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Rosalind Krauss O fotografico ‘Titulo original: Le Photographique. Pour une Théorie des Beats Publicado originalmente por Editions Macula, Paris, em 1990 ‘Traducio: Anne Marie Davée Revisio: Maya Hantower e Lane de Castro Capa: Toni Cabré, Editorial Gustavo Gili, SA Fotografia da capa: Roger Parry, 1930. © Parry. Droits réservés. ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicagdo protegida por copyright pode ser utilizada ou reproduzida de qualquer forma ou por quaisquer meios ~ grifico, eletré- nico ow mecanico, incluindo fotocépia, gravacdo ou sistemas de arm: missio de dados — sem autorizacio por escrito da Editora. A Editora expressa ou implicitamente, a respeito da acuidade das informagdes con nfo aceitaré qualquer responsabilidade legal em caso de erros ou omissocs. © Editions Macula, 1990 Ps © Editorial Gustavo Gi , Barcelona, 2002 Printed in Spain ISBN: 84-252-1858-6 Impressao: Hurope, SL, Barcelona indice Prefacio, por Hubert Damisch . . Introdugéo I A expresso «Historia da Fotografia» refere-se um objeto de pensamento existente? Seguindo os passos de Nadar .... 6... Os espacos discursivos da fotografia. A fotografia e a historia da arte O impressionismo: narcisismo da luz Marcel Duchamp on 0 campo imaginario ..... A fotografia como’texto: 0 caso Namuth/Pollock Fotografia e surrealismo : A fotografia e a forma Stieglitz: equivalentes Os noctambulos ........ Sobre os Nus de Irving Penn: a fotografia como colagem A margem da fotografia Corpus delicti ........5..0.. oe Quando falham as palavras 0... Nota sobre a fotografia e o simulacro . Bibliografia indice onomistico . Créditos Fotograficos s ieacivesvexe BB weve 40 63 PRKERAGU A partir da fotografia A fotografia invadiu os saldes de exposicao de museus e galerias de arte. Mais ainda, seu ingresso relativamente recente no campo da critica como objeto de saber € andlise, assunto de pesquisa ou tema de reflexao tem o efeito parado- xal de ocultar a realidade da qual é, a0 mesmo tempo, signo e produto. Por ocultar esta realidade, por mascaré-la ou t40 bem deturpar o seu sentido sob ‘o véu de um discurso de legitimacio, a proliferacdo de escritos de todo tipo dedicados a uma pratica considerada por muito tempo demolidora parece andar par e passo com a afirmagdo propria da modernidade de uma cont- nuidade restabelecida para além da ruptura. O surgimento de um comércio especializado particularmente florescente e a especulagio desenfreada acaba- ram de vez com controvérsias fiiteis sobre o estatuto da arte fotografica, enquanto os precos alcancados pelas chamadas tiragens “de época” corres- pondem a um retorno no melhor dos casos equivoco — e até contraditério quanto a operagao constitutiva da fotografia — das nocées de “autenticidade” e “originalidade”. Chegon a haver o ressurgimento de uma nova forma de aura, substituta fetichista da que €avolvia a obra de arte tradicional, quando era de se supor que © desenvolvimento dos meios de reprodugao mecanicos da fotografia precipitaria o desaparecimento dessa aura. Mas o fendmeno tem outras conseqiiéncias: come aconteceu na sua época com a pintura, o ingres so da fotografia no mercado da arte tem como corolatio o florescimento de uma “literatura” especializada por género, ordem de prioridade, catalogos, monografias, prefécios ou textos criticos que obrigatoriamente a acompa- nham, Como se algo pudesse ou devesse existir de fato como literatura da foto- grafia; como se a fotografia devesse ou pudesse ser objeto de literatura, Parte dos textos reunidos por Rosalind Krauss sob 0 titulo O Fotogréfico res- ponde aparentemente a esta descrigio. Nesse livro, 0 leitor encontrara o pre- facio que ela redigiu por ocasido de uma exposicao dos Nus de Irving Penn, bem como os dois ensaios dedicados a fotografia surrealista, que escreveu como introducio a uma exposicio memoravel que parcialmente montou. Estes textos, porém, transgridem a lei do género, na medida em que a autora, em vez de escrever sobrea fotografia, é tentada a escrever contra ela: nao exa- tamente contra a fotografia, mas antes contra uma determinada maneira de escrever sobre ela e, em particular, sobre sua historia, De modo que este livro, 7 fragorosa testemunha da irrupeao da fotografia no campo da critica, assume posicdo de ruptura com 0 discurso dominante ¢ trabalha indo de encontro a cle, porque age A maneira de um corpo estranho que perturba sua economia por demais regulamentada, por demais azeitada ou — melhor ainda — que desloca essa economia. ‘Tenho por exemplar o trabalho realizado por Rosalind Krauss a partir da fotografia — repito: a partir da fotografia e nao sobre ela — em primeiro lugar por causa do olhar de singular acuidade que ela quis soube dirigir sobre sua propria trajetéria critica: uma trajetéria que, depois de acompanhar ao que parece um movimento de época — quando nao de moda — evoluiu progre: sivamente voltando-se sobre ela mesma e soube extrair desta involucao refle- fa seus recursos mais constantes. Frente ao excesso de anilises ¢ comenté- ios de que a fotografia € objeto nos dias de hoje, Rosalind Krauss obriga seu leitor a se perguntar o que se deve entender por “histéria” aplicada a e Historia como a escrevemos, supondo-se que seja possfvel escrever algo além de uma “pequena historia” da fotografia, para retomar o titulo atibuido por Walter Benjamin; como se a fotografia nao pudesse se prestar tampouco a lite ratura, assim como 2 hist6ria no sentido que Ihe atribuem os historiadore Tratase, porém, igualmente de uma historia tal como cla nos escreve, tal como irrompe em nossas vidas, aqui, agora, pelo canal ¢ sob a iluminacao, entre outras coisas, da luz ¢ das sombras que pertencem a fotografia: uma his- t6ria revestida de uma dimensio eminentemente pessoal quando atinge sua meta de chofre por intermédio do que Roland Barthes designou como seu puncum, 0 detalhe, 0 traco que nela me pontua, aponta para mim, me punge A fora do texto de Rosalind Krauss basta para colocitla lado a lado com a “Pequena histria da fotografia” de Walter Benjamin ou a “Camara clara” de Roland Barthes, duas obras em que ela reconhece a honra do que chama, muito pensar, de literatura fotogrifica. Essa forca provém decididamente do grau de imterioridade, em resumo, de intimidade que este texto pode atingir na descricao da foto de um nu assinado por Man Ray ou Irving Penn, assim como da intensidade dos encadeamentos, deslocamentos, curtoscircuitos com 0s quais joga no registro de parte do inconsciente entre imagens mobili- zadas pela andlise, mas sem por isso perder jamais a posicio de exterioridade e até de controle que decidiu assumin, Isto vale para o olhar que cla dirige sobre sua propria experiéncia: 0 elemento autobiografico se limita aqui a bali- zar um ilinerario que conduzira uma critica formada pela escola de Clement Greenberg — e, por este motivo, habil em todas as sutilezas do “formalismo” (termo despojado de qualquer conotagao pejorativa, tanto para ela quanto para mim) — a querer testemunhar a aparic&o em Nova Iorque, nos anos 70, de formas de arte que pensava poder ainda qualificar de abstratas, embora fos- arte, sem elas premissas de algo completamente novo. Prova disso 0 espaco outor- & gato. fotografia no-que se se chamou Body Art ou Land Art, sob dupla forma, stro das etapas de um trabalho-ov' das sucessivas fases de uma agao que 86 podia se prestar a exposicao pelo viés de uma montagem documentale, de forma mais sutil, de processos, operacoes, intervencées, performances eféme— “Tas que ela tinha a funcio de registrar, fixar no tempo. Processos, operacdes > que ressurgiam elas mesmas Como traco (Fasiro aberio, riscado no proprio chao, no caso do Land Ar‘) ou vestigio da impressio (deixado ou exibido por um corpo, no caso do Body Art), em que Rosalind Krauss soube reconhecer a forte influéncia do modelo fotografico. Melhor ainda: revelaresta influéncia a ponto de Ihe atribuir valor de sintoma ou indice, ao estilo da sohucao quimica que, por reducio dos sais de prata expostos A luz em prata metilica, tora Vi vel, na etapa da revelacao, a imagem latente impressa sobre a placa ou pelicu: lano fundo da caixaescura e a revela pelo que é: um indice no sentido atribu- ido pelo filésofo americano Charles S. Pierce, tim signo que mantém com seu referente una relagio direta, fisica, de derivacio, de causalidade. Devemos a Rosalind Krauss 0 fato de ter desenredado os motives propriae mente estéticos da ascendéncia-exercida por Marcel Duchamp sobre a gera- So de jovens artistas americanog que ingressaram no paleo nova-iorquino no momento em que expressionismo abstrato perdia o folego. Isso (a perda de folego), por motivos que nada tém a ver com o desgaste ou com a moda, escla- rece a pergunta que obcecou os grandes mestres da abstracao lirica america- na ¢ serve para situé-la como um dos grandes momentos da arte deste século: © que acontece com 0 sujeito da pintura, ou, literalmente, com o sujeito na pintura? Pergunta que talver nao peca resposta, pelo menos nao uma respos- fa que a anularia enquanto pergunta, questo que nao se pode resolver, se for verdade que ela se inscreve, enquanto tal, nos primérdios desta arte ¢ que dela faz sua condicao e motivacao. A lenda classica da origem da pintura contada por Plinio — o tracado, realizado pela filha de um oleiro de Sicione, da som- bra de seu amante desenhada numa parede — assinala seu irredutivel com- ponente indicial. Pois uma sombra projetada (nio ha sombra sem corpo, como nao existe fumaca sem fogo) € um indice, no sentido atribuido por Pierce: ¢ indice, mas que nao deixa qualquer traco permanente, a nao ser que possa ser circunscrito ¢ fixado, A nocao de projecio— esta puramente tedrica — sobre a qual boa parte da pintura classica se pautou através do dispositive perspectivo, nao tinha outro significado. A ela responde o mito que Alberti pretendeu colocar no lugar da lenda tradicional: o de Narciso mirando-se na superficie da agua. Um mito, nao mais uma historia como aquelas contadas por Plinio, que tem como fungao prim fabula na pintura ¢ como seu inventor (no sentido em que se fala de invencdo da fotografia); tanto € que Narciso nao pode alimentar a esperanga de apre- ira inscrever © sujeito como herdi de 9 ender a imagem que 0 espelho Iiquido lite devolve, s6 apontar este espelho como uma superficie que suas mios nao saberiam como atravessar ¢ que Ihe cabe abracar (mas cada um de nés percebe logo que a.questio do sujeito existia na lenda da filha de Sicione, através da troca de posicées entre objeto e sujeito do desejo, a irrepreensivel passagem de um a outro a que se resume “Fazer arte). - ‘Nao caberia dizer que 0 componente indicial da pintura tenha sido algum dia motivo de forclusao. A propria Rosalind Krauss nao poderia ter deixado de observar que a grande pintura americana dos anos 50 apresentava uma forte caracteristica indicial: quer se trate dos tracados em pleno véo de Pollock, dos sutis arrancos de Barnett Newman ou do fluir cuidadosamente organizado de Morris Louis, todos estes tragos remetem diretamente ao gesto que 0s origi- now, O mesmo, porém, ocorria na pintura classica, com os tragos visiveis da escova, o toque deixado em evidéncia: 0 toque em que gostariamos de reco- nhecer o vestigio da subjetividade, porque nela se inscreve a presenca do pré- prio pintor e, se nao dele, de sua mao na origem de obra. Se a eritica, se a his- téria da arte foram levadas a enfatizar 0 componente icénico da pintura em detrimento de sua aparéncia sensivel e a confundir a imagem com o quadro, nao se deve procurar a razdo dessa atitude numa cegueira qualquer ¢ sim na yontade cada vez mais afirmada de ignorar o que acontece com 0 sujeito da pintura, com 0 sujeito na pintura, esta arte cuja intimidade no coracio do homem aumenta 4 medida que se torna mais material, como dizia Delacroix. Q.que a geracdo dos anos 60 reteve da li¢io dos mais velhos nao teve nada a Yer, no entanto, com os exercicios “materiolégicos” a que se tinha entregado, deste lado do Atlantico, um pintor como Dubuffet. Se esta geragdo se desviow de Picasso para olhar 0 territério de Duchamp foi com a idéia de aprender com este tiltimo a utilizar o proprio real como matériaprima, como fazem a fotografia e o cinema. Do préprio real, incluindo-se © syjeito dito produtor ou “artista”, cuja atividade no teria outra funcio nem outra razio de ser senao a de montar 0 palco cada vez mais desmantclado de sua comparéncia ou entao de “desconstrui-la” com obstinacao, por uma decisio justificada doravante somente pela sua propria reiteracao, por sua repeticao convulsiva. E, portanto, o proprio movimento da arte que tera conduzido Rosalind Krauss, num primeiro momento, as raias da fotografia. As razSes que a leva ram a escolha deste campo, € nele realizar mais do que repetidas incursées, s40 miltiplas. Parte do interesse suscitado por este livro nasce da preocupacio da autora em entender a receptividade da fotografia por parte do pitblico a par- tir da sua experiéncia pessoal, de seu proprio percurso critico. Por que a foto- grafia é tao importante hoje para nés? A esta pergunta, que formulou “sem rodeios, Rosalind Krauss soube dar uma resposta singular, subjetiva (como 10 tem que ser quando se trata de julgamento estético), mas que, por apresentar essa mesma subjetividade e singularidade, se reveste de maior valor geral. Uma questio de humor, entre outras: se estivermos dispastos a investir (em todos os sentidos da palavra) na fotografia, seria em parte por lassidio, cansados dos {jogos cada ver mais regressivos em que se perde a pintara, mas também sedu- idos por uma forma de arte dirctamente conectada ao real, uma arte funda- mentalmente realista, no sentido estrito da palavra, por sua prépria natureza, sua funcio de indice. O movimento que faz com que nos voltemos para a foto- grafia seria somente um sintoma, entre outros, do mal-estar da modernidade? Isto seria ignorar que a fotografia passou por um de seus momentos mais cria- tivos na época em que a abstracao tinha conseguido imporse como um dos artigos do credo modernista: sob muitos aspectos, o trabalho dos anos 20 sobre as condices materiais de producao da imagem fotogréfica, assim como © wabalho sobre seus componentes técnicos e formais néo tem equivalente hoje. Que este trabalho tenha sido levado adiante no contesto do surrealismo, como aconteceu com 0s raiogramas ou as solarizagdes de Man Ray, € que as pesquisas empreendidas no programa de ensino na Bauhaus tenham conse- guido se inscrever sob a bandeira da “Nova Visio”, dando um salto por cima da instituicdo, estes dois elementos hist6ricos analisados com pertinéncia por Rosalind Krauss atestam a complexidade do relacionamento que a moderni dade nunca deixou de cultivar com a realidade, de uma forma ou outra, ¢ nao tém nada a yer com um “retorno a ordem” qualquer. Este livro descreve assim uma trajet6ria que corresponde a um verdadeiro deslocamento epistemolégico: Id onde 0 discurso oficial se esforca em tazer a fotografia A ordem, em deitar-se na cama de Procusto da histéria da arte, em apagala enquanto acontecimento para introduzita novamente na longa duragao e contimuidade de uma historia, a da arte. Arte de que seria produto, arte que a teria preparado, suscitado, chamado ha muito, 2 ponto de reduzir sua inven- cio a uma formalidade sem conseqiténcia (como pretendia a exposicao Before Photography, apresentada em 1981 no Museum of Modern Art de Nova Torque), todo 0 esforgo de Rosalind Krauss tem, a0 contrario, 0 objetivo de res- tituirthe algo da forca, do valor de ruptura_que teve_originalinente ¢, a0 ‘mesmo tempo, sublinhar sua irredutivel exterioridade. Tamanho empreendi- mento pressupGe umia descentralizacdo calculada do discurso: a fotografia nao _ se deixa reduzir as dimensdes essencialmente “estilisticas” da historia da arte ‘Como mostra a autora a partir do exemplo do trabalho de Timoty O’ Sullivan, Auguste Salzmann ou Roger Fenton, do proprio Eugéne Atget, que conquis- tou de pleno direito seu lugar no Pantedo do século XIX, ela opera em outros espagos de discurso que nao sao estritamente artisticos: o espaco da repo gem, da viagem, do arquivo ¢ até da ciéncia. A aura algo suspeita que Ihe con- u fere hoje seu ingresso no museu, o verdadeiro culto de que 0s vintage prints io objetos doravante sio como a parddia inversa do proceso de dessacralizacao da obra de arte que teria chegado ao seu término com a invencao da fotogra- fia: o valor de exposicio leva vantagem sobre a funcao de documentar. O resul- tado é que acreditamos dispor da fotografia como as obras de arte conser’ das no muscu, quando ela continua evidentemente a dispor de nés, como 0 revela a imagem que nos assalta de repente, nos punge na hora da leitura dos jornais ou quando irrompe de nosso arquivo particular. O Futogrifica: decidi- damente, 0 titulo diz bem a que veio. Se a fotografia se impuser hoje como um dos pélos do discurso critico, ela nao conseguir produzir todos os seus efei tos na ordem teérica senio sob condicao de sobrevir, como o fez historica- mente, falando no campo cultural, ¢ como o faz diariamente na vida intima, desde que conservadas as condicées tedricas desta sobrevinda. E preciso entdo rejcitar, por motives tanto de carater estratégico como de principio, o lugar comum segundo o qual a pintura abriu caminho para a foto- grafia, que a antecipou, assim como as formas modernas de narracao teriam aberto caminho ao cinema ¢ 0 teriam antecipado, quando nao ha neste caso nada senao uma ilusao retrospectiva, € que € a partir das novas praticas artis- ticas, dos processos € procedimentos que as caracterizam ¢ igualmente por meio da linguagem ¢ da grade conceitual fornecida por ela que julgamos as praticas que as precederam. Da mesma forma € mister rejeitar, pelo menos por precaucio, a participacio na redacio coletiva de uma “historia da fotografia” que quisesse modelarse na historia da arte. Nao porque a fotografia nao tem hist6ria, mas porque nos cabe novamente entender primeiro 0 significado de hist6ria sob sua ihuminacio. A fotografia n&o é apenas um indice do real. Mais ainda que o chamado “cinema de atualidades”, ela quer estar presente na his- t6ria, tanto a oficial como a mais secreta, presente na hist6ria coletiva bem como na histéria individual, A indiscrigao necesséria, constitutiva, que é a sua, a faz multiplicar os angulos de visao ¢ escolher os pontos de vista sempre mais improvaveis para dar-nos a ver a historia, eventualmente nossa prdpria histd- ria para excitar em nds a inquictagao € até o desejo — no pior dos casos — de despertar-nos (como dizia Joyce) deste pesadelo. Tao empenhada nesta labu- ta, € freqitente que s6 consiga abordar o contrapé desta historia, seu avesso, sua auséncia ou, ao contrério, o momento de seu climax, quando 0 fotégrafo quer permanecer a margem, testemunhar, se relacionar com a realidade man- tendo com ela um contato instrumental e estritamente pontual, instantineo, © tempo de um clique. A eficécia propria da fotografia no campo estético nao se deixa efetiva- mente isolar da eficdcia de sua mecénica. Delacroix ja se regozijava, na época, por ter 4 sua disposicao um meio de produzir, automaticamente a armacio da perspectiva do quadro, com o aparelho de apreensio da vista: a caixa fotogré- 12 fica tem uma disposigao interna tal que a imagem formada no fundo da cama: ra escura obedece a uma regra projetiva analoga a regra basica do principio de construcio da perspectiva. A parte de automatismo do processo fotograti- co, porém, n&o € apenas uma questao de dtica, como Rosalind Krauss consta- tou no exemplo da fotografia surrealista: considerado a partir deste crivo, é todo o problema do automatismo psiquico ou escritural que precisa ser estu- dado novamente, no sentido que André Breton € seus amigos deram a estas palavras. Se for sempre a relacao do fotégrafo com sua técnica que julgara a fotografia em definitive, como escreven Walter Benjamin, surge aqui uma das explicacdes para o mal-cstar que por muito tempo prejudicou o desenvolvi- mento de uma teoria, quando no de uma estética da fotografia. A concepcaio fetichista de arte é inimiga da técnica como o é também da teoria; nao aceita facilmente que noves objetos venham reconduzita a eles, como disse Louis Jouvet sobre o cinema, alegando que esse condenava os homens de arte a fazer. teoria do teatro!. A fotografia representa um destes objetos que chamamos “tedricos” € cuja irrup¢ao em determinado campo transtorna tanto © mapa, que se torna necessdrio retomar o trabalho de medicio comecando do zero, introduzir novas coordenadas ¢ talvez mudar o sistema de representacio. A historia da arte bem pode fingir ter digerido e até assimilado visceralmente a fotografia com a ajuda do mercado. Um livro como este tem como primeiro mérito dissipar esta iusio ¢ invocar outra forma de projes@oque, longe de fazer um balanco da fotografia, a tomaria como ponto de partida e trabalharia com ela obstinadamente. Hubert Damisch Nota: 1. Louis Jouvet, Le Comin désincarné, Paris, 1954. 13 Introdugao O Fotogrifico nao vemete fotografia como objeto de pesquisa, mas apresenta oq ; poderiamos chamar de objeto térico. Assim, quer abordem o material fotografico reunido pelas expedicdes geograficas do século XIX ou os trabal- hos de Atget, Nadar ou Brassai, os ensaios compilados neste livro nio pode- tiam ser definidos como ensaios sobre fotografia. Ao assumir essa atitude, inclusive, nada mais fazem senao seguir 0 exemplo dos classicos do discurso fotogrifico, aqueles autores a que nos referimos sempre e cuja afirmacao desejamos refutar, segundo a qual 0 que se escreve sobre fotografia carece de interesse ¢ profundidade. De fato, se poderia argumentar que a obra desses autores — cuja breve lista iniciase por Barthes ¢ Benjamin — sequer versa sobre fotografia. “Nota sobre a fotografia” é 0 subtitulo dado por Barthes a La Chambre claire (A Camara clara), ¢ no entanto cle elimina de seu tema, uma apds a outra, cada pritica discursiva que teria permitido instituir a fotografia como objeto proprio de sua anilise, Para ele, a fotografia nao € um objeto estético; nao é um objeto hist6rico; nao é um objeto sociolégico: A foo me comove quando a subtmio de sew blablabla habitual: ‘Técnica’, 'Realidade “Reportagem’, ‘Arte’, etc. Calarse, fechar 03 othos, deixar o detalhe emergir na conscié cia afetiva.” (p. 89) Na verdade, Barthes da as costas para todas as leis que autorizariam um nivel de generalizacao suficiente para organizi-la em objeto de discurso — uma linguagem que seria formulada sobrea fotografia; a Barthes agrada enten- der aquilo que revela o filme como depositario de uma promessa utépica, ada “ciéncia impossivel do ser tinico”. Para ele, a fotografia se constitui de fato bruto no seu estatuto de prova, testemunha muda sobre a qual “nao ha mais nada a acrescentar”. E neste exato momento, quando © que lhe da valor de prova tornase essencial, que a fotografia muda de condicdo ¢ se transforma em objeto iedrico, ow seja, uma espécie de crivo ou filtro através do qual pode-se organizar os dados de outro campo, situado em segundo plano. A fotografia é o centro 2 partir do qual torna-se possivel explorar este campo, mas, por ocu- par essa posicio central, transforma-se de algum modo em mancha cega. Nao ha nada a deciarar sobre a fotografia, em todo caso. 4 Se for verdade que cada um dos textos de Barthes que abordam a fotogra- fia pode ser considerado como um texto que, na realidade, nao versa sobre a fotografia, 0 que dizer entio de Benjamin, 0 outro her6i do discurso sobre fotografia? ‘Assim como a fotografia se constitui para Barthes no objeto teérico que permite éxaminar a evidéncia bruta em sua relacio com a imediatez ou com cédigos de conotacdo, como a morie ow a publicidade, ela contudo represen: ta igualmente o objeto tedrico de Benjamin. E a fotografia que Ihe permite refletir sobre a cultura modernisia a partir das condigdes geradas pela repro- ducio mecanica. A fotografia é 0 dispositivo com o qual se calibra os objetos da paisagem cultural em termes de “reprodutibilidade”. Essa reprodutibilida- de percebida recentemente € que poe a disposisiio de Benjamin os objetos especificos de sua andlise — como 0 desaparecimento da aura ou o relativis: imo histérico da nogao estética de original, por exemplo. Um outro tipo de calibragem a que se pode submeter os objetos da expe- riéncia através da fotografia tem 0 nome de “indice”. Na medida em que a fotografia faz. parte da classe de signos que mantém com sua referéncia rela- Ges que subentendem uma associagao fisica, ela faz parte do mesmo sistema que as impressGes, os sintomas, 0s LrAcos, Os indices*. As condi¢des semiologi- cas proprias da fotografia se distinguem basicamente das condigdes semiolo~ gieas de outros modos de produgio de imagem designadas pelo termo “icone”; € é esta especificidade semiologica que permite transformar a foto- _grafia em objeto teorico, por intermédio do qual se pode pensar as obras de arte em termos de sua funcdo de signos. ‘Ao longo da década que presenciou a mudanca dramatica de figuras exemplares da pritica modernista — Picasso substituide por Marcel Duchamp para a geracao dos anos 60 —, a tadicao da pintura ¢ escultura, considerada imutavelmente icdnica desde a noite dos tempos, revelou-se de extrema fragilidade quando submetida 4 calibragem fotografica. Isto porque a obra de Marce] Duchamp procede a uma redistribuicao das pri ticas pict6rica e escultdrica dependendo do molde do “indice”, propondo uma nova interpretagao para o que constitui a imagem estética. Se nio fosse para considerar La mariée mise a nw par ses célibaiaires, méme (A noiva despida pelos seus celibatarios, mesmo) até como uma grande e complexa {fotografia — com aquelas marcas em suspensio sobre uma gigantesca placa de vidro — a partir do modelo de um quadro particularmente complexo ¢ de grandes dimensées, aconteceria uma mudanea radical na maneira de perceber esta obra. Seu caréter indecifravel, seu estatuto de enigma deixa- riam de ser relacionados a um programa iconografico que se pudesse atri- buir.a um quadro ou nao. Antes de tudo, a obra seria considerada em rela- do ao que ha de fundamentalmente mudo no signo indicial, o siléncio do 15 que Barthes denomina 0 “nada a declarar” da fotografia € a que se refere na sua conclusio: E precisamente nesta interrupcio da interpretacao que a conviecao da foto se afirma: cons ato a exaustio que aguilo foi: para qualquer pessoa que tenha un “crenga fundamental”, uma “Urdoxa” que nenhum ato pode desfazer, a menos que me provem que esta imagem nao € uma fotografia. (p. 165) ‘oto is mios, esta é uma. Os ensaios agrupados em O Fotogrdfico refletem o fato que, na qualidade de uma pessoa que escreve sobre arte (como critica € te6rica), foi precisamente esta substituicao das regras de indexacao pelas regras de ‘iconicidade’ empre- endida por Duchamp que me levou a falar de fotografia, foi essa substituicao que me permitiu ver até que ponto o exemplo do autor do Grand Verve (Grande vidro) revolucionou © trabalho dos artistas americanos de minha geracao. Analisar a natureza desta ansformacao implicava em que eu escre- vesse nao sobre a fotografia, mas sobre as condicaes indiciais impostas pela fotografia ao universo anteriormente fechado da arte. Falar nao da fotografia, mas da natureza do indice, da funcio de trago em sua relacio com o signifi- cado, da condicio dos signos dicticos. A producio estética contemporanea nao é, obviamente, o tinico terreno de aplicacio deste objeto teérico, o fotogréfico, nem 0 tinico territ6rio cujo campo de andlise ele possa reorganizar. Pode-se efetuar a mesma operacao de recali- bragem sobre dados histricos de movimentos anteriores, como o surrealismo, por exemplo, ¢ abrir caminho para uma forma inteiramente inovadora de enfocar conceitos como o acaso objetivo ou © automatismo, que tinhamos relegado a categoria do “que nao reserva surpresa”. Estes conceitos adquirem, porém, um aspecto muito diferente quando abordados a partir de nocdes como a de trazo, ou ainda a de duplo produzido de forma mecanica. Varios textos deste livro utilizam a fotografia como instrumento de uma calibragem teérica no sentido que atribuo a palavra calibragem e, ao adotar este procedimento, a tratam de viés, de algum modo. Alguns ensaios, entre- tanto, como os que refletem sobre Stieglitz ou sobre Irving Penn, abordam a fotografia de frente, sem rodeio, diretamente no cerne. Por ter ingressado no mundo da fotografia partindo da problematica do signo como indice ¢ me defrontado com o que parecia ser, queiram ou nao, um novo tipo de midia, minha primeira resposta foi interrogar a prépria midia, como teria procedido com qualquer outro suporte de imagem, para definir os critérios criticos que Ihe sio peculiares, De que maneira o fato de tratarse de uma fotografia ¢ nao de um quadro afeta 0 sentido desta imagem? Que categorias de condicdes for- mais vigoram em um caso ¢ no no outro? Em suma, qual é 0 ‘espirito’ pré- prio a fotografia? 16 } Encerrando: se nao me dei por inteiramente satisfeita com este projeto cri- tico sobre 0 objeto fotografico, isso se deve a razdes que, finalmente, se atéim a0 fato de que a fotografia € um objeto ‘edriw € incide de maneira reflexiva tanto sobre projeto critico como sobre o projeto hist6rico que a escolhem como objeto. Pois se é verdade que a fotografia teoriza traz uma nova confi- guracdo aos componentes de determinado perfodo ou estilo especifico da his- toria da arte, esta teorizaco também vale para as unidades através das quais a histéria da arte reflete tradicionalmente sobre o seu objeto, transformando em relativos conceitos como autor e obra. Mas, seja qual for a funcao critica que possa exercer a fotografia sobre a histéria da arte, ela também a exerce sobre sua propria historia, pelo menos na medida em que esta histéria se deixe interpretar em termos congruentes com os da hisiGria da arte. Assim, este objeto tedrico, o fologréfico, nos ensina a esséncia problemitica de toda hist6- ria da fotografia, como ja tinha tornado essencialmente problematica a trans- posicao do discurso critico da arte no plano da fotografia. Pode-se escrever uma histéria da arte, mas nunca ser o mesmo tipo de hist6ria que se escreve- 1A sobre a fotografia. Pensar sobre Os Espacos discursivos da fotografia, As Condicoes folograficas do Surrealismo, A Fotografia eo simulacro, mas nao sobre'a fotografia; estes ensaios gostariam de pensar a fotografia da tinica maneira que ela aceita ser pensada: através do viés de uma teoria dos distanciamentos. Notas: ou! a memoria da pessoa que a usa como signo, de 1, Index em inglés, no send de Peitce. “[Um ‘ouro.” Charles 3. Peitce, Bots sw le signe. Textos indice é] um signo ou uma iepresentagio que 0s _compilados, waduzidos ¢ comentades por Gerard Temete a0 seu objeto, nao tanto por possuir Deledalle (Paris, Seuil, 1978), p. 158. (Nota de qualquer similaridade ou analogiacom ele. nem —_traducao da edicao francesa) or estar asociado as caracteristicas gerais que acontece desse objeto posuir, e sim porque esti No sentido policial da palavra, clues em inglés em conexio dinamica (inclusive espacial) como (Nota da traducio francesa). Pistas (Nota de objeto individual, de um lado, ¢ com ossentidos —_tradugao da edicao portuguesa) 17 ! A EXPRESSAO “HISTORIA DA FOTOGRAFIA” REFERE-SE A UM OBJETO DE PENSAMENTO EXISTENTE? | we Seguindo os passos de Nadar Nadar escreveu suas memérias Quand j'étais photographe (Quando eu era fo- tégrafo) nos seus diltimos anos de vida, ainda em plena atividade profissional. O titulo do livro surpreende pelo uso do imperfeito ao referir-se ao passado ¢, de certa forma, assinala que se fechou um capitulo de sua vida. Ele utiliza este tempo verbal nao tanto como uma referéncia ao seu destine pessoal ou a evolucdo de sua propria carreira ao longo dos anos, mas como uma referénci A sua condicio de testemunha. O homem cujo nome de batismo era Gaspard-Félix Tournachon ¢ escolheu a alcunha de Nadar tinha clara cons- ciéncia de ter presenciado um acontecimento extraordinério e, tal como 0 sobrevivente de um cataclismo natural, sentiuse no dever de dar contas do acontecido; mais ainda, quis que seu interlocutor pudesse sentir a intensi- dade emocional, fisica ¢ psicolégica dessa aventura. Nadar escreveu suas memérias com a consciéncia do historiador ¢ aquela necessidade irresistivel de relatar das testemunhas oculares: seu texto € moldado por este senti- mento de responsabilidade. Esta € a razdio pela qual o livro é tao incomum. Foi organizado 4 seme- Than¢a de contos pitorescos, como se tivessem sido recolhidos e confiados & contadora de histérias local pelos habitantes de uma aldeia. Dos treze capitu- los do livro, “O primitivo da fotografia” é 0 nico que significa uma tentativa real de produzir algo semelhante a um relato hist6rico, Embora seja 0 mais longo dos treze, foi colocado quase no final do livro, apés uma série insupor- tavel de reminiscéncias totalmente pessoais, tendo, na maioria das vezes © no melhor dos casos, uma relacao anedotica remota com o assunto indicado no. titulo do livro. Talvez a obra tenha permanecido relativamente ignorada devido a sucessao, de anedotas sem plano definido, explicacdes arbitrarias, detalhes aparente- mente sem cabimento ¢ constantes digressées sobre 0 que seria aparente- mente 0 tema central. Publicado em 1900, nunca mais foi reeditado desde entio € 0s exemplares que subsistiram até os dias de hoje, além de raros, estao em péssimo estado de conservagio'. Além deste texto sobre fotografia, Nadar publicou outras onze obras, tendo sido um novelista fecundo e ensaista proficuo. Suas relacées com o mundo das letras nao se limitaram a amizade que cultivava com 03 mais importantes escri- tores de sua época. Nadar conhecia intimamente a arte de escrever, a cons- 21 trucao paciente e aplicada do sentido. Quando empreende um relato histéri co maneira de um romancista, o faz porque os fatos que espera preservar das destruigdes do tempo sao antes de tudo de ordem psicologica: “Quando correu a noticia’, diz ele, “que dois inventores acabavam de fixar qualquer imagem que Ihes fosse trazida em placas prateadas, espalhowse um espanto universal que nao podemos aquilatar hoje em dia, por estarmos to acostu- mados 4 fotografia ha muitos anos ¢ termos nos tornado indiferentes a ela em fungao de sua vulgarizacao”. (p, 1) Nadar desejava divulgar a importancia formidivel da descoberta e nao o “quem”, o “qué” ¢ 0 “quando” da fotografia. Depois de inyentos que mudaram 0 cotidiano do século XIx (a maquina a vapor, a luz elé- trica, o telefone, 0 fondgrafo, o radio, a bacteriologia, a anestesiologia, a psi- cologia), ele insiste em condecorar a fotografia atribuindo-lhe a palma de ori- ginalidade € pergunta: “Todos estes noves prodigios nao deveriam contudo inclinar-se perante 0 mais surpreendente, o mais perturbador de todos eles: 0 prodigio que, afinal, parece conceder também ao homem o poder de criar, materializando 0 exypectro impalpavel que desvanece tio logo entrevisto, sem deixar sombra no cristal do espelho nem frémito na Agua da bacia?”. (p. 4) © que Nadar observava retrospectivamente em 1900 era a transformacio deste mistério em fato rotineiro. Assim, concluiase um capitulo definitiva- mente, embora a propria atividade permanecesse inalterada. Se esta foi a men- sagem histérica de Nadar no comeco do século, ela merece toda atengao, par licularmente no momento atual, pois cabe a nos avaliar agora o imenso impacto da fotografia, a maneira como impregnow nossas sensibilidades sem que o percebéssemos realmente, além da utilizagao de estratégias profunda- mente estruturadas pela fotografia® no conjunto das artes visuais. Sao intime- ros os sintomas de percepeio deste fato por nossa cultura, espelhados na repentina multiplicagao de exposicdes, colecionadores, trabalhos université- tios € o sentimento cada vez mais forte de frustracdo no terreno da critica quanto a verdadeira natureza da fotografia, um pouco como 0 paciente que, depois de muito relutar, accita finalmente 0 diagndstico do médico e exige conhecer a natureza exata de sua doenca. Na qualidade de pacientes do ambiente cultural, queremos atribuir uma ontologia abordéla. O argumento de Nadar, porém, ¢ que a fotografia vem a ser um fendmeno historico, entre outras coisas, e que nao se pode portanto diseri nar 0 que é e 6 que foi em determinados momentos do passado, ap: uma sucessio de respostas que nem sempre foram idénticas. No seu ensaio, Nader trata a si mesmo como um paciente sob anilise, detendo-se & cavou- cando detalhes com 0 propésito de reencontrar um passado que €coa no seu préprio significado. ar as A fotografia antes de im tando 1 8 Nadar, reproducao de um retrato daguerrestive de Balzac Os trés primeiros capitulos da obra ilustram este método. O primeiro assue me como ponto de partida um objeto que pertence a Nadar: o tinico daguer- re6tipo conhecido de Balzac, comprado do caricaturista Gavarni. O segundo capitulo, motivado pelos sistemas de retransmissao de longa distancia como 0 telégrafo ou a TSF. (transmissio sem fio), traz 0 relato de um epis6dio de abuso de confianga que vitimou Nadar nos anos 1870. O tereciro, ao que tude indica, consiste de uma série de observagoes fiiteis quanto ao sucesso real da tecnologia aeronautica, que Nadar sempre defendeu em detrimento da tee- nologia dos acréstatos. Estes relatos, desiguais em importancia € cada vez ma distanciados da historia da fotografia propriamente dita, constituem um inicio de livro bastante estranho, em funco de suas diferencas e da impressio que a suscitam estar abordando um assunto afastando-se dele. Ha entretanto um elo que os une, um tema subjacente que Nadar descja valorizar, © capitulo sobre Balzac gira em wrno da reagao supersticiosa do romancista diante da fotografia, reacdo que o escritor formulou com algu- ma pretensio sob forma de teoria. Nadar, explicando a Teoria dos Espectros, ie em cada um dos Ora, segundo Balzac, cada corpo na natureza se compdc de sérics de espectros em ¢ das infinitamente superpostas, laminadas em peliculas infinitesimai sentidos em que a Gtica percebe este corpo. Como 0 homem jamais pode criar — ou seja, constitu Go, do impalpivel, ou do nada fazer wma coisa —, cada operacdo daguerreana vinha entio surpreender, destacar € reter ao aplicarse uma das camadas do corpo visado. De onde se conclui que 0 dito corpo, i cada nova operacao, softe a perda evidente de um espectro, ott |, uma parte de sua essncia constitutiva. (p. 6) algo sélido a partir de uma apa Em todo 0 resto de seu relato, Nadar mantém um tom carinhosamente zombeteiro, Théophile Gauticr ¢ Gérard de Nerval se apressaram a cerrar fileiras com Balzac, adotando imediatamente a mesma atitude em relacio aos espectros, ¢ Nadar prefere destacar a pose aletada dos dois discipulos do que eventuais diwidas quanto a falta de sinceridade do proprio Balzac, Nadar, homem de ciéncias, € magnnimo quando presta ouvidos aos fantasmas pri- mitivistas evocados por seus amigos escritores. Mas o segundo capitulo do estudo, "Gabezon vingado”, repete a mesma imaginaria cm termos diferentes. Nadar comeca por uma carta que um pro- vinciano chamado Gabezon the enviou nos anos 1850, Nesta carta, esse senhor solicitava que 0 fordgrafo fizesse seu retrato. Nada haveria de insolito no pedi- do a nao ser a crenca do senhor Gaberon: confiando nas garantias de um “amigo” de Nadar, ele acreditava que poderia tirar 0 retato em Paris sem pre- cisar sair de Pau. Nadar decidin desconsiderar este tipo de brincadeira nao respondendo ao destinatirio. Esqueceu toda a historia até que, vinte anos depois, apresentou-se um jovem no seu atelié alegando ter descoberto uma técnica que transformaria 0 desejo de Gabezon em realidade, ou seja, a foto- Srafia A distancia. Foi entiio que um grande amigo de Nadar, convencido pelo Jargio teenologico utilizado pelo rapaz para defender o que alegava ser pos vel, deixouse entusiasmar cada vez mais pela idéia de fazer a experiencia Nadar financiou © projeto sabendo que seria vitima de um golpe ¢ que nunca mais veria o jovem “inventor”. Nao ha qualquer elo explicito entre esta histé- ria € a teoria dos espectros, a nao ser a idéia subjacente no plano psicolégico, a saber, que Nadar tinha certeza absoluta da impossibilidade da fotografia & distancia, o que representa uma variacao da teoria sob 0 angulo da ciéncia. Comparavel aum enxerto fisico, a fotografia esta necessariamente em relacdo 24 A consciéncia da presenga fisica simultanea consubstancial da fotografia assume uma dimensao sentimental na historia da “Princesa cega”, que Nadar relata na seqiiéncia: nos anos 1870, os filhos de uma senhora cega a levaram ao atelié de Nadar para posar para um retrato. Como a dama pertencia a fami. lia real de Hanover, Nadar aproveitou a oportunidade para se informar sobre um jovem aristocrata que havia conhecido e © havia ajudado, dois anos antes, quando ele sofreu um extravagant acidente de bakio que o reteve nesta cida- de. Sentiram simpatia um pelo outro por compartilhar © mesmo menosprezo pelos aeréstatos ¢ a mesma conviccio de que era possivel fazer voar engenhos mais pesados que 9 ar. Como Ihe chegara aos ouvidos que 0 jovem aristocrata estaya no exilio por ter matado alguém em duelo, Nadar perguntou a um dos filhos da princesa se a informagio era correta. O aspecto dramatico da per- gunta, que por sorte a princesa nio ouviu, estava. em que a vitima do referido duelo era o primogénito da princesa. A funesta noticia Ihe tinha sido oculta- da até 0 momento e a pergunt: ja por ela, terthe-ia revelado a morte do filho. Nadar rememora seu préprio constrangimento ¢ termina o relato com uma série de reflexdes sobre os desdobramentos psicol6gicos ¢, portan- to, sobre © poder potencial das circunstincias que rodeiam o ato de fotogra- far, que chegam a afetar a vida de uma pessoa pela “eventualidade de uma s6 palayra pronunciada por acaso em visita fortuita no atelié de um fotdgrafo num pais estrangeiro”. (p. 50) A idéia central desta conclusio € que as mudancas acarretadas pela indus- trializaco em todos os niveis da sociedade atropelam as distincias ¢ provocam a implosio na repartic’o das classes sociais, fazendo com que um aerdstato francés se veja atendido por um membro da familia real da Alemanha e uma princesa se entregue a esta nova atividade mundana, posar para um retrato fotografico. Quando descreve em forma de historia a intimidade decorrente da situacao fotografica, Nadar se interessa novamente pela proximidade fisica, condicio absoluta da fotografia, ¢ pelo fato de que ela depende de um inter cambio entre dois corpos. em um sé lugar, sejam quais forem os demais siste- mas de transmissao de informacao. ow Nestes trés capitulos, Nadar circula portanto em torno do que the parece sero cerne da realidade da fotografia, qual seja operar através da impressio, da marca € do traco. Como semidlogos, diriamos que Nadar define o Signo. “fotografico como indice, como marca significante cuja relacao com aquilo que representa é a de ter sido fisicamente produzida pelo seu referente. Descreve- riamos em seguida a dimensdo limitada de significado que pode possuir este tipo de signo'. Nadar, porém, nao era semidlogo ¢, embora convencido da 25 natureza indicial da fotografia, de seu estatuto de traco, as inferéncias que parece ter feito sao mais peculiares ao seu século do que ao nosso. No principio do século xix, 0 traco nao era apenas considerado como efi- gie, fetiche, pelicula descolada da superficie de um objeto material e deposi- tado em outro lugar, Era aquele objeto material tornado inteligivel. Supunha-se que 0 traco devesse agir como presenca manifesta do sentido. Ocupando um lugar até certo ponto estranho na confluéncia de ciéncia ¢ espiritismo, 0 traco parccia participar em igualdade de condigdes do absohuto da matéria que pregavam os positivistas ¢ da ordem de inteligibilidade pura dos metafi- sicos — sendo esta tiltima inacessivel a qualquer andlise materialist. Nin- guém parecia ter mais consciéncia do fato que Balzac, na qualidade de autor da Teoria dos Espectros Quando Barbey d’Aurevilly afirmava com ar depreciativo que Balzac havia feito da descricdo a “doenca de pele dos realistas”, criticava justamente a técnica de que Balzac tinha mais orgulho, a que Ihe permitia vangloriar-se de ter previsto a invencao do daguerrestipo. A descricio escrita tinha por objetivo descolar a superficie de um sujeito ¢ wansferi-lo para a pagina de um romance, porque Balzac acreditava que esta superficie falava de si como representacio estritamente fiel do homem interior, “A vida externa, escre- veu, é uma espécie de sistema organizado, que representa um homem com a mesma exatidao que as cores do caracol se reproduzem em sua concha”. A retomada ¢ adaptacao constantes desta metifora produzem o tipo de per- sonagem da Comédia Humana, de quem se pode afirmar que “sua roupagem combina tanto com seu modo de ser ¢ com seus defeitos, expressa sua vida com tamanha perfeigao que dé a impressio de ja ter nascido vestido™. Assim, por mais excéntrica e extravagante que nos possa parecer a Teoria dos Espectros 4 primeira vista, a idéia segundo a qual o homem seria c taido de uma série de imagens representando-se a si mesmas ¢ descascando umas apés as outras ndo é senao uma versio mais estranha do modelo do faracol, modelo esse escolhido intencionalmente ¢ que teria supostamente a tarefa de divulgar a autoridade da ciéncia, dadas as suas ligagdes com as ciéncias naturais. Balzac e cansava de explicar que a descricio fisica, em cujas malhas depositava a esperanga de aprender os caprichos do carater, tinha sido testa- da nos laboratérios de fisiognomonia’. Embora tenha caido no esquecimento, © livro A arte de conhecer 0s homens pela fisiognomonia (1783) de Johann Gaspar ganhou um prestigio consideravel no século xix", Como o titulo dé a enten- der, a fisiognomonia implicava na decodificacdo do ser moral e psicolégico do homem a partir de suas caracteristicas fisiolégicas, de que se pensava serem indicadores, De acordo com esta leitura, kébios finos, por exemplo, eram sind- nimos de avareza, Balzac nao escondia que havia construido suas personagens 26 tanto a partir de incursdes nos dez volumes das obras dp Lavater como recor- rendo As suas préprias abservacées. O préprio Lavater havia preparado 6 terreno para Balzac e sua ampliacao da fisiognomonia a um sistema de signos indiciais ou tragos fisicos que abar- cava muito mais que a forma do cranio ou a configuracao da boca como reve- lagdes do caréter humano, Os Ensaios Analiticos de 1830, a exemplo dos “Estudos dos costumes através das luvas” ou “A fisiologia do charuto”, sao glo- sas balzaquianas elaboradas a partir do tipo de idéias que rondavam Lavater quando escrevia: E verdade que tudo o que ha em volta do homem o influencia mas, de outro lado, ele por sua vez, exerce influéncia sobre os objetos exteriores e, se € verdade que se modifica com eles, também os modifica. Dai decorre que ainda é possivel julgar o cariter de um homem por set traje, sua casa, seus méveis.[..] Situado num vasto universo, o homem organiza um pequeno mundo a parte que consolida, recorta, ajeita ao seu modo ¢ no qual reencontra- ‘mos sua imagem’ Na sua opiniao, 0 cardter era comparavel a um gerador de imagens proje- tadas no mundo como sombras muiltiplas de seu sujeito. Nao é portanto de surpreender que Lavater tenha se interessado pela arte relativamente menor da silhueta, porque os retratos de perfil eram a materializacao literal da som- bra projetada. O proprio nome “physionotrace” leva a marca de Lavater. Tratase de uma espécie dé producio em 1786 de silhuetas através de meios quase mecinicos, ¢ que consta na maioria das hist6rias da fotografia como precur- sora das aspiracées (quando nao fosse do préprio processo) que tornaram inevitavel o descobrimento da fotografia. Mas seria possivel extrair outros beneficios do estudo s ico das mar- cas fisiognomdnicas além das que tirou o positivismo. £ esta outra possibilida- de indicada por Balzac quando fala do dualismo de seu interesse por esta ciéncia, que herdava um aspecto da obra de Lavater € outro da obra de Swedenborg. Com efeito, quando Erich Auerbach analisa a técnica de Balzac no seu livro Mimesis, ele escolhe um trecho em que estado presentes 2s duas facctas, porque por tras dos detalhes de vestudrio ¢ compostura com os quais Balzac mostra a cobica dos pequenos burgueses ¢ a esperteza da dona da pen- sao onde esti alojado 0 Pai Goriol, percebe-se um conjunto de imagens oriun- das de um registro de estudo completamente diferente, imagens que criam a impressao de algo espectral ¢ repugnante. Escreve Auerbach que “estas ima- gens formam uma espécie de segundo significado, distinto de seu sentido racional € muito mais importante do que ele, que seria mais bem designado pelo adjetivo ‘endemoniado™; acrescenta ainda: “Estamos portanto lidando aqui com uma entidade de lugar determinado, sentida como uma sintese organica, diabélica ¢ traduzida por uma sugestao inteiramente sensorial!””, ema 27 Uma sesso de espiritismo no século ux Para elaborar a Teoria dos Espectros, Balzac precisou de um s6 elemento que suplementasse 0 sistema dos jognoménicos de Lavater, um ele- mento que (ransformou 0 conceito de manifestagdes fisieas do. carater em uma idéia do homem visto como wn conjunto de imagens espectrais. Este elemento és luz. Aluz 6 0 meio através do qual efet rentemente magica realizada pela fotografi do a terminologia de Nadar, se faz “do nada uma coisa” A luz, chave mestra do sistema de Swedenborg, er tracos ava-se a transferéncia apa- ilizan- © meio através do qual, u «4 portanto esta passarela entre o mundo das impres ses sensiveis € 0 mundo do espirito. Era sob a forma de imagem luminosa que 0s defuntos escolhiam fazer suas aparicées como espectros nas sessbes de espi- ritismo no século xix. Apés 1839, 0 pensamento légico s6 precisou dar um mintisculo passo para conceber o registro dessas aparicOes atravé fotograficos. Huysmans descreve a ‘fotografia dos espiritos’ em Li-bas (LA longe) e, em 1882, Georgina Houghton publicou com a maior seriedade um livro cujo titulo era Chronicles of the Photographs of Spiritual Beings and Phenomena Invisible to the Material Pye (Crénicas das Fotogr Fendmenos Invisiv de meios ias de Seres Espirituais ¢ é s a0 Olho Fisico), Uma das propostas mais descabidas, porém mais reveladoras de possiveis aplicagdes da fotografia, foi a idéia suge- rida pela primeira vez nos anos 1890, a da fotografia pos-morte. Assombrosa pela sua racionalidade demente, consistia em positivar uma fotografia tirada da pessoa em vida utilizando as cinzas do defunto: “As cinzas iro aderir as par- 28 tes nado expostas a luz ¢ obter-se-4 um retrato inteiramente composto pela pes- soa que ele representa""” / A fotografia de espiritos era com toda evidéncia uma idé propositadas ¢ foi pouco praticada. Contudo, com a industriali retrato fotografico ocorrida nos anos 1860, surgiu a producao em massa de fotografias de pessoas em seu leito de morte. O retrato mortuirio é um fend- meno mencionado na maioria das historias da fotografia, mas elas nao se detém no assunto. Subsistiram pouqiissimos destes desconcertantes objetos de curiosidade nos dias de hoje, em comparacao com a vasta producio da época. A encomenda de fotografia mortuaria era no entanto uma das prin- cipais atividades'? do fotdgrafo comercial do século XIX. Nossa incapacidade ual para considerar este fendmeno com outra postura senao a de julgé-lo macabro prova até que ponto estames alheios a uma parte crucial da hi da fotografia, precisamente a que Nadar pretendia evocar com suas lem- brangas, ja das mais des- 0 do Loria E ficil wratar com condescendéncia o clima de mistério que envolveu o sur gimento da fotografia ¢ autorizou algiumas de suas mais estranhas praticas pos- teriormente. No entanto, esta sen: tos mais sérios dos primeiros fordgrafo: que 6 mais dificil de entender. Do mesmo modo, também nao podemos con- siderar sendo como um ato de piedade na dimensio da histéria literaria a inacreditavel notoriedade que teve Swedenborg a época. Pode ser ttil wacar um paralelo entre 0 fato de Nadar iniciar seu texto a respeito de fotografia ‘swedenborgianas” & 0 de mistério se constitui num dos pec- incluindo-se Nadar, ¢ é essa seriedade com uma descricdo de Balzac sob uma Stica das mais Emmanuel Kant principiar sua carreira com uma obra de titulo Os Sonhas de wn Visiondrio, um texto inesperado sobre Swedenborg. Ao uagar este paralclo, nae quero apenas chamar a atengio do leitor sobre o prestigio de Swedenborg e a notoriedade € respeito de que foi objeto nos iiltimos anos do século xvi, 0 que fer dele um foco de estudo de estranha duragao pi Swedenborg em Os Sonhos de um Visionario © 0 motivo para da de investir contra o grande vision era ditado pelo mundo dos Espiritos. Es solucdes formuladas por Swedenborg respondem com perfeita logica aos pro- blemas da metafisica do século xvi. Para Kant, o sistema apresentado por Sweclenborg em Celestia ma metafisico. Por que nao escrever sobre Swedenborg, indaga Kant, “como a filosofia a que [..] demos precedéncia neste [estudo]? Ela também é um conto do ‘pais do faz de conta’ da metafisica, portanto nao vejo inconvenien- te em fazé-las avanca 5° Kant encerra 0 raciocinio observando que ‘As qui relativas A natureza espiritual, liberdade, determinacio prévia, ‘ao jovem Kant. Ele explica com clareza sua decisao de atacar se ao trabalho , que se ocupava em escrever o que Ihe ir ta dccisio surgiu pelo modo como Arcanum nao € mais errado que qualquer outro siste~ aos pares. 29 vida fucura e assim por diante ativam de imediato todas as faculdades do entendimento; elas sio tao elevadas que atraem os homens a assaltos de espe- cula¢do, em que eles subtilizam e decretam, dogmatizam ou refutam (¢ tudo isto indistintamente), como € lei em tode conhecimento ilusério."” Contudo, 0 argumento relative a Swedenborg aproximase mais do cerne do problema. Que o resultado de seus esforcos tenha sido ridiculo é algo que pouco importa. A questio que os desencadeou originalmente era das mais sérias para o fundador da filosofia analitica: como encontrar dados que com- provem a existéncia de um mundo inteligivel (em cont simplesmente material ou sensivel)®. Os trabalhos de Swedenborg, cientista que se tornou mistico, sio um hino inteligibilidade. Eles giram, como ji mencionei, em torno do problema da luz. Partindo da vise corpuscular da luz de Newion (para ele, a luz se compée de particulas infinitamente pequenas) ¢ associando a id tesiana de que a matéri is ao infinito, ele chegou a conceber a luz como um espectro originado no mundo dos sentidos que se esfuma no mundo dos Espiritos. Como a luz — na sua parcela divina — esta sempre presente no universo, pode-se considerar © préprio universo como sistema de simbolos, um vasto hierdglifo em que a leitura do divino torna-se possivel. A mensagem de Swedenborg é a legibilidade do mundo. O Cdestial Arcanum demonstra em grande escala a forma como as proposigdes da esfera natural encontram equivaléncia na esfera do espi O mundo visivel é novamente um mundo de tracos onde © encargo de impressionarse no visivel. “E uma lei permanente da matéria orginica, afirma Swedenborg, que vastos corpos compostos ou formas visivel existam e subsistam gragas a formas menores, mais simples ¢ até invisiveis, que desempenham uma agdo similar a dos grandes conjuntos, com a diferenga que se deslocam por todo lugar ¢ sem a menor dificuldade, ¢ isso.a tal ponto que implicam uma idéia representati comenta este wecho em 1850, explica: “O que era por demais pequeno para ser detectado pelo olho era lido pelos aglomerados; o que era grande demais, pelas unidades'®.” Portanto, é a visibilidade do mundo das coisas em si que preocupa Swedenborg, bem como a demonstracdo do como isto se torna pos sivel pela acio da luz, que age sobre os fenémenos para produzir uma ima- 17 oa. um mundo. surpreendente 4 care se compée de particulas fragmenta invisivel recebe is bs ea de todo seu univer 0”, Emerson, que A fotografia nasceu nos anos 1830, “surgindo sem ter sido prevista, fora de qualquer expectativa”, como diz Nadar, Pelas primeiras reagdes diante deste acontecimento, € possivel imaginar os temas do espiritismo, porque, pela pri- meira vez, demonstravase que a luz podia verdadeiramente “exerce acio [...] suficiente para produzir mudangas nos corpos materiais..." uma 30 William Henry Fox Telbot, Cena em uma biblioteca (Prancha Vill da obra The Pencil of Nature, 1844) Estas tiltimas palavras sfio de Fox Talbot, publicadas em 1844 em The Pencil of Nature (O Lapis da Natureza), um livro concebido a semelhanca de uma aula sobre as maravilhas ¢ as possibilidades da fotografia. A primeira vista, nao hé qualquer motivo para pensar que esta declaragio de Fox Talbot sobre a luz seja algo além do comentario de um homem de ciéncias. O carater bizarro de determinadas ilustracées, que formam a maior parte da obra, incita entretan- to a ver nessa declaragao tonalidades metafisicas. O essencial das ilustracées corresponde exatamente ao que seria de se esperar em uma obra deste tipo: edificacdes, paisagens ¢ reproducdes de obras de arte, Mas determinadas imagens sio algo estranhas. Uma delas, a ilustracao VIII, tem o titulo de “Cena em uma biblioteca” e apresenta duas prateleiras de livros de frente e em primeiro plano. Minimalista ao extremo, esta imagem nada tem de original esteticamente ou digno de nota seja como for. Para obter uma explicacao de seu significado, nos voltamos para 0 texto de duas paginas que a acompanha: Dentre as numerosas novas idéias nascidas com a descoberta da fotografia, encontrase una curiosa experiéncia ou hipdtese de que vou falar, Na realidade, cu mesmo nunca a pratiquei e, até onde sei, tampouco ninguém mais tentou realizi-la ou propé-la. Penso no entanto que temos nao podera fathar, Quando um raio de luz solar é refratado por um prisma ¢ projetado em uma tela, forma sobre ela a maravithosa faixa color experimeniado uma experiéncia que, se for conduzida de forma corre ahecida pelo nome de espectro solar. Os descobriram que se este espectro for projetado em uma superficie de 31 papel sensivel, a extremidade de cor violet produzira o mente, certos raios invisfveis, situados lem do violeta € dos limites do espectro, geraraio um efeito semelhante, tendo sua existéncia revelada a nds por este efeito. Entio minha pro- posta seria a de separar estes raios invisiveis dos demais fazenclo com que passem por um aposento contiguo por meio de uma abertura na parede ou no painel de separacio. Este aposento se encheria entio de raios invisiveis (no podemos afirmar que ficaria ilum m em todas as direpdes por uma lente convexa colocada auras da 1m se ver &, portanto, uma tiraria seu retrato ¢ revelaria 0 que naior cfeito ¢, surpreendente- nado), que se difundi abertura, Se houvesse pessoas nese aposento elas no poder maquina fotografica apontada para qualquer uma de esta pessoa estava fazendo. Com efeito, retomando uma metifora que ja utilizamos, 0 olho da maquina forogrifica poderia enxergar nitidamente em locais onde o olho humsano nada veria sendo trevas. Infelizmente, porém, este raciocinio é por demais refinado para ser inroduzido com proveito em algum romance realista ou hi aria. Pois que desfecho bbterfamos se pudéssemos imaginar que os segredos do quarto escuro se revels temunho inscrito em papel!" 6ria moderna de vam por tes Do comeco ao fim da obra de Fox Talbot, as fotografias servem para ilus- trar os argumentos desenvolvidos no texto a maneira de demonstracao ou de aula de ciéncias naturais. A fotografia de um monte de feno, por exemplo, fornece a prova visual da afirmacio de Talbot de que a imagem mecanica pode trazer uma infinidade de detalhes em um s6 conjunto visual, enquanto a visio natural do ser humano tende a resumir e simplificar em termos de mas- sas. Como a reflexao precedente sobre “raios invisiveis” se encerra com uma referéncia romanesca, cabe-nos indagar se a fotografia de livros que a ilustra representaria aqueles romances. Talbot, porém, fala de obras que ai foram escritas: de chofre, 0 estatuto da fotografia como ilustragao torna-se mais complexo. A fotografia dos livros sendo a encarnagao de uma projes4o especulativa, seu papel € conceitual em determinado nivel. Este papel imposto ao objeto fotografico esta no entanto totalmente integrado ao tema da referida imagem Com efeito o livro, como continente da linguagem escrita, € © lugar onde resi- dem signos totalmente culutrais, em oposicao aos signos naturais. Operar com a linguagem significa possuir a faculdade de conc ceder a abstracoes, postular ¢ ultrapassar os objetos a que a visio tem acesso, claro. A escrita é a transcricdo do pensamento, ¢ nao apenas 0 trago de um objeto material. Além do mais, 0 tipo de waco fotografico postulado por Talbot, descrito como ele o faz, deve também ser uma transcri¢do do pensamento ou.ao menos de fendémenos psicologicos habitualmente yelados, As fotografias tiradas por intermédio dos “raios invisiveis” poderao revelar as atividades em um “quarto escuro”. Se aplicadas de acordo com a previsio de Talbot, nao se contenta apenas em manifestar 0 comportamento, mas também o seu sentido. da nao ‘ar, OU seja, evocar, pro~ 32 Nadat, Victor Hugo em seu leito de morte, 1856. Neste cendrio que prevé um traco preduzido por raios invisiveis, o “quar- to escuro” parece servir de referéncia tanto a camera obscura, por ser ela parente histérica da fotografia, quanto a um outro lugar escuro de natureza completamente diferente: o espirito. Seria efetivamente necessirio um tipo de luz bastante especial para penetrar neste lugar “por uma abertura” € cap- turar por meio de suas emanacdes o que ali acontece através de uma série de tracos. E em especulacées do tipo de The Pencil of Naiure que penso quando falo das sérias ambigdes de alguns pioneiras da fotografia. Essas especulacdes dao por assimilada a inteligibilidade inerente do traco fotogrifico, pressuposicao que depende, por sua vez, dos conceitos do pensamento do século XIX que acabei de enumerar, qual seja o traco fisiognoménico e seu poder de revelacao, assim como o poder da luz para uansmitir 0 Mas para Ii Ora, perfodo que nos interessa € que esta unio gerou uma rica descendéncia. visivel ¢ imprimilo aos fendmenos. gar todas estas nocoes entre si, € preciso unir ciéncia e espirit bemos que este casamento ocorren em mais de uma oportunidade no mo. Minha tese que, enquanto tal, a concepcao que se tinha de fotografia nos seus primérdios tem aqui suas rafzes. E Nadar, em meio a tudo isto? Afinal de contas, no pertencia 4 geracio de Talbot ou Balzac. Os “primitivos da fotografia” eram seus pais € mestres, nao seus irmaos. A julgar por suas lembrancas e pratica fotografica, estava dividido quanto aos resultados esperados da questio “metafisica”. Ele tinha perfeita consciéncia do estatuto de traco da fotografia, mas tinha igual conviccio de seu contetido psicoldgico. Exidentemente, estava longe de fazer disso uma lei- tura espiritista, como demonstra nao somente a forma como tratou a teoria de Balzac, como também sua recusa singular de participar da indistria do retra- to funcrario. Contudo, embora rejeitasse as premissas em que repousam tais suposicdes, de certa forma desejou reconhecer sua existéncia e utilizé-las como tema: uma das rarissimas encomendas de retrato funerario que consen- Gu produzir foi a fotografia de Victor Hugo no seu leito de morte ( escritor participava de sessoes de espiritismo); Nadar escolheu as catacumbas de Paris como tema de sua primeira série de fotografias subterraneas, onde esqueletos empilhados constituem por si, de maneira arqueolégica, seu proprio arquivo da morte; enfim, como que para prestar uma espécie de homenagem espect- fica a0 tema, Nadar comeca suas memérias pela Teoria dos Espectros. Criticar um tema nao significa necessariamente destrué-lo. Por vezes, como no caso dos Sonhas de wm Visiondriode Kant, isto equivale a wansform: do um deslocamento até uma nova maneira de interrogélo. Para Nada, a questao do traco inteligivel permanccia aceitavel como base estética (mais do que real) da fotografia, Em outras palavras: 0 fato da fotografia waduzir os fendmenos em termos de sentido é uma condicdo possivel, mas nao necessa- ria a sua existéncia, ‘A melhor ilustracdo das primeiras ambig6es de Nadar na matéria encontrase em uma série de fotografias tiradas quando ele e seu irmao Adrien Tourna- chon ainda trabalhavam juntos. Esta série de imagens, chamada “Express6es de rosto de Pier", foi apresentada na divisto fotografica da Exposicao Internacional de 1855, onde ganhou uma medalha de ouro. Elas trazem 0 rosto do mimico Charles Debureau atuando as diferentes mimicas faciais de seu repertério ¢ se apresentam como registro € duplicacio do taco fisiolégi- co que © mimico produz com seu desempenho. Pesquisas recentes chamaram a atencao sobre 0 inicio de relagéo que se estabelecia entre a fisiognomonia € a arte da pantomima® em meados do século xix. Champfleury, por exemplo. estudlava a possibilidade de um jogo que uniria a especificidade fisioldgica de um traco revelador do carter A gestualidade altamente estereotipada do mimico tradicional"! nas obras que escrevia para Debureau. Ora, € claro que representar o traco fisiognoménico pela mimica implica em fazer com que este fendmeno passe por um filtro estético. Isto porque, no lo fazen- 34 seu papel de ator, 0 mimico deve transformar 0 automatisno do taco, suas taracteristicas de impressio mecanica em um conjunto de gestos voluntarios ¢ controlados, nesta linguagem que Mallarmé nomearia posteriormente “escrita”™. ‘As imagens de Debureau deixam wansparecer a relacao explicita entre a estetizacdo do traco pelo mimico ¢ a forma similar e extremamente conscien- te com que procede a fotografia. Em uma destas imagens assinadas como ‘Nada jovem’ (Adrien Tournachon), podemos ver Debureau com uma maquina fotografica imitando o registro de sua propria imagem. Neste cliché, ‘a luz, forma de “escrita” especifica da fotografia, desempenha um papel im- portante, Com efeito, enquanto 0 mimico representa seu papel na imagem, Score a projecao de uma série de sombras espalhadas por seu corpo; elas for- mam uma mensagem subjacente, percebida e transcrita simultaneamente. Gomegando pela cabeca, 0 rosto de Debureau, branqueado de antemao pela maquilagem, perde mais relevo ainda em razdo de uma iluminagio muito dura. Este efeito, acrescido A sombra nitida, precisa, que isola visualmente 0 rosto do resto da cabeca, reforga sua qualidade de mascara. Tanto é que esta superficie, embora pertenga a cabeca, também pode funcionar independen- temente dela (0 rosto enquanto nvéscara) ¢ constitui um lugar onde taco fotogrifico surge como signo. Para que sua postura possa trad fisiognoménicas, Debureau nao precisava desempenhar apenas o seu papel, mas recompor artificialmente 0 seu rosto (como por exemplo no momento em que procurava imitar os labios finos da avareza) em um gestual efémero que encarna a fisiognomonia “falando~ Em seguida, o disfarce de Pierré utilizado pelo mimico se transforma na superficie branca sobre a qual se projetam as sombras, criando assim um segundo conjunto de tracos que duplicam dois dos elementos essenciais para a imagem: a mio de Pierrd que mostra a maquina fotografica ¢ a propria maquina, este instrumento que é, a um tempo, sujeito de gestual do mimico ¢ objeto que o registra. Sobre a superficie formada pela roupa, estas sombras, que combinam em uma substincia visual (iica a linguagem gestual convencio- nal (mostrar com o dedo) € um mecanismo técnico de registro (a maquina fotografica) assumem um carater de simples tracos efémeros. Mas, por tiltime, a superficie onde estes miiltiplos tracos nao esto apenas formados como tam- bém fixados vem a constituir a imagem fotografica em si. A idéia da prova fotogrifica na qualidade de lugar extremo do trago taba Tha nesta imagem de duas maneiras e em dois diferentes niveis de articulacao. © primeiro nivel é 0 do sujeito do tema da cena (subject matter), ou seja, de algum modo, a encenacio da imagem. O segundo nivel opera por intermédio de uma reflexdo acerca do papel da sombra projetada: é o funcionamento da imagem em si. ir as marcas 35, No primeiro nivel entagao da reflexibilidade em que 0 mimico desempenha ao mesmo tempo © papel de fordgrafo ¢ fotogra- fado. Ele pousa ao lado da maquina fotogrifica ¢ cria esta figura peculiar da F 1 acia onde a linha que une sujeito € objeto se volta sobre si para term encontramos uma repres consci nar © recome ciéncia de verse enquanto é visto, de produzirse como aquele para quem se olha, Eyide: tografada. f, somente porque Debureau 4r no MesMo ponto, O mimico joga com o fato de ter cons- temente esta duplicacio ndo poderia acontecer se nao fosse fo- b sujei © real [the actual subject] da spelho presentasse imagem — tendo atiado no papel de fotdgrafo © atuando para o fotogr em um paleo comum, nao have fico — que se coloca a questo do duplo. Se Debureau se : a qualquer efeito de duplicagao, ¢ ele nio a repre- a que se faria outra col sentar sil produzir frente a um espelho. Neste caso, por dois atores diferentes: um na “vida” real e outro no espelho. A prova foto- nia um espetho, é tamb a nio ser atuar como o personagem do fotégrafo. nultaneamente a captura de sua propria imagem, ele ter ja sob a forma de ml. aparece! grafica, por ser cla mes existir uma absoluta simultaneidade entre objeto e sujeito, ou seja, um lugar em que se pode produzir uma duplicacdo que implica em colisio do espaco. Portanto define-se aqui a ime logicamente dinico. Depois, em um segundo nivel, o do funcionamento da imagem, sio as som- m 0 tinico lng: em que pode im fotografica como um tipo de espelho bras projetadas nas roupas de Deburcau que darao vida ao tema do duplo & do espelho. Eu disse que estas sombras projetadas por dois objetos distintos (os gestos do mimico ¢ a maquina fotogrifiea) se combinavam sobre uma superficie fisicamente independente para produzir uma relacic pecifica, uum sentido que faz aparecer © personagem duplo do mimico. Mas a sombra € © fotogr traco fotografico, enquanto sombra projetada, € produzide pela projecio em si uma espécie de traco, agente duplo do t ‘fico. Isto porque 0 luminosa de um objeto sobre uma outra superficie. Aqui, a idéia de espelho ta fotogra se integra ao tecido sciniolégico da imagem: es fia é um espelho de corpo do mimico porque ela ¢ a superficie que receberé o traco Tuminoso como conjunto de signos transladados, mas, sobretudo, como superficie onde sua relacto podera se cristal ar em Conjunto significante. Assim, a aspiracio desta fotografia ¢ a dle ultrapassar seu estatuto de simples . ela representa a fotografia ». A imagem fotografic lo passivo do jogo do mimico. Supostament em si enquanto espelho complex: duplo pelo viés das sombras projetadas poe em prio processo de constituigao em waco luminoso ¢ seu estatuto de campo de a que ecoa o tema do 1a, @ uum sé tempo, seu pro- Adrien Tournachon, > Charles Debureau, c. 1854 36 \ signos fisicamente transladacios. Seria o mesmo dizer que, aqui, nao se registra apenas a duplicaco, ela também é recriada por meios intrinsecos 3 fotografia, a saber um conjunto de signos puramente produzidos pela luz. Na breve reflexdo desenvolvida por Talbot em torno da “ biblioteca”, a camera obscura surge como dupla metifora do mecanismo regis trador € do espirito. Na fotografia de Debureau, © vinculo implicito dessa metafora se expressa gracas 4 imagem do espelho, ela propria metéfora deste olhar reflexive que é a consciéncia. Se © traco (que também é uma sombra) tem a possibilidade de se desdobrar ao mesmo tempo como sujeito € objeto de seu proprio registro, pode entio comecar a funcionar como signo intel vel. ‘Ao utilizar termos como “consciéncia” ou “reflexibilidade” para falar desta imagem, entenda-se que estou fazendo uso da linguagem do modernismo e isto pode parecer injustificado se levarmos em conta a direcio que a producao. fotografica essencial de Nadar tomaria durante a maior parte de sua vida. Contudo, quando ressalto a atitude com relacao ao traco, caracteristica desta €poca fascinada tanto pela ciéncia como pelo espiritismo, é porque estou ten- tando elaborar um quadro muito particular em que possa colocar esta ima- gem. A genealogia da atitude analitica, de que ela oferece um exemplo pecu- liar, s6 tem pertinéncia em relacio com a forma particular da fotografia para formar suas imagens. O tipo de contexto cultural que péde dar origem a esta fotografia, que péde tornar a imagem de um mimico pousando ao lado de uma maquina fotografica algo to cheio de conotagdes € completamente alheio ao nosso contexto atualmente, mas nao é 6 isso. Parece que também Nadar sentiu essencialmente a mesma coisa na época em que redigiu suas memérias — ou pelo menos quanto ao acesso permitido pelas lembrangas, Contudo a persisténcia de Nadar em tentar evocar este ambiente vem nos lembrar que as midias estéticas apresentam uma histéria surpreendente e, também, que seu futuro € incerto: dificil prever, impossivel confiscar. Notas: 1. Ponite depotstda publieagio do-texto de 4, Nosseus ensaies, Roland Barthes analisa estes Rosalind Kranssagbra de Nadar forreimpressa mites, auribuidos por ele ao estauuto de na colecao Les Inuowvables,éditions daujourd'hui, —"iiensagem sem cSeligo” ea fotogeaia. Ver “Le Plan de Ia Tour, 1979, (NcT. da edigho Message Photographique”, Communications (1061) ieee € *Rhétorique de Fimage” Communicetions 4 (1954). Sobre o indice, vera definicao p. X 2. Ver R. Krauss, “Notes sur index”, revista V Macula, 1979. pp. 165-1 5, Honoré de Balzac, “Traité de la vie élégante”, Oeuvres complits, vol. XX (Paris, Calman-Levy, 3. A cidade de Pau situase aos pés dos Pirineus IS71), p. 504 (Nota de wraducao da edicao portuguesa). 38. 6. Gilbert Malcolm Fes, The Correspondence of Physical and Motorial Fecters with Characters in Baka (Philadelphia, University of Pennsylvania, Series in Romantic Language and Literature, 1924), p..90. 7-H infimeros exemplos. Eis um deles, que figura tno Théove de le démarch, de 1838. “Conturto Lavater afirmou antes de mim que, ja que tudo € homegéneo no homem, seu modo de andar deve ‘ser pelo menos tio elogiiente quanto sia fisionon © modo de andar é a fisionomia do corpo. Ma guile era uima deducao natural de sua primeira proposicio: Tudo em nés corrsponde a uma cosa Jnlerna™, Balzac, Oeuvres compléte, wo. XX, p. 568. 8, A fim de situar comenientemente a fisiognomonia no ponto de convergéncia que ela havia construido e defendia com firmeza enue ‘anatomia, psicologia e Blosofia moral, & sul Considerar a necessicade que teve Charles Darwin de atacar esta “ciéncia” nos anes 1870, No esmdo titulado A Expessio das emardes xo homemte nos ‘animeis (1872), Darwin langa uma ofensiva contra a fisiognomonia porque ela representa um dos _principais baluartesda oposicao a teorta da ‘evolupao. A fisiognomonia, que partia do principio, ‘que a maioria dos mésculos faciais do homem ‘existia somente para “expressar” seus estado. internos, limitava seus estudos a esta tnica museulatura, considerada por ela como eterminada pela espécie. Em outras palavras, a ia de que cada espécie, inclusive o home tinha aparecido no seu estado atual, © a idéia de que amusculatura da especie humana havia sido ‘especialmente forjada para ser insrumento da, Sinica capacidade dle sentir © expressar — apadidade eam que o homen ike compar ‘com qualquer animal inferior — se reforsavamm mutuamente. Essa eapacidade provinha nio apenas de uma estratura psicol6gica muito mais rica e complexa que a das outras espécies, como ainda da alma, no final das contas. Para os Aiscipulos desta teoria, o ato de enrubesces, ‘por cxemplo, dereria ser interpretado como ‘manifestagio de uma vida moral que nenhuma espécie animal inferior possi. 9, Johann Gaspar Lavater: L'rt de connaits es ‘hommes par ta phsionomie, vol. I (L. Prudhomme, Lesrault: Schell et Co, 1806), 9. 127 10. Erich Auerbach, Mimesis (Paris, Gallimard, Bibliotheque des Ides, 1968), pp. 467-468, (em Portugués: Editora Perspectiva, Sito Paulo.) 11. Aaron Scharf, Cueative Photography (London, Studio Vista, 1965). p. 25, 12 Nigel Gosling fala dos eseripulos de Nadar em. Participar desta indiistria: “Em ponquissimas ‘oportunidades Nadar cedeu & tentagao, como fez seu filho posteriormente, de colocar o seu talento a servico de uma fotografia banal de imprensa ou de publicidade: aceitou pouquissimas encomendas de retratos funeratios, na época muito populares (Victor Hugo e a doce poetisa Mareeline Deshordes ‘Valmore foram excecoes)". Ver Nigel Gosling, Nader (New York, Alfred Knopf, 1976), p. 13. 18, Emmanuel Kant, Révis d'un visionnadre, (Paris. Vein, 1967), p.97. Este tratado foi publicado pela primeira ver anonimamente em 1766 em Koenigsberg. 14. Id p. 14. 15, Os motivos que levaram E. Kanta langarse na redayio dos Reus d'un Vsionnaire sto analisados por John Maresco na introducio da edigio americana, Emmanuel Kant, Dreams of a Spirit Sor (New York, Vantage Press, 1969). 16, Ralph Waldo Emerson, Representative Men: ‘Swen Lectures (Boston, Phillips Sampson and Co, 1850), p. 115. a 17 Assim esereve Swedenborg:°O homem & uma cept par cin nti, gu oresyoe fem verdade, o mais infimo de seus sentimentos € tim imagem e uma eligi dete" Cade por Emerson, Representative Men, p. 116. 18, William Henry Fox Talbot, The Pencil of Nature (New York, Da Capo Press, edi. facsimile 1969), Inweducio, sp. 10.14 20, Judith Weschles, A Human Comedy: Physiognomy cand Gesture in XIXth Century Paris (Chicago, University of Chicago Press, 1982) 21, Na mesma época, Théophile Gautier © Lo Edmond Duranty escrevia fazendo este mesmo tipo de relagie presente ao espirito. Judit Weschler chamott gentilmente minha atenci para cessas obras, presentes e analisadas em seu livto citado acima, 22, Naanilise de Jacques Derrida do ensaio de Mallarmé “Mimica’, ee estuda esta ide'a do gesto do mimico como especie de excrita que se transforms, como diz Mallarmé, em "Mudo soliléquio, por toda a su alma apegado, e do resto € dos gestox o Fantasma branco, como pagina 2 xr todavia escrita” Ver Jacques Derrida, “La double séance”, em La Dissénination (Patis, Le Seui 1972), p. 22. 39 Os espagos discursivos da fotografia Timothy O'Sullivan, Tufa Domes, Pyramid Lake, Nevada, 1868 Fotolitografia segundo Tufa Domes, de Timothy O'Sullivan, 1875 Comecemos por duas imagens que levam 0 mesmo titulo: Tufa Domes, Pyramid Lake, Nevada. A primeira € uma famosa fotografia de Timothy O'Sullivan re- centemente divulgada. Ela data de 1868 ¢ opera apoiando-se especialmente nos cédigos da fotografia de paisagens no século XIX, tal como os construit a historia da arte. A segunda fotografia, realizada em 1878 para a publicacio da obra de Clarence King, Sysiematic Geology (Geologia Sistematica), € uma c6pia litografica da fotografia’. Um olhar do século xx reconhece no original de O'Sullivan um modelo de beleza misteriosa e silenciosa como o que a fotografia podia produzir nos pri- meiros decénios de existéncia desta midia, Na imagem fotografica, vemos trés rochedos macigos parecendo avangar sobr xadrer abstrato e transparente, cujas diferentes posicdes indicam uma trajet6- afastando em diregio ao horizonte. A extrema precisio descriti- va desta imagem confere as pedras uma riqueza de detalhes alucinante, de modo que cada fissura, cada anfractuosidade deixada pelo calor vuleinico ori- ginal ncla se cncontra registrada. Entretanto estas pedras dio a impressio de ser irreais ¢ 0 espaco parece onirico, Os domos de tufo esto como que sus- pensos em meio a um éter huminoso, ilimitado e sem referencias. O resplen- dor desta base indiferenciada, aonde Agua e céu se encontram num continuo quase ininterrupto, submerge os objetos materiais que ali estio, a ponto das pedras parecerem flutuar ou planar e acabarem nada sendo, senao formas. O uma espécie de tabuleiro de ria que vai s 40 fundo luminoso do horizonte suprime 0 poder que seu tamanho Ihes confere e as transforma em elementos de uma composicao gréfica. E neste achata- mento opulento do espaco da imagem que reside sua misteriosa beleza. ‘A litografia, por sua vez, é de uma insistente banalidade visual. Tudo 0 que era misterioso na fotografia se encontra nela explicado em dewalhes agregados e supérfluos. Puseram um amontoado de nuvens no céu, deram uma forma precisa A margem do lago ao fundo e materializaram a superficie da Agua com pequenas rugas ¢ ondulacées; finalmente, © que € 0 mais importame neste processo de banalizacao da imagem, os reflexos das rochas na agua foram cui- dadosamente recriados, restabelecendo 0 peso e a orientagio neste espago que, na sua versio fotografica, estava banhado por aquela vaga luminosidade produzida pelo colédio nos lugares em que a exposicio foi rapida demais, ‘A diferenga entre estas duas imagens, entre a fotografia ¢ sua interpreta- Go, nao se deve obviamente a oposicio entre a inspiracdo do fotégrafo ¢ a falta de talento do gravador. Ao contrario, fica claro que elas pertencem a dois campos culturais distintos, pressupdem expectativas diferentes por parte do es- pectador ¢ veiculam dois tipos distintos de saber. Para utilizar um vocabulario ainda mais contempordnco, poderiamos dizer que, enquanto representacdes, elas operam em dois espagos discursivos distintos que se originam em dois discursos diferentes. A Jitografia pertence ao discurso da geologia e, portanto, a0 da ciéncia empirica, Para poder funcionar no interior deste discurso, era preciso restabelecer na imagem registrada por O'Sullivan os elementos ha- pituais da descricio topografica, quer dizer reconstruir, ao longo de um plano horizontal inteligivel, as coordenadas de um espaco homogéneo continuo € estruturado — nao tanto pela perspectiva, mas pela grade cartograifica—, sob a forma de uma fuga coerente em direcdo a um horizonte bem definido. Era preciso enraizar, estruturar, levantar 0 plano dos dados geolégicos destes domos de tufo, Como formas flutuando sobre um continuo yertical, teriam sido intiteis’ E a fotografia, em que espaco discursivo opera? O discurso estético desen- yolvido no século XIX organizou-se cada vez mais em torno daquilo que se poderia chamar de espaco de exposicdo. Quer se trate de museu, salao oficial, feira internacional ou exposicao particular, este espaco era constituide em parte pela superficie continua da parede, uma parede concebida cada yez mais para expor vamente. Mas, para além dos muros da galeria, 0 espaco de exposicao podia se apresentar sob muitas outras formas, como, por exemplo, sob 0 da critica, que é, de um lado, o lugar de uma reacdo escrita perante a presenca de obras no seu contexto especifico e, de outro, o lugar implicito da escolha (inclusdo ou exclusio), em que tudo © que é exchuido do espaco de exposicao acaba sendo marginalizado no plano do estatuto artisti co’. Dada a sua funcio de suporte material da exposicdo, a parede da galeria r arte, exclusi 41 tornouse o significante de inclusio e pode, portanto, ser considerada per se uma representacao do que poderiamos chamar de “exposicidade” — 0 que se desenvolvia entio como vetor fundamental de intercambio entre artistas € patrocinadores na estrutura em plena evolucio da arte no século xtx. Depois, na segunda metade do século, @ pintura — principalmente @ de paisagens — reage com seu proprio sistema correspondente de representacoes. Fla come: cowa interiorizar 0 espaco de exposicae (a parede) ¢ a representilo. ‘Apés 1860, a transformagao da paisagem em visio aplainada e comprimida do espaco estendendo-se lateralmente por toda a superficie foi extremamen- te rapida. Comecou pela evacuagao sistemética da perspectiva na pintura de paisagem, anuilando 0 efeito de profundidade da perspectiva através de wma jérie de mecanismos (um contraste fortemente pronunciado, entre outros), que tinham como resultado transformar a penetracio ortogonal da profundi- dade (proporcionada, por exemplo, por uma alameda de arvores) em uma organizagao diagonal da superficie. Assim que foi aceita esta compressito, que permitia representar todo 0 espaco de exposi¢ao no interior de uma nica tela, outras técnicas foram utilizadas com a mesma finalidade. Tratase por exemplo das paisagens seriais, penduradas umas ao lado das outras, imitando a extensiio horizontal da parede, como os quadros de Monet da catedral de Rouen; ou entdo das paisagens comprimidas € sem horizonte, que se esten- diam até ocupar todo o comprimento de uma parede. A sinonimia entre pai sagem e parede (uma representando 0 outro) nas Nynpheas tardias de Monet apresentase como um momento particularmente avancado de uma série de operacdes, em que v discurso estético cncontra resolucio na representacio do préprio espaco que justifica sua instituicao. Nem é preciso dizer que a constituicao da obra de arte como representacao de seu proprio espaco de exposigao é, de fato, que chamamos de hist6ria do modernismo. Por este motivo € fascinante hoje em dia olhar os historiadores da “fotografia integrando sua midia na légica desta historia. Pois se perguntarmos mais uma vez em que espaco discursive funcionava a fotografia original de Sullivan do modo como ew a descrevi no comeco deste artigo, s6 se pode res- ponder: 0 do discurso estético. E se nos perguntarmos entio o que ela repre- senta, forcosamente responderemos que, no interior deste espaco, ela se torna uma representacao do plano de exposicao, da superficie do museu, da capac dade da galeria para crigir em arte 0 objeto que ela decidiu exibir. O'Sullivan, na sua época (nos anos 1860 € 1870) tera acaso produzido suas fotografias para 0 discurso estético € 0 espaco da exposicao? Ou tera sido para 0 discurso cientifico € topografico, que serviut com relativa eficacia? Na reali- dade, a interpretacao de suas imagens como representagao de valores estéticos (auséncia de profundidade, construcao grafica, ambigilidade — e, além disso, intencdes estéticas tais como o-sublime ¢ a transcendéncia) nao sera uma ela- 42 boragdo retrospectiva concebida para afirmé-las como arte"? Afinal esta proje- cdo nao sera injustificada, nao constituird uma falsa historia? Esta questo apresenta hoje um interesse metodolégico especial, uma vez que uma historia da arte lancada recentemente com grande alarde tenta fazer uum hist6rico dos primeiros anos desta midia. O material de base do historico é justamente este tipo de fotografia, essencialmente topografica por natureza e empreendida originalmente em funcao das necessidades de exploracdo geo- grifica, das expedicdes e dos levantamentos topogrificos. Montadas, emoldu- radas ¢ dotadas de um titulo, as imagens entram hoje pelo caminho do museu no terreno da reconstrucao historica. Podemos agora ler na parede da expo- si¢do estes objetos educadamente isolados de acordo com uma certa légica, logica esta que, para legitimalos, poe énfase no seu carater de representacio no espaco discursivo da arte. O termo “legitimar” € de autoria de Peter Galassi ¢ a questio da legitimacao estava no cerne da exposicao de que foi curador no muscu de Arte Moderna de Nova lorque. Em uma frase retomada por todos os comentaristas, Galassi levanta a questao da posicao da fotografia em relacdo ao discurso estético: “O objetivo aqui é mostrar que a fotografia nao era uma bastarda abandonada pela ciéncia na soleira da arte, ¢ sim uma filha legitima da tradicdo pict6rica ocidental’, O projeto que subentende esta legitimagao nao pretende simplesmente confirmar que alguns fotdgrafos do século X1x tinham a pretensao de ser artis- tas, nem provar que as fotografias eram de qualidade igual — senao superior a das pinturas. Tampouco pretende mostrar que as sociedades fotogrificas organizavam exposigdes nos moldes dos salées de pintura oficiai Operar uma legitimacdo nos pede que ultrapassemos a simples exposicao da filiacio apa- rente a uma mesma familia: exige a demonstracao da necessidade interna e genética de tal pertenca, ¢ Galassi quer portanto dirigir seus ataques as estru- turas internas e formais, em vez dos detalhes conjunturais externos. Com esse objetivo, espera provar que a perspectiva tio marcante na fotografia de exte- riores do século XIX, perspectiva esta que tende a aplainar, fragmentar, produc zir recobrimentos ambiguos ¢ que qualifica de “analitica” (por oposicao a pers- pectiva de construc&o “sintética” do Renascimento) jé estava plenamente desenvolvida no final do século XVill na arte pictérica. Galassi sustenta portan- to, que a forca desta prova esta em refutar a idéia segundo a qual a fotografia seria essencialmente “filha de tradigées mais técnicas do que estéticas”; nessa medida, entao, era alheia aos problemas internos do debate estético; ele mos- tra que a fotografia, ao contritio, é produto deste mesmo espirito de investiga- 40 nas artes, que integraram ¢ desenvolveram 20 mesmo tempo a perspectiva ‘analitica” e a visao empirica. Os esbocos de figuras encurtadas, radicalmente elipticas de Constable (e até de Degas) podem portanto servir de modelo para 43, a pritica fotografica posterior que, na exposicao de Galassi, encontrase repre- sentada essencialmente pela pratica topografica: Samuel Bourne, Felice Beato, Auguste Salzmann, Charles Marville ¢, claro, Timothy O'Sullivan. as fotografias reagem tal como se Ihes pede. A de uma estrada no Caxemira, de autoria de Bourne, com sua nitida reparticdo entre luzes alias € baixas, esvazia a perspectiva de seu significado espacial ¢ a reinveste com uma ordem bidimensional tao eficaz quanto um Monet da mesma época. Uma fotografia de Salzman que registra com extrema precisio a textura de wm muro de pedra preenchendo 6 quadro de um espaco tonal quase uniforme, assimila a descricdo dos detalhes empiricos ¢ opera uma representacao da nfra-estrutura pictorica. Quanto as imagens de O'Sullivan com os seus roche- dos maritimos perdidos naquele céu de colédio vaio, nio tém nenhuma pro- fundidade e formam o mesmo tipo de sistema, visto de maneira hipnética mas percebido como bidimensional, 0 tipo que caracterizava a fotografia dos Tafa s dos museus, nao duvidamos Domes. Quando se vé estas “provas” nas gale que o fotog isto pelo desenho unificador, decorativo ¢ sem efeito de profundidade criado pela perspectiva rafo ndo sé tenha desejado fazer arte, mas também representé-la, Aqui, porém, a demonstracio comega a ficar problematica, porque as foto- grafias de O'Sullivan nao foram publicadas no século XIX, quando a tinica dif sao piiblica que ganhou evidéncia aconteceu sob a forma de vistas estercoscé- picas. A maioria de suas fotografias mais famosas (as ruinas do canhao de Chelly, tiradas com a expedicao de Wheeler, por exemplo) existe de fato sob forma de vistas estercoscopicas €, no caso dele, como no de William Hent Jackson, é ae o®, Entao sera possivel, da mesma maneira que haviamos comegado por uma comparagio entre dl imagens (a fotografia ¢ a litogralia tirada a partir dela), prosseguir com uma comparacio entre dois tipos de maquinas: a cimara com placas de 23 x 30 cm € a maquina para tomadas de vistas estcreosedpicas, estes dois equipamentos simbolizando dois dominios distintos de percepcao. © espaco estercosedpico 6 um espace perspective que teria sido transfor- mado em algo mais potente ainda. Estruturado como uma espécie de visio sem campo lateral, a sensacio de fuga na profundidade é permanente ¢ inevi- tavel, ainda mais porque o espaco que rodeia o espectador é dissimulado pelo istemna Otico que cle tem que por diante dos othos para visual sistema que 6 coloca em um isolamento ideal. Tudo 0 que 0 rodeia, paredes ¢ chio, fica exchuido de seu olhar A maquina estereosc6pica concentra meca- nicamente toda a atencao do espectador sobre 0 tema das todos os desvios que 0 olhar se permite nas galerias dos museus, quando passa errante de um quadro a outro € pelo espago fisico que o rodeia também. Aqui, que © grande piiblico tinha ac as ar as imagens, imagens ¢ probe 44 Samuel Bourne, Estrada com élamos, Caxemira, 1863-1870 ao contririo, o ‘recentramento’ do olhar nao pode se produzir sendo no campo de visio imposto pela maquina dtica ao espectador. A imagem estereosc6pica parece composta de miltiplos planos escalona- dos ao longo de um declive acentuado, que vai do espaco mais préximo até o mais afastaco. A operagao de decifrar visualmente este espaco implica em que oolho varra o campo da imagem deslocandoe do canto esquerdo inferior ao canto direito superior, por exemplo. Até ai nao ha nenhuma distincao da pin- tura, mas a forma como se percebe esta varredura é totalmente diferente. Quando © olhar se desloca de um primeiro plano para um plano intermedis- Tio ao longo do tiel estereoscépico, temos a sensacao de estar refazendo nossa acomodacio visual. O mesmo fendmeno se reproduz quando nos “des- locamos” em seguida para o segundo plano’. _ Estes microesforcos musculares correspondem no plano cinestésico sio puramente ética da ilu- | nagem estercoscépica. De certa forma sao represen- tacées — mas a uma escala muito reduzida — do fendmeno produzido quan- do se abre um amplo panorama diante de si. O reajuste dos olhos de um plano a outro produzido efetivamente no campo estcreoscépico corresponde a uma Fepresentacio por um 6rgao do corpo, mais do que outro Srgao, os pés, faria 40 atravessar 0 espaco real. Nem 6 preciso dizer que da travessia fisiolégica € Stica do campo tereoscépico decorre outra diferenga do espaco pictérico, mas essa diz respeito a dimensio temporal. 45 Os relatos de época que descrevem a contemplagio de vistas estereosc6pi- cas insistem todos enfaticamente no tempo passado, examinando detidamen- te 0 contetido das imagens, Para Oliver Wendel Holmes Sr,, férreo defensor da estereoscopia, essa leitura atenta era a reacao apropriada perante a “inesgota- vel” riqueza de detalhes oferecida pela imagem. Quando aborda este ponto em seus escritos sobre a estereoscopia, ao descrever sua “Jeitura” de uma vista da Broadway por E. & H.T. Anthony, por exemplo, Holmes conta aos seus lei- tores o longo contato necessirio para usufruir o espeticulo deste tipo de vis- tas. Os quadros, ao contrario, néo pedem esta dilatacao temporal da atencao, esta longa € minuciosa exploracio do menor espaco de terreno (¢ eles incita- io cada vez menos a isto ao se tornarem modernistas). Quando Holmes quer defini esta modalidade particular do olhar onde “o espirito se dirige tateando as profundezas da fotografia”, recorre 4 evocagao de cstados psiquicos extremos como a hipnose, os “efeitos semimagnéticos” € ‘© sonho. “Ao menos a supressio de tudo que rodeia o espectador e a concen- tracdo de toda a atengao que dai decorre produzem uma exaltagio compara vel A do sonho,” escreve “em que parece que abandonamos nosso corpo para tras e ondulamos de uma estranha cena para outra, como se féssemos espi tos desencarnados".” O tipo de percepcao proporcionado pelo estereoscépio cria uma situa comparavel 4 do cinema. As duas implicam no isolamento do espectador com uma imagem apartada de qualquer intrusio do mundo exterior. Nos ois casos, a imagem transporta © espectador pelos olhos, enquanto seu corpo permanece imével. Em ambos 0s casos, 0 prazer provém da experién- cia do simulacro, esta aparéncia de realidade cujo efeito de real nao pode ser verificado por qualquer deslocamento fisico real na cena. Nos dois casos, enfim, 9 efeito de real outorgado pelo simulacro é reforcado pela dilatacdo temporal. O que chamamos de dispositive do processo cinemiatico teve por- ‘tanto uma Certa proto-historia na instituicdo estereoscépica, por sua vez oriunda do diorama, também ele, lugar escuro que isolava o espectador enquanto Ihe oferecia, ao mesmo tempo, um espetacular® efeito de real. No caso da estereoscopia, tornou-se um instrumento instantanea e formidavel- mente popular em funcko do prazer especifico produzido e do desejo que gratificava, sob todas as aparéncias, a exemplo do que ocorreu posterior- mente com o cinema. A difusio da estereoscopia como meio real de comu- nicacio de massa tornou-se possivel gracas 4s técnicas de reprodugao meca- nica. Os ntimeros das vendas de vistas estereoscépicas, primeiro nos anos 1850, mas sem diminuicao significativa até os anos 1880, provocam vertigem: a London Stereoscopic Company tinha vendido 500.000 estereoscpios em 1857 c em 1859 podia oferecer em scu catélogo uma lista de mais de 100.000 vistas estereosc6picas diferentes”, 46 O proprio termo “vista” era utilizado pela pratica estereoscdpica para desig- nar seu objeto € permite localizar a especificidade deste tipo de imagem. De inicio, a palavra “vista” evocava a espetacular profundidade que acabo de des- crever, organizada segundo as leis da perspectiva. Este fendmeno foi freqiien- temente reforcado ou simplesmente levado em conta por aqueles que faziam vistas estereoscdpicas, na sua maneira de estruturar as imagens em toro de um ponto de referéncia vertical no primeiro ou segundo plano — o que tinha por efeito centraro espaco representando, dentro do préprio campo visual, a convergéncia dos olhos em dire¢io ao ponto de fuga. Um bom ntimero de imagens de Timothy O'Sullivan se organizam em volta de um centro como esse, como © eixo constituido por um tronco de érvore desnuda, por exemplo, ou a beira tosca de uma formagao rochosa. Dada a tendéncia de O'Sullivan para construir sua imagem sobre a diagonal de fuga e sobre o elemento que serve de centro para a vista, nao é surpreendente vé-lo falar, no tinico texto em que relata seu trabalho de fotografo no Oeste, das “vistas” que faz e do que faz quando as compie coma “vistas”. Quando fala da expedicio 4 Pyramid Lake, ele descreve 0 material que leva consigo ¢ que contém, entre outros, “os instru- mentos € produtos quimicos necessirios para que nosso fot6grafo possa ‘rea- lizar’ suas vistas”. Logo depois, quando comenta sobre o Humbolt Sink: “Era um belo lugar para trabalhar e fazer vistas (viewing), era a atividade a mais agradavel que se pudesse desejar!. A palavra “vista” era onipresente nas revis- tas de fotografias: era cada vez mais sob este vocdbulo que os fotégrafos apre- sentavam suas obras nos Saldes fowgraficos dos anos 1860. Assim, mesmo quando entravam conscientemente no espaco da exposicao, 6s fotégrafos ti- nham a tendéncia de utilizar como categoria descritiva de seus trabalhos a pala- wra “vista”, em yer de “paisagem’ _A palavra “vista” remete além disso a uma concepcao de autor em que o fendmeno natural, o ponto notavel, apresenta-se 20 espectador sem a media- s4o aparente nem de um individuo especifico que dele registre 0 waco, nem de um artista em particular, deixando a “paternidade” das vistas aos seus edi- tores € néo aos operadores (como eram chamados na €poca) que haviam tira- do as fotografias. Deste modo, a nocko de autoria estava vinculada de forma significativa 4 publicacio, 0 copyright pertencendo a diversas sociedades (por exemplo C. Keystone Views), enquanto o fotégrafo permanecia no anonima- to. Neste sentido, as caracteristicas perceptiveis da vista, sua profundidade e nitidez exagerada desembocavam sobre um segundo aspecto, o isolamento de seu objeto. Efetivamente, o objeto é um “lugar extraordindrio”, uma maravi- Iha natural, um fendmeno singular que ver ocupar esta posicao central da atencao. Esta forma de aprender a natureza do singular se apéia sobre uma transferéncia da nogaio de autor da subjetividade do artista 4s manifestacdes objetivas da Natureza, como demonstrou Barbara Stafford em um estudo 47 sobre a “singularidade” enquanto categoria especifica, surgida ao final do século XVII, € que esta associada aos relatos de viagem'. £ por este motivo que _ avista n’o reivindica tanto a projecao da imaginagao de um autor, mas somen-_ te a protecao legal de propriedade do copyright. Enfim, a palavra “vista” indicaa singularidade, este ponto focal, como sendo uum momento particular em uma representacio complexa do mundo, uma espécic de Atlas topografico total. O lugar onde eram guardadas as “vistas” era sempre um movel com gavetas em que era arquivado ¢ catalogado todo um sis- tema geogriifico. Q mével guarda-arquivo é um objeto muito diferente da pare- de ou do cavalete. Ele oferece a possibilidade de armazenar informagées ¢ de remeté-las umas as outras, assim como cotejélas por meio da grade especial de um determinado sistema de conhecimentos. Os arquivos de vistas estereoscd- picas, méveis rebuscados que no século xix faziam parte do mobiliario das casas burguesas ¢ das bibliotecas ptiblicas, abarcavam uma representacdo complexa do espaco geografico. A impressio de espaco ¢ sua forte penetracao propor- cionada pela “vista” funcionam portanto como modelo sensorial de um sistema mais abstrato, cujo tema também ¢ 0 espaco. Vistas ¢ levantamentos topograli- cos estio intimamente ligados e se determinam mutuamente. O que se depreende desta anilise € portanto a existéncia de todo um siste- ma de exigéncias ligadas 4 historia, que foram satisfeitas por este género par- ticular ¢ com relacao ao qual 0 conceito de “vistas” formava um discurso coe- rente. Espero também ter ficado evidente que este discurso nao corresponde a0 que 0 discurso estético entende pelo termo “paisagem”, De fato, da mesma maneira como é impossivel assimilar, no plano fenomenolégico, a construcio do espaco que a vista opera 20 espago fragmentado © comprimido do que é chamado “perspectiva analitica” na exposicao Before Photography”, também nao é possivel comparar © conjunto formado por estas vistas tomadas coletiva- mente aquela produzida pelo espaco da exposicao. Uma compae a imagem de uma ordem geografica..a outra representa 0 espaco de uma Arte auténoma € de sua Histéria idealizada e especializada, constituida pelo discurso estético. As representagoes coletivas complexas com 0 valor chamado estilo (estilo de um periodo, estilo pessoal) dependem do espaco de exposicdo. Poderiamos dizer que estao ligadas a ele. Neste sentido, a historia da arte moderna é pro- duto do espaco de exposicio mais rigorosamente estruturado do, século xix, ou seja,o muse! Foi André Malraux que formulou a teoria sobre o modo como o museu, por sua vez, organiza coletivamente a representacdo dominante da Arte atra- vés da sucessio de estilos ¢ representacdes que oferece. Os museus se moder- nizaram com a instituicao do livro de arte e os museus de Malraux se torna- ram hoje em dia “museus imagindrios, sem paredes”, encontrando-se 0 contetido de suas galerias amontoado em um vasto conjunto coletivo pela 48 reproducao fotografica. Contudo isto nao faz senao reforcar © sistema dos museus: ‘Ao passar da estitua ao baixozelevo, do baixo-relevo A marca do selo cunhado, dessa marca ds placas de bronze dos ndmades por meio da equivoca unidade da fotografia, o estilo babi- Tonico parece adquirir uma cxisténcia propria, como se fosse algo mais que um nome: uma ‘existéncia de artista. Um estilo conhecido na sua evolugao ¢ nas suas metamorfoses tornase jnenos a idéia do que a ilusio de uma fatalidade viva. A reproducdo — e apenas ela — fez entrar na arte estes supra.artistas imaginarios que tem um nascimento confuso, «uma vida, conquistas, concessdes a0 gosto da riqueza ou da seducao, uma agonia € uma ressurreicéo, fe que se chamam estilos, Ao auferirlhes vida, ela os coage a possuir um significado". Quando decidiram que o lugar da fotografia do século xix era dentro dos museus, que a ela era possivel aplicar os géneros do discurso estético € que 0 modelo da historia da arte muito bem lhe conyinha, os especialistas contem- poraneds da fotografia foram longe demais. Para comecar, concluiram que determinadas imagens eram paisagens (em vez de vistas) e, desde entio, nio tiveram mais qualquer diwida quanto ao tipo de discurso a que essas imagens _pettenciam ¢ ao que elas representavam. Em seguida (mas ¢ uma conclusio ‘a. que chegaram a0 mesmo tempo em que a precedente), eles determinaram que era possivel aplicar outros conceitos fundamentais do discurso estético > arquivo visual. Dentre eles o conceit de artista, com a ideia subseqiente ‘uma progressio regular € intencional que chamamos carreira. Um outro conceito é a possibilidade de uma coeréncia ¢ de um sentido que surgiriam deste corpus coletivo € que constituiriam assim a unidade de uma_ obra. Podemos todavia responder que esses sio termos que a fotografia topografi- ca do século xix 1 questionar. O conceito de artista implica algo mais que a simples paternidade das obras. Ele sugere também que se deya passar por um certo ntimero de eta~ as para ter o direito de reivindicar um lugar de autor: a palavra artista esta de alguma forma semanticamente ligada 4 nocio de vocacao. Em geral, a palayra vocardo implica em iniciagao, obras de juventude, uma aprendiza- gem das tradigdes de sua arte ¢ a conquista de uma visio individual através de um processo que implica ao mesmo tempo em fracassos e sucessos. Se isto deve estar presente em parte ou por inteiro na palavra artisia, pode-se entao imaginar um artista simplesmente por um ano? Nao seria uma con- tradicao légica (alguns diriam gramatical), como no exemplo citado por Stanley Cavell a propésito do julgamento estético, em que repete a pergun- ta de Wittgenstein: “Sera possivel sentir um anseio ou um amor ardente durante 0 espago de um segundo, seja qual for o que antecede ou se segue @ este instante?" 1 somente nao permite utilizar, mas cuja validade parece 49 No entanto este € 0 caso de Auguste Salzman, cuja carreira fotografica teve inicio em 1853 € chegou ao fim menos de um ano depois. Poucos ford: grafos no século XIX tiveram uma passagem to répida pela cena fotografi Outras figuras importantes nesta hist6ria abragaram 0 oficio ¢ 0 deixaram menos de uma década depois, como Roger Fento, Gustave Le Gray e Henri Le Seeq, trés “mestres” conceituados nesta arte. Deixar a fotografia esteve velar cionado em alguns casos a um retorno as artes mais tradicionais; em outros, como o de Fenton, que se tornou adyogado, a uma mudanga completa de ramo de atividade. Quais sio 0s significados da duracio e da natureza de tais praticas para o conceito de carrein? Pode-se apli 0s mesmos pressupostos metodolégicos, a mesma idéia de estilo individual ¢ continuo que 0s das carrciras de outros tipos de artistas!”? Quanto a obra, esta outra grande unidade estética, 0 que resta dela? Nos confrontamos mais uma vez com praticas que parece dificil assimilar ao que 0 termo abarca e subentende habitualmente, 0 fato de que 2 obra seja resultado de uma perseveranca na intencao € o fato de que tenha um vinculo organico com 0 esforco daquele que a produz. Em uma palavra, que ela seja coerente. Uma pritica de que jé falamos € a utilizacio autoritiria do cmpyright, que faz com que determinadas obras, como as de Matthew Brady ¢ de Francis Frith, sejam em grande parte resultado do trabalho de seus funciondrios, Uma outra pratica, ligada 4 natureza das encomendas fotograficas, fazia com que se dei- xasse grandes porcoes da “obra” inacabadas. Podemos citar o exemplo da Missao heliografica de 1851, em que Le Secq, Le Gray, Baldus, Bayard € Mestral (quer dizer, as maiores figuras do inicio da historia da fotografia na Franca) fizeram inventarios fotograficos para a comissio dos Monumentos Histéricos. O resultado de seus trabalhos, algo em torno de 300 negatives representando construcdes medievais que deveriam passar por obras de res tauracio, nao somente nunca foi publicado nem exposto pela comissio, como nem mesmo foi revelado. Isto se compara a um realizador de cinema que rodasse um filme cujo negativo nao revelasse € cujos rushes nunca chegasse a ver. Qual seria o lugar deste trabalho na sua obra!*? 1 a estas carreire Existem no arquivo outras praticas e outras modalidades que questionam a legitimidade do conceito de obra. E. por exemplo 0 caso de um corpus excessi- yamente parco ou extenso para responder a esta definigao. Seria possivel falar de uma obra que se limitasse a uma tinica peca? Eo que procura fazer a hist6- ria da fotografia com o tinico trabalho fotografico jamais realizado por Auguste Salzman, uma Gnica compilacao de fotografias arqueolégicas (de grande bele- za formal), das quais se sabe que varias foram tiradas por seu assistente™. Inversamente, ser possivel imaginar uma obra que abarcasse 10,000 foto- grafias? Eugéne Atget produziu um corpus consideravel, que ia vendendo & 50 ‘Auguste Selzmann, Jerusalém, 0 muro do tempio, 1853-1854 medida que o produzia (grosso modo entre 1895 ¢ 1927) para diversas colecbes hist6ricas, como a da Bibliotheque de la ville de Paris, a do Musée de la ville de Paris (Museu Carnavalet), a Bibliotheque Nationale, os Monuments Histo- riques, bem como para empresas de construcio ¢ artistas. A assimilacao des- te trabalho de documentacio por um discurso especificamente estético ini- Gou-se €m 1925, quando o seu trabalho chamou a atencao dos surrcalistas, que_o publicaram. Em 1929, foi incorporado A sensibilidade fotografica da Nova Visdo alema*”, Assim, comecaram a surgir olhares parciais dirigidosa este arquivo de 10.000 documentos, cada olhar d sendo resultado de uma selecio nada a demonstrar um determinado aspecto formal ou estético. Nestas fotografias, podia-se isolar os ritmos de acumulagio repetitivos que tanto interessavam a Newe Sachlichkeit ou ainda os “collages” caros aos surrealistas, particularmente atraidos pelas fotografias de vitrines das lojas, que fizeram a celebridade de Atget. Outras sclegdes reforcam outras inter pretacdes do conus. As freqientes sobreimpressoes visuais de objeto ¢ de agente, como a silhueta de Atget refletida no vidro reluzente da vitrine de um café que ele esta fotografando, autorizam uma lcitura reflexiva da obra como representacdo de seu proprio processo de fabricagao. Outras leituras sio mais formais no plano da composicdo: Atget conseguindo localizar um ponto em torno do qual as trajet6rias espaciais complexas do lugar irdo se revelar com uma simetria particularmente reveladora. Na maioria dos casos, imagens de parques ¢ cenas rurais servem de palco para tais demons- tragdes. 51 Porém cada uma destas leituras € parcial, como pequenos espécimes geo- légicos extraidos como amostra de um terreno onde cada um revelaria a pre- senga de um minério diferente. Dez mil Fotografias é muito para cotejar. Contudo se 0 trabalho de Atget deve ser considerado como arte € Atget tido ste cotejar deve ser levado a cabo. E preciso que possamos ver que estamos diante de uma obra. A exposicgio em quatro partes do museu de Arte Moderna de Nova lorque, reunida sob 0 titulo de per se tendencioso de Alget ¢ a arte da fotografia, axanca rapido demais na direcao de uma resolu cao do problema, considcrando sempre que 0 modelo unificador deste arq| vo € 0 conceito de obra de artista. Poderia ser de outro modo? John Szarkowski, depois de reconhecer que as fotografias de Atget extremamente desiguais do ponto de vista da invengao formal, se pergunta por que razi como um artista, ao. Existem varias maneiras de interpretar esta incoeréncia aparente, Podemos eon Atget tinha a ambigéo de fazer belissimas fotografia para o nosso prazer ¢ encanto € que, na maioria dos casos, fracassou no seu intento. Ou entao podemos considerar que cle ingressou como um novico na fotografia € que, pouco a pouco, gracas ao valor pedagogico do irabalho, aprendetia dominar este meio to particular ¢ recalcitrante com seguranca € economia, de forma que seus trabalhos foram melhorande com o tempo. Podemos tum: bém observar que ele trabalhava para ele mesmo € para os outros ae mesmo tempo € que seu trabalho pessoal era melhor porque produzia para um dono mais exigente, Ou ainda que Atget tinha como meta a explicacto em termos visuais de um problema de grande riqueza ¢ complexidade: o espirito de sua propria cultura ¢, nesta busca, estava pronto a aceitar os resultados do que tentava fazer da melhor forma possivel, mesmo que estes re tados amar de simples documentos. 8 explicagées sao verdadeiras em diferentes gr derar que fo ult passassemi AS Vezes © Acredito que todas es 1s, mas a dltima & que nos interessa particularme por ambicao artistica, Nio nos ¢ ficil aceitar sem protestar 9 fato de que o artista possa estar a servico de uma idéia mais vasa do que ele. Nos ensinaram a pensar, ou melhor, a admitir que nenhum valor tanscende 0 do criador, 0 corolario logico sendo que nenhum assunto além de stta propria sensibilidade parece verdadeiramente merecer a atengao do te, por ser muito diferente do que costumamos ent Esta passagem progressiva das categorias habituais de descricdo da produ- cho estética (sucesso formal/iracasso formal, aprendizagem /maturidade. encomenda ptiblica/expressio pessoal) para uma posigio que Szarkowski define como “muito diferente do que entendemos por ambicao artistica” (para qualificar obras “a servic de uma causa mais ampla que a simples expresso pessoal”) incomoda Szarkows} romper @ fio dessa reflexdo, cle se pergunta que razao levou Aiget a retornar — por vezes anos depois — aos lugares que ja havia fotografado, como fez quando fotografou novame , cvidentemente, Logo antes cle inter te uma edificagao por varios Angulos, por exem: plo. A resposta apresentada pelo critico — uma oposicao entre sucesso formal 2 Eugene Aiget, Verriéres, canto pitoresco, 1922 53 ¢ fracasso formal — se reduz as categorias da maturacao artistica, corolario da nocdo de obra. Sua obstinacdo em pensar as fotografias na sua relacao com este modelo estético pode ser encontrada novamente na sua decisio de seguir tratando as fotografias em termos de evolucio estilistica: “Suas primeiras ima- gens mostram a arvore como objeto inteiro € discreto, recortado sobre um fundo, colocado no centro do enquadramento da imagem, iluminado fron- talmente por uma fonte proveniente de tras do ombro do fotégrafo. As ima- gens de fim de carreira mostram a arvore nitidamente cortada pelo quadro, descentrada ¢, de forma ainda mais evidente, modificada em sua aparénci pela qualidade da iluminacio™”. £ isto que produz a aumosfera *clegiaca” de determinadas imagens do final de sua carreira. Porém toda esta questio de intencao artistica e evolucio estilistica deve ser integrada a “esta idéia mais ampla que ele mesmo" que Atget teria suposia- mente servido. Se as 10.000 fotografias formam 0 conceito que tinha desta “idéia mais ampla”, entao essa poder nos informar das intencdes estéticas do fotdgrafo, pois havera entre os dois uma relaco reciproca, uma interna ao artista, a outra externa a ele. Por muito tempo acreditou-se que bastaria decifrar 0 cédigo que fornecia o niimero dos negativos de Atget para conseguir dominar simultaneamente a “jdéia mais ampla” € os motivos misteriosos que © levaram a constituir este imenso arquivo (“E dificil encontrar um artista importante do periodo moder- no cuja vida € intencdes nos foram mais veladas que as de Eugene Atget”, escreve Szarkowski). Cada uma das 10.000 placas recebeu um niimero. Todavia os ntimeros nao sao estritamente consecutivos, ndo organizam 0 cor pus cronologicamente e por vezes retrocedem”. Para os pesquisadores do problema colocado pela obra de Atget, os niime- ros, supostamente, forneceriam a chave fundamental das intencdes ¢ do sen- tido da atividade do autor. Maria Morris Hambourg decifrou afinal este cédi- go de mancira definitiva e descobriu que se tratava da sistematizagao de um Catalogo de temas topograficos divididos em cinco grandes séries ¢ nume subdivisdes e grupos". Os nomes atribuidos as diferentes séries € classes, tais como documentos de: Paisagens, Paris pitoresco, Arredores, Franga histérica € assim por diante, revelam que a idéia-mestra da obra de Atget era o retrato coletivo do espirito da cultura francesa, o que nao deixa de lembrar o empre- endimento de Honoré de Balzac em La Comédie Humaine (A Comédia Humana). Em relacao com esta idéia-mestra, € portanto possivel organizar a visio de Atget em torno de um conjunto de intencdes socivestéticas. Ele se wansforma entdo no grande antropélogo visual da fotografia. Podemos agora entender a inten¢ao unificadora da obra como pesquisa perseverante de uma representacao deste instante da inter-relacdo entre natureza e cultura— como € 0 caso na justaposico da videira que sobe ao longo da jancla de uma casa sas BA no campo, cujas cortinas rendadas representam folhas estilizadas. Mas esta anilise, por mais interessante e amitide brilhante que seja, nao deixa de ser parcial, mais uma vez. O desejo de representacao do paradigma natureza/cul- tura s6 pode ser rastreado em um ntimero limitado de imagens; depois de- saparece, como as pegadas de um animal misterioso, deixando as intengdes do fotdgrafo tao mudas misteriosas como sempre. © interessante nesta historia € que 0 Museu de Arte Moderna de Nova Iorque ¢ Maria Morris Hambourg detém a chave do problema, chave que nem chegard a revelar o segredo do sistema de intencdes estéticas de Atget, e sim o levara a desaparecer. Alias, esse exemplo € ainda mais instrutivo, por demonstrar a resisténcia da museologia e da historia da arte de fazer uso desta chave. O sistema de cédigos aplicado por Atget as suas imagens deriva do catalo- go das bibliotecas ¢ das colegdes topograficas para as quais wrabalhava. Seus temas eram freqientemente estandardizados, porque cram ditados pelas categorias estabelecidas da documentacao histérica e topografica. A razao pela qual bom niimero de imagens de rua se parece curiosamente as foto- grafias de Charles Marville tiradas meio século antes, € que tanto as primei- ras como as segundas foram produzidas de acordo com 0 mesmo plano dire- tor de documentagdo”. Um catélogo € mais um conceito de sistema de organizacao do que uma idéia, ele procede menos da andlise intelectual do que sociocultural. E parece muito claro que o trabalho de Atget € produto de um catilogo que © fotdgrafo nao inventou ¢ para quem 0 conceito de autor nao tem objeto. Oestatuto normal de autor que o Museu deseja conservar tende a desabar depois de uma observagao desta ordem, ¢ isto nos leva a uma reflexdo algo surpreendente: O Museu se lancou a decifrar © codigo dos ntimeros dos negativos de Aiget para descobrir uma consciéncia estética e, em seu lugar, encontrou um catélogo. Ora, se mantivermos essa reflexdo presente, obteremos respostas muito diferentes para as diversas perguntas colocadas anteriormente, como a. de saber porque Atget fotografou determinados sujeitos de mancira fragmenta- da, como a imagem de uma fachada fotografada de forma isolada da imagem da porta, das traves de wma janela ou dos detalhes em ferro forjado da mesma casa no espaco de meses, sendo varios anos entre elas. Parece que a resposta a esta pergunta esta menos nas condicdes de sucesso ou fracasso estético € mais nas exigéncias do catélogo e de suas categorias Em tudo isto, 0 sujeito € central, Os pérticos € balces de ferro forjado serio os sujeitos de Atget? Serio suas escolhas manifestacdes pessoais como sujeito ativo, pensante, de suas intengdes e criatividade? Ou serdo simplesmen- te (embora nada haja de simples nisso) sujeitos determinados por um catélogo 55 de que o préprio Atget é sujeit? Que prego estariamos dispostos a pagar em matéria de exatidao historica para apoiar a primeira interpretagao contra a segunda? ‘Tudo o que foi adiantado aqui sobre a necessidade de abandonar — ou pelo menos de submeter a uma critica séria — as categorias derivadas da esté- tica, tais como auido obra e género (como no caso da paisagem) consiste, € claro, no esforco de conservar a fotografia antiga no seu estatuto de arquivo ea pedir que se examine este arquivo de forma arqueolégica, de acordo com a teoria e exemplo que Foucault nos apresentou. Ao descrever a anilise que a arqueologia submete o arquivo para revelar o estatuto de suas formagées dis- cursivas, ele escreve: [Blas] nao devem ser entendidas como um conjunto de determinacdes impondo-se do exte- rior ao pensamento dos individuos ou habitando-o no seu interior e como que de antemio; elas antes constiniem © conjunto das condigées segundo as quais se exerce uma pritica, segundo as quais esta pratica propicia enunciados parcialmente ou totalmente novos segundo as quais, enfim, ela pode ser modificada. Trata-se menos dos limites colocados ciativa dos sujeitos do que 0 campo em que ela se articula (sem constituir seu centro), das regras que adota (sem té-las inventado nem formulado), das relagdes que Ihe servem de suporte (sem que delas seja 0 resultado final nemo ponto de convergéncia). Trata-se de des vyendar as priticas discursivas em sua complexidade e sta espessura; mostrar em vez de falar € fazer uma coisa, uma coisa diferente de nao expressar o que se pensa” [.u] Hoje, em todo lugar, tenta-se desmantelar o arquivo fotogratico, quer dizer, © conjunto das praticas, instituigdes, relagdes de onde surgiu inicialmente a fotografia do século XIX, para reconstrui-lo no quadro das categorias ja cons- tituidas pela arte € sua histéria’”, Nao 6 dificil imaginar quais os motivos de semelhante operacdo, mas 0 que é mais dificil de entender é a indulgéncia para com 0 tipo de incoeréncia que isto produz. Notas: 1, O livso: Clarence ‘o volume I da série Profesional Papers of the Engineering Departement US, Army, 7 vol. ¢ atlas (Washington D.C., U.S, Government Printing. Office, 1877-1878). 1 eientifico e também industrial que se do contexto dos informes que as acompanhavam, parecem perpetuar a tradicio da paisagem”. E Alan Trachtenberg prossegue: “As Fotografias representam um aspecto essencial da ‘empresa, uma forma de consignar a informacao, Elas coninbulram para a politica do Estado federal, que tinha por meta responder as necessidades fundamentais da industrializagio, As necessidades de informagdes seguras sobre as matérias-primas, e encorajaram a opiniio publica a apoiar a polities de conquista, colonizagio © 2. grate cartografica sobre a qual se reconstitui ‘exa informacio nao tem por nica funcao a coleta de informac:io cientifica, Como explica Alan Trachtenberg, as expedigoes topograficas pablicas no Oeste americano tinham por finalidade facilitar 1 avesso aos jazigos de minério necessirios A industrializacio do pais. Foi, portato, de um 56 yagio do Fstado federal’. Alan Trachtenberg, Fnsorporation of America (New York, Hill and “Wang, 1982). P. ‘Em um importante ensio, "Leespace de Parc”, ‘ean Glande Lebenszte anata fn; do | nuien desde sua ae laden voces | setter ninar o que deve coniar como Arte: “O Pneu dlesempenka uma faneo dupa © fomplementar exclu o rest, constitu, por meio AGG exchisio, o que nds entendemos pela palavra the Enfo € exagero dizer que 0 conceito da arte {Oireu uma profunda transformacdo quando se abu ¢ tornowa fechar o esprgo destinado a sita “etinigio’. Jean-Claude Lebensziejn, Zigag (Paris, Flammarion, 1981), p. $1. “4, Encontrase em toda a literatura dedicada ao demo cats asimilacdo da fotografia topogritica do Oeste as cepresentacdes pictoricas da natureza, “Barbara Novak, Weston Naef e Elizabeth Lindquist- Cock sao tes especialistas que consideram este rabalho como uma extensao da pintura de “paitagem do modo como era praticada no século Stes tanbon Untin onde over com “InciinagGes wanscendentais sempre condicionava @ Tancina de ver paisagem. Assim, o argumento “agora clisico quanto a colaboracio entre King, 0 ‘chefe da expedicio geologica de 1867-1870, ¢ ‘O'Sullivan que este material visual consiste em _provar as texes do creacionismo ¢ a presenca de demas Ga fotografia, Segunda nowos tore, King se opunha ao uniformitarianismo geol6gico Tyell¢ a0 evolucionismo de Darwin 20 mesmo “tempo. Fle era uin catastrofista ¢ inverpretava as mages geoldgicas das paisagens do Utah © do ‘Nevada como uma série de aios de eriagio no “decorrer las quais 0 diving eriador havia dado a todas as espécies sua forma definitiva. Os _gigantescos levantamentos de rocha ¢ escarpas, as _espetaculares formacdes basilticas eram sempre produridas pela natureza, segundo nossos autores, _€ fotografados por O'Sullivan como prova da “douttina caaastofista de King. Tendo esta missio “a camprir, a fotogratia de O'Sullivan 0 Oeste “situase portanto no prolongamento da visio de Daisigem pelos [pintores americanos da séeulo “XIN Blerstadt on Church. Malgrado este Aargumento nao seja totalmente destitaido de fundamento, pode-se igualmente provar 0 Contririo; King era um ciemtsta sério que. por exemplo, se empenhou com afinco em publicar, Aho contexto de suas proprias descobertas, 08 {rabalhos de Marsh em paleontologia, sabendo Into bem que elas forneciam im dos “clos evdidos” importantes e necessirios para trazer Provas empiricas teoria de Darwin. Alem disso, ‘Como jd vimos, as fotografias de O'Sullivan sob forma litogratica, funcionavam no contexto do Felato ce King como testemunhas cientificas ‘neutalizadas. © Deus dos tanscendentalists nao hhabita © espaco visual do livro Systematic Geology. ‘Vide Barbara Novak, Nature and Culture (New York, Oxford University Press, 1980); Weston Naef, fra of Exploration (New York, the Metropolitan Museum, of Art, 1975); Elizabeth Lindquist Cock, fnyluence of Photography un American Landscape Painting (New York, Garland Press, 1977). 5. Peter Galassi. Before Photography (New York, the Musem of Modern Art, 1881), p.12 6. Vide 0 capitulo “Landscape and the Published Photograph”, in Naef, fra of Exploration, Erm 1871, 0 Government Printing Office publicou um catilogo des trabalhos de Jackson sob o titulo Catalogue of Stereoscopic, 6 2 8 and 8 x 10 Photographs by Wim Ht. Jackson. 7. £ dbvio que o olho nao se acomoda novamente. Na realidade, eis 0 que acontece: dada a proximidade da imagem ¢ 0 fato que a cabeca nio pode se deslocar em relacio at cla, para varrer com 0 olhar a superficie da imagem, o espectador deve reajustar € coordenar novamente os dois olhos a cata ponte que seu olhar peveorre 8, Olivier Wendell Holmes, “Sun-Painting and in-Scuprure”, Atlantic Monthts It (Julho 1861), pp. 1415. A discussio sobre a vista de Broadway encontrase na p. 17. Os dois outros ensaios de Holmes foram publicados sob o titulo “The Stereoscope and the Stereograph’”, Adlantic Monthly, IIL Junko 1829), pp. 738-48 c “Doings of the Sunbeam”, Adaniie Monthly, XH Gullo 1863), pp. V13, 9. Ver Jean-Louis Boudry, “Le Disposiat, Communications 23. (1875). pp. 56-72; € Bau “Ginéma: effessidologiques produits par T'appateil dde base", Ginthique,n278 (1979), pp. 18. 10. Edward W. Earle, ed. Point of view: The in Ameria: A Cultural History (Rochester, NY, The Visual Suaies Workshop Press, 1979), p. 12, Em 1856, Robert Hunt eserevin no Art Journel “Encontraze hoje 0 extercoscépio em todos as xaldet: os fléofos falam dele com sabedoria, as ddamas estZo encantadas pela representacio magica {que oferece eas criangas com ele se divertem”. Toi, 9-28, 11. “Photographs from the High Rockies", Harper's Magazine, XXXIX (September 1862), pp. 465-75, Tratase aqui de outsa publicagio da imagem Tifa Domes, Pyramid Lake. Aqui. porér, sob 3 forma de uma gravura bastante tosca part istrar 9 relato de aventuras do autor. Um novo espaco imaginativo se projeta ma tela vazia do eolddio: correspondendo com o relato do que por pouco nao socobrou 0 barco da ici, o gravador risca com tracosrelampago 57 as diguas tenebrosas, furiosas ¢ atulha o ‘céu de tempestades, com nuvens baixas © ‘ameagadoras. 12. Evereve Barbara Stafford: "A idéia segundo 2 ‘qual a verdadcira histria seria historia natural Ibera oF objetos da natureza do governo dos homens. Para.a idéia de singularidade, € ignificativd [..] que os fendmenos geol6gices, onsiderados no seu sentido mais amplo para Sharear espécimes do reino mineral, constituam paisogens onde 2 historia natural encontra uma Expressio estética [.] © aliimo estigio nesta ‘hstoricizacao’ da natureza couside produtos da hisiora passam ser naturais. Em P789, o sabio alemio Sasmucl Witte, apoiaado swas condlusdes nos eseritos de Desmarets, Dulue © Faujas de Saint-Fond, decid que as pirdmides do Egito cram fendmenes naturas, declarando que, neste caso, tratavase de erupcdes basilticas, Para fle, as rufnas de Persépolis, Baalbek, Palmira, bem ‘como o templo de tipiter em Agrigente ou o palicio do Inca no Peru eram afloramentos Titicos”, Barbara M. Stafford, “Toward Romantic Landscape Perception: Mustrated Travels and Rise of ‘Singularity’ as an Aesthetic Category", Art Quartey,n.s.1 (1977), pp. 108-109. A autora conclu seu estudo sobre “» desenvolvimento de lum gosto pelos fendmenos naturais enquanio- Sngularidade”, insatindo no fato de que “nia se deve interpreta [..] 6 objeto natural isolado como Substituto do hamano: 20 contririo, os mondlites isolados, destacados (pelo pintor romintico de paisagens do século xix] devem ser situados hhovamente na tradigio estética vitalista que surge do relato de viagem ilustrado e que tinha apreo pelo singular na natureza, Podese intiular esta tradigio de ‘neve Sachlchkai, em que a aren 0 dirigida as caracteriticas espectficas da nacarera produz um reperiério de particularidadtes Jnumanas-€ an p. 7118, 13, Para uma outra diseussio da tese de Galasst emt relicio as origens da “Perspectiva Analitica” na Gtica do século xv a cénara abscura ver Svetlana Alpers, The Ari of Describing: Dutch Art in the Seaenteenth Century (Chicago, University of Chicago Press, 1983), cup. 14, Michel Foucault inaugurow uma discussie sobre o museu em “Un Fantastique” de Bibliotheque”, Cahiers dela Compagnie Renault ‘Baral, 2 59, marco de 1967. Ver também Eugenio Donato, “The Museum's Furnace: Notes toward a Contextual Reading of Boward et écuchet", Textual Strateges: Perspective in Post “Siructeraliom Criticism, ed. Josue V, Hai (Ithaca, Cornell University Press, 1979) e Douglas Crimp, “On the Museum's Ruins", October, 1.13 (wero 1980), pp.al7. 58 15, Andeé Malraux, Paychologie de UArt, vol. édlitions Skira, Geneve, 1947, p. 32 16. Stanley Cavell, Must We Mean What WeSay? (New York, Scribners, 1969), p91, n." 9. 17. Os estudantes de hist6ria da fotografia nio s0 ‘encorajidos a questionar a validade ou nde dos ‘modelos da historia da arte aplicados so campo Fotogeafico. As conferéncins dedicadas a histiria da fotografia no congreso da College Art Association de 1982, anunciadas como frute de uma verdadeira pesquisa finalmente aplicada a este ‘campo —até entdo estudado sem sistematizag30. — foram 0 exemplo perfeito do que nao se deve fazer, Na comunicacio de Constance Kane Hungerford, “Charles Marvitle, Popular Mustrators Origins of a Photographic Aesthetic", 9 modelo da necessivia da obra permite ‘segundo a qual deveria existic um elo enue a pratica de Maryille no inicio de sew trabalho como gravaror ¢ sua carreira subseqiiente como fotigeato, AS defi cetilisticas levadas por este tipe de comparacio (os contrastes fentuados enire preto € branco, os contornos tidos precisos, por exemplo) eram nio somente dificeis de localizar de forma sistematica, como — quando era possivel aplicar de iato estes critérios — isto nio distinguia Marville de sew» olegas ca Missle heliografics, Para cada 1 suas imagens “‘grificas” existe um Le Secq tio ‘grafico quanto ele, 18. Podemos citar como exemplo desta sitwagio 0s cerea de 65,000 metros de filme redados por Eisenstein no México para seu projeto Que Viva ‘Mexien. Este filme, que havia sido enviado & California para ser tevelado nunca tot vsto pelo realizador, que foi obrigado a deixar os Estados Unidos assim que chegou do Mexico. Dois netieanes se apropriaram entic do filme, © com cle fizeram dois: Thunder aver Mexico € Tine in the Sun. Nenhuum éestes do's filmes é cconsiderado parte da obra de Eisensiein. Hoje. esta apenas uma sucesso de seqiiéncias da filmagem compilada por Jay Leyda para © Museu de Ante Moderna de Nova lorque, O seu estatuto ‘com relacio 4 obra de Eisenstein ¢ muito especial, Claro, Mas como na época da filmagem cle ja tinba luma pritica cinematogrifica de quase dee anos, ccomsiderando o estado da arte cinematogrsfica tem termos do corpus exiscente nos anos 30 € 0 nvolvimente da teoria. & proxivel que Fisenstein tivesse uma melhor nocio do que cdo a partir de seu roteito ¢ de sua concepeao do filme, embora nunca o tenha visto, flo que 0s fotdgrafos da Missao hetiogratica pucessem ter de seu trabalho. A historia do projeto de Eisenstein fof relatada em detalhes no: livre: Sergei Eisenstein and Upton Sinclair, The ‘Making and Unnahing of Que Viva Mexico, ed. Harty M, Geduld and Ronald Gouesman (Bloomington, Indiana University Press, 1970). 19. Ver Abigail Solomon-Godeatt, “A Photographer in Jerusalem, 1855: Auguste Salzmann and his Times”, Ocober,n." 18 (outono 1981), p. 99. Neste ‘ensaio, a autora se questiona sobre determinades pontos tratidos acima sobre a nauureza problemética da nogao de obra aplicada ao {trabalho de Salzmann. 120, Man Ray publicou quatro fotografias de Atget ‘em Révolution surréalise, es no nimero de junbo de 1926 ¢ uma no mimero de dezemibro éo mesmo ano. A exposi¢io Film und Foto, que Ocorreu no ano de 1929 em Stuttgart, abarcava Fotografias de Aiget, cujo trabalho tainbém foi apresentado cm FarAuge (Stuttgart, Wedeking ‘Verlag, 1929), 21, Maria Morris Hambourg and John Szarkowski, “The Work of Atget: Volume I, Old France (New Yor ‘The Museum Of Modern Art, and Boston, New ‘York Graphic Society, 1981), pp. 18-19. 2. Ibid, p:21, 98, A primeina discussio publicada com telagio a ‘te problema o define da seguine maneira: *O Sistema de numeracio de Atget & misterioso. Suas fotografias nio somente sio numeradas cronologicamente, mas de forma desconcertante. Muitas vezes imagens que portam um nimero pequeno sio posterioresa imagens de niimero maior; com freqiéncia, também, os miimeros se repetem”. Ver Barbara Michaels, “An Introduction to the Dating and Organization of Eugene Arger's Photographs’, the vv Bulletin, LXI (setembro 1979), p- 401. 24, Maria Morris Hambourg, “Eugene Atget, 1857- 1997: The Structure of the Work’, (Unpublished Ph.D.dissertation, Columbia University, 1980). 25. Ver Clarks Marve, Pholograhs of Paris 1852- “1878 (New York, Alliance Francaise, 1981), Este Iivro contém um ensaio de Maria Moris Hambourg: “Charles Marville's Ola Pars”, 26. Michel Fone: Gal ‘Archiologie du Savoir (Pais, ward, 1969), pp. 171-172. 27. Até hoje, os trabalhos de Alan Sekula foram os picos a eneaminhar unia analise coerente da historia da fotografia. Ver Alan Sekula, “Fhe Traffic in Photographs”, Art journal, XLI (primavera, 1981), pp. 15-25; ¢ “The Instrumental image: Steichen at War", Artform, XIII (dezembro 1075). O leitor interessado encontraré um debate sobre a necessidade de reorganizar 0 arquivo para proteger os valores dta modemidade em: Douglas Grimp, “The Museum's Old / The Library's New Subject”, Parachote (primavera 1982), A FOTOGRAFIA E A HISTORIA DA ARTE O impressionismo: narcisismo da luz © que pode significar o Impressionismo na idade do narcisismo? Até que ponto o impressionismo pode tocar diretamente uma sensibilidade tao intro- vertida como a nossa? As telas dos impressionistas irradiam uma generosidade que nao se desyenda apenas no brilho das cores, mas também nesta sorte de benevoléncia para com os objetos, um dos tracos dominantes de seu estilo. Por ocasiao de um longo encontro com o Impressionismo, como 0 que foi proporcionado recentemente na exposi¢do organizada em conjunto pelo museu do Louvre e o Metropolitan Museum’ por ocasiao de seu centenario, temse a impress4o que apenas a nostalgia, talvez, consiga formar um liame entre nossa sensibilidade ¢ o que foi a altima fase importante do realismo. Aatitude artistica contemporanea, tentativa incessante de refletir a organi- zagao da consciéncia, resulta em obras que se remetem a si mesmas em um cir- cuito fechado. Com a arte modernista, € cada vez mais dificil discriminar 0 que € intensidade do prazer estético dos proprios prazeres da obsessio em si; esta dificuldade chega ao cume em determinados formatos atuais, como o video, em que a contemplacio do objeto de arte torna-se narcisista. O video, flerte mais recente da vanguarda com a tecnologia, faz uso da televisio em cir- cuito fechado com fins estéticos. As duas estratégias ativadas com maior fre- qiténcia pelos videastas consistem em fazer uma gravacéo deles mesmos enquanto gravam ou manipulam a camara para que ela registre sua propria capacidade interna de varrer um campo visual. Portanto nao surpreende que Hollis Frampton, realizador de filmes de vanguarda, ao descrever os processos que permitem ao video voltarse sobre si mesmo, evoque imagens de exibicées auto-erdticas: Basta permitir ao video olharse a si mesmo para que produza, sob aparéncias de infinita diversidade, nio avatares idénticos ao seu “continente” em duasdimensdes, mas antes varia. des extremamente especificas de seu mais tipico “contettdo”. Quero dizer que nas man- dalas do feedback, nas ilusdes de Stica grafica que produzem movimentos de vaivém de fren- te para tris € se desdobram na maioria dos casos em espirais ambiguas como um jogo de palayras de Duchamp, o video confirma definitivamente seu erotismo original Porque aspira receber 0 reconhecimento de uma midia considerada moderna, o videasta procura imagens reveladoras de seu empreendimento fundamental. As que ele encontra funcionam sempre como substitutas do 63 encontro erético consigo mesmo que yem a ser o narcisismo. O contato Csite elecido através do video significa um encontro consigo mesmo — imediato para sempre, para sempre distanciado. As satisfacoes obtidas com esta forma Ge-arte nao parecem oferecer qualquer promessa de relacdo com os oulros. ‘Ao contririo, o mundo para o qual se voltavam os impressionistas ¢ Cujo traco recolhiam tela apés tela parecia sempre ser um mundo extrovertido. 0 sinal de seu gregarismo — presente em cenas de almogos ou de multiddes na cidade, nas corridas de cavalo ou a beiva d’égua— é o de exterioridade da luz: sol imprimindo sobre todos esses sujeitos 0 selo de sua independéncia. Tudo acontecia como se a luz do dia tivesse se tornado simbolo de tdo que Eexte- rior, de tudo que € dado, de tudo que se diferencia do espaco interno da cons ciéncia. ‘Contudo 6s comentarios a respeito do Impressionismo sempre se enredam nas aparentes contradicdes internas do estilo, pois © gregarismo contém 0 germe de uma introversio ctescente nos impressionists, Ao mesmo tempo 6 que atribuam maior realismo aos seus sujeitos, eles destacavarn o procedimen- ee eavinndo assim a atencdo do mundo exterior e dirigindo-a As modalidades iniemas do processo descritivo. Emile Zola, sempre prestes a defender. os impressionistas em todas as ocasides, também nao tardou em muday de opiniéo quando 0 estilo dos impressionistas afirmnouse com autonom’s Onde tinha tntrevisto a promessa de um desdobramento do naturalismo, ele comesou logo fj observar uma crescente imprecisio, a ponto dos personagens dos qucros verem trafdos pela crosta de cor despedacada que parecia cobridos, Como disse Meyer Schapiro, era um pouco como se Zola tivesse visto 08 impressionistas transformar suits to quetidas “Fatias de vida” em “Fatias de pao”. Desde o principio, quando deixaram seus atcliés para conquistar © mundo exterior, os impressionistas foram de encontro a sua propria ambicao realista. Como bem 0 percebeu Emile Zola, a ilusio pict6rica se fragmentou, reduzitr do a imagem 20 destraldar de seus componentes concretos: depositos de Pig ‘nentos, tacos de pinceladas e, aqui ou ali, manchas brancas da propria ela naa, Além do mais, fato de cmprestar procedimentos estilisticos das estarm pas japonesas, da escola holandesa e da fotografia se combinaya ao 189 de uma Espessa camatia de tinta € ao trabalho em relevo do pincel para levantar aint parreira entre o observador € o que cle desejava ver. Os retratos de Degas ou a imagem que oferece de espectadores em corridas de cavalos contrastam com 6 que os rodeia por causa das silhuetas impressionantes, que assoclanies com ts elipses formais da arte japonesa. Eimpossivel deixar de ver esta intr ‘uso do ceatilo” ¢ nao sentila como um empecilho interno & tentativa do pintor rea lista de criar um vinculo com seu sujeito. Tudo acontece como Se 08 TPIS Sionistas, ao reclamar o contato direto com seu sujeito, ja dvidassem que esta exigéncia pudesse ser satisfeita. 64 ‘A razao disso nunca me pareceu evidente, até porque as formas preceden- tes do naturalismo nao haviam passado por fenémeno semelhante. Um qua- dro de Constable, por exemplo, montado com base em esbocos mas construf- docom aluz e segundo os principios do atelié, nao tem nada do carter plano, da estilizago € da refracao das telas impressionistas. E simplesmente inex- plicavel que 0 fato de sair do atelié e ir ao ar livre com 0 objetivo de aproxi- Fhar-se do sujeito tenha gerado uma visio tio esteticamente marcada, Gerca de dez anos auids, Michael Fried, comentando a emergéncia desta contradi¢do interna na obra de Edouard Manet, a caracterizou como uma situagio “poskantiana” em que, segundo afirma, “a realidade afastase do poder que tem a pintura de representila”. Porém, mesmo que essa seja a des- crieio correta do que aconteceu com a pintura depois de 1860, nao é uma explicacio suficiente. O que quer dizer este “ afastamento da realidade”? E de que modo poderia um pintor nos anos 1860 perceber este sentimento? Em suma, o que poderia conduzir um pintor a tamanha ambivaléncia na descri- Gao que retrata do mundo natural? Talvez seja essa uma pergunta que perma- necera sem resposta ou que receberd tantas respostas quanto ha pintores impressionistas. Entretanto minha intui¢ao, ao abordar este assunto, me leva primeiro em direcio a Claude Monet. Podemos facilmente imaginar Monet como um jovem estudante na cidade de Le Havre. Ele recebeu uma educacao absolutamente burguesa em matéria de arte, ou seja, uma formacéo académica, atribuindo grande valor ao seu talento precoce de caricaturista € menosprezando sobejamente, na galeria de arte onde expunha, os pequenos esbocos sumarios de outro pintor pendura- dos na mesma galeria ao lado de seus desenhos, bem mais eloqiientes para ele. © autor desses exbocos, Eugene Boudin, parece ter sido jum homem cuyja auséncia de pretensio estava a altura de sua paciéncia e generosidade. Ele € Monet foram juntos trabalhar no campo. Gragas as mumerosas sessbes de estu- do ao ar livre (de onde ambos traziam esbocos), Monet desenvolveu um inte- resse em relacio aos eternos problemas de descri¢ao da natureza. Porém para se tornar um pintor “de verdad” ¢ nao um mero paisagista dominical, Monet tinha a obrigacio de ir a Paris. La ingressou no atelié do pintor académico Gleyre, onde nao tardou em perceber que, no essencial, 0 seu territério era na verdade o paisagismo. No decorrer dos anos seguintes, estudou mais fora do que dentro da academia Gleyre. Ele ia com freqiiéncia @ floresta de Fontainebleau, onde encontrou na pessoa de Danbigny, da escola de pintura de Barbizon, outro pesquisador entusiasta do estudo da natureza. Aqui a historia se torna mais interessante porque, ao contrario de Eugene Boudin ¢ até de outros membros da escola de Barbizon, Daubigny era um ver- dadeiro pintor de cenas ao ar livre. Ele nao ia aos campos apenas para trazer esbocos ao atelié em que o verdadeiro quadro seria composto. Ao conurio, 65 afirmava com veeméncia que a pintura realizada por ele ao ar livre era 0 qua- dro definitivo, ¢ isto a despeito do resultado obtido nessas condicdes ser bas- tante peculiar. Sua tela tinha grandes contrastes com vastos espagos de luz ¢ escuridao e, dentro dessas massas, praticamente nao havia articulacao. Era como sea modulagao das formas (as curvas) ¢ a precisio dos detalhes (0 dese- nho) tivessem sido engolidas nas duas extremidades do espectro luminoso. 0 que era mais escuro que as tonalidades medianas era esquematizado por man- chas informes quase pretas, ¢ que era mais claro permanecia sob a forma de espacos embranquecidos. Ora, se a reducao dos esbocos em anotacGes esquematicas ou dispersas era aceita na época, 0 mesmo nao valia para um “quadro”: no século XIX, 0 qua- dro se definia como unidade consiruida. Para que um quadro fosse identifi- cado como tal, era necesséria uma visio unificadora, uma visio que estrutu- yasse um conjunto de fatos € estabclecesse vinculos entre eles. A obra de Daubigny se opunha a essas exigéncias. Suas imagens fragmentadas, em que faltava evidéncia de visio coerente, nao pareciam satisfazer 0s requisitos de um_ “quadro". Por esta razéo, Théophile Gautier dizia que Daubigny “se contenta de uma impressio” € seus quadros “nao sio mais que esbocos — € esbocos pouco trabalhados” ou que “nao oferecem nada além de manchas de cores jus- tapostas’”. Podemos agora formular a pergunta: 0 que havia com Daubigny que 0 impedisse de transpor a natureza em pinturas que respeitassem as convencdes da unidade? A tinica resposta que parece trazer alguma coeréncia a situacao € a seguinte: a experiéncia da fotografia. E dificil imaginar como foi a acolhida inicial da fotografia nos anos 1830 € 1840. £ dificil ler 0s primeiros comentarios suscitados pela invencio deste ins- trumento com a precisio ¢ ingenuidade que eles solicitam. Quando Daguerre apresentou cm 1850 seu invento perante a Academia das Ciéncias em Paris, fez uma adverténcia aos seus auditores: “O Daguerrestipo nao é um instru- mento que serve simplesmente para desenhar a natureza [...], ele Ihe da poder de reproduzir-se a si mesma”, © britanico Fox Talbot nomeou sua téc~ nica fotogrifica de “o lapis da natureza”e se falava em Paris dos “desenhos do sol”, Francois Arago, quando defendeu a patente do invento de Daguerre, afir- mou que “a propria luz reproduzas formas e proporcdes dos objetos reais” Semelhante linguagem ultrapassa a simples nocdo segundo a qual a foto- grafia s6 representa para o homem uma mera forma de criar imagens auto- maticamente. Na realidade, estas palavras retratavam a estupefacdo daqueles que descobriam, aos poucos, que a fotografia revela a capacidade da natureza de reproduzirse a si mesma. Algo semelhante a uma impoténcia surpreendente presidia ao nascimento da fotografia. O homem estava ali, constatando que a natureza era capaz de 66 iuzir-se a si mesma. Gracas a uma espécie de flexibilidade digna de um. a natureza se redobrasse sobre si 6 dizia um observador contemporaneo, era “um desenho levado a per- que a Arte nunca saberia alcancar [...] Pode-se contar os paralelepfpedos er a umidade provocada pela chuva”, Uma das reagdes frente aquilo que a natureza relatava sobre ela mesma estava portanto relacionada ao fato de que pudesse ultrapassar a percepeao humana. Os paralelepipedos e a umidade, nscritos na placa do daguerrestipo, demonstravam através da assombrosa niti- adquirida pelos objetos longinquos a precariedade da percepcdo humana. ‘De forma radicalmente diferente, 0 calétipo! (que produzia a imagem a tir de um negative) chamaya a atencao sobre uma outra forma de preca- . De algum modo, ele fornecia a prova da necessidade que tem a visio nana de restituir os detalhes de uma natureza dividida entre os dois polos slutos, escuriddo ¢ luz. Utilizando um processo diferente do daguerresti- calotipo obtinha um resultado diferente. As tiragens eram feitas a partir um negativo em papel oleoso, A resolugao das imagens era mais fina do que ela produzida com a placa tinica dos daguerreétipos. As tiragens apresen- am uum contraste muito maior, eram formadas de massas violentas de preto ranco. Eram brutais ¢ estranhas, quase desprovidas de detalhes. Os caléti- que conhecemos, dos anos 1850, se parecem assombrosamente com os _ Sabemos que Daubigny ¢ os demais pintores da escola de Barbizon estavam yasmos diante do advento da fotografia ¢ podemos imaginar que pensaram i a primeira fotografia, Arago inventou o itivo que trouxe informagGes desconcertan- quando o fotémetro era orientado para uma mancha de tinta branca € fo a seguir uma mancha de tinta preta, registrava cm sua escala uma dife- fenca de um (na cor preta) a noventa (na cor branca). Mas quando era dire- enado para a parte mais luminosa do céu e depois para 6 canto mais obscu- © do chao, 0 instrumento registrava uma diferenga de um a nove mil. As licdes que dai se devia extrair sao bastante claras. A gama de contrastes Tatureza ultrapassava a da visio humana: ela ia obviamente bem mais além as capacidades restritas da arte para reproduzi-la. A unidade artificial da pin- a ou descida até o preto — surgia como o mais desanimador dos disposi- i pe a natureza acabava de revelarse polarizada, esquartejada, distendi- fora do alcance do artista. E quando ela se representava a si mesma com 0 Otipo, o fazia de forma quase ininteligivel. A imprecisao e a auséncia de pro- did: 6ti lade do calétipo mostrava a natureza como que foreada até os limites do 67 espectro luminoso, dobrada sobre si mesma em uma soberana auséncia de definigao. Podemos observar outro aspecto do calétipo. Ao conudrio do daguerre- 6tipo, suas imagens tinham uma granulagao. A tiragem produzida pelo cald- lipo revelava a textura fibrosa do negative — papel com 0 qual era realiza~ do. A natureza talvez tivesse se dobrado nela mesma, mas nao sem antes passar pelo intermediario concreto de um objeto fabricado pelo homem. O nascimento de um conceito de unidade absolutamente novo germinava nesta tensao surgida entre o distanciamento maximo, das zonas claras © escu- ras, dentro da imagem e a natureza repetitiva da estrutura granulosa do papel. Esta unidade, porém, se apoiava na premissa segundo a qual mante~ mos uma relacao de exterioridade com as forgas internas que determinam o acontecimento. A idéia da natureza reproduzindo-se por um ato interno de contemplagio sugere a imagem de um narcisismo fundamental € nao é a outra coisa que alu- dem as primeiras reacées criticas suscitadas pela fotografia, embora, neste caso, se tratasse mais do narcisismo humano que do narcisismo da natureza. Para expressar 0 seu desdém para com a invencdo de Daguerre, escreveu Baudelaire: “A partir deste momento, a sociedade imunda precipitou-se a con- templar sua trivial imagem no metal, como se fora um s6 Narciso.” Mas 0 sur- gimento da fotografia parece ter ensinado um outro tipo de narcisismo aos impressionistas: quando ela se inclina nesta agua para se contemplar, a natu- reza torna-se estranhamente impenctravel. Uma perda na inteligibilidade implica para 0 pintor em seyero desregra- mento no se conceito de coeréncia pictérica. © impressionismo de Monet nasce do sentimento de que a unidade de uma representagio pictérica-da natureza nao pode ¢ nao deve ser conseguida @ prion, jé que ndo se sabe em qué fundamentéla, Quando Gustave Courbet aconselhou Monet, em cerca de 1865, foi no intuito de orientar o jovem pintor a compor suas paisagens sobre um fundo de bistre. Como anotou Monet, "Courbet pintava sempre sobre um. fundo escuro, sobre telas que j4 tinham sido preparadas com uma base de cor castantha, um procedimento pratico que ele se esfor cima disso, dizia Courbet, ‘o senhor pode dispor suas luzes, su ridas; o senhor vé 0 efeito de imediato®.” Ele incitava Monet a tirar partido da sup de antemao a unidade do quadro. Monet rejeitou esta técnica. Em ver de adoti-la, passou a utilizar uma escala de valores pictéricos que nao possuia qualquer transicao costumeira enu prosseguiu na via de um desenho sum: so de que ele se ressentiu profundamente da in: lizados até entio para obter a unidade. cou em me transmitir. Em s massas colo- ficie preparada para assegurar - 0 sombrio € o claro, da mesma forma que (0 ¢ desarticulado, Prevalece a impres- ficiéncia dos processos uti- 68 Claude Monet, Mutheres no jardim, 1866-1867 © quadro de Monet Femmes au jardin (Mulheres no jardim) de 1867 foi Apresentado na exposicio do centensirio da primeira manifestacao impressio- mista. Ali também Courbet tinha dado seus conselhos, Nesta obra, Monet Fettne quatro mulheres entre arbustos e canteiros de rosas de um jardim e Tent o contraste entre a levera do tecido de seus vestidos de verao ¢ o verde Po do ambiente. O sujeito do quadro, bem como suas dimensoes mais de dois metros de altura) nos do uma indicacdo das ambicées do autor: phages de tamanho quase natural em meio a um cenirio, a um a pre ane Desde 0 escandalo do “Déewner sur Uherbe" mem gama) de Manet em 1868, muitos pintores tinham, por sua Fe tl orsco de celebrar 2 unio entre pintura de figuras ¢ paisagem. A lonet em arriscarse ¢ ainda mais evidente por sua forma de 69 agrupar os personagens (trés mulheres reunidas no primeiro plano 4 esquer dae uma no segundo plano a direita), wtilizando novamente uma disposicio idéntica A do Déjeuner sur Uherbe, Mas 0 quadro de Manet tinha sido elaborado em atclié ¢ Monet nao queria ouvir falar de exeeutar um trabalho que nao fosse totalmente realizado no exterior. Dada a dimensao da obra, foi pre abrir uma vala no jardim de Monet para que, abaixando a altura da tela, ele partes altas conservando a mesma orientacio dele em pudesse trabalhar 1 relagao a cena. Courbet fez uma visita a Monet na época em que ele pintava esta tela. Como ‘0 céu estava encoberto, Monet tinha parado de pintar € esperava a volta do sol. Courbet julgou insélita esta pausa. Porque no aproveitar 0 tempo para pintar as Arvores ¢ arbustos do fundo do quadro? Ao citar este ocorrido na sua Historia do Impressionismo, escreve John Rewald: que sabia que s6 obteria uma perfeita unidade se pintasse todo o seu quadro sob as mesmas condigSes de luz, Caso contrario o trabalho 20 ar livre ndo se jus- lificava para ele. Com efeito... E, no entanto, é singular a falta de unidade neste quadro. Ele se compoe de triangulos de sombra e de luz organizados de tal forma que a A esquerda, o grupo das trés mulheres, uma sentada € duas em pé, constitui um motivo complexo em forma de vela marinha amarrada a lateral do quadro, como se este fosse um mastro. Contrastando com esta sélida implantacao, o resto do espaco se faz indeterminado, de forma que acaba sendo dificil saber onde exatamente se encontra a quarta mulher (quase uma silhueta de papel recortado), ¢ adivinhar © que podera estar fazendo. Dizem que Manet no gostava deste quadro. Inclusive no clogio redigido por Emile Zola, podemos perceber que o escritor est na defensiva, que admi- te a existéncia de fragmentos na obr conselho por- figuras tornam o espaco em torno delas curiosamente ilegivel. No ano pasado recusaramhe um quadro de figuras, mulheres em trajes claros de ver’io colhendo flores na saias de um branco resplandecente: a sombra morna de uma arvore recortava uma grande toalha cinza mas alamedas ¢ nos vestidos ensolarados. Efeito dos mais estranhos. & preciso gostar de modo aha, panos cortados em dois pela som- alamedas de um jardim; o sol caia diretamente na bem peculiar de seu tempo para ousar wnanha fi bra e pelo sol Hoje, é difici zado do sol ¢ da sombra podia parecer ceber o aspecto transicional da obra, a recusa imperturbavel do pintor em base- arse sobre um conceito tradicional da estrutura. A mulher isolada no fundo do jardim “flutua” porque Monet ainda ngo se tinha dado conta que fodos 0s seus largos planos triangulares, planos e ricos em valor, tinhaim que ser ancorados na estabilidade tranqiiilizadora do contorno do quadro. Se Monet tivesse tira- eniender porque um vestido cortado em dois pelo fogo eru- 0 estranho. E, para nés, mais facil per- 70 Claude Monet, La Grenouiliére, 1869 do do lado direito aproximadamente tinta centimetros da largura da tela, 0 vestido da mulher situada no fundo teria sido cortado pela borda da tela, A cer- teza de sua relacdo com a beira vertical do quadro enquanto objeto, teria com- pensado a incerteza de sua posic’o no espaco e poderiamos reconhecer a composiciio de Femmes au jardin como um quadro realmente impressionista. Mas, em 1867, Monet ainda nao tinha descoberto este tipo de unidade por compensacdo. Naquele tempo ainda pensava que, embora nao conhecesse hem pudesse realmente ver a natureza, ela possuia uma unidade intrinseca que um dia ele conseguiria reproduvir na tela, desde que se obstinasse bas- tante. Do que o pintor tinha toda certeza, era que uma unidade concebida a priori, antes de qualquer experiencia visual € cujo simbolo fosse © arranjo pre- cstabelecido de um vestido de mulher era insuficiente. Esta é a razao pela qual ele teve que ‘onsar tamanha facanha”: (pire eis amanta “panos cortados pela sombra ¢ pelo sol” a pois, em 1869, Monet chegou a composicao impressionista tal 4 conhecemos com a extraordinaria “Grenouillére™, Descrevendo uma cena de €sportes nduticos ¢ um almogo ao ar livre em Bougival, no rio Sena, 0 quadro representa uma composicao de canoas, um pontao coberto e um grupo de banhistas sob 0 aspecto de uma série de formas largas ¢ escuras, comprimidas “a contra a reverberacio cintilante da agua. Todas aquelas formas estao fixadas na borda da tela, firmes como se fossem simples laminas de facas fincadas na tenra madeira da moldura: as canoas ¢ a folhagem plantadas nos seus angulos, 0 retangulo comprido do pontio plantado na parte lateral. A tinica regio “flutuante”, uma ilhota no meio do rio, no recebe tratamento diferente. Quatro linhas escuras (cluas passarelas ¢ o merguilho vertical de um tronco de Arvore com seu reflexo) se destacam de cada lado do quadro como se fossem. esticadores, amarrando o quadro a estrutura frontal e quase engradada da superficie. Estas formas escuras, sem espessura, vém se fixar na superficie do quadro, literalmente como objetos subtraidos da correnteza do rio que se espalha ao fundo. Reconhece-se 0 espaco como sendo naturalmente incom preensivel, porque # autonomia do quadro € uma ¢ a unidade da paisagem, por sua vez, se afirma como sendo outra. © tratamento imposto ao espaco pela composicao também € o mesmo impos: to A textura em razio da estranha estenografia das pinceladas. Esta pele formada. pela camada pigmentada afirma a existéncia de un descompasso entre 0 que o olho apreende da natureza e 0 que a natureza percebe de si mesma. A confec- cio € testemunha de sua prépria exterioridace em relacio ao fendmeno descri- to, 0 que sugere imediatamente um paralelo com a granulacdo dos cal6tipos. Pensase no impressionismo como uma arte da cor, mas ele no o foi nos seus primordios. Antes de 1874, Monet era um pintor tonal, que estruturava as paisagens pelo jogo dos contrastes entre pretos € brancos. A adogao desse modo de pintura é uma indicacio suficiente do papel essencial da forografia: a imagem fotografica ¢ as “Nerdades” que ela registrava orientaram as percep- qdes de Monet quanto aos problemas internos da natureza ¢ da arte. Ele néo se entregava a uma imitagao superficial das nebulosas de formas dispostas a0 acaso, proprias da fotografia, ¢ sim a um trabalho muito mais proftundo: estor- cavase em tirar conclusdes da quase-opacidade da imagem forografica. Os detalhes diferem no caso de(Degas) porém a li¢io é da mesma ordem. De todos os impressionistas, Degas for que se associou com maior freqién- cia 4 fotografia. Sabemos que ele se inspirou nas fotografias de Muybridge para retratar animais em movimento e ha muito tempo se admite que a ela horacéo de suas obras a partir de 1879 beneficiouse de suas habeis incursoes no vast acervo fotografico de que dispunha. E preciso considerar entretante que esta relagio, ainda que efetivamente importante, se estabelece no nivel estrutural e nao no dos detalhes, sejam quais forem seu impacto. Neste aspec to, podemos refletir sobre a relacao de Degas com © monotipe. © monotipo € um proceso que nao permite revelar varias tiragens da mesma imagem, ao contrario dos demais métodos de reprodugio. As provas tao obtidas a partir de desenhos feitos com tinta de tipografia em placas de vidro ou metal. Existem dois procedimentos: 0 método do fundo preto con- 72 untar a superficie da placa com a tinta e, em seguida, retirdta de yminados espacos com um trapo ou © dedo, para definir o realce deseja- -de luz e dos cinzas da imagem. © outro método, a técnica do fundo claro, siste simplesmente em desenhar em uma placa virgem com a tinta e um ncel. Como em nenhum dos métodos foi gravado algum trago na placa, é stritamente impossivel reconstituir 0 desenho depois que o papel da tiragem gbsorveu toda a tinta, apés uma ou no maximo duas tiragens, i 5 comecou a realizar monotipos em 1874. Gom excecio de algumas de bordel, ele s6 praticou a técnica do fundo preto. Estas obras ofere- ecem extenuados, como jovens brotos emergindo de um solo calcinado. A ‘do monotipo original, Degas procedia a uma segunda tiragem, na qual Ihava com pastel ou guache. Um quarto de sua enorme producio de hos ao pastel foi claborado a partir de monotipos. ste proceso, 0s monotipos em fundo preto se revestiam de uma impor- 10s com obstinagao para preparar suas telas e podia utilizar o monotipo para ybater sua tendéncia a recorrer as frmulas prontas. Essa técnica Ihe per a impor a si mesmo um contato preliminar com uma superficie coberta de as toscas € pouco precisas. Ele precisava pintar sobre uma superficie inva- 1de anteméo pela oposicio entre preto e branco, antes mesmo de aproxi- mar o giz no papel. A imagem esfacelada da realidade proporcionada pelo notipo que utilizava como ponto de partida nao deixa de lembrar o efeito calotipo. Além disso, com este procedimento, Degas havia tornado meca- ca a criacdo da imagem, a prova obtida passara por um proceso indepen- lente de seu controle direto, de forma que, 4 semethanca de uma imagem. fotografica, ela Ihe devolvia uma estranha opacidace — uma imagem que se produzira a si mesma, deixando-lhe a tarefa de decifré-la. E era para decifra- ‘que Degas aplicava tracados coloridos de pastel. Como a tinta litogréfica uti- para o monotipo era gordurosa, os tracos de pastel se negavam a mistu- € fundirse; ao contrario, se retrafam em gotas granuladas da cor do giz ie pareciam se desprender das formas subjacentes. Resultado: uma fissio ema da imagem em dois niveis. De um lado uma estrutura residual das mas- Pretas e brancas que conservava sua prépria coeréncia e, de outro, nota- de cor elevandose i fe omo uma neblina de goticulas em cima das as lonocromiaticas. & forms aoe monotipo nao Ihe ofereceu uma maneira de integrar real- em ie z fotografia, Degas nao foi impressionista. Antes da meta- ee ee elestaum talentoso pintor naturalista. O Bureau de coton d a 72ers ce 1872, repreeenando am agrupamente de homens reuni & um grande escritério, é uma obra magnifica, muito especial. Mas nio 73 se trata de uma obra impressionista, Nesta tela, a textura no se desprende do resultado das massas subjacentes e a representacdo do espago poderia ter sido obra de Euclides. Teme a impressio que foi somente depois da experiéncia dos monotipos que Degas passou a impor regularmente uma separacio, um fosso entre as massas dos corpos € as particulas que servem a reproducao visual de sua textura. E. um pouco como se 0 olho, yoltando-se para os personagens, 36 pudesse captar a superficie, como se ao olhar as pessoas 86 se pudesse enxergar suas costas. Os iltimos monotipos realizados por Degas, os mais modernos, representam uma série de paisagens ¢ datam dos anos 1890. Eles edificam um espaco imaginario totalmente voltado para o interior. Sem pro- fundidade alguma, delicadamente granuladas, estas paisagens parecem se des- fraldar perante os olhos do observador como um filme opaco. Neste filme, a imagem se reproduziu segundo suas préprias leis, Os espacos, as gotas, as pequenas marcas de tinta conservaram, para nossos olhos, 0 rasiro do peso invisivel da lisura da placa aplicada as irregularidades do papel. O que a foto- grafia havia revelado a Degas ¢ Monet era a distineia existente entre percep- cio € realidade, Considerando-se excluidos do agenciamenio intrinseco da natureza, percebida como alheia, distante ¢ absorvida na sua propria contem- placéo, ambos transformaram a unidade decorrente de sua introspecdo em solucio substitutiva. A arte dos dois tornou-se assim 0 primeiro capitulo do texto modernista — um texto originado na compulsio em produzir arte a pare tir da organizacao didatica da percepgio. No final das contas, o impressionismo nio parece portanto tio distante dos processos formais da arte contemporanea € nao é tio alheio As suas recaidas narcisistas. Os elementos erdticos de algumas esculturas destes wltimos dez anos (eu penso em Hesse, Judd, Morris, Nauman ¢ Serra) aliam a sensualida- de © a frigidez que constituem 0 texto narcisista subjacente da autocontem- placdo, tao cara ao modernismo, ao prazer de definir a si mesmo. Esta escul- tara recente trata a matéria de uma forma nova: ela a modela, no para ou pelo cumprimento de uma fungdo, mas para que exponha suas qualidades internas. Projeta sobre a matéria a ilusio de que os objetos que cla forma podem qualificar e definir sua propria materialidade, assim como podem, gra ¢as a um estranho tipo de estesia, refletir a consciéncia humana que os obser- ya como um espelho. No entanto, 20 mesmo tempo, esses espelhos da cons- ciéncia do espectador permanecem irremediavelmente inacessiveis a ela- Eles conservam o duro ¢ frio silencio da matéria inerte. Olharmo-nos neles & nos vermos através de um meio que afasta mais ainda o objeto de sua con- templagdo, ou seja, nds mesmos. O video ofeerece a possibilidade de tratar o paradoxo que consiste em “levar_ seu olhar para o interior yoltando-o para 0 exterior” € associalo com mais cla: reza As energias psiquicas do sujeito. O espeticulo de video que se contenta 74 resentar uma vitrine narcisista ndo passa do nivel do fendmeno estético yma feira. Mesmo assim, algumas produgdes buscam a organizagio ea and- leste material de forma: promissora. Os compridos ¢ estreitos corredores video que Bruce Nauman construiu em 1969 levavam o espectador para n espaco que imitava a trajet6ria do olhar para frente. Na medida que avan- os pelo corredor, afastamo-nos progressivamente de uma camara de video ada na entrada e nos aproximamos de uma tela de televisio situada no indo. A imagem para a qual me dirijo, como se eu fosse a0 encontro dela, é minha propria imagem. Porém sou eu mesma, vista de costas e encolhendo passo. E uma imagem da fotografia, na medida em que apreende e uma regi to sujeitos. do espaco do qual estamos naturalmente excluidos lizador e, logo mais, fisado com hiposulfite Larousse Ilustré, 1998. Volume I (Nots ¢ Hundred Years of Inpressionism (New York, the ropolitan Museum of Art, 1974) ® Frampton, “The Whithering avayof the OFAN, Anforui, XIII (dezembro de 1974), Lemaitre (Paris, Garni 1962), p. 317, 6. Citato em John Rewald, of. it, p.160. 7d. iid, p.198, loipo: primeiro procedimento de obtencio p gativos otograticos, imaginado por Talbot i, ease procedimento era designado m sob. nome de Talbouipo. Um pape! tado de iodeto de pottsio era sersbilizado lugao de nitrato de prats, de deido acésico e lio; este pape era entio exposto na hs ftografca ca imagem latent ali se ‘como mesmio banho utlizado como & Zola, Le Bom Combat, de Courbet aux Impressionists, escritos Sobre a arte anotados por J.P. Bouillon (Paris, Hermann, 1974), p. 113. 8. Crenouillo lveralmente “eriadouro de ri Expresso debochada para designar os lugares onde se pode tomar banho em gua de pouca profuundidade (Nota de traducdo da edigao portuguesa). 7 Marcel Duchamp ou o campo imaginario “Marcel Duchamp € Pablo Picasso [...] talvez sejam os pintores que maior influéncia exerceram sobre nosso século: Picasso por suas obras ¢ Duchamp por uma obra que vem a ser a propria negacao da nocio moderna de obra”, declarou Octavio Paz na introducio de seu ensaio sobre Duchamp. Ele divide assim 0 campo estético ¢ nele waca duas vias, duas estratégias diferentes de estilo, de tematica e até de ambicao, que definem 0 terreno da imaginacio na arte modernista. Esta divisio, porém, ja havia sido efetuada ha muito tempo. De fato, foi por intermédio desta mesma polaridade que a pratica artistica refletiu sobre ela mesma durante séculos. A arte italiana do Renascimento se organizou em torno de dois critérios antindmicos de disegno © colore que, como sabemos, assinalavam nao somente a distincao entre desenho ¢ cor como, de modo mais relevante, a opo entre uma arte de concepeao ou de reflexio ¢ uma arte da percepcao sensi yelimediata. Nos séculos que se seguiram, ideacao e ‘imediatez’ continuaram ase opor de cada lado de uma linha de frente movedica, mas permanente, O século xvit erigiu Poussin contra Rubens em fungao deste mesmo esquema e atribuiu-se entao a oposicéo entre desenho ¢ cor uma certa historicidade, acrescentando-lhe os termos antigo e moderno. No século XIX, substitui-se Poussin ¢ Rubens por Ingres © Delacroix ©, portanto, pela distincdo entre classicismo € romantismo, No éntanto, ficou claro que a forma estrutural estruturante da oposicao permanecem constantes durante a historia. Nés as reencontramos novamente na frase inicial de Octavio Paz. A propria nogao de vbras de Picasso ¢ seu desdobramento, a irrupeao fragorosa de imagens que encarnam na substancia fisica da pintura, uma persisténcia em situar a arte no terreno do que se manifesta visualmente, nos indicam 0 chefe da esco- la do concreto, do sensual ¢ do perceptive no campo de batalha da arte no século xx. Ao contrario, com a nocio de uma “obra que é a negagéo da obra’, ou seja, de uma arte que desconsudi as préprias Bases da percepgao sensivel imediata, nos confrontamos com 0 porta-vou de uma arte da Idéia. F claro, No entanto, que o método utilizado por Paz fundamenta sua Tegitimidade buscando suporte em um dos dois personagens em questao. As repetidas insinuacdes de Duchamp em relacio ao cubismo, que tratava vulgarmente de “retiniano” ou, quando queria ser particularmente mordaz, de “olfativo”, eram sua forma de expressar seu menosprezo por uma arte que apelaya para 76 rocurava criar, a ‘pinturaidéia’, ; © Entretanto, quando deixamos de lado este tipo de afirmacio, algo simplis- tae polémica, para examinarmos a prépria obra de Duchamp no que ela dife. re da de Picasso, a utilidade ou mesmo a pertinéncia desta maneira peculiar de delinear as fronteiras entre os dois pintores comecam a desvanecer. Simplesmente nio é verdade afirmar que Duchamp evitava fazer uma obra, se or esta palavra nos referirmos a um precipitado de idéias sob forma fisica. Quando refletimos depois sobre os objetos especificos que produziu na mat. ridade — as obras sobre vidro, em que 0 objeto figurado através da escrupu- Josa aplicagio dos procedimemos da pintura navuralista se apresenta de maneira quase palpavel, ou ainda os seus Ready-mades, como 6 mictorio ou a roda de bicicleta, com o aspecto imediato e fetichista de sua presenga fisica, ‘ou mesmo seus auto-retratos fotograficos — percebemos que todos apelam repetidamente & apreensio sensitiva, induzindo a uma reacdo visceral & obra, pelo menos num primeiro momento. O contetido manifesto da obra, no que Ihe diz respeito, estd longe de negar este aspecto visceral; cle 0 acentua ¢ enco- raja, porque 0 mundo de Duchamp esta repleto de referéncias humana, 20 corpo que trabalha ; ‘excrementos: esperma, urina, matéria fecal e até suor. “Eros, c'est la vie” (Eros a vida) € 0 nome do alter ego de Duchamp, o nome que escolheu quando resolveu brincar de travesti ¢ bancar a meretriz’, Uma parte significativa da arte de Duchamp é debochada e licenciosa. Ele € conhecido no imaginario popular por ter pintado bigodes na Gioconda, embora 0 homem do povo provayelmente ignore a parte essencial do gracejo, as letras “L.H.O.0.Q.”— que aparecem como uma espécie de legenda difae matéria ao pé da “obra” de Duchamp como resposta 4 famosa e enfadonha pergunta que se fazia no século XIX sobre a natureza do sorriso de Mona Lisa. O interesse dessa provocacao nao é saber se achamos divertida a piada (o que geralmente nao vale para os universitdrios), ¢ sim que ela demonstra a deter- minagio de Duchamp em praticar uma arte das mais vulgares € optar pelo popularesco, pelo escabroso, pelo comum neste terreno. Se houver portanto uma distingao importante ou titil entre Duchamp ¢ Picasso (c Octavio Paz teve toda razdo em insistir nessa distingao), devera ser efetuada segundo critérios diferentes dos que sempre funcionaram na tradi- cio iconografica. Em ver de perpetwar a antinomia entre desenho cor, entre espitito_¢ corpo ou idealismo € sensibilidade, seria mais oportuno reorientar 0 eixo da oposicio seguindo a direcAo e distinguir entre alto e baixo, sério € trivial. Pois o que Duchamp recusou quando rejeitou o cubismo violentamen- ‘te foi, na minha opinido, a auto-suficiéncia da pintura, a seu ver intolerdvel, sua seriedade excessiva, sua concepcao sagrada de missao € 0 fervor religioso % com que o cubismo perseguia a idéia de uma autonomia da obra de arte que, ~dia_apés dia, a protegia um pouco mais de qualquer contato com © mundo teal. Tendo portanto decidido deixar as altas esferas da seriedade, Duchamp nao se contentou em descer na direco de uma pratica bufa, mas alcancou o que seria 0 equivalente das formas miméticas “baixas” nas artes visuais. Em. outros termos, ele se converteu ao tealismo no estado em que esse se encon- trava no inicio do século, quer dizer no momento preciso em que era mais de- sacreditado € mais aviltado no plano estético. Com efeito, Duchamp se dedi- cou a um certo comércio com a fotografia € a hipotese que gostaria de sugerir € que, se da superficie de sua arte se depreende uma hilaridade algo desati- nada e desconcertante, eis ai uma qualidade cémica resultante da decisio de fazer de sua arte uma meditagao sobre a forma mais clementar do signo visual, forma que se conhece no mais das vezes pela fotografia. Sua implicaca numerosos objetos que produziu em diferentes momentos de sua carreira. O quadro que the trouxe uma espécie de notoriedade imediata desde sua cri cao em 1912, 0 Nu descendant un escalier (Nu descendo uma escada), declara explicitamente sua relacdo com 0s trabalhos de Jules Etienne Marey, que estu- dava os problemas de anatomia através de um método de exposicdo mitlipla sobre uma tinica chapa, método chamado por ele “cronofotografia”. . No decé- nio seguinte, Duchamp nao s6 assinou uma grande quantidade de retratos fotograficos, como também ensaios de fotografia estereoscépica e trabalhos de cinema. Embora a importancia ¢ a extensio desta producao indiquem clara- ‘mente seu apego a fotografia, é revelador que se tenha dado pouquissima atencao a esse aspecto nos estudos extremamente numerosos e vigorosamen- te dedicados a obra de Duchamp. Uma discrigao sintomatica, que revela um sistema de castas dentro das artes figurativas, um sistema que dificulta 0 con- tato com a fotografia, colocada no escalio mais baixo da producio mimética. Foi s6 muito recentemente que Jean Clair, em um estudo completo, insistiu para que se desse maior atencdo a esse aspecto muito discutivel do gosto par- ticular do mestre* Contudo, se o livro de Jean Clair desenvolve uma leitura dos aspectos foto graficos da producdo de Duchamp, cle praticamente nao aborda a peca capi- tal do artista, a obra que representa 0 centro conceitual de sua carreira e que fanciona como uma espécie de maquina tedrica geradora do essencial de sua atividade posterior. Ao excluir La Mariée mise @ nu par ses célibataires, mime (A noiva despida pelos seus celibatarios, mesmo), 1915-1993, a andlise de Clair nao atinge o nivel estrutural, cm que veriamos um Duchamp mais preocupa- + ‘0 muito nitida com a fotografia é evidente quando se vé os Marcel Duchamp, La Mariée mise 4 au par Les célibataires, méme > (Le Grand Verre), 1915-23. 78

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