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LENDO A BÍBLIA HOJE

Segundo Paul Beauchamp, a questão não é descobrir a Bíblia, mas


entrar nela1. Estar fora ou dentro dela depende de uma conversão interior, de
um entendimento sobre a definição do livro. De qual livro se trata? Existem três
possíveis ângulos de resposta:
— A Bíblia é palavra de Deus e é palavra do homem.
— A Bíblia é um livro múltiplo e é também um livro um. Uma verdade
mas com muitos aspectos e, numa certa medida, contradições.
— O livro de um povo, de uma Igreja (com suas divisões) e, contudo,
uma mensagem universal, o livro de todos os homens.
Um contraste, ou um paradoxo, é sempre algo desconfortável: daí as
tentativas de escapar dele. Assim, a tentação é escolher entre “livro de Deus” e
“livro do homem”; ora justamente, esses dois aspectos não podem ser
excludentes. Nessas formulas, a palavra importante é “e”. Existe uma
dificuldade: todavia a luz vem precisamente do ponto onde se encontra a
dificuldade. Podemos chamar de foco a fonte de luz escondida por essa
conjunção e.

LIVRO DE DEUS
Segundo o Concílio Vaticano II

“Com efeito, a santa Mãe Igreja, por fé apostólica, considera como


sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo
Testamento, com todas as suas partes, porque, tendo sido escritos por
inspiração do Espírito Santo, têm a Deus por autor e como tais foram
confiados à própria Igreja.”2
Esse texto apóia-se sobre o que diz a Escritura, pelo menos no que
diz respeito à expressão “Escrituras inspiradas pelo Espírito Santo”; assim
escreve Paulo:

“Desde a terna infância conheces as Sagradas Escrituras; elas têm o poder


de comunicar-te a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo
Jesus. Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para instruir, para refutar,

1
BEAUCHAMP, Paul, Parler d’Écritures Saintes, Paris, Éditions du Seuil, 1987 cap. 1
2
Dei Verbum III, 11 em DOCUMENTOS DO CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965), São Paulo,
Paulus, 2001
para corrigir, para educar na justiça, a fim de que o homem de Deus seja
perfeito, qualificado para qualquer obra boa.”3
Assim, as Escrituras têm um poder e não dão simplesmente um
saber ou informações. É nesse ponto que se reconhece que são inspiradas. E
elas dão a salvação pela fé. Esse poder não tem nada de mágico: um livro não
“pode” nada. Tudo depende de quem o abre e da sua maneira de ler. Todavia,
o que permanece misterioso é que não poderíamos encontrar, sem o livro, o
que nos é dado por ele. Sem o livro ou sem o socorro de outros leitores do
livro.

LIVRO DO HOMEM
Prosseguindo a leitura da constituição Dei Verbum, encontramos:

“Todavia, para escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu homens, que


utilizou na posse das faculdades e capacidades que tinham, para que,
agindo Deus neles e por meio deles, pusessem por escrito, como
verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que ele quisesse.”4
Assim, os homens são verdadeiros autores da Escritura. Os autores
bíblicos são autores da Bíblia, cada um de sua obra, do mesmo modo que
Jorge Amado é autor de seus romances e Mozart de sua música.
Podemos dizer que algumas coisas na Bíblia vêm do homem e
outras vêm de Deus? O que seria muito obscuro, inexato, chocante na Bíblia
viria somente do homem e seria reservado a Deus o que não pode ser
atacado? A resposta do documento conciliar é absolutamente negativa. A
inspiração toca todos os livros do Antigo e do Novo Testamento e os
verdadeiros autores escreveram tudo e somente o que Deus queria. Não se
pode fazer a parte de Deus e a parte do homem nas Escrituras: essa afirmação
radical parece enorme mas concentra a atenção sobre o e do qual se falava
anteriormente; Deus e o homem.

LIVRO TESTEMUNHO DO ENCONTRO


Para mostrar como se processa esse encontro entre Deus e o
homem, o concílio mostra três dimensões.

3
2 Tim 3, 15-17
4
Dei Verbum III, 11
Falando da relação dos autores e de Deus, o concílio diz que Deus
age “neles” e “por meio deles”. “Por meio deles” é a formulação preferida antes
do Concílio Vaticano II: ela traduz um conceito de instrumentalidade. “Neles”
exprime um conceito quase oposto que é o conceito de intimidade. Não se trata
mais de um instrumento mas de um receptáculo. Assim a alma age pelo corpo
porém mais ainda no corpo. O pintor nos atinge pelo se quadro, contudo mais
ainda no seu quadro. Assim, Deus nos fala por Moisés, Jeremías ou Paulo,
todavia mais ainda em Moisés, Jeremías e Paulo. Isso quer dizer que Paulo é
obra de Deus antes que as cartas de Paulo o sejam. A escritura, o livro, sai da
intimidade que une Deus e os autores bíblicos. Isso sugere do modo mais claro
o fato de que Deus, autor da Bíblia, não tira a liberdade do homem, autor da
Bíblia. O desabrochar da liberdade é, pelo contrário, sinal da presença divina. A
preposição “em” aparece no inicio da carta aos Hebreus:

“Depois de ter, por muitas vezes e de muitos modos, falado outrora aos
Pais, nos profetas, Deus, no período final em que estamos, falou-nos a
nós, num Filho a quem estabeleceu herdeiro de tudo, por quem outrossim
criou os mundos.”5
Parece que a intimidade entre o Pai e o Filho e a liberdade do Filho
estão já esboçadas na intimidade e na liberdade outorgadas aos profetas por
Deus até na suas mensagens. E o Filho não pode ser simplesmente um
instrumento. O modo de se revelar no Cristo é já buscado por Deus no seu
modo de revelar-se para aqueles que falam na Bíblia.
Esse conceito de intimidade pode ajudar a entender a segunda
dimensão: porque se diz frequentemente que as Escritura são inspiradas pelo
Espírito Santo. Essa expressão pode ajudar a corrigir o que pode permanecer
externo na imagem do instrumento. O Espírito Santo evoca precisamente a
interioridade, a profundeza e, consequentemente, a doçura da ação divina
sobre os autores da Escritura: uma ação tão doce não somente respeita mas
consagra as liberdades. Pode-se, portanto, dar um nome para essa corrente,
esse e, que reúne Deus e o homem: a tradição lhe dá de Espírito Santo,
espírito de penetração e de bondade. E é porque o Espírito de Deus penetra

5
Heb 1, 1-2, na tradução da TEB, comentada por Beauchamp e mais próxima do original grego
do que a Bíblia de Jerusalém
até esse grau no homem que escreve uma pagina da Bíblia que esse escritor
pode atingir outros homens, ganhá-los, nos ganhar ao Espírito de Deus.
A terceira dimensão introduzida pelo concílio está ligada à analogia
da Encarnação:

“Portanto, na Sagrada Escritura, salvas sempre a verdade e a santidade de


Deus, manifesta-se a admirável “condescendência” da eterna sabedoria,
“para que aprendamos a inefável benignidade de Deus e a grande
acomodação que usou nas palavras, cuidadosamente solícito e providente
quanto à nossa natureza”. Com efeito, as palavras de Deus, expressas em
línguas humanas, tornam-se intimamente semelhantes à linguagem
humana, como já o Verbo do Eterno Pai, tomando a fraqueza da carne
humana, se tornou semelhante aos homens.”6
O ensinamento do concílio insiste sobre a fraqueza do homem e de
suas palavras porque ele fala em “condescendência” (no sentido literal da
palavra) e de “semelhança”. Durante os séculos modernos, principalmente a
partir do Renascimento e de modo agudo na virada que prepara e inaugura o
século XX, os textos eclesiásticos insistem sobretudo sobre a autoridade
absoluta de uma Escritura que fala ao homem da salvação do alto de uma
montanha, a partir de uma muralha vertical e intransponível. Queria-se assim
responder ao orgulho e ao desprezo de muitos que queriam rejeitar as
Escrituras. Na realidade, existia em muitos deles a honestidade de quem não
queria fechar os olhos às dificuldades de interpretação. Não basta portanto
insistir na autoridade absoluta da Escritura que faz aceitar as palavras da
Escritura como palavra de Deus. Nesse caminho, existe um risco: gelar as
palavras de Deus sob pretexto de respeito e não tratá-las mais como palavras
mas como teoremas! As palavras são dirigidas a alguém, não os teoremas! O
absoluto está nas palavras da Escritura, a condição que permaneçam
verdadeiramente palavras e que se ache o ponto onde elas possam entrar até
o coração da nossa própria palavra.
Onde a doutrina conciliar encontra essa concepção de uma palavra
ao mesmo tempo divina e humana, sem que um elemento suprima o outro? O
concilio responde: o Verbo é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus
em Jesus Cristo; assim a palavra da Escritura é verdadeiramente humana e
verdadeiramente divina. Essa doutrina encontra sua fonte no dogma da

6
Dei Verbum III, 13
Encarnação. O concilio acrescenta que o Cristo assumiu a fraqueza da carne
humana: Deus não subtilizou magicamente essa fraqueza. Se a decisão for
paralela na Escritura, é preciso entender que Deus tomou nossa palavra com
fraca. A palavra inspirada permanece uma palavra fraca e frágil. Reconhecer
na fraqueza da Escritura um sinal do abaixamento, da kénose de Deus, é uma
libertação e uma porta aberta para a caridade. É também uma porta estreita e,
se acreditarmos no Evangelho, não se pode passar ao lado.

LEITURA ESPIRITUAL DA BÍBLIA?


Segundo Beauchamp, a primeira exigência para a leitura bíblica por
um homem de fé seria o engajamento espiritual inteiro da vida7. Isso comporta
algumas características:
— A fé poderia ser chamada de audácia: é audácia que se apóia na
qualidade de filho ou filha de Deus e se livra do servilismo. Pode ser também
chamada de liberdade, não sem lei mas debaixo da lei do Cristo, que é sinal
daqueles que o Cristo livrou do medo, o sinal filial. O que seria do Novo
Testamento se não fosse uma promessa que pode nos encher de alegria hoje,
a promessa de encontrar a Deus na liberdade? É o leitor municiado por essa
promessa que aborda a Escritura. Todo cristão é chamado a conhecer Deus
por Deus. Tudo está suspenso à confiança de ser chamado em nome da fé.
— Sentido de perigo: a primeira conseqüência da liberdade é saber que
existe um perigo e não aceitar nada que camufla esse perigo. De fato, existe
um perigo: qualificar a fé como audácia seria totalmente inconsistente se a fé
não tivesse nada para arriscar. Quando alguém se engaja na leitura da Bíblia,
ele corre o risco de errar, levemente ou pesadamente. Alguns deslocam esse
medo: temem, como o pior dos males, de ser acusados de errar, ou que outros,
superiores ou não, os condenem. É preciso não esquecer que o único mal é de
errar verdadeiramente no que toca realmente à salvação, à fé ou à vida.
Inversamente, pode se crer as vezes que muita gente perdeu o medo de ser
censurado mas as vezes perderam junto o medo de errar. Isso pode ser
explicado pelo passado. Uma sociedade que abusa da autoridade, como o fez
a sociedade eclesial que temos conhecido, pode levar a perder o sentido da

7
BEAUCHAMP, ibid. p. 34ss
realidade e é o momento em que se revelam os erros do sistema anterior. A
sociedade que lhe sucede, rompendo bruscamente com a autoridade, não
reencontra obrigatoriamente o sentido da realidade. Não temer de errar
representa a perda do sentido de realidade. É preciso ir mais longe:

“E convencei-vos de que a longa paciência do Senhor é vossa salvação! É


nesse sentido que Paulo, nosso irmão e amigo, vos escreveu consoante a
sabedoria que lhe foi dada. Aliás, é outrossim o que diz em todas as suas
cartas, em que trata desses assuntos: nelas se encontram passagens
difíceis, cujo sentido pessoas ignorantes e sem formação deturpam, como
também fazem com as demais escrituras, para a própria perdição. Pois
bem, meus amigos, eis vos avisados.”8
O autor da carta constata que os que fazem uma má leitura de Paulo
não lêem melhor as outras Escrituras. Não é culpa nem de Paulo nem das
Escrituras: é deles mesmos; sem instrução nem firmeza, eles arriscam perder-
se. Isso não parece comover especialmente Pedro: ele não parece considerar
a possibilidade de censurar as cartas de Paulo nem limitar sua leitura: quem
poderia impedir que a palavra de Deus seja um escândalo para a “carne”?
— É preciso também considerar a audácia e o conhecimento do perigo
em relação com o conhecimento de Deus. Recomendar duas qualidades
contrárias, e recomendar de desenvolver as duas até o extremo ao mesmo
tempo, pode significar algo de muito atraente e muito difícil. Todo mundo sabe
o que é audácia e o que é prudência. O que não se sabe e o que não fica claro,
é a união dessas duas qualidades. O que não surpreende porque a união das
duas é a verdade: a verdade é algo de muito superior a essas duas qualidades
e, por tão superior e difícil que seja, é ela que atrai nosso desejo. Desejamos
nem a audácia nem a prudência: desejamos a verdade. Audácia e prudência
são visíveis enquanto a verdade é invisível e o nosso desejo o mais verdadeiro
tem sempre um objeto visível. A verdade, sendo superior às qualidades
particulares e suscitando nosso desejo, mostra que é divina. Desejar ler bem
as Escrituras, é desejar algo divino. Por isso, é preciso rezar para ler bem as
Escrituras. O que é divino é obtido pela oração. O que é divino tem também
uma outra propriedade: o que é divino é livre. Todo mundo pode dizer que é
preciso ser audacioso e prudente, duas qualidades contrárias, mas ninguém
consegue dizer como podemos ser ao mesmo tempo audacioso e prudente.

8
2 Pd 3, 15-17
Ora é isso que é a verdade e é isso que escapa às regras e às definições; a
verdade que é o como desse e escapa quando se tenta apanhá-la.
O desejo verdadeiro é o que reconhece que ele não pode capturar
seu objeto e é por isso que o objeto do desejo verdadeiro é Deus em si mesmo
e no que ele criou. As Escrituras falam de Deus. Esse desejo precisa ser total.
O engajamento na leitura bíblica somente faz sentido na medida em que é
correspondido por um engajamento na vida de fé e na busca prática do reino
de Deus. A luz da Escritura não vem por outro caminho. Na Bíblia não se trata
de outra coisa a não ser dessa revolução no homem pela qual entra-se no
temor de Deus até tornar-se discípulo. A Bíblia ajuda muito os que aceitam
essa revolução. De fato, o engajamento da vida no Evangelho faz atravessar
inelutavelmente muitas situações inesperadas e inimagináveis antes. A
Escritura apresenta o tempo inteiro razões de ser surpreendido na idéia que
podíamos ter da ação de Deus: por isso é um grande socorro. A Escritura é o
Deus inesperado: ela prova a fé tanto quanto a vida prova a fé.
“Desejo total” quer dizer também o desejo da Escritura total. O
objeto do conhecimento é o tudo da Escritura, não tanto no seu conteúdo
literal, mas como uma totalidade animada. Por um ato de passagem e de
tradição que alcança sua origem, o povo inteiro é chamado a levantar-se para
tomar o Livro inteiro sem restrição e sem censura porque o povo inteiro é
chamado a viver completamente o Evangelho e a Lei do Cristo.

DEUS FALA EM VÁRIOS TEMPOS: O PLURAL DO


SUCESSIVO
Que a Bíblia seja ao mesmo tempo múltipla e uma traz luz e
dificuldades9.
Existe primeiro o plural do sucessivo. O plural está inscrito na
natureza da palavra: falar significa usar várias palavras, várias frases na
duração. Falar com um homem significa acompanhá-lo com palavras desde
sua infância até sua idade adulta: as palavras mudam de sentido e de
entonação. O que dizer da mudança quando se trata de falar para um povo,
através séculos de História! Enfim, após ter dirigido sua mensagem para um

9
BEAUCHAMP, ibid. p.49ss
único povo, a palavra atravessará as fronteiras, buscará comunidades
espalhadas no mundo e se trocará com elas.
Num outro nível, a palavra alimenta-se de contrastes e de
contradições e é o que nos desconcerta. Adotar as Escrituras judaicas significa
declarar-se um único corpo com os homens que as escreveram. O fato de que
dois povos, o antes de Cristo e o depois de Cristo, se alcançam significa que
aos dois povos correspondem dois livros e cada vez uma pluralidade de
testemunhas e cada vez não um livro mas uma biblioteca. Outra coisa
impressionante: os dois testamentos olham para Jesus. Não existe porém livro
de Jesus Cristo. Se diz que as testemunhas são múltiplas e que Jesus é um.
Mas quem é um não deixou vestígios diretos: é mais silencioso do que suas
testemunhas. Deus quis que Jesus Cristo não fale diretamente mas através de
seu povo. Ele prefere ser conhecido através de uma nuvem de testemunhas e
deixou seus discípulos dar uma versão frequentemente livremente adaptada ao
momento. A unidade das Escrituras decorre do fato de que elas são a palavra
de Deus. Todavia, essa unidade não pode ser comprada barata: ela não deve
diluir as diferenças nem ser imposta a livros diversos como uma uniformidade
ditatorial. É sempre Deus que fala, e sempre nas palavras de um homem. Toda
a Bíblia é escrita para sempre mas sua interpretação leva em consideração os
tempos e as circunstâncias.
Não é surpreendente o fato de que uma mesma mensagem
contenha segmentos sucessivos e contraditórios? Assim, Deus se contradiz
quando comanda para Abraão uma coisa e seu contrário: sacrificar e poupar o
próprio filho. É preciso manter a audácia de uma narrativa que dá a Deus dois
rostos tão diferentes, segundo suas duas fases. Se quisermos permanecer no
nível, por exemplo, da psicologia e interpretar o relato como um itinerário
interior e não ultrapassar a dimensão onde o homem está sozinho consigo
mesmo, achando a Deus no termo de seu esforço, perdemos o contraste com o
estilo da Bíblia para o qual temos duas palavras de Deus. De fato, se Deus
está com Abraão no final, é que estava com ele também no inicio e no meio. É
assim se Deus for Deus. Abraão estava enganado acreditando que Deus
queria a morte. Sim. Porém, a Bíblia prefere ver mesmo no erro de Abraão uma
palavra de Deus, de tanto que ela está segura do fato de que Deus fala em
Abraão, que está presente em Abraão mesmo quando Abraão parece longe de
Deus. Deus fala e o homem fala. Isto acontece em dois tempos onde, cada
vez, Deus e o homem falam. No fato de que existem duas palavras e dois
tempos, pode ser visto o sinal de Deus. Assim é possível superar uma imagem
idolátrica do sacrifício e uma imagem idolátrica do amor. Existem coisas que o
Antigo Testamento quer e que o Novo não quer. Deus quis primeiro o que ele
não quis depois, o que quer dizer que ele já estava presente nas palavras
humanas enfermas, já curando sua enfermidade. O cristão é chamado a
enfrentar uma dupla tentação. Quando ele fala de sacrifício, é tentado a achar
que Deus ama a morte. Quando ele fala do amor de Deus, é tentado a imaginar
Deus a sua imagem. É portanto chamado a passar, ele também, pela duas
fases de Abraão. É chamado a isso pela cruz de Cristo que religa os dois
Testamentos. Quem é crucificado é realmente morto por obediência ao Pai.
Essa morte não está sem relação com a lei do Antigo Testamento, que a morte
de Jesus atravessa inteiramente e transforma. Abraão subindo a montanha
com o filho, Jesus carregando sua cruz: dois gestos que estão vinculados com
a lei antiga e sem os quais a revelação da lei de amor não teria peso. As duas
fases são necessárias. Já o Antigo Testamento inscreve as pegadas da
passagem de uma fase para a outra: torna legível essa passagem, a anuncia
sem tê-la completamente realizada. Assim se vê como pode existir uma
contradição no sucessivo e, porém, verdade. O passado é a espessura e o
relevo do presente. A história de longos séculos e de suas contradições traz
essa espessura para medir nossa vida e nosso modo de ser; ela nos proíbe de
considerar somente a ultima etapa como um resultado sem passado, o que
seria simplesmente considerar a superfície. O Antigo Testamento serve para
não diluir na facilidade o vigor as vezes terrível das palavras bíblicas tais como
amor, perdão ou confiança. Que não sejam os reflexos de nos mesmos, mas a
imagem de Deus! Para isso, é preciso olhar para uma montanha, seja ela Moria
ou o Golgotá.

UMA PALAVRA A VÁRIAS VOZES: O PLURAL DO


SIMULTÂNEO
Depois do plural do sucessivo, na ordem do tempo, achamos o que
é plural junto, o plural do simultâneo, como aquele formado pela várias vozes
de um coro ou várias cores de um quadro10. Se a pluralidade forma um acordo,
é harmonioso; caso contrário, destoa. Em relação à Bíblia, a lei que deve ser
seguida é a mesma, seja a diferença no sucessivo ou no simultâneo. A lei é
dupla:
— É preciso postular a harmonia última.
— Não se deve apressar a concordância, mas, pelo contrário, aceitar
primeiro a discordância, o pelo menos o que aparece como tal para nossos
ouvidos e nossos olhos.
Existem divisórias visíveis quando a diferença dos autores
corresponde à diferença do nome dado ao livro ou quando se vê claramente
que se trata de duas classes de escritos. As diferenças podem ser muito fortes.
A Lei diz com minúcias como cumprir os sacrifícios no culto legítimo, os
Profetas declaram frequentemente que Deus não quer sacrifícios. Antes de
saber se existe uma contradição entre as duas séries de portadores da palavra
de Deus, é preciso primeiro situá-los. Precisa oferecer sacrifícios? A Lei
responde afirmativamente de um modo que parece genérico, absoluto,
universal porque é o estilo da Lei. Os Profetas têm por função de criticar, de
buscar o que dá sentido ao sacrifício nas circunstâncias concretas. Não parece,
contudo, que esse tratamento polifônico tenha como escopo de levar a uma
escolha entre a Lei e os Profetas. Não se pode reconstruir uma Bíblia onde
falariam somente os Profetas e o fato de que a Bíblia não foi transmitida para
nos amputada, é um dado que deve fazer nos refletir. Devemos olhar o mundo
com um duplo binóculo, o da Lei e o dos Profetas, sem fazer de conta que não
são diferentes, sem rejeitar nada.
Na realidade, os textos bíblicos não preparam nossas decisões, não
contêm oráculos dizendo respeito à nossa ação prática. Eles constroem para
nos um mundo no meio do qual nos mesmos decidimos; eles desenham um
horizonte. A decisão não depende de nossa leitura; contudo, não somos mais
os mesmos depois de ter lido. A literatura sapiencial diz que “existe um tempo
para tudo” (Ecl); a função dos profetas é designar o tempo, dar uma dimensão
ao “agora”; todavia, quando os profetas viraram livro, eles não designam mais
nosso “agora”! Precisamos de profetas, mas quando existe um verdadeiro

10
BEAUCHAMP, ibid. p.61ss
profetas, sempre existe um falso profeta por perto e , pelo menos em definitivo,
não existe uma regra para discernir infalivelmente entre os dois11. O paradoxo
do profetismo é que, finalmente, o ouvinte é obrigado a ser profeta. Saibamos
escolher!
Existe as vezes uma ausência de divisórias visíveis. Por exemplo, as
duas narrativas da Criação (Gn 1; Gn 2-3): não existe razão para conciliar, no
nível dos fatos representáveis, as duas narrativas. Em compensação, existe,
num nível muito mais profundo, linhas que se alcançam mutuamente. Um dos
casos principais de pluralidade nos textos é dos quatro evangelhos. Parece que
devemos construir nossa fé a partir da totalidade das Escrituras e que não
somos convidados a escolher para simplificar nosso problema: estamos bem
hoje na situação de leitores dos quatro evangelhos. Porém, os quatro
evangelhos não são a simples somatória de quatro livros. Eles nos convidam a
buscar um ponto onde possamos nos localizar a partir do entendimento dos
quatro, o que é muito diferente. Os quatro evangelhos devem ser recebidos
como uma convocação na direção do Jesus Cristo que silencia entre os livros.
Assim, um depósito dos quatro evangelhos forma-se em nós.
Talvez seja útil que a fé de hoje restabeleça interiormente o
equilíbrio e coloque em primeiro lugar o que está em primeiro lugar: Deus se
doa ao homem inteiramente na pessoa e na ação de Jesus Cristo, verdadeiro
homem e verdadeiro Deus porque ele nos dá Deus. As condições de uma boa
saúde da fé querem que ela se dirija em primeiro lugar em direção do que é
primeiro, do que chacoalhou o mundo desde a primeira pregação. Sem
renunciar aos evangelhos da infância que chamam a inteligência até o extremo
do consentimento, não se pode confundir o acesso primeiro com a revelação
última de um segredo de família. Talvez seja mais justo dizer, nessa matéria
delicada, que todas as partes narrativas do Evangelho (notadamente
lucaniano), as mais ricas em maravilhoso, acabam se tornando obstáculos se
as partes centrais do edifício não são ocupada pelo povo cristão. As partes
centrais são a revelação e o dom do Pai no Filho para uma humanidade nova
no Espírito, a vitória sobre a morte e o perdão dos pecados.

11
Me perdoe Sua Santidade!
A UNIDADE QUE SE CALA
Nisso consiste a unidade do livro múltiplo, plural que é a Escritura.
Contudo ninguém chega de uma vez só à unidade, ao um. Falar do um, é falar
do que tem de maior. “Um” está entre os mais belos nomes de Deus:
“ESCUTA, Israel! O Senhor, nosso Deus, é o Senhor que é UM!” (Dt 6, 4)12
Quando professamos crer na Trindade, é sabendo que tudo, nela, tem seu
principio na unidade. Nas duas bibliotecas dos dois Testamentos, a
multiplicidade fala. Entre as duas bibliotecas, quem se cala é o Verbo de Deus.
A multiplicidade fala e o Verbo se cala.
Toda escuta é um trabalho do espírito durante o qual nasce uma
palavra interior que é obra do silêncio. Tudo acontece como se tivesse duas
palavras: a que faz barulho e a outra. Da que não faz barulho, se ouve
simplesmente seu sentido. Quando dizemos que a Escritura é palavra de Deus,
ela a é enquanto barulho ou enquanto sentido? O processo da palavra de Deus
inclui a palavra silenciosa que nasce no nosso interior por causa da escuta.
Assim encontramos dois lugares da unidade da Escritura, que são dois lugares
de silêncio. Existe primeiro o silêncio do Verbo de Deus, do logos (palavra).
Existe, depois, nosso silêncio interior quando a escuta faz nascer em nos um
logos. Isso supõe evidentemente que nosso interior seja capaz de aceitar as
surpresas da palavra e que tenhamos aprendido uma leitura de oração. Nesse
momento, os dois lugares de unidade podem tornar-se um só e nos é
prometido um nascimento do Verbo em nos. O Verbo, segundo João, é
nascimento, porque é filho. Nascemos pelo Verbo se nosso interior é aberto
para ele. É nosso segundo nascimento. Assim pelo nascimento em nos, até
nossa palavra, do Verbo de Deus, faz se a unidade da Escritura. É a mesma
palavra silenciosa de Deus que diz a Abraão: “ofereça em sacrifício” e “não
toca o jovem”. Enquanto ela se contradiz, é ainda uma palavra sonora, mas
enquanto Abraão é ele mesmo gerado enquanto Isaac renasce como filho, pela
unidade das duas palavras, é por meio de uma palavra silenciosa que os dois
renascem.
Existe um terceiro lugar do silencio da palavra: a cruz de Jesus
Cristo não está no livro, nem em nenhum dos dois Testamentos. Ela está no

12
Grifado como naTradução TEB
meio dos dois, no silêncio. Ela se cala entre os livros e ela nos dá um sentido.
Paulo fala de “uma linguagem da cruz” (1 Cor 1, 18). Assim, mesmo sabendo
de cor e na ordem as palavras sonoras e audíveis de Jesus, elas não teriam
verdade nenhuma fora desses três lugares do Evangelho: do Verbo eterno, do
Verbo interior em nos e da Cruz. O conformismo ameaça não somente os ritos
como também os gestos de caridade. O que nos salva é somente a
conformidade interior e leal à palavra interior do Verbo. As palavras de Jesus
são de todo jeito cheias de lacunas porque elas nos remetem ao Verbo que se
cala para falar dentro de nos.

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