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Este texto é um trecho da entrevista concedida por Suely Rolnik a Aurora Fernandez Polanco e é io Pradel a Re-visiones [Madri: Centro de 4g duzir textos quenao Tais perguntas foram : A HORA DA MICROPOLITICA Como vocé vé o que est acontecendo com os governos de esquerda na América Latina? A destruigao dos governos de esquerda que vem acontecendo no continente é obra da nova estratégia politica do capita- lismo em sua versao financeirizada, neoliberal e globalitaria.’ Tal estra- tégia teve inicio com a destituigao de Fernando Lugo da presidéncia do Paraguai em 2012. Mas é inegavel que o atual estado de coisas resulta igualmente de um limite das prdprias esquerdas que se revela mais con- tundentemente em sua impoténcia face a este cendrio. No novo regime, a tomada de poder do Estado ja nao se vale da forga militar, como era o caso até os anos 1970 e 1980, especialmente na América Latina, mas sim da forga do desejo — ou seja, da forga vital que move a existéncia individual e coletiva. Trata-se de uma estratégia micropolitica do poder - que, apesar de nao ser nova, na presente etapa do regime capitalista : ganha um lugar central e se refina, assim como aprimora-se sua articu- lagao com a tradicional estratégia macropolitica (que atua apenas no Ambito do Estado ou a ele é dirigida). 0 imagindrio das esquerdas nao abarca a dimensdo micropolitica, e, sendo assim, nao tem como decifrar a estratégia de poder do capitalismo financiarizado globalitario, e muito menos combaté-lo. H Se o que estamos vivendo na América Latina é muito triste e assustador, hd que reconhecer que, ao mesmo tempo, nos 1. 0 capitalismo financeirizado conquistou um poder globalitério com a instalagao de governos neo- liberais a partir de meados dos anos 1970. 2. A destituigao de Fernando Lugo da presidéncia do Paraguai foi o laboratério da estratégia de to- mada do poder do Estado nos paises latino-americanos introduzida pelo capitalismo financeirizado Slobalitério. A estratégia judiciéria-parlamentar-mididtica que preparou o “golpe” no Paraguaiiiniciow em 2008. permite expandir e complexificar a nocao de resisténcia — e, mais am- plamente, de politica —, por nos fazer enxergar tanto 0 que esta ao alcan- ce da esquerda quanto o que nao esta, dados os limites inerentes a sua prdpria ldgica. O que esta ao seu alcance é resistir no Ambito do Estado (que se esteja dentro ou fora dele, nos movimentos sociais que a ele di- rigem suas reivindicagdes e suas lutas). Uma forma de resisténcia cuja meta é a conquista de uma democracia que nado seja somente politica, mas que seja também econémica, social e cultural. Nesse ambito, as esquerdas ocupam sem diivida a melhor posigao possivel — ainda que, em sua atuacdo na gestao do Estado, varie o grau de ampliagao da de- mocracia almejado por cada governo dito “de esquerda”, grau inversa- mente proporcional a sua maior ou menor cumplicidade com a agenda neoliberal.? Por isso, posso sentir gratidao aos ancestrais de esquerda, que sdo os que lutaram pelo melhor possivel no contexto da democracia burguesa — apesar de alguns terem sidos mais Iticidos, mais valentes, mais persistentes e, sobretudo, mais integros que outros. No Ambito ma- cropolitico, ser a favor de um Estado mais justo e com menos permeabi- lidade ao neoliberalismo é 0 minimo do minimo a que se pode aspirar; nao se ter sequer esta consciéncia moral jd é do dominio da perversdo e da psicopatia, patologias que se caracterizam pela inexisténcia do outro. 0 problema é que nao basta ter essa consciéncia de cidadania, pois isso nao s6 limita 0 alcance das transformagées necessdrias, mas pode in- clusive impedi-las. Por que nao basta? E a isso que vocé se refere quando afirma que é preciso reconhecer o que esta ao alcance da 3. Numa epresentagao intitulada “Linguagens Totalitérias’, realizada no Programa de Agbes Culturais, Auténomas [P.A.C.A.], Laymert Garcia dos Santos nos propde que, mais do que pensarem termos de esquerda ¢ direita, deveriamos pensar em termos de uma menor ou maior permeabilidade do Estado 20 neoliberalismo, a seus pressupostos e ao modo em que este atua em escala planetaria. Ainda ue do ponto de vista micropolitico nao baste ser menos permeavel & agenda neoliberal, a ideia de Laymert nos oferece um valioso instrumento de avaliagao macropolitica das forgas em jogo na sit 40 contemporanea, para a qual o bindmio esquerda versus direita jé ndo serve. A apresentacao foi realizada na Casa do Povo (Séo Paulo, 12/11/2015). 0 filme da apresentagao encontra-se disponivel em: , 6 esquerda, mas também 0 que nao esta? Sim, é a isso mesmo. Seo destino das assim chamadas “revolucdes do século XX” foi por nds vivido como uma traigao que nos deixou perplexos € decepcionados é, em par- te, porque ainda mantinhamos a crenca de que um dia existiria um grand finale que designavamos pelo nome de Revolugao, herdeira da ideia mo- noteista de paraiso. No entanto, 0 que esta acontecendo — nao séna América Latina, mas em escala internacional — nos langa em outro nivel de lucidez. il E inegavel o grande perigo que representa a atual derrocada mundial das esquerdas e a ascensdo ao poder de forcas macropolitica- mente reaciondrias e micropoliticamente reativas e conservadoras. Entretanto, é precisamente a gravidade dessa experiéncia que nos leva a perceber que nao basta atuar macropoliticamente. Porque, por mais que se faca no plano macropolitico, dentro e fora do Estado, por mais agu- das e brilhantes que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas que sejam as acdes, por menos autoritarias e corruptas que sejam e por mais éxito que tenham em estabelecer menos desigualdade econdmica e social e expandir o direito cidadania, elas resultam numa reacomo- dagao da cartografia vigente se nado se acompanham de um deslocamen- to no plano micropolitizo. Sem resisténcia nesse plano, embora tais conquistas sejam, sem divida, indispensdveis — e devam inclusive ser muito mais aprimoradas e ampliadas —, deixam-se de lado outras con- quistas essenciais para que haja uma mudanga efetiva. E que se a sub- jetividade e a cultura permanecem predominantemente regidas pela mesma légica do ponto de vista micropolitico, tudo volta necessariamen- te para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendiamos sair. E 0 que estamos assistindo no Brasil desde o periodo de preparagao do golpe. & Isso nao me surpreende de maneira alguma, tampouco me sinto traida, porque sei que no ambito dessa Idgica nao poderia ter sido dife- rente. Ao invés de sucumbir ao ressentimento, a raiva, a0 6dio ou, ao seu ; coroldrio, 4 melancolia — a impossibilidade de fazer 0 luto do objeto per- s dido, manté-lo idealizado e permanecer eternamente colado a ele como. condigao para existir —, me entusiasma constatar que, gragas ao desmo- ronamento deste mundo e de sua idealizagao, podemos reconhecer mais claramente que é preciso nos deslocarmos da micropolitica dominante. Refiro-me'a micropolitica reativa do inconsciente colonial-capitalistico que comanda 0 sujeito moderno ocidental que todavia encarnamos, in- clusive nas esquerdas — 0 que se deve ao fato de que a propria ideia de esquerda tem nesta cultura sua origem e seu lugar. E na diregao de tal deslocamento que se move um novo tipo de ativismo que vem se propa- gando mundo afora e que na sociedade brasileira tem acontecido prin- cipalmente nas periferias — em especial entre jovens, negros e LGBT e, dentre eles, ainda mais especialmente as meninas. Com uma lucidez e uma inteligéncia extraordinarias, inventam-se miiltiplas formas de acdo micropolitica em seu sentido ativo. Estas talvez jd nao caibam no imagi- nario das esquerdas — sobretudo em sua versao partidaria e sindical — e menos ainda no bindmio esquerda versus direita, no qual tal imaginario se situa e ganha seu sentido. Trata-se de uma nova maneira de decifrar a realidade, de situar os problemas e de atuar criticamente a partir deles; em suma, de uma nova concepcao da politica. Vocé criou, ha alguns anos, a nocao de “inconsciente colonial”. Aqui vocé fala em “incons- ciente colonial-capitalistico”. Qual a razao desta mudanga? Para dizer por que juntei estas trés palavras numa sé nogao, necessito colocar pri- maciro algumas ideias um tanto densas e que nos tomarao um certo tem- po. Elas dizem respeito a duas das mtitiplas experiéncias simultaneas que fazemos do mundo, as quais resultam de duas distintas capacidades de que a subjetividade dispde para apreendé-lo. i A primeira é a expe- riéncia imediata, baseada na percepcao e que nos permite apreender as formas do mundo em sua concretude e contornos atuais. Tal modo de apreensao é inseparavel da cartografia cultural vigente: quando vejo, es- 9 cuto ou toco algo, minha experiéncia j4 vem associada aos cédigos e a0 representagdes de que disponho e que, projetados sobre este algo, me permitem the atribuir um sentido — é a experiéncia do assim chamado “sujeito”. Mas se esta capacidade cognitiva 6 sem duvida indispensavel por sera que viabiliza a sociabilidade e a comunicagao, ela nao éatnica a conduzir nossa existéncia; varios outros modos de apreender o mundo operam simultaneamente, constituindo a experiéncia complexa a que chamamos de subjetividade. & Um outro tipo de experiéncia que a sub- jetividade faz de seu entorno é a que designo como “fora-do-sujeito” ou “extra-pessoal”: é a experiéncia das forcas que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condicao de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento — as quais Gilles Deleuze e Félix Guattari deram o nome, respectivamente, de “percepto” (diferente de percepcao, pois é irrepresentavel) e “afecto” (diferente de afeto ou sen- timento, que séo emogées psicolégicas, pois, aqui, trata-se de uma emogdo vital que tem a ver com afectar, no sentido de tocar, contaminar, perturbar). Estes nao tem nem imagem, nem palavra, nem gesto que hes correspondam e, no entanto, sao reais — eles dizem respeito a dimensao viva do mundo, cujos efeitos compdem um modo de apreensao extracog- nitivo, 0 qual denomino “saber-do-corpo”. E se também esta 6 uma ex- periéncia da subjetividade, ela nada tem a ver com a experiéncia de um individuo; tampouco existe nela a distingdo entre sujeito cognoscente e objeto exterior. E que nesta dimensao de nossa existéncia somos parte do corpo vivo do universo — ou melhor, pluriverso — e nao ha separagdo entre nds e toda espécie de elementos que o compdem numa variagéo continua. 0 mundo “vive” efetivamente em nosso corpo sob 0 modo de afectos e perceptos e integra sua/nossa composicao, impulsionando o processo incessante de recriagao de nds mesmos e de nosso entorno. Tais maneiras de ver e de sentir formam uma espécie de germe de mundo 1 que nos habita. Somos entao tomados por um estranhamento porque o 12 13 mundo de que este germe € portador é, por principio, irrepresentavel; ele 6 exatamente o que nado cabe na cartografia cultural vigente e a coloca em risco de dissolugao. E que por nao corresponder a experiéncia da vida em seus novos arranjos de forgas resultante de novas conexdes entre os corpos, tal cartografia passa a asfixia-la. ll Sendo essas duas experién- cias simultaneas e indissociaveis e, ao mesmo tempo, irredutiveis uma @ outra, sua relacdo é paradoxal. Gera-se entre elas uma tensdo que desestabiliza a subjetividade, provoca-lhe inquietacao e a langa num mal-estar. Esta 6 uma experiéncia primordial, pois € 0 sinal de alarme que nos indica que a vida nos levou a um estado desconhecido, 0 qual impGe ao desejo uma exigéncia de agir para recobrar um equilibrio vital, existencial e emocional. 0 desconforto da instabilidade e a exigéncia de trabalho que este nos demanda sao inevitaveis, pois que intrinsecos & vida em sua esséncia de fluxo em diferenciagao continua que implica na transformacao das formas em que este se materializa. O que muda de uma cultura a outra ou de uma €poca a outra é a politica de desejo pre- dominante, 0 modo de resposta do desejo a experiéncia da desestabili- zacao e ao mal-estar que esta provoca. Essa diferenga nao 6 nem um pouco neutra, pois cada tipo de resposta do desejo imprime um certo tipo de destino as formas da realidade — sdo distintas formagées do in- consciente no campo social. Em que diferem essas politicas do desejo? E quais sao os efeitos de cada uma delas na realidade? Sao muitas as politicas do desejo face ao desconforto provocado por esse incontorna- vel paradoxo que nos constitui. Vou abordar dois extremos desse leque ~ diverso e variavel: 0 puramente ativo e o puramente reativo. Eviden- temente, nenhuma micropolitica existe em estado puro; estamos sempre oscilando entre varias. O que faz a diferenga é nos dispormos a combater as tendéncias reativas em nds mesmos, ou seja, em nossas agées e re- laces. Este é 0 trabalho de uma vida: um trabalho incessante e que esta no amago da ética de uma existéncia. & No primeiro extremo, aquele de “ 18 uma micropolitica ativa, as duas capacidades se encontram acionadas. Eo mais importante é que a subjetividade consegue se sustentar no mal-estar provocado pela tensao entre ambas, 0 que Ihe da condigdes para se manter a escuta dos afectos e perceptos responsaveis por sua desestabilizagao. Com isso, o mundo larvario que nela habita tera gran- des chances de germinar: é na ago do desejo que se plasmaré a germi- nagao. A acao desejante, neste caso, consistira num processo de criagao que, orientado pelo poder de avaliagao dos afectos (0 saber-do-corpo), ird materializd-los em imagem, palavra, gesto, obra de arte, modo de existéncia ou outra forma de expressdo qualquer. E se essa operagao conseguir se realizar plenamente, ela dard uma consisténcia existencial ao mundo de que tal germe é portador, ao dota-lo de um corpo sensivel. Por nao ser um representante da experiéncia que lhe deu origem, mas sim um transmissor de sua pulsagao, tal corpo tera um poder de conta- minacao de seu entorno. E que sua presenga viva convoca ressonancias nas subjetividades que o encontram, abrindo a possibilidade de que elas também se sustentem na desestabilizagao, de maneira tal que um pro- cesso de criagao possa nelas se desencadear levado por seu proprio desejo. O mundo virtual que as habita se atualizard, por sua vez, em outras tantas imagens, palavras, gestos, obra de arte, modos de existén- cia ou outras formas de expressao quaisquer. Sendo assim, 0 efeito des- sa politica de acao do desejo é um devir da subjetividade e de seu campo relacional imediato e, a partir dele, de outros campos relacionais que habitam as subjetividades que o compéem — e assim por diante, capila- rizando-se rizomaticamente pelo corpo do mundo e transformando sua paisagem. @ O que conduz o desejo nesse processo é uma biissola ética: sua agulha aponta em diregao aquilo que permitira criar um corpo no qual se concretize o que a vida esta demandando para retomar sua pul- sacao. Em outras palavras, o lugar onde se situa a agulha dessa buissola € 0 da poténcia do vivo que as ages do desejo buscaro expandir para 7 ampliar nossa capacidade de existir. O que a micropolitica ativa visa é, pois, 4 conservacao da poténcia do vivo, que se realiza num incessante processo de construcao da realidade. E se essas duas capacidades nao se encontram ativas, 0 que acontece? Vou me ater ao exemplo da mi- cropolitica reativa decorrente do inconsciente colonial-capitalistico. Esta se define precisamente pela desativacao da poténcia que o corpo tem para decifrar o mundo a partir de sua condigao de vivente — ou seja, 0 saber-do-corpo, neste caso, encontra-se inacessivel. Por estar bloquea- da a experiéncia fora-do-sujeito — composta pelos efeitos do mundo no corpo —, esse tipo de subjetividade vive 0 mundo como se estivesse fora’ dela e passa a existir e a se orientar somente a partir de sua experiéncia como sujeito. & Constitui-se assim uma subjetividade “antropo-falo-e- go-logocéntrica”, como costumo designé-la, cujo horizonte comega e termina no préprio sujeito: um si-mesmo concebido e vivido como indi- viduo — um contorno cristalizado formando uma suposta unidade separada das demais supostas unidades que constituem um mundo, este igualmente concebido como uma suposta totalidade. E como o su- jeito se estrutura na cartografia cultural que Ihe da sua forma e nela se espelha como se fosse 0 Unico mundo possivel, a subjetividade reduzida ao sujeito e que com ele se confunde interpreta 0 desmoronamento de “ym” mundo como um sinal do fim “do” mundo e dela mesma. Em outras palavras, esse tipo de subjetividade vive a tensao entre aquelas duas experiéncias como uma ameaga de autodesagregagao. Tomada pelo medo, o mal-estar que essa experiéncia paradoxal Ihe provoca se trans- forma, entdo, em angtistia do sujeito. Dessa perspectiva, so restam a subjetividade duas escolhas para interpretar a causa de seu mal-estar: seja uma suposta deficiéncia de si mesma, 0 que transforma o mal-estar em sentimentos de culpa, inferioridade e vergonha, seja a maldade que Ihe estaria sendo supostamente dirigida por alguém de seu entorno, 0 que transforma seu mal-estar em 6dio e ressentimento. BO desejo é 18 19 entado convocado a recobrar um equilibrio apressadamente e 0 faz orien- tado por uma biissola moral, cuja agulha se situa numa cartografia pree- xistente, na qual a vida se encontra materializada naquele momento. Ela conduz 0 desejo na direcdo do rastreamento de formas de existir que compéem tal cartografia — com suas imagens, narrativas e objetos — para que a subjetividade possa consumi-las de modo a se refazer rapi- damente um contorno reconhecivel ese livrar de sua angustia. A escolha do que sera rastreado pelo desejo depende do tipo de interpretagao que a subjetividade faz de seu desconforto. Em que se diferencia o que a subjetividade ira consumir movida por cada uma dessas interpreta- des? No primeiro caso, para aplacar seu mal-estar transformado em sentimento de culpa e autodepreciacao, 0 desejo a conectara a produtos de tarja preta da indUistria farmacolégica dos quais fara um uso que neu- tralize ndo apenas sua angtistia, mas também seus afectos, o que torna suas acGes reativas. Podera conecta-la igualmente a igrejas ou terapias . - « de treinamento de autoestima que Ihe oferegam procedimentos obses- sivos para transformar sua angtistia em crenga no final feliz. O mesmo uso pode ser feito de complexos discursos intelectuais, e tanto faz quais: é que, nessa politica de desejo, diferentes visoes de mundo passam a se equivaler como discurso prét--porter que serve de guia para uma subjetividade, a qual, dissociada de sua condigao de vivente, nao tem como encontrar palavras para o que lhe acontece e consome palavras alheias que idealiza como portadoras da verdade que a salvard. A esco- Iha varia apenas em funcao do repertério de cada um. E para se livrar da vergonha e do medo de exclusao que sua autodepreciacao Ihe provoca, 0 desejo a conectard a produtos que o mercado oferece para todos os gostos e todas as camadas sociais, sedutoramente veiculados pela pu- blicidade. O que eles tém em comum € 0 fato de serem sempre apresen- tados em cendrios com personagens idealizados, os quais, deslumbrada, a subjetividade tentara mimetizar por meio do consumo das mercadorias 20 2 a eles,associadas. Como os remédios de tarja preta, as igrejas, os esti- muladores de autoestima e os complexos discursos intelectuais que se equivalem como dispositivos de autoajuda, tais mercadorias so usadas como perfumes para esconder o odor infecto de uma vida estagnada. @ No segundo caso, o desejo conectara a subjetividade a narrativas que tenham como personagem principal um bode expiatorio que Ihe sirva de tela para a projecao de seu mal-estar transformado em 6dio e ressenti- mento. E 0 personagem demonizado pode ser uma pessoa, um povo, uma cor de pele, uma classe social, um tipo de sexualidade, uma ideolo- gia, um partido, um presidente e outros tantos. Isso pode levar a acdes extremamente agressivas, cujo poder de contagio tende a criar as con- digdes para o surgimento de uma massa fascista. 0 que visa a micropo- litica reativa em suas duas verses é, pois, a conservacao do status quo. Seu efeito é a diminuicdo da poténcia do vivo — uma espécie de anemia vital. Se a redugao da subjetividade ao sujeito e sua micropolitica reativa 6 propria da cultura moderna capitalista ocidental, o que ela teria de especifico no capitalismo financeirizado? Boa pergunta. Na nova versao da cultura moderna ocidental que acompanha o capitalismo globalitdrio financeirizado, a micropolitica reativa é incentivada e fomen- tada. Com os avancos das tecnologias de informacéo e comunicagao, que no atual regime sao cada vez mais velozes, 0 mal-estar do paradoxo impulsionador dos processos de subjetivacdo se faz mais frequente e se insensifica. A sybjetividade é incessantemente bombardeada por ima- gens de mundo e narrativas que tornam seus contornos caducos e lhe impdem a exigéncia de se recompor. Diante disso, por estar reduzida ao sujeito, aumenta sua vulnerabilidade ao se submeter a respostas prét- -porter, as quais se oferecem em abundancia nesses mesmos meios. Isso cria 0 solo para dinamicas essenciais do novo regime. Do ponto de vista econémico, as mercadorias encontram na fragilidade e na impotén- cia a base para seu consumo garantido, podendo assim se multiplicar ao 2 23 infinito. Do ponto de vista politica, a midia — principal dispositivo de seu poder — constrdi uma narrativa que amplifica e agrava a realidade da crise e, paralelamente, cria 0 personagem do bode-expiatério, protago- nizado pelos politicos que se quer expulsar de cena. Veiculada dia apés dia, tal narrativa intensifica o fantasma do perigo de desagregacao imi- nente fabulado por uma subjetividade reduzida ao sujeito — sucumbida a0 medo, ela esta pronta para se agarrar ao bode-expiatério como sua Unica saida. A construgao de tais narrativas midiaticas é uma das princi- pais operagdes da estratégia micropolitica de tomada do poder pelo capitalismo globalitario. E exatamente o que aconteceu no Brasil no transcorrer da preparagao do golpe. “A culpa é da Dilma”, aquela espécie de mantra que tomou conta do pais, surgiu do consumo da ficcao que a midia criou, tendo Dilma e 0 PT no papel de bodes-expiatorios. Bl A po- téncia do desejo é assim canalizada para sustentar o status quo ~—seja levando ao consumo, seja aclamando golpes de estado que abrem as Portas para a instalagao de governos neoliberais, os quais viabilizam o livre fluxo de circulacao internacional de capitais. Em suma, a poténcia do desejo é desviada de seu destino ativo criador para se transformar em poténcia reativa de submissao: esse é 0 real perigo. O mais perverso do novo regime é que ele se nutre do perigo imagindrio de uma subjetivi- dade reduzida ao sujeito, além de manté-la cativa nessa reducao, des- conectada do saber-do-corpo. A situagdo que estamos vivendo é uma incubadora desse perigo real; tal incubadora 6 seu principal dispositivo micropolitico. Entao é por isso que vocé incorporou o termo “capitalis- tico” na sua nogao de “inconsciente colonial”? Exatamente. Se passei a designar por “colonial-capitalistico” o regime de inconsciente dominan- te na cultura moderna ocidental, 6 porque eu nao queria que se enten- desse 0 termo colonial literalmente — ou seja, restrito A Operacao por meio da qual a Europa Ocidental colonizou parte do planeta a partir do século XVI. Era importante marcar que o capitalismo nasce junto com ta 28 essa operagao e é dela inseparavel. Nesse sentido, a colonizagao nunca parou, apenas foram mudando suas formas, dinamicas e procedimentos, junto com as mudang¢as do regime capitalista. Em sua versao financeiri- Zada, 0 Capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto de englobar 0 conjunto do planeta. Assim, chamar de “colonial-capita- listico” 0 regime inconsciente que nos orienta na contemporaneidade é dar nome aos bois. Ha uma ressonancia entre essa ideia e a proposta de Guattari de substituir 0 termo globalizagao por “Capitalismo Mundial Integrado” (CMI) j4 em 1980,‘ quando 0 neoliberalismo apenas se insta- lava. E que, para ele, o termo “globalizagao” encobre dois sentidos es- senciais do fendmeno que ele nomeia: de um lado, o fato de que este fendmeno é fundamentalmente econémico e, mais especificamente, capitalista e, de outro lado, sua dimensao colonizadora, j4 que hoje nao ha mais atividade humana alguma no planeta que lhe escape. De fato, como um tsunami, em sua versao neoliberal, a politica de desejo colonial-capitalistica se espalha por toda parte, inundando tudo com uma velocidade e uma forga descontroladas. & Do ponto de vista micro- politico, é portanto com base na desconexao com 0 saber-do-corpo que se dé essa instalagao mundial do capitalismo financeirizado. No lugar das narrativas singulares, variadas e variveis que seriam criadas a partir desse saber, impde-se a todos um discurso tnico, que Laymert Garcia dos Santos chama muito apropriadamente de “ocidéntico”. E se ele € Unico, apesar de se desdobrar em distintas modalidades, é porque o que 0 define é 0 fato de se sobrepor a experiénciada vida humana em sua heterogeneidade cambiante, homogeinizando-a por meio de sua sobre- codificagao. Como um fantasma, o ocidéntico baixa na subjetividade e passa a conduzir o desejo. Guiada por ele, é por seu prdprio desejo que 4, Anogo de “Capitalismo Mundial Integrado: foi sugerida por Félix Guattari numa conferéncia em um semindrio do grupo Cinel (Paris, 1980). Foi publicada pela primeira vez em 1981 sob 0 titulo “O Capi- talismo Mundial Integrado e a Revolugdo Molecular”, na coletnea de textos do autor, Pulsagdes poll- ticas do desejo: Revolucdo Molecular, org. trad. bras. de Suely Rolnik. Sao Paulo: Brasiliense, 1981. 26 cg a subjetividade passa a agir nessa diregdo. E nesse sentido que nao ha resisténcia se nao exorcizamos o fantasma do ocidéntico, em suas miil- tiplas versdes — inclusive as das esquerdas —, o que depende de recobrar a escuta do saber-do-corpo e de agir no sentido daquilo que ele nos in- dica. Entao é ao inconsciente colonial-capitalistico que vocé se refe- ao afirmar que a resisténcia da esquerda tem um limite contra o qual ela se choca? Sim, exatamente, e é isto o que impede as esquerdas de abarcarem a dimensao micropolitica da resisténcia, como sugeri no inicio. Agora podemos descrever como se da essa impossibilidade e a manutengao do status quo que dela resulta. Como vimos, a reducao da subjetividade ao sujeito que define o inconsciente colonial-capitalistico implica a denegacao dos efeitos do outro em nosso corpo ea crenca de que a subjetividade é uma unidade fechada em si mesma e separada do mundo, do que decorre a nogao de individuo. Pois bem, em sua versdo de esquerda, a ideia de que a experiéncia subjetiva é coisa do individuo ri leva a considerar que agir no plano micropolitico é individualista e, sendo assim, burgués e reacionario. Esse argumento justifica ideologicamente a desconexao com 0 saber-do-corpo, a experiéncia subjetiva extrapessoal que orienta nossas acGes visando a preservar a vida em sua pulsacao. 0 mais paradoxal é que tal desconexao é precisamenté 0 que caracteriza a subjetividade burguesa com seu inconsciente colonial-capitalistico. Em suma, 0 modo de subjetivagao que predomina nas esquerdas tende nao so a reproduzir a micropolitica reativa propria do regime vigente, mas a enaltecé-la e a reforga-la em nome de seus ideais. Esse é 0 limite con- tra o qual esbarra a pratica da resisténcia quando reduzida ao plano macropolitico. il Abandonar esse modo de subjetivagéo passa por um “devir revolucionario”, como o designava Deleuze. Tal devir é impulsionado pelas irrupgdes de afectos que nos chegam pelo saber-do-corpo e que nos forgam a reinventar a realidade: sao momentos em que a imaginacao coletiva é acionada para criar novas maneiras de existir, outras aliangas, Novos sentidos. Estes se dao em varias diregdes e de modos distintos, ja que atualizam experiéncias singulares dos efeitos das forgas que agitam & realidade. Efeitos que estao presentes em todos os corpos, em deter- minado momento e contexto. @ Ora, isso nao tem nada a ver com “a” Revolugao, com R maitisculo, total e absoluta, pois, por principio, tal bloco monolitico nado abrange os devires revolucionrios; pelo contrario, Os interrompe ao sobrecodifica-los, constituindo assim uma das atuali- zagdes do ocidéntico. Com distintas nuances, a ideia de “Revolugao” orienta as agdes do desejo na politica de subjetivacao antropo-falo-ego- -logo-céntrica em suas versdes de esquerda = sejam elas institucionais ou ndo, que estejam ou nao atreladas a um totalitarismo do Estado. Essa ideia € mais um dos sintomas da micropolitica reativa que rege a imagi- nagao das esquerdas. Por nao ter como atuar no sentido de reinventar a realidade nos pontos em que isso seja necessrio desde e diante do que a vida pede, o desejo termina por atuar contra a vida; torna-se reativo. Nesse aspecto, por mais “de esquerda” que sejam tais governos do pon- to de vista macropolitico, eles sao tao micropoliticamente reativos quan- to os governos macropoliticamente “de direita”. E por essa razao que eu dizia que nao basta tomar para si a responsabilidade como cidadao (0 minimo indispensavel, insisto); é preciso, mais amplamente, tomar para sia responsabilidade enquanto ser vivo, de modo a agir no sentido de uma micropolitica ativa. Essa é a condi¢ao para nos tornarmos agen- tes da criagdo de modos de existéncia coletivos, o que comega em nossa prépria existéncia, mas por principio nao termina nela. Conquistar essa possibilidade depende da quebra do feitigo do poder tsunamico da mi- cropolitica reativa do CMI e de seu discurso ocidéntico, que se alastra por todas as esferas da vida humana e destrdi seus modos de existir. A quebra desse feitigo passa por reconhecermos os efeitos t6xicos da es- tratégia do CMI em nossos proprios corpos, e por ndo nos submetermos a les, resistindo nesse mesmo plano. Isso depende de uma desiden- 30 tificagéo com os modos de existéncia que o CMI constrdi no lugar daque- les que devastou, a fim de que possamos deserta-los — nao para voltar as formas do passado, mas para inventar outras em funcdo dos germes de futuro incubados no presente. Tal desertificagado desestabiliza o poder, 0 que torna esse combate muito distinto daquele que tem por alvo a to- mada de poder. Em outras palavras, trata-se aqui de um combate que nao se faz por meio da oposigao ao poder ou por sua negacao, mas sim por meio da afirmacao de uma micropolitica ativa, a ser investida em cada uma de nossas agées cotidianas — inclusive naquelas que implicam nossa relagdo com o Estado, quer estejamos dentro ou fora dele. Nao sera exatamente esse 0 combate que esta sendo levado pelo novo tipo de ativismo que vem proliferando pelo mundo e, mais recentemente, na sociedade brasileira? Suely Rolnik é psicanalista, professora titular da PUC-SP. e professora convidada do Programa de mestrado do Museu de Arte Contemporanea de Barcelona. Dedica-se a investigacdo de politicas.do desejo de uma perspectiva ‘transdisciplinar e indissocidvel de uma pragmatica clinico-: Steuer lIrolucovs Colton elec R TEN OMe eonecre lune Meal re( vinte’ dos 64 DVDs que compoem esse arquivo e um livreto foram editados em 2011 no Brasil [Cinemateca Brasileira-MinC/Edicdes Sesc] e na Franca Rem lc leva Du réel]. Foi curadora da exposicao Lygia Clark, do Ce ele ToxeCoeh torn (Mtecacxe(as (ee acl e NeSHAAYeyag un Cec) do Estado de Sao Paulo, 2006). £ autora dos livros Cartografia Sentimental [Estagao Liberdade, 1989/Ed. Sulinas, 2006), Archivmanie [Documenta Xill, 2011), Anthropophagie Zombie {Black Jack, 2012] coautora, com Félix CCIM nccU Fo le Coae) ole ete tLe co teen lcxt Tepe een on

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