroguei-me sempre sobre o estranho poder de miisicas banais sobre mim, pois me parece aberrante que sob um certo aspecto elas me dominem, toquem e mesmo comovam mais que as grandes misicas. Seria melhor dizer, de outra maneira, mas é misteriosamente mais dilacerante esta maneira e isto me pareceu sempre um enigma e um escandalo. Como é possivel que este slow, este antigo tango, esta Tentation, a infinita rap- sédia das melodias que ano a ano marcaram a cor da juventude do mundo e foram moda, me perturbem de algum modo mais que 0 adagio da Sétima ou a Suite em ré de Bach? Julguei encontrar a explicagéo na minha pouca cultura musical ou na superficialidade mesma da minha sensibilidade inexperta. Nao sao de excluir estas interferéncias. Mas hoje, escutando no radio uma certa melodia de ha dez anos, compreendi de siibito a para- doxal subversao dos meus gostos e da minha emogdo. Por nada somos mais afectados do que por nés mesmos e de nés nada mais nos toca tanto como a experiéncia essencial de nao nos tocarmos que faz de nds seres tem- porais. A grande miisica mergulha-nos realmente no oceano da temporalidade, mas o seu prodigio é colocar fora de nés uma como miragem do tempo que pela sua «exterioridade animica» nos salva do tempo. Por isso n&o é estranho que Proust tenha refeito com a sonata 136 i t i | i i de Vinteuil uma descida ao fundo da meméria que é ao mesmo tempo extatica e mistica coincidéncia (embora L breve) connosco mesmos. E um encontre connosco, como tempo perdido. O Adagio da 7." transporta-me «universalmente» para um reino onde uma indizivel felicidade flutua por entre um lago de lagrimas. Nada nem ninguém me dar4 mais algo que se compate a este toque magico no coragdio do tempo, mas este tempo que eu toco ou me toca, para ser mais claro, é um tempo com letra grande que a mesma grandeza eleva misteriosamente ao lugar da Eternidade que nao somos. Uma experiéncia idéntica a refazemos com toda a cria- ¢Ko artistica profunda — tempo paradoxalmente sumido no tempo, melancolia transfigurada ou beleza obrigada a perpetuar-se em circulos que a ampliam sem a des- truit Nao é este tempo redimido o que a mais banal miisica de hé dez anos nos oferece. O irrisério mistério do seu poder dilacerante (s6 igual ao do olhar que o retrato antigo e bem-amado de suibito nos devolve como 0 nada da sua presenca e do nosso amor sepulto) é esse de nos dar, de nos impor o tempo como tempo. O que o rio nao faz (c Heraclito o viu bem, malgrado as bana- lidades que sobre ele correm), 0 que o mar nfo pode produzir (por ser sempre o mar recomegado) este «slow» ridiculo 0 é com uma inexcedivel perfeigéo. Ele é a nossa morte tocada, vivida, esse nosso ndo-ser ha dez anos subitamente batendo com suas maos ausentes e absolutas na espessura falsa da nossa vida unida. Essa misica fomos nés, a cidade sepulta, os amigos ausentes ou transformados 4 sua luz mais do que fantasmas, ee 137 essa musica foi 1950 e o nticleo impensavel da promessa, da iluséo, do sonho e do poderio que os anos tornaram irreconhecivel. Mas antes de tudo foi um instante inico da histéria do mundo e da minha hist6ria vividos ambos como se fossem ezernos e agora claramente vistos atra- vés destes acordes faceis, carregados de toda a tristeza da terra como inexistentes. Pior do que isso que a ine- xisténcia néo pode tocar o que existe: como existentes mas inalcangdveis. O que a Arte camufla, mas como suprema do nosso proliferante nada, esta miisica o desvenda. Por isso, através dela eu toco algo mais pro- fundo, primordial, indizivel do que aquilo que me toca numa dria de Mozart ou numa fuga de Bach. O tempo, um pequeno tempo é toda a substancia da minha vida submersa por essa antiga melodia que me [é jovem onde ja o nao sou e se [é jovem a ela mesma onde ja sé ha histéria, palpebras fechadas e labios selados. Assim ela divide o meu pouco unido presente e atira para um espaco impercorrivel uma parte de mim, a melhor, a mais jovem, para s6 me deixar nos bragos o cadaver desta juventude, cu a sds comigo, falando-me através desta melodia que corre entre mim e mim como 4gua do inferno. De uma 4 outra margem passa a ponte de corda da angiistia, vertigem pura do tempo puro, vida total cercada do que ndo tem nome ¢ nao pode ter. Mas esta Inominacéo basta para nos desbaptizar a nés, as coisas € ao seu implacdvel pulsar. Somos entao a super- ficie absurdamente exterior de uma esfera vazia cujo centro nao esid em parte alguma, mas esta Auséncia e este Vazio nos tocam e nos destroem. So os gémeos do tempo. Sao o tempo mesmo, o instante da flos, do olhar, 138 da mao, daquela nica hora que os deuses depuseram em vao entre nossos dedos impotentes e agora regres- sam de costas voltadas piedosamente, para que seus olhos cegos nao devorem a esperanca dos nossos. 139 4.6 Schumann, Concerto para violoncelo e ovquestra, 26-II-1962 Concerto para violoncelo e orquestra de Schumann. Os que comegam nadam em duas 4guas para o seu préprio mar. Os que nasceram em pleno mar nao comovem menos. Quando tém génio esse mar lhes é floresta, encantamento e final perdigio. Beethoven, Debussy sio homens de duas dguas, fim e principio. Schumann de um vasto mar anterior onde lhe é neces- sario inventar a ilha e a sereia. Tudo o que nado pode ser dito com a palavra romantica ele o diz, ou, melhor, nascido no interior dela percorre-a ¢ percorrendo-a a faz labirinto, em cada frase fechando a porta que acaba de abrir, em cada movimento enrolando em sua alma —e em nossa alma — o fio sem safda do sentimento convertido em seu préprio Minotauro. O amor abre a larga porta deste oceano, a loucura a fechard e com ela em suas maos como um cristal Schumann compord sua face de Anjo da Melancolia a nenhum outro comparavel. 140 i i i i i | i } i ' i | : I i i : i 4.7 O Lied, 27-11-1962 £ uma certa forma de Lied qualquer coisa realmente morta e incompativel com o nosso tempo? Quando se ouve Schubert ou Schumann, a respiragdo intima de um certo tempo vive neles com uma naturalidade ro- méantica que nos comove por senti-la e sabé-la tal. Somos felizes agora outrora para inverter a expressdo famosa de Pessoa. Mas 0 inverso parece suceder com o Lied de agora cujo horizonte é o da sensibilidade de outrora. Nio se pode escapar A impressdo mesmo de pastiche —um pastiche sabe-se ¢ quer-se pastiche — que dé ex- pressio em desacordo com a esséncia temporal que é esta de hoje, unica ¢ to diferente da dos meados do século xix. A cada hora a sua pena ¢ a sua alegria. BE no tempo que estabelecemos o inferno € 0 paraiso que nos estio destinados. Ocorre-me isto ouvindo poemas intimos de Louis Emié transcritos por André Jolivet. Os poemas nao sfo menos felizes que os que serviram a Schubert ¢ Jolivet é um misico excelente. Que se passa, ent4o? Ou é mera reacgao subjectiva e ignorante a minha? Feliz outrora, esta forma de Lied na qual é impossivel nao ler ao mesmo tempo a outra — que éo seu sol — parece-me infeliz agora. 441 4.8 Beethoven, 7.° Sinfonia, Schumann, Concerto em Id, 15-1X-1963 Grenoble, 15 de Setembro de 1963 Que babel de vulgaridade mesmo lA onde, mais pro- vincianos ainda do que nos inventamos, supomos que o bom gosto, a cultura existem. De Paris a esta hora o : mais cultivado dos ptiblicos (diz-se) interrompe a 7." Sinfonia com palmas no fim do Allegretto e berra como um possesso quando termina o Concerto em Id de Schumann, Exactamente como um match de futebol. Decerto os que mais gritaram foram os mesmos que interromperam Beethoven. Tudo é futebol. Assim vai esta carroca da cultura ocidental podre de demagogia e analfabetismo. / 142 4.9 Brahms, Rhapsodie pour contralto, 29-XI-1964 Orq{uestra]. Sinf[6nical. de Londres Rhapsodie pour contralto. Brahms. Choewr de ?Opéra de Viena. Reinventar 0 instante na cternidade que ele encobre, dar A pura dor terrestre a dimensao divina com um Requiem, Maravilhosa época, ou maravilhoso coragdo que ergue um tal monumento A sua decepgao e celebra um amor perdido. Sem humor, gravemente, mortal- mente, como morto é um coragao destruido, esta Rap- s6dia o faz, inscreve-lo num tempo sem morte, refaz as avessas a aventura de Orfeu. i } j | | i i | i | i | 143 4.10 Desintroducéo a estética. Henry Barraud, Quatuor 4 cordes, 1-1-1965 Quatuor & cordes. Obra de Henry Barraud. Supo- nhamos o auditor desprovido de consciéncia histérico- -musical, Hipétese-limite mas que é 0 caso, digamos, do auditor incapaz, por exemplo, de distinguir Josquin des Prés de Rameau ou Monteverdi de Beethoven, ou Beethoven de Schénberg, etc. Nessa hipdtese, ouvindo esta musica de Barraud, prestando-lhe atencio, ele serd invadido por uma arquitectura sonora que lhe parecera des-concertante e sobretudo sera submetido a uma impressdo cadtica, angustiada, dilacerante e dilacerada que, por comparacado com o seu fundo proprio de melo- dia classica, lhe podera parecer de uma total novidade, de uma originalidade poderosa. Dir-se-4 que esse audi- tor ndo compreendeu essa musica. Mas a compreensdo da mtisica nao se esgota na absorgao dela, nao reside toda no conjunto de emogées, pensamentos, que faz nascer em ndés? Como a da pintura na sua visio? De um certo modo, sim e, contudo, mesmo aceitando-o, o caso de encontro mdsica-auditor ou pintura-espectador permanece e até se complica. Quem olhar Guernica, por exemplo, ou as Nympheas ou Suzanne et les vieillards, digo, quem olha detidamente tais quadros vé aparente- mente tudo quanto hé a ver neles. A mesma coisa para quem escuta uma musica jamais ouvida. Todavia, esse ver & de algum modo cego e esse ouvir, mudo, pela simples raz4o que quadro e mnisica sio histérias, sio 0 lugar «onde» de um didlogo para entender o qual é 144 literalmente exacto dizer que é necessdério convocar o passado de onde emergem, o presente em que nascem e o futuro que transportam. Assim, a perspectiva pura- mente fenomenoldgica s6 € fecunda quando a conscién- cia em que a redugdo se da esta ja de «plein pied» com 0 objecto a reduzir. Nao € 86 0 juizo que é impossivel sem 0 halo que situando a obra oferece ao mesmo tempo os termos de comparagao possivel, sem os quais julgar é acto de vontade e nao de entendimento, mas é a cozm- preensdo mesma que néo pode efectuar-se. Colocado diante de Guernica, o homem que nunca ouviu falar da guerra de Espanha e desconhece 0 passado recente da pintura (cubismo-expressionismo) que vé ele, vendo-a? A Zona de um encontro puro, virginal, entre uma cons- ciéncia intemporal e a pura presenga da obra é 0 encon- tro de dois espelhos se reenviando sem fim a nula ima- gem que um ao outro se reenviam. A Histéria scm Fenomenologia é cega, a Fenomenologia sem Histéria é vazia. Da andlise fenomenoldgica sé podemos extrair maravilhosos coelhos brancos com a condig&o de ld os termos postos antes ou de os levarmos nos bolsos como os bons prestidigitadores. 145 4.11 Liszt, Concerto en la mineur, 13-1-1965 Liszt precursor. Porque sera costume referir-se a Liszt como musico menor? Na superabundancia, no luxo, Liszt abre as portas da modernidade. Richard Strauss, Debussy mes- mo nao esto longe deste Concerto. Liszt descobre que a miisica € essa arte sem esséncia que nasce e se cria com a aventura dos seus apelos. O universo «classico» abre fendas ao longo deste Concerto, desta aparente «desordem» tio bem ordenada ¢ que requer ja mais ordem que a antiga, como os Jeux de Debussy. 146 \ ! \ | i 4.12 Bach, Suite n.° 2 en si mineur, 11-VI-1965 Ce que je suis comme étre terrestre se trouve entier dans l’allegretto de 1a septidme. Mais ce que je voudrais &tre, ce que je n’ai pas le courage d’étre, se trouve dans la Suite n.° 2 en si mineur de Bach. Devant cette porte de lumiére je devrais laisser ma vieille peau, cette peau que la musique un instant m’enléve me laissant affreusement nu et racheté, mais que l’instant d’aprés je noie dans le torrent des chutes affreuses et sans cesse renaissantes dot je commence A croire que seule la main brutale de Dieu pourra me faire sortix. Je dis Dieu. Oui, mais Dieu tel que j’ai le droit Pévoques, cest encore un alibi. C’est & moi, aux ardentes ct admirables facilités du moi que je ne veux pas, que je ne sais pas tenoncer. Je voudrais aller ott je sais qu’on m’a donné rendez-vous par un chemin de roses. Et personne n’est jamais arrivé la sans mourir a soi. 147 4.13 Amalia, 11-10-1965 Al[malia] Rodrigues — sa voix exceptionnelle, son métier, son répertoire de « fados » ne se commentent plus. Elle sait aussi choisir des accompagnateurs de talent: les guitaristes Domingos Camarinha et Castro Mota (Columbia FS.X. 165) 1.° 134 12 Aveil 65 — M- Claire — 148 | | 4.14 Verdi, Le Bal Masqué, 6-XJ-196S Le Bal Masqué avec la Callas. Je pergois chaque jour mieux les raisons de ’engouement extraordinaire pour la Callas. Elle ne chante pas miewx que d’autres, ce nest que trop évident. La Tebaldi, Leontine Price ou sur autres registres Elisabeth Schwartzkopf la valent bien. Mais elle seule est ce qu’elle incarne et le chant semble non plus seulement passer 4 travers elle mais naitre d’elle. C’est une vraie tragédienne ct c’est la passion qu’on aime trouver chez elle allie a la perfection et méme l’érodant pour {ui rendre ce frémissement, ce frdlement de Pétre qui la rend si vénérablement subli- me. En somme, sous la chanteuse on apergoit toujours la Femme et sa lumitre si douce et mortelle. Le public ne se trompe jamais tout a fait dans son idolatric. Ala perfection trop pure dont il se sent comme exclu, il préfére — et ila raison — cette voix qui s’adresse a lui, qui remoud en lui la déchirure heureuse que le chant de la Callas raméne du trés fond de son ame vers ’ame de ceux qu’elle comble. 149 4.15 Schumann, Symphonie n.° 4 en ré mineur, opus 120, 18-XI-1965 Cette fagon unique qu’elle a de naitre comme blessée 4 mort, en distillant pour la premiére fois une souffrance, quelque chose méme avant la souffrance, ce jamais non- -dit de cette musique la distingue du dire et de Peffort vers le dire total que le plus petit mouvement de Beethoven traine avec lui. Au fond je le préfére A Brahms qui peut-étre aussi lui le premier ne dit déja rien, c’est pourquoi il plait tant aux Frangoises Sagan de l'avenir, A croire que je sais que je resterai romantique car aucune musique ne Pest plus que celle de Schumann, elle lest sans se donner aucun mal pour l’étre, romantisme de source, troublé et racontant son impérissable malheur, se le chantant, s’étreignant contre elle-méme comme un coeur contre un autre coeur, et Warrivant jamais a tarir sa plainte follement lyrique et désespérée. Si nous souffrons de ne pas savoir d’ot nous venons et of nos pas nous conduisent, peu de musiques peuvent nous le dire comme celle de Schumann. Une priére immortelle toute baignée de lumiére triste comme dans cette symphonic, mais c’est le contraste avec lancienne priére vraie de Bach qui lui donne cet air de priére adressée au plus perdu de nous-mémes. Peut-étre peu de musiques sont comme celle-ci, pur souvenir sans objet, pur chant une mémoire vide et toutefois souffrante d’une souffrance sans nom qui bientét aura comme nom déréliction, abandon, rappel d’anciennes joies sans retour mais qui reviennent pas a pas, d’ot on ne sait ot, nous rappeler que nous sommes définitivement en dehors du paradis. 150 4.16 Debussy, Schumann, Arrigo, 24-11-1966 La musique classique — et tout est classique jusqu’a Schénberg presque — allait vers quelque part ou par- courrait un espace clairement infini. Cette espace, Debussy le détruit pensant musicalement en terme d’espaces qui se croisent, se superposent, sc labyrintisent mais toujours formant une trame simplement plus complexe et comme ouverte des deux cétés. La nouvelle musique fulgure sur place, elle crée Pespace on le non-espace dont elle a besoin pour étre. Mais surtout elle crée littéralement ce que jusqu’a pré- sent semblait le point de départ, le passé. Tout est passé comme si la musique s’installait d’emblée dans son propre future et, & partir de IA, elle s’inventait le passé de son futur revenant sans fin vers ses impossibles com- mencements ou comme si elle s’installa dans une étermité immanente. A Vintérieur de cet espace glorieux déja fini et encore pas commencé, elle s’invente tous les temps mais dans ordre inverse: toujours de Pavenir vers le passé. C’est comme si nous avions renoncé a jamais au visage de Dieu et nous revenions fous de nostalgic en route vers Pabime de nos commencements. La perdition de Schumann avait lieu dans la forét du Dieu-Nature. Celle-ci a lieu dans le désert illuminé de notre propre forét. Le pathétisme lancinant de Schumann est devenu celui des choses et du cosmos tout entier définitivement, notre demeure ct pas notre céleste prison. Aller au-dela ou vers... n’a plus de sens. Nous sommes chez nous, un «chez nous» resplendissant, triste, andante comme ce Thumos de Girolamo Arrigo. 151 4.17 Cancées, 17-V-1966 Nice, 17 Maio 1966 Greve. Todo o dia a radio difundiu misica ligeira, cangées e musica da moda nos tltimos dez anos. Con- tinua torrente de tristeza liquida a flor da pele de ha- bitantes do nado sentido. Quase nunca uma aberta, a «rouge fleur eclatée» da vida, os «c’est beau, c'est beau la vie» banham nessa angistia facil mas tao pungente das cangées que nos cantam no presente. Mais longe a vaga negra, a fuga luminosamente azul para a noite do jazz, alma da nossa alma a procura da alma. FE muitas vezes vulgar, nunca indiferente. Nada de mais destrutivo que esta emanagao a superficie das nossas vidas. Ao contrdério da «grande» musica, a an- glistia permanece aqui no estado nascente, é a respira- cdo undnime de todos os Montand, Aznavour, Coltrane, Miles Davis. N&o nos remete para nada mais que para uma queixa fatigada, esburacada pela auséncia de sen- tido da nossa existéncia toda inteira rodeada das cha- mas da ternura e do tempo. Tudo o que a grande miisica recupera a um nivel mais alto, salvando-nos das trevas, aqui arrasta-nos para o mais baixo mistério da nossa tristeza, celebrado de S. Francisco a Berlim como a tinica missa digna das nossas vidas para sempre perdi- das. Devemos ter vergonha desta tristeza? 152 | i : iL i | i 4,18 Schénberg, Noite Transfigurada, 12-VI-1966 12 juin 1966, Opus 4, Radio de Baden-Baden Noite transfigurada = prelidio a todas as agonias futuras ¢ a soliddo astral das cidades assépticas, belas como estrelas, onde seremos este canto dilacerado de uma noite sem transfiguracao. Esta musica parece ba- ter contra um muro que fosse sombra c cristal ¢ detras do qual s6 face sem olhos nem ouvidos estivera 0 nao- -Deus por que durante milénios esperamos. Desse lugar vazio nasce esta supra-wagneriana navegagdo nocturna através de arquipélagos de solitude iluminada como se enfim nos dirigissemos para aquele porto onde tudo devia esperar-nos, o carregamento dos mortos ¢ a nau dos amores perdidos, antes de existir o dito ¢ inaudito, pavorosa ¢ ardente oragéo por um Nada fulgurante- mente branco e maternal, porto de l4grimas-criaturas solidificadas pela tristeza dum Deus ausente que tudo reclamava e n&o existe scndo nesta oragdo da tarde com a sua demolidora dogura que ajoelha em nds orgu- Thos mais antigos que nds ¢ onde repousamos enfim no tinico timulo digno da nossa eterna e imerecida morte. Durante este tempo Annie dorme, ausente desta miisica. Minha alma verdadeira: Noite transfigurada, Musica para Cordas, Percusséo e Celesta, etc. Nela ha tudo o que na grande miisica sempre me destruiu ¢ transfigurou ¢ ha mais este acento que € o do meu tempo e de nenhum outro. 153 A noite transfigurada é Tristao ¢ Isolda sem Paixdo salvo a da Morte desse Mito onde com o Amor abolido tudo reintegra, uma tristeza ocednica, o nada de onde um desejo constantemente initil nos levanta. 154 | | 4.19 A danga da morte, [a morte] como danga, 6-VIII-1966 Ha muito que a Morte é uma figurante de prego na danga europeia e figura principal na danga primitiva, Mas essa Morte é aquela que conduz o baile como no Campo Santo de Pisa — morte medieval toda exterior, agente de Deus, Caronte de saias sem saias, supremo terror e beijo misericordioso ¢ nivelador, porta aberta da redengio a nossa espeta «do outro lado». Ou entdo o duplo do «ra- paz» que estreita nela a sua ilusio como o devia ser na narcisica época moderna. Faltava o requinte contempora- neo de uma Morte consubstancial ao dangarino que nela danga o sentido da sua vida, 4 hora em que o destino do homem se confunde com o fim da danga. Os homens esto simbolicamente nus, a mulheres com um vago «tutu» de plastico. Os cendrios s&o jornais ou recortes de alumi- nio, os dois revestimentos do homem precario em sua leitura ou seu voo. A troupe € a de Merce Cunningham, numa noite de verao de 1966 em S. Paul de Vence, sobre a dogura dos relvados da Fundacdo Maeght, onde formas larvais de Miré reenviam para os primeiros dias da Terra e os solitdrios caminhantes para parte nenhuma de Gia- cometti para este espaco onde postumamente a Morte, em vez da solitude astral, se mira no seu proprio espelho. Talvez mimicamente a danga intitula-se Place-lugar, praga, espaco de uma danga reduzida a sua mais pudica e essen- cial definiggo de «movimento no espago € no tempo», criagao de siléncios ou de vazios, como se a plenitude fosse 0 que ja é dado ¢ nao basta. A anedota, o simbolo, 155 a psicologia sio excluidos na danga de Merce Cunning- ham. S6 os passos ¢ 0 seu desenho sem outra matéria que o seu «fazer» e ndo o exprimir, danga cujo ser é a pura exterioridade e efemeridade dessa arquitectatura — como Valéry o havia sonhado — s&o 0 «argumento» que de si mesmo se exclui. Dir-se-ia que os movimentos surgem da «noite» ou do «nada» ¢ ncles recaem, mas no intervalo determinaram uma estrutura fugitiva de intrinseca neces- sidade téo perfeita que tocam, abolindo-a, a ideia da improvisacdo. Esses saltos que de repente sc apagam com o giz no quadro preto so paralelos 4 musica «para bandonéon e contador électronique» dilacerante, estri- dente como o barulho que noite e dia martela o antigo siléncio das cidades e dos campos. Dangam, gesticulam sem finalidade alguma sobre um magma de plastico até ao momento em que tudo se imobiliza. Como aranhas, os dangarinos exprimem-se na propria teia de gestos que se solidifica, é o fim da danga, é o fim de um mundo também e a glosa de uma morte sem transcendéncia alguma exprimindo-se postumamente em arabescos sem simbologia. Estranha conclusao: a danga, filha do movi- mento, glosa-se como imobilidade. Oragdo panica exor- cizando terrores ou alegorias excessivas articula-se como «morte» sem lagrimas nem palaveras. Dir-se-ia Beckett sem nenhuma angtistia nem humor, uma tranquila acei- tacdo de um acabar que desce dos astros para o meio de um horizonte extatico do nosso mundo tao consubstancial com ele que jd o n&o vemos. Beckett em danga, nao ha divida, Beckett que néo por acaso os Festivais de van- guarda musical como Royan entronizam ao lado dos Boulez ou Stockhausen. 156 4.20 Bach, Passion selon St. Jean, 20-Il-1967 Dans la Passion selon Si. Jean, Bach a saisi une commune tristesse infiniment positive, tristesse tournée sans cesse, presque épiquement vers la Lumiére jamais donnée mais comme tenue dans une fervente réserve. La voix de Ja récitante a la fin s’éléve comme a travers un escalier tapissé de larmes toujours plus haut jusqu’a se perdre dans une plainte pure, peut-étre la plus pure de toute histoire de la Musique. Jamais Bach s’est trouvé plus proche de ce qu’on pouvait s’imaginer comme de la mélancolie angélique comme glose extatique et merveilleusement piétinante de toute la tristesse qui traverse homme a qui les cimes sont présentes et toujours lointaines. C’est Pétre méme de la Foi qui construit son étre de lumiére trouble, heureuse dans la quéte plus que dans [a possession. Au monologue subli- me de la voix comblée par le don de lumiére vient s’ajouter le cheeur des autres sans lesquelles cette Foi serait peut-Gtre illusion. Le chant angélique devint repas de Foi commune, consumation d’une méme Lumiére (Reprendre la Crucifixion de Tintoret dans les «mailles» de la Passion selon St. Jean). 157 4.21 Béla Bartok, Concerto pour Orchestre, 16-IV-1967 Mort de ma Mére (enterrement). 3° mouvement] 4" 16 avril 1967. Concerto pour orchestre de Béla Barték ~~ Herbert von Karajan. Avant d’entrer dans l’espace sans nom que nous croyons domestique, l’appelant atomique, déjA notre ame y naviguait conduite par Barték, argonaute planétaire des solitudes stellaires. Personne ne pleure plus dans cette musique mais elle est toute entiére comme un ruissellement de larmes sur Ie visage de notre Absence ou de l’Absence qui a travers cette angoisse lumineuse s’invente le profil de tous les dieux ensevelis. Quelle souffrance dans le Concerto, quelle mélancolie. Depuis Beethoven, ces descentes au puits noir de nos douleurs inexprimables ont trouvé peu accents remplis dune telle tendresse, cette tendresse presque épique, cette promenade au centre de la Mélancolie, n’a plus le visage d’un homme frappé par le destin, mais est elle- méme comme la plainte la plus cachée et la plus déchirante du Destin méme, de nous tous et de personne, du soleil et des étoiles, chant briilant et glacé d’un Néant devenu notre substance se bergant a elle-méme comme un enfant qui aurait perdu le chemin de la maison paternelle et garde seul le souvenir déchirant dune tendresse a jamais inaccessible, | f 4.22 Schumann, Concerto pour piano et orchestre en la mineur, 19-V-1967 Concerto pour piano et orchestre en la mineur de Schumann. Beethoven e Chopin no mesmo movimento ce ainda qualquer coisa de outro, o perfume sem regresso do romantismo abrindo a nossa volta um espago de vertigem, um labirinto de melancolia como que rasan- do os muros de uma noite exaltada e ferida da morte. Nunca se escreveu uma misica tio doente, cristalina- mente doente, como este turbilhao de puro sentimento oscilando no fio do mesmo instante entre o éxtase mais arrebatado e a mais negra tristeza, um e outro retoma- dos com mo potente, violentados, obrigados a seguir de rastos a estrada da liquida réverie onde sonho, qui- mera, alegria, docura e indestrutivel tristeza se revéem entre elas como espelhos de espelhos, mas dangantes filhas do tempo e arrancando ao tempo a mais mortal e grave das suas vitorias. A «contradi¢ao vencida», creio que jamais encontrarei um exemplo mais precioso que deste Concerto de Schumann. £ esta musica que, des- de o dia em que o vento me ensinou tudo quanto a vida tinha que me ensinar, que o mais inominavel de mim canta em surdina contra a noite intacta a minha alma, que nao se abre a outros stigmata que a arte. 159 4.23 Musica da ciémara, 29-IV-1967 «© senhor doutor esté a ouvir épera? Ai nao, é miisica da camara. Em Portugal s6 quando morte assim alguma personagem é que pdem essa miisica da camara. Tenho-the cd uma raiva.» Que Bach me perdoe. Estas reflexdes de Lidia, se nao séo umas definigdes de mtisica de cdmara, so uma descrigéo de Portugal. 160 4.24 No gozo de uma obra, 6-X-1967 Nice, 6 Out[{ubro] de [19]67 No gozo de uma obra — poesia, miisica, pintura — qual é a parte que cabe ao sentimento ou conhecimento da singularidade dela? Toca-nos ela pelo puro impacto da sua forga estética, digamos, da mesma maneixa que 0 oceano ou a mon- tanha, os quais de resto s6 tocam ja pela sua unicidade, ou tem nesse gozo estético um papel na percep¢ao viva dessa tal singularidade? A verdade é que a percepgdo desta singularidade é quase s6 vivida como um mito, pois raros ouvintes ou contempladores a ela tém acesso. Mais a supGe por uma comparacao entre autores isola- dos por uma mitologia de adoragdes do que a apreende na sua realidade. Por exemplo, toda a gente ouvindo um preltdio de Chopin pelo simples facto de o reconhecer experimenta como que um prazer suplementar que envolve o gozo puramente estético se nesse reconhecimento colhe a diferenga que scpara esse preliidio ou essa sonata de uma sonata de Beethoven. Na luz desta iltimza (ou vice- -versa), © ouvinte tem acesso a nuances, entrevé recan- tos que a simples audic&o virgem jamais lhe proporcio- naria, e isso perfaz a sua alegria estética. Todavia, se em vez de Beethoven o termo de comparagao for, por exemplo, a 2." Sonata para piano de C, M. von Webes, o gozo da singularidade chopiniana sera de outra natu- reza. Emocionamo-nos nés no interior de um horizonte 161 de valores constituidos por uma experiéncia limitada aos grandes nomes? De qualquer modo, sera necessario distinguir duas coisas: 0 puro prazer eo julgamento estético que © acompanha ou nao. Mas um pode inter- ferir no outro. 162 4.25 Haydn, 20-X-1967 Epiloga-se muito sobre o destino dos artistas a quem a miséria, real ou inventada, dificultou a criagdo. Fala- -se da libré de Haydn que lhe pesava menos de que a nds, da dependéncia odiosa de Beethoven em relagdo aos mecenas que o ajudaram como outros, Mozart ou Schubert, o nao foram. Nao sei se esta peudo-lamen- tagdo serve quem julga honrar, nem mesmo se tem qual- quer sentido, pois esses artistas e a sua dificuldade sao miisica triunfante para nés e é em funcao dela que a sua existéncia real ou falsamente atribulada nos comove. De maior significado nos parece a miséria e as dificulda- des daqueles que as sofreram como parte de seu destino artistico e por causa dele, como Baudelaire ou Poe, ou $4-Carneiro. A prépria poesia [hes foi droga e veneno. A sociedade nao lhes foi o obstaculo contingente ou redentor. Eles formam a sua prépria sociedade adversa, 0 carrasco e a vitima, a chaga e a [Amina. Quem paga mais alto tributo? 163 4,26 A poesia? 2-X-1967 A poesia? Antes de nos passearmos nos espacos si- derais, libertos do terror pascaliano, através dela e nela os haviamos pressentido. Nao falo de Jilio Verne, poe- sia e da grande, mas dessa que Bartok ou Werner Henze ce antes dele Varése fabricavam para uma viagem de alma dispersa e¢ exterior, estelar. A musica, primciro que toda a poesia, se devia a si mesma antecipar, a vertigem hiperbélica da época sideral, pois ela nao é outra coisa que didlogo da nossa alma com o espago, didlogo do espago com o espacgo em nossa alma, o que a torna gémea da matematica e dos calculos que nos dardo a posse desse espago nosso horizonte eterno nossa fome inextinguivel de nds mesmos. 164 : | | | 4.27 Schénberg, Bartok, 26-XI-1967 La Nuit transfigurée, La Musique vit de sa propre souffrance autant que de celle classique du musicien qui verse ici ses pleurs stellaires. C’est une aspiration vers le non encore entendu qu’on entend ici. Il n’est pas la figure de Phomme qui exhale sa souffrance éternelle et arrété par qui souffre d’une souffrance jamais éprou- vée, peut-étre improbable, celle d’un avenir vers lequel cette musique est aspirée, notre présent d’aujourd’hui peuplé de larmes et de joie qui ne coulent plus en nous mais en elles-mémes, qui enfin rejoignent la vérité cant de millénaires & peine métaphoriques d’étre «lacrimae rerum». La Nuit cherchant son visage de lumiére absente, implorant 4 genoux dans une salle vaste comme le désert un pauvre petit cceur pour bercer. Tout Béla Barték, toute son agonie cosmique, tout notre voyage parmi les combats de notre énigme devenu vivant, striptease de notre ex-Ame, recrue de délusions ct de blessures inépuisables, nous les buvons ici, quadrature de toute expression romantique, porte ouverte vers un nouveau romantisme ot les étoiles, o& son absurde et terrifiant éclat, les espaces nouveaux, jardin d’Armide d'un voyage plausible, se mettent a se bercer non dans les mains d’un Dieu perdu, mais dans le lac de sa propre perdition. Comme nous n’existons pas, comme nous avons fini de nous ressembler, comme les caresses sont déja posthumes, comme nous sommes fa mort de nous- -mémes, et la Mort, une mort illuminée et illuminant, est devenue le cceur jaillissant de larmes froides de cette 165

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