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Em entrevista na revista Humboldt do Goethe Institut, a psicanalista e investigadora da relação entre subjetividade, política e cultura analisa os contextos que levam ao atual desmoronamento dos governos de esquerda na A. Latina, e fala sobre a noção de “inconsciente colonial-capitalístico” e a importância da resistência micropolítica, que vem proliferando na sociedade brasileira.
Em entrevista na revista Humboldt do Goethe Institut, a psicanalista e investigadora da relação entre subjetividade, política e cultura analisa os contextos que levam ao atual desmoronamento dos governos de esquerda na A. Latina, e fala sobre a noção de “inconsciente colonial-capitalístico” e a importância da resistência micropolítica, que vem proliferando na sociedade brasileira.
Em entrevista na revista Humboldt do Goethe Institut, a psicanalista e investigadora da relação entre subjetividade, política e cultura analisa os contextos que levam ao atual desmoronamento dos governos de esquerda na A. Latina, e fala sobre a noção de “inconsciente colonial-capitalístico” e a importância da resistência micropolítica, que vem proliferando na sociedade brasileira.
Este texto é um trecho da entrevista concedida
por Suely Rolnik a Aurora Fernandez Polanco e é
io Pradel a Re-visiones [Madri: Centro de 4g
duzir textos quenao
Tais perguntas foram
:A HORA DA MICROPOLITICA
Como vocé vé o que est acontecendo com os governos de esquerda
na América Latina? A destruigao dos governos de esquerda que vem
acontecendo no continente é obra da nova estratégia politica do capita-
lismo em sua versao financeirizada, neoliberal e globalitaria.’ Tal estra-
tégia teve inicio com a destituigao de Fernando Lugo da presidéncia do
Paraguai em 2012. Mas é inegavel que o atual estado de coisas resulta
igualmente de um limite das prdprias esquerdas que se revela mais con-
tundentemente em sua impoténcia face a este cendrio. No novo regime,
a tomada de poder do Estado ja nao se vale da forga militar, como era o
caso até os anos 1970 e 1980, especialmente na América Latina, mas
sim da forga do desejo — ou seja, da forga vital que move a existéncia
individual e coletiva. Trata-se de uma estratégia micropolitica do poder
- que, apesar de nao ser nova, na presente etapa do regime capitalista
: ganha um lugar central e se refina, assim como aprimora-se sua articu-
lagao com a tradicional estratégia macropolitica (que atua apenas no
Ambito do Estado ou a ele é dirigida). 0 imagindrio das esquerdas nao
abarca a dimensdo micropolitica, e, sendo assim, nao tem como decifrar
a estratégia de poder do capitalismo financiarizado globalitario, e muito
menos combaté-lo. H Se o que estamos vivendo na América Latina é
muito triste e assustador, hd que reconhecer que, ao mesmo tempo, nos
1. 0 capitalismo financeirizado conquistou um poder globalitério com a instalagao de governos neo-
liberais a partir de meados dos anos 1970.
2. A destituigao de Fernando Lugo da presidéncia do Paraguai foi o laboratério da estratégia de to-
mada do poder do Estado nos paises latino-americanos introduzida pelo capitalismo financeirizado
Slobalitério. A estratégia judiciéria-parlamentar-mididtica que preparou o “golpe” no Paraguaiiiniciow
em 2008.permite expandir e complexificar a nocao de resisténcia — e, mais am-
plamente, de politica —, por nos fazer enxergar tanto 0 que esta ao alcan-
ce da esquerda quanto o que nao esta, dados os limites inerentes a sua
prdpria ldgica. O que esta ao seu alcance é resistir no Ambito do Estado
(que se esteja dentro ou fora dele, nos movimentos sociais que a ele di-
rigem suas reivindicagdes e suas lutas). Uma forma de resisténcia cuja
meta é a conquista de uma democracia que nado seja somente politica,
mas que seja também econémica, social e cultural. Nesse ambito, as
esquerdas ocupam sem diivida a melhor posigao possivel — ainda que,
em sua atuacdo na gestao do Estado, varie o grau de ampliagao da de-
mocracia almejado por cada governo dito “de esquerda”, grau inversa-
mente proporcional a sua maior ou menor cumplicidade com a agenda
neoliberal.? Por isso, posso sentir gratidao aos ancestrais de esquerda,
que sdo os que lutaram pelo melhor possivel no contexto da democracia
burguesa — apesar de alguns terem sidos mais Iticidos, mais valentes,
mais persistentes e, sobretudo, mais integros que outros. No Ambito ma-
cropolitico, ser a favor de um Estado mais justo e com menos permeabi-
lidade ao neoliberalismo é 0 minimo do minimo a que se pode aspirar;
nao se ter sequer esta consciéncia moral jd é do dominio da perversdo e
da psicopatia, patologias que se caracterizam pela inexisténcia do outro.
0 problema é que nao basta ter essa consciéncia de cidadania, pois isso
nao s6 limita 0 alcance das transformagées necessdrias, mas pode in-
clusive impedi-las. Por que nao basta? E a isso que vocé se refere
quando afirma que é preciso reconhecer o que esta ao alcance da
3. Numa epresentagao intitulada “Linguagens Totalitérias’, realizada no Programa de Agbes Culturais,
Auténomas [P.A.C.A.], Laymert Garcia dos Santos nos propde que, mais do que pensarem termos de
esquerda ¢ direita, deveriamos pensar em termos de uma menor ou maior permeabilidade do Estado
20 neoliberalismo, a seus pressupostos e ao modo em que este atua em escala planetaria. Ainda
ue do ponto de vista micropolitico nao baste ser menos permeavel & agenda neoliberal, a ideia de
Laymert nos oferece um valioso instrumento de avaliagao macropolitica das forgas em jogo na sit
40 contemporanea, para a qual o bindmio esquerda versus direita jé ndo serve. A apresentacao foi
realizada na Casa do Povo (Séo Paulo, 12/11/2015). 0 filme da apresentagao encontra-se disponivel
em: ,6 esquerda, mas também 0 que nao esta? Sim, é a isso mesmo. Seo
destino das assim chamadas “revolucdes do século XX” foi por nds vivido
como uma traigao que nos deixou perplexos € decepcionados é, em par-
te, porque ainda mantinhamos a crenca de que um dia existiria um grand
finale que designavamos pelo nome de Revolugao, herdeira da ideia mo-
noteista de paraiso. No entanto, 0 que esta acontecendo — nao séna
América Latina, mas em escala internacional — nos langa em outro nivel
de lucidez. il E inegavel o grande perigo que representa a atual derrocada
mundial das esquerdas e a ascensdo ao poder de forcas macropolitica-
mente reaciondrias e micropoliticamente reativas e conservadoras.
Entretanto, é precisamente a gravidade dessa experiéncia que nos leva
a perceber que nao basta atuar macropoliticamente. Porque, por mais
que se faca no plano macropolitico, dentro e fora do Estado, por mais agu-
das e brilhantes que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas
que sejam as acdes, por menos autoritarias e corruptas que sejam e por
mais éxito que tenham em estabelecer menos desigualdade econdmica
e social e expandir o direito cidadania, elas resultam numa reacomo-
dagao da cartografia vigente se nado se acompanham de um deslocamen-
to no plano micropolitizo. Sem resisténcia nesse plano, embora tais
conquistas sejam, sem divida, indispensdveis — e devam inclusive ser
muito mais aprimoradas e ampliadas —, deixam-se de lado outras con-
quistas essenciais para que haja uma mudanga efetiva. E que se a sub-
jetividade e a cultura permanecem predominantemente regidas pela
mesma légica do ponto de vista micropolitico, tudo volta necessariamen-
te para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendiamos sair. E
0 que estamos assistindo no Brasil desde o periodo de preparagao do
golpe. & Isso nao me surpreende de maneira alguma, tampouco me sinto
traida, porque sei que no ambito dessa Idgica nao poderia ter sido dife-
rente. Ao invés de sucumbir ao ressentimento, a raiva, a0 6dio ou, ao seu
; coroldrio, 4 melancolia — a impossibilidade de fazer 0 luto do objeto per-s dido, manté-lo idealizado e permanecer eternamente colado a ele como.
condigao para existir —, me entusiasma constatar que, gragas ao desmo-
ronamento deste mundo e de sua idealizagao, podemos reconhecer mais
claramente que é preciso nos deslocarmos da micropolitica dominante.
Refiro-me'a micropolitica reativa do inconsciente colonial-capitalistico
que comanda 0 sujeito moderno ocidental que todavia encarnamos, in-
clusive nas esquerdas — 0 que se deve ao fato de que a propria ideia de
esquerda tem nesta cultura sua origem e seu lugar. E na diregao de tal
deslocamento que se move um novo tipo de ativismo que vem se propa-
gando mundo afora e que na sociedade brasileira tem acontecido prin-
cipalmente nas periferias — em especial entre jovens, negros e LGBT e,
dentre eles, ainda mais especialmente as meninas. Com uma lucidez e
uma inteligéncia extraordinarias, inventam-se miiltiplas formas de acdo
micropolitica em seu sentido ativo. Estas talvez jd nao caibam no imagi-
nario das esquerdas — sobretudo em sua versao partidaria e sindical — e
menos ainda no bindmio esquerda versus direita, no qual tal imaginario
se situa e ganha seu sentido. Trata-se de uma nova maneira de decifrar
a realidade, de situar os problemas e de atuar criticamente a partir deles;
em suma, de uma nova concepcao da politica. Vocé criou, ha alguns
anos, a nocao de “inconsciente colonial”. Aqui vocé fala em “incons-
ciente colonial-capitalistico”. Qual a razao desta mudanga? Para dizer
por que juntei estas trés palavras numa sé nogao, necessito colocar pri-
maciro algumas ideias um tanto densas e que nos tomarao um certo tem-
po. Elas dizem respeito a duas das mtitiplas experiéncias simultaneas
que fazemos do mundo, as quais resultam de duas distintas capacidades
de que a subjetividade dispde para apreendé-lo. i A primeira é a expe-
riéncia imediata, baseada na percepcao e que nos permite apreender as
formas do mundo em sua concretude e contornos atuais. Tal modo de
apreensao é inseparavel da cartografia cultural vigente: quando vejo, es-
9 cuto ou toco algo, minha experiéncia j4 vem associada aos cédigos ea0 representagdes de que disponho e que, projetados sobre este algo, me
permitem the atribuir um sentido — é a experiéncia do assim chamado
“sujeito”. Mas se esta capacidade cognitiva 6 sem duvida indispensavel
por sera que viabiliza a sociabilidade e a comunicagao, ela nao éatnica
a conduzir nossa existéncia; varios outros modos de apreender o mundo
operam simultaneamente, constituindo a experiéncia complexa a que
chamamos de subjetividade. & Um outro tipo de experiéncia que a sub-
jetividade faz de seu entorno é a que designo como “fora-do-sujeito” ou
“extra-pessoal”: é a experiéncia das forcas que agitam o mundo enquanto
corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condicao de
vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo
que acontece em cada momento — as quais Gilles Deleuze e Félix
Guattari deram o nome, respectivamente, de “percepto” (diferente de
percepcao, pois é irrepresentavel) e “afecto” (diferente de afeto ou sen-
timento, que séo emogées psicolégicas, pois, aqui, trata-se de uma
emogdo vital que tem a ver com afectar, no sentido de tocar, contaminar,
perturbar). Estes nao tem nem imagem, nem palavra, nem gesto que hes
correspondam e, no entanto, sao reais — eles dizem respeito a dimensao
viva do mundo, cujos efeitos compdem um modo de apreensao extracog-
nitivo, 0 qual denomino “saber-do-corpo”. E se também esta 6 uma ex-
periéncia da subjetividade, ela nada tem a ver com a experiéncia de um
individuo; tampouco existe nela a distingdo entre sujeito cognoscente e
objeto exterior. E que nesta dimensao de nossa existéncia somos parte
do corpo vivo do universo — ou melhor, pluriverso — e nao ha separagdo
entre nds e toda espécie de elementos que o compdem numa variagéo
continua. 0 mundo “vive” efetivamente em nosso corpo sob 0 modo de
afectos e perceptos e integra sua/nossa composicao, impulsionando o
processo incessante de recriagao de nds mesmos e de nosso entorno.
Tais maneiras de ver e de sentir formam uma espécie de germe de mundo
1 que nos habita. Somos entao tomados por um estranhamento porque o12
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mundo de que este germe € portador é, por principio, irrepresentavel; ele
6 exatamente o que nado cabe na cartografia cultural vigente e a coloca
em risco de dissolugao. E que por nao corresponder a experiéncia da vida
em seus novos arranjos de forgas resultante de novas conexdes entre os
corpos, tal cartografia passa a asfixia-la. ll Sendo essas duas experién-
cias simultaneas e indissociaveis e, ao mesmo tempo, irredutiveis uma
@ outra, sua relacdo é paradoxal. Gera-se entre elas uma tensdo que
desestabiliza a subjetividade, provoca-lhe inquietacao e a langa num
mal-estar. Esta 6 uma experiéncia primordial, pois € 0 sinal de alarme
que nos indica que a vida nos levou a um estado desconhecido, 0 qual
impGe ao desejo uma exigéncia de agir para recobrar um equilibrio vital,
existencial e emocional. 0 desconforto da instabilidade e a exigéncia de
trabalho que este nos demanda sao inevitaveis, pois que intrinsecos &
vida em sua esséncia de fluxo em diferenciagao continua que implica na
transformacao das formas em que este se materializa. O que muda de
uma cultura a outra ou de uma €poca a outra é a politica de desejo pre-
dominante, 0 modo de resposta do desejo a experiéncia da desestabili-
zacao e ao mal-estar que esta provoca. Essa diferenga nao 6 nem um
pouco neutra, pois cada tipo de resposta do desejo imprime um certo
tipo de destino as formas da realidade — sdo distintas formagées do in-
consciente no campo social. Em que diferem essas politicas do desejo?
E quais sao os efeitos de cada uma delas na realidade? Sao muitas as
politicas do desejo face ao desconforto provocado por esse incontorna-
vel paradoxo que nos constitui. Vou abordar dois extremos desse leque ~
diverso e variavel: 0 puramente ativo e o puramente reativo. Eviden-
temente, nenhuma micropolitica existe em estado puro; estamos sempre
oscilando entre varias. O que faz a diferenga é nos dispormos a combater
as tendéncias reativas em nds mesmos, ou seja, em nossas agées e re-
laces. Este é 0 trabalho de uma vida: um trabalho incessante e que esta
no amago da ética de uma existéncia. & No primeiro extremo, aquele de“
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uma micropolitica ativa, as duas capacidades se encontram acionadas.
Eo mais importante é que a subjetividade consegue se sustentar no
mal-estar provocado pela tensao entre ambas, 0 que Ihe da condigdes
para se manter a escuta dos afectos e perceptos responsaveis por sua
desestabilizagao. Com isso, o mundo larvario que nela habita tera gran-
des chances de germinar: é na ago do desejo que se plasmaré a germi-
nagao. A acao desejante, neste caso, consistira num processo de criagao
que, orientado pelo poder de avaliagao dos afectos (0 saber-do-corpo),
ird materializd-los em imagem, palavra, gesto, obra de arte, modo de
existéncia ou outra forma de expressdo qualquer. E se essa operagao
conseguir se realizar plenamente, ela dard uma consisténcia existencial
ao mundo de que tal germe é portador, ao dota-lo de um corpo sensivel.
Por nao ser um representante da experiéncia que lhe deu origem, mas
sim um transmissor de sua pulsagao, tal corpo tera um poder de conta-
minacao de seu entorno. E que sua presenga viva convoca ressonancias
nas subjetividades que o encontram, abrindo a possibilidade de que elas
também se sustentem na desestabilizagao, de maneira tal que um pro-
cesso de criagao possa nelas se desencadear levado por seu proprio
desejo. O mundo virtual que as habita se atualizard, por sua vez, em
outras tantas imagens, palavras, gestos, obra de arte, modos de existén-
cia ou outras formas de expressao quaisquer. Sendo assim, 0 efeito des-
sa politica de acao do desejo é um devir da subjetividade e de seu campo
relacional imediato e, a partir dele, de outros campos relacionais que
habitam as subjetividades que o compéem — e assim por diante, capila-
rizando-se rizomaticamente pelo corpo do mundo e transformando sua
paisagem. @ O que conduz o desejo nesse processo é uma biissola ética:
sua agulha aponta em diregao aquilo que permitira criar um corpo no
qual se concretize o que a vida esta demandando para retomar sua pul-
sacao. Em outras palavras, o lugar onde se situa a agulha dessa buissola
€ 0 da poténcia do vivo que as ages do desejo buscaro expandir para7
ampliar nossa capacidade de existir. O que a micropolitica ativa visa é,
pois, 4 conservacao da poténcia do vivo, que se realiza num incessante
processo de construcao da realidade. E se essas duas capacidades nao
se encontram ativas, 0 que acontece? Vou me ater ao exemplo da mi-
cropolitica reativa decorrente do inconsciente colonial-capitalistico. Esta
se define precisamente pela desativacao da poténcia que o corpo tem
para decifrar o mundo a partir de sua condigao de vivente — ou seja, 0
saber-do-corpo, neste caso, encontra-se inacessivel. Por estar bloquea-
da a experiéncia fora-do-sujeito — composta pelos efeitos do mundo no
corpo —, esse tipo de subjetividade vive 0 mundo como se estivesse fora’
dela e passa a existir e a se orientar somente a partir de sua experiéncia
como sujeito. & Constitui-se assim uma subjetividade “antropo-falo-e-
go-logocéntrica”, como costumo designé-la, cujo horizonte comega e
termina no préprio sujeito: um si-mesmo concebido e vivido como indi-
viduo — um contorno cristalizado formando uma suposta unidade
separada das demais supostas unidades que constituem um mundo,
este igualmente concebido como uma suposta totalidade. E como o su-
jeito se estrutura na cartografia cultural que Ihe da sua forma e nela se
espelha como se fosse 0 Unico mundo possivel, a subjetividade reduzida
ao sujeito e que com ele se confunde interpreta 0 desmoronamento de
“ym” mundo como um sinal do fim “do” mundo e dela mesma. Em outras
palavras, esse tipo de subjetividade vive a tensao entre aquelas duas
experiéncias como uma ameaga de autodesagregagao. Tomada pelo
medo, o mal-estar que essa experiéncia paradoxal Ihe provoca se trans-
forma, entdo, em angtistia do sujeito. Dessa perspectiva, so restam a
subjetividade duas escolhas para interpretar a causa de seu mal-estar:
seja uma suposta deficiéncia de si mesma, 0 que transforma o mal-estar
em sentimentos de culpa, inferioridade e vergonha, seja a maldade que
Ihe estaria sendo supostamente dirigida por alguém de seu entorno, 0
que transforma seu mal-estar em 6dio e ressentimento. BO desejo é18
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entado convocado a recobrar um equilibrio apressadamente e 0 faz orien-
tado por uma biissola moral, cuja agulha se situa numa cartografia pree-
xistente, na qual a vida se encontra materializada naquele momento. Ela
conduz 0 desejo na direcdo do rastreamento de formas de existir que
compéem tal cartografia — com suas imagens, narrativas e objetos —
para que a subjetividade possa consumi-las de modo a se refazer rapi-
damente um contorno reconhecivel ese livrar de sua angustia. A escolha
do que sera rastreado pelo desejo depende do tipo de interpretagao que
a subjetividade faz de seu desconforto. Em que se diferencia o que a
subjetividade ira consumir movida por cada uma dessas interpreta-
des? No primeiro caso, para aplacar seu mal-estar transformado em
sentimento de culpa e autodepreciacao, 0 desejo a conectara a produtos
de tarja preta da indUistria farmacolégica dos quais fara um uso que neu-
tralize ndo apenas sua angtistia, mas também seus afectos, o que torna
suas acGes reativas. Podera conecta-la igualmente a igrejas ou terapias
. - «
de treinamento de autoestima que Ihe oferegam procedimentos obses-
sivos para transformar sua angtistia em crenga no final feliz. O mesmo
uso pode ser feito de complexos discursos intelectuais, e tanto faz quais:
é que, nessa politica de desejo, diferentes visoes de mundo passam a
se equivaler como discurso prét--porter que serve de guia para uma
subjetividade, a qual, dissociada de sua condigao de vivente, nao tem
como encontrar palavras para o que lhe acontece e consome palavras
alheias que idealiza como portadoras da verdade que a salvard. A esco-
Iha varia apenas em funcao do repertério de cada um. E para se livrar da
vergonha e do medo de exclusao que sua autodepreciacao Ihe provoca,
0 desejo a conectard a produtos que o mercado oferece para todos os
gostos e todas as camadas sociais, sedutoramente veiculados pela pu-
blicidade. O que eles tém em comum € 0 fato de serem sempre apresen-
tados em cendrios com personagens idealizados, os quais, deslumbrada,
a subjetividade tentara mimetizar por meio do consumo das mercadorias20
2
a eles,associadas. Como os remédios de tarja preta, as igrejas, os esti-
muladores de autoestima e os complexos discursos intelectuais que se
equivalem como dispositivos de autoajuda, tais mercadorias so usadas
como perfumes para esconder o odor infecto de uma vida estagnada. @
No segundo caso, o desejo conectara a subjetividade a narrativas que
tenham como personagem principal um bode expiatorio que Ihe sirva de
tela para a projecao de seu mal-estar transformado em 6dio e ressenti-
mento. E 0 personagem demonizado pode ser uma pessoa, um povo,
uma cor de pele, uma classe social, um tipo de sexualidade, uma ideolo-
gia, um partido, um presidente e outros tantos. Isso pode levar a acdes
extremamente agressivas, cujo poder de contagio tende a criar as con-
digdes para o surgimento de uma massa fascista. 0 que visa a micropo-
litica reativa em suas duas verses é, pois, a conservacao do status quo.
Seu efeito é a diminuicdo da poténcia do vivo — uma espécie de anemia
vital. Se a redugao da subjetividade ao sujeito e sua micropolitica
reativa 6 propria da cultura moderna capitalista ocidental, o que ela
teria de especifico no capitalismo financeirizado? Boa pergunta. Na
nova versao da cultura moderna ocidental que acompanha o capitalismo
globalitdrio financeirizado, a micropolitica reativa é incentivada e fomen-
tada. Com os avancos das tecnologias de informacéo e comunicagao,
que no atual regime sao cada vez mais velozes, 0 mal-estar do paradoxo
impulsionador dos processos de subjetivacdo se faz mais frequente e se
insensifica. A sybjetividade é incessantemente bombardeada por ima-
gens de mundo e narrativas que tornam seus contornos caducos e lhe
impdem a exigéncia de se recompor. Diante disso, por estar reduzida ao
sujeito, aumenta sua vulnerabilidade ao se submeter a respostas prét-
-porter, as quais se oferecem em abundancia nesses mesmos meios.
Isso cria 0 solo para dinamicas essenciais do novo regime. Do ponto de
vista econémico, as mercadorias encontram na fragilidade e na impotén-
cia a base para seu consumo garantido, podendo assim se multiplicar ao2
23
infinito. Do ponto de vista politica, a midia — principal dispositivo de seu
poder — constrdi uma narrativa que amplifica e agrava a realidade da
crise e, paralelamente, cria 0 personagem do bode-expiatério, protago-
nizado pelos politicos que se quer expulsar de cena. Veiculada dia apés
dia, tal narrativa intensifica o fantasma do perigo de desagregacao imi-
nente fabulado por uma subjetividade reduzida ao sujeito — sucumbida
a0 medo, ela esta pronta para se agarrar ao bode-expiatério como sua
Unica saida. A construgao de tais narrativas midiaticas é uma das princi-
pais operagdes da estratégia micropolitica de tomada do poder pelo
capitalismo globalitario. E exatamente o que aconteceu no Brasil no
transcorrer da preparagao do golpe. “A culpa é da Dilma”, aquela espécie
de mantra que tomou conta do pais, surgiu do consumo da ficcao que a
midia criou, tendo Dilma e 0 PT no papel de bodes-expiatorios. Bl A po-
téncia do desejo é assim canalizada para sustentar o status quo ~—seja
levando ao consumo, seja aclamando golpes de estado que abrem as
Portas para a instalagao de governos neoliberais, os quais viabilizam o
livre fluxo de circulacao internacional de capitais. Em suma, a poténcia
do desejo é desviada de seu destino ativo criador para se transformar
em poténcia reativa de submissao: esse é 0 real perigo. O mais perverso
do novo regime é que ele se nutre do perigo imagindrio de uma subjetivi-
dade reduzida ao sujeito, além de manté-la cativa nessa reducao, des-
conectada do saber-do-corpo. A situagdo que estamos vivendo é uma
incubadora desse perigo real; tal incubadora 6 seu principal dispositivo
micropolitico. Entao é por isso que vocé incorporou o termo “capitalis-
tico” na sua nogao de “inconsciente colonial”? Exatamente. Se passei
a designar por “colonial-capitalistico” o regime de inconsciente dominan-
te na cultura moderna ocidental, 6 porque eu nao queria que se enten-
desse 0 termo colonial literalmente — ou seja, restrito A Operacao por
meio da qual a Europa Ocidental colonizou parte do planeta a partir do
século XVI. Era importante marcar que o capitalismo nasce junto comta
28
essa operagao e é dela inseparavel. Nesse sentido, a colonizagao nunca
parou, apenas foram mudando suas formas, dinamicas e procedimentos,
junto com as mudang¢as do regime capitalista. Em sua versao financeiri-
Zada, 0 Capitalismo vem logrando expandir seu projeto colonial a ponto
de englobar 0 conjunto do planeta. Assim, chamar de “colonial-capita-
listico” 0 regime inconsciente que nos orienta na contemporaneidade é
dar nome aos bois. Ha uma ressonancia entre essa ideia e a proposta de
Guattari de substituir 0 termo globalizagao por “Capitalismo Mundial
Integrado” (CMI) j4 em 1980,‘ quando 0 neoliberalismo apenas se insta-
lava. E que, para ele, o termo “globalizagao” encobre dois sentidos es-
senciais do fendmeno que ele nomeia: de um lado, o fato de que este
fendmeno é fundamentalmente econémico e, mais especificamente,
capitalista e, de outro lado, sua dimensao colonizadora, j4 que hoje nao
ha mais atividade humana alguma no planeta que lhe escape. De fato,
como um tsunami, em sua versao neoliberal, a politica de desejo
colonial-capitalistica se espalha por toda parte, inundando tudo com
uma velocidade e uma forga descontroladas. & Do ponto de vista micro-
politico, é portanto com base na desconexao com 0 saber-do-corpo que
se dé essa instalagao mundial do capitalismo financeirizado. No lugar
das narrativas singulares, variadas e variveis que seriam criadas a partir
desse saber, impde-se a todos um discurso tnico, que Laymert Garcia
dos Santos chama muito apropriadamente de “ocidéntico”. E se ele €
Unico, apesar de se desdobrar em distintas modalidades, é porque o que
0 define é 0 fato de se sobrepor a experiénciada vida humana em sua
heterogeneidade cambiante, homogeinizando-a por meio de sua sobre-
codificagao. Como um fantasma, o ocidéntico baixa na subjetividade e
passa a conduzir o desejo. Guiada por ele, é por seu prdprio desejo que
4, Anogo de “Capitalismo Mundial Integrado: foi sugerida por Félix Guattari numa conferéncia em um
semindrio do grupo Cinel (Paris, 1980). Foi publicada pela primeira vez em 1981 sob 0 titulo “O Capi-
talismo Mundial Integrado e a Revolugdo Molecular”, na coletnea de textos do autor, Pulsagdes poll-
ticas do desejo: Revolucdo Molecular, org. trad. bras. de Suely Rolnik. Sao Paulo: Brasiliense, 1981.26
cg
a subjetividade passa a agir nessa diregdo. E nesse sentido que nao ha
resisténcia se nao exorcizamos o fantasma do ocidéntico, em suas miil-
tiplas versdes — inclusive as das esquerdas —, o que depende de recobrar
a escuta do saber-do-corpo e de agir no sentido daquilo que ele nos in-
dica. Entao é ao inconsciente colonial-capitalistico que vocé se refe-
ao afirmar que a resisténcia da esquerda tem um limite contra o
qual ela se choca? Sim, exatamente, e é isto o que impede as esquerdas
de abarcarem a dimensao micropolitica da resisténcia, como sugeri no
inicio. Agora podemos descrever como se da essa impossibilidade e a
manutengao do status quo que dela resulta. Como vimos, a reducao da
subjetividade ao sujeito que define o inconsciente colonial-capitalistico
implica a denegacao dos efeitos do outro em nosso corpo ea crenca de
que a subjetividade é uma unidade fechada em si mesma e separada do
mundo, do que decorre a nogao de individuo. Pois bem, em sua versdo
de esquerda, a ideia de que a experiéncia subjetiva é coisa do individuo
ri
leva a considerar que agir no plano micropolitico é individualista e, sendo
assim, burgués e reacionario. Esse argumento justifica ideologicamente
a desconexao com 0 saber-do-corpo, a experiéncia subjetiva extrapessoal
que orienta nossas acGes visando a preservar a vida em sua pulsacao. 0
mais paradoxal é que tal desconexao é precisamenté 0 que caracteriza
a subjetividade burguesa com seu inconsciente colonial-capitalistico.
Em suma, 0 modo de subjetivagao que predomina nas esquerdas tende
nao so a reproduzir a micropolitica reativa propria do regime vigente, mas
a enaltecé-la e a reforga-la em nome de seus ideais. Esse é 0 limite con-
tra o qual esbarra a pratica da resisténcia quando reduzida ao plano
macropolitico. il Abandonar esse modo de subjetivagéo passa por um
“devir revolucionario”, como o designava Deleuze. Tal devir é impulsionado
pelas irrupgdes de afectos que nos chegam pelo saber-do-corpo e que
nos forgam a reinventar a realidade: sao momentos em que a imaginacao
coletiva é acionada para criar novas maneiras de existir, outras aliangas,Novos sentidos. Estes se dao em varias diregdes e de modos distintos, ja
que atualizam experiéncias singulares dos efeitos das forgas que agitam
& realidade. Efeitos que estao presentes em todos os corpos, em deter-
minado momento e contexto. @ Ora, isso nao tem nada a ver com “a”
Revolugao, com R maitisculo, total e absoluta, pois, por principio, tal
bloco monolitico nado abrange os devires revolucionrios; pelo contrario,
Os interrompe ao sobrecodifica-los, constituindo assim uma das atuali-
zagdes do ocidéntico. Com distintas nuances, a ideia de “Revolugao”
orienta as agdes do desejo na politica de subjetivacao antropo-falo-ego-
-logo-céntrica em suas versdes de esquerda = sejam elas institucionais
ou ndo, que estejam ou nao atreladas a um totalitarismo do Estado. Essa
ideia € mais um dos sintomas da micropolitica reativa que rege a imagi-
nagao das esquerdas. Por nao ter como atuar no sentido de reinventar a
realidade nos pontos em que isso seja necessrio desde e diante do que
a vida pede, o desejo termina por atuar contra a vida; torna-se reativo.
Nesse aspecto, por mais “de esquerda” que sejam tais governos do pon-
to de vista macropolitico, eles sao tao micropoliticamente reativos quan-
to os governos macropoliticamente “de direita”. E por essa razao que
eu dizia que nao basta tomar para si a responsabilidade como cidadao
(0 minimo indispensavel, insisto); é preciso, mais amplamente, tomar
para sia responsabilidade enquanto ser vivo, de modo a agir no sentido
de uma micropolitica ativa. Essa é a condi¢ao para nos tornarmos agen-
tes da criagdo de modos de existéncia coletivos, o que comega em nossa
prépria existéncia, mas por principio nao termina nela. Conquistar essa
possibilidade depende da quebra do feitigo do poder tsunamico da mi-
cropolitica reativa do CMI e de seu discurso ocidéntico, que se alastra
por todas as esferas da vida humana e destrdi seus modos de existir. A
quebra desse feitigo passa por reconhecermos os efeitos t6xicos da es-
tratégia do CMI em nossos proprios corpos, e por ndo nos submetermos
a les, resistindo nesse mesmo plano. Isso depende de uma desiden-30
tificagéo com os modos de existéncia que o CMI constrdi no lugar daque-
les que devastou, a fim de que possamos deserta-los — nao para voltar
as formas do passado, mas para inventar outras em funcdo dos germes
de futuro incubados no presente. Tal desertificagado desestabiliza o poder,
0 que torna esse combate muito distinto daquele que tem por alvo a to-
mada de poder. Em outras palavras, trata-se aqui de um combate que
nao se faz por meio da oposigao ao poder ou por sua negacao, mas sim
por meio da afirmacao de uma micropolitica ativa, a ser investida em
cada uma de nossas agées cotidianas — inclusive naquelas que implicam
nossa relagdo com o Estado, quer estejamos dentro ou fora dele. Nao
sera exatamente esse 0 combate que esta sendo levado pelo novo tipo
de ativismo que vem proliferando pelo mundo e, mais recentemente, na
sociedade brasileira?
Suely Rolnik é psicanalista, professora titular da PUC-SP. e professora
convidada do Programa de mestrado do Museu de Arte Contemporanea
de Barcelona. Dedica-se a investigacdo de politicas.do desejo de uma
perspectiva ‘transdisciplinar e indissocidvel de uma pragmatica clinico-:
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vinte’ dos 64 DVDs que compoem esse arquivo e um livreto foram editados
em 2011 no Brasil [Cinemateca Brasileira-MinC/Edicdes Sesc] e na Franca
Rem lc leva Du réel]. Foi curadora da exposicao Lygia Clark, do
Ce ele ToxeCoeh torn (Mtecacxe(as (ee acl e NeSHAAYeyag un Cec)
do Estado de Sao Paulo, 2006). £ autora dos livros Cartografia Sentimental
[Estagao Liberdade, 1989/Ed. Sulinas, 2006), Archivmanie [Documenta
Xill, 2011), Anthropophagie Zombie {Black Jack, 2012] coautora, com Félix
CCIM nccU Fo le Coae) ole ete tLe co teen lcxt Tepe een on