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LIVRO DE DEUS
Segundo o Concílio Vaticano II
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BEAUCHAMP, Paul, Parler d’Écritures Saintes, Paris, Éditions du Seuil, 1987 cap. 1
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Dei Verbum III, 11 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965), São Paulo,
Paulus, 2001
para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja
perfeito, qualificado para qualquer obra boa.”3
Assim, as Escrituras têm um poder e não dão simplesmente um
saber ou informações. É nesse ponto que se reconhece que são inspiradas. E
elas dão a salvação pela fé. Esse poder não tem nada de mágico: um livro não
“pode” nada. Tudo depende de quem o abre e da sua maneira de ler. Todavia,
o que permanece misterioso é que não poderíamos encontrar, sem o livro, o
que nos é dado por ele. Sem o livro ou sem o socorro de outros leitores do
livro.
LIVRO DO HOMEM
Prosseguindo a leitura da constituição Dei Verbum, encontramos:
3
2 Tim 3, 15-17
4
Dei Verbum III, 11
Falando da relação dos autores e de Deus, o concílio diz que Deus
age “neles” e “por meio deles”. “Por meio deles” é a formulação preferida antes
do Concílio Vaticano II: ela traduz um conceito de instrumentalidade. “Neles”
exprime um conceito quase oposto que é o conceito de intimidade. Não se trata
mais de um instrumento mas de um receptáculo. Assim a alma age pelo corpo
porém mais ainda no corpo. O pintor nos atinge pelo se quadro, contudo mais
ainda no seu quadro. Assim, Deus nos fala por Moisés, Jeremías ou Paulo,
todavia mais ainda em Moisés, Jeremías e Paulo. Isso quer dizer que Paulo é
obra de Deus antes que as cartas de Paulo o sejam. A escritura, o livro, sai da
intimidade que une Deus e os autores bíblicos. Isso sugere do modo mais claro
o fato de que Deus, autor da Bíblia, não tira a liberdade do homem, autor da
Bíblia. O desabrochar da liberdade é, pelo contrário, sinal da presença divina. A
preposição “em” aparece no inicio da carta aos Hebreus:
“Depois de ter, por muitas vezes e de muitos modos, falado outrora aos
Pais, nos profetas, Deus, no período final em que estamos, falou-nos a
nós, num Filho a quem estabeleceu herdeiro de tudo, por quem outrossim
criou os mundos.”5
Parece que a intimidade entre o Pai e o Filho e a liberdade do Filho
estão já esboçadas na intimidade e na liberdade outorgadas aos profetas por
Deus até na suas mensagens. E o Filho não pode ser simplesmente um
instrumento. O modo de se revelar no Cristo é já buscado por Deus no seu
modo de revelar-se para aqueles que falam na Bíblia.
Esse conceito de intimidade pode ajudar a entender a segunda
dimensão: porque se diz frequentemente que as Escritura são inspiradas pelo
Espírito Santo. Essa expressão pode ajudar a corrigir o que pode permanecer
externo na imagem do instrumento. O Espírito Santo evoca precisamente a
interioridade, a profundeza e, consequentemente, a doçura da ação divina
sobre os autores da Escritura: uma ação tão doce não somente respeita mas
consagra as liberdades. Pode-se, portanto, dar um nome para essa corrente,
esse e, que reúne Deus e o homem: a tradição lhe dá de Espírito Santo,
espírito de penetração e de bondade. E é porque o Espírito de Deus penetra
5
Heb 1, 1-2, na tradução da TEB, comentada por Beauchamp e mais próxima do original grego
do que a Bíblia de Jerusalém
até esse grau no homem que escreve uma pagina da Bíblia que esse escritor
pode atingir outros homens, ganhá-los, nos ganhar ao Espírito de Deus.
A terceira dimensão introduzida pelo concílio está ligada à analogia
da Encarnação:
6
Dei Verbum III, 13
Encarnação. O concilio acrescenta que o Cristo assumiu a fraqueza da carne
humana: Deus não subtilizou magicamente essa fraqueza. Se a decisão for
paralela na Escritura, é preciso entender que Deus tomou nossa palavra com
fraca. A palavra inspirada permanece uma palavra fraca e frágil. Reconhecer
na fraqueza da Escritura um sinal do abaixamento, da kénose de Deus, é uma
libertação e uma porta aberta para a caridade. É também uma porta estreita e,
se acreditarmos no Evangelho, não se pode passar ao lado.
7
BEAUCHAMP, ibid. p. 34ss
realidade e é o momento em que se revelam os erros do sistema anterior. A
sociedade que lhe sucede, rompendo bruscamente com a autoridade, não
reencontra obrigatoriamente o sentido da realidade. Não temer de errar
representa a perda do sentido de realidade. É preciso ir mais longe:
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2 Pd 3, 15-17
Ora é isso que é a verdade e é isso que escapa às regras e às definições; a
verdade que é o como desse e escapa quando se tenta apanhá-la.
O desejo verdadeiro é o que reconhece que ele não pode capturar
seu objeto e é por isso que o objeto do desejo verdadeiro é Deus em si mesmo
e no que ele criou. As Escrituras falam de Deus. Esse desejo precisa ser total.
O engajamento na leitura bíblica somente faz sentido na medida em que é
correspondido por um engajamento na vida de fé e na busca prática do reino
de Deus. A luz da Escritura não vem por outro caminho. Na Bíblia não se trata
de outra coisa a não ser dessa revolução no homem pela qual entra-se no
temor de Deus até tornar-se discípulo. A Bíblia ajuda muito os que aceitam
essa revolução. De fato, o engajamento da vida no Evangelho faz atravessar
inelutavelmente muitas situações inesperadas e inimagináveis antes. A
Escritura apresenta o tempo inteiro razões de ser surpreendido na idéia que
podíamos ter da ação de Deus: por isso é um grande socorro. A Escritura é o
Deus inesperado: ela prova a fé tanto quanto a vida prova a fé.
“Desejo total” quer dizer também o desejo da Escritura total. O
objeto do conhecimento é o tudo da Escritura, não tanto no seu conteúdo
literal, mas como uma totalidade animada. Por um ato de passagem e de
tradição que alcança sua origem, o povo inteiro é chamado a levantar-se para
tomar o Livro inteiro sem restrição e sem censura porque o povo inteiro é
chamado a viver completamente o Evangelho e a Lei do Cristo.
9
BEAUCHAMP, ibid. p.49ss
único povo, a palavra atravessará as fronteiras, buscará comunidades
espalhadas no mundo e se trocará com elas.
Num outro nível, a palavra alimenta-se de contrastes e de
contradições e é o que nos desconcerta. Adotar as Escrituras judaicas significa
declarar-se um único corpo com os homens que as escreveram. O fato de que
dois povos, o antes de Cristo e o depois de Cristo, se alcançam significa que
aos dois povos correspondem dois livros e cada vez uma pluralidade de
testemunhas e cada vez não um livro mas uma biblioteca. Outra coisa
impressionante: os dois testamentos olham para Jesus. Não existe porém livro
de Jesus Cristo. Se diz que as testemunhas são múltiplas e que Jesus é um.
Mas quem é um não deixou vestígios diretos: é mais silencioso do que suas
testemunhas. Deus quis que Jesus Cristo não fale diretamente mas através de
seu povo. Ele prefere ser conhecido através de uma nuvem de testemunhas e
deixou seus discípulos dar uma versão frequentemente livremente adaptada ao
momento. A unidade das Escrituras decorre do fato de que elas são a palavra
de Deus. Todavia, essa unidade não pode ser comprada barata: ela não deve
diluir as diferenças nem ser imposta a livros diversos como uma uniformidade
ditatorial. É sempre Deus que fala, e sempre nas palavras de um homem. Toda
a Bíblia é escrita para sempre mas sua interpretação leva em consideração os
tempos e as circunstâncias.
Não é surpreendente o fato de que uma mesma mensagem
contenha segmentos sucessivos e contraditórios? Assim, Deus se contradiz
quando comanda para Abraão uma coisa e seu contrário: sacrificar e poupar o
próprio filho. É preciso manter a audácia de uma narrativa que dá a Deus dois
rostos tão diferentes, segundo suas duas fases. Se quisermos permanecer no
nível, por exemplo, da psicologia e interpretar o relato como um itinerário
interior e não ultrapassar a dimensão onde o homem está sozinho consigo
mesmo, achando a Deus no termo de seu esforço, perdemos o contraste com o
estilo da Bíblia para o qual temos duas palavras de Deus. De fato, se Deus
está com Abraão no final, é que estava com ele também no inicio e no meio. É
assim se Deus for Deus. Abraão estava enganado acreditando que Deus
queria a morte. Sim. Porém, a Bíblia prefere ver mesmo no erro de Abraão uma
palavra de Deus, de tanto que ela está segura do fato de que Deus fala em
Abraão, que está presente em Abraão mesmo quando Abraão parece longe de
Deus. Deus fala e o homem fala. Isto acontece em dois tempos onde, cada
vez, Deus e o homem falam. No fato de que existem duas palavras e dois
tempos, pode ser visto o sinal de Deus. Assim é possível superar uma imagem
idolátrica do sacrifício e uma imagem idolátrica do amor. Existem coisas que o
Antigo Testamento quer e que o Novo não quer. Deus quis primeiro o que ele
não quis depois, o que quer dizer que ele já estava presente nas palavras
humanas enfermas, já curando sua enfermidade. O cristão é chamado a
enfrentar uma dupla tentação. Quando ele fala de sacrifício, é tentado a achar
que Deus ama a morte. Quando ele fala do amor de Deus, é tentado a imaginar
Deus a sua imagem. É portanto chamado a passar, ele também, pela duas
fases de Abraão. É chamado a isso pela cruz de Cristo que religa os dois
Testamentos. Quem é crucificado é realmente morto por obediência ao Pai.
Essa morte não está sem relação com a lei do Antigo Testamento, que a morte
de Jesus atravessa inteiramente e transforma. Abraão subindo a montanha
com o filho, Jesus carregando sua cruz: dois gestos que estão vinculados com
a lei antiga e sem os quais a revelação da lei de amor não teria peso. As duas
fases são necessárias. Já o Antigo Testamento inscreve as pegadas da
passagem de uma fase para a outra: torna legível essa passagem, a anuncia
sem tê-la completamente realizada. Assim se vê como pode existir uma
contradição no sucessivo e, porém, verdade. O passado é a espessura e o
relevo do presente. A história de longos séculos e de suas contradições traz
essa espessura para medir nossa vida e nosso modo de ser; ela nos proíbe de
considerar somente a ultima etapa como um resultado sem passado, o que
seria simplesmente considerar a superfície. O Antigo Testamento serve para
não diluir na facilidade o vigor as vezes terrível das palavras bíblicas tais como
amor, perdão ou confiança. Que não sejam os reflexos de nos mesmos, mas a
imagem de Deus! Para isso, é preciso olhar para uma montanha, seja ela Moria
ou o Golgotá.
10
BEAUCHAMP, ibid. p.61ss
profetas, sempre existe um falso profeta por perto e , pelo menos em definitivo,
não existe uma regra para discernir infalivelmente entre os dois11. O paradoxo
do profetismo é que, finalmente, o ouvinte é obrigado a ser profeta. Saibamos
escolher!
Existe as vezes uma ausência de divisórias visíveis. Por exemplo, as
duas narrativas da Criação (Gn 1; Gn 2-3): não existe razão para conciliar, no
nível dos fatos representáveis, as duas narrativas. Em compensação, existe,
num nível muito mais profundo, linhas que se alcançam mutuamente. Um dos
casos principais de pluralidade nos textos é dos quatro evangelhos. Parece que
devemos construir nossa fé a partir da totalidade das Escrituras e que não
somos convidados a escolher para simplificar nosso problema: estamos bem
hoje na situação de leitores dos quatro evangelhos. Porém, os quatro
evangelhos não são a simples somatória de quatro livros. Eles nos convidam a
buscar um ponto onde possamos nos localizar a partir do entendimento dos
quatro, o que é muito diferente. Os quatro evangelhos devem ser recebidos
como uma convocação na direção do Jesus Cristo que silencia entre os livros.
Assim, um depósito dos quatro evangelhos forma-se em nós.
Talvez seja útil que a fé de hoje restabeleça interiormente o
equilíbrio e coloque em primeiro lugar o que está em primeiro lugar: Deus se
doa ao homem inteiramente na pessoa e na ação de Jesus Cristo, verdadeiro
homem e verdadeiro Deus porque ele nos dá Deus. As condições de uma boa
saúde da fé querem que ela se dirija em primeiro lugar em direção do que é
primeiro, do que chacoalhou o mundo desde a primeira pregação. Sem
renunciar aos evangelhos da infância que chamam a inteligência até o extremo
do consentimento, não se pode confundir o acesso primeiro com a revelação
última de um segredo de família. Talvez seja mais justo dizer, nessa matéria
delicada, que todas as partes narrativas do Evangelho (notadamente
lucaniano), as mais ricas em maravilhoso, acabam se tornando obstáculos se
as partes centrais do edifício não são ocupada pelo povo cristão. As partes
centrais são a revelação e o dom do Pai no Filho para uma humanidade nova
no Espírito, a vitória sobre a morte e o perdão dos pecados.
11
Me perdoe Sua Santidade!
A UNIDADE QUE SE CALA
Nisso consiste a unidade do livro múltiplo, plural que é a Escritura.
Contudo ninguém chega de uma vez só à unidade, ao um. Falar do um, é falar
do que tem de maior. “Um” está entre os mais belos nomes de Deus:
“ESCUTA, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o Senhor que é UM!” (Dt 6, 4)12
Quando professamos crer na Trindade, é sabendo que tudo, nela, tem seu
principio na unidade. Nas duas bibliotecas dos dois Testamentos, a
multiplicidade fala. Entre as duas bibliotecas, quem se cala é o Verbo de Deus.
A multiplicidade fala e o Verbo se cala.
Toda escuta é um trabalho do espírito durante o qual nasce uma
palavra interior que é obra do silêncio. Tudo acontece como se tivesse duas
palavras: a que faz barulho e a outra. Da que não faz barulho, se ouve
simplesmente seu sentido. Quando dizemos que a Escritura é palavra de Deus,
ela a é enquanto barulho ou enquanto sentido? O processo da palavra de Deus
inclui a palavra silenciosa que nasce no nosso interior por causa da escuta.
Assim encontramos dois lugares da unidade da Escritura, que são dois lugares
de silêncio. Existe primeiro o silêncio do Verbo de Deus, do logos (palavra).
Existe, depois, nosso silêncio interior quando a escuta faz nascer em nos um
logos. Isso supõe evidentemente que nosso interior seja capaz de aceitar as
surpresas da palavra e que tenhamos aprendido uma leitura de oração. Nesse
momento, os dois lugares de unidade podem tornar-se um só e nos é
prometido um nascimento do Verbo em nos. O Verbo, segundo João, é
nascimento, porque é filho. Nascemos pelo Verbo se nosso interior é aberto
para ele. É nosso segundo nascimento. Assim pelo nascimento em nos, até
nossa palavra, do Verbo de Deus, faz se a unidade da Escritura. É a mesma
palavra silenciosa de Deus que diz a Abraão: “ofereça em sacrifício” e “não
toca o jovem”. Enquanto ela se contradiz, é ainda uma palavra sonora, mas
enquanto Abraão é ele mesmo gerado enquanto Isaac renasce como filho, pela
unidade das duas palavras, é por meio de uma palavra silenciosa que os dois
renascem.
Existe um terceiro lugar do silencio da palavra: a cruz de Jesus
Cristo não está no livro, nem em nenhum dos dois Testamentos. Ela está no
12
Grifado como naTradução TEB
meio dos dois, no silêncio. Ela se cala entre os livros e ela nos dá um sentido.
Paulo fala de “uma linguagem da cruz” (1 Cor 1, 18). Assim, mesmo sabendo
de cor e na ordem as palavras sonoras e audíveis de Jesus, elas não teriam
verdade nenhuma fora desses três lugares do Evangelho: do Verbo eterno, do
Verbo interior em nos e da Cruz. O conformismo ameaça não somente os ritos
como também os gestos de caridade. O que nos salva é somente a
conformidade interior e leal à palavra interior do Verbo. As palavras de Jesus
são de todo jeito cheias de lacunas porque elas nos remetem ao Verbo que se
cala para falar dentro de nos.