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DUMOUCHEL1: A AMBIVALÊNCIA DA ESCASSEZ

ESCASSEZ E VIOLÊNCIA2
Os economistas e os pensadores da tradição liberal, como Hume,
Locke e Malthus, explicam geralmente a violência, o vício e a miséria por uma
causa única: a escassez. Na ideologia alemã, Marx e Engels afirmam que o
desenvolvimento das forças de produção é a condição necessária para o fim da
luta de classes e o acontecimento do comunismo mundial, senão “é a escassez
que se generalizará, e, com a penúria, é a luta pelo necessário que
recomeçaria e se cairia de novo no mesmo velho lamaçal.” Segundo os
advogados da aldeia global e da sociedade pós-industrial, os homens só
poderão comunicar verdadeiramente quando serão livres do domínio das
coisas.
Debaixo dessas formulas, existe um pensamento simples e único: a
necessidade suspende a moral. Os homens não escolhem o mal contra o bem,
eles não escolhem. A necessidade segura os homens nas sua tela. A
parcimônia da natureza os condena à guerra, a escassez força os desejos a
convergir para os mesmos objetos e cria rivalidades necessárias entre os
homens. Aqueles que acreditam na convergência entre o progresso material e
o progresso moral acreditaram nisso por essa razão. Essa crença ficou tão
forte que não existe a necessidade de um grande esforço para pensar que a
responsabilidade do estado das coisas supera de longe a responsabilidade dos
homens na violência e nas infelicidades atuais. Essa idéia tinha tudo para
seduzir os economistas que acabavam de descobrir os meios de vencer a
miséria e só podiam se alegrar da complementaridade natural entre a
abundância e a paz.
Existe uma outra razão que atraiu os economistas e os pensadores
liberais na direção de uma explicação da violência e do mal em geral pela
necessidade e suas carências. Nas suas construções teóricas, a necessidade e

1
DUMOUCHEL, Paul et DUPUY, Jean-Pierre, L´enfer des choses, René Girard et
la logique de l´économie, Paris, Éditions du Seuil, 1979, II l’ambivalence de la rareté, a cura de
Paul Dumouchel
2
Ibid. cap.1 da segunda parte
as carências aparecem na forma de escassez. A lei da escassez é a restrição
primeira dos sistemas econômicos, o fato econômico fundamental. Ora, uma
explicação da violência pela escassez possui uma evidência quase
matemática. Aceita essa explicação, é simples mostrar que as trocas, meios da
futura abundância, são os melhores fundamentos da paz.
Considerando que o problema fundamental de toda política é o da
paz interna e o da defesa externa, entende-se porque a economia, fonte da paz
pela futura abundância, adquiriu um valor político prodigioso. Por outro lado, o
pensamento político tradicional sempre acreditou que a ordem gera a ordem e
que da desordem vem a desordem. Em termos tradicionais, o problema político
essencial é de manter a ordem em cada parte da sociedade afim de que o tudo
seja ordenado, de impedir que uma parte do corpo social explore ou destrua
uma outra, e de assegurar a reciprocidade das obrigações. Ligando a
desordem à escassez e a violência à limitação dos recursos, o pensamento
econômico faz do crescimento econômico e da generalização das trocas, da
liberdade de empreender, os melhores fundamentos da paz. Transformando a
inveja, a cobiça e a vaidade em motores do crescimento econômica, a
economia transforma todas essas rivalidades verdadeiras e essas violências
potenciais e meios de paz interna. Os autores de desordens se tornam fatores
de ordem. É preciso deixar fluir a vaidade, a inveja, a ganância, a exploração, a
opressão do fraco pelo forte se isso favorecer o crescimento. Não só a
explicação da violência pela escassez rompe os laços que uniam a desordem
privada à desordem pública, mas ela metamorfosea as rivalidades em meios de
paz interna.
Essa dissociação significa também que o homem político não tem
mais que fazer respeitar as leis, os costumes e os hábitos antigos que
garantiam a moralidade de cada cidadão para assegurar a ordem pública. Ela
sanciona a inutilidade social da moral. A eficácia das trocas a produzir a paz
permite que a política dispense a economia da moral. É a eficácia política da
economia que questiona a moral tradicional. Os vínculos entre a escassez, o
vício, a miséria e a violência, consagrando a inutilidade social da moral
tradicional, permitem que a economia adquire um valor moral próprio. Se a
inveja, a cobiça, a ganância forem os motores da atividade econômica, é
porque a limitação dos recursos força cada um a buscar seu interesse próprio.
Se as trocas econômicas são frequentemente relações de forças, é porque a
escassez gera a concorrência dos desejos. Os sentimentos duvidosos que
estão na origem das atividades econômicas não demonstrar a maldade dos
homens, porque são conseqüências do estado do mundo. Só o crescimento
econômico pode dar um fim nisso. O papel político da economia, assegurar a
ordem assumindo o problema da escassez, causa da violência, fundamenta o
valor moral da economia e arruína a eficácia social da moral tradicional. É
porque a riqueza é produtora de ordem que a economia tornou-se um ideal
social, pôde absorver o domínio político e relegar a moral na interioridade. A
explicação da violência pela escassez era necessária para que fosse
assimilada a brutalidade das relações comerciais e para que a competitividade
da economia não fosse percebida como causa da desordem.
A partilha dos recursos escassos entre indivíduos racionais
interessados em promover seu próprio interesse é a situação que parece
fundar a economia, o paradigma dos homines oeconomici que tomam decisões
coerentes em função de suas preferências e dos problemas de escolhas e de
arbitragem impostos pela escassez dos recursos no nosso universo. Dessa
situação podem surgir dois desfechos.
1. da partilha de recursos escassos entre indivíduos racionais
interessados em satisfazer suas necessidades e seus desejos
surge a ordem econômica: a escassez leva os homens a
trabalhar e os incita a trocar. É a motivação originária do
comércio que leva para a paz.
2. dessa mesma partilha dos recursos escassos, entre esses
mesmos indivíduos racionais provêm os conflitos, as guerras,
a destruição dos já escassos recursos, o círculo vicioso da
violência e da miséria.
Esses dois desfechos da situação originária são igualmente
racionais e necessários. Se imaginarmos os homines oeconomici não como
monstros de egoísmo mas indivíduos racionais interessados em promover seu
interesse próprio, é impossível determinar qual solução eles adotarão. A
violência e a ordem econômica são indistinguíveis. Uma situação idêntica funda
uma e o outro. A situação originária que parece instituir a economia é
“indecidível”, porque dela pode nascer tanto a violência quanto a economia. O
paradoxo da economia é que ela é incapaz de se diferenciar da violência.
A indecisão da situação original da partilha dos recursos escassos
deve ser chamada de ambivalência da escassez3. A escassez é marcada de
um duplo valor, ao mesmo tempo causa da violência e fundamento da
economia. Essa ambivalência da escassez é fundadora e mora no coração do
projeto econômico. O raciocínio que estabelece o valor político e moral da
economia só se sustenta se a escassez aparece como ocasião de desordem e
fundamento da ordem, se a escassez é ambivalente.
Porém, essa fundação deve ser uma fundação escondida e essa
presença ativa da ambivalência da escassez dentro dos textos dos
economistas deve ser invisível. Se os dois valores contraditórios da escassez
são indispensáveis para o advento da economia, a invisibilidade da
ambivalência é também necessária: sem ela a incerteza invade todo o edifício.
Quando enxergamos a ambivalência da escassez, as pretensões da economia
de assegurar a ordem parecem vãs. Seu nascimento a partir do paradigma dos
homines oeconomici cada um buscando promover seu próprio interesse num
universo onde os recursos são limitados se revela incompreensível. A
ambivalência da escassez não pode ser confessada sem que seja percebida a
identidade da violência e da economia.
Uma única solução pode satisfazer o duplo imperativo da presença /
ausência da ambivalência da escassez. Afim de permitir a atividade dos dois
valores da escassez sem tornar manifesta a ambivalência do conceito, basta
distinguir a escassez dela mesma e de atribuir a uma escassez a violência e à
outra a economia. Um princípio diferente da violência e da ordem deve servir

3
Vamos lembrar a definição de aporia, segundo LALANDE, André, Vocabulário
técnico e crítico da filosofia, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA, 1993,
verbete ambivalência no suplemento: “Que tem dois valores opostos. Termo introduzido,
parece, por Bleuler e cujo uso Freud consagrou. Dizia se primitivamente das paixões que dão
àquele que as experimenta a impressão de sentir dois sentimentos contrários, (...) ou sujeitos a
transformarem-se bruscamente no seu contrário (...). Estando generalizado o uso deste termo,
foi aplicado a diversos outros fatos mais ou menos análogos, como a presença num mesmo
indivíduo de dois traços de caráter opostos, ou mesmo à afirmação ou à negação simultâneas
ou alternantes de uma mesma asserção, em certas doenças mentais.”
para diferenciar os dois lados do conceito se se quer deixar desapercebido a
arbitrariedade do processo segundo o qual se dissocia os dois valores da
ambivalência escassez. Esse princípio não pode ser outro que o princípio
constitutivo do próprio conceito de escassez: a quantidade.
Entre a situação fundadora da economia e as condições que geram
a violência, não existe uma identidade paradoxal, segundo a tradição liberal.
São duas situações semelhantes, mas não idênticas. Uma diferença ao mesmo
tempo mínima, muito grande e significativa as separa. Uma situação de
escassez moderada ou relativa funda a economia. A extrema escassez, a
necessidade, gera a violência. As duas situações são semelhantes: somente a
quantidade de bens e os recursos disponíveis as diferencia. Essa diferença
matemática e quantificável testemunha da simplicidade e da coerência da
reflexão econômica. É justamente a lei da escassez, o fato econômico
fundamental que distingue a violência da ordem econômica, e funda essa
ordem. A passagem do menos ao mais, o crescimento da quantidade real de
bens e de recursos disponíveis separam a economia da violência. A lei da
escassez instaura a ordem econômica. A distinção entre a escassez relativa e
a escassez extrema mantém separada as duas faces da ambivalência. Ela
evita toda confusão possível entre a violência e a economia, permitindo assim a
coexistência das duas nos textos dos economistas. Ela preenche as condições
da eficácia política da economia. Graças a ela, a solução econômica ao
problema da violência só reproduz o gesto instaurador da ordem econômica.
Assim como a passagem do menos ao mais, da extrema à relativa escassez,
separa a violência da economia, assim a passagem do mais ao ainda mais, da
escassez relativa à abundancia, distingue a competição comercial da paz sem
partilha e da comunicação verdadeira. A meio caminho entre a extrema
escassez e a abundancia feliz e pacífica, a escassez relativa parece fornecer
uma caução racional à ambigüidade ligada às atividades econômicas e às
relações comerciais. A distinção entre a extrema escassez e a escassez
relativa da conta da proximidade entre a violência e a economia e da distancia
absoluta que as separa.
Paul Samuelson, autor de um tratado clássico de introdução à
analise econômica, escreve a propósito da lei da escassez:
“No caso de ser possível produzir-se um volume infinito de todos
os bens ou ser possível satisfazer completamente as necessidades
humanas, então não teria importância se se produzisse uma quantidade
exagerada de qualquer bem.(...) Nessa situação, deixariam de existir bens
econômicos, isso é, bens que fossem relativamente escassos. E, muito
provavelmente, já não haveria necessidade de se realizarem estudos
econômicos ou de se “economizar”. (...) As sociedades industriais
modernas parecem realmente muito ricas quando comparadas com os
países atrasados ou com os séculos anteriores. No entanto, os níveis de
produção mais altos parecem arrastar consigo níveis de consumos cada
vez mais exigentes. A escassez permanece como um fato real. As pessoas
sentem que querem e que “precisam” de bens como canalizações de água
e esgotos, aquecimento central, frigoríficos, instrução, filmes, telefonias
etc.”4

Quando Samuelson diz que as pessoas “sentem” que precisam, ele


se recusa a emitir qualquer julgamento quanto à validade desse “sentir” (ter a
impressão) porque considera os fatos sociais como coisas e as necessidades
expressas pelos atores econômicos como dados objetivos que são verdadeiros
para eles e sobre os quais não se pode emitir julgamentos de valor. Dizer como
Samuelson que “níveis de produção mais elevados implicam invariavelmente
níveis de consumo mais elevados” pode significar dizer uma banalidade
insignificante, seja, acrescentando que “o público sente que ele deseja e
precisa” é estabelecer entre a quantidade de bens acessíveis e as
necessidades dos homens uma relação de causalidade circular. Se os homens
inventam artes e indústrias, trabalham e trocam bens, é para satisfazer suas
necessidades, reduzir o espaço que existe entre a dimensão de suas
necessidades e a quantidade de bens para os quais eles têm acesso. São as
necessidades que determinam os níveis de produção e a elevação desse
níveis. Contudo, se níveis de produção mais elevados dão para as pessoas a
impressão que eles “desejam e precisam”, é a quantidade de bens produzidos
que determinam diretamente a dimensão das necessidades. Estamos diante de

4
SAMUELSON, Paul A., NORDHAUS, William D., Economia, Lisboa, McGraw-Hill,
1988, 12ªedição, cap. 2 pg. 31
um fenômeno de causalidade circular onde as necessidades determinam a
quantidade de bens necessários e a quantidade de bens produzidos determina
as necessidades; onde a elevação dos níveis de produção arrasta o aumento
das necessidades e o aumento das necessidades exige um novo aumento dos
níveis de produção.
A determinação recíproca da produção pelas necessidades e das
necessidades pelos níveis de produção significa que é impossível de reduzir o
espaço que separa os bens e os recursos acessíveis, dos desejos. A
quantidade de bens e de recursos disponíveis pode crescer infinitamente, e,
como ela determina diretamente a dimensão das necessidades, a restrição da
escassez permanece não mudada. A escassez nunca é reduzida, é
perpetuamente reconduzida.
O mecanismo da causalidade circular que liga a produção e as
necessidades infirma a idéia clássica da escassez como limitação dos recursos
e parcimônia da natureza. Torna impossível toda distinção entre uma extrema
escassez e uma escassez moderada. A escassez não corresponde a alguma
quantidade real de bens e de recursos disponíveis. Não existe aritmética da
violência. A paz não decorre da abundancia nem a guerra da penúria. A
situação originária é indecidível: a escassez é ambivalente e tanto pode
fundamentar a economia como pode gerar a violência. A aporia5 da escassez
significa a eterna proximidade da violência. Ela significa que a indecisão da
situação originária está profundamente ligada para sempre à economia,
qualquer que seja a quantidade de bens e de recursos disponíveis, qualquer
que seja o crescimento.
A aporia e a ambivalência se completam. A distinção aporética entre
a extrema escassez e a escassez relativa esconde a ambivalência da
escassez. Ela permite a coexistência dos dois valores da escassez nos textos
dos economistas fundamentando assim a aceitação da economia como ideal

5
Vamos lembrar a definição de aporia, segundo LALANDE, André, Vocabulário
técnico e crítico da filosofia, São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora LTDA, 1993,
verbete aporia: “Em Aristóteles, dificuldade em resolver; “apresentação de duas opiniões
contrárias e igualmente racionaisem resposta a uma mesma questão”. Nos modernos, a
palavra é frequentemente tomada num sentido mais forte: dificuldade lógica de onde se não
pode sair; objeção ou problema insolúveis.”
social. A ambivalência oculta também a aporia. O valor moral e político que
atribuímos à economia nos impede de tomar a justa medida da determinação
recíproca das necessidades pelos níveis de produção e dos níveis de produção
pelas necessidades. A ambivalência da escassez dissimula a eterna vaidade
de um crescimento que se tornou hoje suicida no nível da integração do
homem no seu ambiente natural.
O discurso político sobre a economia nos ensina que a redução do
crescimento (a escassez) gera a desordem e a desorganização social, os
conflitos e a violência. Ele nos ensina também a ambivalência da
desigualdades (da escassez), ao mesmo tempo fontes de motivação
econômica e fonte de violência, ao mesmo tempo garantias de paz e de
desordens latentes.
O discurso político sobre a economia, sobre as desigualdades e o
crescimento imita e retoma do seu modo o discurso dos economistas sobre a
escassez e a violência. Liga de novo a aporia com a ambivalência. O ritmo
particular do crescimento proposto pelos homens políticos, como solução
precária permitindo ativar as virtudes positivas das desigualdades em mobilizar
seus efeitos conflituosos se parece com a escassez moderada dos
economistas. Enquanto a utilização das desigualdades como motivação
econômica do crescimento remete à ambivalência da escassez, porque é o
crescimento, o aumento da quantidade real de bens e de recursos disponíveis
que é proposto, em última análise, para acabar com as desigualdades.
Assim surge uma tese estranha: a economia nos protege de nossa
própria violência. Ela impede nossos conflitos de destruir a sociedade. Ela
previne o suicídio social do Ocidente. O acesso da economia a um valor moral
e político é contemporâneo da invasão de todas as relações sociais e de todas
as atividades humanas pela lógica da economia. A gênese e o desabrochar da
ideologia econômica se efetua paralelamente à transformação da sociedade
numa sociedade de mercado.
ESCASSEZ E COMUNIDADE6
0 que é a escassez? A definição clássica da escassez, como
limitação dos recursos, quantidade de bens e de recursos disponíveis, e como
parcimônia da natureza, não satisfaz mais. O mecanismo da causalidade
circular que liga as necessidades e os níveis de produção dissipou a ilusão
naturalista da quantidade real. Por outro lado, rejeitar a quantidade real não
significa recusar de ver a pressão da fome e das restrições exercidas pelo
meio-ambiente sobre numerosas comunidades? Rejeitar a parcimônia da
natureza como um mito naturalista não significa confessar a ignorância de
povos ricos protegidos contra a carestia e catástrofes naturais pela
industrialização e o prodigioso desenvolvimento das forças produtivas no
Ocidente moderno?
São as sociedades modernas e as mais ricas do globo que se
convenceram da proposta da escassez dos recursos e da insuficiência dos
meios econômicos. É possível demonstrar a partir de exemplos de extremas
limitações pela fome, que não existe uma experiência primitiva da escassez.
Acreditamos, espontaneamente, que em última instância, as condições
materiais e as forças produtivas determinam a economia e, além dela, a
estrutura social inteira. Marshall Salins mostra que as sociedades primitivas
testemunham de uma realidade diferente 7 . Totalmente oculta na estrutura
social, a economia primitiva é orientada primeiramente para a função geral
dessa estrutura. Imperativos econômicos não existem, ou se existirem, como
dados fundamentais da natureza humana, a organização social é assim feita
que eles não podem aparecer. Estruturalmente, a economia primitiva não
existe. Segundo Sahlins, “mais do que uma organização distinta e
especializada, a economia é algo que o conjunto das relações e dos grupos
sociais cumpre”8 . Essa assimilação da economia pela estrutura social, essa
orientação das atividades econômicas para fins não econômicos, políticos ou

6
DUMOUCHEL, Paul, ibid. capítulo 2 da segunda parte
7
SAHLINS, Marshall, Stone age economics, Chicago, Aldine, 1972, Tribesmen,
New Jersey, Englewwoods Cliffs, Prentice Hall, 1968, citados em Dumouchel op. cit.
8
Tribesmen, citado por Dumouchel, op. cit. p. 155.
rituais, explicam largamente as características aberrantes, fundamentalmente
a-econômicas das economias primitivas.
Sahlins ensina que a instituição produtora dominante das
sociedades primitivas é a família elementar. Frequentemente, o trabalho
realizado pelo marido, adicionado ao da esposa, consegue assegurar a
sobrevivência da família. A tecnologia é simples e se produz essencialmente
para consumir, quer dizer em função das várias necessidades dos que
produzem. Mesmo os objetos produzidos em vista de ser trocados não
escapam dessa regra porque as necessidades dos produtores / consumidores
são a finalidade da troca, e não o lucro. Dentro de cada família, existe uma
partilha dos bens e serviços que garante para cada um o que ele precisa para
viver e trabalhar. Os produtores são proprietários dos meios de produção no
fato que eles produzem para si e não para os outros.
Outra característica dessa produção familiar: a sub-produção. Os
recursos acessíveis são sub-utilizados, a mão de obra é sub-empregada, o que
significa que os meios técnicos não são totalmente engajados. Enfim, Sahlins
fala da regra de Chayanov que se enuncia assim: quanto maior é a capacidade
de trabalho de uma família, quanto menos cada um de seus membros
individuais trabalha efetivamente. Isso significa que os que mais podem
produzir menos produzem em relação às suas possibilidades; portanto uma
certa capacidade de produção e de trabalho permanece inutilizada. No modo
doméstico de produção, o consumo é a finalidade da produção; segue que,
porque as unidades produtivas as mais potentes não trabalham no seu máximo
de rendimento contrariamente às mais fracas que tendem para o pleno
rendimento, o nível de consumo é aparentemente determinado pelas unidades
de produção mais fracas. A produção é guiada por normas de consumo
tradicionais, independentes do aumento possível dos níveis de produção.
Nenhum mecanismo circular articula os níveis de produção com os níveis de
consumo.
Simultaneamente, se o consumo é determinado por normas
tradicionais, o nível de produção das sociedades primitivas, embora em sub-
produção em relação às suas próprias possibilidades, se ele cumprir essas
normas de consumo tradicionais, constitui assim mesmo uma produção
adequada. Nesse sentido, Sahlins falou em sociedades primitivas como as
primeiras sociedades de abundancia.
Uma outra característica do modo familiar de produção, é a
insuficiência econômica de algumas famílias. O modo familiar de produção é
caracterizado pelo fracasso de várias unidades produtivas, quer dizer a
incapacidade de várias famílias de resolver suas próprias necessidades. As
regras de solidariedade social que comandam as trocas permitem solucionar
esse fracasso na medida em que os mais ricos assumem as necessidades dos
mais pobres. Várias regras de solidariedade governam as trocas dentro da
comunidade. Fora da comunidade, exceto em alguns casos particulares, as
regras tendem a inverter e as trocas se transformam em extorsão, roubo ou em
simples violência. Existe um tratamento específico para os bens de
subsistência: o alimento não pode ser trocado a não ser com outro alimento.
Em muitas comunidades, o alimento não é trocado: é doado.
Considerando essas características principais da economia primitiva,
o que chamamos de motivações econômicas não desempenham nenhum
papel. O gosto pelo ganho e a vontade de promover constantemente o próprio
interesse não parecem determinar os primitivos nos seus comportamentos
econômicos. São as convenções da solidariedade social que decidem pelo
aumento da produção, não a maximização do interesse particular. Não existe
autonomia da economia: ela participa das finalidades e da função geral da
organização social.
A organização social das sociedades primitivas é caracterizada pela
ausência de Estado, de uma autoridade central forte. A ausência de instituições
políticas especializadas, detendo o monopólio da violência, e capazes de fazer
respeitar a lei, implica que toda a organização social seja dotada de um papel
pacificador. Assim como as outras relações sociais, as atividades econômicas
são organizadas de modo a prevenir e impedir os conflitos. A vontade de tirar
vantagem de uma transação, a insistência no equilíbrio das trocas, tudo se
explica quando se supõe o temor de ofender e o perigo constante de que a
menor ofensa possa levar à violência num mundo onde qualquer um é
chamado a fazer a justiça com as próprias mãos. Assim se entende também
porque a solidariedade seja a norma quando se chega no núcleo familiar onde
importa mais do que nunca conservar a paz. A solidariedade e a unidade que
reinam dentro da aldeia em relação aos bens alimentícios, a obrigação de
ajudar os necessitados, tudo isso é destinado a reduzir as ocasiões de
conflitos.
Estes laços de solidariedade estão presentes em todos os aspectos
da vida, não só na economia: tudo é feito para impedir as rivalidades. A
violência é empurrada para fora da comunidade e impedida de aparecer dentro
dela. A solidariedade econômica e social generalizada, característica das
sociedades primitivas, proíbe a construção social do objeto escassez, quer
dizer de um conjunto de bens e de recursos que seja insuficiente de satisfazer
as necessidades de todos. Não existe uma apropriação privada e exclusiva dos
bens e dos recursos: é proibido pela solidariedade social. Não existe uma
experiência possível da escassez nas sociedades primitivas:essa coisa não
existe.
As estruturas sociais das sociedades primitivas faz com que os
homens estejam os obrigados uns em relação aos outros. Constroem um
espaço solidário onde os homens são obrigados a se entre – ajudar, onde cada
um é responsável pelos outros. A comunidade toma conta de cada um dos
seus membros e essa solidariedade se expressa na economia pela partilha
incondicional dos bens de subsistência. As condições que permitem a
experiência da escassez nunca são presentes.
Em regra geral, segundo Sahlins, a diminuição de recursos aumenta
a solidariedade. A redução da quantia real de bens e de recursos solidifica
todos os vínculos sociais, e não somente os laços econômicos. Se esses
vínculos tiverem uma função pacificadora, pode se dizer que o perigo da
escassez é assimilado à violência pelos primitivos. O espaço social, tudo inteiro
estruturado pelas obrigações de solidariedade, não permite nenhum lugar onde
possa aparecer um conjunto de recursos insuficientes para satisfazer as
necessidades de todos. O aparecimento de tal lugar equivaleria ao
desabamento do espaço social e à destruição da sociedade. Nas sociedades
primitivas, a experiência da escassez é igual à da violência. Os primitivos
assimilam uma à outra.
Pode se tirar algumas conclusões a partir do estudo das
comunidades primitivas. Nenhuma quantia de bens ou de recursos disponíveis
define a escassez. A escassez é construída no tecido de relações
interpessoais. A estruturação do espaço social permite ou não permite a
aparição desse objeto: a escassez. Esse objeto é puramente social. A
escassez existe em nenhum lugar a não ser na rede de trocas inter-subjetivas
que a fez nascer. A escassez é uma organização social, nada mais!
Nas sociedades primitivas, não existe mecanismo de causalidade
circular entre as necessidades e os níveis de produção quando a solidariedade
regula as trocas. Enfim, existe uma identidade entre escassez e a violência nas
sociedades primitivas. O aparecimento da escassez implica a destruição da
comunidade, sua morte, o desabamento das estruturas tradicionais e o
desaparecimento de sua cultura.
A tradição liberal vê na escassez uma causa da violência. Os
primitivos identificam a escassez com a violência. A diferença é enorme, e não
somente semântica. A ordem econômica não pode sobreviver ao saber a
identidade da violência com a escassez. Ele precisa, para se edificar e se
manter, dos dois valores da escassez. Ele repousa sobre a ambivalência da
escassez. É indispensável para ele que seja mantido o espaço garantido entre
a escassez e a violência pelo conceito de causa.

A CRISE MIMÉTICA9
A ordem econômica funda-se na escassez e o estudo das
sociedades primitivas ensina a identidade da violência com a escassez. Como
a destruição violenta da comunidade pode adquirir um valor positivo? O que vai
seguir inspira-se da teoria de René Girard exposta no livro A violência e o
sagrado.
Se os primitivos assimilam a escassez à destruição violenta da
comunidade, ao desabamento da ordem social, é porque, para eles, a
escassez se confunde com o que Girard chama de crise mimética ou sacrificial,
o desabamento da ordem cultural e o espiral da vingança e da contra-vingança
que engloba progressivamente toda a comunidade.
A hipótese de base considera o mimetismo, o caráter
fundamentalmente mimético do desejo. Para Girard, o desejo não tem um
objeto privilegiado. Estritamente, pode se dizer que o desejo não é objetal mas

9
DUMOUCHEL, op. cit.,cap.3 da segunda parte
mimético. É sempre imitação de um outro desejo, desejo do mesmo objeto. É
sempre desejo do que um outro deseja. O desejo escolhe seus objetos pelo
intermediário de um modelo, é desejo segundo o outro.
A mimésis desejosa é uma fonte inesgotável de conflitos. Desejando
o que o outro deseja, o sujeito transforma seu modelo em rival, em obstáculo
que fecha a estrada que esse modelo tinha indicado para ele. A mimésis
desejosa cria obstáculos: faz convergir os desejos em direção dos mesmos
objetos e coloca os homens numa reciprocidade violenta. Ela os reúne ao redor
do mesmo objeto para opor todos a cada um. Ela é indissociável da ilusão da
primazia do objeto. O sujeito não percebe o automatismo que projeta seu
desejo contra o do seu modelo. Ele acha que deseja o objeto por causa de
suas qualidades intrínsecas ou espontaneamente. A própria rivalidade reforça
essa ilusão. Os antagonistas são persuadidos de que uma diferença enorme os
separa, sem a qual eles não se oporiam uns aos outros. Não podem conceber
que o diferente se enraíza no mesmo. A primazia aparente e enganadora do
objeto persuade cada um dos rivais de ser vítima do outro. É sempre o outro
que começou: na realidade, não tem começo porque a mimésis desejosa é
primeira e universal.
Resultados de desejos miméticos, os conflitos humanos são
caracterizados, de um lado, pelo fato que é impossível de atribuir uma origem,
de descobrir o responsável e , pelo outro lado, pelo fato que cada um dos
oponentes acredita na inteira e única responsabilidade de seu adversário.
Abandonado a si mesmo, o desejo mimético cresce e se intensifica.
Cresce porque a mimésis é contagiosa e se propaga por imitação. Não se pode
supor que ela pare por si só antes de ter contaminado toda a comunidade. É do
outro que depende o valor do objeto. Se o sujeito consegue obter o objeto
desejado, verá logo sua vitória transformada em fracasso. De fato, o objeto,
que não é mais mediatizado pelo modelo, perde o valor que o tornava tão
desejável. A mimésis desejosa é sempre condenada ao fracasso. Não é o
fracasso que o sujeito visa realmente, mas o sucesso do outro que ele quer
açambarcar. Somente a capacidade do outro a ser obstáculo pode ainda
convence-lo que ele não está atrás do vazio.
É contra o outro que gira a rivalidade. Contra o modelo/obstáculo
que é preciso derrotar e absorver. O objeto, origem da rivalidade, se apaga
progressivamente e desaparecer totalmente. Não se trata mais de disputar um
objeto mas de abater e destruir o rival. A rivalidade mimética culmina na
violência e a violência mostra o pouco valor do objeto. Não é o objeto que é
primeiro: é o mimetismo. Os antagonistas são fascinados uns pelos outros: o
objeto dá o lugar para o Outro.
A rivalidade mimética supõe uma reciprocidade no nível do desejo. A
exasperação da rivalidade precisa essa reciprocidade. Uma vez que o objeto
desapareceu, os rivais não são mais do que duplos animados pelo mesmo
desejo de aniquilar o outro. São cópias submersas numa mesma reciprocidade
violenta.
Contudo, se a exasperação dos conflitos aumenta a reciprocidade,
ela a dissimula cada vez mais. A violência muda o modelo em anti-modelo.
Cada antagonista procura a qualquer preço se diferenciar do seu adversário.
Essa vontade inversa e simétrica de diferenciar-se os identifica ainda mais. O
gesto de um combatente chama, do adversário, um golpe ao mesmo tempo
idêntico e contrário para se defender. Assim, paradoxalmente, nos esforços
que os rivais fazem para se distinguir, eles se parecem cada vez mais.
Mais a rivalidade se intensifica, quer dizer quanto mais as diferenças
desaparecem e mais os rivais tornam-se duplos uns dos outros, mais o saber
de sua identidade se torna intolerável. E é, finalmente, para não ver que eles se
parecem e que nada os separa que os homens se opõem. Na medida em que
a crise se exaspera, os membros da comunidade tornam-se todos gêmeos da
violência. E como a violência uniformiza realmente os homens, porque ela os
torna idênticos e, portanto, intercambiáveis, a crise vai chegar a um estágio em
que cada um dos adversários, e qualquer um, pode tornar-se o inimigo de
todos, o depositário de todo o ódio acumulado na comunidade, a vítima única
contra quem vai ser exercitada e saciada a violência de todos os outros. Contra
essa vítima única, a comunidade vai reencontrar sua unanimidade menos um,
que é a resolução normal e o desfecho da crise sacrificial. Para que a ordem
possa renascer, é preciso primeiro que a desordem chegue a seu ápice. Todos
os rancores espalhados em mil indivíduos diferentes, todos os ódios
divergentes, vão convergir num individuo único, a vítima expiatória.
Ao paroxismo da violência sucede o calmo completo e a paz
reencontrada persuade os antagonistas de ontem quanto à culpabilidade da
vítima expiatória. A substituição de todos os outros membros da comunidade
por uma vítima expiatória necessita a universalização dos duplos, o
apagamento completo das diferenças que exasperam os ódios mas os torna
intercambiáveis. A perfeita identidade dos duplos significa que a designação da
vítima é puramente arbitrária, nenhuma diferença a justifica. Todavia, a vítima
parecerá absolutamente singular por causa da violência que se polarizou nela
e, principalmente, por causa da paz que segue sua imolação.
Se a reciprocidade dos adversários, se a identidade dos duplos vem,
de novo, assombrar os antagonistas, esses persistem em recusar essa
verdade e se esforçam em se diferenciar, contraditoriamente, pela violência
que os uniformiza. Os duplos nunca possuem verdadeiramente o saber sobre a
própria identidade, senão não se oporiam mais. Esse saber deve ser definido
como o do observador externo, que não é implicado no conflito e não arrisca
ser contaminado pela violência deles. Para que a polarização sobre a vítima
expiatória purgue eficazmente os duplos de sua violência, é preciso que a
identidade e a reciprocidade se imponha aos próprios antagonistas.
Simultaneamente, o desconhecimento deve persistir para que o arbitrário da
designação da vítima não seja percebido.
Os duplos não ignoram a reciprocidade que os liga mas eles
recusam esse saber. A medida que a violência aumenta, o saber da identidade
dos duplos torna-se ao mesmo tempo mais evidente e mais intolerável, mais
irrefutável e mais inaceitável. E a recusa desse saber é uma coisa só com a
própria violência. No paroxismo da crise sacrificial, os homens vêem aparecer
duplos monstruosos e são objetos de possessão de uma reciprocidade
violenta. Segundo o próprio Girard,
“Na experiência coletiva do duplo monstruoso as diferenças não
são abolidas, mas embaralhadas e misturadas. Todos os duplos são
intercambiáveis, sem que sua identidade seja formalmente conhecida. Eles
fornecem, entre a identidade e a diferença, o meio-termo equívoco
indispensável à substituição sacrificial, à polarização da violência para uma
vítima única que representa todas as outras.”10

10
GIRARD, René, A violência e o sagrado, São Paulo, Editora Paz e Terra, 2ª
edição, 1998, p.201
A vítima vai aparecer como um ser eminentemente misterioso, capaz
de suscitar duplos monstruosos e de enlouquecer todas as diferenças. A vítima
vai parecer responsável pela violência e pela paz que segue sua própria morte,
parecendo ter manipulado a própria morte. Vai parecer divina, sagrada. Sobre
ela vão convergir os sentimentos contrários, o temor da violência destruidora, o
reconhecimento pela paz reencontrada. Somente essa experiência, segundo
Girard, dá conta da ambivalência do sagrado, ao mesmo tempo benéfica e
nefasta, ao mesmo tempo perigo de morte e fonte de vida.
A experiência da crise mimética será assimilada a uma visitação, à
vinda de um ser todo-poderoso que destrói a ordem cultural e restabelece a
paz pela sua partida. O mecanismo de resolução da crise rejeita sobre a vítima
a inteira responsabilidade da violência e é essa transferência que garante a
eficácia do mecanismo. A sacralização da vítima gera, portanto, um certo
desconhecimento, ou, mais exatamente, perpetua o desconhecimento original
dos homens em relação à sua própria responsabilidade em relação à própria
violência. Os homens colocam sua violência debaixo do signo do sagrado.
O objetivo de manter a paz será dificultado pelo desconhecimento
que constitui a eficácia da resolução sacrificial. Incapaz de reconhecer o
verdadeiro funcionamento do mecanismo vitimário, o sagrado será condenado
a dois imperativos contraditórios: de um lado não refazer os gestos que
estavam na origem da crise e, do outro, refazer os gestos que levaram à
resolução da crise e à paz. A contradição vem do fato que são os mesmos
gestos, gestos de violência e de rivalidade.
As interdições, as regras e as obrigações resultam do imperativo de
não refazer os gestos que estão na origem da crise. Os rituais são o resultado
do imperativo contrário, refazer os gestos que levaram ao desfecho da crise. O
sacrifício é o ritual por excelência, a instituição chave de todo o religioso
primitivo. Ele repousa sobre uma substituição semelhante à pela qual a vítima
expiatória substitui todos os antagonistas e polariza contra ela a violência de
toda a comunidade. Uma vítima substitui a vítima expiatória original e a
propensão da violência a encontrar para si objetos substitutivos permite que a
comunidade se purgue eficazmente da sua violência contra essa nova vítima. A
eficácia do sacrifício é reduzida em relação à eficácia da resolução da crise,
mas é real. Esta eficácia faz do sacrifício a instituição central do religioso
primitivo: purgando de novo a comunidade de sua violência, ele reforça as
interdições.
Os mitos contam do seu modo o que aconteceu. Eles ancoram o
ritual e as interdições na historia da crise. Eles sancionam também o
desconhecimento do sagrado. De fato, os mitos consagram a divindade dos
deuses e a irresponsabilidade dos homens. Além do religioso, e por meio dele,
toda a cultura primitiva brota do mecanismo da vítima expiatória. Os mitos
contam o nascimento dos povos. A estrutura social, o sistema diferenciado
hierarquizado e as divisões familiares que organizam a comunidade, segundo
os próprios primitivos, foram dados no primeiro dia, no tempo do mito, no dia do
desfecho da crise sacrificial.
Entre a escassez e o sagrado existem pontos comuns. A relação
com a violência, a ambivalência, a construção em entidade independente,
exterior e estrangeira aos homens do que é um puro resultado dos seus
relacionamentos recíprocos, enfim, a posição dessa entidade ambivalente
como fundamento e origem da ordem social (o sagrado funda o religioso e a
escassez, a ordem econômica) tudo isso se parece muito com os fenômenos
descritos por Girard, levando a fazer uma aproximação entre esses fenômenos.
É preciso porém tomar cuidado com as analogias fáceis: as fontes
da ambivalência do sagrado são, ao mesmo tempo, a identidade da violência e
do sagrado e a reviravolta da violência em ordem. A escassez não tem nenhum
tipo de resolução desse tipo porque supõe um estado impossível nas
sociedades primitivas. As condições necessárias à emergência da escassez
colocam um problema insolúvel. A escassez corresponde à perda das
interdições anti-miméticas e à crise sacrificial. Contudo, é uma crise que não
comporta uma solução sacrificial, porque a unanimidade e a paz reencontradas
apagariam a escassez. A ambivalência da escassez supõe um estado onde o
paroxismo da crise coincide com uma ordem estável, sem que aconteça o
mecanismo da unanimidade fundadora. Segundo Girard,
“se o movimento histórico da sociedade moderna é a dissolução
das diferenças, ele á bastante análogo a tudo que foi aqui nomeado crise
sacrificial. E sob muitos aspectos, de fato, moderno aparece como
sinônimo de crise cultural. Entretanto, deve-se notar que o mundo moderno
consegue encontrar constantemente patamares de equilíbrio, embora
certamente precários, em níveis de indiferenciação relativa, que são
acompanhados de rivalidades sempre mais intensas, mas nunca
suficientes para destruir este mundo. As análises dos capítulos
precedentes sugerem que as sociedades primitivas não resistiriam a uma
tal situação: a violência perderia qualquer freio e desencadearia, por seu
próprio paroxismo, o mecanismo da unanimidade fundadora, restaurando
ao mesmo tempo algum sistema fortemente diferenciado. No mundo
ocidental e moderno, nada disso acontece; o desaparecimento das
diferenças prossegue, de forma gradual e continua, sendo de uma maneira
ou de outra absorvido e assimilado por uma comunidade que se estende
por quase todo o planeta. (...) Um certo dinamismo arrasta em primeiro
lugar o Ocidente, e depois a humanidade inteira, para um estado de
indiferenciação nunca antes conhecido, para uma estranha sorte de não-
cultura ou de anti-cultura que nomeamos, precisamente, o moderno.(...)
Ocorre a mesma desagregação que nas crises sacrificiais primitivas,
embora ela opere de maneira gradual e comedida sem verdadeiro
desenfreio, sem violência manifesta, sem escalada catastrófica nem
resolução de qualquer tipo. Pode-se ver aqui tanto a espantosa mobilidade
do moderno, sua prodigiosa eficácia, quanto as tensões crescentes que o
atingem.”11

ESCASSEZ E CRISE MIMÉTICA12


A escassez é uma instituição social. Institui o mundo moderno assim
como o sagrado instituía as sociedades primitivas. Como ele, ela protege a
comunidade contra a violência essencial. Seu funcionamento, ao mesmo tempo
muito parecido e muito diferente da resolução sacrificial da crise, repousa nos
mesmos mecanismos. Somente uma mutação acontecida dentro do sagrado
determina essa mudança de regime e de registro.
A escassez significa o abandono generalizado das obrigações de
solidariedade que uniam a comunidade. É a transgressão sistemática das
interdições tradicionais. É a recusa voluntária das proteções anti-miméticas

11
Ibid., p. 233-234
12
DUMOUCHEL, op. cit.,cap.4 da segunda parte
oferecidas pelo sagrado e pelo sacrificial. Essa reviravolta em relação ao
sagrado constrói socialmente um conjunto de bens e de recursos tais que as
necessidades e os desejos de todos não possam ser satisfeitos. A simples
definição do conjunto basta para explicar nossa obsessão de numera-lo e
aumenta-lo. Assim, um acontecimento religiosa fabrica a ilusão do papel
determinante da infra-estrutura econômica.
O acontecimento religioso que opera essa reviravolta em relação ao
sagrado é a aparição e o trabalho lento de um saber em relação ao papel e à
função da vítima expiatória. Existe nos escritores bíblicos uma tendência para
se situar moralmente do lado das vítimas, a tomar o partido e defender as
vítimas. Este saber, contrário à afirmação da onipotência do deus e à
irresponsabilidade dos homens, ensinada pelos mitos, era, por definição,
inacessível ao sagrado e ao sacrificial, porque é o conhecimento da
humanidade e do arbitrário na escolha da vítima. O conhecimento do
funcionamento do mecanismo vitimário impede a transferência coletiva. As
interdições e as obrigações ditadas pelos deuses não obrigam mais ninguém, a
partir do momento em que são revelados a humanidade e o arbitrário na
escolha das vítimas. Quando ao homens reconhecem nos deuses a hipóstase
da sua própria violência, os rituais e os sacrifícios não têm mais razão de ser.
Esse conhecimento dessacraliza: ela destrói a eficácia do sagrado para nos
proteger da violência.
O ensinamento e a paixão de Cristo cumprem essa revelação do
papel da vítima. O Cristo por sua morte, incapaz de reconciliar a comunidade,
revela a matriz estrutural de toda produção mítica. Ela remete os homens à sua
própria responsabilidade violenta. Segundo Girard, é o longo caminhar dessa
revelação que dessacralizou o Ocidente. Seu longo caminhar e sua recusa. Se
a verdade do cristianismo é de chamar os homens a renunciar à própria
violência, é evidente que ela não foi recebida. Ora se o cristianismo torna
impossível, porque ineficaz, toda resolução sacrificial da crise, e, assim, destrói
a instituição do sacrifício que, purgando a comunidade da própria violência,
reafirmava as interdições e reavivava as obrigações, é evidente que ele dá as
condições da emergência da escassez porque, no decorrer do tempo, ele só
pode causar o enfraquecimento e o abandono das interdições e da obrigações
tradicionais.
Isto não nos dá ainda o valor positivo da escassez que funda sua
ambivalência e institui por ela o mundo moderno. Para obter esse valor
positivo, basta voltar para a crise sacrificial como ela acontece numa era
cultural avançada. A descrição da crise mimética, nos três primeiros capítulos
do livro A violência e o sagrado, mostra como a violência sagrada, purificadora
do sacrifício, pode degenerar em violência impura e contagiosa, em violência
destruidora e desorganizadora. Ela mostra como o sacrifício, a festa ou o ritual,
em vez de purgar a comunidade de sua violência, podem contaminar todos os
participantes, inaugurar um ciclo de vingança e de contra-vingança que se
estende aos poucos mas irresistivelmente. Essa descrição mostra como, uma
vez que a crise foi desencadeada, todas as barreiras erguidas para pará-la
acabam contribuindo para aumenta-la assim como os materiais jogados na
fogueira para apaga-la contribuem a alimenta-la.
É fácil de entender: nenhum princípio vem distinguir o sagrado da
violência que o precede. O gesto restaurador da ordem é sempre mais um
assassinato. Esta identidade da violência com o sagrado não é simplesmente
teórica e de principio, ela é prática e observável nos fatos. É verdadeiro e
evidente no caso do sacrifício humano, ainda verdadeiro no caso do sacrifício
animal e é sempre verdadeiro no caso do ritual, porque é a obrigação do
mimetismo, sempre obrigado a refazer os gestos que levaram ao desfecho da
crise. Mesmo se o religioso isola esses gestos no rito, definido por um tempo e
um espaço particulares, o ritual sempre ameaça escorregar da representação
para o real e de arrastar todos os tempos e todos os lugares na fúria mimética.
A identidade da violência e do sagrado é também verdade nas
interdições, que são freios anti-miméticos e que visam que não se re-faça os
gestos que inauguraram e precipitaram o desenrolar da crise. Se as interdições
têm uma face negativa, eles têm uma face positiva, constituída pelas
obrigações das quais eles não podem se distinguir: a interdição de derramar o
sangue é imediatamente a obrigação de vingar o sangue derramado.
Considerando os dois aspectos da interdição, pode se perceber como os freios
anti-miméticos impõem aos homens os deveres de violência que podem
relançar a crise. A identidade da violência e do sagrado, inscrita socialmente na
organização religiosa e cultural das sociedades primitivas, facilita a reversão
para a violência original. Ela explica que o sagrado participa da crise nos
esforços que ele faz para limita-la.
As obrigações de solidariedade, que transpõem as barreiras do
tempo e do espaço, são sempre suscetíveis de integrar num conflito maior as
pessoas não envolvidas no enfrentamento original. As estruturas sociais que
solidarizam a comunidade em tempo normal, a tetanizam em tempo de crise.
As interdições e as obrigações são os condutores da violência. O momento dos
duplos é o fim da crise, o momento em que ela atinge seu paroxismo, onde a
violência aniquilou as estrutura sociais habituais. As interdições e as
obrigações implodiram, as diferenças desapareceram, cada um se opõe a cada
um. A integração pela violência apagou as diferenças que, no inicio,
propagavam a violência ao longo das obrigações de solidariedade. O único
modo de escapar a essa solidariedade mortal seria de recusar a obrigação:
mesmo assim não se sai do círculo da violência pois é imediatamente a
transgressão de uma interdição. O que faz isso está inscrito num processo de
violência impura contra o qual as obrigações de solidariedade integram os
outros membros da sociedade. Todo o sagrado está fechado nesse círculo.
O único jeito de escapar desse círculo é o aparecimento de uma
exterioridade necessária para a percepção dos duplos, é preciso que exista
uma atenuação generalizada das obrigações e das interdições, para que a não-
solidarização não seja imediatamente uma transgressão. A Revelação Cristã
dá as condições de emergência da escassez porque ela causa o
enfraquecimento generalizado das interdições e das obrigações.
Esse espaço interior dado para a comunidade pelo enfraquecimento
das interdições e das obrigações e que, paradoxalmente, deve ser designado
como a exterioridade dos societários, basta para definir a escassez e para
garantir sua ambivalência. Quer dizer sua capacidade para nos proteger da
violência. Num primeiro momento, é importante notar que esse
enfraquecimento das obrigações e das interdições não corresponde a um
enfraquecimento do mimetismo e das rivalidades que ele suscita. Muito pelo
contrário porque é o resultado direto do fracasso do sagrado e do sacrificial em
expulsar a violência fora da comunidade.
Se a Revelação Cristã fornece a distancia interior necessária à
exterioridade dos societários, a escassez, rigorosamente, deve ser definida
como o mecanismo pelo qual a intensificação das rivalidades trabalha a favor
dessa exteriorização progressiva dos societários. A transformação do sagrado
em escassez se produz inteiramente no cegamento mimético. Para cada um
que a professa, e a produz sem saber, não se trata de outra coisa a não ser
perseguir o próprio desejo, quer dizer ser cada vez mais vítima do fascínio
mimético.
Para entender como o agravamento das rivalidades pode assegurar
a paz e construir a nova ordem econômica, basta ver como a atenuação do
sacrificial equivale a restituir ao mimetismo sua universalidade original. O
sagrado está totalmente construído sobre o modelo da expulsão violenta, mas
de uma violência voltada para ordem e a paz. A crise deve ser definida como a
volta dentro da comunidade da violência e da mimésis originalmente expulsa. A
violência e a mimésis só estão legitimamente presentes dentro da comunidade
na forma geral e abstrata das interdições e dos ritos que governam a vida dos
seus membros. A volta da mimésis no nível concreto da relação entre as
pessoas constitui uma transgressão. Se uma prática ritual não consegue
expulsar rapidamente essa má mimésis, ela inaugura uma crise. A crise
propaga pouco a pouco até que ela englobe o conjunto da comunidade. Ela
progride mimeticamente e sua progressão é a da mimésis. A universalização
da mimésis acontece no paroxismo da crise. A universalização das rivalidades,
o enfrentamento de todos contra todos, resulta da integração de todos no
conflito.
A escassez é uma espécie de crise ao contrário que começa,
tranquilamente, pela volta universal da mimésis. Ela começa pela
universalização das rivalidades miméticas; é por isso que, enquanto a crise tem
um começo que é transgressão, uma evolução que é contágio e um desfecho
que é expulsão e queda abrupta, a escassez deve ser concebida como a
impossibilidade radical de começar. O enfraquecimento geral das interdições e
das obrigações significa que todos já têm começado.
No espaço de atenuação do sacrificial introduzido entre a
transgressão de uma interdição e o dever de responder às próprias obrigações
de solidariedade, a recusa de responder a essas obrigações não precisa ser
motivado pela visão da duplicidade dos duplos. Não preciso perceber a
identidade dos rivais para rejeitar minhas obrigações contra um deles, para
recusar de tomar partido de alguém; o simples fato de que eu esteja fascinado
numa outra direção é suficiente. Para que isso esteja verdadeiro para todos,
basta que a exterioridade seja dada universalmente, o que acontece pela
atenuação da normas e das regras gerais e universais. A exasperação de cada
rivalidade particular reforça a exteriorização dos societários.
Ora se o movimento da exterioridade dos societários é o próprio
movimento pelo qual cada um é fascinado por algo fora de si, é evidente que a
distancia aumenta proporcionalmente à intensificação das rivalidades. Segue
que as rivalidades as mais intensas se exteriorizam em relação ao movimento
geral de exterioridade. Ela se dão em espetáculo e se situam num palco que
torna cada vez mais clara a identidade dos antagonistas. O resultado é uma
desvalorização dessas rivalidades e a alienação dos antagonistas em relação à
comunidade. A intensificação das rivalidades reduz as chances de polarização
e de desfecho catastrófico.
Essas rivalidades isoladas e isoladoras reduzem as diferenças entre
os antagonistas e fazem desaparecer os objetos que, na origem, motivavam as
rivalidades e permitem o deslocamento lateral de antagonistas aptos, em
outras circunstancias a arrastar a polarização contra uma única vítima. Se o
poder da mimesis aumenta com o número de polarizados, a intensificação da
rivalidade que resulta de todo inicio de polarização isolará imediatamente a
rivalidade. Todo desequilíbrio contra um antagonista torna manifesta a
duplicidade dos duplos e restabelece imediatamente a estabilidade da
estrutura. Nessas condições, é evidente que as formas as mais intensas de
rivalidade tornar-se-ão rapidamente inconfessáveis. A exteriorização crescente
causada pela exasperação dos conflitos miméticos conduzirá as rivalidades a
ser cada vez mais subterrâneas, mais escondidas na medida em que se
exasperam.
Essa interiorização necessária das rivalidades define a relação
interioridade / exterioridade como constitutiva da instituição social da escassez.
A exteriorização dos societários é a relação circular interioridade /
exterioridade. A interioridade é feita da exasperação e da dissimulação das
rivalidades próprias miméticas. A exterioridade é a distancia adquirida em
relação aos outros. A visão da duplicidade dos outros nos outros. Ora, como
esses dois movimentos são o mesmo movimento, como o fechamento em si é
imediatamente a distancia adquirida em relação aos outros, é certo que a
dissimulação das rivalidades próprias não reduz a distancia que separa os
societários, não muda nada à sua alienação recíproca. Mas se a dissimulação
não reduzir o espaço entre os societários, ela otimiza para cada um a
capacidade de ação no espaço intra-comunal da exterioridade.
No espaço de solidariedade das sociedades primitivas, onde a
intensificação das rivalidades polariza cada vez mais, os rivais vêem uma
vantagem na publicidade para a ação e a rivalidade, porque o crescimento do
fenômeno é percebido como a reconstrução da unanimidade. Pelo contrário, na
exterioridade da escassez, onde a intensificação das rivalidades isola os
antagonistas e os separa da comunidade, a publicidade da ação só pode
condenar os rivais a demonstrar a própria força. Nessas condições, a
dissimulação será a regra absoluta de toda rivalidade piorada. Todavia, cada
rival, para alcançar seu objetivo, procurará outros homens que o possam ajudar
na sua luta. Ora, ele só poderá aumentar suas forças e trazer outros homens
para a própria causa somente na medida em que ele respeita o imperativo
categórico da dissimulação. Portanto, as relações dos antagonistas com os
outros, que devem ser definidos como terceiros porque a exterioridade impede
que eles se tornem duplos dos rivais, serão manipuladores. A regra da
dissimulação impõe que os terceiros sejam utilizados numa empreitada da qual
eles ignoram o essencial. A escassez traz para cada um, espontaneamente, a
redução dos terceiros no papel de instrumentos. As grandes associações,
geradas na exasperação dos conflitos miméticos, obterão na sua organização a
forma de racionalidade instrumental.
A relação interioridade / exterioridade dá conta da coincidência entre
escassez e racionalidade instrumental. Dá conta também de uma característica
particular dos fenômenos miméticos no mundo moderno, a ausência de
violência relativa na qual eles se desenvolvem apesar da intensificação da
rivalidades. Já que a intensificação das rivalidades impõe a dissimulação, a
violência aberta será desvalorizada socialmente como sinal e marca evidente
demais do conflito mimético. Cada vez mais, a violência aberta será excluída
das rivalidades particulares. Existe uma outra razão que explica a ausência
relativa de violência no mundo moderno: considerando que a força da mimesis
cresce com o número de polarizados, é certo que, para cada um considerado
individualmente, o patamar de fúria assassina será atingido mais rapidamente
num sistema onde a intensificação das rivalidades polariza e faz convergir do
que num sistema onde a intensificação das rivalidades isola e faz divergir.
A relação interioridade / exterioridade é também o arquétipo do que
se chama má fé. É estruturalmente mentiroso, porque é feito de cegueira em
relação a si mesmo e de lucidez em relação aos outros; de dissimulação do
próprio desejo e das próprias rivalidades, de denuncia do interesse e dos
conflitos dos outros. Cada um percebe a duplicidade dos outros no momento
em que se torna um duplo. A exterioridade do observador não é separável de
sua interioridade. Além do mais, como a exterioridade é universal, ser
observador exterior é sempre ser observador exterior de um outro observador
exterior. É sempre estar em posição de ver nos outros a alternância dos
critérios, a utilização de dois pesos e duas medidas quando se trata dos
próprios conflitos ou dos outros. É esta em posição de construir um conceito de
má fé e de utiliza-lo para explicar os comportamentos. Ora a denuncia da má fé
não é distinguível da própria má fé. É o agravamento das próprias rivalidades
que esclarece sobre a dos outros, e a lucidez cresce na proporção da cegueira.
Este modelo mimético “sem escalada catastrófica nem resolução de
qualquer tipo” dá conta da ambivalência da escassez, do seu duplo valor
benéfico e nefasto, que não é outra coisa a não ser o próprio desejo mimético.
Esse modelo sem resolução é a pura evolução do individualismo moderno, a
exterioridade e a alienação progressiva dos societários. Ele consegue explicar
de modo coerente a gênese de alguns fenômenos tipicamente modernos, a
relação interioridade / exterioridade, a generalização da racionalidade
instrumental, a má fé. O modelo explica também a ausência de violência
relativa na qual se desenvolvem os fenômenos miméticos modernos apesar do
agravamento das rivalidades. Ele permite entender como a escassez nos
protege da própria violência; como a crescente exterioridade dos societários
previne todo risco de polarização porque é a intensificação das rivalidades. O
modelo explica ao mesmo tempo a identidade da violência e da escassez, e a
capacidade dessa violência de nos proteger da violência essencial da crise
mimética. Explica finalmente a razão pela qual a escassez não pode acontecer
nas sociedades primitivas.
Na medida em que esse modelo mimético é produzido pelo
abandono das obrigações de solidariedade que uniam a comunidade, ele deixa
aparecer socialmente um conjunto de bens e de recursos tal que as
necessidades e os desejos de todos não possam ser satisfeitos.
Contrariamente à tradição liberal que acha que a limitação dos recursos força
os desejos a convergir para os mesmos objetos, nossa hipótese ensina que a
convergência mimética dos desejos para os mesmos objetos fabrica a
parcimônia da natureza. Somente essa explicação da escassez a partir do
mimetismo permite entender a aporia da escassez, o fato que a escassez não
corresponde a nenhuma quantidade real de bens e de recursos disponíveis.
Não existe uma contradição e uma necessidade de escolher entre
duas escassezes? A que nos protege da violência fazendo divergir os conflitos
e a outra que institui a parcimônia da natureza fazendo convergir os desejos?
Na realidade, somente a exterioridade dos societários permite construir
mimeticamente a parcimônia da natureza. A escassez é impossível nas
sociedades primitivas pois seu aparecimento equivale à destruição do espaço
social, à crise sacrificial, à violência. Contudo, a escalada mimética, que
culmina na perda de todas as interdições e de todas as obrigações, não
constrói a escassez: constrói o conflito e a violência pura e simples.
Segundo Dupuy, O objeto que desencadeia o desejo mimético, em
Girard, é sempre único e não divisível. 13 O objeto que o pensamento
econômico elabora e que a realidade econômica constrói é de uma natureza
sensivelmente diferente. É uma mercadoria , no sentido preciso dado por Marx
a esta palavra. Ele só tem valor e existe em relação a outros objetos com os
quais ele sempre pode ser trocado. A lógica abstrata da equivalência e do valor
de troca parece estar em total oposição com a lógica da mimésis de
apropriação. A primeira transforma os objetos únicos, “que não têm preço”, da
segunda em mercadorias comensuráveis com qualquer valor de troca. A
convergência dos desejos consegue fabricar uma diferença entre os objetos
idênticos, quer dizer a partir do nada: no limite, a mimesis cria o objeto.

13
Em DUMOUCHEL, Paul et DUPUY, Jean-Pierre, L´enfer des choses, René
Girard et la logique de l´économie, Paris, Éditions du Seuil, 1979, primeira parte, p. 112 e seg.
O problema de saber como, a partir da hipótese mimética, podemos
obter a escassez, definida como a convergência dos desejos em direção ao
mesmos objetos, lá onde a equivalência universal dos objetos é dada, não é
diferente do problema de entender como o abandono dos freios anti-miméticos
pode evitar a escalada catastrófica. É a polarização progressiva que fabrica e
sanciona o caráter único e sem equivalência do objeto. A resposta é a mesma:
a raridade faz divergir as rivalidades e convergir os desejos e, portanto, restitui
à mimesis sua universalidade original. Existem tantos mediadores quantos
societários. O livre desenvolvimento da mimesis vai acoplar os homens em
rivalidades individuais / recíprocas. É a universalidade desses acoplamentos
que assegura a exterioridade dos societários.
Isto significa que a raridade dá desde o inicio uma pluralidade de
rivalidades, portanto uma pluralidade de objetos que vão causar mediações,
um conjunto. Desde que seja possível recusar as obrigações que forçam cada
um a integrar os conflitos dos outros sem, porém, transgredir interdições, é
evidente que se essas obrigações tiverem ainda alguma força, todos vão
procurar denunciá-las. Todos descobrirão logo a reciprocidade das relações
antagonistas nos outros. Mas, como essa descoberta é o resultado do
agravamento das rivalidades para cada um, ninguém terá acesso à verdade
mimética do desejo, porque essa verdade equivale a desmistificar nossos
próprios conflitos.
Nessa situação de exterioridade onde são dadas a pluralidade dos
objetos, a convergência conflitante, a insatisfação pessoal e a incapacidade de
ter acesso à verdade mimética do desejo, cada um concluirá a insuficiência do
conjunto e que essa insuficiência é motora e causadora de conflitos. Obtém se
então uma geração espontânea do conceito econômico de escassez e sua
ambivalência, assim como o horizonte e a ilusão insuperável do crescimento
que o acompanha. Obtém se assim a aporia da escassez, a indeterminação da
restrição da escassez pela quantidade real de bens e de recursos acessíveis.
Porque a escassez é construída pela convergência mimética dos desejos na
divergência mimética da rivalidades plurais, a quantia real de bens e de
recursos acessíveis não tem nenhum efeito sobre a restrição da raridade. É o
jogo mimético da convergência dos desejos e da divergência das rivalidades
que permite construir um conjunto de bens e de recursos insuficientes para
satisfazer as necessidades e os desejos de todos, e, ao mesmo tempo,
independente da quantia real de bens e de recursos disponíveis.
Se a ordem econômica consegue estabelecer taxas de equivalência
entre todos os objetos, o que nunca acontece em sociedades primitivas, não é
porque os objetos mudaram, mas porque essa ordem transforma as relações
entre os homens. Numa dada situação de exterioridade, o jogo da substituição
recíproca de antagonistas, de rivais ou de modelos destrói a unicidade dos
objetos e permite encontrar para eles uma taxa de equivalência. É o caráter
intercambiável dos modelos / rivais, o fato que, praticamente, qualquer um
possa tornar-se o mediador de qualquer um, que fundamenta a perfeita
equivalência dos objetos.

VIOLÊNCIA E ECONOMIA14
Precisamos ver agora, além do extraordinário poder que a escassez
tem de nos proteger da nossa violência, a identidade da violência e da
escassez. É essa ambivalência da escassez que organiza alguns textos da
tradição liberal que levaram a uma transformação social que, instaurando a
escassez, trouxe os homens a miséria pela destruição das obrigações sociais
da solidariedade e opondo as conseqüências sociais às conseqüências
individuais das ações dos homens. Disso veio a metamorfose da sociedade
numa sociedade de mercado.
É preciso ver como a disjunção entre as conseqüências individuais e
as conseqüências sociais dos atos é uma mutilação da vida, de longe mais
terrível, mais insidiosa e mais total do que as mutilações voluntárias que se
impõem alguns selvagens nas suas mutilações rituais. É preciso mostrar que,
contrariamente ao sagrado que evacua e expulsa a violência, a escassez exclui
os homens, porque ela é a contemporaneidade da violência e de uma ordem
estável. É preciso perceber que contrariamente ao que muitos acreditam,
pensando somente em si, não é a ineficácia da organização econômica para
nos proteger da violência que é problema e nos ameaça, mas sua eficácia. E
sua eficácia é a violência.

14
DUMOUCHEL, op. cit.,cap.5 da segunda parte
“Suprimir uma violência não é, por si, um ato político. Basta mais
violência para fazer isso. Contudo, simples relações de força não
constituem relação humana alguma. Só existe uma questão de política,
uma questão de uma sociedade de homens, quando a liberdade está
realmente em jogo nesses relacionamentos.”15

A instituição social da escassez é a instituição social da miséria. A


escassez é construída pela rejeição das obrigações tradicionais da
solidariedade, pelo abandono de cada um à própria sorte. O movimento geral
de exterioridade, que caracteriza a escassez, se cumpre pelo agravamento das
rivalidades particulares. A escassez dos societários equivale a tornar toda
pessoa sacrificável no sentido dado por Girard essa palavra.
Na medida em que o sacrifício tende a reproduzir o desfecho da
crise, cumprido pela imolação da vitima expiatória, ele se apresentará
frequentemente, num primeiro momento, na forma de um sacrifício humano.
Considerando as obrigações de solidariedade que estruturam as comunidades
primitivas, o religioso primitivo tem grandes dificuldades em definir uma
categoria de indivíduos sacrificáveis, que possam ser imolados em caso de
necessidade sem desencadear o ciclo de vingança e contra-vingança. Girard
mostra que a diferença entre a vitima sacrificável e não-sacrificavel se mede
pelo seu grau de pertença à sociedade. Mais exatamente
“Entre a comunidade e as vítimas rituais um certo tipo de
relação social encontra-se ausente: aquela que faz que seja impossível
recorrer à violência contra um indivíduo sem expor-se a represálias de
outros indivíduos, seus próximos, que considerariam seu dever vinga-lo.”16

A exterioridade dos societários transforma todos os indivíduos em


vitimas sacrificáveis. O abandono das obrigações tradicionais nos assegura
que ninguém vingará os que são objetos de nossas violências. Apesar desse
abandono, a violência não se generalizará. A crescente distancia que separa

15
BRUAIRE, Claude, La raison politique, Paris, Fayard, 1974, p.13, citado em
DUMOUCHEL, Paul, op. cit., p. 198. A tradução é nossa.
16
GIRARD, René, A violência e o sagrado, São Paulo, Editora Paz e Terra, 2ª
edição, 1998, p.201
16
Ibid., p. 25
os homens desvaloriza socialmente a utilização da violência aberta entre os
antagonistas. Outrossim, o limiar da violência e da loucura mortífera é menos
rapidamente atingido num sistema de rivalidades divergentes. Uma última
razão institucional previne o aparecimento da violência aberta entre rivais: é o
sistema judiciário. A certeza que a lei vingará de um modo definitivo o primeiro
assassinato. Segundo Girard
“o sistema judiciário afasta a ameaça da vingança. Ele não a
suprima, mas limita-a efetivamente a uma represália única, cujo exercício é
confiado a uma autoridade soberana e especializada em seu domínio. As
decisões da autoridade judiciária afirmam-se sempre como a última palavra
da vingança.”17

O sistema judiciário explica a capacidade do Ocidente a escapar das


formas mais virulentas da violência essencial? Parece que não. Um sistema
judiciário consegue efetivamente reprimir a violência somente se ela for
esporádica, pontual e marginal. A historia mostra que quando a violência se
generaliza, o sistema judiciário se mostra impotente em impedi-la. Ora, em
qualquer sistema onde as rivalidades polarizam e fazem convergir, a violência
se generalizará rapidamente na ausência dos freios tradicionais. Além do mais,
é fácil entender que o sistema judiciário só pode funcionar eficazmente se uma
exterioridade mínima existir entre os societários. Sem isso, as obrigações
tradicionais de solidariedade falsearão seu funcionamento. Cada rede de
solidariedade tentará infiltrar o sistema judiciário ou os magistrados inclinarão
as decisões da justiça na direção que corresponde melhor a suas obrigações
tradicionais de solidariedade. É a escassez, a exterioridade dos societários que
constitui a condição de possibilidade do sistema judiciário, pelo menos na
forma universal que ele tem nas sociedades modernas.
A relativa ausência de violência aberta entre os antagonistas não
significa, porém, que a violência desapareça. Ela não desaparece: ela se
desloca e metamorfoseia-se. Principalmente, ela institucionaliza-se: incapaz de
expressar-se diretamente, ela se transforma em inveja, ciúme, ódio impotente e
ressentimento. É no silencio que ela destrói seus rivais, de dentro. Ela se
reposiciona e se expressa de modo diferente.

17
Ibid., p. 28
No religioso primitivo, a identidade da violência e do sagrado
manifestava-se, entre outras coisas, nas obrigações que coagiam os homens a
um dever de violência para além suas escolhas e sua vontade. Nas
organizações sociais fundadas na escassez, é no abandono das obrigações de
solidariedade que se institucionaliza a identidade da violência e da escassez,
na transformação de cada homem em vitima sacrificável.
Sabemos que a escassez comporta nem escalada, nem resolução
de qualquer tipo. É fabricada com milhares de pequenas rivalidades
independentes e isoladas, exteriores umas em relação às outras, que se
desenvolvem numa ausência relativa de violência; elas se exteriorizam tanto,
quando a violência aparece que os outros, não implicados no conflito, desviam
dela para não serem polarizados por ela. Se a escassez não comporta
nenhuma resolução, as múltiplas rivalidades que a constituem conhecem
desfechos temporários (as vezes definitivos), numerosos e repetidos, mais ou
menos graves ou perigosos para os interessados. Desfechos que são derrota
para um dos duplos e vitória para o outro. Como as obrigações de
solidariedade não funcionam mais, porque cada um está entregue à própria
sorte, a escassez equivale simplesmente à lei do mais forte. Como todos se
esquivaram de suas obrigações de solidariedade porque eram fascinados por
algo, eles se desviam dos vencidos assim como eles recusaram de participar
do conflito que precedeu suas derrotas. A escassez é a construção social da
indiferença para as infelicidades dos outros.
A escassez não comporta instituições como o sacrifício, tendo como
função de purgar periodicamente a comunidade de sua violência. Ora, como a
lei da dissimulação impõe a inibição da violência, a comunidade contém
sempre uma grande quantidade de violência e rancor não satisfeitas. É claro
que os mecanismos psicológicos de transferência vão trabalhar no sentido do
abandono dos outros à própria sorte. A propensão da violência a achar vítimas
de substituição vai se satisfazer com as vítimas dos outros. A transformação de
todo homem em vítima sacrificável significa que as vítimas das conclusões
particulares das rivalidades múltiplas que constituem a escassez são
efetivamente sacrificadas. Não tanto pela violência aberta dos seus inimigos,
mais pela indiferença dos outros que os abandonarão à própria sorte.
Surpreendentemente, mas logicamente, não serão as relações entre
rivais, quer dizer entre os duplos, que serão marcadas pela maior violência,
mas as relações de cada um deles com os outros, quer dizer as relações entre
terceiros. Serão marcadas pela maior violência subjetivamente, porque os
golpes que recebemos dos nossos inimigos nos parecem mais compreensíveis
e os que damos mais justificados, de que a indiferença e o desprezo de
terceiros que contemplam nossa queda, sem pestanejar e, talvez, sem vê-la,
porque o menor gesto seria suficiente para salva-nos. É a recusa dos terceiros
em ajudar e suportar o perdedor que sancionará seu fracasso e o transformará
numa verdadeira execução, mais do que os golpes recebidos do vencedor.
A violência mais intensa que caracteriza as relações entre terceiros
constrói a invisibilidade social da violência. Os terceiros exercem entre eles
violências que eles não vêem por várias razões:
 São violências que, mesmo não sendo involuntárias, não são o
desenlace de uma intenção clara: elas resultam de uma simples
indiferença. São violências sem rosto, que são perpetradas com seus
autores se recusando a ver o que estão fazendo.
 Como o agravamento dos conflitos inibe a violência, os homens
não enxergarão qual tipo de mal pode resultar da simples indiferença já
que a intenção proclamada de destruir o outro revela-se impotente. A
indiferença dos terceiros sanciona a lei do mais forte. Para que os
vencidos pudessem manifestar a violência que lhes é causada pela
indiferença dos terceiros, seria preciso que as obrigações de
solidariedade funcionassem em seu favor e que seus próximos dessem
às vítimas a força suficiente para ser ouvidos. Nesse caso, não teria
indiferença: teria uma crise mimética.
A invisibilidade da violência não provoca a invisibilidade de suas
conseqüências. Os terceiros exercem entre eles violências que eles não vêem,
e que são, paradoxalmente, as violências as mais fortes exercidas no cerne do
sistema. E porque eles não enxergam a ligação que une suas ações e suas
conseqüências, porque não vêem que é sua indiferença que fabrica indigentes,
eles procurarão explicar esse estranho fenômeno.
As posições de duplos e de terceiros são universais e simultâneas.
Elas não designam lugares exclusivos no espaço. Elas definem os vínculos que
cada um mantém com alguns homens. De fato, a distinção duplo / terceiro
sobrepõe-se perfeitamente a relação interioridade / exterioridade. Isto quer
dizer que cada um ocupa sempre as duas posições ao mesmo tempo e que a
indiferença é só o reverso do desejo fascinado dos duplos. As posições de
vencedor e vencido são também universais, contudo não simultâneas. São
frequentemente fatores contingentes exógenos que determinam a
transformação de um vencedor em vítima sacrificada, seu ambiente social, a
dimensão de seu fracasso.
A universalidade das relações duplo / terceiro e a universalidade
potencial das relações vencedor / vencido dão forma de lei à indiferença e à
rejeição das obrigações tradicionais, independentes da vontade e das escolhas
de cada um. Para alguns grupos sociais, as rivalidades geradas pela mimesis
de apropriação se transformam numa luta pura e simples em prol da
sobrevivência, porque, se perderem, perdem tudo e ninguém os ajudará. Para
eles, a indiferença e a rejeição de suas obrigações de solidariedade se tornam
um imperativo absoluto, a condenação a uma nova obrigação negativa por
causa da rejeição universal das obrigações tradicionais. Estão obrigados a
jogar o jogo da indiferença e da fascinação assim como os primitivos eram
forçados a entrar no ciclo da violência e da vingança.
Os seres humanos colocarão então, naturalmente, as violências que
praticam entre si, quer dizer sua indiferença recíproca, na conta das
necessidades e das carências, porque a indiferença de todos transforma a de
cada um numa obrigação. Porque as rivalidades estão dirigidas para objetos e
que os sacrificados estão sendo abandonados à própria sorte, acreditaremos
espontaneamente que é a quantidade real de bens e de recursos disponíveis
que determina a convergência dos desejos e a brutalidade das relações
humanas. Porque ninguém enxerga que a indiferença produz sacrificados e
que a violência é invisível, todos acreditarão que a falta de objetos é a causa
da sorte dos infelizes.
A relação dos duplos significa para cada um deles o desejo de
possuir mais objetos, ou, pelo menos, um objeto que não possui ainda. Cada
um imaginará que somente a continuação e a intensificação dessa relação
podem resolver o problema da miséria, porque, para cada um, aparentemente,
ela reduz a escassez. Mas como essa relação é o reverso da indiferença
mortífera que fabrica os indigentes, é o movimento pelo qual imaginamos lutar
contra a escassez que a produz. O paradoxo que impressionou tanto os
observadores do inicio da idade industrial, segundo o qual a riqueza das
nações e o número de miseráveis aumenta em paralelo, encontra aqui sua
solução.
O mecanismo social produtor de miséria está funcionando: a
disjunção entre as conseqüências sociais e as conseqüências individuais das
ações dos homens é total. O abandono das obrigações de solidariedade
previne a polarização dos conflitos e produz a miséria. O reverso desse
abandono é ao mesmo tempo conflito e meio de garantir a própria subsistência.
A conseqüência individual do desejo mimético, do agravamento das rivalidades
é a inveja, o ciúme, o ódio impotente, o ressentimento. Mas é também a
riqueza, a abundancia, verdadeira ou desejada. A conseqüência social do
desejo mimético, do agravamento das rivalidades é a proteção contra a
escalada catastrófica e a violência aberta. Mas é também a miséria e o
abandono de cada um à própria sorte. E como todos acreditam que os conflitos
e a miséria provém da escassez, todos vão atrás dos seus próprios interesses,
pensando remediar o mal, assim o perpetuando e o ampliando.
A pluralidade das rivalidades miméticas, a disjunção entre as
conseqüências individuais e as conseqüências sociais das ações dos homens
constroem uma entidade independente e exterior à suas simples relações, uma
parcimônia da natureza transcendente ao corpo social e fundadora da ordem
cultural. A escassez é o modo pelo qual os homens, ao mesmo tempo, se
defendem contra sua própria violência e a projetam fora deles mesmos.
O movimento que constrói a escassez fabrica também a irrealidade
do mal. A escassez caracteriza principalmente as relações entre terceiros
enquanto a irrealidade do mal é sintomática das relações entre duplos. A
irrealidade do mal é a crença de que o mal não faz mal. E se a escassez está
ligada ao desenvolvimento do pensamento econômico, a irrealidade do mal é
indissociável do desenvolvimento das morais da intenção e da interioridade.
A irrealidade do mal é a certeza que a inveja, o ciúme, a cobiça, a
ganância, o ressentimento (“veja bem, você é ingênuo, todo mundo vive
assim!”) não fazem mal. Principalmente porque esses vícios produzem a
riqueza, e são motivações econômicas. E é também a idéia de que os atos são
julgados pelas intenções, boas ou más, e que somente a intenção,
independentemente de suas conseqüências contingentes, decide o valor de
uma ação. Uma atitude confina o mal na intenção enquanto a outra não vê mal
nenhum nos maus sentimentos que corroem o coração se o resultado é feliz.
São dois aspectos da mesma disjunção entre as conseqüências sociais e as
conseqüências individuais dos atos. Porque a intenção, continuamente, vai
esbarrar nessa disjunção, porque as violências mais fortes acontecem nas
relações entre terceiros, porque todos vêem o mal e ninguém vê a violência, a
eficácia social da moral tradicional desaba. O sentimento moral só pode
confessar sua impotência ou se fechar na interioridade. De um modo ou do
outro, o mal humano torna-se irreal, seja que ele decorre da parcimônia da
natureza, seja que ele seja reduzido à má intenção. De um modo ou do outro, a
disjunção entre as conseqüências individuais e sociais dos atos sanciona a
irresponsabilidade dos homens.
Péguy acreditava que a pobreza e a miséria se situavam cada um de
um lado da linha que separa o econômico do moral. A instituição social da
escassez é a instituição social da miséria porque o abandono das obrigações
tradicionais de solidariedade significam a ubiqüidade dessa linha. No universo
social da escassez, esse limite está em todo lugar, e cada um está ameaçado
de passa-lo, independentemente da quantidade real de bens e de recursos que
ele pode ter. A segurança na vida não está ligada às riquezas materiais, ao
número de objetos possuídos; ela depende das relações com os outros. A
miséria material ou psíquica possui sempre a forma da exclusão e da solidão.
Ela possui sempre a forma dos sacrificados vítimas da indiferença dos
terceiros. Eles nunca são indiferentes à indiferença dos outros. A indiferença
irresponsável mata sem ver, por exemplo pelo suicídio.
A exterioridade (ver externalidade dos processos de produção,
Korten) dos societários é o abandono das obrigações tradicionais de
solidariedade; por essa razão, a instituição social da escassez é fundadora de
uma forma particular de indigência, que conjunge a pobreza material e o
abandono à própria sorte. É essa conjunção da necessidade material e da
impotência pessoal, sancionada socialmente, que é preciso chamar de miséria.
O retorno universal da mimesis característico da escassez é a
imperceptível degenerescência de um sistema hierarquizado. As rivalidades
miméticas surgem em todos os lugares, dentro de cada nível, não entre esses
níveis. Para que elas surjam entre os níveis, é preciso que o sistema inteiro
tenha desabado e é somente a evolução das rivalidades que o destrói. Os
subordinados tentarão rivalizar com seus superiores no momento que a
distancia social que os separa não é muito grande.

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