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Rg 8 capituLosA tradigao viva A, Hampaté Ba “A escrita é uma coisa, e o saber, outra, A escrita é a fotografia do saber, mas ro o saber em si, O saber 6 uma luz que existe no homem, A heranga de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo (© que nos transmitiram, assim como 0 baoba ja existe em potencial em sua semente” Tierno Bokar! Quando falamos de tradigao em relagdo a histéria afticana, referimo -nos & tradigdo oral, e nenhuma tentativa de penetrar a histéria e 0 espirito dos povos africanos terd validade a menos que se apdie nessa heranga de conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a ouvido, de mestre a Aiscipulo, a0 longo dos séculos. Essa heranga ainda nao se perdeu e reside na meméria da iltima geragao de grandes depositirios, de quem se pode dizer so @ memoria viva da Africa. "Tierno Bokar Saif, felecido em 1940, pasou toda a sua vida em Bandiagaa (Mali). Grande Mestre de ‘ofdem mogulmana de Tyaniyya, ft igualmentstradicionalisa em assuntsafveanas. C7. HAMPATE. BA. A. CARDAIRE, M, 1957, 168 Metadelopise pre -hisvinga Arica Entre as nagdes modernas, onde a escrita tem precedéncia sobre a oralidade, onde 0 livro constitui o principal vefculo da heranga cultural, durante muito tempo julgou -se que povos sem escrita eram povos sem cultura, Felizmente, esse conceito infundado comegou a desmoronar apés.as duas iltimas gueras, gragas a0 notivel trabalho realizado por alguns dos grandes etndlogos do mundo inteiro. Hoje, a ago inovadora e corajosa da UNESCO levanta ainda um pouco mais 0 véu que cobre os tesouros do conhecimento trarsmitidos pela tradigfo oral, tesouros que pertencem a0 patriménio cultura! de toda a humanidade. Para alguns estudiosos, 0 problema todo se resume em saber se & possivel conceder & oralidade a mesma confianga que se concede & escrita quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, ndo é esta a maneira correta de se colocar 0 problema. O testemunho, seja escrito ou oral, no fim no é mais que testemunho humano, ¢ vale o que vale o homer. ‘Nao faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos como no proprio individuo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo foram 0 cérebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou 0 estudioso mantém um didlogo secreto consigo mesmo, Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como Ihe foram narrados ou, ro caso de experiéncia prépria, tal como ele mesmo os narra. Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geragdo a geragdo. As crénicas das guerras modernas servem para mostrar que, como se diz (na Africa), cada partido ou nago “enxerga o meio -dia da porta de sua casa” — através do prisma das paixdes, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda; da avidez em justificar um ponto de vista. Além disso, os préprios documentos escritos nem sempre se mantiveram livres de falsificagdes ou alteragdes, intencionais ou ndo, ao passarem sucessivamente pelas méos dos copistas — fenémeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”. O que se encontra por detrés do testemunho, portanto, é 0 préprio valor do homem que faz 0 testemunho, o valor da cadeia de transmissdo da qual ele faz parte, a fidedignidade das memérias individual e coletiva ¢ 0 valor atribuido & verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligagfo entre o homem a palavra. E, pois, nas soviedades orais que nao apenas a fungdo da meméria é mais desenvolvida, mas também a ligagdo entre o homem e a Palavra é mais forte. Lé onde nao existe a escrita, o homem esté ligado A palavra que profere. Esté comprometido por ela. Ele é a palavra, ¢ a palavra encerra um testemunho ‘Arai viva 169 daquilo que ele € A propria coesto da sociedade repouse no valor € no respeito pela palavra. Em compensagdo, a0 mesmo tempo que se difunde, ‘vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a palavra falada, tornando -se a nica prova e o Gnico recurso; vemos a assinatura tornar -se 0 tinico compromisso reconhecido, enquanto. 0 laga sagrado e profindo que unia 0 homem & palavra desaparece progressivamente para dar lugar a titulos universitarios convencionais. Nas tradigdes afticanas — pela menos nas que conhego e que dizem respeita a toda a regio de savana ao sul do Sara — a palavra falaca se empossava, além de um valor moral fundamental, de um carter sagradc vinculado a sua origem divina e as forgas ocultas nela depositadas. Agente magico por exceléncia, grande vetor de “forgas etéreas”, nfo era utilizada sem prudéncia, Indimeros fatores — religiosas, magicos ou sociais - concorrem, por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmiss4o oral. Pareceu -nos indispensavel fazer ao leitor uma breve explanagao sobre esses fatores, a fim de melhor situar a tradigdo oral africana em seu contexto e esclarecé -la, por assim dizer, a partir do seu interior. Se formulssemos a seguinte pergunta a um verdadeiro tradicionalista* africano: “O que ¢ tradigio oral?”, por certo ele se sentiria muito embaragado. Talvez. respondesse simplesmente, apés longo siléncio: “E 0 conhecimento total”. © que, pois, abrange a expresso “tradigio oral”? Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciéncias ensina e quem sio os transmissores? Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradigao cral africana, com efeito, ndio se limita a histérias ¢ lendas, ou mesmo a relatos mitolégicos ou historicos, e os griots estéo longe de ser seus tnicos guardifes e transmissores qualificados. AA tradigdo oral é a grande escala da vida, ¢ dela recuperae relaciona todos 08 aspectos. Pode parecer castica aqueles que nao Ihe descorinam o segredo desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da tradigao oral, na verdade, o espiritual e 0 material néo esti dissociados. Ao passar do esotérico para 0 exotérico, a tradig&o oral consegue colocar- se ao alcance dos homens, falar -Ihes de acordo com o entendimento humano, revelar- se de acordo com as aptidées humanas. Ela € a0 mesmo tempo religido, conhecimento, ciéncia natural, iniciago arte, historia, divertimento e recreagdo, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar & Unidade primordial 70 Metodloniae pe -hisriada Attica Fundada na iniciagio e na experiéneia, a tradigAo oral conduz 0 homem & sua totalidade e, em virtude disso, pode -se dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma afticana. Uma vez que se liga a0 comportamento cotidiano da homem ¢ da comunidade, a “cultura” africana nao é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visdo particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presenga particular no mundo ~ um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem, ‘A tradigdo oral baseia -se em uma certa concepgao da homem, do sew lugar e do seu papel no seio do universo, Para situé -la melhor na contexto global, antes de estudé- la em seus varias aspectos devemos, portanto, retomar a0 proprio mistério da criagao do homem e da instauragdo primordial da Palavru: © mistério tal como ela o revela do qual emana, A origem divina da Palavra Como no posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer tradigBes que nfo tenha vivido ou estudado pessoalmente — em particular as relativas aos paises da floresta — tirarei os exemplos em que me apdio das tradigdes da savana ao sul da Saara (que antigamente era chamada de Bafur e que constituia as regies de savana da antiga Africa ocidental francesa). ‘A tradigao bambara do Komo? ensina que a Palavra, Kuma, & uma forga fundamental que emana do préprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de todas as coisas. Ela € 0 instrumento da criagdo: “Aquilo que Maa Ngala diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo. O mito da criagao do universo e do homem, ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que & sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados, revela -nos que quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem: Maa. Antigamente a histéria da génese costumava ser ensinada durante os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados aos 21 anos de idade; em seguida, passavam mais 21 anos estudando -a cada vez mais profundamente. ‘Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro circuncidado entoava ritmadamente as seguintes palavras: “Maa Ngalal Maa Ngala Quem é Maa Ngala? * Uma as grandes esclas de iniciagdo do Mande (Mali. “Ata viva m ‘Onde esti Maa Ngala?” O chantre do Komo respondia: “Maa Ngala é 2 Forgainfnita, ‘Ninguém pode situa -lo no tempo © no espago. Ele é Dombali (Incognoscivel) Dambali (Incriado — Infinit)” Ent&o, apés a iniciago, comegava a narragdo da génese primordial: “No havia nada, sendo um Ser Este Ser era um Vazio vivo, a incubar potencialmente as existéncas possives. (© Tempo inginito era a moradia desse Ser -Umn O Ser-Um chamou -se de Maa Ngati Entio ele eriou ‘Fan’, ‘Um Ovo maravilhoso com nove divisdes ‘No qual introduziu os nove estados fundamen Quando © Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituiram a totalidade do universo, a soma total das forgas existentes do conhecimento possivel, ‘Mas, ail, nenhuma dessas vinte primeira criatura revelou -se apta a tornar se © interlocutor (Ruma nyon) que Maa Ngala havia desejado para si ‘Assim, ele tomou de uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes «e misturou-as;ento,insuflando na mistura uma centelha de seu proprio halito {gneo, eriou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu préprio nome: Maa. E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina rele introduzida, continhe algo do proprio Maa Ngala”. Ga existéncia, Sintese de tudo 0 que existe, receptaculo por exceléncia da Forga suprema © confluéncia de todas as forgas existentes, Maa, 0 Homem, recebeu de heranga uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e da Palavra. ‘Maa Ngala ensinou a Maa seu interlocutor, as leis segundo as quais todos 08 elementos do cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o intitulou ‘guardiéo do Universo e o encarregou de zelar pela conservagio da Harmonia universal. Por isso é penoso ser Maa. Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus descendentes tudo 0 que havia aprendido, e esse foi o inicio da grande cadeia de transmissio oral iniciatéria ca qual a ordem do Komo (como as ordens do Nama, do Kore, ete., no Mali} diz -se continuadora, m Metodoogi ep hsv a Aca Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, a0 ‘mesmo tempo, dotava -o da capacidade de responder. Teve inicio o didlogo entre aa Negala, criador de todas as coisas, ¢ Maa, simbiose de todas as coisas. Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram divinas porque ainda nao haviam entrado em contato com a materialidade. Apés 0 contato com a corporeidade, perderam um pouco de sua divindade, mas se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina, por sua vez a corporeidade emitiu vibragdes sagradas que estabeleceram a comunicagaio com Maa Ngala. A tradig&o africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus. Ela é a0 mesmo tempo divina no sentido descendente ¢ sagrada no sentido ascendente, A fala humana como poder de criagao ‘Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as trés potencialidades do poder, do querer ¢ do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi ‘composto. Mas todas essas forgas, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de repouso até o instante em que a ffala venha colocé -las em movimento. Vivificadas pela Palavra divina, essas ‘forgas comegam a vibrar. Numa primeira fase, tornam -se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é, portanto, considerada como a materializagdo, ou a exteriorizagio, das vibragbes das forgas. Assinalemos, entretanto, que, neste nivel, os termos “falar” e “escutar” referem -se a realidades muito mais amplas do que as que normalmente Ihes atribuimos. De fato, diz -se que: “Quando Maa Ngala fala, pode -se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata -se de uma percepgdo total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na totalidade. Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorizagio das vibragdes das forgas, toda manifestago de uma s6 forga, seja qual for a forma que assuma, deve ser considerada como sua fala. E por isso que no universo tudo fala: tudo ¢ fala que ganhou corpo e forma. Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (hala) deriva da raiz verbal hal, cuja ideia é “dar forga” e, por extensao, “materializar”. A tradi¢ao peul ensina que Gueno, 0 Ser Supremo, conferiu forga a Kitkala, 0 primeiro homem, falando com ele. “Foi conversa com Deus que fez Kiikala forte”, dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peu). Ata vive i Se a fala ¢ forga, ¢ porque ela cria uma ligagdo de vaivém (yaa) warta, ‘em fulfulde) que gera movimento e ritmo, e, portanto, vida e ago, Este movimento de vaivém & simbolizado pelos pés do teceltio que sobem descem, como yeremos adiante ao falarmos sobre os oficios tradicionais. ‘(Com efeito, o simbolismo do ofcio do teceldo baseia -se inteiramente na fala criativa em agao). A imagem da fala de Maa Ngala, da qual é um eco, a fala humana coloca em movimento forgas latentes, que sfo ativadas e suscitadas por ela ~ como um homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome. A fala pode criar a paz, assim como pode destrui -la. E como o fogo. Uma nica palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incéndio. Diz o adégio malings: “O que & que coloca uma coisa nas devidas condigdes (ou seja, a arranja, a dispde favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma coisa? A fala, O que & que mantém uma coisa em seu estado? A fala”. A tradig&o, pois, confere a Kuma, a Palavra, nfo s6 um poder criador, mas também a dupla fungiio de conservar e destruir. Por essa razio a fala, por exceléncia, ¢ 0 grande agente ativo da magia africana. A fala, agente ativo da magia Deve -se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradigdes africanas postulam uma visdo religiosa do mundo, O universo visivel & concebido sentido como o sinal, a concretizago ou o envoltério ce um universo invisivel e vivo, constituido de forgas em perpétuo movimento. No interior dessa vasta unidade césmica, tudo se liga, tudo € solidério, e 0 comportamento do homem em relago a si mesmo e em relagdo ao mundo que © cerca (mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) serd objeto de uma regulamentacdo ritual muito precisa cuja forma pode variar segundo as etnias ou regives. A violagao das leis sagradas causari uma perturbagao no equilibrio das forgas que se manifestaria em distirbios de diversos tipos. Por isse a agfio mégica, ou seja, a manipulagao das forgas, geralmente almejava restaurar 0 equilibrio perturbado € restabelecer a harmonia, da qual o Homem, como vimos, havia sido designado guardiao por seu Criador. Na Europa, a palavra “magia” 6 sempre tomada no mau sentido, enquanto que na Africa designa unicamente o controle das forgas, em si uma coisa 1% Metodlogiae pre -istona ca AMtice neutra que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme @ dirego que se Ihe dé. Como se diz: “Nem # magia nem o destino so maus em si. A utilizagao que deles fazemos os torna bons ou maus”. ‘A magia boa, a dos iniciados e dos “mestres do conhecimento”, visa purificar os homens, os animais ¢ os objetos a fim de repor as forgas em ordem. E aqui é decisiva a forga ca fala. Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forgas césmicas que dormiam, estaticas, em Mag, assim também a fala humana anima, coloca em movimento e suscita as forgas que estio estaticas nas coisas. Mas para que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele préprio fundamentado no segredo dos nimeros. A fala deve reproduzir 0 vaivém que é a esséncia do ritmo. ‘Nas cangées rituais e nas férmulas encantatbrias, a fala é, portanto, a materializagao da cadéncia. E se & considerada como tendo o poder de agit sobre 0s espiritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que geram forgas, forgas que agem sobre os espiritos que so, por sua vez, as poténcias da aca. Na tradigio africana, a fala, que tira do sagrado 0 seu poder ctiador © operativo, encontra -se em relagao direta com a conservagdo ou com a ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca. Por esse motivo a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira uma verdadeira lepra moral. Na Africa tradicional, aquele que falta a palavra mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo da sociedade. Seria preferivel que morresse, tanto para si proprio como para 0s seus. © chantre do Komo Dibi de Kulikoro, no Mali, cantou em um de seus poemas rituais “A fala édivinamente exata, convém ser exato para com el” “A lingua que falsifica a palavra vieia o sangue daquele que mente,” O sangue simboliza aqui a forga vital interior, cuja harmonia é perturbada pela mentira. “Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si préprio”, diz © adégio. Quando alguém pensa uma coisa e diz outra, separa -se de si mesmo. Rompe a unidade sagrada, reflexo da unidade césmica, criando desarmonia dentro ¢ ao redor de si ‘Araign viva Vs ‘Agora podemos compreender melhor em que contexto mégico -rel social se situa 0 respeito pela palavra nas sociedades de tradigio oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de ancestrais ‘ou de pessoas idosas. O que a Africa tradicional mais preza ¢ a heranga ancestral. O apego religioso ao patrimOnio transmitido exprime -se em frases como: “Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que suguei no seio de minha mae” Os tradicionalistas Os grandes depositérios da heranga oral sao os chamados “tradicionalistas”. Meméria viva da Africa, eles so suas melhores testemunhas. Quem so esses mestres? Em bambara, chamam- nos de Doma ou Soma, os “Conhecedores”, ow Donikeba, “fazedores de conhecimento”; em fulani, segundo a regio, de ‘Silatigui, Gando ou Tchiorinke, palavras que possuem 0 mesmo sentido de “Conhecedor”. Podem ser Mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo tradicional especifico (iniciagdes do ferreiro, do tecelio, do cagador, do pescador, etc.) ou possuir 0 conhecimento total da tradigao em todos os seus aspectos. Assim, existem Domas que conhecem a ciéncia dos ferreiros, dos pastores, dos teceldes, assim como das grandes escolas de iniciagao da savana — por exemplo, no Mali, 0 Komo, o Kore, 0 Nama, 0 Do, o Diarrawara, 0 ‘Nya, 0 Nyaworole, ete Mas no nos iludamos: a tradigfo africana ndo corta a vida em fatias © raramente 0 “Conhecedor” & um “especialista”. Na maioria das vezes, é um “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conheceré nfo apenas a cigncia das plantas (as propriedades boas ou més de cada planta), mas também a “ciéncia das terras” (as propriedades agricolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo), a “ciéncia das éguas”, astronomia, cosmogonia, psicologia, etc. Trata -se de uma ciéncia da vida cujos conhecimentos sempre podem favorecer uma utilizago pritica. E quando falamos de ciéncias ““iniciatérias” ou “ocultas”, termos que podem confundir o leitor racionalista, trata -se sempre, para a Africa tradicional, de uma ciéncia eminentemente pratica que consiste em saber como entrar em relagao apropriada com as forgas que sustentam o mundo visivel e que podem ser colocadas a servigo da vida. Guardiio dos segredos da Génese césmica e das ciéncias da vida, 0 tradicionalista, geralmente dotado de uma meméria prodigiosa, normalmente 176 Metooogi pristine Aiea também é 0 arquivista de fatos passados transmitidos pela tradigao, ou de fatos contemporsineos. Uma historia que se quer essencialmente africana deverd necessariamente, Portanto, apoiar -se no testemunho insubstituivel de africanos qualificados. “Nao se pode pentear uma pessoa quando ela esté ausente”, diz o adagio. (Os grandes Doma, os de conhecimento total, eram conhecidos e venerados, € as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu conhecimento © a sua sabedoria, Ardo Dembo, que me iniviou nas coisas fulani, era um Doma peul (um Silatigui). Hoje é falecido. Ali Essa, outro Silatigui peul, ainda vive, Danfo Sine, que frequentava a casa de meu pai, na minha infincia, era um Doma quase universal. Nao somente era um grande Mestre iniciado do Komo, mas também possuia todos 0s outros conhecimentos de seu tempo hist6ricos, iniciatérios ou relativos as ciéncias da natureza. Era conhecido por todos na regio que se estende de Sikasso a Bamako, isto & os antigos reinos de Kenedugu e de Beledugu. Seu irmao mais jovem, Latif, que havia experimentado as mesmas iniciagdes, era também um grande Doma. Além do mais, tinha a vantagem de ler e escrever drabe e de ter prestado o servigo militar (nas forgas francesas) no Chade, o que Ihe permitira coletar grande quantidade de conhecimentos na savana chadiana, que se revelaram andlogos aos ensinados no Mali. Jiva, pertencente & casta dos griots, é um dos maiores tradicionalistas do Mande vivos no Mali, assim como Banzoumana, o grande miisico cego. ‘Neste ponto é preciso esclarecer que um griot nfo é necessariamente um jonalista “conhecedor”, mas que pode tornar -se um, se for essa sua vocagao. Nao podera, entretento, ter acesso & iniciagao do Komo, da qual os griots so excluidos? De maneita geral, 0s tradicionalistas foram postos de parte, senio perseguidos, pelo poder colonial que, naturalmente, procurava extirpar as tradigdes locais a fim de implantar suas préprias ideias, pois, como se diz, “Nao se semeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada”, Por essa razfo, a iniciagao geralmente buscava refiigio na mata e deixava as grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades de brancos” (ou seja, dos colonizadores). No entanto, nos diversos paises da savana afticana que formam o antigo Bafur—e, sem ditvida, outras partes também — ainda existem “Conhecedores” que continuam a transmitir a heranga sagrada aqueles que aceitam aprender € tra * A respeito dos gras, ver mais aan, A tage vive 7 ‘ouvir e que se mostram dignos de receber os ensinamentos por sua paciéncia e discregio, regras basicas exigidas pelos deuses. Dentro de 10 ou 15 anos, os tiltimos grandes Doma, os dltimos ancifies herdeiros dos varios ramos da Tradigao provavelmente terdio desaparecido. Se ndo nos apressarmos em reunir seus testemunhos € ensinamentos, todo 0 patriménio cultural e espiritual de um povo cairé no esquecimento juntamente ‘com eles, e uma geragdo jovem sem raizes ficaré abandonada a propria sorte, Autenti jade da transmissao Mais do que todos os outros homens, os tradicionalistas -doma, grandes ou pequenos, obrigam -se a respeitar a verdade. Para eles, a mentira nao & ‘simplesmente um defeito moral, mas uma interdigdo ritual cuja violagao lhes impossibilitaria o preenchimento de sua fungao. Um mentiroso nao poderia ser um iniciador, nem um “Mestre da faca”, muito menos um Doma, Se, excepcionalmente, acontecesse de um tradicionalista’ \doma revelar -se um mentiroso, jamais voltaria a receber a confianga de alguém em qualquer dominio e sua fungao desapareceria imediatamente. ‘De modo geral, a tradigao africana abomina a mentira. Diz -se: “Cuida- te para nfo te separares de ti mesmo. E melhor que o mundo fique separado de ti do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdigdo ritual da mentira afeta, de modo particular, todos os “oficiantes” (ou sacrificadores ou mestres da faca, etc.) de todos os graus, a comegar pelo pai de familia que ¢ o sacrificador ou © oficiante de sua familia, passando pelo ferreiro, pelo tecelao ou pelo artesio tradicional - sendo a prética de um oficio uma atividade sagrada, como veremos adiante. A proibigo atinge todos os que, tendo de exercer uma responsabilidade magico-religiosa e de realizar os atos rituais, sio, de algum modo, os intermediarios entre os mortais comuns e as forgas tutelares; no topo esto o oficiante sagrado do pais (por exemplo, o Hogon, entre os Dogon) e, eventualmente, o rei. Essa interdigao ritual existe, de meu conhecimento, em todas as tradigdes da savana africana. A proibigfio da mentira deve -se ao fato de que se um oficiante mentisse, estaria corrompendo os atos rituais. Nao mais preencheria o conjunto das condigdes rituais necessdrias A realizag&io do ato sagrado, sendo a principal + Nem todas as cerimnias rts inoluiam necessriamenteo sacrifcio de um animal O “saci” podia Consist er uma oferenda de pingo ete ou alg outo produto metre v8 Metalagine pré-netinia da Aten estar ele prprio em harmonia antes de manipular as forgas da vide. Nao nos esquecamos de que todos os sistemas magico -religiosos afticanos tendem a preservar ou restabelecer o equilibrio das forgas, do qual depende a harmonia do mundo material e espiritual. Mais do que todos os outros, os Doma sujeitam -se a esta obrigagao, pois, enquanto Mestres iniciados, sio os grandes detentores da Palavra, principal agente ativo da vida humana e dos espiritos. So os herdeiros das palavras sagradas e encantatérias transt las pela cadeia de ancestrais, palavras que podem remontar as primeiras vibragdes sagradas emitidas por Maa, o primeiro homem. Se 0 tradicionalista -doma é detentor da Palavra, os demais homens so os depositérios do palavririo, Citarei_o caso de um Mestre da faca dogon, do pais de Pignari (departamento de Bandiagara) que conheci na juventude e que, certa vez, foi forgado a mentir a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que ele havia escondido em sua casa. Apds o incidente, renunciou espontaneamente ‘a0 cargo, supondo que jé no mais preenchia as condigées rituais para assumi -lo lidimamente. Quando se trata de questdes religiosas ¢ sagradas, os grandes mestres tradicionais nfo temem a opinio desfavorivel das massas e, se acaso cometem um engano, admitem o erro publicamente, sem desculpas calculadas ou evasivas. Para eles, reconhecer quaisquer faltas que tenham cometido é uma obrigagao, pois significa purificar -se da profanagio. Se 0 tradicionalista ou “Conhecedor” é tio respeitado na Africa, ¢ porque ele se respeita a si proprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um homem “bem equilibrado”, mestre das forgas que nele habitam, Ao seu redor as coisas se ordenam e as perturbagdes se aquietam. Independentemente da interdig&o da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e nfo a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, & considerada uma exteriorizagfio das vibragdes de forgas interiores, inversamente, a forga interior nasce da interiorizagao da fala, A partir dessa Optica, pode -se compreender melhor a importincia que a ‘educagio tradicional africana atribui ao autocontrole. Falar pouco ¢ sinal de ‘boa educagdo e de nobreza. Muito cedo, o jovem aprende a dominar a manifestagdo de suas emogdes ou de seu sofrimento, aprende a conter as forgas que nele existem, & semelhanga do Maa primordial que continha dentro de si, submissas e ordenadas, todas as forgas do Cosmo. “Ata viva 179 Dir -se -4 de um “Conhecedor” respeitado ou de um homem que ¢ mestre de si mesmo: “E um Maa!” (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um ‘homem completo. ‘Nao se deve confundir os tradicionalistas ~doma, que sabem ensinar enquanto divertem e se colocam ao alcance da audiéncia, com os trovadores, contadores de historia e animadores piiblicos, que em geral pertencem casta dos Dieli (griots) ou dos Woloso (“cativos de casa”). Para estes, a disciplina da verdade nao existe; e, como veremos adiante, a tradigao thes concede o direito de travesti -Ia ou de embelezar os fatos, mesmo que grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar 0 piblico. “O griot",como se diz, “pode ter duas linguas”. ‘Ao contrério, nenhum africano de formagao tradicionalista sequer sonharia em colocar em diivida a veracidade da fala de um tradicionalista -doma, 0s Woloo(lierelmente "os aascidos na casa”), ov "cativs de casa, eram empregndos cu farilias de ‘empregades ligados hgeragdes a uma mesma fala, A tradigto concedin Ines liberdade total de glo ¢ expresso bem como considerives direitos maerias sore os bes de seus senhors 180 Metodlogie pt his de Aca figura8.1—Masicotukulor tozandoo' odin" (Kayes Malin, 40-22). Figura 8.2 Cantor Mvet (Documentation? rangase) “A ao viva a ‘especialmente quando se trata da transmissdo dos conhecimentos herdados da ‘cadeia dos ancestrais. Antes de falar, 0 Doma, por deferéncia, dirige -se as almas dos antepassados para pedir -Ihes que venham assisti -lo, a fim de evitar que a lingua troque as palavras ou que ocorra um lapso de meméria, que o levaria a alguma omisso. Danfo Sine, 0 grande Doma bambara que conheci na inffincia em Bougouni e que era o Chantre do Komo, antes de iniciar uma histéria ou ligio costumava dizer: “Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké! Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos teceldes, Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste! Oh, Jigi, grande cameiro que por primero soprou Na trombeta do Komo, Vindo sobre o Jeliba (Niger)! ‘Acercai -vos ¢ escutai -me. Em concordancia com vossos dizeres Vou contar aos meus ouvintes Como as coisas aconteceram, Desde vés, no passado, até nds, no presente, Para que as palavras sejam preciosamente guardadas E fielmente transmitidas ‘Aos homens de amanha Que sero nossos filhos E.0s filhos de nossos filhos.. Segurai firme, 6 ancestrais, as rédeas de minha lingua! Guiai o brotar das minhas palavras A fim de que possam seguir e respeitar Sua ordem natural” Em seguida, acrescentava: “Eu, Danjo Sine, do cl& de Samake (elefante), vou contar tal como 0 aprendi, na presenga de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin”® “Os dois como eu conhecem a trama’, Eles serdo a um tempo meus fiscais € meu apoio.” * Malzoro © Manifin erm us dois eondiaeipulos, 7 Uma narrative tradicional possui sempre ume tra ou base imutivel que no deve jamais sex modifica, mas a partic da qual pode se screscentar desenvolvimentos ou embelezamentss, segundo a inspirapdo ou a aero dos ouvints. te Metodlogae pre -hiseria da Aiea Se 0 contador de historias cometesse um erro ou esquecesse algo, sua testemunha o interromperia: “Homem! Presta atengo quando abres a boca!” ‘Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha lingua fogosa que me traiu”. Um tradicionalista -doma que nao é ferreiro de nascenga, mas que conhece as cigncias relacionadas & forja, por exemplo, dird, antes de falar sobre ela: “Devo isto a fulano, que deve a beltrano, etc.”. Ele render homenagem 20 ancestral dos ferreiros, curvando -se em sinal de devogao, com a ponta do cotovelo direito apoiada no chao e o antebrago erguido. © Doma também pode citar seu mestre e dizer: “Rendo homenagem a todos 0s intermediarios até Nunfayri..."*, sem ser obrigado a citar todos os nomes. Existe sempre referéncia a cadeia da qual 0 proprio Doma é apenas um elo. Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de transmissdo se reveste de uma importdncia primordial. Nao existindo transmissac regular, ‘no existe “magia”, mas somente conversa ou histérias. A fala é, enti, inoperante. A palavra transmitida pela cadeia deve veicular, depois da transmissao original, uma forga que a torna operante e sacramental. Esta nogo de “respeito pela cadeia” ou de “respeito pela transmissiio” determina, em geral, no afticano nfo aculturado a tendéncia a relatar uma hist6ria reproduzindo a mesma forma em que a ouviu, ajudado pela meméria prodigiosa dos iletrados. Se alguém o contradiz, ele simplesmente responderi: “Fulano me ensinou assim!”, sempre citando a fonte. Além do valor moral proprio dos tradicionalistas -doma e de sua adesio a uma “cadeia de transmissio”, uma garantia suplementar de autenticidade & fomecida pelo controle permanente de seus pares ou dos ancidios que os rodeiam, que velam zelosamente pela autenticidade daquilo que transmitem e que os corrigem no menor erro, como vimos no caso de Danfo Sine No curso de suas excursdes rituais pelo mato, o chantre do Komo pode acrescentar as proprias meditagdes ou inspiragdes s palavras tradicionais que herdou da “cadeia” e que canta para seus companheiros. Suas palavras, novos elos, vem, entdo, enriquecer as palavras dos predecessores. Mas ele previne: “Isto & 0 que estou acrescentando, isto € 0 que estou dizendo. Nao sou infalivel, posso estar errado. Se estou, no se esquegam de que, como vocés, vivo de um punhado de paingo, de uns goles de Agua e de alguns sopros de ar. Ohomem nao é infalivel!”. Os iniciados e 05 neéfitos que o acompanham aprendem essas novas palavras, de modo que todos os cantos do Komo sio conhecidos e conservados na meméria. * ancestral dos ferios. “A tat viva 183 © grau de evolugao do adepto do Komo nao & medido pela guantidade de ppalavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras, Se um homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo, e, as vive, entio ele se torra um valoroso adepto do Komo dentro da associagdo. Para set chantre do Komo, portanto Mestre iniciado, € necessério conhecer todas as palavras herdacas, e vive -las. A educagao tradicional, sobretudo quando diz respeito aos ccnhecimentos relativos uma iniciagio, liga -se A experiéncia e se integra a vida, Por esse motivo o pesquisador europeu ou africano que deseja aproximar -se dos fatos religiosos africanos esta fadado a deter -se nos limites do assunto, a menos que aceite viver a iniciagdo correspondente e suas regras, 0 que pressupde, no minimo, um conhecimento da lingua. Pois existem coisas que nfo “se explicam”, mas que se experimentam e se vivem. Lembro -me de que em 1928, quando servia em Tougar, um jovem etnélogo chegara ao pais para fazer um estudo sobre a galinha sacrifical por ocasiao da circuncisdo. O comandante francés apresentou -se ao chefe de canto indigena e pediu que tudo fosse feito para satisfazer ao etndlogo, insistindo para que “he contassem tudo”. Por sua vez, 0 chefe de cantio reuniv 0s principais cidadfios e expés -Ihes os fatos, repetindo as palavras do comandante, O decano da assembleia, que era o Mestre da faca local, e, portanto, 0 responsével pelas ceriménias de circuncisio e da iniciagao correspondente, perguntou - Ihe: —*Ele quer que the contemos tudo?” —“Sim" —respondeu o chefe de canto, — “Mas ele veio para ser circuncidado?” — “Nao, veio buscar informagBes”. O decano voltou o rosto para o outro lado e disse: — “Como podemos contar -Ihe tudo se ele nfo quer ser circuncidado? Voce ben sabe, chefe, que isso nfo é possivel. Ele teri de lever a vida dos cireuncidados para que possamos ensinar -Ihe todas as ligdes”” —"Uma vez que por forga somos obrigados a satisfazé -10” — replicou o chefe do canto -, “abe a voc® encontrar uma saida para essa dificuldade”. — “Muito bem!” ~ disse 0 velho. — “Nés nos desembaragarsmos dele sem que ele perceba, ‘pondo -0 na palha”. 4 Metodoogi pista da Aca A formula “por na palha”, que consiste em enganar uma pessoa com alguma histéria improvisada quando nao se pode dizer a verdade, foi inventada a partir do momento em que o poder colonial passou a enviar seus agentes ou representantes com o propésito de fazer pesquisas etno'dgicas sem aceitar viver sob as condigdes exigidas. Muitos etndlogos foram vitimas inconscientes desta tética... Quantos no pensavam ter compreendido completamente determinada realidade quando, sem vivé -la, no poderiam verdadeiramente té -Ia conhecido. Além do ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de iniciagio — por exemplo, o Komo ou as demais ja mencionadas -, a educagao tradicional ‘comega, em verdade, no seio de cada familia, onde 0 pai, a mie ou as pessoas mais idosas so a0 mesmo tempo mestres © educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. Sto eles que ministram as primeiras ligdes da vida, no somente através da experiencia, mas também por meio de historias, fabules, lendas, maximas, adégios, etc. Os provérbios so as missivas legadas A posteridade pelos ancestrais, Existe uma infinidade deles. Certos jogos infantis foram elaborados pelos iniciados com o fim de difundir, a0 longo dos séculos, certos conhecimentos esotéricos “cifrados”. Citemos, por exemplo, 0 jogo do Banangolo, no Mali, baseado em um sistema numeral relacionado com os 266 sigiba, ou signos, que correspondem aos atributos de Deus. Por outro lado, 0 ensinamento nao é sistemético, mas ligado as circunstncias da vida. Este modo de proceder pode parecer caético, mas, em verdade, & pritico e muito vivo. A ligdo dada na ocasio de certo acontecimento ou experiéncia fica profundamente gravada na meméria da crianga, Ao fazer uma caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dard a0 velho mestre a oportunidade de ministrar conhecimentos diversos, de acordo com a natureza dos ouvintes. Ou falard sobre 0 préprio animal, sobre as leis que governam sua vida e a “classe de seres” a que pertence, ou dard uma ligao de moral as criangas, mostrando -Ihes como a vida em comunidade depende da solidariedade e do esquecimento de si mesmo, ou ainda poderi falar sobre conhecimentos mais elevados, se sentir que seus ouvintes poderdo compreendé-lo. Assim, qualquer incidente da vida, qualquer acontecimento trivial pode sempre dar ocasido a miltiplos desenvolvimentos, pode induzir & narragdo de um mito, de uma histéria ou de uma lenda. Qualquer fenémeno observado permite remontar as forgas de onde se originou © evocar os mistérios da unidade da Vida, que é inteiramente animada pela Se, a Fora sagrada primordial, ela mesma um aspecto do Deus Criador. “Atragto viva 18s Na Africa, tudo € “Historia”. A grande Histéria da vida compreende a Historia das Terras e das Aguas (geografia), a Historia dos vegetais (boténica fe farmacopeia), a Historia dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia, metais), a Historia dos astros (astronomia, astrologia), a Historia das aguas, € assim por diante. Na tradigo da savana, particularmente nas tradig&es bambara e peul, o conjunto das manifestag6es da vida na terra divide -se em trés categorias ou “classes de seres”, cada uma delas subdividida em trés grupos: + Na parte inferior da escala, os seres inanimados, os chamados seres “mudos", caja linguagem € considerada oculta, uma vez que & incompreensivel ou inaudivel para o comum dos morta. Essa classe de seres inclui tudo o que se encontra na superficie da terra (areia, agua, etc.) (ou que habita 0 seu interior (minerais, metais, etc.). Dentre os inanimados mudos, encontramos os inanimados sblidos, liquidos e gasosos (iteralmente, “fumegantes"). + No grau médio, os “animados iméveis”, seres vivos que nto se deslocam. Essa é a classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar, no espago, mas cujo pé nflo pode mover -se, Dentre os animados iméveis, encontramos as plantas rasteiras, as trepadeiras € as verticais, estas ‘ltimas constituindo a classe super + Finalmente, os “animados méveis”, que compreendem todos 9s animais, inclusive 0 homem. Os animados méveis incluem os animais terrestres (com e sem 05508), 05 animais aquéticos e 0s animais voadores. Tudo o que existe pode, portanto, ser incluido em uma dessas categorias?. De todas as “Histérias”, a maior e mais significativa é a do proprio Homem, simbiose de todas as “Histérias”, uma vez que, segundo 0 mito, foi feito com uma parcela de tudo 0 que existiu antes dele. Todos os reinos da vida (mineral, vegetel e animal) encontram- se nele, conjugados a forgas miitiplas e a faculdades superiores. Os ensinamentos referentes a0 homem baseiam- se em mites da cosmogonia, determinando seu lugar ¢ papel no universo e revelando qual deve ser sua relagdo com © mundo dos vivos e dos mortos. Explica -se tanto 0 simbolismo de seu corpo quanto a complexidade de seu psiquismo: “As pessoas da pessoa so numerosas no interior da pessoa”, dizem as tradigdes bambara e peul. Ensina -se qual deve ser seu comportamento frents A natureza, como respeitar -Ihe 0 equilibrio e nao perturbar as forgas que a animam, das quais nao € mais que 0 aspecto visivel A iniciagdo o faré descobrir a sua propria relagao com o mundo das forgas & (CE HAMPATE BA, A197, p.23 ess 186 Metodoogi eprt-bisti d Aten ouco a pouco 0 conduziré ac autodominio, sendo a finalidade ultima tomar - se, tal como Maa, um “homem completo”, interlocutor de Maa Ngala e guardio do mundo vivo. Os oficios tradicionais Os oficios artesanais tradicionais so os grandes vetores da tradig&o oral. Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas possuiam frequentemente um carater sagrado ou oculto, principalmente as atividaces que consistiam em agir sobre a matéria ¢ transformé -la, uma vez que tudo é considerado vivo, Toda fungfio artesanal estava ligada a um conhecimento esotérico transmitido de gerago a geragio e que tinha sua origem em uma revelagdo inicial. A obra do artesio era sagrada porque “imitava” a obra de Maa Ngala © completava sua etiaglio. A tradigdio bambara ensina, de fato, que a criagio ainda nfo esta acabada e que Maa Ngala, ao criar nossa terra, deixou as coisas inacabadas para que Maa, seu interlocutor, as completasse ou modificasse, visando conduzir a natureza & perfeigdo. A atividade artesanal, em sua operagio, deveria “-epetir” 0 mistério da criagdo. Portanto, ela “focalizava” uma forga oculta da qual ndo se podia aproximar sem respeitar certas condigdes rituais. Os artestios tradicionais acompanham o trabalho com cantos rituais ou palavras ritmicas sacramentais, e seus proprios gestos so considerados uma linguagem., De fato, os gestos de cada oficio reproduzem, no simbolismo que Ihe € proprio, o mistério da criagdo primeira, que, como foi mostrado anteriormente, ligava -se ao poder da Palavra. Diz -se que: “O ferreiro forja a Palavra, O tecelao a tece, sapateiro amacia -a curtindo -2” Tomemos o exemplo do tecelio, cujo oficio vincula -se ao simbolismo Ja Palavra criadora que se distribui no tempo e no espago. O teceléo de casta (um maabo, entre os Peul) & 0 depositirio dos segredos das 33 pegas que compdem a base fundamental do tear, cada uma delas com um significado, A armagio, por exemplo, constitui -se de ito pegas principais: quatro verticais, que simbolizam ndo s6 os quatro elementos -mie (terra, gua, ar e fogo), mas também os quatro pontos cardeais, e quatro transversais, que simbolizam os quatro pontos colaterais. O tecelio, situato Atrio viva 187 1no meio, representa o Homem primordial, Maa, no centro das oito diregdes do espago, Com sua presenga, obtém -se nove elementos que lembram os nove estados fundamentais da existéncia, as nove classes de seres, as nove aberturas do corpo (portas das forgas da vida), as nove categorias de homens centre os Peul, ete, Antes de dar inicio ao trabalho, o teceldo deve tocar cada pega do tear pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes as forgas da vida que ‘elas encarnam vaivém dos pés, que sobem e descem para acionar os pedais, lembra 0 ritmo original da Palavra criadora, ligado ao dualismo de todas as coisas e & lei dos ciclos. Como se os pés dissessem o seguinte: “Fonyonko! Fonyonko! Dualismo! Dualismo! Quando um sobe, o outro desce. ‘A morte do rei ea coroagao do principe, ‘A morte do avd e 0 nascimento do neto, Brigas de divércio misturadas ao barulho de uma festa de casamento. De sua parte, diz a naveta: “Eu sou a barca do Destino. asso por entre os recifes dos flos da trama Que representam a Vida. Passo do lado direito para o lado esquerdo, Desenrolando meu intestino (0 fio) Para contribuir & construgdo. E de novo passo do lado esquerdo para o lado direito, Desenrolando meu intestino. A vida é etemo vaivém, Permanente doagao de si A tira de tecido que se acumula e se enrola em um bastdo que repousa sobre 0 ventre do tecelao representa 0 passado, enquanto o rolo do fio a ser tecido simboliza 0 mistério do amanha, 0 desconhecido devir. O teceléo sempre dirt: “© amanha! Nao me reserve uma surpresa desagradavel!”. No totel, 0 trabalho do tecelao representa oito movimentos de vaivém (movimentos dos pés, dos bragos, da naveta e 0 cruzamento ritmico dos fios do tecido) que correspondem as oito pegas da armacao do tear e as oito patas da aranha mitica que ensinou sua ciéncia ao ancestral dos tecel6es. Os gestos do tecelio, ao acionar o tear, representam o ato da criagdo e as palavras que Ihe acompanham os gestos sao o préprio canto da Vida. Quanto ao ferreiro tradicional, ele € 0 depositirio do segredo das transmutagdes. Por exceléncia, é o “Mestre do Fogo”. Sua origem é mitica, ¢, 188 Metodlogine pre -hsrinda Afi na tradigao bambara, chamam -no de “Primeiro Filho da Terra”. Suas habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador Maa Ngala ensinou, entre outros, os segredos da “‘forjadura”. Por isso a forja chamada de Fan, 0 mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo 0 universo e que foi a primeira forja sagrada. Os elementos da forja estdo ligados a um simbolismo sexual, sendo esta a expresso, ou 0 reflexo, de um processo césinico de criagio. Desse modo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, sdo comparados aos testiculos masculinos. O ar com que sfo enchidos é a substincia da vida cenviada, através de uma espécie de tubo, que representa 0 falo, para a fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo transformador. ferreiro tradicional s6 pode entrar na forja apés um banho ritual de purificago preparado com o cozimento de certas folhas, cascas ou raizes de arvores, escolhidas em fungdo do dia. Com efeito, as plantas (como os minerais € os animais) dividem -se em sete classes, que correspondem aos dias da semana e esto ligadas pela lei de “correspondéncia analégica”.'° Em seguida, 0 ferreiro se veste de modo especial, uma vez que ndo pode ertrar na forja vestido com roupa comum. Todos os dias pela manha, purifica a forja com defumagdes especiais feitas com plantas que ele conhece. Terminadas essas operag6es, Iavado de todos os contatos com o exterior, 0 ferreiro encontra -se em estado sacramental. Voltou a ser puro e assemelha -se agora ao ferreiro primordial. S6 entio, & semelhanga de Maa Ngala, pode ele “criar”, modificando e moldando a matéria. (Em fulfulde, ferreiro traduz -se por baylo, palavra que literalmente significa “transformador”). Antes de come;ar o trabalho, invoca os quatro elementos -mae da criagao, (terra, gua, are fogo), que esto obrigatoriamente representados na forja: existe sempre um receptéculo com dgua, 0 fogo da fornalha, 0 ar enviado pelos foles e um monticulo de rerra ao lado da forja Durante o trabalho, o ferreiro pronuncia palavras especiais & medida que vai tocando cada ferramenta, Ao tomar a bigoma, que simboliza a receptividade feminina, diz: “Nao sou Maa Ngala, mas o representante de ‘Maa Ngala, Ele é quem cria, nfo eu”. Em seguida, apanha um pouco de agua, ou um ovo, oferece -a & bigorna e diz: “Eis teu dote”. A respeto dali de cocrespondtrciaanaldgic,v. HAMPATE BA, A, Aspects dela civilisation african Présenceafrieaine, Paris, 1972p. 120 ses. A tatigt vva 189 Pega o martelo, que simboliza 0 falo, e aplica alguns golpes na bigoma para “sensibiliza -la”. Estabelecida a comunicagfo, ele pode comegar a trabalhar. O aprendiz néo deve fazer perguntas. Deve apenas observar com atengio soprar. Esta é a fase “muda” do aprendizado. A medida que vai avangando na ‘assimilagio do conhecimento, 0 aprendiz sopra em ritmos cada vez mais ‘complexos, cada um deles possuindo um significado. No decorrer da fase oral do aprendizado, 0 Mestre transmitiré gradualmente todos os seus -conhecimentos ao discipulo, treinando -o e corrigindo -o até que adquira a mestria. Apés uma “ceriménia de liberagdo”, 0 novo ferreiro poderd deixar 0 mestre ¢ instalar a sua propria forja, Comumente, o ferreiro envia os préprios fiilhos para outro ferreiro a fim de iniciarem seu aprendizado. Como diz 0 adégio: “As esposas ¢ os filhos do Mestre nao so seus melhores discipulos”. Assim, 0 artesdo tradicioral, imitando Maa Ngala, “repetindo” com seus estos a criaglo primordiel, realizava no um “trabalho” no sentido puramente econémico da palavra, mas uma fungo sagrada que empregava as forgas fundamentais da vida e em que se aplicava todo o seu ser. Na intimidade da oficina ou da forja, participava do mistério renovado da criago ‘eterna, Os conhecimentos do ferreiro devem abranger um vasto setor da vida Renomado ocultista, a mestria dos segredos do fogo e do ferro faz dele a linica pessoa habilitada a praticar a circuncisio, e, como vimos, o grande “Mestre da faca” na iniciagao do Komo ¢ invariavelmente um ferreiro. N&o apenas sabe tudo 0 que diz respeito aos metais, como também conhece perfeitamente a classificagdo das plantas e suas propriedades. 0 ferreiro de alto -forno, que ao mesmo tempo extrai e funde o mineral, € ‘0 mais avangado em conhecimentos. A ciéncia de ferreiro fundidor, acrescenta 0 conhecimento perfeito dos “Filhos do seio da Terra” (mineralogia) ¢ dos segredos das plantas e da mata. De fato, ele conhece as vespécies de vegetais que codrem a terra que contém determinado metal e detecta um veio de ouro simplesmente examinando as plantas e os seixos. ‘Conhece as encantagSes da terra e as encantagdes das plantas. Uma vez que se ‘considera a natureza como viva e animada pelas forgas, todo ato que a perturba deve ser acompanhado de um “comportamento ritual” destinado a reservar e salvaguardar 0 equilibrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute ‘em tudo, toda ago faz vibrar as forgas da vida e desperta uma cadeia de ‘consequéncias cujos efeitos sio sentidos pelo homem. “A cig viva 197 Em toda a tradigao do Bafur, 0 nobre ou o chefe nao sé & proibido de tocar miisica em reunides piblicas, mas também deve ser moderado ra expresso € nz fala, “Muita conversa no convém a um Horon”, diz o provérbio. Assim, ‘0s griots ligados as familias acabam por desempenher naturalmente 0 papel cde mediadores, ou mesmo de embaixadores, caso surjam problemas de menor ‘ou maior importancia. Eles sto “a lingua” de seu mestre. Quando ligados a uma familia ou pessoa, geralmente ficam encarregados de alguma missio corriqueira e particularmente das _negociagdes matrimoniais. Para dar um exemplo, um jovem nobre nao se dirigiré diretamente a uma jovem para dizer -Ihe de seu amor. Faré do griot o porta - voz que entraré em contato com a moga ou com sua griote para falar dos sentimentos de seu mestre e louvar -Ihe os méritos. Uma vez que a sociedade africana esta fundamentalmente baseada no dislogo entre os individuos e na comunicagdo entre comunidades ou grupos Emicos, os griots so os agentes ativos ¢ naturais nessas conversagdes. Autorizados a ter “duas linguas na boca”, se necessério podem se desdizer sem que causem ressentimentos. Isso jamais seria possivel para um nobre, a quem no se permite voltar atrés com a palavra ou mudar de decisto. Um griot chega até mesmo a arcar com a responsabilidade de um erro que nao cometeu a fim de remediar uma situagao ou de salvar a reputagas dos nobres. E aos velhos sabios da comunidade, em suas audiéncias secretas, que cabe © dificil dever de “olhar as coisas pela janela certa”; mas cabe aos griots ccumprir aquilo que os sabios decidiram e ordenaram. Treinados para colher e fornecer informagdes, eles sao os grandes portadores de noticias, mas igualmente, muitas vezes, grandes difamadores. © nome dieli em bambara significa sangue. De fato, tal como 0 sangue, eles circulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar doente, conforme atenuem ou avivem os conflitos através das palavras e das cangdes. E necessério acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de ccaracteristicas gerais e que nem todos os griots sio necessariamente desavergonhados ou cinicos. Pelo contrario, entre eles existem aqueles que sio chamados de diel \faama, ou seja, “griots -reis”. De maneira nenhuma estes so inferiores aos nabres no que se refere a coragem, moralidade, virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos que Ihes foram concedidos por costume. Os griots foram importante agente ativo do comércio e da cultura humana. Em geral dotados de consideravel inteligéncia, desempenhavam um papel dz grande importincia na sociedade tradicional do Bafur devido 4 sua influéncia sobre os nobres e os chefes. Ainda hoje, em toda oportunidade, 190 Metoologae pe -hisiria de Attica ‘A relagdo do homem tradicional com 0 mundo era, portanto, uma relago viva de participagdo ¢ nfo uma relagio de pura utiliza’. E compreensivel que, nesta visio global do universo, 0 papel do profano seja minimo. ‘No antigo pafs Baile, por exemplo, o ouro, que a terra oferecia em abundancia, era considerado metal divino e nao chegou a ser explorado exaustivamente. Empregavam -no sobretudo na confecg8o de objetos reais ou cultuais, mas igualmente o utilizavam como moeda de cambio e objeto de presente. Sua extragdo era livre a todos, mas a ninguém era permitida a apropriagao de pepitas que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita com peso superior a0 padrao era devolvida ao deus e se destinava a aumentar 0 “ouro real”, depésite sagrado do qual os préprios reis ndo tinham o direito de usufruir. Certos tesouros reais foram desta maneira transmitidos intactos até a ‘ocupaglio europeia. A terra, acreditava -se, pertencia a Deus, € ao homem cabia 0 direito de “usufruir” dela, mas nao 0 de possui -la. Voltando a0 artesdo tradicional, ele & 0 exemplo perfeito de como o conhecimento pode se incorporar nlo somente aos gestos e agbes, mas também & totalidade da vida, uma vez que deve respeitar um coajunto de proibigdes obrigagdes ligadas a sua atividade, que constitui um verdadeiro cédigo de comportamento em relagdo natureza e aos semelhantes. Existe, desse modo, o que se chama de “Costume dos ferreiros” (numusira ou mumuya, em bambara), “Costume dos agricultores”, “Costume dos teceldes”, e assim por diante, e, no plano étnico, o que se chama de “Costume dos Peul” (Lawol fulfulde), verdadeiros cédigos morais, sociais e juridicos peculiares @ cada grupo, transmitidos e observados fielmente pela tradigao oral. Pode- se dizer que 0 oficio, ou a atividade tradicional, esculpe o ser do homem. Toda a diferenga entre a educagio moderna e a tradi¢&o oral encontra -se ai. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais itil que seja, nem sempre € vivido, enquanto 0 conhecimento herdado da tradigfo oral encama- se na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas de um oficio materializam as Palavras sagradas; 0 contato do aprendiz com ¢ oficio 0 obriga a viver a Palavra a cada gesto. Por essa raz3o a tradigdio oral, tomada no seu todo, nfio se resume & transmisséo de narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora formadora de um tipo particular de homem. Pode -se afirmar que existe & civilizagdo dos ferreiros, a civilizagdo dos tecelées, a civilizagao dos pastores, ete. A rigs viva 191 Limitei -me aqui a examinar os exemplos particularmente tipicos dos ferreiros ¢ dos tecel6es, mas, de um modo geral, toda atividade tradicional cconstitui uma grande escola iniciatéria ou magico -religiosa, uma via de ‘acesso A Unidade, da qual, para os iniciados, é um reflexo ou uma expresso peculiar Geralmente, a fim de conservar restritos & linhagem os ccnhecimentos secretos ¢ os poderes magicos deles decorrentes, todo grupo devia observar proibicdes sexuais rigorosas em relaglo a pessoas estranhias ao grupo © praticer a endogamia. A endogamia, portanto, no se deve & ideia de intocabilidade, mas ao desejo de manter dentro do grupo os segredos rituais, Assim, podemos perceber como esses grupos, rigorosamente especializados € harmonizados com as “fungdes sagradas”, gradualmente chegaram & nogdo de “casta’, tal como existe atualmente na Africa da savana. “A guerra e 0 nobre fazem 0 escravo” — diz 0 adagio -, “mas € Deus quem faz 0 artesto (0 nyamakala).” ‘A nogto de castas superiores ou inferiores, por conseguinte, ao se baseia em uma realidade sociolégica tradicional. Ela surgiu com o decorrer do tempo, apenas em determinados lugares, provavelmente como consequéncia da aparigio de alguns impérios onde a fungao de guerreiro, reservada aos nobres, Ihes conferia uma espécie de supremacia. No passado distante, a ogo de nobreza era sem duvida diferente, e 0 poder espiritual tinha precedéncia sobre o poder temporal. Naquele tempo, eram os Silatigui (mestres iniciados peul), e nfo os Ardo (chefes, reis) que governavam as comunidades peul. Contrariamente ao que alguns escreveram ou supuseram, o ferreiro é muito mais temido do que desprezado na Africa. “Primeiro filho da Terra”, mestre do Fogo e manipulador de forgas misteriosas, é temido, acima de tudo, pelo seu poder. De qualquer maneira, a tradigo sempre atribuiu aos nobres a obrigagao de garantir a conservasao das “castas” ou classes de myamakala (em bambara; nyeenyo, pl. nyeeybe, em fulani). Tais classes gozam da prerrogativa de obter mereadorias (ou dinheiro) nfo como retribuigo de um trabalho, mas como 0 reclamo de um privilégio que o nobre nao podia recusar. ‘Na tradi¢do do Mande, cujo centro se acha no Mali, mas que cobre mi menos todo o territério do antigo Bafur (isto ¢, a antiga Africa ocidental francesa, com excegao das zonas de floresta e da parte oriental da Nigéria), as “castas”, ou nyamakala compreendem: +098 ferreiros (numu em bambara, baylo em fulfulde); 192 Mecocoogi prt-histrin da Aico + os teceldes (maabo em bamibara e em fulfulde); (0s trabalhadores da madeira (tanto o lenhador como o marceneiro; saki em bambara, labbo em fulfulde); + os trabathadores do couro (garanke em bambara, sakke em fulfulde); + 08 animadores piblicos (dieli em bambara; em fulfulde, eles sdo designados pelo nome gerel de nyamakala ou memibro de uma cast, isto 6, myeeybe). Mais conhecidos pelo nome francés de griot. Embora nao exista nogdo de “superioridade” propriamente dita, as quatro classes de myamakala -artesfostém precedéncia sobre os griots, pois demandam iniciagdo e conhecimentos especiais. O ferreiro esti no topo da hierarcuia, seguido pelo tecelAo, pois seu oficio implica o mais alto grau de iniciaggo. Ambos podem escolher indistintamente esposas de uma ou de outra casta, pois as mulheres sao oleiras tradicionais, tendo, portanto, a mesma iniciagao feminina, Na classificago do Mande, os nyamakala _artesios dividem -se em grupos de trés: Existem trés tipos de ferreiro (mumu em bambara, baylo em fulfulde): + 0 ferreiro de mina (ou de alto -forno), que extrai os minérios e funde metal. Os grandes iniciados entre eles podem, igualmente, trabalhar na forja; + 0 ferreiro do ferro negro, que trabalha na forja mas no extrai minérios; + 0 ferreiro dos metais preciosos, ou joalheiro, que geralmente é cortesto e, ‘como tal, instala -se nos pétios extemos dos palicios de um chefe ou nobre, Existem trés tipos de teceldes (maabo): © teceldo de 18, que possui o maior grau de iniciago. Os motivos dos cobertores so sempre simbélicos e estdo associados aos mistérios dos ‘nimeros e da cosmogonia, Todo desenho tem um nome; 0 tecelio de kerka, que tece imensos cobertores, mosquiteiros e cortinas de algodto que podem ter até 6 m de comprimento com uma infinita variedade de motivos. Cheguei a examinar uma dessas cortinas com 165 motivos. Cada motivo recebe umm nome e tem um significado. © préprio ‘nome € um simbolo que representa varias realidades; © tecelao comum, que confecciona faixas simples de tecido branco e que no passa por uma grande iniciagao. As vezes ocorre de a tecelagem comum ser feita por nobres. Assim, alguns Bambara confeccionam faixas de tecido branco sem serem teceldes de casta. Como no sto iniciados, porém, ndo podem tecer nem kerka, nem 18, nem “A tacit viva 193 mosquiteiros. Existem trés tipos de carpinteiros (saki em bambara, Jabbo em fulfulde): + aquele que faz almofarizes, pildes ¢ estatuetas sagradas, O almofariz, onde os remédios sagrados sto triturados, é um objeto ritual feito apenas ‘com determinados tipos de madeira. Como na ferraria, a carpintaria simboliza as duas forgas fundamentais: o almofariz representa, como a bigorna, 0 ppélo feminino, enquanto o pilfo representa, como o martelo, © pélo masculino, As estatuetas sagradas so executadas sob o comando de um iniciado “idoma, que as “carrega” de energia sagrada prevendo algum uso particular. Além do ritual de “carregamento”, a escolha ¢ o corte da madeira também devem ser realizados sob condigdes especiais, cujo segredo sb 0 lenhador conhece, © proprio artesto corte a madeira de que precisa. Portanto, é também um lenhador ¢ sua iniciagao esté ligada ao conhecimento dos segredos das plantas e da mata. Sendo a érvore considerada viva e habitada por outros espiritos vivos, nfo pode ser derrubeda ou cortada sem determinadas precaug6es rituais conhecidas pelo lenhador, + aquele que faz utensilios ou méveis domésticos de madeira; + aquele que fabrica pirogas, devendo ser iniciado também nos segredos da agua No Mali, os Somono, que se tornaram pescadores sem pertenzer & etnia Bozo, também comegaram a fabricar pirogas. Sao eles que podemos ver trabalhando as margens do Niger entre Kulikoro e Mopti. Existem trés tipos de trabalhadores do couro (garanke em bambara, sake em fulfulde): + os que fazem sapatos; + os que fazem arreios, rédeas, ete.;+ 05 seleiros ou correeiros. O trabalho do couro também envolve uma iniciagdo, ¢ os garanke geralmente tém a reputagaio de feiticeiros Os cagadores, os pescadores e os agricultores néo correspondem a castas, mas sim a etnias. Suas atividades esto entre as mais antigas da sociedade humana: a “colheita” (agricultura) e a “caga” (que compreende “duas cagas”, uma na terra e outra na agua) representam também grandes escolas de iniciagéo, pois néo ha quem se aproxime imprudentemente das forgas sagradas da Terra -Mae e dos poderes da mata, onde vivem os animais. A exemplo do ferreiro de alto -forno, o cagador, de modo geral, conhece todas: as “encantagSes da mata” e deve dominar a fundo a ciéncia do mundo animal. 194 Metologiepr-histvia da Aca Os curandeiros (que curam por meio de plantas ou pelo “dom da fala”) podem pertencer a qualquer classe ou grupo étnico. Normalmente eles so Doma. Cada povo possui como heranga dons particulares, transmitidos de geragao geragfo através da iniciagao. Assim, os Dogon do Mali t&m a reputagdo de conhecer o segredo da lepra, que sabem curar muito rapidamente sem deixar uma iinica marca, ¢ o segredo da cura da tuberculose. Além disso, so excelentes “restauradores”, pois conseguem recolocar os ossos quebrados, mesmo em caso de fraturas graves. Os animadores piiblicos ou “griots(“dieli” em bambara) Se as ciéncias ocultas e esotéricas so privilégio dos “mestres da faca” e dos chantres dos deuses, a miisica, a poesia lirica e os contos que animam as eereagées populares, € normalmente também a historia, sao privilégios dos -gricts, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o pais ou estio ligados a uma familia, Sempre se supés — erroneamente — que os griots fossem os tinivos “tradicionalistas” possiveis. Mas quem sdo eles? Classificam -se em trés categorias: 0s griots misicos, que tocam qualquer instrumento (monocérdio, guitara, core, tanta, etc). Normalmente sto excelentes cantores, preservadores, transmissores da misica antiga e,além disso, compositores. 0 griots “embaixadores” e cortestos, responsdveis pela mediagdo entre as grandes familias em caso de desavengas. Estfo sempre ligados a uma familia nobre ou ral, és vezes a uma + 0s griots genealogistas, histori tempo), que em geral sto igualmente contadores de histria e grandes Viajantes, ndo necessariamente ligados a uma familia, A tradigdo Ihes confere um satus social especial. Com efeto, ‘contrariamente aos Horon (nobres), tém 0 direito de ser cinicos e gozam de grarde liberdade de falar. Podem manifestar -se 4 vontade, até mesno impadentemente e, as vezes, chegam a trogar das coisas mais sérias e sagradas ‘Sem que isso acarrete graves consequéncias. Nao t&m compromisso algum ‘que os obrigue a ser discretos ou a guardar respeito absoluto para com a vverdade, Podem as vezes contar mentiras descaradas e ninguém os tomaré no sentido préprio, “Isso € 0 que o dieli diz! Nao é a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim”. Essa maxima mostra muito bem de que modo a tradicao Atel vive 195 aceita as invengdes dos dieli, sem se deixar enganar, pois, como se diz, eles ‘tém a “boca rasgada”. 198 Metouelogine we stiada Atice Figura8.3 _TocadordeValia Oinstrumentoéde ‘madeircomoordasdeago(FotoMuseudoHomem) Figura8.4 “Griohutu"imitandoo"mwamesido {Foto8 Nant) 198 Metodoogi pr isin de Aico estimulam e suscitam 0 orgulho do cla dos nobres com suas cangées, normalmente para ganhar presentes, mas muitas vezes para também encorajé- Jos a enfrentar alguma sitsagao dificil Durante a noite de vigilia que precede o rito da circuncisto, por exemplo, eles encorajam a crianga ou o jovem a mostrar -se digno de seus antepassados permanecendo impassivel. Entre os Peul, canta -se o seguinte: “teu pai", Fulano, que morreu no campo de batalha, engoliu o ‘mingau do ferro incandescente” (as balas) sem piscar. Espero que amanha tu no sintas medo da ponta da faca do ferreiro”. Na ceriménia do bastdo, ou Soro, entre os Peul Bororo do Niger, as cangdes do griot animam o jovem que deve provar sua coragem ¢ paciéneia rantendo um sorriso e sem tremer as pélpebras, enquanto recebe fortes gelpes de bastio no peito. s griots tomaram parte em todas as batalhas da historia, ao lado de seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrando -Ihes a genealogia e os grandes feitos dos antepassados. Para o africano, a invocagao do nome de familia € de grande poder. Ademais, € pela repetigo do nome da linhagem que se saiida e se louva um afticano. A iinfluéncia exercica pelos dieli, ao longo da histéria, adquiria a qualificago de boa ou mé, conforme suas palavras incitavam o orgulho dos lideres © 08 impeliam a excessos ou, como era o caso mais frequente, chamavam -nos ao respeito de seus deveres tradicionais. Como se vé, os griots participa efetivamente da histéria dos grandes impérios afticanos do Bafur, e 0 papel desempenhado por eles merece um estudo em profundidade. O segredo do poder da influéncia dos Dieli sobre os Horon (nobres) reside no conhecimento que tém da genealogia e da histéria das familias. Alguns deles chegaram a fazer desse conhecimento uma verdadeira especializagfo. Os griots dessa categoria raramente pertencem a uma familia e viajam pelo pais em busca de informagdes historicas cada vez mais extensas. Desse modo, certamente adquirem ume capacidade quase magica de provocar o entusiasmo de um nobre ao declama: para ele a prépria genealogia, os objetos herdldicos © a histéria familiar, e, consequentemente, de receber dele valiosos presentes. Um nobre & capaz de se despojar de tudo 0 que traz consigo e possui dentro de casa para presentear a um griot que conseguiu Ihe mover os sentiments. Aonde quer que véo, estes griots genealogistas tém a sobrevivencia largamente assegurada "Tew pai em linguagem aficana, pode muito bem designar um to, um av ou um antepassedo ‘Signitica foda ina paterna, inlusve es eoateris. ‘A tradi viva 199 ‘Nao se deve pensar, entretanto, que se trata de uma “retribuigdo”. A ideia de remuneragio pelo trabalho realizado é contréria & nog&o tradicional de direito dos nyamakala sobre as classes nobres". Qualquer que seja sua fortuna, os nobres, mesmo os mais pobres, so tradicionalmente obrigados a oferecer presentes aos dieli ou a qualquer nyamakala ou wolaso” ~ mesmo quando o dieli é infinitamente mais rico do que 0 nobre. De um modo geral, é a casta dos Dieli a que mais reclama presentes. Quaisquer que sejam seus ganhos, porém, o dieli sempre ¢ pobre, pois gasta tudo o que tem, contando com os nobres para seu sustento. “O!” canta o dieli solicitante, “a mao de um nobre no est grudada ao seu pescogo com avareza; ela est sempre pronta a buscar em seu bolso algo para dar aquele que pede”. E, se por acaso isso no ocorrer, € melhor que o nobre se precavenha contra os problemas que tera com o “homem da boca rasgada”, cujas “duas linguas” podem arruinar negécios e reputagdes! Do ponto de vista econémico, portanto, a casta dos Dieli, como todas as classes de nyamakala e de woloso, & dependente da sociedade, especialmente das classes nobres. A progressiva transformagao das condigdes econémicas dos costumes alterou, até certo ponto, esta situagio, e antigos nobres ou griats passaram a aceitar fungdes remuneradas. Mas 0 costume nfo morreu, e as pessoas ainda se arruinam por ocasido de festas de batismo ou casamento para darem presentes aos griots que vém animar as festas com suas cangdes, Alguns governos modernos tentaram pér fim a esse costume, mas, que se saiba, ainda nfo conseguiram, Os dieli, sendo nyamakala, devem em principio casar -se dentro das classes de nyamakala, E facil ver como os griots genealogistas, especializados em histérias de familias e geralmente dotados de memoria prodigiosa, tornaram -se naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e, ocasionalmente, grandes historiadores. Mas é importante lembrarmos que eles nfio so os tnicos a possuir tal conhecimento. Os griots historiadores, a rigor, podem ser chamados de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de que se trata de um ramo puramente histérico da tradig&o, a qual possui muitos outros ramos. "-Nobre” & uma tredueto bastante aproximative de Horon. Em verdade, Haran & te pessoe que lo pertence nem A classe dos nyamatala nem classe dos fon ("eatvos),sendo esta dkima constulda or descendentes de prisioneiros de guer. O Horon tem por dever assegurar a

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