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CAPITALISMO HISTORICO INTRODUGAO, Dots PEp1Dos sucessivos contribuiram diretamente para que este livro viesse & luz. No outono de 1980, fui convidado por Thierry Paquot a escrever um pequeno texto para uma colecio que ele estava editando em Paris, © tema sugerido era “capita- lismo”, Respondi que desejava fazé-lo em principio, mas gosta- ria que 0 assunto fosse “capitalismo hist6rico”. Marxistas ¢ ontros autores de esquerda haviam escrito bas- tante sobre 0 capitalismo, mas a maioria desses livros sofia de caréncias que podiam ser agrupadas em dois tipos. Parte deles consistia basicamente em anilises I6gico-dedutivas; adotavam- se como ponto de partida definigdes do que se pensava ser 0 ¢a- pitalismo em esséncia ¢ entao se observava como ele se de- senvolveu em diferentes tempos ¢ lugares. O segundo grupo centrava suas andlises em supostas transformagoes fundamen- tais do sistema capitalista, tendo como referéncia um momento recente, definidor de uma realidade empirica presente que pas- sava a ser comparada com um tempo anterior descrito de for- ma mitica. Parecia-me urgente ver o capitalismo como sistema hist6ri- co, abrangendo 0 conjunto de sua hist6ria como realidade con- creta e tinica, & a tarefa para a qual, em certo sentido, se dirige todo o corpus do meu trabalho recente. Assumi entio o desafio de descrever essa realidade, tentando delinear 0 que sempre es- tudou (de modo que pudéssemos nome). teve mudando 0 que 10 abranger toda a realidade sob um s Como outros autores, acredito que essa realidade seja um todo integrado. Mas muitos usam este ponto de vista para ata~ ‘ar terceiros, por seu suposto “economicismo” ou “idealismo” cultural, ou por sua énfase exagerada em fatores politicos “vo- 9 CAPITALISMO HISTORICO luntaristas” Tais criticas, quase por sua propria natureza, ten- dem a cair por ricochete no pecado oposto. Por isso, tentei apresentar de forma mais direta e integrada a rcalidade global, tratando sucessivamente suas expresses nas esferas econdmica, politica ¢ cultural-ideolégica, Pouco depois de ter concordado em fazer este livro, fui con- vidado a dar uma série de palestras no Departamento de Cién- cia Politica da Universidade do Havai. Agarrei entio a opor- tunidade para escrevé-lo, agora tendo em vista as palestras, realizadas na primavera de 1982. A primeira versio dos trés pri- meiros capitulos foi apresentada no Havai. Sou grato aos co- ‘mentarios e criticas feitos por minha animada platéia, que me permitiram melhorar consideravelmente a apresentagiio. (© quarto capitulo — actescentado depois — foi um desses aperfei¢oamentos. Ao longo das palestras, percebi um problema recorrente: a enorme fora subterranea da crenca no progresso inevitavel. Esta crenga viciava nossa capacidade de compreen der as reais alternativas histéricas. Decidi, pois, abordar direta- mente a questio. Finalmente, permitam-me uma palavra sobre Karl Marx. Ele foi uma figura monumental na hist6ria intelectual e politica moderna. Deixou um enorme legado, rico do ponto de vista conceitual e inspirador do ponto de vista moral. Contudo, de- ‘vemos levar a sério o fato de ele ter dito que nio era marxista, € nao descartar sua frase como um bon mot. Ele sabia — e muitos dos seus autoproclamados discipu- los freqientemente nao sabem — que era um homem do sé- culo XIX e que sua visto estava inevitavelmente cireunscrita pela realidade social de sua época. Sabia, como muitos nao sa- bem, que uma construgio tedrica s6 € compreenstvel quando observada em relagdo & construgdo alternativa com a qual se confronta, implicita ou explicitamente; ela levante quando comparada a construgdes sobre outros proble- inteiramente irre 10 INTRODUGAO mas, baseadas em outras premissas, Sabia, como muitos nao sa~ bem, que seu trabalho continha uma tensio entre a descrigao do capitalismo como um sistema ideal (que nunca existiu de fato na hist6ria) e a anilise da realidade concreta do dia-a-dia do mundo capitalista, Usemos, pois, seus escritos da tinica maneira sensata, tra tando-o como um camarada de lutas que sabia tanto quanto ele sabia. A MERCANTILIZAGAO DE TUDO: PRODUGAO DE CAPITAL © caprrattsmo ¢, em primeiro lugar e principalmente, um sis- tema social hist6rico. Para entender suas origens, formagao € petspectivas atuais, precisamos examinar sua configuracao real. Podemos tentar capté-la por meio de um conjunto de afirma- «bes abstratas, mas seria tolo usé-las para avaliar e classificar a realidade. Por isso, tentarei descrever 0 que 0 capitalismo tem sido na pratica, como tem funcionado como sistema, por que se desenvolveu das maneiras como se desenvolveu e qual é seu rumo atual. ‘A palavta capitalismo vem de capital. E legitimo, pois, pres mir que 0 capital seja o elemento-chave do capitalismo. Mas 0 ‘que € capital? Em certa acepsio, é riqueza acumulada. Poré quando usado no contexto do capitalismo histérico, 0 conceito tem uma definigao mais especifica. Nao é somente 0 estoque de bens consumiveis, de maqninas on de demandas reconhecidas (ou seja, que se expressam sob forma de dinheiro) de coisas materiais, £ claro que o capital continua a referir-se, no capita~ lismo hist6rico, a acumulagao dos resultados do trabalho passa- do, ainda nao consumidos; mas se isto fosse tudo, poder-se-ia dizer que todos os sistemas, desde o do homem de Neanderthal, teriam sido capitalistas; todos possuiam, em algum grau, esto- {ques que materializavam 0 trabalho passado. ‘Algo distingue o sistema social que estamos chamando de capitalismo histérico: nele, 0 capital passow a ser usado (inves: tido) de maneira especial, tendo como objetivo, ou iotencio A primordial, a auto-expansio. Nesse sistema, o que se acumulou no passado s6 é “capital” na medida em que seja usado para acumular mais da mesma coisa, Trata-se de um processo com- plexo, até sinuoso, como veremos. Usamos a expressio “capi- 13 CAPITALISMO HISTORICO talistas” para nomear essa meta persistente e autocentrada do detentor de capital (a acumulagdo de mais capital) e as relagées que cle tem de estabelecer com ontras pessoas para aleangé-Ia. E claro que esse objetivo nunca foi exclusivo. Outras conside- Tages se intrometem no processo de produgdo. Contudo, a uestdo ¢ identificar que consideragdes tendem a prevalecet em caso de conflito. Onde a acumulacao de capital tenha tido pri idade sobre objetivos alternativos ao longo do tempo, pode- ‘mos dizer que estamos em presenga de um sistema capitalista em operasao. Um individuo (ou grupo de individuos) pode decidir em qualquer tempo que gostarla de investir capital com 0 objetivo de adquirir mais capital. Porém, antes de um certo momento na historia, esses individuos nao tinham nenhuma facilidade em conseguir isso. Nos sistemas anteriores, o longo ¢ complexo Processo de acumulaso do capital era quase sempre bloqueado ‘Aum ou noutro ponto, mesmo nos casos em que a condigéo inicial estava presente: a propriedade, ou concentracao, de um estoque de bens ndo consumidos nas maos de poucos. Nosso capitalista hipotético sempre precisou usar trabalho: logo, tinha de encontrar pessoas que pudessem ser atrafdas, ou compelidas, a realizar esse trabalho. Uma vez reunidos os trabalhadores realizada a produgao, era necessério comercializar os bens; pre- cisavam existir um sistema de distribuicao e um grupo de pes- soas dotadas dos meios necessérios para efetuar compras. Os bens tinham de ser vendidos a um prego maior do que os cus- tos totais desembolsados pelo vendedor (incluindo os custos de colocé-los no ponto de venda) e, além disso, a margem (ou diferenca) precicava ultrapassar as uecessidades de subsistén- cia do vendedor. Em linguagem moderna, tinha de haver lucro, © agente que se apoderava do lucro tinha de ser capaz de reté- lo até surgir uma oportunidade razodvel de investi-lo, retornan- do-se assim ao ponto em que todo 0 proceso recomecava, des- dea produgao, PRODUGAO DE CAPITAL ‘Antes dos tempos modernos, esse encadeamento de pro- cessos (as vezes denominado circuit do capital) raramente se completou. Nos sistemas sociais hist6ricos anteriores, os deten- tores da autoridade politica moral consideravam irracionais efow imorais muitos dos clos dessa corrente, Mesmo quando os jue detinham o poder se abstinham de interfer, 0 processo era aca ‘Boma por causa da nio-disponibilidade de um ‘ou mais elementos: estoque de dinheiro acumulado, mao-de- obra disponivel para ser utilizada pelo produtor, rede de distri- buidores, consumidores com poder de compra Um ou mais elementos faltavam, porque nos sistemas sociais hist6ricos anteriores tais elementos ndo haviam sido transfor- mados em mercadoria, ou entao essa transformagio ainda era incipiente. Nao se considerava que os processos descritos pu- dessem ou devessem resultar de transagdes realizadas em mer- cados. Por isso, o capitalismo histérico incluiu a ampla mercan- tlizagao de processos — nao s6 os de troca, mas também os de produio e de investimento — antes conduzides por vias nao ‘mercantis. No anseio de acumular cada vez mais capital, os ca~ pitalistas buscaram mercantilizar cada vez mais esses processos sociais presentes em todas as esferas da vida econdmica. Como © capitalism é centrado em si mesmo, nenhuma relagdo social permaneceu intrinsecamente isenta de uma possivel inclusao. 0 desenvolvimento histérico do capitalismo envolveu o impul- so de mercantilizar tudo. de produgao se vinculavam uns aos outros através de cadeias mercantis complexas. Consideremos, por exemplo, um item de vestuario, um bem amplamente produzido ¢ vendid av longo da experiéncia hist6rica do capitalismo, Para produzi-lo, sto necessirios, no minimo, tecido, linha, algum tipo de méquina e forga de trabalho. Cada um desses itens, por sua vez, tem de ser produzido, e 0 mesmo ocorre com os itens que entram na sua produgio. Nao era inevitével — e nem sequer comum — que 15 todos os subprocessos dessa cadeia estivessem disponiveis sob a forma de mercadorias. Sem diivida, como veremos, freqtientemente maior quando nem todos os elos de ‘ao de fato mercantilizados. Em cadeias assim, disperso conjunto de trabalhadores que recebe, Femuneragdo, langada como custo em um regi também um conjunto de pessoas, disperso, que divide de algum mo. longo da cadeia mercantil — © lucro € cadeia es ‘ha um grande e m algum tipo de stro contabil, Ha muito menor mas também 'do 0 excedente criado — ao ela diferenca entre os custos to- tals de produsio e a renda total decorrente da venda do produ. ‘o final. Estas pessoas operam como agentes econdmicos distin tos e ndo se reconhecem como parceiros, Considerando que as cadeias mercantis Processos de produto, pitalistas’, vistos em con is vinculam muitos a taxa de acumulagao para todos 0s “ca- unto, dependia do tamanho da margem ue podia ser criada, margem que podia flutuar considera, velmente, Porém, a taxa de acumulagao obtida individuslmen. i: Por cada capitalista dependia de um processo de “competi. $0 com recompensas maiores para aqueles que possuiam mais Perspicicia, maior habilidade no controle de sua forca de tea ior acesso as decis6es politicas que regulamentavam operagdes mercantis especificas (conheci idas em geral como “monopélios”) 4sso criou a primeira contradicdo clementar do sistema, © interesse de todos os capitalista, vistos como classe, sevis ne. dluzir todos os custos de produgso, mas na verdade esas rede. ‘Ges favoreciam capitalistas especificos, em detrimento de ou. tros. Conseqiientemente, eles preferiam agir para aumentar sua Participagdo em uma margem glohal menor, em ver de aveitar uma participagio menor em uma margem gl lobal maior. Havia tima segunda contradi¢ao fundamental no sistema, Na medida " luciondrios continuaram a funcionar dentro da divisao soci do trabalho do capitalismo hist6rico. Querendo ou nao, eles sempre operaram sob a pressio do esforgo pela acumulagao in- ccessante de capital. Internamente, a conseqiiéncia politica foi a da forga de trabalho, em muitos casos exploragao continuada z sob uma forma talvez reduzida e melhorada. Isso redundou em Se ia as em Estados tensdes internas equivalentes aquelas encontrad: sntos anti-sistémicos € que eles de Estados. Isso modifi- wrga também era 63 CAPITALISMO HISTORICO que nao eram “pés-revolucionérios’; o que veio a servi vez, como caldo de cultura para novos movimentos anti-sisté= micos no interior desses Fstados. Ali, a luta pelo lucro pros- seguiu tanto quanto em qualquer outra parte, pois, no interior da economia-mundo capitalista, os imperativos de acumulagio ‘operam en: todos os aspectos de todo o sistema. As mudangas nas estruturas de Estado alteraram a politica de acumulagao; mas nao foram capazes de acabar com ela. " No comego deste texto, adiamos as seguintes questoes: até que ponto sao reais os beneficios do capitalismo histérico? Qual a real dimensio das mudancas na qualidade de vida Agora lve estar claro que nao ha respostas simples para elas. “Para quem?"; devemos perguntar. O capitalismo histérico foi capaz de ctiar bens materiais em escala monumental, mas criou uma de- sigualdade igualmente monumental na distribuigdo da recom: pensa. Muitos se beneficiaram enormemente, mas muitos mais experimentaram uma redugao substancial de sua renda real e sua qualidade de vida. Como a polarizagao embers pec sou em termos espaciais, em algumas éreas ela pareceu nao exis tir. Isso também foi uma consequéncia da luta pelo lucta. A geo- grafia do beneficio se alterou frequentemente, mascarando a realidade da polarizacéo. Mas, no conjunto do espaco-tempo abrangido pelo capitalismo hist6rico, a acumulagao incessante de capital representou um crescimento da brecha real 6a por sua A VERDADE COMO OPIO: RACIONALIDADE E RACIONALIZAGAO (0 caprtatismo Hist6xico foi prometéico em suas aspiragdes. Embora mudangas cientificas ¢ tecnolégicas tenham sido uma constante na atividade humana, s6 com o capitalismo histérico Prometeu, sempre presente, foi “desacorrentado’, na frase de David Landes. Generalizou-se a imagem de que a cultura cien- tifica do capitalismo hist6rico foi proposta por nobres cavalhei- ros que enfrentaram a resistencia obstinada das foreas da cultu- ra nio cientifica “tradicional”: No século XVI, Galileu contra a Igrejas no século XX, 0 “modernizador” contra o mullah, Em to- dos os casos, fala-se de “racionalidade” versus “superstigao", de “iberdade” versus “opressao intelectual”, Presume-se que 0 pro- «esso foi paralelo (ou mesmo idéntico) a revolta do empreende- dor burgués contra o senhor de terras aristocratico no ambito da economia politica. ‘A imagem de uma luta cultural mundial teve uma premis- sa oculta, uma premissa de temporalidade. Presumia-se que a “modernidade” fosse nova, ao passo que a “tradigao” seria ve~ tha, anterior; em algumas versbes fortes da imagem, a tradigao cera a-hist6rica, virtualmente eterna. Essa premissa era histori- camente falsa e fundamentalmente equivoca, As multiplas cul- turas, as multiplas “tradigbes” que floresceram no interior das fronteiras espago-temporais do capitalismo histérico nao eram ‘mais originais do que as muiltiplas estruturas institucionais. Em grande parte, elas so criages do mundo moderno, integram sua contstuygo idcolbgica. £ claro, existiram vinculos das vari “tradigoes” com grupos e ideologias anteriores ao capit: histérico, no sentido de que freqiientemente foram construidos mo com materiais hist6ricos ¢ intelectuais ja existentes. Além disso, a afirmago desses vinculos trans-hist6ricos desempenhou im- portante papel na coesio dos grupos em suas lutas politicas ¢ 65 CAPITALISMO HISTORICO econdmicas no seio do capitalismo histérico. Porém, se quiser- ‘mos compreender as formas culturais dessas lutas, nao pode- oa S ale de tomar essas “tradiedes” pelo ceu valor nominal, Particularmente, nao “tradi pos ea podemos afirmar que as “tradi- _ Forgas de trabalho foram criadas nos lugares certos, com os niveis mais baixos possiveis de remuneracio, no interesse ds que desejavam facilitar a acumulagao de capital. Jé discutimos como a criagio de unidades domiciliares nas quais o trabalho assalariado desempenhava um papel secundirio como fonte d reada postbiliton ves inferores de pagamento na atvidedl econdmicas periféricas da economia mundial. Uma maneira como essas unidades domiciliares foram “criadas’, isto é, pres- sionadas a se estruturar por si mesmas, foi a“etnizagao” davida comunitéria no capitalism histérico. Com a expressio “grupos étnicos’, queremos dizer o seguinte: grupos dimensiondveis de Pessoas para as quais se reserva um certo papel ocupacional/ cena relagio @ outros grupos vivendo na proximi- le geografica. A simbolizagdo externa de uma tal alocagdo da forga de teaballu € a “cultura” distintiva do grupo étnico — sua religido, sua lingua, seus “valores’, seu conjunto particular de padrdes de comportamento cotidiano, ee E claro, nao estou sugerindo que no capitalismo histérico exista algo como um perfeito sistema de castas. Porém, desde ue utilzemos categoria ocupacionais suficientemente amplas, estou sugerindo que ha, e sempre houve, alta correlagio entre etnicidade e papel ocupacional/econdmico nas virias éreas es- a¢o-temporais do capitalismo histérico. Também estou euge Findo que esas localizagdes da forca de trabalho tem veriado 20 longo do tempo, e que & medida que variaram, variou tam- bem a etnicidade, em termos das fronteiras e dos tragos cultu- rais caracteristicos do grupo; e mais, quase nao ha correlacao entre a atual localizagdo da fora de trabalho étnica e seus 66 RACIONALIDADE E RACIONALIZAGAO postos ancestrais que viveram em periodos anteriores 20 capi- talismo hist6rico. ‘A “etnizagio” da forga de trabalho teve trés conseqiiéncias importantes para 0 funcionamento da economia-mundo. Em primeiro lugar, possbilitou a reproducao da forga de trabalho, nao no sentido de prover renda suficiente para a sobrevivencia dos grupos, mas no de prover quantidades suficientes de traba- hadores em cada categoria, com expectativas de renda manti- das em nfveis apropriados, tanto em termos dos montantes to- tais quanto das formas que assumiria a renda domiciliar. Além da”, a localizagao da forga disso, precisamente por ser “etniciza de gerou mais mabilidade de trabalho ficou flexivel. A etnicidas geogrifica ¢ ocupacional em grande escala, nfo menos. Sob pressio de condigées econdmicas em constante modificaglo, para mudar a localizagao da forga de trabalho bastava que al~ guns individuos empreendedores de um grupo étnico levassem geogrfico ou ocupacional e fossem ural adiante um reassentamento recompensados por isso; isso exercia uma “influéncia” nat sobre os outros membros do grupo, no sentido de transferirem sua localizagao na economia-mundo. Em segundo lugar, a “etnizagio” propiciou um mecanismo intrinseco de treinamento da fora de trabalho, garantindo que grande parte da socializao nas tarefas ocupacionais fosse de- sempenhada no interior de unidades domiciliares etnicamen- te definidas, e nao a custa de Estados ou de empregadores de assalariados. Em terceiro lugar, e provavelmente 0 mais importante, @ “etnizacao” trouxe embutida uma hierarquizagao de papéis eco- nomicos, propiciando um cédige fécil de distribuieao global de renda— revestido com a legitimagao da “tradigao” Essa terceira consequéncia, elaborada de maneira mais deta- hada, formou um dos alicerces do capitalismo histérico, 0 ra- cismo institucional. O que queremos dizer com racismo tem pouco a ver com a xenofobia que existiu em vérios sistemas his- 07 CAPITALISMO HIStORICO ‘6ricos anteriores. A xenofobia era literalmente, medo do “ey twangeiro’: No capitalismo historio, o racismo nada om oma ae = Ao contritio, O racismo foi o modo coma! {aries segmentos de fread trabalho foram abrigados a see {clon uns com os outos no interior de uma mesma esr Tur economica racismo ¢ justifcativaideoigca da hie aoe la forca de trabalho e da distribuicao, altamente_ isi da recompenssOracsmo ¢ conjunto de afirmagoes | i esis combinado com o conjunto de prticas duradouras {Rs sularm em mantra longo do temp, ua alta core to ente etnicidade ¢ loclizagao da fora de trabalho, Essa safe esis 2 mantifestam sob a forma de aegagbes, Se 35 aus asus gendticos ou “cultura” duradouros de ‘ Pos seriam a causa principal da sua localizacao dife- renciada em posigdes da estrutura econdmica. Contudo, Ilia © dexmpeo sono sme ron pols, e nao antes, da locaizagao desses grupos na forga cee) © racismo sempre foi pis-hoe Aftmovr ae Seal a foram econdmica e poltcamenteoprimids sio cultralmen- riores”, Se o locus da hierarquia economica muda Por alguma razdo, o locus da hierarquia social tendia a acom. sh (pa ps eames me se ea ae beatae uas para erradicar os efeitos de uma so- = tacisme tem sido uma idecog itd Mas om dn man Sete pon goa pos sejam socializados den pec ta ono As atnds neler pecan Portamentos abertamente discriminatérios no dia.» dia) set viram para estabelecer condutas individuais apropriadas e le. sitimadas,ocupando diferentes posgdes na unidade domiciiag €1no grupo étnico. 0 racismo, como o sexismo, funcionot ‘mo uma ideologia que cria e delimita expectativas iar uncionou co- 68 RACIONALIDADE E RAGIONALIZAGAO © racismo nao € somente auto-restrtivo. £ opressivo. Serve para manter na linha os grupos de baixo escalao ¢ utilizar os de fscalao médiv como soldados nao remunerados do aparato. po- licial mundial. Assim, nao s6 os custos financeiros das estruturas policiais foram significativamente reduzidos, mas a capaciclade ddos grupos anti-sistemicos de mobilizar amplas populagoes foi dbstaculizada, pois o racismo joga vitima contra vitima. (0 racismo nao é um fendmeno simples. E, em um sentido, uma linha de demarcagao, excluindo status relativos no sistema ‘mundial como um todo. Tal foi a fronteira da “cor”. O “branco’, co superior, era um fendmeno social, ¢ claro, ¢ nao fisiolgico, ‘como fica evidente pela posicio historicamente cambiante, nas “fronteiras de cor” mundial (nacional) ¢ socialmente definidas, dle grupos como 0s europeus meridionais, os érabes, os mesti- 08 latino-americanos, 08 asidticos do leste. Era facil utilizar a etiqueta da cor (ou da fisiologia), pois € dificil disfargé-la. Até onde foi historicamente conveniente, da- das as origens do capitalismo hist6rico na Europa, ela foi utili- vada, Sempre que deixou de ser conveniente, foi descartada ou modificada em favor de ontras caracteristicas identificadoras. Em muitos lugares, o conjunto de marcas de identificagao se tornow muito complexo por causa disso. Se considerarmos 0 fato de que a divisao social do trabalho esté em evolugio cons- tante, revela-se que a identificagdo étnica/racial constitu uma base muito instavel para delinear as fronteiras dos grupos so- grupos vio vem, alterando com conside- ciais existentes. Os ravel facilidade as definigdes que fazem de si mesmos (com 2 mesma facilidade, sao percebidos pelos outros como tendo fronteiras diferentes). Mas a volatilidade de qualquer frontcira de grupo nao € contradit6ria com a permanéncia de uma hie- rarquia global entre os grupos: a0 contrério, € provavelmente uma fungao dela, da “etnizagao” da forga de trabalho mundial (© racismo foi um pilar cultural do capitalismo historico. clectual em que se move nao impediu que desenca- O varie 6 CAPITALISMO HISTORICO deasse terriveis crueldades. Entretanto, haja vista o surgimento ddos movimentos ant-sistémicos mundo afora nos ditimos cin- {yGenta ou cem anos, mais recentemente o racismo tem sofrido alguns ataques severos. Sem duivida, as variantes mais cruas de racismo sofrem hoje uma certa deslegitimacio no ambito mun- dial. Mas 0 racismo nao foi o nico pilar ideol6gico do capita- lismo hist6rico, Ele foi importante para criar forcas de trabalho apropriadas, mas nio foi suficiente para permitir a acumula- sao incessante do capital. Nao se pode esperar que as forgas de trabalho pudessem ser eficientes e permanentes, a menos que fossem administradas por dirigentes. E dirigentes também tém de ser criados, socializados, reproduzidos. A ideologia priméria ‘que operou para ctié-los, socializé-los e reproduzi-los nao foi a ideologia do racismo, mas a do universalismo. © universalismo ¢ uma epistemologia. E um conjunto de crengas sobre 0 que pode ser conhecido e como pode ser co- nhecido. A esséncia desse ponto de vista €a seguinte: héafirma- ‘gOes gerais significativas sobre o mundo — o mundo fisico, 0 mundo social — que s¥o universas e permanentemente verda- deiras; 0 objeto da ciéncia seria buscar essas afirmasécs zeta, de modo a eliminar de sua formulasio todos os assim chama dos elementos subjetivos, isto é, historicamente limitados. ‘A crenga no universalismo é a pedra fundamental do arco ideolégico do capitalismo histérico. Tanto quanto uma episte- mologia, 0 universalismo é uma fé. Exige respeito e reveréncia ‘em relagdo a uma verdade indefinida, mas pretensamente real. ‘As universidades foram as oficinas da ideologia e os templos da {, Harvard ostenta Veritas em seu escudo. Sempre se afirmou que € impossivel conhecer uma verdade definitiva — suposta- mente, sso distingue a ciéncia moderna ¢ a teologia medieval ‘ocidental —, mas também se afirmou que a busca da verdade era a raison d’étre da universidade e, mais amplamente, de toda atividade intelectual, Para justificar a arte, Keats disse que “ver- dade ¢ beleza, beleza é verdade”, Nos Estados Unidos, uma das 70 RACIONALIDADE & RACIONALIZAGRO justificativas preferidas para as liberdades civis € que a verdade 6 pode ser conhecida como resultado da interagio que ocorre no “mercado livre de idéias". Como ideal cultural, a verdade funcionou como um 6pio, talvez o tinico 6pio sério do mundo moderno. Karl Marx disse que a religido era 0 épio do povo. Raymond Aron respondeu dizendo que as idéias de Marx eram, por sua vez, 0 6pio dos in telectuais. Ha perspicéicia em ambas as observagoes polémicas Mas, perspicacia € verdade? Gostaria de sugerir que a verdade tem sido o verdadeiro 6pio, tanto das massas quanto dos inte- lectuais. O pio, certamente, nem sempre € mau. Ele possibilita cescapar quando as pessoas temem que 0 confronto com a dura realidade s6 possa precipitar perdas ou decadéncias inevitéveis. ‘Todavia, a maioria de nés ndo recomenda 0s opidceos. Nem Marx nem Raymond Aron o fizeram, Na maioria dos Estados € para a maioria das propostas, ele € ilegal ‘Nossa educacao coletiva nos ensinou que a busca da verdade 6 uma virtude desinteressada, mas isso ¢ apenas uma raciona- lizagdo cheia de interesses. A busca da verdade, pedra funda- ‘mental proclamada do progresso e do bem-estar, tem sido no ‘minimo pouco coerente com a manutengao de uma estrutura social hierdrquica e desigual em certo nimero de aspectos. Os ‘processos envolvidos na expansio da economia mundial capi- talista — a “periferizagao” de economias, a criagdo de estrutu- ras estatais frégeis que participam no sistema interestatal ¢ so constrangidas por ele — implicaram uma certa quantidade de pressdes no plano cultural: proletarizacio crista, imposigao das linguas européias, educagio em tecnologias ¢ costumes espect ficos, alteragdes de codigos legais. Muitas dessas mudangat foram feitas a forga. Outras foram levadas adiante pela persua- so de “educadores” cuja autoridade, em altima anélise, tam- ‘bém se apoiava na forca militar. A esse complexo de processos as vezes chamamos “ocidentalizagio” ou, mais arrogantemente, “modernizacio’, legitimada pela desejével vantagem de parti- a ‘CAPITALISMO HISTORICO Ihar tanto os frutos do universalismo quanto a fé na ideologia que o acompanha, Houve dois motives principals por trés dessas mudangas culturais impostas. Um foi a eficiéncia econémica. Para que se possa esperar que certo niimero de pessoas se comportem de certa maneira no ambito da economia, é preciso ensinar as nor- ‘mas culturais requeridas ¢ erradicar as normas culturais com- petidoras. O segundo motivo foi a seguranga politica. Acredita- varse que se as assim chamadas elites das zonas periféricas se ‘ocidentalizassem’, se separariam de suas “massas” e estariam ‘menos propensas a se revoltar — ademais, seriam menos capa- 2zes de arregimentar seguidores para suas revoltas. Isso se reve Jou um monumental erro de célculo, mas é plausivel que tenha funcionado por um tempo. (Um terceiro motivo tera sido a in- soléncia ¢ arrogincia dos conquistadores. Eu nao desprezo este fator, mas nao é necessario evocé-lo entre as presses culturais, {que teriam sido semethantes mesmo na sua auséncia,) racismo servit como mecanismo de controle mundial dos produtores diretos, enquanto o universalismo serviu para diri- gir as atividades da burguesia de outros Estados ¢ de virios c3- tratos médios mundo afora para canais capazes de maximizar a integragao dos processos de produgdo e tornar mais suave a operagio do sistema interestatal, facilitando assim a acumula- sao de capital. Para tal, era necessério criar uma estrutura cul- tural burguesa mundial, passivel de ser enxertada nas variagdes “nacionais’, Isso foi particularmente importante em termos de cigncia ¢ tecnologia, mas também no espaco das idéias politicas € das ciéncias sociais. © conceito de uma cultura universal “neutra” pela qual os gerentes da divisdo mundial do trabalho seriam “assimilados” (aqui, a voz passiva € importante) passou a servir como um dos pilares do sistema mundial, tal como evoluiu historicamente. A exaltagdo do progresso e posteriormente da “modernizagio” sintetizava esse conjunto de idéias, que serviam menos como aa RACIONALIDADE E RACIONALIZAGKO normas verdadeiras de agio social do que como simbolo de um status de obediéncia e participagao no estrato superior do mun- dv. A 1uptura com a base religiosa do canhecimento, supos- tamente estreita, em favor de bases cientificas transculturais de conhecimento serviu como autojustificativa para uma forma particularmente perniciosa de imperialismo cultural. Ela domi- ‘nou em nome da liberacZo intelectual e se impds em nome do ceticismo. (© processo de racionalizagao, central para 0 capitalism, cexigiu a criagio de um estrato intermedisrio que abrangesse 05 cespecialistas dessa racionalizagao, como administradores, téc- nicos, cientistas ¢ educadores. A propria complexidade nao 96 da tecnologia mas do sistema social tornou essencial que esse estrato fosse grande e, com o tempo, passivel de ampliagao, Os recursos usados para sustenté-lo foram tirados do excedente global, extrafdo por empreendedores e Estados. Neste sentido = elementar, mas fundamental —, esses gerentes so parte da burguesia,e sua reivindicagao de participar na partilha do exce- dente ganhou forma ideolbgica precisa no conceito — do sé- culo XX — de capital hiimano. Tendo pouco capital para trans- mitir como heranga aos membros da sua familia, esses gerentes buscaram assegurar sua sucessio garantindo o acesso preferen- cial de seus filhos aos canais educacionais que afiangam sua po- sigdo. Esse acesso foi apresentado como uma realizagio, pre~ tensamente legitimada por uma “igualdade de oportunidades” estreitamente definida. ‘Assim, a cultura cientifica se tornou o cédigo fraternal dos acumuladores de capital do mundo. Serviu em primeiro lugar para justficar tanto suas proprias atividades como as recom pensas diferenciadas de que usufruiam, Promoveu a inovasio ‘tecnol6gica. Legitimou a eliminagio impiedosa de todas as bar- reiras & expansio eficiente da produgao. Gerou uma forma de progresso que seria benéfico para todos — se nao imediata- mente, pelo menos no fim. CAPITALISMO HISTORICO ‘Mas a cultura cientifica ¢ mais do que uma racionalizagao, Ela foi a forma de socializacao dos gerentes das estruturas insti« tucionais necessérias. Como sua lingua comum — nao direta~ mente acessivel a forga de trabalho —, ela também se tornou um meio de coesao de classe para os estratos superiores,limi- tando as perspectivas ou a amplitude de eventuais atividades rebeldes por parte dos gerentes que pudessem sentir-se tentados 0. Foi também um mecanismo flexivel para a reprodugio esses gerentes, Ela se prestou ao conceito hoje conhecido como ‘meritocracia” e anteriormente como “carreira aberta aos talen- tos”. A cultura cientifica criou uma estrutura no interior da qual @ mobilidade individual ¢ possivel sem ameacar a estrutura hie~ rarquica da organizagao da forga de trabalho, Ao contrério, a meritocracia reforga a hierarquia, Finalmente, a meritocracia como operagio € a cultura cientifica como ideologia criaram véus que obstrufam a percepgéo das operages subjacentes do capitalismo histérico. A énfase na racionalidade da atividade cientifica serviu para mascarar a irracionalidade da acumulagao incessante. © universalismo ¢ 0 racismo podem parecer doutrinas con- tradit6rias, se ndo virtualmente antagOnicas: uma aberta, a ou- tra fechada; uma igualitéria, a outra polarizadora; uma convi- dando ao discurso racional, a outra a encarnar o preconceito, Contudo, visto que essas doutrinas se disseminaram e preva leceram lado a lado na evolugao do capitalismo histérico, pre- cisamos observar com cuidado de que modos podem ter sido compativeis. © universalismo tem uma peculiaridade. Ele nav abriu seu ‘caminho como uma ideologia flutuante, mas como o discurso dos que detinham 0 poder econdmico e politico no sistema mundial do capitalismo hist6rico, Assim, o universalismo foi ‘oferecido ao mundo como um presente dos poderosos para os fracos, Timeo Danaos et dona ferentes! Mas o proprio presente 74 RACIONALIDADE E RACIONALIZAGAO abrigava um certo racismo, pois deixava duas opgdes aos que 0 recebiam: aceité-lo, aceitando desse modo a existéncia dos que estavam situados 14 parte baixa da hierarquia do sabers recusé- Jo, recusando assim uma arma capaz. de reverter a situagdo de- sigual de poder. Nao é de se estranhar que mesmo os gerentes que estavam sendo cooptados pelo privilégio fossem ambivalentes diante da mensagem do universalismo, vacilando entre a adesdo entusias- tica e uma rejeigao cultural causada por aversdo a presungoes racistas. Essa ambivaléncia se expressou em miiltiplos movi- mentos de “renascimento” cultural. A propria palavra renasci- ‘mento, amplamente utilizada em muitas reas, encarnava essa ambivaléncia, Ao usé-la, afirma-se a gléria de uma era cultural anterior, mas também se reconhece a inferioridade cultural do ‘momento presente. A palavra renascimento foi copiada da his- t6ria cultural européia. Pode-se pensar que as forgas de trabalho do mundo fossem ‘mais imunes a essa ambivaléncia, pois nunca foram chamadas a cear & mesa dos senhores. Na realidade, contudo, as express6es politicas das forgas de trabalho mundiais, os movimentos anti- sistémicos, tém estado impregnados da mesma ambivaléncia, ‘Como observamos, cles adotaram a ideologia do Tluminismo, la propria, na origem, um produto da ideologia universalista Por conseguinte, estenderam para si a armadilha cultural em que estio presos desde entao: tentam minar o capitalismo his- t6rico usando estratégias ¢ estabelecendo objetivos de médio prazo decorrentes das “idéias das classes dominantes” que bus- cam destruit, Desde o comeso, a variante socialista dos movimentos anti- sistémicos sempre foi comprometida com 0 progresso cientifi- co. Desejaso de se distinguir de outros que ele mesmo criticou como “ut6picos’, Marx afirmou estar defendendo 0 “socialismo cientifico”, Seus escritos enfatizaram as maneiras como o capi talismo era “progressista”. O conceito de que o socialismo surgi- 75 CAPITALISMO HISTORICO 1a primeiro ns paises mis avangados”sugeria um progresso mediante 0 qual o socialismo se desenvolveria a partir do (e contraposigdo a0) avango do i contrposii wo) aren do api. Arevolto sok ¢ viria depois da “revolugao burguesa’. Alguns teéricos Posteriones chee a argumentar que era dever dos socialis- apoiar a revolucdo burguesa naqueles paises em da nao tivesse ocorrido, * a : As diferengas posteriores entre a Segunda ¢ a Terceira In- fernacionais ndo envolviam qualquer discordancia sobre essa epistemologia, que ambas partilhavam. Tanto os socialdemo- cratas quanto os comunistas no poder tenderam a dar grande prioridade ao desenvolvimento dos meios de produsio. O slo- sen de Lenin “socialismo ¢ igual a sovietes mais cletricidade” Figurava em enormes faixas nas ruas de Moscou, Na medida em que esses movimentos — socialdemocratas e comunistas uma vez no poder, implementram os slogans de tan “sci lismo em um s6 pais’ eles passaram a promover a mercantiliza- ‘0 de tudo, que tinha sido essencial para a acumulacio global de capital. Na medida em que permaneceram no seio do siste ta iteetatal —elutaram contra todos aque que tenarem ae eles aceitaram e promoveram a realidade mun- lial do dominio da lei do valor. O “homem socialista”tinha a suspeita aparéncia de um taylorismo irrefredvel Houve, ¢ claro, ideologias “socialistas” que pretenderam re- jeitar 0 universalismo e o Tum riedades “indigenas” de socialismo nas Areas periféricas da eco- nomia-mundo, Na medida em que essas formulagdes foram ‘mais do que mera retérica, elas pareceram tentativas de usar, como unidade de base do processo de mercantilizagao, ndo as novas unidades domiciliares que compartilham a renda, mas entidades comunais mais amplas, que eram —e isso fazia parte do argumento — mais tradicionais. No fim das contas, essas tentativas, quando sétias, se revelaram infrutiferas. De qualquer ‘modo, a tendéncia dominante no mundo dos movimentos so- 76 RACIONALIDADE F RACIONALIZAGAO cialistas foi crticar essas tentativas como nao socialistas, como formas de nacionalismo cultural retrogrado. ‘A primeira vista, por atribuir centralidade a temas separatis- tas, a variedade nacionalista dos movimentos anti-sistémicos parecia menos comprometida com a ideologia do universalis- mo. Porém, um exame mais cuidadoso desmente essa impres- so. © nacionalismo tem um componente cultural que movi- rmentos particulares reivindicaram em nome do fortalecimento das “tradigées” nacionais, ito é, uma lingua nacional e frequen temente uma heranga religiosa. Mas era o nacionalismo cul- tural uma forma de resistir as presses dos acumuladores de ca~ pita? Na verdade, 0s dois elementos principals do nacionalismo cultural se moviam em diregdes opostas. Primeiro, a unidade escolhida como veiculo para conter a cultura tendeu a ser 0 Fstado, que era membro do sistema interestatal, © mais fre ajitente era vermos esse Estado investido ¢ encarregado da cul- tura “nacional”, Em praticamente todos 0s casos, isso envolveu ‘uma distorgao, freqdentemente muito severa, das continuida- des culturais. Em quase todos os casos, a afirmagao de uma cul- tura nacional enquadrada pelo Estado implicou supressao, tan- to quanto reafirmagio, de continuidades. Em todos os cas0s, as estruturas do Estado sairam fortalecidas, e com elas 0 sistema interestatal e 0 capitalismo hist6rico como sistema mundial. Em segundo lugar, um exame comparativo das afirmagOes ‘culturais de todos esses Estados deixa claro que, apesar de va~ riatem na forma, eles tendem a ser idénticos no contetido. Os morfemas das Iinguas eram diferentes, mas 0 vocabuldrio co- ‘megou a convergit. Os rituais e teologias das religides do mun- ddo podem ter se fortalecido todos, mas seus contetidos come- caram a ser menos diferentes entre si. B os antecedentes do Gientificismo foram redescobertos sob muitos nomes diferentes. Em resumo, grande parte do nacionalismo cultural foi uma sgigantesca charada, Mais do que isso, assim como a “cultura socialista”, 0 nacionalismo cultural frequentemente sustentou a 17 CAPITALISMo HISTORICO ideologia universalista do mundo moderno, apresentando-a as forcas de trabalho de maneiras que estas pudessem aché-la mais Palatavel. Neste sentido, 03 movimentos anti-sistémicos servi Fam como intermedidrios culturais dos poderosos diante dos fracos, viciando — em vez de consolidar — suas fontes de resis- téncia mais enraizadas. Articuladas, as contradigdes inerentes a estratégia de toma- da do Estado e a aceitagao técita da epistemologia universalista produziram sérias conseqiténcias para os movimentos anti-sis- témicos. Fles tiveram de lidar crescentemente com o fendme- no da desilusio, para o qual sua principal resposta ideolégica tem sido a reafisunayao da justificativa central do capitalismo: © carter automitico ¢ inevitavel do progresso, ou como era Popular dizer na ex-Unito Soviética, a “revolugao cientifico- tecnol6gica”, No século XX, ¢ com veemiéncia crescente desde a década de 1960, o tema do “projeto civilizacional”, como Anouar Abdel- Malek gosta de chamé-1o, comecou a ganhar forga, Para muitos, a nova linguagem de “alternativas end6genas” servia como va- riante verbal dos velhos temas culturais nacionalistas ¢ univer- salizantes; para outros, havia no tema um contetido epistemo- logico genuinamente novo. O “projeto civilizacional” reabriu a uestao de saber se verdades trans-histéricas de fato existiam. ‘Uma forma de verdade, que refletia as correlagdes de forca e os imperativos econdmicos do capitalismo hist6rico, floresceu e permeou o planeta. Isso é verdade, como vimos. Mas, quanta luz essa forma de verdade tera projetado sobre 0 processo de declinio desse sistema hist6rico, ou sobre a existéncia de alter- nativas reais ao sistema hist6rico baseado ina acumulagao Inces- sante de capital? Fis a questao. ame Essa forma mais nova de resisténcia cultural tem uma base material. Ao longo do tempo, as sucessivas mobilizagoes dos ‘movimentos anti-sistémicos do mundo recrutaram um numero cada vez maior de elementos econdmica e politicamente mais 78 RACIONALIDADE B RACIONALIZAGAO ‘marginais a0 funcionamento do sistema € menos aptos a usu- fruir, mesmo que eventualmente, do excedente acumulado. Ao mesmo tempo, as sucessivas desmistficacies desses movimen- tos minaram a reprodugdo da ideologia universalista no seu in- terior, Eles comecaram a se abrir para aqueles que questionavam ‘mais asperamente as suas premissas. Comparado com o perfil da militancia dos movimentos anti-sistemicos do mundo de 1850 até 1950, seu perfil passou a abranger, a partir de 1950, ‘mais éreas periféricas, mais mulheres, mais grupos “minorité- rios” (das mais diferentes definigdes) e uma parcela maior do se- tor menos qualificado e menos remunerado da forga de traba- Iho. Isso foi verdade tanto no mundo como um todo quanto no interior dos Estados, tanto nas bases militantes como nas lide- rangas. Tal deslocamento da base social nao poderia ocorrer sem alterar as escolhas dos movimentos anti-sistémicos do mundo. ‘Até aqui, tentamos descrever como 0 capitalismo operou de fato como sistema hist6rico. Mas sistemas hist6ricos sao apenas isso: hist6ricos. Eles surgem e finalmente deixam de existir, em conseqiiéncia de processos que exacerbam as contradigdes in- ternas e produzem uma crise estrutural. Crises estruturais si0 ‘macigas. Levam tempo para se exaurir. O capitalismo hist6rico entrou em sua crise estrutural no comego do século XX e pro- vavelmente morreré, como sistema hist6rico, no préximo sé- culo. E dificil prever 0 que aconteceré. O que podemos fazer agora é analisar as dimensdes da crise estrutural ¢ tentar perce- ber para que diregdes a crise sistémica esté nos levando. (0 primeiro ¢ talvez mais fundamental aspecto dessa crise & que estamos perto de mercantilizar tudo. O capitalismo his- torico esta em crise porque, perseguindo a acumulagio cessante de capital, comeca a se aproximar daquele estado que ‘Adam Smith afirmou ser “natural” para 0 homem mas que ‘nunca existiu historicamente. A “propensao [da humanidade] a negociar, barganhar e trocar uma coisa por outra’” penetrou em dominios e zonas antes intocados, ¢ a pressio para expandir 79 CAPITALISMO HISTORICO a mercantilizacdo tornou-se praticamente irrestrita, Marx refe- riu-se ao mercado como um “véu” que oculta as relagbes de produgao. Isso era verdade em certo sentido: comparanda-se com a apropriacao direta e local do excedente, a apropriagao indireta ¢ extralocal, pelo mercado, é mais dificil de discernir © por isso, de ser politicamente combatida pelas forgas de tra- balho do mundo, Mas 0 “mercado” opera trim eu medida geral quantitativa, o dinheiro, Isso explicita, em vez de ‘istificar, 0 quanto esté sendo apropriado. Mas, como uma es- pécie de rede de seguranca politica, os acumuladores de capital contavam que s6 uma parte do trabalho fosse mensurado dessa forma, Na medida em que a forga de trabalho ¢ cada vez mais, ‘mercantilizada e as unidades domiciliares se tornam cada vez ‘mais um elo das relagdes mercantis, o flaxo de excedente se tor- nha cada vez mais visivel. Por isso, mobilizam-se cada vez mais contrapress6es politicas ¢ a estrutura da economia se torna, ca- da vez mais, um alvo diteto de mobilizacéo. Longe de acelerar a proletarizacao, os acumuladores de capital tentam retardé-la, Mas nao podem fazé-lo inteiramente, por causa dos seus pré- rios interesses contradit6rios, jé que so ao mesmo tempo em- Preendedores individuais e membros de uma classe. Esse tem sido um processo estavel e incessante, imposstvel de conter enquanto a economia for guiada pela acumulagao per- ‘manente de capital. O sistema pode prolongar sua vida reduzin- do 0 ritmo de algumas atividades que o estejam desgastando, ‘mas a morte permanecers a espreita no horizonte. ‘Uma das maneiras usadas pelos acumuladores de capital para prolongar a vida do sistema foi introduzir restrigoes ao seu fun- cionamento. Os movimentos anti-sistémicos foram empurrados para criar organizagdes centradas na estratégia de tomar o poder de Estado, Eles nao tinham escolha, mas sua estratégia esta fada- da.a desaparecer, pelo curso natural dos acontecimentos. Como vimos, as contradigdes dessa estratégia podem ter gerado por si mesmas uma crise na esfera politica. Esta, po- 50 RACIONALIDADE E RACIONALIZAGRO rém, nio seria uma crise do sistema interestatal, que continua a funcionar muito bem em sua missio priméria de manter a hierarquia e conter os movimentos de oposicdo. A crise politica ‘em questdo € a crise dos préprios movimentos anti-sistémicos. Como a distingéo entre 0s movimentos socialistas ¢ naciona- listas comegou a se diluir, e como um nimero cada vez maior desses movimentos alcangou a tomada do poder de Estado (com todas as suas limitagoes), a coletividade mundial dos mo- vimentos 0s forgou a reavaliar todas as lealdades definidas a partir de anélises feitas no século XIX. Assim como 0 sucesso dos acumuladores em acumular criou uma mercantilizagao de~ ‘masiada que ameaca 0 sistema, também o sucessu dos movi- ‘mentos anti-sistémicos em tomar 0 poder fortaleceu o sistema, {que ameaga romper-se por causa da aceitagao, pelas Forgas de trabalho do mundo, dessa estratégia autolimitadora. Finalmente, a crise € cultural. A crise dos movimentos anti- sistémicos, o questionamento da sua estratégia basica, esta le- ‘vando a um questionamento das premissas da ideologia univer- salista. Este processo esti em curso em dois ambitos distintos: hha movimentos que, pela primeira ver, buscam a sério alterna- tivas em termos de civilizagao; e na vida intelectual, todo o apa- rato intelectual engendrado desde o século XIV esta sendo len- tamente colocado em diivida, Em parte, essa dvida ¢ produto do proprio sucesso desse aparato. Nas ciéncias fisicas, os pro- yeu nos sistemas histricos anteriores inclufam uma forma de controle socal que certamente restringia a escolha human a variabildade social. Esse controle pareceu a muitos como opressio ava, J6 outros, os mais satsfetos, pagaram ¢ Pres ido seu contentamento: uma visdo estreita das possibili wo aicasto 4o capitalism hist6rico envolveu, aoe mos, diminuigio constate, até a eliminagio, do papel dessas pequenas comunidades, © que surgiu em seu Iugat? Emm mul tas areas, por longos periodos, © papel anterior ds peatenss comunidades foi assumido pelas padre i be ea ie “opressivo exercido por estruturas politico-econ a 8 porte, dominadas por “empreendedores’. Néo se ae S que as plantations da economia mundial captalista — bassadas na escravidlo, no trabalho forgado de prisioneros, no avrends> mento ou no trabalho assalaiado — tenham criado mais iber- dade de movimento para a“individalidade’ As plantaron: po tlein ser consideradas como um modo excepcionalmente eficaz dde extrair mais-valia, Nao hi diivida, elas jé baviam oe historia humana, mas nunca tinham sido usadas tio ext i 5 vamente para a produgio agricola — em oposio & miners ‘eA construgio de infra-estruturas de grande porte, que ‘a envolver muito menos pessoas em termos globais. 87 ‘CAPITALISMO HISTORIC Mesmo naqueles hugares em que uma forma ou outra de controle direto e autoritério da atividade agricola (0 que acaba- mos de rotular de plantation) nao substituis as estruturas cO- munitérias de controle, mais flexiveis, a desintegracio das es- ‘truturas comunitérias nas zonas rurais nao foi experimentada como uma “libertacao’, pois foi acompanhada (e, muitas vezes, causou diretamente) por um controle crescente por parte das estruturas do Estado emergente, cada vez menos desejoso de deixar 0 produtor direto controlar processos auténomos de to- mada de decisdo. O esforgo se concentrou em forcar um au- mento das horas de trabalho e da especializagao desse trabalho (0 que, do ponto de vista do trabalhador, enfraqueceu sua capa- cidade de negociagao e aumentou seu fardo). Mas isso nao foi tudo. O capi uma estrutura ideolégica de humilhagio opress chamamos de sexismo e racismo — que nunca havia existido antes. Como jé observamos, tanto a posicio dominante dos ho- mens sobre as mulheres como a xenofobia generalizada eram disseminadas, virtualmente universais, nos sistemas hist6ricos anteriares. Mas, no capitalismo histérico, o sexiamo é mais do que uma posigio dominante do homem sobre a mulher, e 0 ra- cismo é mais do que xenofobia generalizada, sexismo relega a mulher ao reino do trabalho nao pro- dutivo, duplamente humilhante na medida em que sua carga real de trabalho aumentou e o trabalho produtivo se tornou, na economia mundial capitalista, pela primeira vex na historia, a base da legitimacao do privilégio. Isso estabeleceu uma dupla submissdo que tem se mostrado intratavel dentro do sistema. ‘No capitalismo hist6rico, o racismo ndo € édio ou opressao de um estrangeiro, de alguém de fora do sistema histérico. Ao contrario, 0 racismo € a estratificagao da forga de trabalho no interior do sistema historico, a fim de que os grupos oprimidos mantenham-se no interior do sistema, e ndo sejam expulsos de- le, © racismo justificou a baixa remuneracao do trabalho pro- 88 SOBRE PROGRESSO TRANSIGOES dutivo, apesar da primazia deste na definigao do direito a re- compensa. E 0 fez por definir 0 trabalho de remuneracdo mais baixa como tabalho de menor qualidade. Como iseo foi feito ex definitio, nenhuma mudanga na qualidade do trabalho signi- ficara mais do que uma mudanga na forma de acusagio, apesar de a ideologia proclamar que o esforgo individual é recompen- sado por uma mobilidade igualmente individual. Essa dupla submissio também tem se mostrado intratavel. Tanto o sexismo como 0 racismo sio processos sociais em que a “biologia” define posigbes. Mas, na medida em que a bio logia é socialmente imutavel, aparentemente estariamos em presenga de uma estrutura que, apesar de socialmente criada, no é passtvel de ser socialmente desmontada. Na verdade, no é bem assim. A estruturagio do sexismo e do racismo nao pode e no pode ser desmontada sem o desmonte do sistema hist6ri- 0 que os criou. Conseqiientemente, tanto em termos materiais quanto fisi- cos (sexismo e racismo), houve um empobrecimento. No que diz respeito ao consumo do excedente, abriu-se um fosso cres- conte entre of estratos superiores da papnlagio na economia mundial capitalista (10% ou 15%) e 0 restante, Nossa im- pressio de que as coisas nao se passaram assim se baseia em trés fatos. Primeiro, a ideologia da meritocracia funcionou no senti- do de possibilitar uma considerivel mobilidade individual, até ‘mesmo a mobilidade de grupos étnicos e/ou ocupacionais espe- cificos da forga de trabalho. Mas isso se deu sem transformar fundamentalmente as estaisticas globais da economia mundial, jA que a mobilidade individual (ou dos subgrupos) era contra- balangada por um aumento no tamanho do estrato inferior, seja através da incorporagao de novas populagoes & economia mun- dial, seja por taxas diferenciadas de crescimento demogratico. ‘A segunda razio pela qual nao prestamos atengio nesse fosso crescente & que nossas anélises da ciéncia histérica e social tem se concentrado no que acontece nas “classes médias” — isto é 89 CAPITALISMO HISTORICO naqueles 10% ou 15% da populagio mundial que consomem mais excedentes do que produzem. Neste setorhouve de fato um nivelamento da curva entre 0 topo (menos de 19% da populagao total) ¢ os segmentos verdadeiramente “intermediérios’, ou os gerentes (o restante dos 10% ou 15%). Grande parte da politica “progressista” no interior do capitalismo histérico resultou em ‘uma constante diminuigdo da desigualdade na distribuigio da ‘mais-valia mundial entre os pequenos grupos que dela parti- iparam. Os gritos de triunfo desse setor “intermedisrio”, cuja renda se aproximou da do estrato superior, tém mascarado 0 fosso crescente entre eles ¢ os demais 85% da populacio. Finalmente, hé uma terceira razio pela qual o fosso cres- cente ndo tem sido central nas nossas discussoes coletivas. Nos liltimos dez ou vinte anos, sob a pressio da forga coletiva dos movimentos anti-sistémicos do mundo e da aproximagao de li- mites econdmicos, a polarizagio absoluta pode ter diminuido, mas nao a relativa, Mesmo isso deve ser afirmado com cautela e situado no contexto de um desenvolvimento histérico de qui- nhentos anos de crescimento da polarizagao absoluta. E crucial discutirmos as realidades que acompanharam a ideologia do progresso, pois sem isso ndo poderemos anali- sar inteligentemente as transigbes de um sistema histérico a ou- tro. A teoria do progresso evolucionério implica nao s6 a pre~ sungdo de que o sistema posterior seja melhor que o anterio1 ‘mas também de que um novo grupo substitua o grupo domi nante anterior. Assim, 0 capitalismo tera sido nao s6 um pro- ‘gtesso em relacdo ao feudalismo, mas teré sido construido pe- lo triunfo revolucionério da “burguesia” sobre a “aristocracia fundisria” (ou 0 “elemento feudal”). Ora, se 0 capitalismo nao foi progressista, qual é o significado da revolugdo burguesa? Houve uma tinica revolugdo burguesa, ou ela se apresentou sob aspectos miiltiplos? J4 argumentamos que esta errada a idéia de que 0 capita- lismo hist6rico surgiu quando uma burguesia progressista der- 90 SOBRE PROGRESSO E TRANSIGOES rubou uma aristocracia atrasada. A corteta imagem de fundo éa de que o capitalismo hist6rico surgiu através da transforma cao da atistocracia fundidria em burguesia, porque o sistema velho estava se desintegrando, Em vez de permitir que tal de- sintegragdo continuasse em uma direglo incerta, a propria aris- tocracia empreendeu uma cirurgia estrutural radical, tendo em vista manter e expandir significativamente sua capacidade de explorar os produtores diretos. ‘Se essa nova imagem estiver correta, ela modifica nossa per- cepgao da presente transigao do capitalismo ao socialismo, de uma economia mundial capitalista para uma ordem mundial socialista, Até agora, a “revolugio proletiria” tem se inspirado, ‘em maior ou menor grau, na “revolucdo burguesa’. Assim como 1 burguesia teria derrubado a aristocracia, proletariado der- rubaria a burguesia. Essa analogia tem sido a pedra fundamen- tal da agao estratégica do movimento socialista mundial Se no houve revolugao burguesa, no houve ou ndo haverd revolugdo proletéria? Nao, nem do ponto de vista légico nem do empirico. Mas isso quer dizer que temos de abordar de outra forma o tema das transigées. Precisamos, em primeiro lugar, distinguir entre desintegracao e mudanga controlada, o que Sa~ mir Amin chamou de distingdo entre “decadéncia” e “revolu- a0, entre o tipo de “decadéncia” que ele afirma ter ocorrido na {queda do Império Romano (e que, segundo ele, esta ocorrendo agora) € a mudanga mais controlada que ocorreu quando da ppassagem do feudalismo para o capitalismo. ‘Mas isso nao é tudo, Pois mudancas controladas nao so ne- cessariamente “progressistas’, como acabamos de argumentar, Conseqilentemente, devemos distinguir entre v tipo de trans- formacao estrutural que deixaria intocadas (ow mesmo reforga- das) as realidades da exploragio do trabalho € um outro que pudesse climinar ou pelo menos reduzir esse tipo de explora- ao. Isso significa que a questao politica do nosso tempo nao é se havera ou nao uma transigao do capitalismo histérico para 2 CAPITALISMO HISTORICO alguma outra coisa. Isso € certo. A questao politica do nosso ine ca 0 outra coisa 0 resultado de transi, vais ‘moral ¢ fundamentalmente diferente dayuilo que temos se vai ser progresso. “ee © progresso nao ¢ inevitivel. Apenas lutamos por ele. Essa luta nao esta tomando a forma de socialismo versus capitalis- ‘mo, mas a de uma transigao para uma sociedade relativamente sem = um modo de produgao baseado na divisio. em classes (diferente do capitalismo hist6r ai rico, mas n - riamente methor). ee Para a burguesia mundial, a 2 mundial, a escolha nao se dé entre a ma- nutensao do capitaismo historieo ¢ 0 suicidio, mas entre a posicio “conservadora’, de um lado, que resultaria na desinte- wraito continuada do sistema e sua transformacio em uma or- lem mundial incerta mas provavelmente mais igualitara, e, de outro lado, uma tentativa ousada de controlar 0 process de cane com tp burguesia assumindo uma roupagem socialista” e tentando criar um sistema histérico alternativo que deixasse intacto 0 processo de ex bale muntal om beefodeumasnnons de uma minoria, Ba luz desss alternativas poiticas abertas para a i india qu nb devenor einai ode morte to socialista quanto daqueles Estados e partidos socialistas id de uma forma ou de outra, chegaram ao poder. os AA primeira ¢ mais importante coisa a lembrar em qualquer avaliagdo é que 0 movimento socialista mundial, ou seja, na ver- dade, todas as formas de movimentos antisistémicos e todos os Estados revolucionérios e/ou socialistas foram produtos do ca- pitalismo hist6rico. Nao foram/sio estruturas externas ao siste- ‘ma hist6ricos resultaram de processos a ele internos. Conseqiien- temente,refletiam/tefletem todas as contradigdese restrigdes do a Nao poderiam ter sido ou ser de outro modo. cus err0s, suas limitagdes, seus efeitos negativos si do balango do capitalismo histérico, nao de = Ge hoa 92 SOBRE PROGRESSO F TRANSIGOES co hipotético, de uma ordem mundial socalista, que ainda no cexiste, A intensidade da exploragao do trabalho nos Estados re- volucionérios e/ou socialistas, a auséncia de liberdades politi- as, a persisténcia do sexismo ¢ do racismo tém muito mais @ ver com o fato de que esses Estados permanecem inseridos nas reas periféricas ou semiperiféricas da economia mundial capi- talista do que com as propriedades peculiares de um eventual sistema social novo. As migalhas que couberam as classes traba- Thadoras no capitalismo hist6rico sempre se concentraram nas reas centrais. Isso continua a ser verdadeiro, Portanto, a avaliagdo dos movimentos anti-sistémicos e dos regimes de cuja implantagio eles pattciparam no pode ser fei- ta em termos das eventuais “sociedades boas” que tenham ou indo criado, Para avalid-los, precisamos nos perguntar até que ponto contribuiram para a luta mundial voltada para garantir {que a transigdo do captalismo se d& na diregdo de uma ordem ‘mundial socialista igualitéria. Aqui, a contabilidade € necessa~ riamente mais ambigua, pela agao dos proprios processos con- traditérios. Todo impulso positive implica consequiéncias ne~ gativas e positivas. Cada enfraquecimento do sistema de um modo 0 reforca de outros. Mas nao necessariamente em graus iguais! Eis aqui a questdo. ‘Nao ha divida de que a maior contribuigao dos movimen- tos anti-sistémicos ocorreu em suas fases de mobilizagao. Orga- nnizando a rebelido, transformando consciéncias, eles tém de~ sempenhado o papel de forgas libertadorass€ as contribuisoes dos movimentos individuais foram aumentando com o tempo, através de um mecanismo de aprendizado historico. ‘Mas, desde 0 momento em que assumiram o poder em es- truturas de Estados, esses movimentos contribuiram menos, por causa do crescimento geomeétrico das pressoes para abafar seus impetos anti-sistemicos, externa ¢ internamente, Isso nie significa que o balango desses “reformismos” e“revisionismos” seja totalmente negativo. Os movimentos no poder acabaram 93 CAPITALISMO HiSTORICO caindo, até certo ponto, na condigdo de prisioneiros politicos de sua prOpria ideologia, estando portanto sujeitos a pressio orga~ nizada dos produtores dirctos no scio do Estado revolucionsitiv € dos movimentos anti-sistémicos do lado de fora deste. © perigo real ocorre precisamente agora, quando o capitalis- ‘mo histérico se aproxima do seu florescimento mais completo —a mercantilizagao de tudo, a crescente forga da familia mun- dial dos movimentos anti-sistemicos, o progresso na racionali- zagao do pensamento humano. Esse florescimento completo do capitalismo hist6rico é, precisamente, o que vai acelerar seu co- lapso. Ele existiu até aqui porque sua I6gica s6 se realizou par- cialmente. Enquanto e porque o sistema esta desmoronando, © trem das forcas de transigao vai ficar cada vez mais atraente, fazendo com que o resultado se torne cada vez mais incerto, A luta por liberdade, igualdade ¢ fraternidade foi prolongada, camaradas, ¢ seu locus estara situado, cada vez mais, dentro da familia mundial das préprias forgas anti-sistémicas. © comunismo é Utopia, um lugar que nao hi. £ a transfi- guragao de todas as nossas escatologias religiosas: a vinda do Mesias, a segunda vinda de Cristo, o nirvana, Nao é uma pere pectiva histérica, mas uma mitologia corrente. O socialismo, 0 contrério, é um sistema hist6rico realizavel, que um dia po- dera ser instituido no mundo. Nao hé interesse em um socialis- ‘mo que reivindique ser um momento “temporério” da transi- sao para uma Utopia, S6 hé interesse num socialismo histérico concreto, que corresponda as caracteristicas definidoras mini- mas de um sistema histérico que maximize a igualdade e a fra- ternidade, que aumente 0 controle da humanidade sobre sua propria vida (democracia) e que liberte sua imaginagio. CIVILIZAGAO CAPITALISTA UM BALANGO (0 moveRNo sistema-mundo, que € uma economia-mundo ca~ pitalista, surgiu durante 0 longo século XVI em partes da Bs ropa ¢ da América, expandindo-se desde entio para ocupar todo o planeta, O capitalismo histérico tem uma série de carac~ teristicas exclusivas. Uma delas, que raramente recebeu a devida ‘mengao, é que virtualmente desde a origem ele é um sistema louvado por uns ¢ condenado por outros. f verdade: foram pecisos t2s séculos de desenvolvimento para que seus admira~ does comegassem a parecer numerosos ¢ extrovertidos. Nio consigo me lembrar de nenhum outro sistema que tenha sido submetido a tantas ¢ tdo contraditérias avaliagdes internas,fei- tas em massa pelos que participam dele ¢ pelos que se dedicam a pensé-lo, ‘A idéia de que, de dentro do sistema, se possa fazer um ba- Jango das suas virtudes e vicios, das suas consequincias posi- tivas e negativas — em um debate que tentarei resumir aqui — € provavelmente exclusiva desse sistema ¢ um de seus tragos definidores, Por que s6 esse sistema histérico ensejou essa dura- doura controvérsia publica constitui a questio que pretende- mos explorat. Esse debate apresenta um aspecto especialmente estranho: rosso modo, ha dois conjuntos de eritcas, ¢ eles parecem ser contraditérios. Um conjunto desanca capitalismo por ser igualitério demais, disruptivo da paz social e da harmonia co- munitéria. Q ontro acha que, por baixo do mito da harmo- nia de interesses, 0 capitalismo hist6rico € essencialmente nao igualitario. Pode-se ficar tentado a interpretar a existéncia dessas criticas ‘opostas como um sinal de que 0s defensores da civilizaglo ca- pitalista ocupam um centro estratégico de moderagao, contra 97 CIVILIZAGAO CAPITALISTA posigdes obviamente extremistas. Eo argumento dos que lou- vam o sistema. Mas eles nao o explicitam, Em ver disso, em res- posta 20s que enfatizam as virtudes de uma ordem social hier quica harmonica, os defensores do capitalismo histérico tém destacado suas caracteristicas revolucionsrias e progressistas, ue, segundo dizem, tendem a destruir os privilégios. Por outro lado, para responder aos criticos que véem o capitalismo como tum sistema de estruturas nao igualitarias e opressivas, seus de- fensores destacam a capacidade do sistema de reconhecer e esti- mular 0 que chamam de mérito individual, afirmando o aspecto ‘ao 56 desejavel mas também inevitavel da recompensa diferen- «ial, dos privilégios adquiridos, por assim dizer. Assim, os defensores do capitalismo parecem tao contradi- t6rios quanto seus oponentes. Criticos e defensores, denuncian~ tes e louvadores ocupam posigdes extremas simétricas, sem que ninguém (ou, parece, virtualmente ninguém) trilhe 0 caminho do equilibrio. £ uma anomalia estranha, particularmente estra~ tha por ser persistente. Que sentido pode haver em todos 0s jo- gadores assumirem posicles tdo confusas? & como se existissem dois times de uniforme igual, distribuidos de maneira castica ‘num mesmo campo de jogo em confusas formacdes. Nesse caso, pode haver um placar? & possivel realizar um, balango? Nao estou sequer me perguntando se € posstvel fazer tum balango imparcial, mas se € possivel fazer qualquer balanco. ‘Acho que nao seremos capazes de resolver a questdo até termos compreendido por que ¢ como & possivel que uma disputa tao confusa tenha sido sustentada Os quatro cavaleiros da apocalipse, ou necessidades bisicas Ao longo dos tiltimos 5 mil anos, @ humanidade desenvolven inimeras religides, todas partilhando, pelo menos, uma carac- teristica basica. Elas tentaram dar algum tipo de resposta, al- gum tipo de consolo, as misérias materiais percebidas no mun- do, Essas misérias estao bem resumidas na imagem crista dos 98 UM BALANGO “quatro cavaleiros do apocalipse”: a guetta (isto 6, a guerra en- tre povos e entre Estados), a guerra civil, a fome generalizada e ‘a morte por doengas, pestes ou animais selvagens. Os quatro cavaleiros s4o 0s horrores do mundo, os destruidores da paz, do prazer e da satisfagao. [As religides oferecem todo 0 consolo que podem, mas o fa- zem apoiadas na premissa de que nao ha solucao politica (isto 6 temporal) para esses males. S40 males inevitaveis, pelo menos até a chegada de uma era messiinica (no caso de algumas reli- gides) ou o surgimento de algum outro caminho que nos con- duza para além da historia ‘A civilizagdo capitalista foi extraordindria em sua afirmagio de ser capaz de ir “além da hist6ria” dentro da historia para resolver os males inevitiveis e criar um reino de Deus sobre a ‘Terra, ou seja, superar a ameaga dos quatro cavaleiros. Desde 0 comes, seus defensores tém argumentado que, como sistema hist6rico, 0 capitalismo conseguiria satisfazer pelo menos as “necessidades basicas” (para usar a terminologia das iltimas décadas) de todas as pessoas colocadas dentro de seus limites. Em um sentido, 0 argumento € muity simples ¢ dircto. Ten do aumentado a eficigncia da producto, 0 capitalismo aumen- tou muito a riqueza coletiva. Mesmo que essa riqueza tenha sido distribufda de maneira desigual, 0 aumento foi bastante para garantir que todos recebessem mais do que o que era pos- sivel em sistemas histéricos anteriores. Por causa dessas presu- midas conseq{iéncias benéficas, 0s defensores da civilizagao ca~ pitalista argumentam que ela é distinta ¢ melhor que todas as coutras, Mais ainda: afirmam que o capitalismo € 0 dinico sis- tema “natural”. Que provas apresentaram? Fundamentalmente, uma evi- déncia demonstrativa. Olhem para o mundo moderno, dizem. Nao & mais rico do que qualquer outro mundo conhecidot Nao sto fabulosas as realizagdes tecnol6gicas? Nao estdo todos, 99 CIVILIZAGAO CaPrTALista = algum sentido, uma stagio melhor? Especialmente: 08 ses em que o capitalismo parece set aceito praticado nomicamente? — Esses argumentos de demonstragai mnstragao tém sido muito sivos para grande m matt vos para grande niimero de pessoas ha cerca de duzentos anos, ae devem ser levados a sério. Apsiam-se pesadamente no apel central que a ciéncia, i Papa cents lq aplicada exerce no capitalismo hist6- oes demonstragdo, argumenta-se que ae ins te a a cigncia e a tecnologia realmente resceram, jé que s6 nele os cientistas foram lib < yram libertado: ssc ines pel sean ner icone los subsidios diretos e indiretos ‘ que 0s empreendedores dera a atividade cientifica, recebendo em ——— ao riais. Vamos avalia : io ais. Va iar se esses argumentos sio plausiveis, tendo como referéncia cada um dos quatro cavaleiros, tomados es 3s, tomados na or- 4 ‘Tera a civilizagao capitalista retardado (6 obvio que nao po: aes climinado totalmente) a morte por doengas, pestes ou ais selvagens? E a questo da satide pablica em sentido mais amplo. No sécul mae plo. No século XIV, 0 continente eurasiano sofreu a ae Nossasestimativas imperfeitas sugerem que cerca ia populagao das éreas afetadas tenha morrido premat rat causa dela. vida, ni ies ae dela. Sem davida, nfo foi o primeito surto pandémico da historia, mas parece ter sido o ultimo dessas di mensdes de que se tem n« ane ped a ee woticia, Por qué? Basicamente por duas primeira é a salvaguarda do individuo. O conheci- ee a avangou de tal modo que aprendemos a cvitar ataque dessas doengas (por exemplo, por meio de vacinas) ea minimizar seu impacto, um: au ee tenham sido contraidas ee A segunda razo é a salvaguarda da coletivi- eee a criar um ambiente de satide ptiblica me- ; bem como técnicas para evitar a difusio de doencas. (Uma 100 UM BALANGO ddas mais antigas e mais primitivas € a quarentena, palavra de- tivada de um isolamento de quarenta dias imposto as pessoas {que cheyuvam ao porto de Ragusa durante a peste neg). ‘Enecessirio acrescentar algum outro tipo de evidéncia a este balanco? Sim. Hé, pelo menos, tés fenomenos que s= mover cm diregGes oposias. Primeiro, houve as consequencias devasia- “Toras do cruzamento de estoques genéticos de organismos para" Sitirios, oriundo do avango tecnol6gico nos transportes, Parte jntegrante da expansio da economia capitalist, Iso fot estuda- do com toda a careza para 0 caso dos intercimbios tansocei-

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