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Leonardo Barci Castriota | _ PATRIMONIO CULTURAL CONCEITOS, POLITICAS, INSTRUMENTOS ne ue Teaco resco een ee was as Peete eee en neces » se forjaram tantos instruments para se lidar com as pre~ Tce ccm ct) Ses eae teu ny eee sec keer amento urbano e do préprio meio-ambiente. t Se ee cea TRCN ae eer neo} RO accra ntsc toe profundidade uma gama de temas ligados vee ets een teeny at ee ets ee Seer est SUMARIO INTRODUGAO PRIMEIRA PARTE: CONCEITOS O fim da tradigao, a reinvengao da tradigdo: narrar e construir num mundo em transfor~ magéo 2 ‘Tradigdo © modemnidade: diferentes aproximagées — 39 Histéria da arquitetura e preservacio do patriménio: diélogos 65 SEGUNDA PARTE: POLITICAS ‘Alternativas contemporéneas para politicas de preservacdo. 81 Conservacao e valores: pressupostos tedricos das politicas para o patrim6nio 93 Vicissitudes de um conceito: lugar e as politicas da memséria . str Nas eneruzilhadas do desenvolvimento: atrajetéria da presecvacio do patriménio em Ouro Preto (MG) IntervengGes sobre o patrimdnio urbano: modelos e perspectives Demoeracia e participacao: planos diretores e politicas do patriméni ‘TERCEIRA PARTE: INSTRUMENTOS Inventarios urbanos como instrumentos de conservaga0 O repsto cultural eos desafios do patrimonioimaterial Conservagio integrada erevitalizago:o Projeto Lagoinha ~ 408". A chegada dos brancos pos seus valores de PATRIMONIO CULTURAL Conc, ale, struments ponta-cabeca, Blas se viam como uma tribo ama- fa pelos seus deuses, e, entZo, subitamente, apare- fceu essa tribo muito maior, muito mais poderosa. Isto resultou em disputa com seus deuses, com os seus pajés. Eles nfo sabiam mais em que pé estavam. O Jnesmo se deu em relacio aos avides. Assim que se de- am conta de que seus inimigos eram os senhores des Se8 passaros com asas rigidas, eles ficaram completa mente atdnitos, Com a chegada do branco, os indios tiveram que se colocar uma série de questies sérias sobre o seu lugar num esquema mutivel de coisas” ‘No caso dos indigenas brasileiros, e seu contato com a cultura branca, cabe @nfatizar que se trata de um caso extremo: o desaparecimento cultural & weguido aqui pelo exterminio fisico, com as terras indigenas sendo oct ppdas pelos fazendeiros, mineradores, estradas, usinas hidrelétricas e c- dacles. O contato brusco entre duas culturas com perspectivas e visdes de mundo completamente diferentes poucas vezes mantém algum lugar para {nfluéncias transculturais: ao verem seu mundo desaparecer com extrema tmpidez, aos indigenas resta somente a luta pela sobrevivencia, pelo néo desaparecimento, No entanto, & interessante perceber também a forca da {radigfio: mesmo submetida a um impacto brutal de uma outra cultura, a {radigio indigena vai conseguir desenvolver, como mostraremos adiante, @stratégias de sobrevivéncia, podendo renascer, absorvendo mecanismos da cultura dominante. Narrar: para nao esquecer demais.. ‘A Noroeste do Brasil, nos atuais estados de Mato Grosso e Rond6nia, con- ‘contram-se jé hd milhares de anos, como tém mostrado pesquisas arqueo- Jégieas recentes, povos de matriz essencialmente Tupi, que se dividem hoje fem cinco familias lingitisticas - Mondé, Rama-Rama, Kawahib, Arikén € ‘Tupari, que se tornaram mutuamente incompreensiveis."” Neste vasto territé- rio, nos vales do Aripuanii e Roosevelt, vivem 0s indios Cintas-largas, do grupo ‘Tupi-Mondé", até pouco tempo de for- ‘ma intocada e desconhecida pela socie- dade nacional. Esta situagdo, que se ex- plica pela dificuldade de acesso a regidio ce pela estratégica ocupagio indigena nas cabeceiras dos grandes rios, de onde hhostilizavam os invasores em defesa de 0 Fim da Traigto, A Reorgo da suas terras, possibilitou a sobrevivéncia dessas sociedades que ocupavam. com imensa sabedoria seu territ6rio, Somente neste século, aconteceram ‘08 primeiros contatos com os brancos, com a passagem por Id da rota do marechal Rondon na Comissao de Linhas Telegréficas de Mato Grosso a0 ‘Amazonas e da expedigdo Roosevelt/Rondon. A partir de meados da década de 1960, no entanto, este contato se fez. mais Intenso, com o deslocamento para a Amazinia de atividades agropecusrias fe mineradoras. Com esta ocupacio, assistiram-se a verdadeiros massac promovidos pelos grupos econdmicos, que fulminaram aldeias inteiras ‘com bombas, venenos ¢ armas. (Aqui cabe destacar 0 barbaro massacre 50- frido pelos cintas-largas que se localizavam nas cabeceiras do rio Juina, em 1963, promovido pela firma Arruda e Jungueira.) Em 1970, levantamento aerofotogramétrico revelou grandes jazidas de minérios em reas ocupa~ das por grupos tribais na Amazénia, 0 que acelerou esse proceso. Numa década em que a ditadura militar priorizava a questio da “seguranga na- ional”, colocando como meta ocupar os “vazios” do territério brasileiro, abateram-se sobre a regio grandes projetos de desenvolvimento e planos de integragao nacional, com a abertura de rodovias como a BR-364. A agio do Governo sempre foi ambigua: embora tenham se produzido leis em defesa dos indigenas, sua agio real foi no sentido de se contatar e “amansar” os indios para facilitar a insta- lagio das atividades econdmicas em suas cobigadas terras, tarefa empreendida, em par- te, pelos priprios ér- gios _governamentais (SPVFUNAD, _ finan- ciados por grupos eco- nOmicos, interessados nas terras_indigenas, para exploragio de madeira, agropecudria ‘ou extragio mineral.!? Em meio a tal processo, abe relatar um episé- " dio emblematico, que Deento cinta PATRIMONIO CULTURAL - Concios, polieas, istrumentos rotrata bem 0 encontro entre essas duas culturas: em 1974, um grupo Cinta- Larga, numa tentativa de reverter 0 curso dos acontecimentos, dirigit-se para Humboldt/Aripuans, numa “missio de paz”, em que ofereciam aos brancos 0 uetinham de methor-~colares, flechas e enfeites. Essa expedigio, a qual Mé- Ho Chimanovitz referiu-se como uma tentativa do indio de pacificar o branco, foi mal-sucedida: dos 69 cintas-largas que dela participaram, 38 morreram de {gtipe, s6 retornando 31 para a aldeia.""_ O resultado do contato com os bran- os, ilustrado por este episddio, vai ser catastréfico em todos os sentidos para ‘08 povos indigenas em geral e para os Cintas-largas em particular: se no inicio dos anos 1970, a populagio Cinta-Larga era estimada em 30.000 habitantes, hioje nfo chega a 1,000, tendo sido dizimada por doencas ou pela acio direta dohomem branco, através de madeireiras e garimpeiros. No inicio dos anos 1980, numa tentativa de aprender com esse mundo que desaparecia, a arquiteta Leda Leonel dirige-se para a regido ocupada pelos {ndigenas em Rondénia, onde entra em contato com a aldeia Cinta-Larga do Posto Indigena Roosevelt. Ali, convivendo com uma aldeia que até entao tive- a muito pouco contato com os brancos, ela inicia uma pesquisa sobre aquele luniverso cultural, tendo como foco a questio da habitacio dos Cintas-largas, Himbora seu objetivo primério fosse documentar a construcio de uma gran- de maloca, a sua perspectiva era mais ampla: entender a habitacio indigena ‘eta entender as suas determinantes sociais e, particularmente, a estratégia de ‘octipagiio e exploragao da Floresta Tropical. Impressionava-lhe, desde o ini- elo, como 0s indigenas vinham ocupando ha milénios o seu meio-ambiente natural, sem destrui-lo, mantendo-se em equillbrio com 0 universo que 0s (0 Fim de Trad, A Reine da Thao: Narrur ¢Constrir num Mundo em Tranyfrmago cercavam.'® Desde 1983, sua primeira estada entre eles, Leda Leonel volta virias vezes & aldeia Cinta-Larga, presenciando e participando de atividades tradicionais —festas, cagadlas, pescarias, plantios e colheitas, e a construgio de ‘uma casa tradicional. No entanto, ela vai participar também do outro lado do processo, testemunhando a destruicao sistematica daquele universo cultural “Partilhei também de suas angiistias didrias’, relata a arquiteta, “cloengas e mortes, precério atendimento médico, dificuldades com a FUNAI no atendi- mento de suas necessidaces e constante invasio de stas terras” O processo de transformagio dé-se num ritmo muito acelerado: quando volta a tribo em 1985, a arquiteta encontra a situagao dramaticamente alte- ada, Com a chegada de madeireiras e garimpeitos, a tribo, que até entao permanecera quase intocada, passara a ter contato intensivo com 0 branco, Doengas comegam a dizimar grande parte da populacio indigena. Seus costumes sao depreciados pelos invasores e comegam a ser subvertidos a partir da destruigao de sua propria forma de sobrevivéncia: com a mi- neragio e 0 uso de meretirio nos rios, a contaminacdo impede a pesca ¢ mesmo a utilizagio da égua para beber. Uma cultura, cujo enraizamento no universo natural era intenso e profundo, encontra-se em grande dificul- dade para sobreviver frente a chegada avassaladora do homem branco e destruigio que ele provocava no meio-ambiente.” Frente a esse quadro de perigo, uma decisio é tomada junto com o jovem ca- cique Pichuvy: gravar as historias dos indios para registré-las e garantir a sua permanéncia, mesmo que em outro suporte. “No inicio de 1985, comegamos, Pichuvy e eu, a gravar historias. Dieta e indiretamente toda a aldeia colabo: PATRIMONIO CULTURAL - Concelo,plticns, struments OU NO Mato, no posto, na maloca, sempre havia gente por perto, escutando, lembrando passagens, desenhando, participando.” Enquanto a arquiteta se- ‘guia pesquisando a habitacao tradicional, Pichuvy também fazia sua pesqui- “procurou os mais velhos, resgatou histérias, sanou dividas, informou-se wobre 0$ primeiros contatos com os brancos, gravou depoimentos”. Tratava- , para ela e para o cacique, de garantir a permanéncia dle um universo que se ‘evaia, através da narragdo, registrada pela escrita. [Neste sentido, esta experiéncia parece corroborar a tese, defendida por autores que, como Walter Benjamin, apon- tam a modificagdo e o desaparecimento da narracao tradi- ional como concomitante com o advento da modernida- de. 0 filésofo alemao abre seu texto “O Narrador", escrito inca em 1936, com uma importante referéncia ao tempo, apontando que, apesar da familiaridade com o nome do narrador, ele nao é mais presente em termos de sua “efeti- vvidade viva". Como explica Andrew Benjamin: Passau © tempo do narrador. O fim do tempo da nar- ragao é descrito por Benjamin como a nao mais exis- téncia da capacidade de intercambiar experiéncias (Erfabrwngen auszutauschen). O narrador se alimenta dla experiencia e, ao narrar, transforma aquela experi- éncia na experiencia do ouvinte. A narracio pertence intrinsecamente e articula a ‘comunidade de ouvin- tes) Nessa perspectiva, poderiamos dizer que a narragdo florescia no contex- to do que o jovem Lukacs descrevia como “civilizagSes integradas’.” A modernidade, no entanto, vem trazer o fim de uma visio integrada do mundo, onde se situava o narrador, que, a partir de uma base comunitaria, lapresentava ainda uma visio cosmolégica do mundo, onde todos os tipos de eriatura tinham seu lugar garantido. Todos os grandes narradores tém em comum a liberdade com que se movem para cima e para baixo nas esferas de ‘sua experiancia, como numa escada. Uma escada que se cestende para baixo, para o interior da terra, e para cima, ‘desaparceendo em direco 88 nuvens, e a imagem para uma experncia coletiva (das Bild einer Kollktcerfoun) ppara a qual o mais profundo choque da experiéncia indi- Vidual, a mort, no constitu impedimento ou barreira.® Para Jacques Le Goff, nas sociedades sem escrita, a meméria coletiva pa- rece se ordenar em torno de trés grandes interesses: “a identidade coletiva do grupo, que se funda sobre os mitos, e mais particularmente sobre os (Fim da Trade, A Reinvent da Tradgto: Never ¢Construr num Mundo em raneformago (ONIO CULTURAL. Cont pln numero mitos de origem; o prestigio das familias dominantes que se exprime pelas genealogias e o saber técnico, que se transmite por formulas praticas, forte- ‘mente penetradas cle magia religiosa.”* O trabalho de Pichuvy e Leda, a0 ‘organizar as histérias da tribo, também parece se ordenar em torno desses x08, prineipalmente o primeiro, 0 de reforgar a identidade coletiva do grupo através do relato de seus mitos. O cacique retoma a narragao que we esyaia movido pelo desejo de que ela se perpetuasse e, com ela, 0 fio da tradigio: Eu vou conversar agora pessoal. Eu quis fazer muito conversar assim de histdria. Quando fizemos assim, Indio que tem lembrar quando eu vou morrer. Indio que tem lembrar de mim. E assim que eu conta tudo aldeia meu. Quando eu vou morte, pessoal que tem lembrar de mim ‘Que Pichuvy contava quando era (.) But vivo aqui, eu contar muito de histéria. Assim que eu faco pessoal meu, contava meu pessoal, E mui {a vez. que eu falava que indi tem que lembrar como foi antigamente, como que velho contava pri nds, que velho conta muita historia pri nds. Por isso que et conta muita historia assim 2 Ollivro vai ter uma ordem bastante clara: “da harmonia mitica & desintegragio histériea”, para utilizarmos as palavras da arquiteta, Assim, ele comega falando de Nguré, 0 criador do mundo, situando-nos frente & cosmogonia dos cinta- (0 Fim da rude, A Retnowng da rude: Neva ¢ Constr num Murdo om Transormago larga. Em seguida, numa ordem que nada tem de fortuito, apresenta os mitos fundadores, as origens de fendmenos césmicos e terrestres importantes, como a chuva (’Bepuixi, o dono da chuva”), 0 fogo ("“Pokai”, fogo), o fim do mun- do (“Ngoin Mangé Werebé’), 0 casamento (“Assaid Na), a flecha ("Njap”), 0 “dono do mato” ("Pawo") enticade negativa do universo Cinta-Larga. Papel decisive nesse cosmos vao desempenhar os animais, que sio contemplados ‘com uma grande quantidade de narrativas: historias da onga ("Neku’”), besou- ro (‘Al8”) arara (“Kasat”), anta (“Waci”), maribondo (“Ngabey”?), entre outros. Naquele universo, os espiritos, os homens, os animais eas plantas compartiha- ‘vam harmonicamente © mesmo universo da floresta tropical Essa harmonia vai se desintegrar, no entanto, na segunda parte do livro, {que redine as histérias relativas & chegada do branco, e que vai ser inttula- da, correspondentemente, “Outras historias”. Ela comega com um lamen- to pela perda da técnica tradicional no que se refere a construgdo da malo- ca. O esquecimento é profundo, atingindo até mesmo aquele instrumento necessério para a sobrevivéncia do indio, a flecha ‘Agora eu vou contar histéria do maloca. Histéria ma- loca, quem sabia fazer maloca. Entio esses dias que nds esquecemos como faz.de maloca, ‘Hoje eu mesmo que mandei fazer maloca pra apren- der. Fu sei como & que vou fazer maloca. Porque 0 {ndio daqui esquecer como faz maloca ‘Até a flecha aqui gente nao sabe fazer... Ent3o por ‘sso que vou mandar fazer pra aprender, pra no es- ‘quccer. Festa também... artesanato também, pré no fesquecer demais, Pra lembrar de historia que fez ma- loca antigamente® “Para nao esquecer demais”, tal é 0 propésito declara- do da narragio, que deve ser utilizada para que os in- dios se lembrem de sua origem e do seu saber téenico, também em desaparecimento. “Agora que nés quere- mos aprender fazer maloca, artesanato e flecha”, de- clara 0 Cacique. Aquilo que parecia algo dado, uma faculdade quase natural—o saber narrar, o saber fazer maloca ou flecha, agora tem que ser reaprendido. registrar através dla escrita parecia-lhe uma forma de fgarantir a permanéncia daquele saber, que, de outra forma, seria tragado pela cultura branca, que se impu- nha com violencia sobre a nativa. Desenho Cinta Lag APRIMONIO CULTURAL, « Comet, plitians,instrumentos Oaparecimento do branco ¢ relacionado com a morte: uma morte que che- {4a sorrateira, primeiro se disfarcando de amigo, depois envenenando e matando os {ndios com armas de fogo, granada e metralhadora Ai que foi comegar achar branco, né? Ai que garim- peiro vai aparecer Id no rio Roosevelt. Depois que igente pensava que Suru{ mesmo tava garimpando, sabe? Ai garimpeiro apareceu. Tinha muito Cinta: Larga. Muito cheio, sabe? Tinha flecha tamanho as- sim, bem feito mesmo, sabe? Depois branco ficou amigo, né? Foi ficou amigo... Primeiro que o branco matava muito Cinta-Larga de tiro, de metralhadora, ‘A destruigio que atinge a tribo fere também o seu meio-ambiente: a floresta é estruida, as drvores cerrubadas, o rio contaminado. © indigena, que vivera iilhares de anos em harmonia com a natureza, percebe o carster predatério daquele novo tipo de ocupacio. Para ele, tudo estaria ligado: a mata, 0 rio, 0s animals, os homens. “Bicho também té comecando acabar: Agora é dificil pra [Powar bicho. Pr matar bicho, né. Agora jé sumiu tudo bicho”. A causa ce toda faqueela destruigio é bem percebida por Pichuvy, que contrapée as necessidades do branco ds do indio, numa compreensdo de que so maneiras diferentes de we viver: © branco quer é procurar terra pra ganhar dinheiro, 1né? O indio néo precisa de ganhar dinheiro, O bran- 0 quer ganhar muito dinheiro! indio precisa cacar, indio precisa pescar...tirar mel, né? 86 iso que indio precisa, Mas ndo tem de derrubar drvore no. ‘Slo também duas maneiras diferentes de se relacionar com a natureza: a do branco, predatéria e sem nenhuma consideragio para com 0 meio am- Diente, termina por destru‘-o. Mas en podia ser branco ro é? Mas sd ia derubar ivore nio. Arvore néo (.) N&o precisa fazer Toga ttelouno, sabe? lo al ic fazer eas Depois que capocira va creer, ficar tera nova af gente der Een Tem lig tacl ange so presen di: bar PAG) indo val andar mats Neo pieces crtet alo pra bri cain grande, Precen rac. cio preci shana se camino, Ports mato no tee es silsraaemgy ie eae dd indi mata muita coisa assim bicho no, sabe? In- dio mata ur bicho ja ral embore,nét Depous outro Eee A constatagio, feita por Pichuvy, da maneira predatéria do bra Jacionar com a natureza, que o leva a colocar em risco um ambiente de (0 Fim da Trudie, A Relneengo da Trudie: Nera ¢ Construr num Mundo em Toansformago delicado equilibrio da floresta tropical, nao ¢ recente, tendo sido notada hhé muito tempo por viajantes que percorreram a Amazénia jé nos séculos XVIII e XIX. Alexandre Rodrigues Ferreira, por exemplo, apontava, jé ‘em 1786, 0 abuso no corte de madeiras no Vale do Jati, enquanto Spix, em 1821, alertava para o risco da extingao da tartaruga naquela regido, pela “incuiria” com que se praticava a colheita de seus ovos nos rios Branco e Solimées. Até hoje ecoam as palavras de Joao Pedro Dias Vieira, que em 1856 mostrava estar se tornando dificil o extrativismo na Amazénia, “tal tem sido até agora a nossa negligéncia!”2* Construir: a retomada da tradigio Em sua pesquisa, a arquiteta Leda Leonel identifica no sistema tradicional de ocupagio do territério, a maneira respeitosa do indigena se relacionar ‘com a natureza, explorando suas potencialidades sem destruf-la. Nesse tema, a propria escolha do local para se instalar a aldeia jé parte de uma ob- servagio cuidadosa das potenciatidades do sitio: procuram-se lugares que tenham “um rio grande, um rio pequeno, caca, peixe”. Além disso, a lbgica 6a do rodizio: a aldeia se estabelece ali por um tempo determinado, e quando a area presenta sinais de esgotamento, desloca- se para outro lugar. Este novo lugar, no entanto, jé fora ocupado, ha muito tempo, nao havendo, portanto, desmatamento da floresta, mas a reocupagao de drea ante- riormente conhecida. Iss0 permite que o meio ambiente tenha tempo de se recu- perar da ago do homem, ¢ nao se esgote. Segundo Leda Leonel, esse seria “um dos istérios da conservagao", a razao que jus- tificaria porque “eles esto morando ali ha milénios e a coisa esta perfeita No entanto, o contato com os brancos inviabiliza essa forma de ocupacio do tertitério, nio 86 pela agao direta dos garimpeiros e madeireiros, mas muitas vezes pela propria agi governamental ao demarcar as reservas indigenas, Para o observador desatento, a floresta tropical poderia parecer lum todo homogeneo e indistinto, mas de fato, como observa Gheerbrant, {ola est dividida em zonas para caga, coleta e migragao tribal que se de- senvolveram ao longo dos séculos.* © fato & que, até muito recentemen- PATRIMONIO CULTURAL « Concitos,policws,istrumentos te, a dimensio antropoldgica da ocupagio do territério era ignorada, com 4 demarcagdo sendo feita sem que se identificasse qual era o verdadeiro territério ocupado pelas tribos. Assim, eram' muito comuns demarca {solarem partes vitais do territério, deixando de fora, por exemplo, as areas adas, ou, contrariamente, s6 incluindo as dreas sagradas, nas quais niio se poderia exercer qualquer tipo de atividade extrativa ou agricola. No que se refere & habitacao, o efeito da chegada da cultura branca tam- ‘ém vai ser extenso, com a construgao tradicional sendo substituida pelos Padres importados principalmente do Sul do Pais, de onde vem a maio- ta dos colonos que la aporta. Entre os cintas-largas como documentara # arquiteta, a habitacao tradicional é representada pela maloca comunal, enorme construgio perfeitamente adaptada ao meio ambiente local. Com estrutura de madeira e cobertura vegetal, a habitagio tradicional propicia sombra e conforto térmico num meio am- biente equatorial, muito quente e tmido. De fato, a maloca tradicional possui um. isolamento térmico notavel, atenuando no interior tanto 0 calor, quanto 0 efeito das perigosas ¢ freqiientes quedas de tempe- ratura” Neste sentido, a palha, material utilizado para cobertura, vai se mostrar muito adequada, permitindo boa circu- lacdo de ar e tohiando a casa tradicional ao niesmno tempo escura e bem ventilada. Acestrutura tradicional vai ter dimensées avantajadas, medindo (em média) 60 me- tros por 20, tendo 18 metros de altura. Em. fun grande drea interna vao se concentrar muitas familias, que ocupam 0 (spago a partir de uma légica que reflete a sua vida social: cada familia tem (© feu lugar dentro da casa. Nao vai haver ai, no entanto, como na nossa Hociedade, um espaco com nitidas separagdes espaciais, mas muito mais um espago integrado.2* ‘Com a chegada do branco, esse modelo vai senclo substituido por casinhas Individuais em madeira, cobertas com telhas de amianto, que se mostram duplamente imprdprias. Se, por um lado, nao propiciam o menor isola- mento térmico, por outro, no que se refere d organizacio social, desfazem (8 lagos familiares/espaciais em torno dos quais se estrutura a organi: da casa comunitétia tradicional, Com isso, também a feigio das ald tera completamente, pasando o seu espaco a ser organizado a partir de unidades isoladas unifamitiares, f importante percebermos que nio ¢ (0 Fim da Tali, A Reinoengo de Talo: Nerv ¢ Construir num Mundo em Dunsformago apenas a habitagdo que se transforma: com o seu desaparecimento toda 4 l6gica tradicional da ocupagio do espago ¢ subvertida. A casa comunal entre 08 Cintas-largas vai ser 0 palco social onde tudo acontece, sendo a ordem que dela deriva reproduzida para o espago como um todo. Assim, por exemplo, quando se destocam para acampamentos provisérios de ¢caga, a mesma légica espacial da grande maloca ¢ reproduzida no meio do mato. Neste sentido, a construgao em si mostra-se de menor importancia, sendo essencial, no entanto, pelo que significa enquanto elemento articu- Jador de uma visio de mundo. A casa destruida, ao revés, como observa Leonel, “destrdi toda a estrutura da vida vivida que existe”. Este fato jé fora percebido no século passado, quando os missionérios cristaos consta- taram que enquanto a casa comunal ficava de pé era impossivel catequizar 6 indio, ou abalara sua visio de mundo, sendo sua primeira providéncia para minar a resisténcia cultural indigena destruila A chegada do branco vai representar, nas palavras de Leda Leonel, “a ru- {na geral de todo sistema de entendimento do mundo’, “porque os locais escolhidos ao longo de milénios e habitados - por seres humanos, pelos es- piritos, pela meméria, pelas lendas, pela histéria -, vao sendo devassados completamente e com a chegada de tanta maquina, avido, tanta gente que eles nem sabiam que existiam”. Com isso, a propria pesquisa da arquite- ta sobre a estratégia de ocupagao e exploragao da floresta - deixa de ser vidvel, ¢ ela se vé envolvida numa agao militante para tentar garantir de alguma forma a sobrevivéncia daquela cultura. Engajando-se numa ONG - YAMA, mais tarde PACA -, a primeira ago de- senvolvida foi significativamente ligada a questao da satide indigena, numa tentativa de se garantir a sobrevivéncia fisica dos indigenas. Como se sabe, Indefesos frente aos microorganismos desconhecidos trazidos pelos brancos, (0 nativos ndio sobrevivem mesmo a doengas como conjuntivite e gripe. As- sim, coneluiu-se que era vital que 08 indios aprendessem a lidar contra aquelas novas moléstias, para as quais a sua medicina natural nao fapresentava nenhuma solu- io. Uma primeira tentativa foi no sentido de se levar cursos de treinamento para as aldeias, o que se mostrou muito dificil, na medida em que isso envolvia 0 desloca- Mt INIO CULTURAL » Coneto,poitins,istrumentos mento de uma equipe de professores, médicos, enfermeiros, entre outros, [para as mais variadas aldeias. Face as dificuldades financeiras da ONG, a Holugio adotada foi a de se realizar préximo a cidade de Cacoal, onde Ihes havia sido cedido um terreno, um centro de treinamento, que a0 mesmo tempo cleveria desempenhar o papel de escola e de alojamento, abrigando (08 indfgenas que para lise deslocassem. Nessa construcio, eles viram a oportunidade de se reconstruir a maloca tra- dicional, que estava desaparecendo das aldeias. Para isso, Leda Leanel pre- parou um projeto que recria a estrutura tradicional, suas formas e técnicas, a Mesmo tempo em que procurava enfrentar as novas condigies colocadas Para aquela cultura com a chegada dos brancos. Assim, a estrutura vai ser ‘tradicional, uma ciipula feita de madeira fina eflexivel, que foi executada pelos indigenas. O material de cobertura também foi o tradicional, com pa- tha, que ¢ reciclivel a cada oito anos. Em seu interior, no entanto, 0 espaco fol adaptado para os novos usos necessérios na época, introduzindo-se pa- fedes em alvenaria, que garantiam o fechamento e a seguranga da Escola. AS necessidades jé eram outras neste mundo transformado: para se fazer uma escola precisava-se, por exemplo, de um tipo de iluminagao diferente do das malocas tradlicionais, explicando-se assim a introdugdo de janelas, Diferentemente da aldeia tradicional, onde as pessoas néo possuem muitos ‘objetos, jf havia méquinas e material para se guardar 0 Fim de radio, A Reinveneo da Daioh Nerv ¢ Conseuir num Mundo em Transformagho Em relagio aos materiais usaclos, aatitude também foi nio tradicional: cab trabalhar com a nova realidade, com as possibilidades colocadas pela situa lo real, Assim, além da alvenaria das paredes, numa l6gica da reciclabilida- de, utilizaram-se também materiais trazidos pela ocupacio clo branco, Um exemplo: nas pequenas janelas das, foi utilizadio vidro de automével, conseguido num depésito de sucata, Como explica Leda Leonel, ao mesmo tempo em que se queria reconstruir a8 malocas, era também necessirio dar uma utilizago para o lixo, que jé existia Ia - vidro, garrafa, lata, plastico +, que foi utilizado, entdo, na construe «ilo, onde conviveu com os materiais tracicionais. Um outro exemplo nesse sentido: na construgdo da nova maloca utilizou-se o vidro de garrafas na alvenaria das paredes e no piso. ssa postura heterodoxa e pouco purista no tratamento com a tradigio mai (€4 a atitude da ONG como um todo: ndo ha como se negar a transformagio oeorrida ¢ os novos recursos trazidos pela cultura branca, Pelo contrério, hha sua concepgao, deve-se langar mao deles para se garantir a manuten- glo da cultura indigena. Assim, é significativo que se tenha lutado para, a lado dla maloca, se instalar um orelhao, através do qual se pode acessar © mundo inteiro. Por outro lado, ndo se perde de vista o enraizamento an- cestral da cultura indigena no melo-ambiente, seus pressupostos ¢ visio de mundo. Isso pode ser percebido pela propria localizagao da construgio, PAPRIMONIO CULTURAL » Concelo,pltiens,inutrumentos na Ainica drea remanescente da floresta dentro do municipio de Cacoal, mata que vem sendo crescentemente ocupada pelos indigenas, que li esculpiram figuras de ceramica representando ‘5 entes miticos da floresta. A tradigao encontra uum espago de dilogo com a nova cultura, ¢ vai sendo re-apropriada e transformada: no interior da maloca da Paca, por exemplo, os indios vio pintarna parede um yamé, que nas aldeias é um tronco decorado, uma espécie de totem da tribo. Desta forma, a maloca da Paca vai ser uma ini ciativa bem sucedida no que se refere tanto a Aapropriagio por parte do grupo ao qual se destinava, quanto ao efeito que provocou nas aldeias indigenas. A apropriagao foi imediata: ao construirem (¢ Verem espelhado naquele espaco a sua concepgao de mundo, os indigenas Hentiram-se em casa. Ao se hospedarem naquela nova maloca e reconhece- fem 0 espago como deles, os inclios comegaram a ali organizar suas ativi- dades tradicionais como festas e dancas. Outro sinal da apropriagio pela ‘populagio indigena pode ser encontrado na sinalizagéo por meio de sim- bolos deixada por cada um dos grupos que por la passa - pinturas, yams, aream o espaco hoje. Até mesmo dois totens da tribo Zoré, que nao eram Vistos hi bastante tempo, foram utilizados nesta apropriagio do terrt6rio. © mais importante, no entanto, parece-nos ser 0 papel de reafirmacao da qualidade da construcao tradicional desempenhado pela nova maloca: tanto 08 {ndios quanto os proprios habitantes da cidade se encantam com o resul ladlo obtido. A partir desta experiencia, comegam a ressurgir em quase todas A aldeias da regido, tanto de forma espontanea, quanto pela acao de Srgiios fovernamentais, as construgdes tradicionais, que estavam desaparecendo. (Hoje a FUNAT adotou como modelo de posto de atendimento médico para A aldeias Tupi, uma pequena maloca desenhada pela arquiteta Leonel, que também foi apropriada pelas tribos, que passam a cuidar daquele espaco om todo esmero,) Alguns casos de ressurgimento cultural so mesmo im- pressionantes: a Tupari, uma tribo que nao produzia maloca em suas aldeias J mais de 50 anos, retomou suas tradigdes. Como, no entanto, nao podiam Aimplesmente tomar o modelo da habitacio dos Cintas-largas, no qual se Inspirou a maloca da Paca, eles tiveram que consultar os ancides da aldeia para aprender de novo como se fazia a sua matoca, com o que puderam econstruir a sua habitagio tradicional. Com a volta da maloca, muitos dos hibitos e costumes que, devido a catequese e a destruigio generalizada, ti- nham deixado de existit, passam a ter de novo esp ‘TRADICAO E MODERNIDADE: DIFERENTES APROXIMAGOES. Se a ligagio que a tracligao estabelece entre o passado e o presente 6 com= plexa, tendo a propria tradigao, como vimos, uma dimensio dinamica, y ‘essa dimensdo vai passar a ser predominante com o advento da chamada modernidade. Se, se fato, a dinamica ja se manifestava, ainda que de for- ma timida, no Ambito da tradigao - com algumas mudang: inuando Jentamente num universo cultural onde a forga central vai ser a da perma néncia -, no mundo moderno a légica da cultura passa a ser a da propria mudanga, da substituicao incessante de valores e modelos. Aqui, como aponta Marx, “tudo que era sélido desmancha no at, tudo 0 que era sa- {grado ¢ profanado”.". Nessa nova configuragao da cultura, muda também, profundamente, a prépria relagao com o tempo, com suas trés dimenses = passado, presente e futuro — passando a se relacionar entre si, como v remos, de forma diferente das configuragdes anteriores. Se no capitulo an- terior nos debrugamos sobre 0 universo da tradicio, neste capitulo vamos visar a modernidade, ambito no qual, como mostraremos, aparece a idéia do patriménio cultural fim da modernidade? No entanto, é importante que pereebamos, antes de tudo, {que a0 falarmos de moderni- dade, estamos lidando com luma idéia em si bastante con- troversa e que, apesar de lar- {gamente utilizada pela filoso- fine pelas se deixa apreencler através de ‘uma definigao conceitual sim- ples ou uma delimitagao cro- noligica univoca. Aumentan- do essa dificuldade, a prépria {déia da fmodernidade) como lum termo que designa pre- nente vem sendo cresce mente problematizada em ‘nossos dias, principalmente a partir dos ange 1960) quando mmerplat HO CULTURAL + Coneiton, palin, intrumentow omega a ganhar forga a idéia de uma “crise da modernidade”. Alguns Pensadores, como o critico da cultura Frederic Jameson, véem naquela dé ada o fim da modemicade e o inicio da chamada “6és-modemidade”) en- tenclida por ele como a “I6gica cultural do capitalismo tardio”, mesmo que ‘© debate em tomo do tema tenha ge tornado mais inflamado ¢ consistente apenas a partir da década de4970,° E, de fato, naquele momento, ao lado de manifestagées culturais em todos os campos que procuravam se distan- iar dos modelos modernos, comeca a predominar na cena intelectual do Oeidente também uma profunda suspeita da razao e da propria idéia de pretensdes de validade universais alcangéveis argumentativamente, pres- Aupostas no “projeto da modernidade”, ouvindo-se falar constantemente A partir dali de “pés-modernidade”, “pés-industrialismo”, “pés-estrutu- Fallsmo”, ete. A discussio sobre a pés-modernidade ~ e, paralelamente Aobre 0 esgotamento da modernidade — comeca a ocupar lugar de desta- ge, niio havendo nos anos 1980 “nenhum suplemento cultural, nenhum foldquio, nenhum contemporaneo bem informado” que possa viver sem tle, ironiza Wolfgang Welsch, que acreseenta: “E, entretanto, quase nunca Be babe bem do que se fala, quando se diz.‘pés-moderno”, acrescenta.? E, de fato, a expressio que deveria servir para denominar o presente e futu. Fo préximo, indicando a ruptura de nosso tempo com o que se chama de ‘modlernidade, reveste-se, entretanto, de um grau de ambigilidade eimpre- cisio praticamente insanivel. Bxplorando essas ambigiiidades, Welsch aponta as quatro principais con- trovérsias que envolvem a expressio. A primeira referir-so-ia & propria le sitimidate do termo, j que para alguns nao haveria nenhum fendmeno que Justificasse a sua aplicagio. © Pés-moderno seria somente vino antigo em garra- fa nova;e todo o alvorogo em tomo dele sea operas promogio de profetas da moda em busea de lucto; ot tumatenfaiva de fuga, facilmente desmascarivel, da se furtar a tarefas nao resolvidas do presented A segunda controvérsia estaria relacionada com 0 dmbito de utilizagio do Goneelto, que vem sendo empregado de forma crescentemente inflacions- Ha. Iniclalmente utilizado pela critica literaria, o conceito foi transplantado Para o campo da Arquitetura, espalhando-se dai para outras éreas, como AW artes plisticas, a Sociologia e a propria Filosofia, Seriam, entretanto, Compativeis entre si essas diversas utilizagoes? Um outro ponto polémico Borla o que se refere & aplicngto temporal do termo: quando comega a set Utilizado, nos Estados Unidos, na drea da literatura, © “pds-modemo" se x Tigo ¢ moderne diferentes aprovinagies avhada de Ang de Pubic Chiat Day Moja fe rank Manic, Clie PATRIMONIO CULTURAL » Conceto, plea, instrument referia a fendmenos dos anos 1950. Transplantado para a Europa, a partir de 1975, passa a referit-se aos proprios anos 1970, Por outro lado, 0 "pés- moderno” parece vir conquistando crescentemente terreno no passado: ‘Amold Tonybee, por exemplo, aponta as suas origens ja em 1875. Umberto fico, no “Pés-escrito ao Nome da Rosa” manifesta, cruelmente, o temor de que a categoria “pds-moderno”, a continuar no passo atual, possa chegar Ald a obra de Homero. A quarta e principal controvérsia referir-se-ia a0 proprio contesido do conceito, que parece apontar para diregées totalmente diversas, Para alguns, o pés-moderno seria a era das novas tecnologias; para outros, pelo contrério, completar-se-ia com ele justamente a despedi- da de um dominio tecnocritico, sendo o ps-moderno verde, ecoldgico € Maltemativo”. Alguns esperam do pés-modemo uma nova integracao, por melos diversos (por exemplo, o mito), da sociedade dilacerada; enquanto Outros afirmam ser o pés-moderno principalmente uma época de maior pluralismo e fragmentagao crescente. Fiente a tais ambigiidades, seria importante nos perguntarmas mesmo pela Validade de uma denominagio como a de pés-moderno, exces brangente e imprecisa. Por outro lado, no entanto, no ha como se usar hoje 0 ‘eonceito de modernidace sem uma perspectiva critica, sem levar em conta as — lidimeras -objecSes e problemas levantados por diversos autores a respeito do hamadlo “projeto modemo”. Assim, para apresentar aidéia de modemidade ‘vamos langar mio de um autor o filisofo alemao Jiingen Habermas, que tenta ivamente fundar uma teoria da modemicade que consiga lidar conceitualmente com as pptologias do nosso tempo, sem se desvincular, no entanto, da heranga do ra- lonalismo ocidental. Para isso, ele vai construir a sua teoria da modemnidade dentro de um quad sistematico mais amplo, que denomina “Teoria da Agio Gomunicativa’, onde liga o tema da modemidade ao tema da razao. Para 0 {ildsofo, o conceito cle ago comunicativa apontaria para trés complexos terna~ {ieos interligados: primeiramente para “um conceito de racionalidade comur fatiya que seja suficientemente cético em seu cesenvolvimento, mas que resista A tedugio da razo”; em segundo lugar, para “um conceito em dois niveis de sociedade, que ligue os paradigmas do ‘mundo vivido' e do ‘sistema’ de uma aneira no apenas retsrica”;e finalmente para “uma teoria da modernidade ‘que explique o tipo de patologias sociais que se tomam hoje cada vez mais vi- Aivels, por meio da suposigdo de que os dominios da vida comunicativamente ‘¢struturados estdo senclo subordinados aos imperativos clos sistemas de agio futOnomos, formalmente organizados”.® S6 assim, acredita Habermas, & pos- sivel uma conceitualizagao do contexto da vida social adequada aos paradoxos dda moclermidade, sem que tenhamos que descarts romo um todo, adie puadernidad: dienes aproviocten ‘Ao pretender desenvolver um projeto de tal abrangénela ~ e ainda mais ob o signo do racionalismo ocidental ~, Habermas tem plena consciéncia de estar nadando contra a corrente. “Ele propde critérios u ‘zo num tempo em que estilos relativistas de pensamento esto na moda ‘em varias éreas do discurso intelectual — como, por exemplo, no ‘pos estruturalismo’ ”, escreve Anthony Giddens, no ensaio “Reason without Revolution?”* Nao se pode, entretanto, acusé-lo de ingenuidade ~ “Ha Dermas is aware of the present mood”, como esereve Bernstein. Jé no pre facio da Teoria da Ago Comunicatoa,o fildsofo confessa: “Uma investigagio deste tipo, que usa o conceito de razdo comunicativa sem corar, esti hoje sob suspeita de ter caido na armadilha do fundamentalismo”” tentanto, 0 quadro ¢ claro: nao ha como realizar uma critica da razao fora dos limites dela propria, ou uma critica da modernidade, negando total- mente os pressupostos desta. E mais ainda: fnodernidade e razag sio dois, termos indissociaveis, cabendo ao fildsofo mostrar a conexdo intima que 6 liga, e trabalhar dentro desses limites, fiel & heranca do racionalismo ocidental. Trata-se para ele, que tinha como pano de fundo nos anos 1980 Para ele, nO ‘a ascensio do neo-conservadorismo e a critica — ecol6gica mento, duas perspectivas bastante criticas ao “projeto da modernidade”, de oferecer uma defesa do Huminismo e da modernidade quando para muitos estes se tornaram efetivamente desacreditados.* Partindo de tal perspectiva, nada mais natural, portanto, que Habermas re- tar frontalmente todas aquelas correntes que, seja na arquitetura, na arte (04 na Filosofia, procuram se distanciar da modemidade, proclamando sua ruptura com essa. No prefacio de seu livro O discurso floséfico da modern dade, Habermas refere-se ao discurso que proferiu em 1980, por ocasiio do recebimento do Prémio Adorno, intitulado “Mod incompleto”. Neste tratara, por meio de uma cuidadosa andlise da moder- ‘nidade, um projeto nidade, justamente do suposto aparecimento de uma “pés-modernidade”. ‘isto tema, controverso e cheio de facetas, nunca mais me abandonou", confessa em 84. O combate ao chamaclo “pés-modemo” passa a ser, entio, tum dos pélos da obra de Habermas, o que nos faz supor que, talvez, tena sido justamente © desafio represen- {ado pelas correntes de pensamento ps-modernas” que estimula 0 fi- Jsofo a claborar sistematicamente {uma teoria da modernidade que pro- cura explicar as patologias de nosso tempo, evitando cair nos impasses ‘em que terminou a Teoria Critica lunge Habra PATRIMONIO CULTURAL - Coneitos, pots, instrumenton Para apresentarmos a sua teoria da modernidade, principalmente em sua faceta estética, vamos recorrer, entio, ao texto citado de Habermas, “Mo- dermidade, um projeto incompleto”, discurso com o qual ele pretendia, por Jum Indo, refutar as correntes que se proclamam “pé moclernas” e, por Outro, defender a cntnuagio clo que chama “pojto da modemidade” Habermas adota aia inica que parece possivel num pequieno texto, que se dlestinava, ademais, nao a especialistas, mas a um publico mais amplo — tratava-se, no caso, de um discurso proferido ao receber 0 prémio Adorno, fom 1980: comegar pontualmente,clareando um aspecto especitico da ques- {80 ©, a partir dai, algar vos mais altos. Habermas comega justamente com 8 questio da modernidacte na arte, procurando, com a anélise do proprio Gonceito “moderno', delimitar claramente o terreno em que nos situamos. Ap6s tal passo, 0 fildsofo pode prosseguir, atacando os neoconservadores © on eri cos do crescimento, e apresentando a sua versio prépria do pro- ‘pexso de modernizagao, que, se nao pretende indicar saidas concretas para 4 Impasses dle nosso tempo, pelo menos nos aponta a possibilidade deles, He resolverem sem que se tenha de abdicar da prépria modernidade. Umm dos caminhos para a elucidagao desse importante marco teérico pa feee ser acompanhar o seu desenvolvimento histérico, caminho tentado Por Varios autores como Kosselick e Jiirgen Habermas, i 0 que faz: Ha- bermas nesse texto: interrompe sua marcha e tenta, com a discussio do proprio termo “moderno”, ganhar a necesséria clareza para prosseguir. Ao anuneiat, no inicio do segundo parégrafo, que o t6pico seguinte “nos ve da histéria”, Habermas prepara-nos para o tipo de discussi0 que se s ue uma tentativa de se agreender historicamente 0 conceit. Como ponto Gentral de tal delimitagao histérico-conceitual o filésofo vai tomar aqui as diferentes relacdes com a tradigao que o termo “moderno” indica ao longo ilo mua existencia, elacies essas que pressupdem tipos de “consciéneia do lempo" (Zeitheoussisen) igualmente diferenciados.* Diferentes relagdes com o tempo Ao escolher tal via de aproximagao, Habermas nos recorda a discussio {jue Octavio Paz. faz do fendmeno da modemnidade em seu livro Os fillas ilo barre, onde também se aborda a questio sob o prisma da relagio com o tempo. Neste ensaio, o poeta mexicano nos mostra como o fendmeno da inodernidade)sé seria possiv ppecullar relagio que esta estabelece entre as trés dimensdes do tempo [passado, presente ¢ futuro) E, para ele vai ser justamente esta relagio entre numa sociedacle como a ocidental, com a oe Thal e uaternidade! diferentes aprasinagten fs dimensdes do tempo que determina a relagio de um povo com a tradi~ glo: “A relagio entre os trés tempos, passado, presente e futuro, & distinta em cada civilizagdo”, escreve.!” Assinala, entio, quatro modelos basics fem que pode se manifestar tal relagaio: aquele que domina das eivilizagoes primitivas aos gregos, 0 indiano, 0 cristio e o moderno. No primeiro modelo, que persiste até entre os gregos, o(passady seria o foco, tempo-arquetipico, modelo a se imitar, Nao se trata aqui, certamente, nemorial, uma idade do ouro, que do passado recente, mas de um tempo s¢ localizaria no inicio, na origem. Tal énfase sobre o passado faz.com que (as civilizagbes vejam com horror as inevitdveis variagbes que 0 passar do tempo implica: “longe de serem consideradas benéficas, essas mudan- {a8 silo nefastas: o que denominamos histéria é para os primitivos falta, queda’ A histéria seria aqui uma degradacao do tempo original, “um len- neia, que culmina com a morte”, O re- 0 estaria no terno retomno} 0 pasado lo. "Desta forma o futu- toe inexoravel processo de decad médio contra a mudanga e a extin vai ser um tempo que reaparece ao fim de cada ci ro nos oferece uma dupla imagem: é 0 fim dos tempos e o seu recomeso, ¢ a degradagao do passado arquetipico ¢ é a sua ressurreigao”. se preso aqui, pois, ao circulo do tempo, do qual nem os deuses escapam: como 8 homens, estes tam- ‘bém devem nascer, pe- recer ¢ tornar a surgi "Quetzalcoatl desapa- rece no mesmo lugar no qual se perdem as divindades que Nerval Inyoca em vaio: esse lu- ‘gan, diz o poema néua- He, ‘onde a agua do mar se junta com a do céu’, onde a aurora é crepiis- culo’." © modelo indiano vai se local ar, ao contré- tio do anterior, numa wegagio do propria) smpo, num mais além, que ¢ visto como um ser Renal ay Udaipur, hua uy TATRIMONIO CULTURAL »Coneito, plas, instrumenton imével sempre igual a si mesmo (bramarc) ou o vazio igualmente imével (niroana), Sobre ambos nada poderia ser dito: esto além nao s6 do tem- po, mas também da propria linguagem. A civilizagao indiana nao rompe, ‘entretanto, Gom a idéia de um tempo ciclico:)”sem negar sua realidade ‘empirica, dissolve-o e converte-o em uma fantasmagoria sem substancia’’ ‘Os ciclos continuam a existir, mas slo literalmente os sonhos de Brama, ‘que se dissipam sempre que o deus desperta, ao fim de cada 432 mil anos. iste enorme sonho circular, irreal para aquele que o sonha, porém real para o sonhado, é monétono: inflexivel repeti¢ao das mesmas abomina- bes", esereve Octavio Paz." © tempo cristo, que traz o terceiro modelo, éo primeiro a romper com 4 dia de cielo: équi tuclo s6 acontece uma vez e inexoravelmente) Dai poder afirmar Santo Agostinho: “Somente uma vez Cristo morret por Hiosson pecaclos, ressuscitou entre os mortos e nao morrera mais”. Rom- pendo 08 ciclos e introduzindo a idéia de um fempo finito e irreversivel) ‘Oeristianismo acentua a heterogeneidade do tempo, isto é, poe “mar tamente essa propriedade que o faz romper consigo mesmo, divid separarse, ser outro sempre diferente”, O tempo, cindindorse a cada ins- {ante repete aquela ruptura original — a ruptura do paradisiaco presente termo, "Finitude, irreversibilidade e heterogeneidade sao manifestacoes de imperfeicdo: cada minuto é vinico e distinto porque esta separado, cor tado da unidace”. Dai sera historia, aqui, também sindnimo de queda. ‘Hitretanto, todas essas contradigGes vao se reconciliar, no modelo cristao, ‘ha sternidade, “unidede do tempo que esti clepots dos tempus”. Com a lddia de eternidade regressa o eterno presente: depois da reconciiagao do Jilzo Final temos a “morte da mudanga — a morte da morte”. “No fim dos tempos cada coisa e cada ser serdo mais plenamente aquilo que so: a plenitude do goz0 no paraiso corresponde exatamente e ponto por ponto a plenitude da dor no inferno”. Todos esses modelos — pasado intempo: ral do primitivo, ten po ciclico, anulagio dos contrérios no bra- mane ou na eternida- de cristi — podem, segundo Octivio Paz, ‘Tradl « moderna: derntes aproxinagdoe ser reduzidos a um principio tinico: sio “tentativas de anular, ou pelo \ menos minimizar, as mudangas”. “A pluralidade do tempo real opde-se * ‘a unidade de um tempo ideal ou arquetipico; & heterogeneidade em que ‘se manifesta a sucesso temporal, a identidace de um tempo mais alm do tempo, sempre igual a si mesmo” . A modernidade vem romper “brus-\ eamente com todas essas maneiras de pensar”. Se herda o tempo linear e irreversivel do cristianismo, nao aceitando as concepgdes ciclicas, a era moderna vai inaugurar o quarto modelo, ao(negat\radicalmente a idéia ‘da finitude do tempo e da reconciliagao na eternidade. O foco nao é mais aqui o passado ou a eternidade, mas o futuro, “o tempo que ainda nao é que sempre esti a ponto de ser”. “Diferenga, separacao, heterogeneida- de, pluralidade, novidade, evolugao, desenvolvimento, revolucao, hi ria — todos esses nomes condensam-se em um: futuro, escreve Octavio Paz, Se 0 tempo passa a ser concebido como um continuo transcorrer, um “perpétuo andar para o futuro”, nada mais natural do que se valo- fize a mudanga, e nao se tente, como nos outros modelos, minimizé-la “0 principio em que se fundamenta 0 nosso tempo nao é uma verdade eterna, mas a verdade da mudanga’ A perfeigdo consubstancial a eter nidade converte-se em um atributo da historia: os seres e as coisas nio fio mais atingir sua perfeic3o)“no outro tempo do outro mundo, mas ho tempo de aqui — um tempo que nao é presente eterno, mas fuga7! A histéria se torna na modernidade, pois, como escreve Octavio Paz, 0 "nosso caminho da perfeicio”, Diferentes relacdes com a tradigao: passados arquetipicos Habermas, em “Modernidade, um projeto incompleto”, apresenta-nos também diferentes modelos de relagao com o tempo, observaveis na pré- pria histéria do conceito “moderno”. Tal termo teria surgido pela primeira ‘vex no fim do século V “a fim de distinguir o presente, que oficialmente 4e tornara cristao, do passado romano e pagio”. “De conteiido varidvel, 6 termo ‘moderno’ reitera a consciéncia de uma época que insiste em se referir ao passado da Antigiiidade procurando conceber-se como resulta- «do de uma transigio do velho para o novo", escreve."* A forma de relagio om a tradigao que tal termo indica variaria, entretanto, como nos mostra 6 fildsofo, ao longo do tempo: podemos identificar, partindo do texto de Habermas, basicamente trés modelos dessa relagio. PATRIMONIO CULTURAL « Conceito, pte, instrumentos O primeito deles se teria vigido desde a Idade Média, onde © termo, derivado do latim “modernus” aparece pela primeira vez, até o Thu minismo, passando pelo Renaseimento, onde tal concepgao ¢ reforgada. Ser moderno aqui nao significava, como mais tarde, desligar-se da tradigio, ou nogi-la abstratamente, mas sim(voltar a ela, renové-la} “(..) 0 termo ‘mo= demo’ surgiu e ressurgiu exatamente durante aqueles periodos em que na Buropa se formava a consciéncia de uma época através de aquele 4 snovada relagio ‘60m 08 antigos — sempre que, ademais, a Antigiiidade era consiclerada mo- elo que se havia cle restabelecer por alguma espécie de imitaga0”."” Assim, por exemplo, ser ”“moclerno” na Idade Média era retomar a tradigao de Aris: tdteles, no Renascimento, a tradicao artistica cléssica. Temos aqui resq daquele modelo de relagdo com o tempo, cujo pélo organizador é 0 passado, ‘que Octivio Paz de creve: por tras dessas retomadas revela-se a erenca na superioridacte de um passado-arquetipico, a se imitar Um bom exemplo disso encontramos numa histéria usada por John Sum- merson em A linguagem cléssion da Arquitetura para retratar a veneracio ¢ Aadesito acritica que, ao tempo do Renascimento, despertava tudo 0 que se ligava i Roma antiga adig e modernidade diferentes aprorimagher ee (..) se quisermos compreendero pensamento do séeu Jo XV e XVI, precisamos ser simples, Buckhardt cont ros uma historia muito bonita, que pode nos aux ‘uma certa ocasio, em 1485, foi anunciada a des: coberia, em um sarediago, do corpo de uma mulher romana, com a boca ¢ of olhos ainda entreabertos ‘com as faces ainda rosadas; segundo um informante da época, era ‘mais linda do que se pode contar ou descrever e, mesmo que se contasse ou se lescrevesse sua beleza, aqueles que nao a viram nio acreditariany’ ' Claro que tudo nao passou de uma falsificagio. Mas a cemogao que o fato suscitou nao foi falsa. Tratando-se de uma mulher romana, as pessoas estavam seguras, de que deveria ser belissima, algo nunca visto," Tal {6 na superioridade romana pode ser encontrada também em algumas pinturas de Mantegna, onde se retratam “senadores, consules, lictores eenturides prontos para desempenhar seus papéis em um cenario de mo- numentos soberbos e resplandecentes’, representagd magnificas de uma Roma antiga idealizada, elevada a modelo normativo inconteste Embora alguns criticos como Manfredo Tafuri localizem ja no proprio Re~ nascimento uma relacdo éritica ¢ racional com a tradigao¥, este pr modelo vai se caracterizar basicamente por uma relagao acritica com con- letidos normativos tomados do passado, Tal relagéo vai se tomando, no entanto, crescentemente reflexiva, como veremos a seguir: Historicismo e retomada critica do passado Tal fascinio por modelos retirados de passados exemplares da Antiguida- de vai se dissolvendo aos poucos, com a entrada em cena da razao critica moderna. Octavio Paz: “A modernidade 6 sindnimo de critica e se identi- fica com a mudanca; nao é a afirmagio de um principio intemporal, mas o desdobrar da razao critica que, sem cessar, se interroga, se examina e se destrdi para renascer novamente”.2 A dissolucio da autoridade de mo delos normativos tomados do passaclo pode ser bem exemplificada com 0 caso da Arquitetura ne elissicos 6 colocada, pela prime Lissica, onde a crenga cega na superioridade dos a vez, em questio. “Por que Roma seria a bom na Arquitetura?”, interroga-se John Sum- merson. "Na verdade”, escreve, “essa questao do porqué’ nao preocupava muito as pessoas, até o século XVII. B a controvérsia surgiu na Franga, € a ‘iio na Itdlia, Parece-me natural que tal espirito eritico emergisse ndo na terra natal da arquitetura cldssica, a Itélia, mas em um pais onde ela fora absorvidae adaptada ¢ onde viera substituir a mais intelectual de todas as fonte de tudo aquilo que PATRIMONIO CULTURAL, - Conceitos, poten, iustrumentor ttadig6es medievais”.* Habermas vai apontar também o Iluminismo fran- ‘9, com seus iceais, como o primero a abolir a autoridade inconteste dos modelos do passaclo. A idéia de que ser “moderno” implicava voltar aos antigos muda neste momento, segundo o filésofo, ao se confrontar com a renga = inspirada na ciéncia moderna — “no progresso infinito do co- nhecimento e no avango infinito em diregdo ao aperfeigoamento social e moral”. Em O Discurso Filaséfico da Moder- nidade, Habermas discute mais pro- fundamente tal questo, tomando a célebre Querelle des Anciens et des ‘Modernes do inicio do século XVII partido dos “modernos” vai ai se rebelar contra a “auto-compre- ensio do classicismo francés”, nao aceitando mais a imitagio acritica dos modelos antigos ou a existéncia de “normas de uma beleza abso- luta e aparentemente subtraida do tempo”. Assimilando © conceito aristotdlico de perfeigdo aquele do progresso, que era sugerido pelas Giencias modernas da natureza, ela- boram critérios de um belo condi- cionado ao tempo ou relativo. Com {ss0, ao se separar, ainda que par- cialmente, do modelo da arte anti- ga, vao ser os primeiros a se depa- HAF com a questio da necessidade da auto-fundamentagao, que marca a moderidade como um todo. Tisse processo nao se dé, entretanto, abruptamente, acontecendo de forma gradual e progressiva. Assim, a dissolugio dos modelos normativos do Passado nio significa, no campo da arte, de imediato, uma negagio da tra- digo enquanto tal: 0s romanticos modernistas, por exemplo, vio buscar ‘uma Idade Média redescoberta um modelo alternativo, que eontrapdem 408 antigos ideais classicistas. “A era da Tlustragio rompera definitivamen- te o continuum do presente com 0 mundo das tradigies imediatamente vividas, dos legados tanto grego quanto cristo", escreve Habermas em “Arquitetura moderna e powmoderna’.* Entretanto a Husteaglo, tornada ‘Traigoe moderna: diferentes oprocimaes histérica, ndo se contentava com a simples quebra da continuidade: “que- riam antes, através de uma apropriagdo refletida da histéria, encontrar seu proprio caminho”.- Tal processo se mostra de forma bastante nitida na Arquitetura, onde a apropriagdo da historia se torna cada vez mais (refletida”) Se observar- mos com euidado.o peiodo que vai do aparecimento do Neocléssioo até a vitéria do Ecletismo, podemos identificar uma clara tendéncia & “des- acralizacio” e acionalizagio no trato com a radigio. © Neoclassclomo val ser realmente como indica John Summerson numa expresso feliz © primeiro estilo a tratar a Arquitetura “a luz da Razao e da Arqueolo- BPA De fato, aqui se mullipticam os tratados teérlcos que analisam sarc eruide parte dos principlos de projetagho déaien,@ x. tudos arqueoldgicos precisos, que “revisitam” os estilos do passado de forma cada ver mais objetiva, Tudo aqulo que até entéo fora aceito sem discussio passa a ser submetido ao(rivo rigoroso da anilise racional) Bis sssinela Leonardo Benevolo: Biber de Tasan Sects alias rrscdesy aoa aster oe ea a aE todas, oalanceexato eo valor das Fras formats do Siatacy crslonsts aeuecteae age Bt agen eter cies a eg soca uct ciey ab angltaras angus © Ao mesmo tempo, oGtros modelos) ndo-cléssicos, comegam a ser uliliza~ dos, substituindo os cénones usuais, e mesmo estilos “exdticos” nao-euro- peus sio gradualmente aceitos. Este processo evolutivo de uma historiografia crescentemente racional culmina, nos fins do século XIX, com 0 Ecletismo, onde todos os estilos estavam disponiveis e, igualmente bons e belos, podiam ser intercambia- * velmente usados. “Nao hé estilo que nao tenha uma beleza peculiar (..) hoje nao hé nenhum estilo concreto que prevalega em sentido absoluto. Es- tamos vagando num labirinto de experimentos e tratando, através de um amilgama de certos elementos deste ou daquele estilo, deste ou daquele pais, de constituir um conjunto homogéneo com alguma caracteristica dis- tintiva a fim de levé-la a seu pleno desenvolvimento e, portanto, a criagaio “de um estilo novo e peculiar”, escreve Thomas Leverton Donaldson, em 18422” Se, em meados do século XIX, ainda se buscava, como vemos, um estilo de construgio novo e sintético, que expressasse o espirito do novo tempo, a partir da metade do século a Gonsciéncia historicista triunfa total~ mente, ¢ aceita-se, efetivamente, o Pluralismo dos estilos)como o proprio (CULTURAL + Coneitos,poltns,intrumentos estilo do tempo. “86 na segunda metade do século XIX o pluralismo dos estilos, objetivados e apresentados pela historiografia da arte, seria efetiva- ‘mente adotado”, anota Habermas." © Aiistoricisma apresenta, porém, uma Gupla face) como reconhece Nietzsche no final do século: se, por um lado, continuando e radicalizan- do a ilustragao, define as condigées para a formacao das identidades mo- demas “de maneira ainda mais estrita e inexoravel”, por outro, ao tornar 44 tradigdes hist6ricas “disponiveis na forma de uma contemporaneidade ideal”, “possibilita a um presente inconstante, para si mesmo fugaz, um disfarce na forma de identidades emprestadas" * O Fcletisma) pode, as- ‘sim, por um lado, ser considerado como realmente moderno, na medida ‘em que completa e leva & sua culminagao o proceso de dessacralizagiojda tradiglo, terminando de dissolver o resto de idealidade que ainda cerca 106 diversos estilos. Por outro lado, entretanto, ao fornecer a um “presente. Inconstante” “identidades emprestadas” tomadas do pasado, o Ecletismo He presta a uma funcio dissimuladora, de Gisfarce, ‘Tal ambigtlidade presente na modemidade historicista do século XIX pare- ‘ce-nos muito bem captada por uma metéfora que Walter Benjamin utiliza ‘em “Paris, Capital do século XIX” — “imagens de sonho". “Essas imagens Ailo imagens clo desejo e, nelas, a coletividade procura tanto superar quan- {0 transfigurar as caréncias do produto social, bem como as deficiéncias da fordlem social de producio”™, explica o filésofo. Essas “imagens de sono" serlam, assim, uma espécie de “sonho coletivo”, imagens por meio das quais fos homens, ao mesmo tempo, escamoteariam e enfrentariam a realidade que we Ihes apresentava — aquela da Europa da segunda Revolucdo Industrial, Os fins clo século XIX, marcada por uma violenta industrializagio e urbani- ago, Nessas imagens de sonho, o novo se interpenetra com 0 antigo: nega~ 0 passado recente e até mesmo o presente perturbador, voltando-se para tim passado remoto. A “enfitica aspiracio de se distinguir do antiquado” fax “retroagir até o passado remoto a fantasia imagética impulsionada pelo Hoyo", escreve Benjamin. As imagens de sonho se manifestam, no século Bee par toda parte: no interior burgués, nos cassinos, nos museus de cera, Ha cidade e, principalmente, na arquitetura: aqui, juntamente a um progres- #0 da técnica de construgao dum ritmo inédito na histéria, domina o Ecletis~ ‘Mo, esse “baile de mascaras” estilistico. Os novos tempos colocavam uma série de problemas inéditos para os ar- quitetos: as cidades cresciam espantosamente, trazendo a baila a questio da construgio em grande escala para as massas; 0 desenvolvimento social ‘20m 0 dominio erescente da burguesia exigia uma ampliagho em néimero ‘alive moernidade; diferentes aprosimagton de certos tipos arquitetonicos exis- tentes (bibliotecas ¢ escolas, casas de pera e teatro) e mesmo a criagio de novos (as grandes estagdes cle trem, (08 magazines gigantescos, os halls das grandes exposigoes univers 08 novos materiais de construcio, como 0 vidro € 0 ferro, 0 ago e 0 mento, e os novos métodos de pro- dugio exigiam uma forma de expressdo arquitetonica distinta da até eto vigente.%! Os arquitetos, porém, negavam o proprio desenvolvimento indus- trial e se concentravam quase que exclusivamente no trabalho puramente » tilistico dos edificios, com especial énfase para as fachadas desses. Vivia-se Hum reino do “estilo”, numa cisdo neurética entre os reclamos funcionais dos novos tempos (que, muitas vezes, acabam se manifestando nas plantas dos edificios) ¢ o trabalho estilistico propriamente dito. Nikolaus Pevsner, sobre o Ecletismo na Inglaterra vitoriana Basa falta de autoconfianga altima coisa que seespe rari cle uma epoca to inependente quanto ao cone. Gio, indstria © engenharas Para as coisas do espito que fat vigor e coragem ao perio vitorano. Os Paatoes em arqutetira foram os primeiios a desopa. rece, pols, enuanto um poeta ¢ un pintor podem esqueder a sua epoca e er grandes na slidao de seus tation tim arltto no pode extrem oposig socked. Aqueles dotados de snabildede inal ram tanta beleza destruida sa volta pelo eressimento suite, expansive e incontrolalo das clades ibricas | que se divorcaram de seu século-e votaram-se para um passad mai inspradon™ Um bom exemplo do funcionamento de tais imagens de sonho pode ser en- fontraclo na questio da pripria téenica, “(..) a produgio técnica em seus pri- miérdios estava prisioneira do sonho (traumbelangene). Também a técnica, nilo somente a arquitetura, é em certos estégios testemunha de um sonho co- Ietivo”, anota Benjamin, em Das Passagen-Werk Como jé apontamos, a intro- B dugio de novos materiais oferecera aos construtores possibilidades expressivas fotalmente novas, O ferro, e mais tarde o ago, tomam possiveis as construgies ais altas, vos muito mais amplos e plantas-baixas mais flexiveis. O vidro, [Por sua vez, em combinagio com o ferro e 0 ago, possibilitou tetos e paredes Anfelramente transparentes, enquanto o concreto armado trouxe consigo pos sibitidades de uma plasmagio arquitetiniea muito mais arrojada, Oy arquite- tos de entio, contuco, pouco se deram conta daquele vasto mundo de novas ‘possibilidades abertas A sua frente, Pevsner: “(.,) [Os arquitetos} no perceblam. Vitrine, Paris, 198 HO CULTURAL - Coneios, politica, instrument ‘que a Revolugio Industrial na mesma medida em que destruia uma ordem e ‘umn padrio de beleza estabelecidos, criava oportunidades para um novo tipo + de beleza e orclem’.® Walter Benjamin, sobre a construgio em ferro no século XIX: “Assim como Napoledo reconheceu bem pouco a natureza funcional do Tistado enquanto instrumento de dominagio da classe burguesa, tampouco os ‘arquitetos daquela época reconheceram a natureza funcional do ferro, com 0 ‘qual principio construtivo principia a sua dominagdo na arquitetura’ 38 Como ‘lo compreendessem a natureza do novo material (ou nao a aceitassem em sua erueza moderna), os arquitetos vao uso... travestido: “Nas vigas de sustenta- {lo esses construtores imitam colunas pompeianas e nas fébricas eles imitam ‘moradias, assim como mais tarde, as primeiras estagoes ferrovidrias tomam por ‘modelo os chalés”, esereve Benjamin. ‘Tomos aqui, pois, as duas faces que Nietzsche apontava no historicismo: se, por um lado, o Ecletismo continua a se apropriar de modelos normativos do [passado, por outro esta apropriagao faz-se cada ver. mais Eliminam-se aqui, de vez, todos os passados exemplares, eabendo agora ao préprio presente, que se abre para o futuro, forjar seus ‘modelos de normatividade, Aceitando, como inclica Octavio Paz, a histori- ‘ioe modernidade:dferotesaproximage. ‘eldade em sua forma mais radical, onde cada momento é um momento de Fuptura, separagio, a modernidadte valoriza, pela primeira vez, nio mais a »-permanéncia, masa propria mudanga. Habermas, ao analisar esse modelo, assinala ser nele 0 “novo" o traco distintivo das obras que se consideram modernas. “A caracteristica de tais obras ¢ 0 ‘novo’ que se hé de ultrapas~ sare tornar-se obsoleto pela novidade do préximo estilo”, escreve. Com tal modelo, que rejeita a autoridade normativa do passado, coloca-se, entio, pela primeira vez, claramente, o(problema da auto-fundamentagaoxda mo- demidade, a que aludimos no inicio. “(..) a modernidade nao pode nem {quer mais tomar emprestado os proprios critérios de orientagao de mode Jos de uma outra época; ela deve atingir a Sua propria normatividad® por si mesma”, escreve Habermas em O Discurso Filosifico da Modernidade.® “A modemidade se vé remetida a si propria, sem nenhuma possibilidade de “fuga”, completa. Tal concepsao fica clara quando se observa, como faz. filésofo, a relagao do proprio conceito de “Classico com a modernidade. JJ. Polit, ao anali- sar tal termo, anota que, ao lado de seu sentido histéricd, este traz sempre consigo outro sentido — o@ualitativd, que nos interessa aqui. Quando se chama de “classico” ou uma “fase clissica” na evolugio de uma arte ou uma ciéncia, usa-se tal termo qualitativamente “para expressar o reconhe cimento de uma norma de perfeigad dentro de um determinado género, luma norma pela qual se tem que julgar os objetos ou evolucées posteriores dentro desse género”, escreve.* E neste sentido que Habermas se refere a tal conceito a0 anotar: “aquilo que é modemo preserva elos velados com © clissico”. Com tal afirmagao 0 fildsofo indica claramente, entretanto, a ‘mudanga que a modernidade opera ji no priprio conceito de classico. Até lento se considerara¢lassicd tudo que Sobrevivesse ao tempd, impondo-se como um modelo normativo de perfeicao, a se(imitais Porém a moderni- dade nao vai mais tomar emprestada a autoridade de uma época passada este estatuto do classico: vai buseé-la no préprio momento em que se dé uma obra de arte auténtica. (".. recebe-o (..) por ter configurado Jum momento autenticamente moderno”). Desta maneira podemos di er que a modernidade vai criar “seus proprios e auto-referidos cénones * do que considera classico”. Com tal inflexdo no conceit podemos agora permitir-nos 0 uso de expressdes como (modernidade clissica como 0 faz Habermas. “A relagio entre modemidade e clissico perdeu definitivamen- ¢ te qualquer referéncia fixa”, conclu Se na célebre Querelle des Aniciens et des Modernes do século XVIII, e mesmo no Ecletismo, jé se colocara o problema da auto-fundamentagio da mo- demidade, 0 problema do belo condicionado temporalmente, vai ser na PATRIMONIO CULTURAL Cont, pln, struentn obra de Baudelaire que “o espirito e o exercicio da estética modernista” ‘assumem, para Habermas, “nitidos contornos”. Para o poeta francés a ex- » porineia estética da modernidade se fundia com a experiéncia historica: a Cobra de arte vai ser o ponto no qual se encontram os eixos da atualidade e da eternidade. “A modernidade ¢ o transitério, o evanescente, 0 acidental; 6a metade da arte, da qual a outra metade é 0 eterno e o invariavel”, escre- ‘ye. O presente nao vai mais tirar a sua prépria autoconsciéncia do passado = nem mesmo se opondo a ele: “a atualidade s6 pode constituir-se como ponto de encontro entre tempo e eternidade” *O ponto de referéncia vai er, a partirde agora, o instante fugidio do presente, que é entendido como "o autntico pasado de um presente que ainda deve vir", Assim, 0 classi 0 vai ser, para Baudelaire, o “relampago” do surgir de um mundo novo, que, por sua propria natureza, nao sera estético. Com tal visio, Baudelaire 4 vai traduzir a controvérsia antigo versus moderno nos termos belo abso- J luto.e belo rlativo: “Grbelo constituido de um elemento eterno, imodifi- civel (.) ¢ de um elemento relativo,Condicionado\.), que ¢ representado pelo periodo, pela moda, pela vida cultural, pelas paixdes”, escreve. Este elemento transitério seria i dispensdvel & obra de arte, pois, 6 ele que vai tornar “digerivel a torta divina’: sem este elemen- to transitério “o primero ele- mento seria insuportvel para a natureza humana” ** Baudelaire, como critico de arte , vai valorizar, entao, na pintura ( ‘moderna, justamente aquele as- ¥ pecto = a “beleza fugaz, efémera”,ligada ao instante que se esvai. Funda, {GoM isso, aquela afinidade entre a arte e a moda, que marca a modemid alg; na medida em que a beleza eterna s6 se revela sob o travestimento do {naje temporal, a obra de arte moderna auténtica s6 pode se dar no encon- {ro entre o efmero e o auténtico, entre o tempo e a eternidade. Benjamin, {a versio francesa de “Paris, Capital do século XIX", ao comentar o titulk do primeiro ciclo de Les fleurs du mal — “Spleen et idéal” — assinala que ai, 0 apresentar ao leitor 0 “mais antigo” como 0 “mais novo", Baudelaire di 4 forma mais vigorosa ao seu conceito de moderno: "Sua teoria da arte te toda ela por eixo a 'beleza moderna’ e o critério da modemidade the par ‘f ce ser aquele marcado pela fatalidade de ser um dia antigo, e que o revela aquele que é testemunho de seu nascimento."* ‘Trai moderna difrentes prorinaies Baudelaire, apesar de toda a énfase que dé ao transitério, ao fugaz, ao belo relativo, ainda man- tém um lugar em sua teoria davarte para 0 belo . absoluto, 0 imutavel, o imperecivel. A ruptura - 4 san e radical com a tradigad, indicada pelo ceiro modelo, fica mais clara quando analisa~ ‘mos o fendmeno das vanguarclas artisticas, que vio atingir o seu auge, segundo Habermas, no Café Voltaire dos ladaistas e no Surrealismo)" A estética da modernidade vai se caracterizar agora “por atitudes centradas numa coneepgio diferen- te de tempo", anota o fildsofo, Tal atitude vai ser, justamente, aquela apontada por Octavio Paz: a @nfase recai sobre ‘mudanga, a ruptura e o futuro, afastando-se definitiva- ‘mente a idéia de um passaclo fornecedor de modelos normativos. Tal cons- ciéncia de tempo, diferente, por exemplo, daquela do modelo historic vai se manifestar j4 no uso de metéforas como “vanguarda”, proveniente da terminologia militar e que indica a primeira linha de um exército, uma "forca de choque cuja tarefa primordial consistia na (estruigao imediata do inimigo” ** A propria imagem escolhida ja deixa entiever a relagao com © tempo vigente neste modelo. “A vanguarda concebe a si mesma como invasora de territ6rios desconhecidos, expondo-se a riscos de suxpresas, experiéncias de choque, conquistando um futuro jamais ocupado. A van- guarda precisa encontrar um caminho num territério onde ninguém ain- da parece ter-se aventurado”, escreve Habermas. O “choque estético”, preconizado pelas vanguardas como estratégia de conquista do futuro, pressup6e, por sua vez, um “elemento de ruptura convulsiva e violenta tem seuis aspectos aparentes e mais espetaculares em relacio a tradicao ou, © que vem a ser 0 mesmo, aos habitos formais estabelecidos e as corres- pondentes expectativas”, escreve Eduardo Subirats, em Da Vanguarda ao és-moderno. Habermas, em “Modernidade, um projeto incompleto”, segue Adomo ao iblilzar 06 termos {vanguarda” e “modernidad@) como sindnimos, obeer- va Peter Biirger:# Subirats nao vai to longe a ponto de pressupor uma identidade entre os termos, mas aponta a sua afinidade, Apesar de ambos, em prinefpio, designarem realidades distintas, estariam unidos intrinseca ‘mente. O modemo apontaria, para Subirats, para a diregao do novo, para @ idéia de uma renovagio constante, de “reformulagio sempre iniciada a partir do zero de valores individuais e coletivos, de objetivos comuns a ‘uma civilizagio”, Na medida, porém, em que um individuo ou uma época PAPRIMONIO CULTURAL » Conelos, potions, istrumentos hist6rica s6 poderia definir sua identidade propria com referéncia “a seu pasado, a sua meméria histérica”, a modernidade, em sua “incessante busca do novo", estaria condenada a/nao ter identidad®) O caracteristico da modernidade seria, para Subirats, justamente a “autonegagdo das iden- tidades culturais objetivas e fixas, tornadas opacas”, num ato constante de muptura e auto-superacao, Tal ato seria levado a cabo pelas vanguardas. "As vanguardas artisticas do nosso século caracterizam-se pelo rigor com que assumiram essa ruptura com o passado, em um sentido que afetava 6 conjunto da cultura e inclusive as instituig6es politicas, e afirmavam © Wo Como exigéncia de uma perpétua renovagao”) conclui:” ‘Tal Gnfase sobre a mudanga, 0 novo acaba, para Habermas, por significar a exaltagio do presente: Anova consciéncia do tempo, que se introduz na Filo- sofia com os escritas de Bergson, vai além da expres- slo da experiéncia de mobilidade social, de aceleracio da hist6ria, de descontinuidade na vida cotidiana. O novo valor conferido a0. transitério, a0 fugaz e a0 efémero, a propria celebracéo do dinamismo, mani- festam 0 anseio por um presente integro, imaculado eestivel sta relagio com o tempo ajuda-nos a entender a prépria relagdo que a mo- demidade passa a manter com a tradigao. “Isto explica a linguagem algo fabstrata na qual o vezo modernista tem falado do ‘passado’. Apagam-se ‘08 Componentes que distinguem as épocas entre si", escreve Habermas. A memiéria hist6rica é substituida pela “afinidade herdica do presente com (64 extremos da histéria: um sentido do tempo no qual a decadéncia se teconhece de imediato no barbaro, no selvagem e no primitivo”. Walter Benjamin perguntava-se, em 1933, em “Experiéncia e pobreza”: “(..) qual © valor de todo 0 nosso patriménio cultural, se a experiéncia ndo mais o Vincula a nés?”* A “horrivel mixérdia de estilos e concepcdes do mundo do século pasado” tinha mostrado com clareza “aonde esses valores cul- turais podem nos conduzir”, escreve ofildsofo. Assim constitufa-se “prova de honradez, confessar nossa pobreza” e proclamar 0 surgimento de uma “nova barbarie”. “Barbérie? Sim. Responclemos afirmativamente para in- troduzir um conceito novo e positive de barbaric, Pois o que resulta para © birbaro dessa pobreza de experiéncia? Ela o impele para a frente, a co- megar de novo, a contentar-se com pouco, sem olhar nem para a direita hem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacveis que operaram a partir de uma tébula rasa”, Fazer ‘tibula rasa’ do pasado, comegar do nada, criar seus préprios modelos — tais eram as tarefas que se colocavam para os ‘novos bérbaros’, as vanguardas do inicio “rule mernidade diferentes aproxinagier do século, Marinetti, em 1909, no “Manifesto do Futurismo”: “Nos quere- ‘mos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminis- mo e todas as covardias oportunistas e utilitérias”. Ou ainda: “Admirar um. -velho quadro é verter nossa sensibilidade numa urna funeritia, em vez de langésla adiante pelos jatos violentos de criagdo e agio. Voc® quer portanto estragar suas melhores forgas numa admiracao iniitil do passado, do qual voce sai forgosamente esgotado, diminuido, espezinhado?”*? Esta revolta contra o passado nao é geatuita, servindo a um propésito bem determinado: com ela a modernidade tenta se libertar das “fun malizadoras da tradicio”, como escreve Habermas." "(..) [a modernida- de] vive da experiéncia de se fevoltar contra tudo que é normativé) Esta revolta é uma maneira de neutralizar padrdes tanto da moral quanto da utilidade”. A estratégia para tal: um “jogo dialético entre recato e escin- dalo pablico”, que leva a utilizagao de diversos elementos de provoca¢a0, de ruptura, como as metaforas beligerantes e as ages agressivas. “Basta recordar, a propésito, aqueles grupos de artistas como os dadafstas de Zu- rique e Berlim, os futuristas do Norte da Itélia ou os cubistas franceses que, em suas agdes e manifestos e, sobretudo, em suas exposigdes e expe- rimentos formais, assumiram a provocagio e o escandalo como finalidade artistica”, escreve Eduardo Subirats, que ilustra Sio incontéveis as passagense citagdes que coincidem neste ponto: a apologia da bofetada por Tzar, 0 canto Nviolencia, 8 agdo destrutiva e desapiedada dos f= turistas, o quase-cullo 3 estética do ‘espanto! que um. tritico como André Salmon eelebra, 0 prazer ambiguo pelo chocante e monstruoso, confessado por Charles, Morris, owa stistacio pelo caraterestupefaciente que © pintor Gleizes assinala em suas conferéneias sobre ocubismo.® ‘As vanguardas ea retomada pés-historicista do passado epee de “Modernidade, um projeto incompleto”, Habermas tenta mostrar como a relagio da modemidade com a histéria = que denomina “pés-historicista” — ultrapassa a simples negagao abs- trata; “O espirito moderno, de vanguarda, tem procurado em ver disso [da negagdo abstrata, do a-historicismo] utilizar 0 fpassado de modo divers, servindo-se daqueles passados que se tornaram disponivels pela erucligio ‘objetivante do historicismo, muito embora simultaneamente se oponha & Historia neutralizada que se encontra encerrada no muset do historicis mo” Para isso utiliza-se do conceito benjaminiano deVetztzeit {tempo de PATRIMONIO CULTURAL = Coneito, pleas, dstrumentos ‘agora, onde temos uma proposta de re-apropriagdo da tradicio semelhan- fe hquela que Habermas detecta nas vanguardas. Benjamin desenvolve tal oncelto em 1940, ainda sob o impacto do acordo entre Stalin e Hitler, ten- tando, com ele, contrapor-se aos modelos de relagdo com a histéria que Ihe pareciam vedar qualquer possibilidade de agio humana transformadora, Benjamin nio se rebela apenas contra a normatividade tomada empres: tada de uma compreensio da historia caracterizada pela imitag delow”, escreve Habermas em Der philosophische Diskurs der Moderne, “ele também combate aquelas duas concepgdes que, jé no terreno da concepgio moderna de historia, interceptam e neutralizam a provocacao do novo € io de mo- do absolutamente inesperado”.* Com tal conceito Benjamin combateria faquela “degeneracéo da consciéncia moderma do tempo, aberta ao futu- 0", representada pelo evolucionismo, onde “o progresso se coagula em forma histérica” e, ao mesmo tempo, pelo historicismo, que, com sua série de passados tornados disponiveis, cria uma "imagem etema do passado” Habermas explica: Por um lado ele se volta contra a idéia de um tempo hhomogéneo e vazio, ue é preenchido pela obtusa f no progresso, propria do evolucionismo € da flosofia da Fistoria; mas, por outro, também contra aquela neutra Tizagio de lodos 0s critérios pratcada pelo historias, quando confina a historia no museu € deixaa sucessi0 Ae fatos escorrer entre os dedos como um rosirio® fim lugar dessas duas concepgdes imobilistas, caberia ao historiador mate- ialista, segundo Benjamin, estabelecer uma “experiéncia” com o passado, se re-apropriando de seus contetidos nao-realizados e, com isso, “salvan- do-0", “tedimindo-o”. O modelo de tal re-apropriagao Benjamin acha, por exemplo, em Robespierre, que, encontrando um passado “corresponden- te” na Roma Antiga, toma posse dele e, redimindo suas expectativas nio realizadas, subtrai-o ao continuum inerte da historia. Benjamin, Tese XIV: A histéria & objeto de uma construgdo cujo hi o tempo homogéneo e vazio, mas um tempo satu- rado de ‘agoras’. Assim, a Roma Antiga era para Ro- bespierre um passaco carregado de ‘agoras’, que fez explodir do continuum da historia. A Revolugao. Francesa se via como uma Roma ressureta. Ela citava ‘a Roma Antiga como a moda cita um vestuério antigo. ‘A moda tem tum faro para o atual, onde quer que ele ‘esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em diregio ao passado, Somente, ele se d4 numa, arena comandada pelas classes dominantes. O mesmo alto, sob livre ou da historia, ¢ 0 salto dialético da Revolugio, como o concebeu Marx. peste mip A seg gr “Dag ¢ manera eres proximation Habermas esclare esse cone to: “Tal & 0 conceito benjami- iano de Jetzizeit, do presente como momento de revelagao; um tempo em que as farpas de uma presenga messiainica se en- redam, Neste sentido, para Ro- bespierre, a Roma Antiga foi um passado prenhe de revelagdes oportunas”.*” E neste sentido que Habermas pode estabelecer_ um paralelo entre essa re-apropriagao da hist6ria — messianica e baseada no proprio presente — proposta pelo coneeito de Jetztzeit e a re- lagao que as vanguardas man- tém com a tradigdo: “Como ele [Benjamin] tenta paralisar, com um choque produzido surrealisticamente © continuum indolente da historia, também uma modernidade volati da na atualidade, assim que atinge a autenticidade de um Jetztzet, deve criar a sua normatividade de imagens especulares re-evocadas do passa- do”, escreve.* Estamos, porém, a milhas de distincia do modelo histori- cista, coma a observacio de Habermas que se segue, deixa perceber: “Es [imagens especulares re-evocadas do passado] nao si mais percebidlas ‘como passados exemplares por natureza’” Modernidade e monumento historico Vai ser, entio, apenas no ambito da modernidade, com a peculiar relagio que esta estabelece com o tempo, que vai poder aparecer uma idéia como a dg “patriménio cultural”, que pressupde, como vere 105, uma relagio reflexiva com o pasado e com a tradigfo.)Frangoise Choay, numa obra ia do Ji classica, A Alegoria do Patriménio, também identifica a emerge patriménio com a emergéncia da modernidade, apresentando a fogio e a trajetéria do pensamento e das politicas de patrimonio desenvolvidas des deo século XVIII no Ocidente, com base numa distingéo fundamental en tre “monumento" e “fmonumento histérico?, sendo este tiltimo justamente uma “invengio” moderna e européia, Ao propor esse caminho, a autora jo fundante de Alois Riegl, que, no inicio do sdculo XX, jd fazia claramente essa distingdo no Der moderne Denkmalkultus, texto com o qual apresentava a nova legislagao de protegao do patriménio para o Império Austro-hingaro. Acctiagao ea conservagio de tais monumentos “inten- cionais", dos quais se encontram tragos até nas épocas ‘mais anfigas da cultura humana, nao cessaram até os nnossos dias; nao obstante, quando falamos do culto eda protegio moderna dos monumentos, nao pensa- ‘mos nos monumentos “intencionais", mas nos "mo- nnumentos histéricos ¢ artisticos”, como reza a deno- minacio oficial até hoje, pelo menos na Austria. Esta denominagao, plenamente justificada de acordo com as concepgbes vigentes do século XVI ao XIX, poderia hoje frente & concepgio da esséncia da obra de arte que se impés recentemente, induzir a mal entendidos, ‘em razao do que vamos comecar por interrogar, antes dle mais nada, o que se quis dizer até agora por "mo- ‘numentos historicos e artisticos”. (RIEGL, 1995, p.56, tradugio do autor) Assim, como observam Riegl e Choay, o“monumento” em seu sentido ori- ginal, antropolégico, vai ser uma espécie de “universal cultural”, existindo fem praticamente todas as culturas: originado do latim monere (Vadvertir}, lembrar”), o monumento nao pretende apresentar de forma neutra uma Informagio, mas, muito mais, “€eazer & lembranga alguma coisa’), “tocar Pela emogio, uma meméria viva”. Como conseqiiéncia, seria possivel cha- mar de monumento, “tudo o que for edificado por uma comunidade de ndividuos para rememorar ou fazer que outras geragdes de pessoas re- memorem acontecimentos, sacrificios, ritos ou crengas” (CHOAY, p. 18). Com isso, o monumento seria sempre fintencionado’ (gewollte) e sempre Pensado sob a égide do “empo ciclico”, no qual, como nos lembra Octa- vio Paz, 0 passado pode sex re-vivido) reaparecendo ao ser invocado pela meméria coletiva No entanto, na modernidade vamos ter justamente a extingio progressiva da fungioGmemoriay4o monument e sua substituigao ela idéia)~ euro- Pia - de onumento histérico?, que, contrariamente ao monumento, i ligado a idéia do (empo histérico, linear e irreversiveh. Para Fran- ‘goise Choay, esse fendmeno poderia ser explicado por uma conjungio de cusas de vérias ordens, entre as se destacam a assergio cada vex mais ‘gorosa do Yalor estético ou de prestigio, “a importancia crescente atribufda 40 conceito de arte nas sociedades ocidentais, a partir do Renascimento”, #0 “desenvolvimento, aperfeigoamento e difusiio dasmemérias artificiaid, | entre as qua a fotografia eo cinema.” (CHOAY, p. 19°28) Desta maneita, ‘Dla modernidade:dferevtesaproximagon 40 ver, a fim de um prpcesso, o fronumento histérieq)se relacionaria de forma liferente) com a(meméria Viva)e a duragio, sendo construido ‘muito mais como um objeto de Saber e ndo mais como um artefato inten- ‘elonado destinado a evocar uma meméria passada, Com 0 “monumento histérico e artistico” estariamos, entio, no ambito do " oneeito moderno de tempo, linear ¢ irreversivel, quando o pasado nio [pode mais ser re-vivico, mas apenas conhecido através da erucligio his-~ WGriea ou fruido pela sensibilidade artistica. O aparecimento de tal atitude ‘6m relagio ao passaco é localizado por Choay no Renascimento europet, quando o passado greco-romano comega a ser escrutinado pelos huma- “histas, que o buscam nos textos classicos, e, um pouco mais tarde, também ‘pelos “antiquarios”, que se debrucam sobre a cultura material pregressa, tratando-a como um reliquério, No entanto, 0 encanto intelectual de tais ‘edescobertas seria marcado ainda por um distanciamento insuficiente em telaglo a esse pasado, que era visto como passivel de reutilizacio, nio ‘He pensando, com raras exceges, na conservagio dos monumentos her- jos: a0 mesmo tempo em que alguns papas emitiam bulas pontifciais, Preconizando a protecio dos monumentos da Antiguidade, os monumen- ‘os antigos nunca deixaram de ser utilizados como pedreias para alimen-” ‘tara sua politica de construgdes novas. (CHOAY, p. 56) modemo, no Renascimento, ainda era, de fato, como mostramos, re- tomar criativamente a tradigio artistica classica, aparecendo aqui ainda ‘esquuicios daquele modelo de relagao com o tempo, cujo polo organizador seria um passado-arquetipico, a se imitar. O distanciamento mais radical fem relagio ao pasado vai se dar, de fato, apenas com o Tuminismo e a Reyolugdo Francesa, quando a conservacao iconogratica dos antiquarios ‘cede 0 lugar a uma conservagio real. Como jé anotamos, seguindo Ha- Bermas, a idéia de que ser “moderno” implicava voltar aos antigos muda ite momento, ao se confrontar com a erenga “no progresso infinito do fonhecimento e no avango infinito em diregio ao aperfeigoamento social ¢ I", Como Tluminismo, toda a tradigo passa a ser escrutinada e sub- ida a uma clara tendéncia & “dessacralizagao”, atitude que coincide ‘80m a aproximagio cada vez mais “racional” & histéria pressuposta pela ida de “monumento histérico”, que se constitui como um objeto de sa-“ devendo, como tal, ser estudado e registrado e, uma vez reconhecido seu valor, também preservado, No caso da Franga, primeiro pais europeu a implantar uma estrutura ins ielonal de defesa do patrimdnio, ¢ interessante percebermos, como nos 1m JoP, Babelon ¢ André Chastel (1994), a longa trajetsria do termo PATRIMONIO CULTURAL - Convio, ptiten,iatrumentos “patrimOnio” e sua expansio até se atingir a idéia de um “patriménio da hago”, fendmeno que poderia ser explicado pela jungao de dois fendme- ‘ox pela “transferéncia dos bens do clero, da Coroa e dos emigrados para 4 nagio”, e, negativamente, pela “destruigio ideolégica de que foi objeto ‘uma parte desses bens, a partir de 1792, particularmente sob o Terror € 0 governo do Comité de Salvacao Piiblica” (CHOAY, p.97). Assim, segun- do Choay, na “arrancada de 1789”, todos os elementos necessérios a uma auténtica politica de conservagao do patriménio monumental, que nao visaria apenas & conservagao das igrejas medievais, mas “em sua riqueza e diversidade, & totalidade do patriménio cultural’, jé estariam reunidos na Franga: a criagio do temo “patriménio histérico”, o levantamento do corpus patrimonial em andamento e a existéncia de instrumentos juridicos € técnicos ao dispor da administracao encarregada da conservagao. (CHO- AY, p. 120). Com isso, se articulariam, ainda no final do Século XVIIL, os elementos essenciais ~ teéricos, metodolégicos e institucionais ~ para a Instituigio das politicas de patriménio, que se espalhariam pela Europa e pelo restante clo mundo nos dois séculos subseqiientes, como veremos nos proximos capitulos. HISTORIA DA ARQUITETURA E PRESERVAGAO DO PATRIMONIO: DIALOGOS Appreservagio do patriménio é um campo que tem ganado proeminéncia ‘na cena atual. E interessante perceber, no entanto, como esse campo se ar- ticula de forma diferente nos diversos contextos nacionais. Implementadas tradicionalmente pelos estados, as politicas de preservacio trabalham com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma meméria nacional privile- ‘giam-se certos aspectos em detrimento dle outros, luminam-se certos mo- mentos da histéria, enquanto outros permanecem na obscuridade. E neste sentido que este capitulo acompanha, numa perspectiva comparativa, a ‘relagao entre 0 diseurso da preservagao do patriménio e da historia da arquitetura no Brasil e nos Estados Unidos, interessante perceber as di ferentes aproximagées ao fendmeno da arquitetura, que, juntamente com ‘uma pratica social diferenciada da preservacao em cada um dos paises, justificam os diferentes tipos de didlogo que se estabelecem entre os dois ‘campos nos dois exemplos estudados. Sociedade civil e valor evocativo do patti preservacio do patri- ménio nos Estados Unidos A preservagio do patriménio nos Estados Unidos pode ser vista como um. campo complexo e multifacetado, que reflete, por um lado, a hist6ria da- quele Pafs e o tipo particular de Governo federal estabelecido pela Cons- {ituigio Americana, onde os estados mantém uma grande autonomia real waGHo, e, por outro, uma concepeao bastante propria da agdo cabivel ao Estado e aos diversos agentes da sociedade civil. Diferentemente dos pai- fi Tatino-americanos, onde o Estado vai ter um papel preponderante, nos Estados Unidos, e nos paises anglo-saxdnicos em geral, vamos encontrar 0 pprotagonismo, desde os primérdios, da sociedade civil organizada, Como em virios pafses das Américas, nos Estados Unidos, o inicio do mo- rai nes recs [elo a fumuidentidade nacional unificadora, direcionando-se grande parte do ir tios histdricos relacionados com interesse dos agentes envolvidos para o ~0§ primeiros assentamentos europeus ao longo da costa atlantica ou liga~ dos ao processo da independéncia em relagao a Gra-Bretanha, em especial AAgueles lugares associados vida de George Washington, e, em menor {grau, aos outros préceres daquela época. Porém diferentemente de outros (es, 0 desejo de conservar e monumentalizar esses sitios nio emanou, ‘eomo anotamos, nem do Governo central, nem dos governos municipais, {IO CULTURAL » Coneiton, potions, intrumentos mas sim de individuos que, organizados em * BTUpos civicos, icentificavam os sitios de * valor cultural ~ histérico ou patridtico - que ” se encontravam proximos a sua comunida- de imediata. Por muitas décadas, o Governo manifestou a pouco ou nenhum interesse e nio aportou nenhum apoio nem reconhecimento oficial s. Assim, desde sua génese 0 movimento de preservagio do patrimonio tados Unidos se earacterizou por set sicamente (um esforgo comunitario)cuja forga motriz reside em nivel local, o que fez.com que sua evolugdo se desse Isolada de toda influéncia externa, respondendo somente as necessidades GGhediatas do momento e do lugar) Como um exemplo dessa postura, po- demos citar uma das mais influentes organizagées privadas dedicadas ao Patriménio, que surge nos finais do século XIX e ainda se mantém ativa ‘com grande renome, a Society for the Preseroaton of New England Antiquities ~ (GPNEA), fundada por Appleton. 20 fato é que, até meados do século XX, continuow muito escassa a Gomunicagid)com movimentos de preservacso G@iteangeiros: mesmo com o desenvolvimento das teorias de conservacdo ue, refinadas na Europa desde o século XIX, nio foram conhecidas nos Tistadlos Unidos até a década de 1960, Tipsa @nfase exclusiva sobre os valores hist6ricos relacionados a0 movi- mento da Independéncia e 0s valores associativos relacionados com aque Ja moralidade tao particular da era colonial ganha importincia e mesmo uma certo urgéncia com a grande leva de imigragio de finais do século XiXe prinetpios do século XX, quando a ética protestante e anglo-saxdnica ‘prevalente se viu ameacada pela primeira vez pelo afluxo massive de cats eos, juceus e ortodoxos provenientes da Europa Central e Oriental, quer dizer, quando aporta aos Estados Unidos uma nova gama de culturas ‘ores até entio desconhecidas. Durante esses anos, se selecionaram sitios Patrimoniais em relacao direta com seu potencial didatico, conto objetivo dle inculear nos recém-chegaclos os valores da cultura dominante (anglo- saxGnica e protestante),cujos portadores viam sua maioria demogratica se redluzir de maneira perigosa, Tal uso do patrimdnio ~ baseado sobremaneira no valor “evocativo" dessa heranga ~ veio a significar uma crescente dependéncia na pratica da onstrugio ¢ numa museografia que permitisse de maneira simples inte ‘tila da arquiteturn e provera do pated dogs Pielar e comunicar a esse novo puiblico, nao educado, os valores socia “itieos que originalmente deram lugar & construgio tanto do sitio como da “Naglo que agora o acothia. O fato é que, naquele momento, depois de cem AAN0s, muitos daqueles sitios é tinham sido alterados de maneita conside) * Iivel pelos seus usudrios: as casas que George Washington tinha visitado Um século antes, por exemplo, jé tinham mudado drasticamente, e no Mm comunicar ao visitante a realidade completa daquele momento ‘limhero do passado. Nao obstante, a necessidade pedagégica que se atri- uslu.ao patrimonio naquele momento exigia que o sitio se apresentasse em sin fondligio original) e foi assim que a feconstrugid foi adquitindo um gio cada vez maior como o tratamento preferido para a conservacio palriméio 1nos Estaclos Uniclos. (Nao ¢ de se estranhar, portanto, que juele pais, o termo “festauraga!’seja sindnimo de um tipo de “Gecons- jo parcial” empreendida para recuperar o que se perceu daquele mo- significativo,) ILTURAL «Conception, instrumenton A medida que 0 movimento da conservagio foi se refinando, a preciso das reconstrugdes histéricas foi adquirindo um papel cada vez mais impor- tante, e ¢ por isso que o campo profissional chegou a ser dominado pelos historiadores e nio pelos arquitetos, como foi o caso de muitos paises. O trabalho iniclaco nos anos 1920, em Colonial Williamsburg sob o patrocinio do filantropo John D, Rockfeller, é 0 pindculo desse processo, e o exemplo rincipal da reconstrugio exata e do uso do patriménio a servigo de uma sie altamente politica) Isso fica bastante claro, por exemplo, nos textos oficiais da localidade, como aqueles da pagina web oficial de Willia- muburg, oncle se 1é, “mais que hé 200 anos, a busca de igualdade, liberdade @independéncia comegaram uma revolugao que contintia a moldar o mun- do, Bem vindos & Colonial Williamburg. América Capitulo 1”? © mesmo tom é usado por outra pagina, que anuncia: “Pense na drea de Williamsburg (..) e as imagens que virdo a sua cabeca séo as de uma vida ‘colonial numa cidade pequena (..) ea busca pela independéncia americana (4) 0 modelo de democracia usado ao redor do mundo.”* Em todos esses ©4808, um papel decisivo é representado pelas associagdes formadas por {hdividuos idealistad e com fnilitancia comunitéria) que davam grande & {ase a0 valor evocativo do passado nacional. Assim, por exemplo, a Historie New England)a “mais antiga, maior e mais abrangente organizagio regional dle preservagio no pais’, anuncia, em sua pagina web, que eles “oferecem a ‘portunidade Ginica de experimentar as vidas e hist6rias dos habitantes da Nova Inglaterra, através de suas tesidéncias e propriedades?.* Nilo hd diivida de que, paralelamente a isso, vamos ter nos Estados Uniclos lum certo trabalho de conservacao no(ivel governamenta}, com algumas medidas como 0 estabelecimento do National Park Service)(érgao de pre- servagio_ pertencente a0 Departamento do Interior), a declaraga monumental de alguns sitios arqueol6gicos por decreto presicencial, a adogio de algumas legislagdes para tego do patriménio. & importante perceber ainda que, mesmo que essa medidas, quando avaliadas em relagio a trajetérias de outros pax a pro-* ‘Mitra da arqiteturaeprserowt do putrid dogo * {se8, nos parecam débeis, elas assentaram de fato uma base firme para 0 trabalho que se thes seguiria, Durante os anos 1930, comegam a ser implementadas outras agbes, que vo ter um efeito mais profundo sobre o movimento dle conservagio, Aqui se des- tacam, em nivel fecleral, os programas inovadores adotados durante a Grande Depressiio para a recuperacao econé: mica por Franklin Delano Roosevelt, ue engajaram centenas de arquite- * tos desempregados na documenta- «Gio de edificios de valor patrimonial por todo 0 Pais, uma iniciativa que feonscientizou a muitos do valor da farquitetura tradicional, e que, com 0 tempo, se transformou na colegio na- scional do Historic American Building Survey (HABS). A partir de 1934, 0 HABS se tomou um programa per- manente do National Park Service, e recebett autorizagao legislativa do Congresso Americano, através do Historie Sites Act de 1995.° Finalmente, cabe chamar a atencao # para .o National Historic Preseroation Act de 1966 (alteraclo em 2000), que traga, pela primeira vez, uma verda- deira politica do Governo federal, que, segundo seus termos, deve sempre * trabathar “em parceria com os estados, os governos locais, as tribos indi- * enas e as organizagies privadas e individuos” ? Essa lei cria o National Re * gister of Historie Places, onde serao registrados “clstritos, sitios, edificagoes, @struturas e objetos significativos para a historia, arquitetura, arqueologia fenigenharia e cultura da América”, além da possibilidade de declaragio de bens culturais, que sio listados como ‘National Historic Landmark, Cabe findh anotar que apesar do precedente representado por Williamsburg, transformaca numa espécie de museu a céu aberto a partir da doagio de milhes de délares por John Rockfeller, vai ser também o National Historic Preservation Act que introduz nos Estados Unidos a nogao contemporinea dos “distritos de preservagao histérica”, bastante difundlidos hoje em dia! ¥ Apesar desses avangos, ¢ interessante perceber como a preservagdo do pas imOnio nos Estados Unidos vai se basear sobremaneira nos chamados lores “evocativos?, ligando-¥e ox bens protegidos, inicialmente, a uma PATRIMONIO CULTURAL» Coneitos,ptcas, instruments Ididia clara de nagio, que deveria ser pedagogicamente transmitida para de reconstrugio quanto um tipo de museografia que permitiam, de ma~ hieipa simples, interpretar e comunicar a esse novo piblico, no educado, + 04 Valores sociais e éticosque originalmente deram lugar a construgao da » naglio que agora os acolhia, Nesta perspectiva, nao é de se estranhar que a ppreservagio do patrimdnio nos Estados Unidos lance mao freqiientemente de recursos pedagogicos e interpretativos, como a pratica do(feenactment) representagio teatralizada de eventos historicos? Essa perspeetiva tem sido receb da com muita desconfianga pela academia, que aponta 0 caréter de consumo a que a pratica da preservacio submete a histéria, que normalmente & “desconte tualizada” e “direcionada”, sem grandes preocupagies com a au- tenticidade, a verdade ou com 0 apuro das informagdes apresen tadas. E como aponta Hewison, Analisando 0 caso britanico (1987): nessas operagbes, “trechos" da infor- maglo sio tirados do seu contexto e apresentados ao piiblico com 0 pro- sito de “edutergao” (edutainment, um neologismo que combina “edict tion’, educagio, e “entertainment”, diversio). Com isso, a abordagem do movimento preservacionista americano, carregado de alta carga evocativa) ideolgica,\se distancia da abordagem dada 4 historia da arquitetura nas Ufilversidades e centros de pesquisa, onde vai prevalecer uma persp Va Hotadamente estética) baseada, via de regra, nos cdnones da historia dis arte. Assim, fica clara, no caso norte-americano, uma nitida disjuneio Bee hintéria da arquitetura) que vista como uma tarefa académica) e fa fireservagio do patrimdnio, até recentemente vista como uma atividade “menor” por parte dos(pesquisadores universitirios) que qui perspectiva engajada e sua falta de critérios."° pblico em geral, Com isso, suxgiram, como vimos, tanto uma pritica * Miatria da arqultetur preseraglo do patrindio: dg Hstado, valor estético e a busca da identidade nacional: patrimnio no Brasil preservagio do Um caso bastante diferente vai ser aquele do movimento preservacionista Drasileiro, que nio s6 nasce dle intelectuais progressistas em busca da identi dade nacional, como também forja a propria tradigao da histéria da arquite Tifa que se produz no Pais. Assim, vai ser na década de{1920\que a tematica ar preservagio do patriménio - expressa como preocupacio com a salvagao i €, mais especificamente, com a prote "Gos vestigios do passado da na os monumentos e objetos de valor histérico e artistico, comega a ser con- siderada politicamente relevante no Brasil, implicando o envolvimento do Fatado.!! Se, neste momento que cerca as comemoragoes do centenaio da Independéncia nacional, jé temos os grandes museus federais em funciona. mento, multiplicam-se na imprensa dentincias sobre 0 abandono das cida- des histdricas ¢ a destruigio iremediavel dos “tesouros da Nagio” No caso brasileiro, cabe notar uma peculiaridade: nao vao ser os setores conservadores, mas algunsGntelectuais modernistad que elaboram e im- plementam as ,oliticas de preservagio do patrim@nio} Neste sentido, & importante lembrar que modemismo, movimento renovador da cultura ica geral, ao lado de uma critica exacerbada démica, tradicional, a busca de raizes, colocando como parte de no Brasil, teve como caracter dGarte ace sua agenda a questio da (dentidade nacional) Assim, ao mesmo tempo em. que mantém estreito contato com as vanguardas européias, os modernis: tas brasileiros desenvolvem uma peculiar €elagio com a tradiga) recusan- Ps i. . do a idéia do rompimento radical com o passado. Neste quadro nao ¢ de se estranhar, portanto, que os modernistas tenham jedescoberto” Minas Gerais, e, em especial, Ouro Preto: na busca de uma entidade nacional “profunda), de raizes genuinas, identificam-se na- quele conjunto setecentista as manifestagbes de uma Gossivel civilizagia) brasileira, © barroco local, que durante muito tempo fora considerado ex e@ntrico e sem importincia, é revalorizado pelos modemistas, que 0 ¥ ‘pmo uma gintese cultural prépria) esbocada por Juma sociedade no interior do Pais, que, isolada, retrabalhara & sua maneira as diversas influéncias ulturais. Assim, vai ser apenas aparentemen- te paradoxal que, em 1924, ao receberem a visita do poeta vanguardista suigo Blaise Cendrars, um {grupo de poetas ¢ artistas brasileiros - identifica- dos também com a idéia da {podernizagio socia) @ cultural do Pats = o tenha Jevado justamente ds MATRIMONIO CULTURAL - Contes, pica, instruments vethas cidades de Minas Gerais, onde tudo parecia evocar 0 passado ea tra digio, E interessante perceber aqui como a aproximacio de nossos mo- Aemistas a0 passadio do século XVII assemelha-se 2 aproximagao que as vanguardas européias faziam do pri. mitivo e do arcaico, com a particula- ridade de o primitive, aqui, apontar Para as nossas raizes nacionais. A re- sscoberta daxculturas primitivas pe- ns vanguardas corresponde, entéo, no Brasil & redescoberta de uma outra Giultura nacional yao oficial -, presente, mas ignorada, na medida em que Me mantivera A margem da cultura hegem@nica, No aso da arquitetura, essa leitura particular do passado nacional tam- bbém vai desempenhar um papel muito importante na formulagio tanto le uma politica de preservagio, quanto de nossa prépria arquitetura mo. ema, Essa postura, que combina a busca do novo com a revalorizaga ttadigho, pode ser bem exemplificada na trajetéria de Lucio Costa, o cria. Alor de Brasilia, que, nos anos 1930, vai ser o lier intelectual da renovacao Aarquitet6nica brasileira. Segundo seu depoimento, nos primeiros contatos om 0 movimento moderno em arquitetura, chocava-Ihe “o seu carter ab- Holuitista, intransigente e o aparente desprezo pelo passado”, que, também ‘partir de uma viagem a Minas e de contatos com a “genuina arquitetura brasileira”, ap pre a de ir ( eypecific da ndera a respeitar. Sua busca, a partir de entao, vai ser sem- ‘ar modernidade e tradigao, a partir de uma reflexdo sobre lade de seu campo profissional, a arquitetura, e de sua relagao com a realidade brasileira.!? Neste sentido, os arquitetos moderos brasileiros viam-se, na esteira das formu: de Lucio Costa, muito mais como adores da boa tradigao constru- tiva forjada ainda na época da Colénia do que como agitadores vanguardistas, © gesto futurista parece estar ausente de suas proposigées, predominando en- «tre eles um discurso de apelo & “igo do passado” - no aquele imediato, da lin: Buagem clissica relida pelo ecletismo, ‘mas aquele da arquitetura colonial ¢ bar- ‘Mitra da arquteturn epreverou do patria: ddlogan roca do século XVIII, onde dentificavam formulagSes apropriadas e significativas para um projeto nacional. f interessante perceber como hd um interesse explici- to em recuperar 0 nosso passado colonial, a nossa farquitetura tradicional, a partir de uma perspectiva pragmiética: afinal naquele Periodo haveria uma série de ligdes a serem aprendi- das pelos arquitetos moder os. Assim, é muito comum na época identificar-se uma @spécie de correspondéncia entre essa arquitetura colonial e a arquitetura moderna, ressaltando-se os seus tracos comuns: simplicidade, austerida- de, pureza, bom uso dos materiais. Nesta linha, chega-se mesmo a se apon- farsemelhancas entre a estrutura da nossa arquitetura tradicional 0 pau- apique ~ ¢ o concreto armado.'* A nosso ver, essa espécie de leitura da tradi¢do proposta pelos modernistas brasileiros encaixa-se perfeitamente Raquilo que Antoine Compagnon denomina “narrativas ortodoxas” da moslernidade, que, seriam sempre escritas em fungi do desfecho ao qual elas querem chegar ~ no que sio teleoldgicas ~ e servem para legitimar lima arte contemporinea que, no entanto, quer estar em ruptura com a tradigio ~-no que sio apologéticas.* Diante dessa leitura do passado, que se impde no quadro cultural brasilei- 10 do periodo, coloca-se com forga a ques Tepresentado pelas cidades e arquitetura do periodo colonial, que passa a ser vista como imprescindivel ao processo de construgao da identidade na- sional. Aqui ¢ importante lembrar que com a chamada “Revolugio de 30” A questio da identidade nacional tomna-se também um dos focos principais tdo da preservacdo do rico acervo do novo grupo dominante, que tenta estabelecer uma politica cultural a Partir do Estado. Para éste propésito, engajam-se um niimero considerd- vel de intelectuais progressistas que tinham tomado parte no Movimento Moderno nos anos 1920. Quanto as primeiras agdes do Servigo do Patriménio Histérico e Artistico Nacional (SPHAN), érgdo federal de preservagiio criado em 1937, derivam diretamente daquela “narrativa ortodoxd” da historia a que nos referimos, interessante perceber como tanto essa protegio PATRIMONIO CULTURAL « Coneitos,potitea,istrumentos que estabelecia uma espécie de afinidade eletiva entre nosso passado bar 1900 ¢ colonial e a arquitetura moderna que entao se fazia Segundo esse ponto de vista, a arquitetura efetivamente brasileira te ¢omegado no ciclo mineiro, no século XVIII, sendo as obras anteriormer te realizadas interpretadas como uma transplantacéo direta para o Pais, da arquitetura cle Portugal ~ uma espécie de “p historia” da verdadeira arquitetura Corolério de tal teriamos © mito de que somente a arquitetura barroca ~ além da mo- demista, _naturalmer te — tinha dignidade, sendo o século e meio entre os dois periodos brasileira. considerados totalmente | estéreis e dignos de os- quecimento, Assim, nao E de se estranhar que 0 proprio ato do tomba mento de nticleos histé- ricos em Minas Gerais, em 1938, entre 08 quais Outo Preto ja aponte como valor decisivo o “valor artistco” e nao 0 “valor histdrico” do conjunto, que & ido, antes de mais nada, sob o ponto de cidade Vista estético. Considerada como expressio estética privilegiada #abordada segundo critérios puramente estilisticos, ignorando-se comple- ‘ua caracteristica documental, sua trajetoria e seus diversos com- Ponentes como expressio cultural de um todo socialmente construido”.** Com isso, instaura-se ali, como de resto em todo o Brasil, uma pritica de GonserVagAo orientada para a manutencio dos conjuntos tombados como objetos idealizados, desconsiderando-se) muitas vezes, a sua histdria real, La Motta sintetiza cle forma céustica a pratica de preservagdo imposta en- tio 4 Ouro Preto: “Esvaziada economicamente, a cidade foi usada como matéria-prima para um laboratério cle nacionalidade de inspiracdo moder- ni id oixando as populagées que ld moravam subordinadas a esta visio lizada, nio senclo elas sequer motivo de referéncia.” lim sou livro The Past is a Fore thal lembra que lodo ato de reconhecimento ‘{ltera o que sobrevive do pasado," Este ” parece-nos exatamente o caso de Ouro Preto: na busea de um simbolo na= ign Country, David Lows Histria da arultetur preseroago do putrid: don cional, o SPHAN passa a executar uma agdo de homogeneizagio da ima- gem da cidade, eliminando grande parte das transformagées urbanas arquitet6nicas mais recentes e, com elas, {importantes referéncias da hist ria local. Assim, inicia-se uma agao sistematica de apagamento do século XIX, com a exigéncia, na aprovagio de projetos de reforma, da retirada de elementos da arquitetura neoc dlas, A partir da compreensio da cidade como expressio estética, aqueles elementos sao vistos como perturbadores da unidade desejivel do co junto, devendo, portanto, ser femovidos) Os exemplos dessa agio “corre- tiva” multiplicam-se entao pela cidade, podendo-se citar o conheciclo caso da reforma do Cine Vila Rica) que, em 1957, ganha uma fachada colonial, eliminando-se os estilemas arquiteténicos oitocentistas. ‘Também no que se refere & aprovagdo de novas construgdes seguiram-se critérios estilisticos, que procuravam garantir uma (homogeneidad) ao Conjunto. Nos primeiros anos, ainda se admitiam algumas edificagoes mo- demas, desde que “de boa qualidade arquiteténica” de acordo com a ava- liagio dos téenicos do SPHAN. Com isso, acompanhavam-se as posigdes de Lucio Costa, que, coerentemente com suas conviccdes modernistas, de fendia que mais cedo ou mais tarde o SPHAN teria que proibir em Ouro Preto ‘(as fingimentos coloniais”)Para ele, nada pior do que a tendéncia, que identificava majoritariamente nos Estados Unidos e Inglaterra, a se Areproduzir tudo “em estilo apropriado”, “até mesmo 0s interruptores ce “luz elétrica”. Assim, nesse primeiro momento, aprova-se, por exemplo, ‘0 conhecido Grande Hotel, projeto de Oscar Niemeyer, cuja insergio no * conjunto tombado causa polémica tanto nos meios intelectuais quanto na { populagio em geral, que questiona os critérios de avaliagio do érgio ofi- cial. Frente as dificuldades de se analisar projetos caso a caso, 0 SPHAN ‘caminha, entZo, cada vez mais para um enrijecimento das normas, passan- do a exigir uma série devtracos estilisticos nas novas edificagdes)- detalhes tipicos das construgdes e acabamento de telhados, cornijas, bem como es quemas cromaticos bastante rigidos. Com novas exigéncia de se seguir uma série de design guidelines para sica ou eclética, como frontéese platiban- “ edificagSes, aparece por toda Ouro Preto o chamado {estilo patrimoniol, ” representado por construgdes contemporineas qu do século XVIII. Como se acreditava que a cidade nac sscer muito, a tengo do SPHAN voltava-se primordialmente para as fachadas, nao con siderando outros aspectos tais como dimensio dos lotes, implantagio da asa no lote e seu volume, que logo iriam se mostrar muito importantes,” E, como de fato a cidade desenvolveu-se com muita rapidez, especialmen- te a partir da década de 1960, a conseqiiéncia mais danoea dease tipo de terminouw ee a{falsificagdio do conjunto) com o surgimento de uma tura hibrida) onde as edificagées do “estilo patriménio” fundem-se (08 exemplares originais. Aqui se confirma a colocagao de Lowenthal do a qual “a passagem do tempo dissolve a distingao entre os origi- * as emulagbes, e aumenta a sua confluéncia”, o que termina, mesmo Ponto de vista do reconhecimento estético, representando um pro- te percebermos como essa abordagem — que se utiliza da his- para a construgio de um projeto nacional ~ vai marcar fortemente oriogeafia da arquitetura brasileira, com a constituigdo inclusive do alguns autores chamam de “Academia SPHAN’ (19) No caso brasilei- iferentemente do norte-americano, fica visivel a aproximagao entre a ria da arquitetura ea preservacio do patrimdnio?a versao produzida ‘modernistas vai ser a hegemdnica em nosso Pais, em seus focos, e, cipalmente, em seus siléncios. Jé-em 1933, 0 filésofo Walter Benjamin alertava para ac ‘com a perda de sua transm cultura tradicional, ¢ que sempre fora comuu com a sua loquai do pelo mercado, e mesmo 0 mais novo deve se tornar ra- pidamente antiquado, Nesse quadto, a arquitetura ea pré- ‘dade, que em principio constituiriam estruturas dus ALTERNATIVAS CONTEMPORANEAS PARA POLITICAS DE PRESERVAGAO. da tradigio, sibilidade, A experiéncia, matéria-prima da ida aos jovens “de forma concisa com a autoridade da velhice, em provérbios"; “de forma prolixa, idade, em historias”; ow me smo “como narrativas de paises longinquos, diante da lareira, contada a pais e netos”, emudecera “Que foi feito de tudo isso?”, perguntava-se o fil6sofo, lancando seu olhar ‘mais uma vez para um mundo que desaparecia. ‘Quem encontra ainda pessoas que saibam contar his {orias como elas devem ser contadas? Que moribun= dos dizem hoje palavras tao duraveis que possam ser transmitidas como um anel, de geracao em geragao? ‘Quem ¢ ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentaré, sequer, lidar com a juventude invocan= doa experiéneia?! Ws0 parecia irremediavelmente perdido para Benjamin, que re- conhecia; “Ficamos pobres, Abandonamos uma depois da outra todas fas pegas do patriménio humano, tivemos que empenhé-las muitas ve~ yes @ um centésimo de seu valor para recebermos em troca a moeda mitida do ‘atual’”2 Fissa ruptura com a tradigao, a existéncia de uma lacuna quase intrans- ponivel entre 0 passado e o futuro, vivida pela geragao do periodo en- fre guerras europeu e refletida com muita agudeza na obra de artistas & pponsadores como Musil, Kafka, Brecht e Hannah Arendt, & hoje uma ex- perincia compartihada por grande parte da humanidade. A sociedade Industrial moderna, com sua logica da obsoleseéneia programada, destr6i ‘aistematicamente qualquer quadro es de renovagio incessante de Lus0s © costumes, imagens © valores. Nela, nada pode dura mais do que o tempo rio para ser consuumi- wwel de referénc , Num processo Wiring ert, Eo EEeor PATRIMONIO CULTURAL « Conte, potions, instrument rdvols, passam, também, a fazer parte daquela “via das cinzas” apontada Por Paolo Porthoghesi® Assim, a cidade, agora regida quase que exclusiva- mente por uma concepgio militarista, destréi meméri Vas, eliminando os recantos em que {lo contra os espagos intiteis”, constata Ecl individuais e coleti havam: “na sua preocupa- sstas se ani a Bosi, “eliminam-se dle vez. "as Twentriincias onde os parias se escondem dos tentos noturnos, os batentes profundos das janelas dos ministérios, onde ‘0s mendigos dormem’ + No final da década de 1930, ao visitar 0 Bra- sil, 0 antropélogo Claude Lévi-Strauss se es- pantou com a rapidez da transformacao das cidades nas Am 5, que, para ele, jamais incitam “a essas férias fora do tempo” nem. conhecem “essa vida sem idade que carac- teriza as mais belas cidades, transformadas em objeto de contemplagio e de reflexio, e ao mais em simples instrumentos da fui ‘cdo urbana”. Nas cidades do Novo Mundo, impressiona-the a “alta de vestigios”, que reconhece como um elemento de sua signifi ncia é rpida demais, significando o passar dos anos ima promocao", como na Europa, mas “uma decadé: ‘eagilo: a sua obsole para elas nado “ om que foram erguides, quer dizes, mal. Ne mo- so elementos urbanos: sio brilhantes emai, novos. dlemais,alegres demais para tanto. Mais se pensaria para poucos meses, Apds esse prazo, a festa termina € esesbibeldsfenecem as fachadas descascamy a cava alge raga seus seo, estilo aide moda, 0 ‘niga ao lado, por outraimpaciincia’ *Nilo sito cidades novas contrastando com ci eidades com ciclo de evolugao curt lads velhas", conelui, “mas imo, comparadas com cidades de ci- elo lento”. Lévi-Strauss registra com precisio, a nosso ver, a dindmica des- ie Nosso cendrio sem muita espessura, em que os sentidos do vivido mal conse guem se fixar e so logo engolfados pela ldgica da destruigio moder- nizadora. F ¢ bastante interessante e significativo que mesmo hoje, quase 50 anos depois, quando se olha com profuncla desconfianga para 0 projeto modero, ¢ uma suspelta ampla abrange dos ideais do fluminismo & fe- Allernatioas contemportnens yara ylicus de preserowgio licidade prometida pelo de- snvolvimento tecnol6gico, Idéias como as de moderni- dade e progresso continuem a dominar, incontestes, a céna latino-americana, Em nosso continente, onde coexistem miiltiplas Idgicas de desen- Volvimento, a economia e a politica seguem perseguin- do, de forma atabalhoada, eT LL objetivos modernizadores, sem submeter esses ideais & necessiria critica, Nesse sen- tido insistem as campanhas leitorais mais recentes, bem como as mensagens politicas que acompa- ham os freqiientes planos de ajuste e reconversao, que preserevem, entre utras medidas, a incorporagao dos avangos tecnolégicos, a modernizacao @ internacionalizagao da economia, a superagio, nas estruturas de poder, de aliangas informais e de outros “desvios pré-modernos”. Dor ‘nosso continente, sem duivida, aquilo que o pensador italo-argentino Ro berto Segre, ao analisar a revolugao cubana, chama de “mito do novo”, faquela idéia de que a grande tarefa consiste em projetar para o futuro, Mazer realidade a distante utopia’, mito reforcado pelo fato de que para 8 populagéo do mundo subdesenvolvido quase tudo esta por fazer e “as lexpectativas e as esperangas contam mais que as reminiscéncias do passa~ do” Frente a esse quadro, aparece-nos como duplamente desafiadora a tarefa de se formularem politicas dle preservagdo em nosso continente: se Por um lado se lida com um quadro volitil e marcado pela ideologia da modernidade, por outro nao se pode escamotear grande deslocamento que a pripria idéia de patriménio tem sofrido nos iiltimos tempos. Patrtindnio, a ampliagio do conceito Originalmente “heranga do pai” no direito romano antigo, entendia-se como patriménio de um particular o complexo de bens que tinham algum Valor econdmico, que podiam ser objeto de apropriagao privada. (Assim, ogativamente, definiam-se como coisas extra-patrimonium aquelas que, hagradas ou pertencentes ao Estado, nio se prestavam a esse tipo de rela~ (Go: o ar, a Agua, os estidios, os teatros, as pragas, as vias publicas’) Como IMONIO CULTURAL » Coneito,plticns, instruments tempo, porém, o uso desse termo sofre uma ampliagio e um deslocamen- to, sendo hoje utilizado em uma série de expresses como “patriménio arquitetOnico”, “patriménio histérico e artistico”, "patriménio cultural”, © mesmo “patriménio natural”, que abrangem uma gama de fenémenos muito mais ampla que a inicial. ssa ampliagio estende-se também as proprias expressdes especificas que apontamos: icéias como as de “patriménio cultural” e “patriménio arqui- tetnico” tendem a se tomar muito mais abrangentes que de inicio, o que, Por nio se tratar de mera expansao quantitativa, coloca-nos frente a uma Arle dle questdes totalmente novas. Assim, no que se refere ao patriménio Arquitet@nico, vemos uma verdadeira “explosio” do conceito, que passa de uma formulagao restrta e delimitada para uma concepgao contempors- nea tio ampla que tende a abranger a gestio do espaco como um todo. De fato, inicialmente, concebia-se o patrim6nio arquitetGnico como uma espé- le de “colegio de objetos’, identificados e catalogados por peritos como Aepresentantes significativos da arquitetura do passado e, como tal, dignos de preservacio, passando os critérios adotados aqui normalmente pelo ca- iter dle excepcional idade da edificagao, a qual se atribuia valor hist6rico @/ou1 estético, (Pertencer ao patriménio tinha ao lado de um significado ultra, im significado juridico: preservar se identificava, quase que au fomaticamente, com “tombar”.) No entanto, tal concepgo, muito presa | © ménio con ( entorno, aa i Alteratioas contemportnens pra pitas de prseronga ainda i idia tradicional de monumento tinico, vai sendo ampliada: tanto © conceito de arquitetura quanto 0 préprio campo de estilos e esp de edificios consicerados dignos de preservacio expandem-se paulatina- mente, Assi a0 longo «lo século XX, vao penetrando no campo do patti= tos arquiteténiicos inteiros, a arquitetura rural, a arquitetura + Vernacular, bem como etapas anteriormente desprezadas (0 ecletismo, 0 Art Nowvean), e mesmo a produgao contemporanea, Aqui, aos critérios es- Uilisticos e histéricos vao se juntando outros, como a preocupagao com 0 biencia e o significado Também a nogio de “patrimdnio cultural” vai sofrer uma ampliagio, gra- a8, principalmente, a contribuigao decisiva da Antropologia, que, com sua perspectiva relativizadora, nele integra os aportes de grupos e seg- mentos sociais que se encontravam a margem da histéria e da cultura do- minante. Nesse proceso, a nogdo de cultura deixa de se relacionar exclu: iyamente com a chamada cultura erudita, passando a englobar também ¥ manifestagoe tempo, pass. populares e a moderna cultura de massa. Ao mesmo considerar com atengao os elementos materiais, téeni- 08 da cultura, rejeitando-se aquela contraposi¢ao idealista, longamente Cullivada, entte Zivilization e Kultur: Ao lado dos bens méveis e iméveis, #@ daqueles de criagao individual, componentes do acervo.artistico, ago- Fe considera também = Gomo parte do patrims- nio cultural de um povo, hos mostram, por exemplo, os escritos de Mirio de Andrade e Aloi slo Magalhaes, uma outra Poupécie de bens, os uten- Allios, procedentes, sobre- “tudo, do “fazer popular”, “inseridos na dindmica * viva do cotidiano”.” Além disso, Auperando a visio retificada da cultura como lum “conjunto de coisas”, tendese cada vex mais a trabathd-la como um pro- sno, focalizando-se a questo = imaterial ~ da formagio do significado,” PATRIMONIO CULTURAL » Conceito,ptitew,bstrumenton | Aquié importante per- ceber que nao se trata simplesmente de uma mudanga quantitativa: a expansao do conceito faz com que se modifi- que o seu proprio cara ter, o que, por sua vez, faz. com que também. a postura em relacio a0 que se entende por patriménio deva sofrer alteragies. Trata-se, de {ato, como podemos perceber, de campos de amplitudes e articulagses bastante diferentes, que soticitam respostas distintas. Assim, num primei- 10 momento, que corresponde a uma visio mais restrita do patriménio, lidava-se com um campo estreito e, ainda que pudessem aparecer diver- Jfenclas quanto aos critérios, essencialmente delimitavel: afinal, tratava-se de identificar um elenco limitado de excepcionalidades. Aqui nao parecia haver diivica também quanto ao papel (decisivo) que cabia aos peritos: além da incumbéncia da propria delimitagao do campo, les tratariam de fiscalizar, restaurar e conservar os bens identificados. Quando, porém, festende-se de maneira tao significativa o campo de abrangéncia do cha- ‘mado patriménio, as coisas mudam de figura: nao é mais possivel exercer ‘esse tipo de “controle esclarecido” sobre tao imenso dominio. Assim, trumentos como o tombamento, que se mostraram importantes (decisivos ‘mesmo, em alguns casos), num primeiro momento, passam agora a expor, de uma maneira cruel, suas limitagdes e tém, a nosso ver, que ser revistos luz de novos condicionantes e critérios."? Coloca-se no horizonte, clara- mente, um novo e grande desafio: forjar mecanismos que reflitam a con- cepgio ampliada e processual do patriménio cultural Com isso, parece-nos que, para se pensar hoje em preservacao do patri- mOnio, faz-se importante considerar, antes de mais nada, a amplitude do ppatrimOnio cultural, que deve ser contemplado em todas as suas variantes: trabalhar todos os diversos suportes da memoria ~as edificagdes agos, mas também o3 documentos, as imagens as palavras. Nes- fie sentido, a questo do patriménio deve deixar de ser exclusividade de ‘alguns profissionais que tradicionalmente se ocupam com ela, passando a exigit a composigio de equipes interdisciplinares amplas e a ativa partici- ppagio da sociedade, Na medida em que se amplia o préprio concelto de Alterations contemprtneus pra plea ie preereac patrimdnio, toma-se necessdria a ampliagdo dos instrumentos de conhe- emento ¢ andlise, com a incorporagdo das perspectivas dos mais diversos pprofissionais e os da prépria populagio, enquanto usuéria e produtora do PatrimOnio. Por outro lado, nao se pode também esquecer a dindmica propria do patriménio cultural, que nao pode ser percebido como uma golegio de objetos afastados da vida, devendo ser visto como um supor- + tw para um processo continuo de produgdo da prépria vida. Trata-se de pperceber o potencial transformador de nosso patrimdnio, que deverd ser “continuamente relido e utilizado de forma libertadora. E como escreve Marilena Chau‘: Numa perspectiva socialista, Histéria se diz em mui- tos sentidos e particularmente naquele que teve nas ‘origens: compreender © passado como pressuposto do presente que o presente repie e repete enquanto 0 Jgnorar como seu passado e que ultrapassaré quando dlessa compreensio nascer a pritica de emancipagio, ‘em que 0 futuro é 0 novo como realizagao das pro ‘messas nio realizadas no passado nem no presente, !* Nosse sentido, a questto do patrimonio, como diz a “Carta de Ouro Preto” + de 1992, “deve superar a abordagem histrico-estilistica e ser trabalhada _ dentro de uma concepeao que integre as questdes sécio-econdmicas, téeni- “cas, estéticas e ambientais’, devendlo-se considerar qualquer intervengao obre o patriménio como uma agao sobre o presente e uma proposta para futuro." A cidade como patriménio ambiental urbano Gonsiclerando a amplitude do patrimdnio cultural, é muito importante, fantes de mais nada, que se fagam alguns recortes setoriais para que se possam pensar estratégias especificas para cada uma de suas regides. fundamental tratar de forma diferenciada os diversos suportes da memé- “tia: no podemos querer aplicar a cidade, por exemplo, os mesmos crité- ios dy preservagao que se aplicariam a um quadro ou a um documento. Nesse sentido, analisemos rapidamente a posigdo especifica da cidade, Ayaliando, a partir da ampliagao do conceito de patrimdnio, a qyestio de ua preservagio, Se podemos classificar a cidade como um “artefato” humano, como um bom tangivel imével, ¢ importante percebermos, no entanto, que se trata de um artefato sui generis, de origem coletiva e em processo de constante {ransformagio, que ve dé por substituigio de camadas. Se, como diz Carlos PATRIMONIO CULTURAL» Coneltoy, pleas, instruments Nelson Ferreira dos Santos, as cidades sio constituidas por um processo eontinuo de “agregagio de trabalho humano a um suporte natural”, & Importante que percebamos que elas vivem se refazendo e se transfor mando". Por outro lado, se esse processo de transformagao acompanha tecido preexistente que recebe como heranga, com a vitiria do capitals predominar na ocupagdo urbana quase que unicamente o valor econé- micovespeculativo, em detrimento de todos os outros valores humanos, Bimb6licos, politicos, etc. A terra passa a ser vista agora como mais um bom especulativo, o que provoca resultados desastrosos em termos de qualidade de vida das cidades, » BOB 8: 22 2 wee 8 preserva do acompanha 0 proprio desenvolvi- mento da vida humana, Por outro ‘Alterations contempordnes para poles de preserva Jado, no entanto, cabe & sociedade e ao Governo orientar essa renovagio transformagio, para que a paisagem urbana evolua de maneira equili- btada e nao predominem apenas os interesses econdmicos imediatos de lum determinado segmento. Nao se trata, portanto, de congelar a vida, ou de transformar as cidades'em museus, mas fom pensar na preservagio e na methoria de fue qualidade de vida, o que abrange tanto 8 reas consideradas “histéricas” quanto Aiquelas mais novas. f nesse sentido que nos parece fundamental 0 conceito contempo- Hlineo de “patriménio ambiental urbano” mmatriz a partir da qual podemos pensar a ppreservagio do patriménio, sem cair nas limitagées da visio tradicional. Pensar na eidade como um “patrimOnio ambiental” & pensar, antes de mais nada, no sentido his * Aérieo ¢ cultural que tem a paisagem urbana ‘em seu conjunto, valorizando o processo vital que informa a cidade e nao ‘apenas monumentos “excepcionais” isolados.” Assim, nao hé, de fato, que se pensar apenas na edificacio, no monumento Igolado, testemunho de um momento singular do passado, mas ¢ preciso, fantes de mais nada, perceber as relagdes que os bens naturais e culturais fapresentam entre si, e como 0 meio ambiente urbano é fruto dessas rela- (goes, Aqui arquitetOnico, h mas em pensar ct para permitir um bom desempenho do gregarismo proprio ao ambiente jase muda: nao interessa mais, pura e simplesmente, o valor t6rico ou estético de uma dada edificagao ou conjunto, mo os “artefatos”, os objetos se relacionam na cidade Urbano, Em outras palavras: é importante perceber como eles se articu- Jain em termos de qualidade ambiental. Preservar o patriménio ambiental Urbano &, como se pode perceber, muito mais que simplesmente tombar antes, preservar 0 equilibrio da determin Palsagem, pensando sempre como inter-relacionados a infra-estrutura, 0 das edificagdes ou conjuntos: & Jote, apdificagio, a linguagem urbana, os usos, 0 perfil histérico ea propria Ppalsagem natural, Nao se trata mais, portanto, de uma simples questao es- {itica ou artistica controversa, mas, antes, da qualidade de vida e,das pos- Aibilidades de desenvolvimento do homem, Com isso, desloca-se 0 eixo da ntos discussio, recolocando-se a questao do patrimdnio frente a balizam eapazes cle enquadri-la em sua extensio contemporinea, Mais uma vez {risamos como hoje fica clara a fraqueza dos eritérios na selegio do que, {radiclonalmente, considera-se “significativo”: a leitura histérico-esté TATRIMONIO CULTURAL » Coneitos,pliticns,instrumentor sempre sera intencional e marcada por visées particulares de época, clas- Ae, ete, Assim, é muito comum lamentar-se tempos depois a demoligao de ‘edificagdes ou conjuntos considerados “nao-significativos’. Partindo, portanto, dessas consideragdes preliminares, parece-nos possivel vislumbrar algumas estratégias gerais para se intervir sobre o patriménio ambiental urbano que herdamos das geragées precedentes e que devemos tronsmitir as proximas: 1, Priorizar sempre o contexto urbanistico, percebendo a cidade como um organismo vivo e complexo, onde os bens naturais e culturais se relacio- fam entre si. Nesse sentido, devem-se privilegiar conjuntos ¢ ambiéncias ‘om lugar de edificagdes isoladas. 2, Adotar um procedimento unitério, visando a methoria do meio ambien: te urbano como um todo, ndo tratando desigualmente as chamadas reas Aistirieas e os outros espagos que compdem a cidade. Assim, é importante pensar conjuntamente, e a partir dos mesmos critérios de qualidade, os spagos moldados pela hist6ria, a serem protegidos, e 0s espagos novos ou ‘08 espagos recuperdveis, a serem ainda estruturados. Em ambos os casos, dever-se considerar sempre a infra- {guagem urbana, os us0s, 0 perfil ists trutura, o lote, a edificagio, a lin- ico e a paisagem natural 4. Nesse sentido, é fundamental a integragao absoluta entre a politica espe- cifica de preservasio do meio ambiente urbano e a politica urbana de um modo geral, Ao se pensar em termos de preservagio ambiental, deve-se ‘Alterations contempornens para potas de prserongo tentarharmonizar sitios eeifieagbes preexistentes com a novas,utlizan- dlo-se para isso os instrumentos urbanisticos mais gerais, como o Plano Ditetor para o municipio, a Lei de Uso e Ocupagto do Solo, os cédigos de (obras e posturas, entre outros. 4, Priorizar planos mais simples de recuperacao de edificios e conjuntos, 40 invés de custosas restauragies. E importante para a preservagio da memdria e da identidade cultural e para a preservagio da qualidade % sm de essencial, meio ambiente urbano conservar aquilo que os conjuntos como stia volumettia, tragos basicos de fachada e, eventualmente, mesmo tipologias em planta. 5, Reavaliar a gestdo do meto ambiente urbano. Antes de qualquer inter- Yengio no teciclo vivo da cidade, é muito importante a percepgio dos me- anismos criadores de significado em jogo ali: ¢ vital perceber, acima de tudo, como os moradores ¢ usudrios utilizam e valorizam aqueles espagos que constituem o seu dia-a-dia. E necesséria, para isso, a criagio de meca- hismos que permitam a real e efetiva participagao dos agentes envolvidos fio proceso, em todos os seus momentos: na elaboracao, implantagao {gestio dos projetos a sorem eventualmente desenvolvidos. 6, Garantit a permanéncia da populagio de baixa renda nas areas a se- tom urbanizadas, preservadas, etc. Qualquer politica de preservagio deve priorizar o bem-estar dos moradores e ususrios, procurando evitar a sua ‘expulsio em decorréncia da valorizacio dessas éreas. Trata-se, na verdade, de um processo dificil e complexo, mas que se pode enfrentar com alguns mecanismos, como nao concentrar investimentos pesados numa determi- nada drea, pulverizando- (4, de modo que nao haja uma transformagio radi- fal na sua natureza; rea- Hizar pequenas interven- es urbanas, a0 invés de grandes obras, e valo: tzar ag atividades que ja jo desenvolvem na érea, proporcionando-Ihes, no fentanto, um ambiente de melhor qualidade. CONSERVAGAO E VALORES: PRESSUPOSTOS TEORICOS DAS POLITICAS PARA O PATRIMONIO A discussiio sobre a questio dos valores tem se tornado central na socieda- de contemporinea, ressurgindo com forca no campo das ciéncias sociais e da filosofia, onde se problematiza dle novo, por exemplo, a questo da ética ormativa ou a questio da relacdo entre os valores e a propria atividade lentifica.' Também no campo do patrimdnio, esta questdo vem ganhan- lo proeminéncia, como apontam. varios trabalhos ecentes, entre os quais poderiamos citar aqueles derivados do projeto AGO- RA, do Getty Conseroation Institute, pesquisa inter- isciplinar que procurou investigar a questio dos valores no campo da con- servagio, tomando como @studdos de casos a gestio de sitios histéricos em pa- {ses anglo-saxdnicos. ? As sim, durante alguns anos, faquele instituto internacio- nal acompanhou. politicas de preservacao nos Estados Unidos, Inglaterra, Cana- di e Austrdlia, mostrando . Getty sie ta Gomo em cada caso estuda- Angels do existiam diversos valores ~ que muitas vezes entravam em conflito ~e ‘gomo serio esses valores, que, de certa forma, determinardo as escolhas ‘as politicas adotadas. O fato $que as decisdes sobre a conservagao do patriménio sempre langa- tam méo, explicita ou implicitamente, de uma articulagio de valores como Ponto de referéncia: em iltima instancia vai ser a atribuigio de valor pela @omunidade ou pelos digi0s oficiais que leva A decisao de se conservar (ou ‘ilo) um bem cultural. Como jé vimos, as politicas de preservagao traba- Tham sempre com a dialética lembrar-esquecer: para se criar uma memd= tia, privilegiam-se certos aspectos em detrimento de outros, iluminam-se ‘certos aspectos da histéria, enquanto outros permanecem na obscuridade, ‘no campo da convervagio do patrimdnio, os valores vao ser sempre PATRIMONIO CULTURAL « Conceto, pleas, struments Centrals para se decidir o que conservar ~ que bens materials representario ‘4nd ¢ a nosso passado =bem como para de rminar como conservar~que tipo de intervengo esses bens devem softer para serem transmitidos para 8 geragdes futuras, Mesmo uma répida andlise de uma tipica decisio na érea da conservacio, Aluma operagio de restauro, por exemplo, jé nos revela muitos ~ e muitas ‘eres divergentes ~ valores em jogo: pensemos nos valores artisticos e: ticos de um edificio antigo, bem como nos valores. histéri- cos que podem es- tar associados a ele, que algumas vezes se contrapdem numa operacio de restau- 10, isso para nio mencionar outros “valores de contem- poraneidade”, nos termos de Alois Rie- gl, como os valores o. Um bom exemplo disso pode nos racio do Paco Imperial, no Rio de Janeito, eclifcio que ao longo dos seus mais de 250 anus dle hist6rla foi se transformando para se adequar aos novos usos de cada etapa, relacionan- tose a importantes acontecimentos de nossa historia, do periodo colonial WRepiiblica. Ao se empreender o seu restauro, era necessério decidir 0 {ule 8e irla recuperar, que etapas deste longo percurso iriam se valorizar, wmdetrimento de outras. Assim, ao se restaurar 0 edificio que foi moradia ‘#eondmicos ligados ao uso do edific lferecer a analise do processo de re He governadiores e vice-reis, sede administrativa do Império no primeiro Hegunclo Reinados, e reparticio piiblica no periodo republicano, tiveram fue ¥e fazer varias escolhas - nas quais, muitas vezes, foi necessério se aptar entre uma homogeneidade estilistica (que faria o edificio retroagir a lim periodo, eliminando-se acréscimos de outros), uma veracidade histé Hea (a lunelonais dos usos do presente (que poderia levar, por exemplo, a recon: deradies mais radicais).+ lanteria as marcas das diversas épocas), ou mesmo os reclamos fe numa operagio de intervengito sobre uma edificagio j podemos ver se hanifestar a perspectiva dos valores, e seus inevitaveis contlitos, o que nio Hizer, entdo, das decisdes complexas que tomam os drgiios de patrimdnio Conseroag valores prssupaststdrcos da plc para patrindnis a0 deliberarem sobre me 86 se protegem edificagdes excepcionais, mas também se regulamentam didas de protegdo para dreas histéricas, onde no Pariimetros como o uso e a ocupagio, alterando-se muitas vezes profun damente o estatuto juridico daquelas éreas urbanas? Em outras palavras. para nao se cair em posturas ingénuas ou dogmaticas, ¢ importante perce- ber que 0s valores vao ser sempre um fator decisivo nas praticas do campo do patriménio, determinando as diversas escolhas tomadas pelas comu- nidades e drgios de preservagao, No entanto, se hoje percebemos essa dimensao axiol6gica como parte indissocivel das politicas de patriménio, se sabemos que a questo dos valores sempre esteve presente nas decisdes Sobre a conservagio, o que se modifica neste inicio de século é a necessida- de cada vez mais presente de se explicitar essa operacio de atribuigio de valores, explicitagao que se torna necessaria na medida em que 0 proprio campo do patriménio se complexifica, tanto pela exponencial ampliagao deslocamento desse conceito, quanto pela introdugio de novos atores em ena, como pretendemos mostrar a seguir. Moaificacbes no campo do patriménio: deslocamentos no campo dos valores No que se refere ao primeiro tépico, mais importante ainda que a verda- deira explosio por que passam idéia como as de “patriménio cultural” e “patriménio arquitet6nico", como mostramos em capitulo anterior, vai ser série de questdes totalmente novas que essa ampliacdo traz para o cam- po do patriménio. Se antes, quando se lidava com 0 conceito tradicional Jo parecia haver muita davida quanto aos critérios para de patrimonio, @ classificagio de um bem ‘eomo patriménio cultural — sua excepcionalidade este! fn ou sua ligagdo a um fato memorivel da histéria, hoje, com essa ampliagio, toda a atribuigio de valor tem que fer explicitada, ja que lida ‘mos com uma matriz muito mais complexa de valores, Subjacente a essa ampliagio, encontra-se, provavelmente, © proprio relativismo epis temoldgico (e sua variante mais atenuada, o rel PATRIMONIO CULTURAL « Conceito, pte, instruments cultural) caracteristico de nossa era, na qual se torna cada vez mais eviden- fea competicio entre valores divergentes ~artisticose estéticos, historicos, econdmicos, ete. ~em toda operagio de preservagao. As certezas que pa- roclam existir em nosso campo, enquanto ainda estavamos sob a égide do projeto moderno, parecem se desvanecer no final do século XX e inicio de rosso sécul. i, de fato, ¢ interessante perceber, em primeiro lugar, como acontecem deslocamentos ja dentro dos proprios campos tradicionais da avaliagao do patrimOnio, quais sejam, 0 da “excepcionalidade” do valor artistico e o da “memorabilidade” do fato histérico. No caso do valor artistico, embora ise soubesse, pelo menos desde a “Critica do Juizo” de Kant, do caréter Irredutivelmente subjetivo do juizo estético, o pensamento pés-modero e 08 estudos culturais do século XX vao recolocar com forga o cardter histo rleamente circunscrito deste tipo de valor. Analisando essa nova situacio, Steven Connor da London University, em seu livro seminal Teoria e Valor Cultural (1992), nos mostra os desafios ~e os paradoxos ~ colocados para 0 pensamento contempordneo — no seu caso, para a teoria da literatura e os ‘estudos culturais ~ quando a nogio tradicional de valor artistico é desloca- da e/ou substitufda pela nogao mais ampla, de base antropolégica, do va- lor cultural.® No campo da histéria, por sua vez, vemos aparecer também uma nova maneira de se interpretar os fatos histéricos, estabelecendo-se lum didlogo rico com outros campos das demais Ciéncias Humanas tais como a antropologia, a psicologia, a lingitistica, a geografia, a economia e, sobretudo, a soctologia. Nesse campo, 0 foco afasta-se da histéria politica ‘© emerge novas perspectivas, que vao desde um interesse pela cultura material (alimentagao, vestimenta, habitagio, entre outros), até um espe- ial interesse pela cultura e pelas mentalidades* Assim, vamos ter em ambos 08 campos ~o da estética e o da histéria, destocamentos tao funda- mentais, que recolocam de forma também fundamental a avaliagdo do que seria estética ou historicamente significativo, o que se rebate naturalmente fo campo do patriménio, no qual se passa de uma nogio restrta e bastan te delimitada de “patriménio hist ampliada~e, as vezes, proteiforme~ de 0 ¢ artistico” para uma nogio muito “patriménio cultural’ fato & que muitos dos bens hoje protegicios ~ e is no cultural ~ sequer seriam considerados passiveis de qualquer tipo de dos como patrimd- protegio algumas décadas atras. Vérias comprovagdes desse deslocame to podem ser facilmente encontradas nas agdes dos érgios de preserva so nas dltimas décadas, quando, por exemplo, se protegem exemplares “exedntricon” da arquitetura vernacular, obras de individuos como Sabato Rodia, imigrante italiano que de 1921 a 1954 construiu as Watts Towers, Canseco watone: presse erica pli pra patrinle ‘elk, ve a no distrito de Watts em Los Angeles, hoje listadas como patriménio da cidade, do Estado da California e dos Estados Unidos, pelo National Park Service, desde 1990, Soberbo exemplar de arquitetura nao-tradicional, es sas torres, também conhecidas como Nuestro Pueblo, sio uma colegio de 17 ostruturas interconectadas, duas das quais atingem a altura de mais de 30 metros, construidas em cimento e materiais diversos, como vidro, cacos cerimicos e ferro, Trabalhando sem equipamento apropriado e també sem um projeto predeterminado, Rodia construiu aquela estrutura de so- iho (“I had in mind to do something big, and I did it." ~ “Bu tinha em men- te fazer algo grande, e consegui."), com suas préprias ma principalmente restos danificados de cerdmica de Malibu, onde trabalhou. por muito tempo, Na estrutura se percebe o carter de colagem, podendo 0s, utilizando se ver, inclusive, restos de vidro verde, com marcas das garrafas de bebidas ~7Up, Squirt, Bubble Upe Canada Dry. Explicando o proceso de atribui- glo de valor a tal estrutura, 0 do- cumento oficial que lista as torres ‘no National Register of Historie Pa- ers (Registro Nacional de Lugares PATRIMONIO CULTURAL -Concet, poles, bstrumento Histéricos) preocupa-se em explicar a nncia” das Watts Towers de Simon Rodia: “signifi As Watts Towers podem ser descritas tanto como es: ceulturas como arguitetura, Primariamente, elas esto entre os melhores exemplares da arte naive america- nae ganharam o reconhecimento amplo de conheci~ dos historiadores da arte, estudiosos da arte popular ‘e da maior parte dos criticos internacionais sofistica: dos, O autodidata Simon Rodia acercou-se a arte de ‘uma maneira totalmente espontinea e executou essa complexa escultura por um periodo de 33. anos. Como uma evidéndia tinica permanente da tradi gio popular italiana nos Estados Unidos, um fato fio reconhecido por muito tempo, as Watis To- ‘wers so uma encarnagio extraordinéria das me- marias de sua terra natal de um imigrante e um. testemunho de sua afeicio por sua nagio adotiva, Finalmente, as Watts Towers sio de interesse como ciitiosidades de engenharia, pois as duas torres mais altas, muito provavelmente contém as mais longas co- Tunas de conereto armado construidas sem parafuso ‘ou rebites no mundo. f interessante percebermos os motivos relacionados para a protecio: {niclalmente se referenciam as torres ao campo da arte, enquadrando-as, como “arte naive”, citando-se inclusive o reconhecimento que elas teriam de “historiadores da arte” e “criticos internacionais sofisticados”. Ao lado disso, aciuzem-se também razSes relacionadas mais de perto & questao da meméria pessoal e afetiva do imigrante Simon R¢ ia, ¢ até 0 “testemunho de sua afeigdio por sua Nagao adotiva” No Brasil, poderiamos citar a Casa da Flor, em Sao Pedro da Aldeia (RJ), que, nos mesmos moldes das Watts Towers, foi construida entre 1923 e 1985, com o actimulo de restos, como biizios, conchas e outros depésitos agoa, detritos industriais, pedagos de azulejos ¢ fardis de automéveis por Gabriel Joaquim dos Santos, artista negro e pobre, trabalhador das falinas da regio, e também autodidata. Nada do que ali se vé lembra BEET os exemplares tradicionalmente prote triménio: cercando a habitagio, idos pelos drgaos do pa- um estranho muro levantado com pedagos de telhas, tijolos e potes de barro, todo ponteado por flores e esculturas, enquan to no seu interior, acessado por um corredor, voemsse as pare Coser ears: pro ston td das pins para atrimdno PATRIMONIO CULTURAL - Concelto, pollens, tatrumentor des, todas preenchidas de enfeites, milhares de cacos coloridos aplicados, ‘numa decoragio luxuriante, Numa demonstragio cabal da ampliagdo do conceito do patriménio, este produto da imaginagdo popular foi tombado pelo Instituto Estadual do Patriménio Artistico e Cultural (INEPAC), da Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, sendo sua protegao assim Justificada por {talo Campofiorito, que também chama a atencfo para a sua "oeleza" e “carater genuinamente popular” Montada durante décadas, pelo actimulo de restos, no dizer do autor, “coisinhas de nada” ~ biizios, conchas outros depésitos da lagoa, detritos industriais, peda- 508 de azulejo fardis de automéveis ~ a construsso ainda nas palavras de Gabriel, é uma “casa feita de ‘acos transformados em flor”. Aparentemente insli- tae bizarra, essa fabricagio onirica, “eu sonho e fago", tem efeitos visuas tio lindos e inesperados quanto os muros do Park Giel, de Antonio Gaudi, em Barcelo- nha com que é freqiientemente comparada, ‘Tata sem diivida, de um trago vital da vertente popular & traumatizada de nossa arte, um bem cultural de valor, cairiosamente to celebrado, mas ainda nao incorpora cdo ao patriménio oficial," A questo da atribuigao de valor ~ que hoje nos aparece em toda sua com- plexidade ~ nao parecia ser, no entanto, até ha algumas décadas, uma ques- tio controversa, nem digna de maior investigagao: como ja mostramos, 4 conservacio constituiu durante muito tempo um campo relativamente fechado, sendo a atribuicao de valor feita, via de regra, por experts, que decictiam o que era (ow nao era) patriménio."" A maior parte dos conceitos que norteavam entio as escolhas e opcdes na constituigao do corpus patri- monial derivava do campo das artes, usando-se nogdes como as de “obra prima”, "valor intrinseco” e “autenticidade”, que eram incorporadas sem maiores dliscussGes ou aprofundamento. Nesse caso, mesmo que pudes gem ser detectadas variades significativas nas diversas trajetdrias nacio- nals das politicas do patriménio, 0 conceito dominante vai ser sempre 0 da “excepcionalidade”, que termina por diluir num conceito genérico a complexa matriz de valores envolvicla em cada caso. (Isso se aplica, por ‘exemplo, & nogio de “cultural significance”, na tradigo norte-americana, ‘eA classificagao de bem de “excepcional valor” em nossa propria tradigao), Nesse momento, a questo do patriménio parecia, de fato, adstrita a um pequeno grupo téenico, que compartilhava, a grosso modo, um mesmo Uuniverso conceitual e os mesmos valores, o que tornava supérflua qual quer discussiio mais aprofundada nesta direcio, Esse quadro vai mudar substancialmente no final do século XX, com a introdugio de novos agen tes no campo clo patrimdnio e com a crescente énfase que se di aos asp Commer «valores prssuposts trios das politica para o patria tos intangiveis dos bens culturais, fatores que também tornam cada vez mais necessério se explicitar a operagio de atribuigio de valores sempre subjacente no campo do patriménio Modificagdes no campo do patriménio: o patriménio imaterial Paralelamente a essa ampliagao, hoje se percebe, muito mais que no pas- sado, que o fim tiltimo da conservacao nao vai set a manutengio dos bens materiais por si mesmos, mas muito mais a manutengio (e a promogio) dos valores incorporados pelo patriménio, sendo as intervengdes ou trata- ‘mentos fisicos aplicadosa esses bens apenas um entre muitos meios para se obter este fim.% A esse respeito, parece muito interessante acompanhat a discussao que nos tiltimos angs tem se dado em torno da idéia do chamado patrim6nio imaterial ou intangivel, que, de certa forma, recolocou as bases da nossa area. Isto, a nosso ver, se da porque a discussio que se centrava muito mais no como conservar ~ restringindo-se a idéia da conservagdo & sua dimensio fisica, onde se discutem questdes como 0 comportamento dos materiais e sistemas estruturais, as causas e mecanismos de deterio- ragio, as intervengdes possiveis, a eficécia a longo prazo dos tratamentos = teve que se deslocar necessariamente para o Ambito do que conservar edo porqué conservar, 0 que coloca em cena necessariamente a questio dos valores. Se até entao esta questao podia passar despercebida — ou apa- recer apenas secundariamente — a partir de agora, tem que se explicitar: cada escolha de bens, cujo atributo principal no pode ser encontrado na sua “matéria”, no se "estado de substancia’, mas numa rede intangi- vel de significados, tem que demonstrar seus cri- trios de articulagdo ea sua razio de ser: Um bom exemplo dis 8 nos fornece o regis- tro do Mercado de Marrakesh, da praga triangular Jemaa El-Ena, na lista das “Obras primas do patrimdnio oral e intangivel da hum UNESCO, em 2001. Ali se usou a categoria de “lugar”, endo a categoria de “sitio histérico’, tradicionalmente usada para conjuntos urbanos, escolha PATRIMONIO CULTURAL « Contos, poten, instrument que chama a atengio para ‘05 lagos imateriais, sociais endo apenas para a dimen- io fisica ou as construgdes que compéem 0 conjunto. Segundo © proprio regis- tro da UNESCO, esse lugar apresentaria “uma concen- tragdo tinica de tradigées, tais como a dos contadores de histéria, curandeiros varias formas de entreteni- mento, tanto quanto atividades comerciais”. O texto do site da UNESCO ilo deixa duivida do que esta sendo valorizado pela classificacao daquele lugar: Localizada na entrada da Medina, essa praga trian- gular, que & cercada de restaurantes, bancas e edifi- ios piblicos, oferece atividades comerciais e varias formas de entretenimento cotidiano, E um local de encontro tanto para a populagio local quanto para 1s pessoas de toda parte, Durante todo o dia, e noite dentro, oferece-se uma grande variedade de servigos, tais como tratamento dentirio, medicina tradicional, Ieitura de sorte, oragoes, tatuagens de henna, carrega~ dlores de agua, frutas e comidas tradicionais, podem, sor compraclas. Além disso, podem se apreciar muitae performances dos narraclores, poetas, encantacores de serpentes, miisicos berberes (mazighen), dangari- nos gnaoua e tocadores de senthir (hajouj). As expres- ses orais so continuamente renovadlas pelos bardos (imayazen), que costumavam viajar através dos terti- tories berberes. Eles continuam a combinar discurso gesto para ensinar e encantar o publico. Adequan- do sua arte a0s contextos contemporiineos, eles agora Improvisam a partir dos textos antigos, fazendo seu recital acessivel a uma aueliéneia mais ampla.!? INO caso brasileiro, logo apés a promulgagdo do Decreto N°. 3.551/2000, {que eriou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial em nosso Pais, o Consetho Consultivo recomendou ao IPHAN que empreendesse es- forgos para a instrugaio de pelo menos um processo de registro relacionado a ‘cada una das categorias de bens culturais estabelecidas no referido decreto. ‘Assim, escolheuse a Feira de Caruaru em Pernambuco, para exemy @ categoria “lugar” na medida em que a mesma parecia coneretizar com pperfeigio a idéia contida naquele Decreto, Assim, em 2006, essa feira foi Conserve: presario puro patrimdnis elassificada como patriménio nacional, registrada através do Processo n° (01450,002945, No site do IPHAN lé-se a fundamentagio dessa distingio: A Feira de Caruaru é um lugar de meméria e de conti- nuidade de saberes, fazeres, produtos e expressive ar- tisticas tradicionais que continuam vivos no comércio de gado e dos produtos de couro, nos brinquedos re- ciclados, nas figuras de barro, inventadas por Mestre Vitalino, nas redes de tear, nos ultensilios de flandres, no cordel, nas gomas e farinhas de mandioca, nas er- vas e raizes meclicinais. Sem sua dindmica e o merea- do que a Feira proporciona, esses saberes e fazeres ja teriam desaparecido.!* Essa mudanca na percepgao da questio parece se estender ao proprio pa- triménio material: nao é fortuito que o ICOMOS tenha tentado promover seu simpésio internacional em 1999 no Zimbabue em torno da tema da dimensio imaterial do patriménio material. (O encontro acabou nao acontecendo devido ao estado de guerra civil que se agravava no Pais no momento.) Em outubro de 2008, no entanto, a 16" Assembléia Geral do ICOMOS e seu 16° Simpésio Cientifico, no Canadé, abordou tema seme- Ihante, “O espirito do lugar: entre o tangivel e o intangivel”, onde se mos- trou como o tema do lugar unifica justamente esses elementos tangiveis e intangiveis. No documento sintese daquele encontro, pode-se ler: cespirito do lugar é definido como os elementos tan siveis (edificagbes, sitios, paisagens, rotas, objetos) intangives (memérias. narrativas, acumentos o tos, rituais, festivais, conhecimento tradicional, res, texturas, cores, odores, ete), isto & os elemen fisicos eespirituais que dao significado, valor emocao mistério para lugar. Mais que separar o espirito do lugar, o intangivel do tangivel, e consideré-los opos- tos entre si, 6 ICOMOS tem investigado as multas maneiras pelas quais os dois interagem e constroein mutuamente um a0 outro. Essa constatagio recente de que vai ser 0 substrato imaterial subjacente que, de certa forma, “ancora” préprio patriménio material e que este se torna uma “categoria social quase vazia” quando “extirpado de seus valores culturais imateriais”, vai representar uma verdadeira revolugdo ‘ho pensamento sobre o patriménio, jogando luz sobre as matrizes tle valo- ragio sempre presentes nas operagdes de preserva PATRIMONIO CULTURAL - Coneito,plticns,instrumentos ' Modificagdes no campo do patrimonio: a introducio de novos agentes No entanto, a ampliagio e © destocamento do conceito nao vao ser as Ainieas alteragdes no campo do patriménio, que sofre outra modificagio igualmente importante, com a introdugio de novos grupos e agentes (slakeholders), o que também coloca em outros termos as bases das politi- ‘605 puiblicas na drea. J4 em 1992, Frangoise Choay apontava que ao lado da ‘expansiio tipoldgica, cronolégica e geografica dos bens patrimoniais, 0 seu Ppiiblico teria tido um “crescimento exponencial", passando o patriménio de “objeto de culto” a“ Finalmente, o grande projeto de democratizagio do saber, herdado das Luzes ¢ reanimado pela vontade de etradicar as diferencas e os privilégios 10 dos valores intelectuais e artisticos, aliado ao desenvolvimento da sociedade de lazer e de seu: cortelato, o turismo cultural dito de massa, est na rigem da expansio talvez mais significativa, a do pubblico clos monumentos histdricos ~ aos grupos de Iniciados, de especialistas e de eruditos, sueedew um, ‘grupo em escala mundial, uma audigncia que se con- ta aos milhées. (p. 210) Para a autora, essa democratizagio do campo do patriménio acontece si- ‘multaneamente a sua transformagéo em mercadoria, inserindo-se na légi- ea da inddstria cultural: os bens culturais, além de propiciarem “saber Be aga’ oor én “prchtoscultarwa’,“empacctadas pst Gaia pases aoe & WI ssiice. © sou "valor de uso 20 Pere mera en sree ee een ieee tn aura", eu trea, em lta Sameer ee unio REM ereig couse sitantes”, Entre os varios autores contemporaneos que apontam para fendmenos semelhantes, po- deriamos citar ainda o critico ale mao Andreas Huyssen, que de senvolve a idéia segundo a qual, numa reagio a globalizagio (ou exatamente através dela), 0 mun- do estaria se “musealizando", ao trocar 0 coneeito (iluminista) do ‘progresso” pela idealizagio da Commer ¢ cuore: pressupoststdricos das politic pra o patria “tradigdes”, Para ele, também a reciclagem e a exploragio pela industria cultural de tépicos relacionados & meméria contribuiriam para a expansio das preocupagées relativas & memdria na esfera ptiblica, gerando uma es pécie de “cultura da meméria”, que se impoe desde os anos 1980. 7 No entanto, a nosso ver, este fendmeno nao deveria ser visto unicamente através dessa faceta negativa, podendo-se constatar concomitantemente uma efetiva democratizagao no campo do patriménio, na medida em que, em certa medida, esse novo piblico nao vai ser apenas consumidor passi- vo de produutos culturais, mas atua também como cidadao em relagao a0 seu patriménio, O fato é que, como tem sido recorrentemente apontado Por varios autores, a partir da tltima década do século XX, as politicas Piiblicas tém sofrido uma grande modificagao, especialmente em respos- ta a0s processos de globalizagio, descentralizagio e reforma do Estado.!* A socidloga Maria de Lourdes Dolabela, num interessante trabalho "As politicas publicas para a preservacio do patriménio”, discute exatamente 08 rebatimentos dessa muclanga mais ampla no campo do patriménio: a seu ver tanto a “adogio de novos dispositivos legais ¢ interinstitucionais", quanto a “multiplicagdo de interlocutores ~ dentre os quais se destaca a preponderiincia das comuniclades” demandariam hoje “alteracbes nas po- liticas de gestio do patriménio cultural, urbano e ambiental”. Assim, ao lado da verdadeira “explosao” do campo de patriménio, que passa da nogao de_monumento tinico 4 ampla idéia de “bem cultural”, assistiria- ‘mos, no final do século XX, ao deslocamento dos centros de decisio, com a ‘emergencia de uma poliarquia de atores, o que nao pode ser ignorado na implementacio de qualquer politica publica na contemporaneidade, De fato, tais mudancas vém impactar fortemente a prépria natureza das Politicas piblicas na érea do patriménio, que passam a ter um novo dese- ho - ndo mais hierarquizado - e uma outra l6gica - complexa - ¢, por iss0 mesmo, no mais explicdvel pela relagao bindria Estado e sociedade. A cer tralidade do Estado, que tinha sido inconteste desde o inicio da institucio- nalizagio das politicas de patriménio, vai ser abalada e vai sendo crescen- temente substituida, como aponta Pereira, “por relagdes contratuais entre Estado e coletividades locais”, crescendo a importaneia da “coorde de atores com interesses e légicas diferentes”. Nessa nova configura que se liga as “novas-politicas da cidade", passam a desempenhar papel importante os conselhos do patriménio, as parcerias, a contratualizagao e fs negociagdes urbanas envolvendo diferentes atores puiblicos e privados. No caso brasileiro, cabe chamar a atengio para o importante papel desem- penhado pelos conselhos do patriménio, especialmente depois da pro- {CULTURAL - Coneios, pln, intrumentos mulgagio da Constituigdo de 1988, que estabeleceu novas prerrogativas e competéncias ds instincias de podler: ganha destaque em agendas locais no Brasil a abertura de canais de participagio, espagos de co-gestio entre s0- eledade civil e Estado. Neste sentido, a Carta Magna jé estabelece em seu priprio texto, pela primeira vez na legislagao brasileira, que cabe ao Poder Piiblico, “com a colaborago com a comunidad”, promover a protecio do patriménio cultural, abrindo, com isso, 0 espaco para a multiplicagio dos conselhos por todo o Pais, que passam a ter a funcao de estabelecer 4¥ politicas de patriménio. Em relagao ao carter legal destas instincias deliberativas, Moreira (1999) chama a atengao para as suas prerrogativas, finidas pelas leis especificas que os eriam: Os conselhos constituem-se em instancias de carter deliberativo, porém nao executive; si0 érgios com fungao de controle, contudo nao correcional das po- litcas sociais, & base de anulagao do poder politico. O conselho nao quebra 0 monopélio estatal da produ- {Go do Direito, mas pode obrigar o Estado a elaborar normas de Direito de forma compartilhada (.) em co- sgestdo com a sociedade civil. (p. 65). Segundo Maria de Lourdes Pereira, com os conselhos se rompe o “carater lerdrquico tradicional nas politicas publicas’, ampliando-se “a partici- pagio das comunidades na elaboragio, discussio, fiscalizagio e decisio obre a execucio das politicas de planejamento e desenvolvimento social Lurbano, incluindo os direitos sociais e coletivos a gestao urbana democr’- Hen”. Estamos frente entao a “érgaos hibridos", os quais “constituem uma ‘ova forma institucional que envolve a partilha de espacos de deliberacio lntze as representagbes estatais e as entidades da sociedade civil’. Aqui ‘esld a grande inovagio: apesar de se encontrarem varios tipos de conselhos = Yarlando em relacio as suas atribuicées, composigao, jurisdligao territo- Hal, carter gestor, fiscalizador ou deliberativo, vai ser 0 compartilhamen- to de responsabilidades Estado-sociedade civil que representa o elemento _Verdadeiramente novo nesses arranjos institucionais. isa modificagio tem um rebatimento quase imediato na propria percep- go clo campo do patriménio: de uma operagao que parecia simplesmente Ideniea, passa-se & percepgo que o patriménio vai ser, em sua esséncia, ‘Politico e controverso, Com isso, no coragao da pesquisa contemporinea, Interdisciplinar e critica, vai estar fortemente estabelecida hoje a nogio de {que © patriménio cultural é uma construgio social, resultado de proces- 408 socials especificos espacial e temporalmente, como foi demonstrado iimente por Frangoise Choay em A Alegoria do Patriménio (1991), sabe que objetos, colegdes, edificagies e lugares silo “reconheci= Conserve care: pressupostos fire das polities urn o patrons dos” como patrimdnio através de decisdes conscientes e/ou valores no ‘explicitados por instituigées e pessoas, e por razdes que também slo forte: ‘mente moldadas por contextos e processos sociais. E nessa diregio que vai aparecer como premente a necessidade cle se esmiugar os valores em jogo na conservagao do patriménio cultural, o que é tentado por varias “teorias do valor”, que, a nosso ver, oferecem um marco importante na tentativa de se estabelecer fundamentos tedricos mais rigorosos para a érea da con servacio. Os valores e suas miltiplas matrizes ‘Tal reflexdo parece-nos da mais alta relevancia na contemporaneidade, n medida em que ela nos permite identificar e entender os valores envol- vidos na drea da conservacao, condigao necesséria para a formulagao di qualquer politica mais abrangente para o patriménio, Como sabemos, s6 uma compreensio acurada dos valores percebidos pelos diversos “agen- tes” ~ que definem seus objetivos e motivam suas agdes ~ pode nos for- necer uma perspectiva critica para a gestdo estratégica sustentivel e de Jongo prazo para os bens culturais. (Na drea da conservagao urbana, por exemplo, 0 conflito de valores torna-se muito evidente quando se anali- sam, por exemplo, fendmenos como o “suburban sprawl” ou a indtstria do turismo), Para se decidir, portanto, o que é patrimOnio e para se manter no os bens materiais por si mesmos, mas, como anotamos, os valores neles incorporados, torna-se necessério examinar sempre porque e como o patriménio é valorizado, e por quem. “Os governos o valorizam de uma forma, os grupos das elites nacionais de outra, diferentemente das popula- ‘ges locais, dos académicos ou dos empresérios. Para saber qual a melhor ‘estratégia para preservar o patriménio cultural, temos que entender o que pensa cada um desses grupos e a relacdo entre esses diferentes grupos.”, nota a sociéloga Lourdes Arizpe. Tal fato vem sendo reconhecido por varios érgdos ¢ instituigdes ao redor do mundo, registrando-se mudancas significativas no campo do pal nio nos tiltimos 15 anos: através do planejamento compreensivo para a ‘gestio da conservagdo, vém se desenvolvendo perspectivas integradas e interdisciplinares para a preservagio do meio ambiente construido que fespondem as condigbes da sociedacie contempordnea, f digno de registro ‘que em alguns paises tém aparecido politicas para a gestio da conserva- go integrada que tentam explicitamente incorporar os valores na tomada de decisdes, sendo possivel se citar o8 casos do ICOMOS da Australia, do Invtrumentow e National Park Service nos Estados Unidos e da English Heritage no Reino Unido, Desta maneira, por exemplo, o National Park Service coloca como sua “miso” “preservar ilesos os bens e os valores naturais e culturais do istema cle parques nacionais para a fruigo, educagao e inspiragio desta e das proximas geragdes” (grifos nossos).” No entanto, mesmo que o quadro venha apresentando um avango institu- clonal, aincla hi muito que se fazer, especialmente no que conceme pes- quisa dos fundamentos teéricos da area. De fato, como mostra relatério evente do Getty Conservation Institute (GCI), persistiria um desequilibrio lentre a énfase dada a cada uma das trés perspectivas identificaveis no cam- Po do patriménio, a “conservacao fisica”, o “contexto de gestio” e a “sig- nificdncia cultural e valores sociais”, com um claro predominio das duas Primeiras. No que se refere as “condigdes fisicas”, trata-se de investigar 0 Comportamento dos materiais e sistemas estruturais, as causas e mecanis- mos de deterioragio, as intervengdes possiveis, a eficécia a longo prazo Conserongecalre:pressupasts drew das tens para opatrindny dos tratamentos, ete. No que tange ao “contexto de gestio”, so objetos de anilise a disponibilidade e uso de recursos, incluindo financiamento, pes- soal capacitadlo e tecnologia; a questo dos mandatos e condigdes politicas ¢ legislativas; a questio do uso da terra, entre outros. Jé no que se refere 8 “significdncia cultural e valores sociais”, caberia se investigar as ques- tes centrais clo porque e do para quem um objeto ou lugar ¢significativo, para quem eles so conservados, como se percebe o impacto das interven- ‘gbes, ete. (GETTY CONSERVATION INSTITUTE, 2000). Para 0 GCI, cabe Feconhecer que, infelizmente, a agenda da pesquisa na area da conserva~ glo ainda esté centrada nos seus aspectos fisicos, raramente envolvendo 4 discussao dos significados e valores complexos em jogo, dos agentes ¢ das negociagdes possiveis. Ainda vista fortemente como uma tarefa mais técnica que social, a conservacio nao estaria conseguindo estabelecer uma we conceitual mais sélida, atraindo as contribuigdes mais significativas das ciéncias humanas e sociais. Dai a necessidade de um marco teérico ido para se enfrentar essa questdo, e a necessidade de se explorar a fundo a questao dos valores como um aspecto particular do planejamento eda gestao da conservagio. VICISSITUDES DE UM CONCEITO: 0 LUGAR EAS POLITICAS DE PATRIMONIO. Um olhar atento para a cena urbana contemporinea pode identificar uma tendéncia pre- valente: a homogeneizagao do ambiente construido, mesmo quando, & primeira vista, pare- 6e se valorizar cada vez, mais a diferenca.! A medica em que 1 globalizagao avanca, as cida- des de todo o mundo tendem a fe parecer, com 0 apagamento das diferencas regionais, tendéncia que se manifesta ainda mais dramati- gamente nas grandes metrépoles onde tradicdes diferentes se encontram e pparecem se apagar, desaparecensto num todo pasteurizado, como é apon- {ado pelo relatério do HABITAT, Cites in a Globalizing World. © cariter hist6rico particular de uma cidade fre- aqiientemente desaparece na busca direta e aberta de ‘uma imagem internacional e de negécios internacio- nais. De Xangai a Johanesburgo, cle Buenos Aires a ‘Melbourne, de Handi a Sio Petersburgo, uma classe executiva internacional molda escritonios nos centros, hotéis de luxo, resorts ¢ condominios & sua propria imagem, A identidade local se torna um ornamento, uum artefato de relagdes piblicas, projetado para ajue dar o marketing? “Neste processo, a autenticidade é “paga, encapsulada, mumificada, loca- Higada e exibida para atrair turistas muito mais que para promover con- Hinuidades da tradigao ou as vidas de seus criadores histéricos”. Mesmo 4s chamadas “cidacles histéricas” e os centros histéricos preservados so vitimas dessa desvalorizagao do meio ambiente cultural, eos criticos falam de uma “disneyficagao” do entretenimento e da recreagio, processo que ‘fetaria também a propria forma construida das cidades, como mostra 0 folatdriocitado, > ; Franguias onipresentes de cadetas de fast food com suas arquiteturas de logomarca, shoppings de escala ‘ada vez maior, cadeias de lojas e franquias intern clonals povoam a paisagem urbana, tanto nos subi bios quanto nos centros das cidades, De fato, hd uma © PATRIMONIO CULTURAL - Cones, pot rumen convergéncia na suburbanizacao das éreas centrais das cidades, que corre em paralelo com a urbaniza so da periferia, para transformar a forma regional de conctntrica em policentricae,finalmente, em algo amor, enquanto Se permaneee dependenie de um Ainico centro para as fungées chaves financeiras, go vernamentais e de controle we Neste quadro, ¢ curioso que justamente um conceito como o de “lugar” te nha ganho proeminéncia nas tltimas décadas, ele de longo “exilio” z depois de softer uma espé ra era moderna: o interesse académico pela complexa teal que se estabelece com os lugares parece nos erescerpaelconente Ay aguclas condigdes globais hodiernas, de uma crescente abstragio e de uma homogeneizacio geral.' Ao mesmo tempo, nao podemos esquecer gue vai ser uma série de lutas localizadas - de povos indigenas e minorias eulturais por suas terras natais e seus lugares sagrados, de preservacionis- {as por monumentos ¢ exemplares arquitetGnicos significativos, de comu- nidades por sua maneira de viver ~ que vio trazer a questo ~ em iiltima Instincia, politica - do lugar para o foco. Como coloca Clifford Geertz, no Postcio ao livro Senses of Place, organizado por Steven Feld e Keith H. Bas- 80: “A etnografia do lugar é algo mais crtico para aqueles de nds qui estio Aptos a imaginar que todos os lugares sio semelhantes que pa que, escutando as fore as ou experimentando as pedras, sabem mais, Esse capitulo pretende, assim, per y sim, percorrer alguns dos paradoxos da proble- méticn do lugar, acompanhando, ainda que brevemente, a partir la con: ugar 0 polit meme iva do pensador norte-americano Edward S, Casey, seus desdobramentos filoséficos, e mostrando, ao mesmo tempo, algumas de suas possiveis implicagdes para as politicas de meméria e patriménio na contemporaneidade. © esquecimento do lugar Com o crescente interesse por essa problemética, cresce também a litera tura especializada a seu respeito, tratando-se o tema do lugar a partir das ais diferentes perspectivas.* No entanto, é preciso reconhecer, antes de tudo, uma espécie de déficit na propria definigao do conceito, que decor re, como veremos, de sua prépria posigdo ontolégica fundamental. Amos Rapoport, um conhecido critico do termo, reclama do fato de que o “lugar nunca ¢ claramente definido, permanecendo vago; quando se acham defi- nigées, elas sao il6gicas.”” E, de fato, o Diciondrio Webster traz 52 defini- ‘goes para “place”, o correspondente em lingua inglesa da palavra “lugar” entre as quais se destacam uma série que se relacionam primariamente & posigio que um individuo ocupa na sociedade ou a outros tipos de cit- cunstincias.* (’Se eu estivesse em seu lugar”, “em primeiro lugar”, "ter lugar” usado como “acontecer”, so apenas alguns dos multiplos signifi: cados do termo). Numa colocagéo mais préxima da nossa perspectiva, 0 Oxford Dictionary of Geography define lugar como “um ponto particular na superficie da terra; uma localizagao identificdvel para uma situagio imbui- dda com valores humanos.”(9) © lugar vai ser, assim, desde a sua definigao mesma, no apenas uma localizacio, mas uma localizagao especifica im- bbuida com valores humanos, distingo que vai se mostrar muito importan- tena abordagem filoséfica do termo. Um dos filésofos contemporaneos a tratar de forma mais extensiva a ques tio do lugar vai ser o norte-americano Edward Casey, que produz impor- {ante obra a respeito nos anos 1980 e 1990, cabendo-se citar 0s livros Get tig Back Into Place: Toward a Renewed Understanding of the Place-World, de 1993, © The Fate Of Place: A Philosophical History, publicado em 1997, Num ppequeno texto, intitulado significativamente “Smooth spaces and rough- ‘edges places: the hidden history of place”, o filésofo resume o seu ponto de Vista, Ali ele vai partié, como no restante de sua obra, da distingio tradi- onal entre “espaco” e “lugar”, mostrando a sua base filoséfica, Comeg (wet texto, com uma espécie de charada: “O tempo ¢ um; 0 espago é dois = pelo menos dois’, para chamar a atengio para o cardter do que denomina “quto-proliferagio” do espago, PATRIMONIO CULTURAL cen, potas, instr Lugar ea potted emia Tome por exemplo, a dimensionalidade do espago. Uma dimensio no espago ¢ representada por um pon- to ou: uma linha, eujo formato radicalmente reduzido zomba da extensividade do espago césmico. Duas dimensées, como numa figura plana, também nio correspondem ao nosso sentido de que 0 espago se cestende indefinidamente além do sujeito que be. Apenas com trés dimensies & que come nos aproximar de uma adequagao entre a est ‘o sentido do espaco, Pois entao ali o sujeito esté cer- ado de alguma coisa suficientemente espagosa para viver e se mover... De fato, como observam tanto Aris- t6teles, Kant e Merleau-Ponty, a tridimensionalidade do espaco reflete diretamente nosso estado corporal, isto 6, 0 fato de que como seres eretos os trés planos perpendiculares implicitamente se encontram e se in tersectam em nds." Geespaco vai ser, assim, sempre um composto duplo, formado por si mesmo (fo que quer que ele sea”) ¢ pelo lugar, Para marcar esta diferenga muitas Tinguas~e certamente a maiotia das linguas européias vio distinguir entre Hospago” “lugar” (por exemplo, “space” and “place”, “locus” vs “spatium”; Mist ox. “endrvit” vs “espace; "Platz" ou “Ort” vs “Raum”, etc) No entanto, se essa distingao parece tao importante para os filésofos, 0 henvo comum ¢ a propria experiéncia ordindria parecem, a seu ver, no ‘mais das vezes estarem esquecidos disso. Acima de tudo na filosofia mo- derma, onde a propria distingao vem a ser questionada e desacreditada: ‘umna mancira de se ente pelo proprio negligenciar desta distingao. No mundo antigo, de forma ‘oposta, nko haveria cividas quanto a essa diferenciagao fundamental, que We retoma hoje. Neste sentido, o fildsofo vé uma inusitada afinidade eletiva ‘Alre © mundo antigo ~ que “sabia melhor”, 0 “pré-moderno”, e 0 “pos- TModerno’, que juntam suas forcas no reconhecimento comum da impor- Hinela do lugar como algo essencialmente diferente do espago, algo que Wlo podemos nos dar ao luxo de ignorar. der a modernidade seria, para Casey, justamente ‘Para mostrar o enraizamento dessa diferenga, o filésofo trabalha, entio, {m distingdes tragadas jé na Antigiiidade, por Platao e por Aristételes, que porceberiam, cada um a seu modo, o carder dual do espago. No primeiro, Ghswy aponta a distingdo entre “chora” e “topos”, apresentada no “Time "hora", convencionalmente traduzido como “terra”, “érea” ou “espago”, ‘gpontarla para o reino da necessidade, senclo uma espécie de “recepticu- Team 0e fosse 0 berco, de tudo que se transforma”, “Chora” val ver 0 Wssento ("hedra”): “por natureza esti ali como a matriz ("exmageion”) para : {udo". Para Casey, a “chor” poderia ser aproximada da nogio de espago PATRIMONIO CULTURAL » Conte, pttica, struments - por duas razes: em primeiro lugar, ela forneceria “espago” (“espago para ser ocupado”) para tudo que se transforma; em segundo lugar, ela seria homogénea ou neutra em sua constituigdo - “aquilo que esta para receber em si todas as coisas deve ser livre de toda caracteristica (de si mesma).” Esta titima caracterizagao vai antecipar, de fato, como mostra Heidegger, a idéia moderna de um espaco homogéneo, como veremos mais adiante. Platao também vai introduzir a idéia de lugar em seu pensamento: para ele, a propria ago da “‘chora’” com seu movimento de contragio violento acabaria tendo 0 efelto de agrupar naquele espaco inicialmente indeterminado, os quatro “ipos” ou “poderes” elementares em quatro “regides” (“chorai”), dentro das quais apareceriam os “lugares (topoi)” particulares. “Lugar” aqui vem traduzir o termo grego “topos”, que é 0 lugar estabelecido onde os corpos somata”) vem a residir, uma vez. que foram agrupados com corpos seme- Thantes na mesma regio. 9, por sua vez, faz 0 “topes” (e niio a “chorw”) o seu foco primério de atengao. No livro IV da na Fisi- ca, 0 fildsofo comenta que Platio em seus ensinamentos esotéricos, teria declarado “que lugar e espago eram a mesma coisa”. Todavia, se- gundo Casey, essa afirmagio faria ais justiga aos intentos do Esta- girita que aos de Platao, traindo a renga aristotélica de que a “chora” nao precederia nem compreenderia © “topos”. Tal afirmagio parece-se com a nogio caracteristicamente moderna segundo a qual “espago” “lugar” diferitiam um do outro apenas trivialmente; mas aqui nos deparamos com uma diferenga © lugar ea polite da memoria fundamental: enquanto os modemos querem dissolver 0 lugar no espaco, Aristételes tenta 0 outro caminho, dissolvendo o espago (“chord”) no lugar Ilopce”), Mas qual seria, entZo, a sua definicio de lugar? E interessante ‘vermos que Aristételes vai definir o lugar como um “contenedor de cor Pos”, ou mais exatamente, como “o primeiro limite imutdvel daquilo que gontém’” (Fisica IV, 212 a 220-221). Para ele, o caso exemplar de um higar seria um invélucro imével que conteria uma combinagao de ar e égua “jus- tamente como um invélucro (vaso) é um lugar que pode ser carregado, 0 ugar é um vaso que nao pode ser movido” (212 a 214-16). Observem que ‘sha idéia delimitada e delimitadora do lugar traz.consigo a suposigao de que o lugar ¢ primariamente localizador e que 0 que localiza é uma coisa fisica, O lugar é onde uma coisa esta -no qual o advérbio locacional “onde” ("pou") tem o status de uma categoria universal. Mas além de localizar (ou is exatamente, como localizando) o lugar seria algo “que envolve”, com © resultado de que um dado lugar vai ser sempre co-extensivo com aquilo que contém: a sua superficie interior com a superficie exterior da coisa gontida sao estritamente contiguas: “os limites S40 compartilhados com faquilo que é limitado”. Uma outra questéo importante seria a da propria realidade do lugar Juma das raz6es que levaria Aristételes a propor que lugar seria real é a fa insisténcia de que certos lugares tém uma “certa poténcia (cynamis)", ‘a medida em que cada um de seus elementos é “levado para 0 seu lu- jar proprio, desde que nada interfira”. (Fisica IV, 208b10-12). Assim, por @xemplo, se a terra ¢ levada para 0 centro do universo, isso mostra que 0 @entro do universo teria uma poténcia, e entao deve ser real. Qual seria A natureza, entio, dessa poténcia (“dynamis”) que o filsofo circunscreve 408 lugares? Naturalmente nao nos caberia aqui uma interpretagao cien- tifielsta ~ anacrOnica — que veria no centro a causa eficiente do movimento itarra (como seria 0 caso da atragio gravitacional, por exemplo), mas tim, aristotelicamente, ver nela um constituinte de sua causa formal. Em utras palavras: é casualmente significante porque o centro do universo forma uma parte da definigao da terra. Edward Casey interpreta assim ‘ssa viltima afirmagao: Acxplicacio seria a seguinte, Suponha que aesséncia dfinidora da terra 6 estar no centro, Agora tonsidere ‘uma porgio de terra que é deslocada do centro, Esta porgio nao esté “realizada” completamente: ndo esta no centro, como demanda a sua esséncia definidora Para realizar essa esséncia ela necessita se mover em diregho ao centro, Assim ele tem uma poténeia ("Aly ‘umis") para se mover para o centro; esta poténcia & atvalizada we nada impede o movimento da porgio, A PATRIMONIO CULTURAL -Conceto, pltcm, instrument atualizagio (ou realizagio) da poténcia é © movimen: tode queda da porgio, Note que a tendéncia mivel da terra nfo é a iltima causa aqua tiltima causa é muito mais o fim do movimento ~ e este fim é um estado de repouso. Esta confianca no fim do movimento ¢ carac teristica das explicagies teleoldgicas de Aristoteles na ciéncia.) Para Casey, haveria duas observagdes importantes a serem feitas nes- te ponto, Em primeiro lugar, o forte compromisso de Aristételes com 0 poder do lugar, que vai provocar uma das discusses mais frutiferas da Histéria da Filosofia: se nao se tivesse atribuido tal “dynamis” ao lugar no Valeria a pena o esforgo de tanta discussdo a respeito de sua natureza exa- ta, fim segundo lugar, apesar de seu consideravel dinamismo e importin- la no debate filoséfico, 0 “lugar” perde gradualmente importincia para 0 “espago” no curso dos dois mile jos que se seguem, Para o pensamento grego da Antigtiidade parecia inquestiondvel o axioma dlorivado do pitagérico Arquitas: ser é ser num lugar, ou de forma inversa, ser sem lugar é nao ser, que ¢citado em versdes diferentes tanto por Pla- tho quanto por Arist6teles. Mas, ali mesmo na Antigitidade, aparece uma ultra concepgio com Filoponus, que no século VI a.C. propoe a idéia do fspago como tuma extensio espacial vazia, que continuando sua trajeté- ria através da Idade Média (onde, por exemplo Hasdai Crecas e Thomas Bradwardine insistem na infinidade espacial de Deus), atinge um ponto no Renascimento oncle um axioma completamente diferente cativa as men- to filosdficas (tanto quanto as cientificas ¢ as teologicas): ser é agora ser No espago, onde “espaco” significa algo nao-local e nao-particular, algo uie tem pouco a ver com a contengao fechada e tuclo a ver com o infin 10. Alexandre Koyré descreveu muito bem essa transformagio radical do Pensamento, esse triunfo do espaco sobre o lugar, como um movimento "de um mundo fechado para um universo infinito.” Para ele vai ser no séoulo XVII que se substitui a concepgio do mundo como um todo finito fe bem oreenacto, no qual a estrutura espacial incorporava uma hierarquia de Perfeigio e valor, por aquela de um universo indefinido e mesmo infinito, nio Mais unido por subordinagdo natural, mas unificado apenas pela identidade de yeus comp do espago ~ como uma série diferenciada de lugares dentro do mundo ~ pela ‘geometria euclidiana ~ uma extensio essencialmente infinita e homogénea ~e de agora em diante considerada como idéntica ao espago real do mundo, nentes ¢ leis basicos; e a substituigdo da concepgio aristotélica Casey observa que, na realidade, essa concepgio ji existia na Antigiiida- do, tanto na idéia de “chori” platdnica, como no modelo de Filoponus da ( fugar ee pte da emir extensiio espacial tridimensional, Para ele, o que a modernidade traz de sm termos “relacio- ovo vai ser © pensar tanto o espago quanto o lugar nis”, Para isso, mostra como Descartes aproxima “lugar” (que identifica com “posigio”) do “espago”-(que identifica com “tamanho" ou “forma : de algo), propondo a nogdo que Whitehead denominaria “simples loca- ligagio”, que viria a constituir o esquema fundante de toda a ciéneia do século XVII. De acordo com esta visio, qualquer “pedaco de matéria”, isto 6, qualquer corpo fisico, “est onde esta, numa regi enuma duragdo definida e finita de tempo, a parte de qualquer re lessencial das relagSes daquele pedago de matéria com as outras regises do ido definida do espago, espago e as outras duragSes no tempo". Colocando a questao em termos imples localizagao” ¢ a visao para a qual a “posigao” seria cartesianos, ‘que realmente importa em termos de lugar. Para Casey teriamos a partir daqui a apoteose da visio relacional do es: | ago, que teria como conseqiiéncia mais imediata o assimilar do lugar ao ‘espago: mesmo que pensadores importantes do século XVII ainda s tam compelidos a tratar do lugar, ele vai se tornando um tema residual. Um século depois, o lugar é um tema nao mais discutido “e muito menos Jamentado” na filosofia e s6 vai ser retomado no final do séeulo XIX, quan- do Bergson retoma o conceito ao discutir a nogao aristotélica de lugar em sua dissertagdo de 1888. Para o fildsofo, este desaparecimento nao seria fortuito, podendo ser abordado por dois Angulos complementares: prime ASAT SG: , RP B Aerop CULTURAL + Concets, pole, insrumentos , ramente, 0 “lugar” vai ser absorvido no “espago” como o tema dominan- te do discurso eurocéntrico; "comparado com a extensao sem fronteiras ¢ jgualmente distribuida do espago, o lugar vem a parecer meramente paro- quial, uma matéria de consideragio particularmente limitada.” A crescen- {te facilidade com que se passa a usar de forma intercambiavel os termos “espaco” e “lugar” vai ser um sintoma desta “hegemonia absorvente do mundo espacial”. Um segundo nivel, no entanto, poderia ser encontra- da num progressivo desencantamento (e terror mesmo) com a nogéo da {nfinidade espacial, aparecendo aqui um subproduto curioso: ao mesmo tempo em que o lugar se torna uma “parte do espago”, para usarmos a ex- pressio de Newton, o seu “remanescente fantasmatico” se transmuta em "localizagio”, um residuo esvaziado da antiga idéia de lugar, desvestido dde qualquer poténcia que Ihe atribuia, por exemplo, Aristételes. Para essa transformagio, a contribuicéo de Leibniz vai ser decisiva, na medida em que desenvolve a nogao de que o espaco é “algo meramente relativo”: se 0 lespago ¢ o lugar sio ambos inteiramente relacionais, uma mera ordem de Pontos coexistentes, entio nao se retém nenhuma das propriedades ine- entes atribuidas ao lugar pelos filésofos da Antigtiidade ou do inicio da modernidade, as propriedades de conter, sustentar, suster, reunir, situar (situagio” em Leibniz nao situa de fato; ela apenas posiciona num nexo de relagées). Aqui estamos frente ao que Whitehead denominou "Fallacy of Misplaced Concreteness", que significa, neste caso, a perda tanto da particu- Taridade concreta do lugar quanto do absoluto abstrato do espaco infinito dissolugio de ambos no vazio da mera “localizagio”. ‘Com isso, chegamos ao argumento principal que Edward Casey vem desen- volvendo em sua obra: 0 esquecimento da modema filosofia em relagéo a0 ugar, dando-se, ao contratio, prioridade ao tempo e ao espaco geométrico.! Para o fenomendlogo Casey, Descartes, Newton, Leibniz e Kant, entre outros, Aeriam contribuido para a apoteose clo espaco, deixandlo-o desembocar na ge- Cometria analitica, cflculo mateméticoe “descorporificagao” humano, eo lugar ‘ai sendo, neste processo, rebaixaclo e assimilado ao espaco, perdendo os seus Poderes tradicionais de “compreender, abarcar, sustentar, reunir e situar.” Concompassing, holding, sustaining, gathering and situating”). Neste novo uni- ‘verso, universalidade, generalidade e homogeneidade neutra prevalecem so- brea diversidade, unicidade e conexaio: qualquer localizagao é tio boa quanto qualquer outro, na medida em cada uma é apenas um ponto matemético, uma Posiglo calculdvel ou um sitio abstrato num plano ou num mapa, Num livro anterior, Getting Back nto Place: Toward a Renewed Understanding of the ‘Place-World, de 1999, Casey jé apontava a crescente dependéncia moderna ao tempo do reldgio e a cronogramas ¢ lamentava a subserviéncia da nogiio de lu- ugar ea politica da mem {gar tanto A ordem do tempo quanto ao espago geométrico. Haveria, no entanto, “um caminho para fora desse duplo vinculo, que conseguimos nos impor de forma tio inexordvel e tao destrutiva?”, se perguntava o fildsofo entao."* Como lum fenomendlogo, o caminho estaria, a seu ver, numa “reconstituiclo” justax mente daquele elemento mais subestimado - a experiéncia vivida do lugar, a partir da qual desenvolve, entio, uma espécie de “ontologia do estar-no-lugar”” Para Casey, o ponto de partic —feniomenolégico —vai sero fato de que, embora a modernidade seja marcada pelo “esquecimento” do lugar, pelo totalitarismo do pensamento quantitativo-mensurdvel sobre o espago, dominante no Oci= dente, seja na filosofia seja na fisica ou mesmo em disciplinas menos esotéricas ‘como a arquitetura e o planejamento urbano, o mundo em que habitamos efe- tivamente, nosso mundo vivido, vai ser constituido de “lugares” (por exemplo, nossos lugares pessoais,sagrados, etc.) e no de um espago absoluto ou infinite ‘como representadona ciéncia modema. A seu ver, o lugar vai justamente loca- lizar as coisas “em regides cuja mais completa expressdo nao é nem geométrica nem cartografica’, contendo “os priprios elementos eliminados na planiformi- dade da ‘mera localizagao’”:identidade, carster, nuance, historia. Felizmente, © lugar como fendmeno qualitativo nunea teria desaparecido completamente no pensamento ocidental,e tem se reafirmado recentemente em campos como ‘a antropologia e a geografia cultural, e entre pensadoras feministas como Luce Iragaray. O mundo permaneceria, argumenta Casey, “minimamente, e para sempre, um mundo de lugares”, sendo um mundo “sem lugares” tdo “impen- ‘sive quanto um eu sem corpo”. As politicas do lugar Dolores Hayden abre seu importante livro The Power of Place (1995), relatando uma controvérsia entre o socidlogo Herbert J. Gans e a cri- tica de arquitetura Ada Louise Huxtable que, apesar de ter se pasado nos anos 1970, con- tinua atual no campo da preservagao do pa- triménio, colocando-nos questées ainda nao totalmente resolvidas. A polémica comeca quando Gans ataca, no New York Times, a po- Hitiea de preservacio desenvolvida pela Lan- mark Preservation Comission de Nova lorque, ‘apontando que ja que a mesma tendia a “pro- toger as mansoes dos ricos e edificios projeta- dos por arquitetos famosos”, ela preservaria “principalmente a porglo de elite do passado

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