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Quem Pensa Abstratamente?* Paulo Eduardo Arantes** “-Resumo: Dentre as teses conservadoras acerca das origens intelectuais da Revolugao Francesa, figura a convicgao de que € sobretudo o homem culto quem pensa abstratamente. Interessado _na génese hist6rica da dialétiea hegeliana, o presente estudo procura reconstituir os passos que ‘possivelmente teriam achatado a volubilidade caracteristica da intelligentsia ilum ‘mundo unidimensional do homo ideologicus. ‘Palayras-chave: intelectval, dialética, Huminismo, Revolugaio Francesa. | __ A“verdade da Iustragio” (titulo de um subcapitulo da Fenomenologia do Espirito), por sobre ser a sociedade capitalista afinal desencadeada, como ‘Sugeriu Lukécs, também é a do intelectual moderno. De algum modo a dialética -PrOpria dos intelectuais dé noticia da dialética do Iluminismo, além de concor- ‘ferem ambas, amalgamadas aos olhos desconfiados do “atraso” alemao, para a ‘Suprema ambivaléncia da Revolugao. A rigor, no sentimento dividido que rege €m larga medida a diibia e notéria consagragio especulativa da Revolugio Tancesa, entre outras coisas como fato filoséfico capital, reponta, pelas mes- Mas tazGes de estrutura, a acolhida reticente que Hegel reservou ao ciclo francas da inteligéncia européia. Be uBido em 1979, 0 que segue € a segunda/metade de um estudo sobre Dialética e enPeriéncia intelectual em Hegel. A primeira parte, Paradoxa da Intelectual, foi publicada 1980 pela revista Manuscrito, Unicanip, vol. IV, niimero 1. ” Professor de Histéria da Filosofia Moderna do Dep. de Filosofia da USP. 54 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 Uma citagio, colhida entre varias passagens igualmente significativas conhecidas, é o quanto basta para nos devolver ao terreno fértil em que deitava raizes a fantasia alem4, por vezes exata, acerca da génese filosdfica da Revo- lugdo: “a consciéncia do espiritual é agora essencialmente o fundamento, de sorte que o dominio passou A filosofia. Ja se disse que a Revolugao Francesa saiu da filosofia e nao sem razdo chamou-se a filosofia de sabederia mundial, pois ela nao é apenas a verdade em-si € para-si, enquanto pura essencialidade, mas também a verdade na medida em que se torna algo vivo no mundo real. Nio cabe portanto contradizer a afirmagio segundo a qual a Revolugao teria recebido da filosofia o seu primeiro impulso, Mas esta filosofia nao é de inicio senao pensamento abstrato, ao invés de ser concepgao concreta da verdade absoluta, o que importa numa diferenga incomensurdvel. Esse pensar tem a ver com a realidade, tornando-se uma poténcia contra 0 existente, além do que esse poder é a Revolucao em geral” (Hegel, Philo. Weltgeschichte, p. 924; trad. p. 338). Poténcia abstrata, vé-se logo, apandgio da “consciéncia abstratamente cultivada”, que ird desaguar na “operagdo negativa” (Jd., Phdnomenologie, p. 418; trad. p. 135) caracteristica da ditadura jacobina, conforme dé a entender por exemplo o amdlgama de rousseauismo e Terror no capitulo famoso da Fenomenologia ¢ proclamado com todas as letras na Filosofia do Direito: “esse ponto de vista (acerca da natureza do Direito) largamente difundido a partir de Rousseau (...) carece de qualquer pensamento especulativo e foi rejeitado pelo conceito filoséfico quando engendrou nos espiritos e na reali- dade efetiva fenémenos cujo horror s6 tem paralelo na superficialidade dos pensamentos que os suscitaram” (Id., Philosophie des Rechts, pardg. 29, p. 70; trad., p. 89). E mais adiante, depois de atribuir a Rousseau o mérito perene de ter assentado sobre a vontade o principio do Estado, Hegel contesta-lhe 4 fecundidade realgando o formalismo funesto que impregna as nogées correlatas: de contrato social e vontade geral mais o cortejo de abstragées que as acom- panha; “uma vez chegadas ao poder essas abstragdes nos oferecem o mais prodigieso espeticulo que jamais nos foi dado contemplar desde que a humani- dade existe: a tentativa de recomegar inteiramente a constituigdo de um Estado! destruindo tudo o que existia e apoiando-se no pensamento a fim de dar pot fundamento a esse Estado o que se supunha ser racional. Mas ao mesmo temp? ares ew ed ase od Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 55 yisto que se tratava apenas de abstragdes sem Idéia, essa tentativa acarretou a mais espantosa ¢ crue] das situagdes” (Hegel, Philosophie des Rechts, p. 239; trad., p. 260). Nisso evidentemente 0 hegelianismo nao esta inovando. Como se sabe, a filiagao comprometedora entre 0 autor do Contrato Social ¢ o jacobinismo data dos primeiros tempos da Revolugao, congregando defensores e adversfrios do “partido” de Robespierre, sobretudo estes tiltimos, de Benjamin Constant a Taine, incluindo, entre outros, Lamartine ¢ Proudhon. Como também, visivel- mente, std passando a limpo a tese conservadora acerca das origens intelec- tuais da Revolugao Francesa: os intelectuais teriam preparado € provocado a Revolucao, definindo-lhe de certo modo o carater, quando nao infletindo-lhe curso real. Conservadorismo mitigado da parte de Hegel, est claro (e cujas razées ficam por enquanto sem pesquisar), temperado pelo imperativo de legitimar a Revolucao nos seus efeitos hist6ricos e sociais a longo prazo. Nuances a parte, que no caso sio de monta, salta aos olhos o parentesco com os argumentos de Burke, para quem a “Revolugio Francesa é a primeira ‘Tevolugao filos6fica’; € a primeira revolugio que tenha sido feita por homens de letras, por fildsofos, por ‘metafisicos em estado puro’, ‘nao enquanto instrumentos secundarios ¢ arautos da sedigdo, mas como os principais inven- tores ¢ organizadores’, é a primeira revolugdo na qual o ‘espirito de ambi esta ligado ao espirito de especulacao’" (Strauss 63, p. 312). Enfim, ainda Segundo o mesmo Burke, cuja tematica antijacobina fora amplamente divul- gada na Alemanha por Gentz e Rehberg, alimentando assim o caudal da reagao 'tadicionalista local, a Revolugao € obra “desses audaciosos experimentadores de uma nova moral”,® e nisto é “filoséfica” “especulativa”. Por seu turno, Hegel considerard com igual desdém os “pretensos filésofos e professores de direito da humanidade”, gens & doctrine — os “pedantes” referidos anterior- Mente — cujas “teorias” seriam responsdveis por uma legido de “monstruosos experimentos politicos” (Hegel, Die Verfassung Deuischiands. In: Werke, ed. Suhrkamp, vol. 1, p. 479; trad. italiana Scritti Politici, p. 29), sendo o principal deles, por certo, a propria Revolucdo, reversdo doutrindria do curso do mundo We o hegelianismo nao obstante satida e trata de ajustar como pode a sua Aversio de principio pelo jacobinismo: “desde que o sol se encontra no firma- 56 Arantes, P, E., discurso (21), 1993: 53-118 mento e os planetas giram ao seu redor, jamais se viu o homem colacar-se de cabega para baixo, isto é, apoiat-se no pensamento e segundo este construir realidade” (Hegel, Philo. Weltgesch., IV, p. 926; trad., p. 340). Essa proez levemente diletante de ver o mundo de ponta-cabega, revird-lo pelo avesso ¢ entregar-se A tentativa (Versuch é o termo utilizado por Hegel) cerebral de refazé-lo do marco zero, sio outros tantos sinais, registrados pela sensibilida conservadora e reordenados pelo hegelianismo, do ensafsmo (na sua exat acepgao experimental — “especulatismo”, diria Burke), em cuja trama ver cifrada a iniciativa politica do letrado, mais precisamente da “consciénci: abstratamente cultivada”. Se assim é, presume-se, caberia passar em revis' uma porgdo razodvel da matéria ideolégica que da consisténcia a opinia conservadora acerca da metamorfose do burgués intelectualizado em cidadax revolucionirio, e que, em perspectiva histérica, assegura verossimilhanga densidade a representagdo hegeliana do jacobinismo, a um tempo constelaca ideolégica ¢ realidade politica escandida pela pulsagdo funesta do “universal abstrato”. — Por ora, o intelectualo-centrismo, se for permitida a expresso, esta do lado do conservador, ¢ com ele a tarefa temerdria de desentranhar do intelectual moderno a figura mais esbatida e monocérdia do homo ideo logicus®). Nada mais distante do empenho politico do homem de convicgées do qui a “vibratil estrutura intelectual” de Montaigne, cujo “homme suffisant, méme & ignorer” é sem dtivida a primeira e talvez a mais feliz e bem-sucedid realizacio moderna do ideal antigo da cultura geral, Pelo menos é 0 que 5 depreende da ligdo de Auerbach que, bem entendida, também nos convida reconhecer no autor dos Essais o arquétipo do intelectual dos tempos moder nos, de certo modo o criador de uma nova categoria social: 0 homme de lettres © écrivain™), Se ha algo visceralmente avesso A utopia e ao revolucionarisi™ € oceticismo confortdvel e satisfeito de Montaigne, em paz com a tradigao bel compreendida na sua vacuidade, e que por isto mesmo pede uma clarividen! indulgéncia, hostil ao dogmatismo e a especulagao inerentes a inevitdy eee ere sae ssa cen eon aae Arantes, P, E,, discurso (21), 1993: 53-118 37 intolerancia de todo gesto inconformista, no fundo apandgio da consciéncia amorfa do homem inculto — em suma, a orientagdo cética do espirito cultivado nesse periodo conturbado de transigdo ao capitalismo atatha o acesso a pritica, por sobre ser conservadora, 0 que alids nao a impede de ser avangada‘), Nao serd esta a nica vez em que vanguarda e conformismo andarao juntos. A rigor éno Ambito mais exigente da Forma que germina um inegavel grao de radica- lismo, é nela que toma corpo uma certa reflexéo desabusada e sem concessées, até entio inédita: é 0 ensaismo enfim, “sempre livre, antidogmatico, experi- mental”, que abriga, segundo Hauser, a ponta vanguardista do pensamento “maneirista” de Montaigne (Hauser 27, pp. 301-302). Noutras palavras, 0 Ensaio como Forma ¢ 0 intelectual moderne tém a mesma idade, de tal sorte que as caracteristicas estruturais de um espelham-se na indole ¢ nos humores de outro, cuja trajetéria social acidentada reflete-se por sua vez no destino ideoldgico de um género de fortuna critica instdvel. Através dos escritos de Montaigne “fala uma concep¢ado do homem de carter realista”, diz Auerbach, “originada na experiéncia e, sobretudo, na experiéncia de si proprio: preci- Samente a que diz que o homem é um ente vacilante, sujeito as mudangas do mundo, do destino e dos seus préprios movimentos interiores; de tal forma, o modo de trabalhar de Montaigne, aparentemente tao voltivel, nao dirigido por plano nenhum, que segue elasticamente as mudangas do seu ser, 6, no fundo, um método rigorosamente experimental” (Auerbach 8, p. 251). Mas nisto também vai muito da hardiesse do experimento ensafstico: 0 proprio Auerbach Sugere que Montaigne “provavelmente teria resistido ao termo ‘método’, de- Masiado preiensiose e cientifico”. Seja como for, o Ensaio, no seu renasci- mento moderno, pressup6e experiéncia, realismo e ironia. Esta tiltima — caso continuemos a comtemplar o retrato de Montaigne €scritor pintado por Auerbach — transparece por exemplo na “aversdo extre- Mamente sincera de considerar o homem com tragicidade”, ou na “tendéncia a Menoscabar a sua propria espécie de observagdo”: Montaigne “ndo se cansa de Salientar o cardter simples, privado, natural e imediato da sua maneira de ‘sctever ¢ o faz de tal forma que pareceria que devesse se desculpar por sua Sausa” (Id., ibidem, pp. 250-251). Recorde-se que o primeiro Lukaes, ensaista WStamente, acentuava o vinculo que enlaga ensaio ¢ ironia, sem a qual o 58. Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 primeiro nao sobrevive enquanto género auténomo: “entendo aqui por ironia o fato de que o critico fala sempre das questGes tltimas da vida, mas sempre também num tom que dé a entender que se trata apenas de quadros ¢ livros, de bonitos ornamentos inessenciais na grande vida (...) O grande Monsieur de Montaigne talvez tenha sentido algo semelhante quando deu aos seus escritos a denominagao espantosamente bela e adequada de Essais. Pois a modéstia simples desta palavra é de uma altiva cortesia. O ensafsta rejeita suas prdprias esperangas orgulhosas que tantas vezes acreditam ter abordado o mais elevado: ele s6 pode oferecer comentarios de poemas alheios e, no melhor dos casos, de suas préprias idéias. Mas ele se conforma ironicamente com essa pequeneza (...) e a sublinha ainda com irénica modéstia” (Lukdes 41, pp. 22-23). Mas deixemos de lado por enquanto essa ironia constitutiva do ensafsmo e consi- deremos um pouco a figura do seu protagonista: quase sempre um homem lido e vivido “Montaigne é algo novo; 0 tempero do elemento pessoal e, precisamente, de uma tinica pessoa, apresenta-se mais penetrantemente e a forma de ex- pressio é ainda mais espontinea e préxima da linguagem de todos os dias” (Auerbach 8, p. 255) — e 0 termo de comparagao de que se serve Auerbach é 0 didlogo platénico, cotejo de que trataremos logo mais. Essa novidade € a do ensaio, que exige a referencia quase coloquial 4 experiéncia, 4 “pequeneza” trivial do vivido. Daf o “afa de Montaigne pela experiéncia alheia”, sempre filtrada pela prépria experiéncia; daf também a paixao pela viagem, gesto de letrado em férias, a pericia (diplomética) demonstrada no uso das coisas do mundo — enfim, o ensaismo cético e irénico de Montaigne pressupde o ample ¢ arejado horizonte espiritual do homem viajado, cultivado e emancipado. Nos Essais nio ha vontade de arte, pelo menos enquanto estilo elevado, nem intengao de ciéncia organizada, mas conhecimento de um homem experimen- tado e letrado’”, onde as idéias sio ironicamente refratadas pelo prisma da opiniao pessoal (Horkheimer 30, p. 28). Vem daf o tom de relato que as anima, imprimindo-lhes nova vida, menos peremptérias, mais afinadas; em suma, 4 experiéncia de que se alimenta 0 ensaio é a do narrador intelectualizado: “ev nao ensino, narro”, diz Montaigne, cujo “estilo é a descricio, nao a teoria” afinal, comprometer-se com uma teoria é limitar-se bisonhamente, como 0 (ese nartle aman Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 59 fazem de resto os homens incultos, eruditos, especialistas ou simplesmente pedantes (Horkheimer 30, pp. 16, 14). O micleo dessa experiéncia, seu primeiro impulso, permanece todavia intelectual. Lukdcs situa-o na origem do ensaio, denominando-o, descontada a énfase “existencial” da época, intelectualidade, conceptualidade enquanto experiéncia vivida sentimental, enquanto realidade imediata, principio espontineo de existéncia”: 0 género ensaistico é preci- samente essa conceptualidade emoldurada pela “ironia das pequenas realidades da vida” (Lukacs 41, pp. 19, 23). No caso de Montaigne, trata-se da experiéncia primitiva do “escritor” moderno, do primeiro “faiseur de livres”, embora diletante. Continuemos, sempre 4 sombra de Auerbach. De comego os Essais cram “uma espécie de comentario de suas leituras. Lia muitissimo (...) era ‘culto’, possufa a técnica da leitura, lia com critério e sentimente. Ocorre-lhe a cada leitura anotar as experiéncias que ele proprio fizera com o tema em questao, confronta-lo com o que havia lido, referir-se a outras passagens de leituras precedentes. Nasce assim wma espécie viva de raisonnement (...)" (Auer- bach 9, pp. 13-14), de raciocinagao diria Hegel. Experiéncia livresca, por- tanto, mas aos poucos essa colegao raciocinante de citagdes e comentarios toma novo alento, ultrapassa os limites acanhados da biblioteca, pGe-se ao largo e ganha o grande mundo juntando o lido ao vivido, “quer o que ele prépric tenha Yivido, quer o que tenha ouvido de outros” (idem 8, p. 254). Tal € por assim dizer a jornada sentimental cumprida pela “conceptualidade” ensaistica, per- Curso cujo sentido Descartes logo mais invertera. Que se pense por exemplo num dos pardgrafos de abertura do Discours de la Méthode, de inegdvel cunho ensaistico-montaigneano: “ainsi mon dessein n’est pas d’enseigner ici la méth- Ode (...) Ceux qui se mélent de donner des preceptes se doivent estimer plus habiles que ceux auxquels ils les donnent (...) Mais ne proposant cet écrit que Comme une histoire (...)”." Tal propésito no entanto sofreu a inflexfo que se Conhece e logo o ensaio pessoal cedeu o passo ao discurso anénimo da Teoria, antipoda exato do discurso sem método dos Essais. Passemos a palavra mais “ma vez a Auerbach. As idéias alinhavadas por Montaigne “nio sfo de tipo Juridico, nem militar, nem diplomatico, nem filolégico, ainda que retirem de todos estes dominios, ¢ de outros, a sua maravilhosa concretude. E nem mesmo 60 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 sio propriamente filoséficas: encontram-se inteiramente privadas de sistema ¢ método (...) Nao sao de género especificamente artistico, visto que nao se trata de poesia, ¢ o assunto € muito préximo e concreto para que sua eficdcia possa permanecer puramente estética. Tampouco sao de carater exclusivamente didé- tico, pois conservam a sua validez mesmo quando se professa uma opinido diversa: ou melhor, nao encontramos ali uma doutrina da qual seja possivel dissentir” (Auerbach 9, pp. 10-11). Pois essa indeterminagio, estamos vendo, é a do ensaio, género “misto” por exceléncia, sendo de tal monta, ja na sua primeira manifestagao moderna, o desencontro entre ensaismo e ideal do método — no sentido enfatico da Teoria — que 0 arremate veemente de Adorno parece impor-se com naturalidade: “a divida acerca do direito incondicional do Método no modo de proceder do pensamento quase nao se realizou, a nio ser no ensaio, O ensaio leva em conta a consciéncia da nio-identidade, ainda que nao expressa; é radical no nado radicalismo, na abstengao de reduzir tudoa um principio, na acentuagio do parcial frente ao total, no seu cardter fragmen- tirio™, Mas 0 que vem a ser essa consciéncia rigorosa da nao-identidade senio a dialética, negativa por certo, pelo menos nos termos em que a concebeu Adorno??? Tratemos de abrandar a impressio de artiffcio provocada pelo stibito reencontro com o nosso assunto oficial — onde convergem a classe dei colli, dialética negativa e ensaismo — tomando ao pé da letra a alusdo de hd pouco ao didlogo platénico. “A referéncia a alguns didlogos de Platio” — feita alids pelo proprio Montaigne — “cuja construgao € aparentemente frouxa, e cujd’ tema nio é abstratamente desprendido mas parece estar acomodado na espéci¢ e na situagio humanas dos interlocutores, nio parece inteiramente injustifi- cada” (Idem 8, pp. 254-255). Convenhamos, aos olhos de Hegel essa constru- gao frouxa aliada ao realismo da cor local dos temas sé pode derivar da estrutura raciocinante de certos didlogos platénicos, justamente os socraticos, cuja dialética negativa — nao nos esquecamos: Sécrates, como os sofistas, também nao tem doutrina e sua dialética é téo ambigua quanto a deles — “t com frequéncia apenas raciocinante, procedendo a partir de pontos de vist@ singulares ¢ no mais das vezes apresenta um resultado negativo ou simplesmenté nenhum resultado” (Hegel, Geschichte der Philosophie, p. 65; trad., 3, p. 436) Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 61 De sorte que, nesse passo, a palavra final, sempre insatisfatéria, esté claro, caberd 4 “confusie” (Hegel, Geschichte der Philosophie, p. 69; trad. p. 439). Esta tiltima j4 nos é familiar e exprime o desconcerto que toma conta do espirito inculto — alvo predileto da dialética socrdtica (Id., ibidem, p. 486; trad., p. 312) — diante da multiplicagdo de pontos de vista antitéticos, como também nao nos € mais estranho o palco em que se dé essa metamorfose, o da “conver- sagéo brilhante”, onde aflora (por que nao?) aquela rigorosa consciéncia da nio-identidade mencionada acima. Pois essa dialética negativa que irrampe e impera em alguns Didlogos, emperrando-lhes a marcha ascendente e afirmativa so poderia florescer ne solo apurado de uma “cultura socidvel e refinada” (Jd., ibidem, p. 456; trad., p. 286). Desta vez é Hegel quem o diz: a dialética socritica reflete a fluéncia volivel do “homem altamente cultivado”, cuja loquacidade (Redseligkeit) plena de discernimento seria invidvel 4 margem do ideal de suprema elegancia e cultura caracteristico da urbanidade dtica. O que excluia Teoria, ou pelo menos a vontade de doutrina, pois nada mais estranho a um espirito cultivado do que a impostagdo elevada de um ponto de vista qualquer, que assim deixa de sé-lo; Sécrates moralizava, sem diivida, mas 0 inegdvel didatismo de suas praticas nao tinha o estilo da “pregagio, da exor- taco, do ensinamento douto, da moralizagao triste etc... Pois tudo isto nado eabia entre os atenienses ¢ na urbanidade dtica, visto que nao se trata no caso de uma relagio racional, reciproca e livre” (/d., ibidem, p. 456; trad., p. 486). Mas nao exclui a vida tedrica, pelo contrario o seu pressuposto esta presente © como que a suscita sem descontinuar: a deambulaciio ociosa dos homens livres na ordem escravocrata. Daf a fusdo entre fldnerie ¢ vida intelectual, dialética e esprit de conversation"), Por outro lado, o que € a ironia socratica, teconhece Hegel, sendo uma “maneira de conversar”: “nele ela representa a forma subjetiva da dialética, uma maneira de se conduzir em relagao a outrem (..)uma maneira peculiar de se comportar de pessoa a pessoa” (/d., I, XVIII, 9. p. 458: trad., pp. 287-288, 291). E nao obstante esta prenda afavel da Wilidade antiga, esse vezo sedutor com que se acolhe o imediato das réplicas de uma conversa animada, essa astiicia espontanea de saldo (4tico) espelha a “universal ironia do mundo”: “toda dialética admite como yalido o que pre- tende sé-lo como se de fato 0 fosse, e deixa a destruig&o interna desenvolver-se Por si mesma” (Id., ibidem, p. 460; trad., p. 289). Tal é a cena primitiva que 62 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 define em larga medida o destino e a indole fragmentaria do ensaio de que fala Adorno, bem entendido, desde que nos seja permitido associar o discurso interrompido, © estilo errdtico do ensaio & labil estrutura digressiva de toda conversagio, onde o espirito flana daqui e dali, como a dialética negativa oscilando de um pélo a outro (Cf. XIX, II, p. 71). Como o ensaio, a “conver- sagao brilhante” também é uma forma intermediaria"”, cujo curso aventuroso anuncia, por exemplo a “construgio frouxa” dos Essais, que “seguem 0 acaso”, as idas e vindas de sua matéria mutavel e fluida (Auerbach 8, p. 254; 9, p. 12). “L’art de causer”, dizia Madame de Stiel, é uma arte liberal cujo resultado nem sempre é “sério” (nele reina a “confusao”, diria Hegel, mais uma vez porta-voz da “profundidade” alemi, no caso, anti-ensaistica): “Bacon a dit que la con- versation n’ était pas un chemin qui conduisait 4 la maison, mais un sentier ob Von se promenait au hasard avec plaisir), Assim o ensaio, tio improdutivo quanto uma boa conversa: “em vez de produzir cientificamente algo, ou de criar algo artisticamente, 0 esforgo do ensaio ainda reflete 0 6cio do mundo infantil (...) Nao comeca por Addo e Eva, mas por aquilo de que quer falar; diz o que The ocorre a seu propésito, termina quando sente ter chegado ao final e nao aonde ja nfo hd mais resto algum: situa-se assim entre as diversdes” (Adorno 3, p. 12). Dentre as quais a fldnerie intelectual da “conversagao brilhante” € uma das pecas caracteristicas, cuja alma digressiva, insistamos, reponta na_ arquitetura interior do ensaio: “na densidade ornamental desse modo de ex- posigdo anula-se a diferenga entre os desenvolvimentos tematicos e as di- gressées" (Benjamin 14, p. 188). Em poucas palavras, e parafraseando Sterne] que ndo suspeitava que pudesse estar precocemente parodiando Sartre, seu método € progressivo-digressivo'™), Voltemos entao ao didlogo socratico e ao seu método “experimental”, que, ja vimos, pouco tem a ver com ciéncia e empirismo. Segundo Hegel, a sua natural aversao a estruturagao sistemdtica ¢ manifestagao espontinea da uniae tealizada por Sécrates entre livre ideagao e estilo de vida, “Essa conexdo com a vida exterior encontra seu fundamento no fato de que sua filosofia nao se desenvolve como sistema; ou melhor, é a sua propria maneira de filosofar (...) que contém em si essa conexdo com a vida corrente” (Hegel, Geschichte der Philosophie, XVIII, I, p. 455; trad., p. 285). Pois € desta fusdo com a pequent prosa do mundo que brota a ironia ensafstica, a ironia das pequenas realidades ‘Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 63 da vida emoldurando a conceptualidade do ensaio, de que falava Lukdécs, justamente a propdésito das pausas aporéticas € socrdticas do didlogo platénico: “a vida de Sécrates € a vida tipica para a forma do ensaio” (Lukdcs 41, p. 27) — vida de intelectual, vé-se logo. Recua-se assim, até os tempos da intelligent- sia sofistica ¢ da “dialética vazia” e geral do homem simplesmente culto, o nascimento concomitante do ensaio e do intelectual livre, se nos for relevado uma vez mais 0 anacronismo dessas expressOes. — Bem avisada andara entao, na Alemanha, a reagio conservadora da segunda-metade do século XIX ao divisar no plebeu Sécrates o paradigma do intelectual, raisonneur obstinado consumada, Isto nao € tudo, como se sabe. Contrapartida do declinio da Teoria, préprio da cultura ensafstica, hd uma ponta de abstragdo na volubilidade intelectual que caracteriza a existéncia por assim dizer irénica do homme de lettres. Expliquemo-nos, recorrendo novamente a figura de Montaigne esbocada por Auerbach. De certa forma a escrita inédita ¢ independente dos Essais nao seria Possivel sem o que Auerbach chamou de desespecializagio dos principais campos do saber, contemporinea da formagao de um publico “culto” e do deserédito do vezo profissionalizante do humanismo enquanto erudicao. Vol- tando-se com frequéncia contra o “faiseur de livres”, contra o especialista, o Sentimento de distancia que a ironia congénita do ensaio pessoal inspirava era Sobretudo um preconceito de classe: “o sdbio fixado numa determinada espe- Cialidade e, em geral, o homem fixado profissionalmente, que ficava absorvido Pelo seu conhecimento e deixava que isso transparecesse na sua atitude e na Sua conversa, era considerado cémico, inferior a plebeu” (Auerbach 9, p. 267). De sorte que o antigo ideal de “cultura geral” — de cujo flanco esgalhou-se, “Omo se viu, uma tradigao ponderdvel do pensamento dialético — veio encar- Rat-se na “classe” dos cultos, recrutada em parte na aristocracia e na burguesia Urbana, “para os quais”, continua Auerbach, “a boa educagdo e as atitudes Sorretas, a amabilidade no trato e 0 desembarago na relag&o com as pessoas, a Presenca de espirito, tudo isso era mais importante do que qualquer competén- 64 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 | cia especial (...) assim surgiu uma forma de conhecimento geral, nao dirigida para fins profissionais, muito social e até com caracteristicas de moda; pelo seu alcance nao era evidentemente enciclopédica, por mais que representasse como que um extrato de todo conhecimento, com preferéncia pelos elementos. literdrios ¢, em geral, por aqueles relacionados com o gosto”. Noutras palavras, aantiga “cultura geral” renovada encontrou seu primeiro protagonista moderno. naquele honnéte homme que a Idade Classica conheceu e que nao precisava “ter aprendido nada especial para poder emitir sobre todas as coisas um juizo seguro segundo a moda; pois Montaigne é o primeiro escritor que escrevia para essa camada de gente culta (...) Assim é perfeitamente natural que tenha aqueles conceitos do que seja formagao cultural que correspondiam aquela primeira camada de pessoas cultas, ainda predominantemente aristocraticas e néio premidas para a realizagiio de um trabalho especializado” (Auerbach 8, pp. 266-267), Ora, ainda nas palavras de Auerbach, “quanto mais geral é a for- magio, quanto menos ela reconhece um conhecimento e um trabalho especiali- zados, a0 menos como ponto de partida de uma visdo mais geral, tanto mais se afasta a procurada perfeigdo universal do concreto, do vivo e do pratico”. Nao obstante, duas cireunstincias teriam preservado a cultura e o modo de viver de Montaigne de se tornarem em consequéncia “abstratos, vazios de realidade, alienados do quotidiano”: de um lado, sua “natureza rica e feliz”, que “nao precisava de qualquer trabalho pratico ou de qualquer atividade espiritual especializada num determinade objeto para ficar proxima da realidade”; por outro lado, o fato de ter vivido “num tempo durante o qual o absolutismo, que estandartizou com o seu efeito igualador a forma de vida do honnére homme, ainda nao estava totalmente desenvolvido” (Id., ibidem, pp. 267-268) —e neste liltimo caso, acrescentemos desde ja, vida intelectual abstrata e despolitizagio correm juntas A sombra do Estado absolutista. | Dito isto, néo se pode deixar de associar a cultura ensaistica — geral. desinteressada, distinguée — a uma especializagao inédita, por onde volta a se impor a “abstrago” na sua feigéo social mais imediata: Montaigne, com efeito, “como que se especializava a cada instante em outra coisa, penetrava a cada instante numa nova impressio e a aprofundava de forma tao conereta que certamente teria sido considerada imprépria no século do honnére homme; ow ‘Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 65 também poder-se-ia dizer: especializou-se em si mesmo” (Auerbach 8, p. 268). Projeto de certo invidvel caso nao fosse o de um homem independente — da sociedade e do Estado — e sem profissio definida, disponivel e inconstante como 0 objeto da sua “especializagdo”. Noutras palavras, nao ha, pelo menos nos seus primérdios, ensaio pessoal sem a autonomia que sé a renda confere, como nao ha intimismo sem privilégio de classe. “A ataraxia de Montaigne consiste na disposigao prazerosa do ser intimo, na qual 0 individuo se afasta de toda iniquidade. A suspensao do juizo, a epokhé, converte-se assim no retiro junto a intimidade privada, na qual, livre enfim da pressio das cargas profis- sionais, pode alguém recuperar-se devidamente (...) Da ataraxia surgem ao mesmo tempo, no ceticismo moderno, a dispersio e a intimidade isolada e confortavelmente equipada. A distragao no mundo ¢ o retiro junto A prépria intimidade sao conceitos idénticos para Montaigne. Quem esta sentado em sua biblioteca ou esté realizando uma bonita viagem, repousa agradavelmente em simesmo” (Horkheimer 30, pp. 18, 20). O ensaismo, tal como o encontrames ho limiar dos tempos modernos, nao saberia sobreviver sem esse corte), sem essa ruptura insandvel entre a esfera fntima da cultura ¢ a vida pratica do cidadao, abandonada assim 4 rotina do conformismo. Por essa brecha — inevitdvel numa sociedade compartimentada — insinua-se a abstracao real que estamos tentando qualificar e aos poucos (da ética conservadora) ird tingindo com a grisalha da raciocinagdo irrefreada os escritos dos letrados. Por ai também principia a minguar, tomando novo rumo, a larga experiéncia do mundo que alimentava o espirito do homme de lettres. Esse ponto de vista Pessoal, que é 0 do ensaio, € que ilumina as idéias envolvendo-as num: halo de ironia, pressupde o désoewvrement, a um tempo atividade pratica ociosa (de quem nao precisa dela) e écio laborioso exigido por uma obra que nada tem a Ver com a Teoria — sem o qual alias ndo ha intimismo desobrigado ¢ digres- Stvo. Dai o alheamento (tramado por essa manobra “diversionista” que éo €Nsaio) que aos poucos vai compondo, e impondo, a figura do intelectual tefratario. Ja o ensaio de Montaigne parece exigir esse insulamento, a de- Satengio calculada com que observa a sociabilidade rotineira, a ironia com que faz praca do seu “desconhecimento e da sua falta de responsabilidade com Tespeito a tudo o que o toca ao mundo exterior, o qual designa, de preferéncia, 66 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 com a palavra ‘les choses’ (...) As ‘coisas’ sao para ele somente meios para autoprovagao; s6 servem a essayer suas faculdades naturais (...) A ignorncia e a indiferenga premeditadas perante as ‘coisas’ pertencem ao seu método; nelas ele s6 procura a si préprio” (Auerbach 8, pp. 252-253). Mesmo sua ocupagdo literdria “especializada” nao escapa ao crivo da ironia de classe, esse “leve tom de orgulhoso desdém de um grande senhor perante as atividades de escritor” (Id., ibidem, p. 250), apenas um pretexto para se por A prova. E inegdvel que esse “tom de orgulhoso desdém” colore e azeda a sabedoria mundana de Montaigne, de sorte que uma espécie de pathos altivo da disténcia, de nitida inspiragio aristocrdtica, vem duplicar a “abstragio” do experimento intelectual (no mais das vezes consigo mesmo) do homme de lettres alheada do mundo, Um certo declinio da experiéncia, a Primeira vista téo rica de substincia social e ideoldgica, parece palpavel a que Tocqueville atribuird m tarde aos percalgos da consolidagio do Estado durante o Antigo Regime. Até ld observemos de passagem (com Hannah Arendt 7, p. 120; e 6, p. 41) que o tom ligeiramente depreciativo do estilo grand seigneur de Montaigne susten- tard, transfigurado, a verve corrosiva das gens de lettres que dele descendem na condigdo de escritores independentes. Reconsidere-se entao sob este prisma o materialismo polémico das maxi- mas dissolventes, conquanto de origem mundana (ou por isso mesmo), deste outro grande senhor, retor intelectual da boa sociedade, o seu tanto apartado do “concreto, do vivido e do pritico”, que foi La Rochefoucauld. Que se pense ainda no “niilismo jansenista”, como diz Bénichou, na dissidéncia do “des- prezo apaixonado”, “mistura de conformismo e negagio que recobre um amar: gor facilmente agressivo”, fonte de tensao que percorre o estilo fragmentério © antitético de Pascal (Bénichou 12, p. 212). A partir de Montesquieu, para completar o rol destas alusdes mais do que suméarias, a cena jd se torna mais familiar — se nos for permitido descrevé-la brevemente com alguns elementos tomados do belo estudo de Jean Starobinski (Starobinski 62). O processo combinado de abstracdo, viruléncia e retraimento que estamos procurando delinear encentrara em Montesquieu 0 seu primeiro ponto de equilibrio, tanto mais eloquente quanto mais distantes permanecemos ainda da aparicgao 4 luz do dia do homo ideologicus perseguido pela conceituagio conservadora. Nim” rantes, P. E,, discurso (21), 1993; 53-118 61 guém mais proximo do ideal ensaistico de Montaigne, 0 “vivre 4 propos”, do que o autor das Lettres Persanes (onde a ficgo também ajusta um ao outro ensaio € ironia), a tal ponto que o dualismo do escritor independente reaparece fielmente reproduzido: de um lado o fidalgo de provincia, cioso de suas terras, yinhas ¢ rendas, defensor dos privilégios politicos de sua casta, comprometidos pela monarquia absoluta; de outro, mal contrabalangado pela inércia desses vinculos reais, a desenvoltura do letrado desencantado, o “livre movimento da inteligéncia emancipada (...) o espirito livre, que nado se amarra a nada, a nao ser 4 consciéncia clara do espetaculo que 0 mundo Ihe oferece” (Starobinski 62, p. 27). E de fato, completemos, malgrado a solidez da sua serviddo social ¢ ideolégica, “a mobilidade, a curiosidade, o gosto da novidade, o prazer de fomper e de recome¢ar™, denunciam em Montesquieu a presenga earacteristica eatuante da relariv freischwebende Intelligenz, 4 qual podemos agregar agora — interpretando livremente uma observagao de Starebinski (/d., ihidem, p. 27) — 0 tipo do libertine tal como o conheceu, enredado no perpetuum mobile do desejo, o século XVIII. Alids j4 0 havfamos encontrado, pelo menos na fili- grana do discurso intelectualizado, na figura plebéia do Sobrinho de Rameau. O persiflage generalizado a que se entregam “os jogos da inteligéncia desa- busada” em Montesquieu dé bem a medida da sua ironia, que abrange a Sociedade da Regéncia no seu conjunto e qualifica a amplitude da secessdo que Se Consuma entio no seio da intelligentsia. Reconhegamos mais uma vez que teflexdo © conformismo nem sempre s&o incompativeis e podem muito bem alimentar uma bizarra solidariedade entre os letrados: como observa Starobins- Ki (¢ a inspiragao sartriana do reparo € patente), “dd-se assim satisfagao & IMteligéncia: ela plana na sua espontaneidade negadora, ela se compraz na sua Mobilidade e na sua vigilancia, Sua critica nao respeita nada, mas ela tem as MAos puras. Ela nada mais faz do que estabelecer entre os espiritos inteligentes uma Cumplicidade no desrespeito” (/d., ibidem, p. 65). Note-se qUe.eS88 “ostelagao ideoldgica admite ainda que se considerem dois sosias significati- Ys do homem de letras: além do libertine mencionado ha pouco, 0 estrangeiro Mais ou menos excéntrico, Segundo 0 mesmo Starobinski, nas Lettres Per- “nes, o othar livre que esquadrinha a civilizagao francesa é a contrapartida do thar que Tepousa indiscretamente sobre os mistérios do serralho sem comover- 68 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 se (cumplicidade no devaneio erético?) muito além do decoro requerido com a ordem despética que impera nesse pequeno mundo exético; pois no é assim que vagueia sem amarras, no entanto conformada, a inteligéncia emancipada? A associagio entre 0 libertino e o livre-pensador, como é sabido, vem de longe e nao seria 0 caso de referir essa tradigao respeitavel — e o seu tanto estereo- tipada — se ela no nos restituisse o miolo daquele “tom de orgulhoso desdém” que vimos atuando com bonomia ¢ moderagao na auto-ironia ensaistica de Montaigne. “A libertinagem, que trata 0 outro como objeto, negando-lhe a liberdade, aparece como o reverso da liberdade da inteligéncia desvinculada. O libertino, que se desfez de todo temor e nao é mais a vitima iludida de qualquer preconceito, nao vé mais nada que o impega de submeter os outros aos seus prazeres, Ele se emancipou desenganando-se (...) fez-se olhar desa- busado e nao tem mais diante de si nada além de objetos. F. 0 tinico homem livre e tem o direito de desprezar os outros ¢ deles abusar por sua vez” (Starobinski 62, p. 68). Tal € a dialética do Iluminismo em que se resolve a do intelectual. Adivinha-se logo que ao termo desse processo — na verdade nao mais do que uma tentagao momentinea em Montesquieu — sera inevitivel pressentir no homme souverain de Sade‘'”) a feigdo francamente paroxistica da raciocinagio do homme de lettres independente, nem por isso menos atado as suas antigas veleidades de grande senhor — e nele o paradoxo da Revolucao. Por outro lado, jd se vé, esse mesmo desprezo de boa companhia esté presente na ironia extrovertida com que Montesquieu fantasia o intelectual de principe persa. Mas colocando-o assim, por capricho literdrio, “na situagao de estrangeiro diante do seu proprio pais” (/d., ibidem, p. 64), apenas o devolve a verdade da sua condigio. A realidade polémica desse travestimento corrente na literatura do século XVIII nao passou desapercebida a ninguém, esté claro. No entanto, apenas a preconceituosa sensibilidade conservadora soube apreen- der na “surpresa irénica”, como diz Cochin, afetada por esse cortejo de persas, chineses, hurdes, iroqueses e ingénuos de toda sorte, 0 tom e 0 espiritoa do intelectual exilado na prépria terra — esse selvagem, continua o mesmo Cochin, nao vem das florestas de Ohio, mas de muito mais longe, “la loge d’en face, le salon d’a cété”, por isso “tudo 0 choca, tudo lhe parece ildgico ¢ ridiculo” (Cochin 20, pp. 42-43). Tudo bem pesado, esse curioso fenémeno de Arantes, P, E., discurso (21), 1993: 53-118 6 desencontro coletivo com a civilizagao do tempo ilustra com rigor (a adotarmos provisoriamente os cri s do idedrio conservador) a verdadeira Bildung as avessas do intelectual moderno que procuramos apenas evocar, através da qual seu protagonista, na medida mesma do seu conformismo (ou reformismo moderado, como se quiser), aprofundava cada vez mais a brecha que dava alento & sua dissidéncia. Mal se poderia falar de uma “intelligentsia relativa- mente descomprometida” (e 0 paradoxe esta justamente no uso desta ex- pressio), nao fosse essa ininterrupta e infinitesimal secessio do “espirito da cultura” (para empregarmos a formula correspondente na lingua hegeliana), Uma passagem de Hannah Arendt resume bem todo o argumento conservador em questéo: os homens de letras haviam iniciado sua carreira “afastando-se da sociedade, primeiro da sociedade da corte e da vida de cortesio, e mais tarde da sociedade de saléo. Eles educavam-se a si préprios ¢ cultivavam o espfrito num isolamento livremente escolhido, colocando-se desse modo a uma calcu- Jada distancia do social, assim como do politico, do qual excluiam-se de qualquer modo a fim de poderem aprecia-los em perspectiva. E apenas por volta de meados do século dezoito que os vemos em franca rebelifio contra a Sociedade e seus preconceitos, e este desafio pré-revoluciondrio tinha sido Precedido pelo mais tranquilo mas no menos penetrante, pensadoe deliberado desprezo pela sociedade” (Arendt 7, p. 120). A principal inspiragao do trecho citado é Tocqueville, como se ver4, e 0 modelo acabado dessa carreira, Rousseau, sem diivida. Antes porém de evo- carmos as teses famosas de L’Ancien Régime et la Révolution acerca da Politizagdo da fungdo intelectual ao longo do século XVIII, conviria sublinhar de passagem o reverso surpreendente e paradoxal dessa “educagio” negativa do letrado moderno, fenémeno decisivo para a compreensdo da trajetéria intelectual da Dialética, notadamente na sua versio hegeliana, e que Paul Bénichou denominou Je saere de l’écrivain, na verdade o aspecto mais saliente do processo social ideolégico muito mais amplo e complexo de formacéo da intelligentsia iluminista. A linha ascendente dessa consagragio é tanto mais Curiosa quanto © seu patrono nunca demonstrou maior apre¢o pelo manifesto Profetismo da nova clericatura. Montaigne, como se viu através de Auerbach, “este homem independente ¢ sem uma profissao precisa, foi o criador de uma 70 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 nova profissio e de uma nova categoria social: o hemme de lettres (...) Sabemos quanto caminho percorreu essa nova profissao, primeiro na Frangae depois nas outras nagdes cultas: aqueles leigos tornaram-se os verdadeiros sacerdotes, os representantes ¢ os guias da vida espiritual (...) Isto equivale a reconhecer que os escritores herdaram a hegemonia espiritual da Europa moderna, De Montaigne a Voltaire a ascensio foi continua” (Auerbach 9, pp. 12-13), Por raz6es varias e nem todas identificadas — Bénichou enumera algumas: progresso na condigao material e legal dos autores; crescimento numérico da corporagio intelectual leiga em virtude do desenvolvimento dos conhecimentos ¢ da civilizagde técnica; acesso a sociedade mundana em pé de igualdade etc. — por volta de 1750 “a apologia do homem de letras torna-se uma verdadeira glorificagao” (Bénichou 13, pp. 26-27 e Mornet 49, passim). O verbete Philosophe da Enciclopédia ainda nos propde a imagem de um sabio, modelo humano préximo do honnéte homme e do seu precursor Montaigne; aos poucos vai-se delineando no entanto a figura do apéstole do bem piiblico, do sacerdote iluminado, vai-se configurando uma “visio messidnica da humani- dade regenerada pelos trabalhos dos pensadores”. Assim, no artigo Gens de lettres da mesma Enciclopédia, Voltaire j4 pode avaliar a formiddvel carreira cumprida pelos letrados desde os tempos dos humanistas e de Montaigne, que da critica filolégica foram guindados 4 condi¢gio invejaével de “homens do mundo © guias do espirito humano”, nas palavras de Bénichou", Uma de- claragio, escolhida entre dezenas, é suficiente para exibir em toda sua eloquén- cia a magnitude das pretensGes que alimentavam essa exaltacie do homem de letras: “a influéncia dos escritores é tal, que hoje em dia eles podem anunciat © seu poder sem precisar disfargar a autoridade legitima que exercem sobre 0S espiritos, Fortalecidos pelo interesse pubblico e o conhecimento real do homem, dirigirdo as idéias nacionais; as vontades particulares encontram-se em suas maos” (Mercier 47, apud Bénichou 13, p. 28). O mesmo autor dessas linhas atribui tal influéncia a uma cireunstancia que jé nos é familiar: “a maioria dos homens pensa de acordo com a roupa que veste; sua profissao cria suas idéiasi aquele que rompeu as amarras nocivas ao progresso da razio € 0 tinico que parece possuir um jufzo livre” ({d., ibidem, apud Bénichou 13, p. 39). Eis definido, comenta Bénichou, uma corporagio intelectual estranha e superi®! Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118. 7 a toda profissio. Vale dizer, a sagragdo iluminista do homem de letras esté vinculada de algum modo aquele pathos negativo da distancia e da “cultura geral” com o qual deparamos varias vezes, aqui traduzido na mera auséncia de profisso precisa e reconhecida, existéncia sofrida e irénica de um intelectual que nem sempre pode viver a propos. “Ce Voltaire n‘a point d’ état; soit, mais ila celui d’étre un grand homme; il a celui d’étre, pour le moins, Végal des rois™"®). Tirante as intengoes, as observagdes que Bénichou consagra a génese da fungao insigne dessa corporagdo pensante aproxima-se muito das idéias de Sartre acerca do déclassement inerente A condigao intelectual durante o Antigo Regime: “em suma, uma categoria vaga, considerada até entio com um certo desaprego e niio desempenhando nenhum dos papéis oficialmente distribuidos na antiga sociedade, impGe-se o bastante & atengdo para reclamar um tal papel; € entretanto, sem poder recusar-lhe positivamente nao se vé como conceder-Iho dentre os oficios ativos, dos quais o diferencia sua natureza, nem acima delas numa regido de onde a exclui a ordem tradicional. Ela permanece portanto de fora, em suspenso na sua nova poténcia, afrontando as antigas (...) De fato, esta posigdo fora dos negécios favorecia ao extremo os escritores; jamais seu Prestigio e a autoridade de seus juizos foram tio grandes quanto nessa idade de ouro” (Id., ibidem, pp. 39-40). Essa celebragdo prestigiosa veio assim surpreendé-los em pleno véo, pairando acima das classes, confirmando-os na Consciéncia de seres 4 parte, sem raizes, frondeurs porém consagrados. Resta, entre outros, o enigma da competéncia politica que lhes foi outorgada, a par da autoridade ideolégica de uma nova clericatura, conquanto integrada na sua origem por gens de lettres “mundanos” e refratarios — enfim, 0 enigma da influéncia social da intelligentsia numa conjuntura precisa, alids revolucionaria, eae Tocqueville di por assente que em meados do século XVIII os intelectuais lornaram-se os principais homens politicos do pats. Ou melhor, este € Precisamente o seu problema maior: “como os homens de letras, que nao Possuiam pasigées, honrarias, riquezas, responsabilidades ou poder, puderam tornar-se, na realidade, os principais homens politicos da época, & talvez 72 Arantes, P. E., discurso (2 , 1993: 53-118 mesmo os tinicos, pois, se outros exerciam o governo, s6 eles possuiam a autoridade?” A circunstincia de fato é inaudita: toda a educagao politica de uma nagao confiada “aux gens de lettres”, a vida politica inteiramente “re- foulée dans la littérature”, o que n&o deixard de exercer uma influéncia “ex- traordindria e terrivel” sobre o curso ulterior da Revolugao, Estudando-a, Tocqueville fara ver no espirito com que foi conduzida o mesmo espirito geométrico, como diria Burke, que presidiu a fabricagdo de tantos livros abstratos sobre a natureza do Estado e a arte de governar: a mesma confianga na teoria ¢ o mesmo desprezo pelos fatos existentes, que, conjugados, definem uma “politica abstrata e literaria”. Pois nao € outra a politica inspirada pelo conjunto da “filosofia politica” classica, toda ela concentrada, segundo Toc- queville, numa Unica nogdo abrangente: que se deve substituir os costumes complicados e tradicionais que regem a sociedade por um conjunto de regras simples ¢ elementares colhidas na razao e na lei natural, enfim reconstruir a sociedade do tempo de acordo com um plano inteiramente novo tragado a luz exclusiva da razio. Nao é dificil reconhecer os termos mesmos da formulagao hegeliana. Prossigamos. Note-se que esta é justamente a definicdo do intelec- tual que Barrés dard mais tarde, assegurando a continuidade dessa tradigao conservadora na qual se entronca uma larga e substancial fatia do hegelia- nismo: “um individuo que se persuade que a sociedade deve se fundar sobre a Idgiea e que desconhece que ela repousa de fato sobre necessidades anteriores e talvez estranhas 4 razdo individual"?). De sorte que — voltando & maneira pela qual Tocqueville deu forma a uma das primeiras tentativas de interpre- tagao do fenémeno histérico da intelligentsia — os écrivains, que j4 tinham em mos a direcao da opiniao, configurando um bizarro “poder espiritual leigo”, no dizer de Bénichou, viram-se na contingéneia de ocupar o lugar comumente reservado aos homens politicos, aos “chefes de partido”, sem que ninguém estivesse em condigées de disputar-lhes a pretensdo quase natural ¢ involuntaria. Decerto, nao ha como esperar de Tocqueville que reconhega na “classe politica”, como se diz depois de Mosca, a categoria intelectual do grupo social dominante — no entanto, o problema nao é diverso, Trata-se, aos seus olhos, de uma imprépria e desastrosa substituigio de “elites”. Mais de um século de absolutismo, debilitando a aristocracia, teria desarticulado de vez © Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 B tiltime corpo dirigente constitufdo; assim desgovernada, a nagao “la plus lettrée et la plus amoureuse de bel esprit” volta-se fatalmente para a elite literdria, da qual faz a primeira poténcia politica do pafs — substituismo par défaut, se se puder falar assim. “A procura de mandatérios inexistentes, o corpo social teria seguido os intelectuais na falta de delegados independentes e especializados” (Furet 23, p. 232). Como se vé, estamos muito longe da opiniao convencional acerca da convulsao revoluciondria deflagrada no seio de uma nagao inteiramente toma- da pelas “idéias” dos “philosophes” — pelo menos isto nao é wdo. Nessas condigées, o processo de politizagao do intelectual € paradoxal, pois pressupde adespolitizacdo da sociedade no seu conjunte, a que jd se aludiu anteriormente. Entendamo-nos: 0 paradigma do conservantismo tocquevilliano é 0 compro- misso inglés pés-revolucionirio, seu norte ideolégico, Burke, para quem a politica € antes de tudo uma “atividade preocupada com a conveniéncia pra- tica” (Williams 67, p. 31). Por este prisma, o que importa ressaltar na cena inglesa, onde impera o “jogo das instituigdes livres”, € o “realismo” des intelectuais, “mélés journellement aux affaires”, e com ele uma quase fusio entre os que governam e os que escrevem sobre politica. Na Franga, pelo contraério, a monarquia absoluta reduziu a vida ptiblica 4 vida do Estado, dividindo o mundo politico em duas provincias incomunicaveis: a uma delas cabia a condugio dos negécios ptiblicos, 4 outra, a diregao das inteligéncias. Deste ponto de vista, que € o da elite tradicional, a exclusao do poder, ou mais precisamente a formagio e consolidagdéo do Estado moderno centralizado, despolitiza e de tal forma que aquela posi¢gao incomum “hors des affaires”, decisiva na consagrag&io do homem de letras, que assim pairava sem fungao sobre uma sociedade em que os funciondrios ja eram legido, é a cifra de um privilégio inegavel e necessério — ao que parece, sem essa distingado nao haveria diregdo cultural — porém funesto. Tocqueville tem entretanto 0 cui- dado de observar que 0 letrado francés, ao contrario do que ocorria na Ale- manha, nao era inteiramente estranho & politica, mesmo porque fazia dela sua ‘ocupagiio, literéria ja se vé, exclusiva. Por af se determinaria a origem histérica © politica (¢ nao uma idiossincrasia do espirito nacional) da abstragdo que define o desempenho ideolégice da intelligentsia iluminista. “A prépria con- 74 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 3-118 digio destes escritores os predispunha a apreciar e confiar cegamente nas teorias gerais e abstratas em matéria de governo. Wiviam a uma distdncia quase infinita da pritica, de tal modo que nao podiam ter nenhuma experiéncia que temperasse seus entusiasmos naturais (...) pois a auséncia completa de toda liberdade politica fazia com que o mundo da politica real se tornasse ndo apenas mal conhecido mas invisivel, Nao tinham qualquer participagio politica real e nem mesmo podiam ver a participacdo dos outros (...) Tornaram-se assim muito mais ousados em suas inovagGes, enamorados das idéias gerais”. Neste ponto um reparo dispensdvel e evidente est4 na ponta da lingua: afinal diante do exclusive politico préprio do absolutismo e antes de consumar-se a Revolugao Burguesa era inelutavel a abstragio inerente A divisio social, de sorte que a politica burguesa era a um tempo abstrata e concreta... Seria descabido corrigir os desacertos de Tocqueville, mesmo porque o pento nevral- gico do nosso assunto, o fato da abstragio em que banha uma intelligentsia segregada porém triunfante, permanece, sendo a angulagao conservadora parte do problema mais vasto proposto pelas origens “intelectuais” da Dialética, Seja como for, entendamo-nos mais uma vez a respeito da conceituacdo tocquevil- liana cuja medula, como se sabe, deve muito a opiniao conservadora de Burke — “a ciéncia de construir, renovar ou reformar uma comunidade nao pode como qualquer outra ciéncia experimental, ser ensinada a priori. Tampouco serd uma experiéncia breve que nos podera fazer aprender nesta ciéncia pratica”, conforme se lé, por exemplo na passagem infalivelmente citada das Reflections, Como 0“ esta “experiéncia” tao exclusiva quanto impon- derdvel, que se contrapde 4 “pequena sabedoria” dos letrados, é prerrogativa da aristocracia, isto é, de uma classe dirigente 4 inglesa. “ O je ne sais quai (0 elemento de imprecisao) da politica, que s6 pode ser adquirido através de uma longa experiéncia, e que em geral somente se revelava aos que por muitas getagées vinham participando da lideranga politica, visava justificar 0 governo por uma classe aristocrdtica (...) Nao basta ao politico meramente possuir 0 conhecimento correto e o dominio de determinadas leis e normas, Além destes, precisa possuir o instinto inato, agugado mediante longa experiéncia, que o conduza 4 resposta correta” (Mannheim 43, pp. 146-147). O confronto entre prudéncia e doutrinarismo é convencional e importa menos do que a conviegao Arantes, P. E., iscurso (21), 1993: 53-118 75 “moderna” (isto 6, inglesa) sugerida: a de que a politica, cujo realismo é incompativel com a utopia e o revolucionarismo € antes de tudo um “debate sobre a gestio”"”), 0 que exige a cooptagio regular dos intelectuais pela elite dirigente, daf explicar-se, € o paradoxo é de caso pensado, a politizagao da inteligéncia francesa pela sua exclusio da vida ptblica. Voltemos entao a singular inexperiéncia desses intelectuais “orgdnicos” da burguesia ascendente — férmula adotada por Sartre que nfo podia imaginar estar assim atendendo A voga (Sartre 54, p. 386) — que se tomavam por uma casta independente autorizada a opinar sobre tudo, privilégio da “cultura geral” que Burke j& havia reverberado: “totalmente desconhecedores do mundo em que se intrometem com tanta satisfagdo, inexperientes de seus assuntos, acerca dos quais se pronunciam com tanta seguranga, de politicos nada tém, a nao ser a capacidade de excitar paixdes™), Sabe-se que a “milicia letrada da contra- revolugao”, como dizia Péguy por ocasiao da polémica com Barrés a época do affaire Dreyfus, fard das sequelas dessa circunstincia histérica 0 motivo do seu reproche fundamental: o intelectual é alguém que se mete no que nao lhe diz respeito®”, Ultrapassando a simples querela das competéncias, 0 argu- mento de Tocqueville vai mais longe ¢ concerne o conjunto dos individuos de uma na¢do onde ao patente predominio do Estado sobre a sociedade civil corresponde um acelerado declinio da experiéncia social e politica, de que os intelectuais sio a ilustragio mais eloquente — e partiramos, recorde-se, da Situagao inversa, do amplo e rico horizonte do intelectual-ensaista, que se vai estreitando, segundo o mesmo Tocqueville, ’ medida que o absolutismo se afirmava e apagava “os tiltimos tragos de vida publica”, que ontrora marcara a sociedade francesa. Essa despolitizagao erénica, que se alimenta da atrofia da experiéncia social, toma alias o rumo condizente com o fator preponderante do fendmeno, o do poder central, que a Revolugao apenas tornou “mais habil, mais forte, mais empreendedor” ¢ a multidao dos “homens relativos” de que fala Sartre — os que conferem A teoria fungao pratica (Id., 53, p. 17) — tomou de assalto, Dito de outro modo, a caréncia de experiéncia politica, notadamente da parte dos intelectuais, tem como contrapartida um aumento notavel da demanda do Estado. A sua maneira peculiar Tocqueville sabia muito bem que conhecer os intelectuais franceses obrigava a aprofundar o conhecimento do 76 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 Estado, desse organismo social que os tornava indispensdveis, como j4 se disse (Rosanvallon/Viveret 51, p. 39). Tentagdo de onipoténcia da boa consciéncia do home ideologicus que nao escapou A inquietagio conservadora de Toc- queville: “os fins perseguidos por esses reformadores sao diversos, mas 0 meio € sempre o mesmo. Querem tomar a mao do poder central e empregd-la na destruigdo e reconstrugae de tudo segundo um novo plano por eles mesmos concebido; somente o poder central lhes parece em condigées de realizar uma tarefa desta envergadura. A poténcia do Estado nao deve ter limites, assim como seu direito, dizem eles; trata-se apenas de persuadi-lo a fazer dela um uso conveniente” (apud Id., ibidem, p. 40). Tal € 0 curioso paradoxo desse vinculo “orgdnico” dos novos intelectuais que parece nio vingar sem o seu complemento oposto, o alheamento dos letrados “tradicionais”, que pode ir até a secessdo declarada, fonte alids da sua inesperada ascendéncia politica, como j4 se viu do Angulo conservador. Diga- mos, pensando no cotejo entre franceses e ingleses a que se entrega Toc- queville, que os “organicos” conservam, enquanto os “tradicionais” subvertem. Comentando o argumento tocquevilleano, H. Arendt, numa passagem ja referida em parte, vale-se justamente de uma distingdo terminoldgica inusitada, para o gosto atual, porém adequada & situagao que estamos tentando recons- truir: tendo seguramente em vista o “realismo” responsdvel dos ingleses evo- cado por Tocqueville, “mélés journellement aux affaires”, chama-os “inte- lectuais”, incluindo-os no grande corpo moderno dos “escritores” profissionais cujos trabalhos sdo necessdrios 4 burocracia em expansio, a administragado dos negdécios e as novas exigéncias de uma incipiente “industria cultural” — que se pense por exemplo, além do hegeliano “animal intelectual” de que partira- mos, na “ordre gendelettre” de Balzac'**’, “De fato”, diz H. Arendt, citando mais adiante um artigo de Wolfgang Kraus, “os intelectuais sao e tém sido sempre parte da sociedade, 4 qual como grupo eles deveram mesmo a sua exist@ncia e proeminéncia; todos os governos pré-revolucionérios da Europa do século dezoito necessitaram deles e usaram-nos para ‘a edificagao de um corpo de conhecimentos especializados e de regulamentos indispensdveis 4 agao dos seus governos em todos os niveis, um processo que realgou o cardter Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 7 esotérico das atividades governamentais’” (Arendt 7, p. 120). Desses “intelec- tuais” integrados e quase funcionais, porém sem peso politico, distingue, inspirada sobretudo no exemplo dos escritores franceses, a hoje praticamente extinta espécie dos hommes de lettres, “homens do mundo da palavra escrita impressa que, embora vivessem rodeadas de livros, nao se obrigavam nem desejavam escrever ¢ ler profissionalmente para ganhar a vida (...) sua existén- cia material baseava-se na renda sem trabalho e sua conduta intelectual pau- tava-se pelo reptidio absoluto de qualquer adaptagio politica e social. Apoiados nesta dupla independéncia podiam permitir-se essa atitude de superior desdém” ja tantas vezes sublinhada (/d., ibidem, p. 41). Neles conviviam portanto, j4 o sabemos, néo sem tensio e durante toda a Idade Classica, o grande homem de cultura (“geral”, sem diivida) e o dissidente. Depois da Revolugao, essa com- binagao, embora preciria, de ensaio ¢ insurreigdo torna-se a rigor invidvel(™®, Assim entendida, provisoriamente, a conjungao de raciocinagao (para voltar a dar um nome hegeliano a reflexdo do espirito cultivado) e paixdo politica abstrata realga na intelligentsia iluminista menos a sua indole “tradi- cional”, nem tanto o seu destino “orgénico”, quanto 0 seu insulamento, a sua dissidéncia de corpo estranho. Daf, além da abstracao, A dentincia do ressenti- mento basta um passo, que a interpretagéo conservadora da Revolugio Francesa niio hesitou em dar, e que podemos acompanhar por um momento, pois a representagdo que desde entio amalgama vida intelectual e ressenti- mento fard fortuna, notadamente na segunda metade do século dezenove ¢ por tazdes de estrutura que agora nfo cabe pesquisar, sendo de resto a experiéncia intelectual da Dialética insepardvel desse elenco de motives anti-intelectua- listicos tipicos da tradigdo conservadora. Atenhamo-nos por ora a essa conjun- tura cldssica, que parece ter juntado ao ceticismo (mesmo na sua acepcio hegeliana mais forte) do intelectual “frondeur” a raciocinagio ditada pelo Tessentimento. Com algum arbitrio, e apenas para datar a atmosfera, pode-se fazer remontar a critica cdustica e “méchante” de La Rochefoucauld uma das Primeiras evidéneias de que o intelectual é antes de tudo um ressentido®”); ou €ntio, 4 excentricidade intelectualizada de um enjeitado, ov pelo menos de alguém que poderia se sentir lesado, como o Sobrinho de Rameau (e niio é 8 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 preciso muita prevengfio para traduzir a “linguagem do dilaceramento” na do ressentimento). Seja como for, a partir de Rousseau tudo conspira para acredi- tar essa imagem comprometedora da condigao intelectual(**), Nesta diregao, como deixar de interpretar a “reforma pessoal” de Rousseau, sua rentincia solitéria (mas nao A retérica — a “reforma” é um gesto bem escrito) de modo tal que a inteligéncia refrataria aparega servilmente trabalhada pelo ressenti- mento? Tudo se passa como se a experiéncia histérica do ressentimento fosse antes de tudo a do fenémeno intelectual na sua feigo moderna — o que nao € bem o caso, ainda. Alias, como € sabido, Diderot foi o primeiro a langar tal suspeicdo: “il n’y a que le méchant qui soit seul”, sobretudo quando tema sua existéncia a bem dizer suspensa a opinido dos outros. Ja no séeulo dezenove, em 1841 exatamente, Carlyle, por exemplo, prolonga naturalmente essa tra- digdo depreciativa, ao associar a “natureza envenenada” de Rousseau, homem “morbido, excitdvel, espasmédico”, toda ela “suspeita, isolamento voluntario, modos rudes”, a uma espécie de intensidade maxima da paixao intelectual, de paroxismo da raciocinagdo sofrida que define o intelectual como um individuo literalmente fora de si: “suas idéias possufam-no como deménios” (Carlyle 19, pp. 264, 266). Em suma, nos termos do quadro explicativo de Carlyle, um anti-heréi na sua condigéo mesma de homem de letras. E que a suspeita de ressentimento nao entrava necessariamente a marcha triunfal do letrado; pode mesmo ajudar a sua transfiguragao apoteética. O préprio Starobinski langa involuntariamente alguma luz sobre o fendmeno quando procura legitimar a “reforma” rousseauniana: “tratava-se de transformar uma carreira de escritor num destino heréico” (Starobinski 60, p. 56). Afinal, nada garante que o desafio solitério que Rousseau langa & sociedade no possa ser interpretado, ainda nas mesmas palavras de Starobinski, cuja intengao original por assim dizer sequestramos, como a “ideologia de um timido e de um doente que espera tirar o melhor partido possivel da sua inadaptagdo, a ponto de fazer dela o seu maior titulo de gléria. Nao pode viver junto aos demais? Pois bem, que o seu afastamento e o seu ar embaracado tenham pelo menos a significagéo de uma conversio apaixonada & virtude! Visto que se sente pouco a vontade nos saloes, que chame a atengdo batendo a porta!” (Id., ibidem). nos de volta, tudo ica, e agora pela via obliqua do ressentimento, 4 tematica da marginalidade Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 ? da intelligentsia setecentista, da qual partiramos, como se ha de recordar. Seria © caso entio — mas ainda nfo é; convém aguardar um tanto mais uma reviravolta na histéria social e ideolégica da burguesia — de passar em revista ea limpo, do angulo sofrido do ressentimento, o rol de elementos que integram a vibratil estrutura “espiritual” do homem culto moderno, da raciocinagdo antitética a simples falta de tato social, passando pela “palavra voliivel”®” e a ironia ensaistica, entre outros e que formam, em razoavel parte, a matéria social e histérica a que da forma, se nio nos enganamos, a “dialética negativa” descrita pelo hegelianismo. Fiquemos por enquanto com o nosso problema atual: a enigmatica convivéncia — que nao precisa ser manifesta e assumida — do intelectual por assim dizer relativ freischwebend (ainda na falta de expressio mais ajustada ao fendmeno que estamos procurando delinear) com 0 homo ideologicus, que o mecanismo socialmente produzide do ressentimento parece vir esclarecer em parte (pelo menos tal como o pds a descoberto o cuidado com a vida intelectual suscitado pela reagio tradicionalista desen- cadeada pela Revolugao). E fiquemos também coma ligdo do “caso” Rousseau: essa notdvel capacidade de atrair sobre si o repertério especulativo (por exem- plo, ao gosto de Kojéve, como se viu) de molde a desacreditar a “humana” condigao intelectual: “consciéncia infeliz", “linguagem do dilaceramento”, “bela alma” etc. Numa palavra, e alterando ligeiramente a perspectiva, o Paradigma do intelectual ressentido, isto é, tout court. Desse prisma — mais ou menos qualificado e referido por ora a vertente liberal-conservadora — H. Arendt retoma ao pé da letra 0 argumento que vimos Starobinski formular h4 pouco como uma hipétese a considerar, e descartar; nisto nfo estd a novidade, mas no desdobramente que vislumbra na racionali- zagio da “timidez” social a démarche que des4gua na “ideologia” radical caracteristica do homo ideologicus. “E mais do que duvidoso que Rousseau tenha descoberto a compaixio através do sofrimento com outros e é mais do que provavel que nisso, como em quase todos os outras aspectos, ele se tivesse Suiado pela sua revolta contra a alta sociedade, em especial contra a sua ¢vidente indiferenga para com o sofrimento daqueles que a rodeavam. Ele tinha Teunido todos os recursos do corag&o contra a indiferenga de salio” (Arendt 7, P. 87). A singeleza dessa imagem d’Epinal — a do intelectual raminando uma 80 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 desfeita irrepardvel, inerente 4 ordem social — também duvidosa, vé-se logo. A lembranga de uma circunstancia histérica talvez possa ameniz4-la em parte: é que, tudo o leva acrer, essa mesma forte e decisiva impressio provocada no intelectual suscetivel pelo espetaculo da indiferenga mundana, reaparece no despeito da sans-eulotterie diante da tiédeur civica afetada pelas classes mais abastadas, no manifesto cardter de classe da repress4o popular ao indiferentis- mo dos insouciants (Soboul 58, pp. 144-147). Acresce, para complicar 0 problema, que esses indiferentes, cm plena maré revoluciondria, podem ser também os intelectuais. Retomemos o argumento sugestivo de Hannah Arendt, mais ou menos o seguinte, com uma ou outra adigao: por um lado, a “fantdstica irresponsabili- dade ¢ irrealidade” em que timbrava o comportamento de Rousseau é fruto da sua “sensiblerie” de “bela alma” (ou de intelectual, como se quiser), de quem cedo se empenhou mais nas dobras do seu coragao do que no sentimento do mundo, encantado com as suas disposigdes e caprichos; por outro lado, essa mesma sensibilidade moderna em formagio (para qual, insistamos, muito contribuiu a experiéncia do intelectual marginal do Antigo Regime) que adere assim tio mal 4 forga das coisas, na verdade estiliza por assim dizer aquele desprezo pela sociedade de que se nutre a inteligéncia desabusada do homem isto posto, cedo ou tarde, entraria em constelagdo essa “desdenhosa Jo” herdada do estilo grand seigneur do letrado tradicional e o “édio ressentido dos plebeus”. A sistematica despolitizagao produzida pelo absolu- tismo explica essa inexperiente ¢ derriséria identidade de teoria e pritica: “aquilo que os hommes de letires partilhavam com os pobres, inteiramente a parte e anteriormente a qualquer compaixio para com o seu sofrimento, era precisamente a obscuridade, ou seja, 0 fato de que o dominio ptiblico lhes era invisivel ¢ de que careciam do espaco ptiblico onde eles préprios pudessem sé tornar vis{veis e ter significado” (Arendt 7, p. 122). Eainda a interpretagho de Tocqueville acrescida de um suplemento, o da “ma consciéncia” (de que langara mio a andlise de Sartre, alids com conhecimento de causa). “O que o& distinguia dos pobres”, prossegue Hannah Arendt, “era terem sido dotados, por virtude de nascimento e circunstancias, do substituto social da impoténcia polftica, que é a consideragfio”. Mas essa inédita cidadania no “pais da cons!- Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 81 deracgiio” — ou mais precisamente, essa consagragao que culmina par défaut na transformagao da elite intelectual em “classe politica", como se viu — pesa como um fardo. Livres do trabalho, “sentiam que o seu 6cio era um fardo”. Dito de outro modo, o tempo livre, sem rugas e sem limites em que se alinhava o ensaismo desenvolto e experimentado de Montaigne tornara-se, ao cabo de um périplo consequente, um fardo dificil de suportar sem ma consciéncia, a rigor © fardo do homem culto. Assim laminados entre o Estado © a plebe, premidos pelo ressentimento e a ma consciéncia vindos de um lado e de outro, esses hommes de lettres desfalcados de uma experiéncia do mundo que outrora Ihes fora a seu modo familiar viram-se na contingéncia de “déguiser chaque passion publique en philosophie”, como dizia Tocqueville sem contudo asse- verar com todas as letras que tal politica abstrata e literdria fosse comandada por um arranjo singular daquelas duas tristes “paixdes”, explicdveis entretanto pela marginalidade apotestica da inteligéncia no fim do Antigo Regime. Resumamos evocando a opiniao curiosamente favordvel e otimista de Mannheim, o que é raro. De fato, um “corpo” como o dos intelectuais, cujas expectativas sociais e politicas foram tolhidas (e nada impede de adotar provi- soriamente a opiniio de Tocqueville a respeito) tende ao isolamento e¢ a autoglorificagdo (no caso, a sagragio do homem culto); dai a “fronda” © © Tessentimento permanentes, sendo que este tiltimo sé é nocivo quando dissimu- lado, quando toma a forma de uma certa “animosidade submersa”, Todavia, Tompido o confinamento, exposto a luz do dia e tornado expressio coletiva de descontentamento, esse mesmo ressentimento revela-se socialmente produ- tivo: pois é justamente essa a situagdo que “faz progredir a autoconsciéncia € favorece o surgimento de uma intelligentsia”°. Nao obstante a regra em Mannheim € a convicgie oposta, j4 o sabemos, a aversdo inspirada pela influéncia deletéria desses “acrobatas do espirito” Caso avancemos um pouco mais por esse mesmo caminho aberto inicial- Mente, sublinhemos mais uma vez, pela “escola retrégrada”, como diria Saint- Simon, pelo desalento liberal ou integrista diante da invasio do dominio feservado da politica pela inteligéncia Idgica e o espirito de controvérsia (Bénichou 13, p. 41), mas a quem se deve em iiltima instancia o primeiro Invent da questo dos intelectuais, convém arriscar ainda uns tantos passos 82 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 ao redor do nosso problema, 0 da conversio do “estado de incerteza fértil” do “espirito da cultura”, a redugdo das suas “infindas oscilagdes” — a expressio € de Mannheim a respeito da frequente falta de convicgdo demonstrada pelos intelectuais, mas nao custa lembrar e insistir que ela descreve exatamente 0 movimento da “dialética negativa” hegeliana — ao espetaculo espantoso ofere- cido pelo “fanatismo dos intelectuais radicalizados” (Mannheim 43, p. 184) $0 que Hegel tinha precisamente em vista 4 época da Revolugao. Este fato inaudito, a raiz do qual encontra-se uma espécie de irresponsabilidade con- génita do intelectual, j4 vimos Tocqueville explicé-lo historicamente pelo fendmeno da experiéncia politica confiscada?!, Mannheim explica-o pela “empatia”, vale dizer pela “falta de carater” inerente 4 condic4o intelectual (Id. 44, p. 9246, p. 183). Com alguma imprudéncia seria o caso de se falar também de “heréi sem nenhum carater” a propésito desse her6i maderno por exceléncia, sobretudo quando se tem em mente, por contraste, a concepgao de Carlyle do. homem de letras como herdi (ilustragdo suplementar da tendéncia documentada por Bénichou), & qual voltaremos mais adiante®, Tal é, via de regra, a opiniao corrente nos grupos politicos mais radicalizados acerca da instabilidade social dos “homens cultos” e da sua correlata falta de firmeza ideolégica. Nao é bem esta a perspectiva de Mannheim, ja se vé; a censura que Ihes move, pois ¢ disto que se trata afinal, alias de corte conservador, é na verdade mais ambiciosa e abrangente, pois esta convencido de que 0 radicalismo do intelectual politizado deriva em grande parte da sua natureza ondeante e fluida, de tal sorte que o reproche militante A inconstancia da intelligentsia, por vigoroso que seja, vem a ser em Ultima andlise uma querela fraterna. Digamos, para nao perder de todo o fio de nossa meada, que tal manobra € andloga a trajetéria “fenomenoldgica” do Sobrinho de Rameau ao Terror. Repassemos o argumento, cujo teor, de resto, ji € nosso conhecido (Id. 44, p. 92 ¢ segs.). Se quisermos, a “empatia” é um dos tragos caracterfsticos da “cultura geral”, pelo menos entendida neste seu modo de ser peculiar que a marcha de nossas conjecturas levou a exumar. Pois segundo Mannheim essa capacidade social de “pér-se no lugar do outro” — que nao € mera simpatia, boa vontade ou simples compreensao, mas um certo “desejo de penetrar em pontos de vista desconhecidos ou desnorteantes” — distingue o intelectual moderno do clerc*), Como define também o novo Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 83 horizonte de uma experiéncia singular, a experiéncia (do) intelectual, diversa da sabedoria da pessoa experiente porém inculta (em perspectiva histérica, algo que tem a ver em razodvel medida com o pré-capitalismo), autodidata e “focalizada nos problemas reais”, prépria de quem formou sua capacidade de Julgar “através do aprendizado direto da vida”. A “verdadeira educagio”, pelo contrario, “é uma fonte de transcendéncia intelecwal do proprio meio”. Re- pare-se que nio estamos muito longe de reconhecer, por essa via travessa, no intelectual moderno um manifesto pendor (que a circunstincia pode transfor- mar em sistema) pelo experimento raciocinante e pelo culto do heter6nimo. - Ainda nas palavras de Mannheim, um individuo, mais exatamente, um espirito cultivado “pode viver mais que sua prépria vida e pensar mais que seus préprios pensamentos”. Por outro lado, nao se pode deixar de notar que nessa vida educada, cujo prego e condigdo é a “disposigdo de manter o Eu em recessa”, reponta ainda o bom gosto do honnéte homme, sobre o qual repousam os “conhecimentos gerais” de quem faz praga da sua calculada desespeciali- zagao, virtude publica ou mundana que supée precisamente um tal retraimento discreto da prépria individualidade ¢ ao qual s6 tem acesso os que se mostram capazes, como diz Gadamer, de “destacar-se de si mesmos e de suas preferén- cias privadas”@?), E muito ténue entretanto a fronteira que separa esse “bom gosto”, por principio avesso & excentricidade, do aprego pela “cultura multi- polar”, 0 qual de certo modo estd cumprindo o seu destino quando degenera e se embrenha no “labirinto dos caprichos intelectuais” (Mannheim 44, p. 93). Voltando aos termos do nosso problema: a dialética negativa que descobrira- mos nas dobras e voltas da condi¢do intelectual transparece outra vez nessa faculdade moderna do homem culto, a “empatia”, essa “sensibilidade as visdes alternativas e as interpretagdes divergentes da mesma experiéncia” (Id., ibi- dem, p. 92), Mais um passo, tantas vezes assinalado, e aflora o anti-intelectu- alismo de corte “alemo”, nosso conhecido: tudo se passa como se houvesse um grio de morbidez nessa sensibilidade (ou nessa predisposigdo para a dialética, negativa esta claro), que pode convidar a paralisia, 4 melancolia debilitadora acarretada por “uma perene atitude de diivida de si”,¢ que desigua enfim no “nobre festim da abstinéncia”, como dird Nietzsche mais tarde, dando Seqiiéncia a essa tradigio de desconfianga, Em suma, a “empatia” além de 84 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 antitética é uma paixdo triste (Hannah Arendt falara de piedade e compaixio) que qualifica por inteiro o intelectual moderno (ventoinha voliivel, tartaruga Jonginqua, como ja se disse uma vez). Numa palavra, que alids nao é pronun- ciada por Mannheim — mas jé 0 fora noutro contexto por Kojéve, como ja se viu — h4 muito de niilismo no “pathos vazio” desse “tipo sem resisténcia ¢ heroismo, incapaz de acao independente”, cuja “empatia” de camaledo — teu nome é veleidade — cedo ou tarde toma a forma de um “intelectualismo descom- prometido, frivolo e vao”. Com efeito, se esse descompromisso caracteristico da sensibilidade telectual instavel e ziguezagueante, capaz de acolher a um s6 tempo os mais contrastantes pontos de vista sobre a mesma coisa, é préprio de um “estrato social desvinculado” — ou, se preferirmos, é efeito do déclassement dos homens de letras —, admite uma tradugio social de peso, que as conjunturas excepcionais pordo em relevo: as oscilagdes ¢ a falta de convicgao do espirito cultivado sic 0 avesso de uma notavel disponibilidade para se vincular a outras classes sociais. E como se a vida & parte, abstrata e inexperiente do homme de lettres (outra maneira, tocquevilliana, de se designar a experiéncia intelectual) suscitasse espontaneamente por assim dizer esse aporte social heterénimo. Assim compreendida, ja 0 sabemos, uma tal convergéncia é nefasta. A abs- tragdo que estamos procurando definir ¢ que encontra na Revolucao a sua eficdcia maior, € outro nome desses “aspectos mérbidos de um estado de permanente descompromisso”. Um paréntese: ainda estamos bem préximos como se esté vendo do espirito da critica tocquevilliana do jacobinismo, embora ja se fale a lingua mais difundida de um Arthur Koestler quando identifica inrelligentsia e neurose, como o faz de certo modo Alain Besangon. Voltando: reencontramos assim nas palavras de Mannheim (preconceituosas, para dizer © menos, mas isto importa pouco por ora) aquela bizarra concep¢4e da unidade de Teoria e Pratica evocada ha pouco: “em tempos de crise o éxtase intelectual pode cair em solo fértil (...) € nesse ponto que as expectativas de uma massa insegura ¢ o éxtase dos intelectuais solitérios podem-se encon- trar”®®), (Mas ainda nao é chegade o momento de se perguntar pela naturez4 das forgas do éxtase que se trataria de recuperar para a Revolugiio.) Dito d& Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 85 outro modo: é nesses perfodos de temperatura social elevada que a “empatia” das elites — essa vocagao teatral, espécie do paradoxo do intelectual, propen- sio para assumir, quase com indiferenga ¢ diletantismo, papéis sociais confli- tantes — pde a nu a sua afinidade com o ressentimento que emerge entio dos subterranees da sociedade, com o ressentimento das grandes massas oprimidas. E como se — variando mais uma vez 0 tema — uma espécie de niilismo de massa se encontrasse subitamente espelhado pelo ressentimento da elite in- telectual. Renunciemos por ora a explorar esse curioso entrecruzamento his- t6rico de niilismo burgués ¢ esse sentimento do nada absoluto de si mesmo que em certos momentos (durante o Terror, por exemplo) toma centa das grandes massas®), reparando de passagem que Augustin Cochin, ao retomar a hipotese conservadora acerca da origem intelectual da Revolugdo Francesa, inclui igual- mente no quadro geral da sua explicacao a tese do niilismo congénito do homme de lettres guindado & condigio an6mala de principal protagonista da “classe politica’: € que, de um lado, a critica inerente a influéncia social e politica da intelligentsia iluminista & niilista por no ser dogmitica ou positiva, isto é, nao se defende nada, “rien que du vide et des négations”; e de outro lado, é a sua propria inexperiéncia, de que ja trataram Burke e Tocqueville, ao colocar de imediato o intelectual 4 sombra rala da abstragdio, que o inclina “vers le vide" € faz dele um ser “aberrant vers le vide” (Cochin 20, pp. 36, 41, 43, 44). Uma Planta de estufa portanto cujo “éxtase” (fenémeno cuja descri¢do, alids su- maria, Mannheim tera colhido em Weber) traduz bem a condigao intelectual na Idade Classica, surpreendida agora no seu desfecho antitético: 0 monolitis- mo da ideologia revoluciondria por assim dizer embutido na antiga skepsis ensaistica do escritor independente — pois tal € o percurso afinal proposto. insistamos, pela critica conservadora do “espirito da cultura” (nao hd “éxtas Sem uma franja virtual de fanatismo. Partiramos, como se ha de recordar, da ironia entranhada na fluéncia da fala intelectual distanciada — ou, se preferirmos, da consciéncia da ndo-iden- Ndade — e nos vemos enfim condenados ao “estilo guilhotina” de um Saint- Just), como se houvesse algo da dic¢ao intelectual no “tom inspirado” das Proclamagdes revoluciondrias®®), na “eloquéncia paroxistica” dos jacobinos 86 Arantes, P. discurso (21), 1993: 53-118 (Starobinski 61, p. 55). Acreditariamos ainda mais a impressio de reviravolta (ou de revelagio de uma verdade secreta) ao cabo desse périplo, se con- corddéssemos em observar que a raciocinagao radicalizada de Saint-Just, uma vez no poder, reinventou justamente o “esprit de sérieux”; que se releia por exemplo esta maxima espantosa: “celui qui plaisante 4 la téte du gouvernement tend a la tyrannie” (Camus 18, p. 155). Seria o caso de se evocar a exclamagio que Marx deixou escapar a propésito do tragico desdobramento da “superstigao politica” de Robespierre, Saint-Just e demais “montangnards”: “que colossal ilusdo?” (Marx/Engels 45, pp. 147, 148). Talvez. Seja como for, trata-se, para © periodo em questao, do desenlace da “ilusao intelectual". Mas o que vem a ser de fato, do Angulo histérico que nos ocupa, o “éxtase intelectual solitdrio” sendo a embriaguez de refundir 0 mundo sem ter que fazé-lo realmente, visto que basta conversar a respeito? Dito isto — mais ou menos nas palayras de Jean Baechler (Cochin 20, p. 11) — reaproximamo-nos, pelo menos no plano da temética mais aparente, do cerne do argumento hegeliano (lembremo-nos do destino singular que a Fenomenologia do Espirito reservava a prosa “rica de espirito” do Sobrinho de Rameau), agora por intermédio da interpretagao que dé Cochin da “ilusao intelectual” na origem da Revolugio, Em linhas gerais, Augustin Cochin reanima de modo muito original dois motivos maiores do elenco conseryador. O primeira, toma-o de Tocqueville, ampliando-o noutra diregao: o papel politico desempenhado pelos intelectuais nao o foi par défaut, os letrados nao sio os substitutos precdrios da “classe politica”, eles sio a prépria politica “democratica” na sua forma abstratamente pura (Furet 23, p. 232); © segundo tema remonta (para dar 0 nome proprio eminente a idéias que estavam no ar) a Taine, o do artificialismo da vida intelectual confinada a discussao ou clube: “jamais des faits; rien que des abstractions, des enfilades de sentences sur la nature, la raison, le peuple, la tyrannie, la liberté, sortes de ballons gonflés et entre-choqués inutilement dans les espaces”™®), Se principiarmos por este ultimo motivo a darmos mais uma volta em torno do nosso assunto, nos veremos novamente a bragos com Arantes, P. E., discurso (21), 1993; 53-118 87 um elemento constante do mesmo, alids induzide pela propria maneira hegelia- na de dar forma 4 experiéncia intelectual: a conversacao brilhante ¢ o engenho verbal do espirito cultivado. Pois nao é outra a atividade preponderante nessas sociétés de pensée, cAimaras de leitura, academias, clubes de discussio etc., estudadas por Cochin e cuja trama constitui a engrenagem de uma imensa Machine doutrindria, da qual o inieo combustivel é a causerie: fa e de tudo — afinal estamos no reino da “cultura geral” — politica, filosofia, agricultura, economia, literatura etc., mas o fato essencial, e anddino, é que se converse a respeito: “on ne fait que causer”, diz Cochin. Inutil frisar 0 quanto nos afastamos assim da tese integrista do complé (nado se conspirava, tagarelava- se), ¢ também a distancia considerdvel que separa esse exercicio inocente da imagem convencional da “ideologia” enquanto racionalizagao, dissimulagao etc. E no entanto nosso problema no variou, continuamos 4s voltas com essa enigmatica mesalianga de livre ideagdo e doutrina. Mais uma vez, o clo entre ambas € a abstragdo engendrada pela inexperiéncia, como se as sociétés de pensée fossem mintisculas usinas disseminadas pelo territério nacional enear- regadas de produzir “abstragGes”, de transformar idéias em “idéias puras”. E que o principio da conversagao pela conversagiio exclui 0 confronto com a realidade. Noutras palavras, a Reptiblica das Letras nao é um mundo governado pelo principio de realidade mas pelo devaneio bavard da iluminagio intelec- tual‘), Vista deste Angulo exético, a ideologia — no caso, revolucioniria, pois se trata afinal das origens intelectuais do jacobinismo — nao é tanto uma representagdo de interesses de classe (pelo menos ainda nao), quanto uma espécie de efeito de linguagem, precipitado pelo fendmeno da associagio de pessoas e idéias sem territério; na sua forma embriondria a ideologia é filha tempora da “cultura geral”, é uma “abstragao” (sem Idéia, acrescentaria Hegel) produzida pelo home loquax. Nestas associagées de livre pensamento 0 fazer cede 0 passo ao dizer (mas ainda nao é Kojéve comentando a Fenomenologia que estamos ouvindo), visto que niio se trata de agir (nao sao um partido, embora 0 prefigurem), porém de falar apenas, “et & des parleurs”: eis o tema que Cochin varia em todas as diregées. “Doravante o sucesso cabe a idéia distinta, aquela que se fala, nao a idéia fecunda que se verifica: ou melhor, é apenas a discussao, a opinifio verbal, e néo mais a prova, que verifica e julga’ 88 Arantes, P. E., diseurso (21), 1993: 53-118 (Cochin 20, p. 39). Esta claro portanto que o relato do homem experiente & banido em favor da raciocinagdo desenvolta ¢ fluente da “consciéncia abstra~ tamente cultivada”, como se diria na lingua hegeliana“”. Nestas mesmas condigdes, parece se impor, feitas todas as ressalvas, a manifesta afinidade entre essa existéncia discursiva do espirito (falando ainda & maneira especulativa) no limiar da Revolugao e as “torrentes de eloquéncia” de que falou Carlyle a propdsito da Franga revoluciondria, Nem por isso anula-se a dificuldade de casar, por exemplo, a lingua “rica de espirito” do Sobrinho de Rameau (contudo representante da intelligentsia marginal) e 0 “estilo guilhotina” da oratéria jacobina, os jogos inofensivos da causerie engenhosa e o paroxismo da ret6rica revolucionaria. Mas de fato algum ves- tigio dessa exaltagiio radical e palavrosa nado se deixa antever no horror, “literdrio”, do intelectual ao compromisso — afinal nao se trata de uma camada relativamente desvinculada? — que o condena invariavelmente & “montée aux extrémes”“}? Nao é improvavel que Cochin, ao sublinhar assim o papel ponderdvel desempenhado pela loquacidade intelectual na relag io abstrata com as idéias, nao se tenha deixado impressionar, como todo mundo, pela énfase teatral da lingua da Revolugao, onde, justamente, substituismo caracteri: tico das “sociétés de pensée” (esse cancelamento do fazer pelo dizer, de mesma ordem que a consagragao politica dos intelectuais) parece enfim ter alcangado a sua verdadeira dimensao, politica e retérica, no enunciado “performativo” que escande 0 novo discurso da Revolugao, cle mesmo acontecimento porque produz acontecimento: aqui “o ato se identifica com 0 enunciado do ato” (Benveniste 15, pp. 273 e segs.), dizer finalmente € fazer, ¢ a miragem do fazer coisas com palavras parece confundir-se por inteiro com a ilusio intelectual. Ninguém methor do que Michelet soube tao prontamente reconhecer a singu- laridade do fendmeno: “nao se diga que a palavra é de pouca valia nesses momentos. Palavra e ato sao uma s6 € mesma coisa. A poderosa, a enérgica afirmacio que tonifica os coragdes é uma criagdo de atos; o que ela diz, ela produz” (Michelet 48, liveo VIII, cap. IIL). Nem poderia ser de outro modo, sendo uma Revolugio — sabe-se & saciedade — 0 que ha de mais autoritario (Engels) e o “performativo”, o modo de enunciagao préprio dos atos de autoridade, vale dizer, da lingua revolucionaria das proclamagGes ¢ dos decre- Arantes, P. E., discurso (21), 1993; 53-118 89 tos. Uma tal tinguagem, esta visto — é a que sugere mais ou menos Starobinski depois de descrever os efeitos notdveis da retérica revolucionaria referidos por Michelet — encontra-se permanentemente ameagada de esgotar-se numa esca- Jada de veeméncia austera, de andtemas e abstragSes incorrigiveis. “Montée aux extrémes” do intelectualo-centrismo tipico da Revolugao? A interpretagao conservadora nao hesita, ji o sabemos, devolvendo-nos de novo 4 nossa dificuldade de sempre (que da ética conservadora, justamente, nao constitui problema), a de entender essa metamorfose da fala vohivel do letrado vivido, que trata das coisas e de si com recuo ¢ espfrito, na lingua enérgica e doutrindria da autoridade politica e ideolégica. A julgar pelo que se viu até aqui, feita a ressalva da perspectiva datada, digamos que esta passagem nao é propriamente impensavel", De nada valeria também referir o eclipse do homem culto no auge do processo revolucionario, de que da testemunho, por exemplo, um “pronuncia- mento” de Robespierre: *os homens de letras de maneira geral desonraram-se nesta Revolug4o; ¢ para vergonha eterna do espfrito, a razio do Povo arcou sozinha com as consequéncias””, Paradoxalmente, mas é 0 paradoxo mesmo da condicdo intelectual, © anti-intelectualismo jacobino, a suspeigdo que o poder revoluciondrio langa sobre a intelligentsia, apenas confirmam o ponto de vista excéntrico que tem sua origem no conservantismo histérico e sua principal “certeza” na convicedo de que a “ilusio intelectual” perde a inoeéncia e torna-se terrorista quando empolga (literalmente) 0 poder, como se 0 homo ideologicus no poder nao pudesse sobreviver sem se voltar contra o seu “duplo” ¢ principio, o homem culto, que sob a Reptiblica doutrindria suporta um novo fardo. Outra “certeza” da tradigio conservadora é a de que 0 espirito geométrico (Entendimento, diria Hegel e com ele toda a filosofia alema) do letrado radicalizado nfo pode imaginar outro Estado que nao sejaa realizagio de uma “idéia” — ocorre que 0 curso dessa “realizagao da filosofia” exige a autodestruigao do velho intelectual, como ja se disse em algum lugar. “Ils veulent emprunter la main au pouvoir central et l’employer a tout briser et a tout refaire suivant un plan...”, dizia Tocqueville, Assim, no fato surpreen- dente de que “os homens de doutrina sao as vitimas prediletas da doutrina vitoriosa” (Bénichou 13, p. 63), vem inscrita a “contradigao” responsdvel pela 90 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 existéncia pendular do intelectual no limiar da modernidade, e pelo esteredtipo, cultivado & direita e a esquerda, da sua secular irresponsabilidade: o perene conflito entre o ritmo dissoluto do espirito desabusado, exigido, como vimos, pelo “conhecimento sob a forma do antagonismo”, préprio da “dialética nega- tiva”, e a “demanda de Estado”. Para a prevengio conservadora nao ha contra- ditoriedade fundamental entre estas tendéncias, mas continuidade natural. A rigor nfo se poderia falar de um sequestro da infelligentsia durante a ditadura jacobina, pela simples razio de que o “Estado revoluciondrio chamou a si a augusta fungio dos homens de letras” (Bénichou 13, p. 77). Resta porém a flagrante discrepfncia entre o moderantismo dos grandes intelectuais (Rousseau inclusive) e 0 revolucionarismo das sociedades popu- lares que nao dispensam a patronagem espiritual desses grandes pontifices da cultura. O problema agora € 0 da socializagao das idéias, mais exatamente o da transformagdo do resultado negativo da livre ideagio — 0 “éxtase do intelectual solitario” — em ideologia revoluciondria. Cochin explica-o pela formagiio de um meio especifico, a intelectualidade proletardide“. O paren- tesco com a inteligéncia marginal do Sobrinho de Rameau salta aos olhes e no entanto serfamos levados a estreitar indevidamente esses lacos de familia caso esquecéssemos que a figura do intelectual boémio apenas mascara a fantasia caprichosa de um homem de letras trés comme il faut. “No fim do século aparece, com efeito, um milieu de intelectuais proletardides. Seu principio de coesdo € a partilha de uma doutrina, ou de um stock de idéias, de nogdes e de palavras. Desligados da sociedade, néo sio mais mundanos ¢, a bem dizer, comecam a meter medo nos homens do mundo” (Besangon 16, p. 39). Uma idéia nao associa se ela nao se deixa falar; jd o vimos, 0 cimento real dessa nova solidariedade é a supremacia de uma certa linguagem, aum tempo inflada e rarefeita; por cla se reconhece o “idedlogo” — “sumo sacerdote da lin- guagem” (Id., ibidem, p. 41) — que atemoriza o letrado mundano e avesso & compulsao gregaria: é por essa fonte inédita de legitimidade que transitam as idéias rumo a abstragio de esquema ideoldgico, isto €, a frase. “A prépria linguagem politica tomou entiio algo do que falavam os autores. Tornou-se repleta de expressdes gerais, de termos abstratos, de palavras ambiciosas e de arranjos literdérios. Ajudado pelas paix6es politicas 4s quais servia, este estilo Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 91 conquistou todas as classes e desceu, com singular facilidade, até as inferiores” (Tocqueville 65, p. 240). A sugestao é clara — pelo menos em parte, e tirante a desconsolo liberal diante do espetaculo pouce edificante das classes subal- ternas que se pdem a pensar — e inequivocamente ditada pela desconfianga da retérica (lembremo-nos da forma hegeliana desta mesma animosidade) que s6 o anti-intelectualismo de corte conservador pode inspirar: ha uma via real da socializagao do “esprit”, cuja indole o jogo das circunstancias hist6rias deter- mina, que, passando pelo atalho decisivo da causerie, conduz 0 engenho da frase de espirito, fluente e plena de verve “antitética” no seu andamento rapido € por assim dizer “dialético", ao enrijecimento das grandes palavras que incham 0 coragao dos homens (na origem talvez boutades de salio) e formam um sistema inerte ¢ residual de tepei. Visto assim, deste Angulo arrevesado (e de “direita”), nao cabe falar de uma degradagao da “lingua rica de espirito” (na conceituagio hegeliana), mas de um destino conforme a forga das coisas que culmina na crispagio da fraseologia revolucionaria. Todo esse processo merece 0 nome de abstragdéo — mas é um nome e nao uma solugiio. Noutras palavras, nas de Furet comentando Cochin, a ideologia revoluciondria é esse conjunto de “representagées cristalizadas em algumas figuras simples da linguagem, destinadas a unificar ¢ mobilizar os espiritos e as vontades” — o arremate & 0 seu tanto abstruso e petulante, embora imposto pela atmosfera do argumento: “mais do que uma agiio, a Revolugdo é assim uma linguagem” (Furet 20, p. 229). Variando mais uma vez: a ideologia pode muito bem ser da ordem da falsa consciéncia mas na exata medida em que constitui uma t6pica. Enfim, antes de tudo um modo (performativo) de falar, alids impensdvel, a prosseguir- Mos por esse viés, sem a fala digressiva e distanciada da raciocinagao, agora Paralisada na sideragdo das idéias fixas. Tal € a enigmatica contiguidade entre a perspectiva ampla e arejada do homem culto e 0 horizonte raso do intelectual-idedlogo. F um pouco a promis- cuidade do saldo e da “société de pensée”. Ou melhor, esses dais estilos de vida intelectual intensa ¢ confinada nao se recobrem exatamente, alias se sucedem, © que nos coloca de novo diante do desdobramento do homme de lettres. Pois Nao se conversa nessas sociedades como nos saldes. Nestes 0 desejo de agradar €alei,o que impée a necessidade de brilhar, de se distinguir na escalada do 92 Arantes, P. E., discurso (21), 1993; 53-118 “género engenhoso”, de resto vontade de estilo nem sempre incompativel com a intengdo de conhecimento (a julgar pela glosa das conjecturas hegelianas e kojévianas de que partiu este estudo). Naquelas, inversamente, 0 desgoverno da conversa irrefreada esta alinhada de imediato A procura da verdade, que se disserte sobre “a melhor maneira de plantar batatas ou sobre os caminhos garantidos da felicidade universal”, Cochin é levado assim a distinguir dos “bons vivants de 1730", a geracdo seguinte dos enciclopedistas em que o espirito parece congelar-se e ceder o passo ao serieux do homo ideologicus: “estes tiltimos sio graves: como deixar de sé-lo quando se esta seguro que 0 despertar do espfrito humano data do seu século, da sua geragio, de si mesmo? A ironia substitui o divertimento, a politica, os prazeres. O jogo torna-se uma carreira, o salao, um templo, a festa, uma ceriménia, a coterie, um império, do qual ja vos mostrei 0 vasto horizente: a reptiblica das letras” (Cochin 20, p. 37). Mas a ironia agora é um novo nome para o “delirio da presun¢ao”; ou por outra, ela é efeito do alheamento que a experiéncia declinante vai cavando fundo, e no “delirio” de missdo ja se vai fazendo sentir um travo de niilismo, de resto j4 nosso conhecido embora sé de vista. No entanto, um democratismo sui generis volta a reunir 0 clube ao salao ¢, com eles, parece refazer-se a figura inteiriga das gens de lettres et de parole. Mal comparando — se nos for consentido parafrasear fora de contexto duas ou trés linhas de um escrito admirdvel — a vida intelectual de salao também é uma vida de excegao, ponto de transigado entre a vida real e o mundo sem obstdculos da arte de conversar; © seu universo também nao tem passado; oferecendo a todos iguais oportuni- dades de brilho, o salao destréi as distancias. Lembremo-nos — agora por nossa conta — de que a entronizagao do novo poder espiritual iluminista foi contem- pordinea do acesso dos letrados @ sociedade mundana em pé de igualdade. Tal é o mundo “democratico” onde vive o animal intelectual identificado por Kojéve no bestidrio hegeliano: um mundo onde todos se eriticam e onde se critica tudo. Pois aqui toma pé a miragem ideolégica identificada por Cochin. Sua “tese” é breve e peremptéria: o fetiche da democracia directa € 0 proprio cerne da ilusao intelectual. Tal convicgao é de origem tocquevilliana, como ji foi mencionado, e em linhas gerais enfeixa todos os motives que variam o tema conservador da raiz intelectual da Revolugao. “A literatura Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53. 93 tornara-se assim uma espécie de terreno neutro no qual se refugiara a liberdade. O homem de letras e 0 grande senhor se encontravam aqui sem se procurar ou. temer, de sorte que se via reinar ali, fora do mundo real, uma sorte de democracia imagindria"*), Nisto cifra-se 0 carater filosdéfico da Revolugaio™?, Estd claro que aos olhos de Tocqueville o frgil travejamento dessa democracia literdria e mundana seria inconcebivel sem a generalizagao de um certa men- talidade democritica, ela mesma contempordnea do processo de centralizagio estatal, e responsdvel pelo déclassement do intelectual e a consequente frater- nizagao “igualitéria” com o ptblico aristocrata. Ele mesmo evoca, com a acuidade de quem teria sido lesado sem no entanto se deixar empulhar, o paradoxo dessa democracia imagindria, embriao “intelectual” da outra: “esta mesma aristocracia tornava ainda mais facil o trabalho de sua substituigao pelos escritores. Andava tao esquecida da influéncia das teorias gerais que, uma vez admitidas, chegam inevitavelmente a se transformar em paixdes politicas e atos, que as doutrinas mais opostas a seus direitos particulares, e mesmo 4 sua existéncia, Ihe pareciam apenas jogos engenhosos de espirito. Dedicava-se de boa vontade a estes jogos para passar 0 tempo e desfrutava tranquilamente de suas imunidades e de seus privilégios dissertando com serenidade sobre 0 absurdo de todos os costumes estabelecidos” (Tocqueville 65, p. 356). Nas “sociétés de pensée” também se dissertava, abundantemente e com “irénica surpresa”, sobre a desrazio do mundo da experiéncia; embora regidas por uma andloga “aparéncia” democratica, sua relagio com as idéias era diversa visto que faltava a mediagio ociosa do engenho e do espirito. A idéia socializada pela causerie desatada transforma-se em verdade e esta pede consenso, Nessa “patria intelectual” que € uma “société de pensée”, “todo Pensamento, todo esforco intelectual s6 tem existéncia pelo assentimento. Ea Opinido que faz o ser. F real 0 que os outros véem, verdadeiro o que eles dizem, bem o que eles aprovam. Assim a ordem natural é invertida; a opiniao é aqui causa € nao efeito, como na vida real” (Cochin 20, p. 38). O reino da opiniao € © suced&neo da vontade de agradar vigente no salio: ambos demandam o Concurso de uma vida ptiblica efémera, confinada e integrada, e o seu meio é 4 conversa¢ao brilhante. Numa palavra, a “société de pensée” exige unanimi- dade, ela é uma fabrica de consenso. Fica sugeride assim que o modelo da Pratica jacobina (que alids nunca primou pelo zelo democratico) tem muito 4 Arantes, P. E., diseurso (21), 1993: 53-118 mais a ver com as sociedades filos6ficas e literérias do que com uma instancia propriamente politica, como o Parlamento inglés pois, continua Furet, comen- tando a sociologia do jacobinismo ensaiada por Cochin, “a meta da sociedade de pensamento nao é agir, nem delegar, nem ‘representar’, mas opinar; € extrair dos seus membros, e da discuss, uma opiniao comum, um consenso, que sera expresso, proposto, defendido. Uma sociedade de pensamento nao tem autori- dade para delegar, representantes para eleger, na base da partilha de idéias e de votos; é um instrumento que serve para fabricar a opiniaio undnime, inde- pendentemente do contetido dessa unanimidade” (Furet 23, p. 224), A hipstese geral sustenta que a partir da segunda metade do século dezoito este paradigma intelectual do consenso tende a ganhar o conjunto do tecido social. E inegavel por exemplo que a paixao politica do unanimismo tomou conta de jacobinos € sans-culottes®®, Para Cochin, que acreditou decifrar no consenso procurado pelas sociedades de pensamento os lineamentos da vontade geral de Rousseau, ela foi antes de tudo uma paixdo intelectual. “Quem diz soberania direta do povo, democracia pura, diz malha de sociedades permanentes” (Cochin 20, p. 117). A tinica coisa que conta numa sociedade literdria € a relagao com as idéias —como éa tinica coisa que conta na vida de um intelectual —, abstragdo feita da particularidade social dos seus membros: eis af o esquema da igualdade abstrata da democracia politica. Se acrescentarmos a obsessio da opiniao undnime e universalmente presente na causerie generalizada, é todo 0 eixo do idedrio da democracia direta (ou mesmo do assembleismo) que revela a sua substancia intelectual". Independentemente do eventual acerio ou desacerto das suposigdes de Cochin, 0 leitor que nos acompanhou até aqui terd notado que apenas variamos a matéria de nosso embarago permanente (e se insistimos é porque ela é parte ponderdvel da trajetéria da Dialética): pois a idéia fixa do consenso transparente e sem rugas ajusta-se mal a indole raciocinante da intelligentsia, mais inclinada ao “experimento”, por assim dizer entranhado nas formas do conhecimento sob a égide do antagonismo, do que ao alinhamento entusiasta. Pois esta fusio igualitaria de livre pensamento e idéia fixa, digamos que Cochin tenta explicd-la também como efeito ideolégico da “associagao”, donde a consequente confusao do intelectual com o militante jacobino. Voltemos ao salio e tratemos de refazer, se nio a “demonstragao”, a0 menos a exposi¢do parcial do nosso assunto. Nos saldes, como nos cafés & Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 95 associagoes literdrias, a Republica intelectual estabeleceu a sua capital visfvel). Ali a inteligéncia encontra a aristocracia, ao mesmo tempo em que se verifica a gradual emancipagao do gosto literdrio burgués e 0 estado de espirito caracteristico do democratismo vai se impondo através da mistura dos estilos. Pois a partir do momento em que o homme de lettres ombreia com o aristocrata, a grande burguesia financeira e administrativa, a opiniao eman- cipa-se da dependéncia econdmica ¢ a idéia (de intelectual) da paridade entre os doutos comega a tomar corpo (Habermas 26, pp. 49 e segs.). Habermas lembra oportunamente que a distingao feita por Diderot entre escrito e discours — “os nossos escritos agem somente sobre uma classe de cidadios, os nossos discursos sobre todos” — seria de dificil compreensao sema vigéncia mundana desse lugar social onde os homens cultos fazem um uso publico da inteligéncia, e também elegante, nessa trama brilhante da conversagdo onde se entrelacam relatos de viagem, bagatelas, fait divers, politica e critica literaria (Id., ibi- dem). Aos poucos a pratica social da discuss4o permanente entre iguais vai se fixando e codificando. Trata-se de uma relagio social que mao pressupde a igualdade de “estado”, mas dela faz abstragdo com regularidade. Conforme declara o documento de fundagdo de uma dessas associagdes afins com o espirito do salio, 0 seu escopo é “estabelecer uma certa igualdade © soli- dariedade entre pessoas de classes desiguais”. Dai — continua mais ou menos Habermas, em cuja reconstituigao do periodo nos apoiamos — o senso do “tato” entre iguais que acompanha o principio da paridade através da cultura €, acrescentemos, do ethos do debate contraditério: sé a partir da conjungiio de ambos pode a autoridade da idéia triunfar sobre a hierarquia social. Em suma, as palavras de ordem, de igualdade e liberdade, que a burguesia revoluciondria Variou em mil férmulas e clichés, tiveram na idéia da paridade dos homens cultos um dos seus primeiros paradigmas sociais (/d., ibidem, pp. 49, 71). Tal € © lugar social em que se consuma sem alarde a dissidéncia do homem de letras, se consolida a sua hegemonia € se projeta a arquitetura geometrizante da contra-sociedade ideada pela intelligentsia. BE que na reptiblica igualitéria das Letras a Critica é soberana. Se por exemplo nos voltarmos agora para a descricdo que faz Bayle do Reino da Critica, formaremos talvez uma nogdo menos vaga (¢ outra variante do argu- 96 Arantes, P. E., discurso (21). 1993: 53-115 mento proposto) acerca do itinerario cumprido pelo intelectual moderno, da critica filolégica do primitive humanismo ao assalto do Estado absolutista), Digamos, sem forgar muito a nota, que a Critica sem Teoria constituia 0 outro lado do Ensaismo montaigneano, por onde principiamos: arte de desentranhar de um contetido j4 dado sua justeza ou beleza, extensiva igualmente As pessoas econdutas exemplares, a critica desde entao sempre esteve associada 4 capaci. dade de jufzo, 4 faculdade de ler com critério e sentimento (como dizia Auerbach a propésito de Montaigne) caracteristica da cultura douta nos seus primérdios, A partir do Dictionnaire historique et critique de Bayle nota-se que os elementos do “régne de la critique” tomam nova feigio: “escolhemos a precisao do raciocinio, temos cultivado mais o espirito do que a meméria (...) tornamo-nos muito mais sensiveis ao significado e A razio”. A atividade critica estendia-se assim a todos os dominios do saber e da histéria, submetendo-os a um processo infinito de relativizagdo, a tal ponto que a eritica converte-se na verdadeira atividade da razao, Desde entao o conceito de critica permanece associado ao de razio, até voltar-se “contra” a prépria razio. Um critico, diz Bayle, antes de tudo é aquele que “mostra (...) 0 que cabe dizer a favor e contra os autores; ele exerce alternadamente o papel de acusadore defensor”. Dai duas consequéneias maiores e que nem sempre convivem muito bem: essa razio que continuamente sopesa os pros € os contras, nao s6 se resolve no constante exercicio da critica, como se confunde com o desdobramento de uma con- tradicdo intermindvel; a inteligéncia vé-se assim presa de um movimento incessante, onde a alternancia dos motivos contraditérios anuncia o andamento “intelectual” da dialética negativa — digamos, uma espécie de ensafsmo perene. Mas nao ha contradigdo sem promessa de reconciliagdo, futura bem entendido — o que é préprio do “progressismo” ilustrado. Pois é nesse ponto de inflexao que o homme de lettres principia a diluir-se no seu “duplo”, que desde sempre — visto da perspectiva em questéo — trazia adormecido dentro de si. Podemos surpreender aqui 0 mecanismo embriondrio e sutil da “politi- zagio” da ironia ensaistica, da loquacidade digressiva entranhadas no criti- cismo enquanto oficio, malgrado ele mesmo, do escritor independente, Na sua fung’o conjunta de acusador e defensor, o critico vé-se elevado (alids por ele mesmo) 4 condigio de instincia deciséria e soberana, pairando acima dos Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 97 “partidos”. Tudo se passa como se a Reptiblica das Letras se propusesse rivalizar com o Estado nacional ¢ absolute, superior ¢ alheio a luta das faccdes ¢ dos partidos religiosos. “E a liberdade que reina na Reptiblica das Letras”, diz Bayle, “esta Reptiblica é um Estado extraordinariamente livre. Aqui nao se reconhece senao o império da verdade e da razio, e sob os auspicios delas se faz inocentemente guerra a qualquer um (...) Cada um é ao mesmo tempo soberano ¢ condendvel por qualquer outro”. Como evitar a forte impressao de afinidade ideoldgica entre a Reptiblica das Letras, onde todos se criticame tudo € criticado, e o Estado revoluciondrio em que a soberania popular também parece fazer, agora dispensando a inocéncia, “a guerra a qualquer um”? O argumento pode parecer especioso e assim apresentado é simplesmente suma- rio, mas afinal nado destoa no quadro da especulagdo hegeliana, caso seja convincente o exposto até aqui. De qualquer modo Koselleck, cuja interpre- tagdo vinhamos seguindo, deixou-se cair em tentagdo, juntando-se A tradigio, liberal ou conservadora, que manda esclarecer as idas e vindas do processo revolucionario 4 Juz dos malfeitos da inteligéncia entregue a si mesma: “so- mente na liberdade absoluta é possivel dar seguimento ao processo critico que € mediagio da verdade. Na reptiblica dos doutos cada um € senhor de cada um © por todos pode ser julgado. A guerra civil que o Estado havia eliminado (lembremos que o autor iniciara o argumento do livro com uma meditagao Sobre as guerras de religifio e a génese do Estado absolutista) reaparece de imprevisto; € precisamente no espago privado interno que o Estado fora obri- ado a conceder ao homem enquanto tal. Nesse espago reina entao a liberdade absoluta, o bellum omnium contra omnes; 0 fim comum a todos é a verdade, © verdadeiro soberano na disputa das inteligéncias é a critica que cada um ©xerce ¢ a qual cada um se sujeita. Implacdvel reina a soberania, da qual todos Participam. A democracia total que Rousseau concebera meio século mais tarde €a reptiblica dos doutos de Bayle estendida ao Estado”), hi Voltemos a Hegel, nio sem tempo. Nao caberia aqui reconstituir no Stalhe, e pela enésima vez, o curto capitulo da Fenomenologia dedicado a 98 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 Revolugao Francesa — a continuidade problematica porém sem tropegos que Hegel institui entre as principais afirmagées do Contrato Social, remanejadas pela pratica politica de jacobinos e sans-culottes (0 reptidio da divisiio dos poderes, a critica da representacao politica e 0 exercicio da democracia direta, 0 pathos do corpo social indiviso etc.) ¢ a firia devastadora em que culmina a ditadura jacobina. Dizer que o Terror — na lingua da especulagao: o império da universalidade abstrata (Hyppolite 32, vol, Il, pp. 444-445) — é coisa de intelectual ou, o que vem a dar no mesmo, que o Terror € a abstragio no poder, pode parecer com razdo uma explicagao histérica um tanto magra; mas isto traduz bem a inspiragio primeira e maior da critica hegeliana do jacobinismo, uma vez admitida a procedéncia do que se procurou sugerir até agora. Mas que transparece no voluntarismo sectario dos jacobinos seniio a inexperiéncia de uma elite intelectual condenada pelas circunstancias e por indole propria as tarefas de diregao politica? Tal era o sentimento de Hegel, nisto vibrando em unissono com a reagdo conservadora’’, Dele extravasou algo para o primeiro Marx que, num artigo de 1844, também pressentia no voluntarismo politico a marca da ilusdo intelectual: “o entendimento politico é precisamente entendi- mento politico porque pensa no interior dos limites da politica. Mais ele é agudo, mais ele € vivo, mais se mostra incapaz de compreender os males sociais. O perfodo cléssico do entendimento politico é a Revolucéo Francesa (...) O principio da politica é a vontade (lembremo-nos de Hegel elogiando Rousseau por ter feito da vontade 0 prinefpio do Estado). Quanto mais unila- teral é 0 entendimento polftico, isto é, acabado, tanto mais acredita na oni- poténcia da vontade, tanto mais mostra-se cego face aos limites naturais ¢ espirituais da vontade, tanto mais se revela incapaz de descobrir as fontes dos males sociais” (Marx 46, p, 402). Seria descabido por ora — mesmo assim, na esteira dos acertos involuntarios do conservantismo — determo-nos nessa redugao da politica ao seu grau zero em nome da critica do intelectualo-cen- trismo, denominado aqui, na melhor tradigao classica, “entendimento”. Por outro lado, 0 conjunto dessas suposigdes a respeito do contetido de experiéncia de teor propriamente “intelectual”, alvo da critica hegeliana da abstragio que permeia o processo revoluciondrio, nao parece comprometer a leitura con- sagrada da interpretagao hegeliana da Revolugio Francesa como realizagio do ‘Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-11 99 direito abstrato; pelo contrério, 0 momento controvertido da intervengio “in- telectual” — sempre “abstrata” — fica inclusive melhor situado, Simplificando um pouco, digamos que 0 nexo entre o dircito abstrato, tal como Hegel no-lo apresenta na Filosofia do Direito, e 0 que Tocqueville, 4 maneira de Burke, nomeou “politica abstrata e literdria”, dispensa maiores justificativas — nem sera preciso recorrer A Ultima e mais longinqua inst&ncia que manda incluir uma e outra “abstra¢do” no bloco um tanto amorfo da “ideologia burguesa”, generalidade inquestiondvel mas que ajuda pouco. Pois Hegel legitima a reali- zagao hist6rica do primeiro através da condenagao da segunda, e nisto destaca- se do tronco conservador em que o vimos até agora engastado — a divergéncia € de peso, como se vera. A abstragdo do Direito Natural racional sanciona com propriedade (sem trocadilho) a nova ordem burguesa — e voltamos assim A “ideologia burguesa”, se for permitido tao brutal esquematismo nesta matéria Porém Hegel separa a validez dessa abstraciio real, enquanto resultado histé- tico, do processo politico imediato da sua consumagao™®), Trata-se de uma abstracio suplementar, indissociavel da primeira: nela apresentam-se conju- gados, inclusive pela critica, o descrédito da condicao intelectual e a conscién- cia revoluciondria confiscada. Mas ja estamos dando um novo passo que convém adiar. Fica no entanto sugerida pelo préprio Hegel que a critica do revoluciona- tismo jacobino nao é estranha a condenagao — hesitante e ambigua, por certo — do esprit que qualifica a natureza intima da vida intelectual. O que é de fato © pensamento francés, vivo, espirituoso, movimentado, sendo o préprio estilo engenhoso (“das Geistreichselbst". Hegel, Geschichte der Philosophie, II, 20, P. 287; trad., p. 239)? Mas o que € este “estilo” senfio a “atividade idealista” que se volta contra o mundo e destréi tudo que € fixo (Id., ibidem)? Ocorre, do Angulo da especulacao hegeliana, que nao ha destruigiio sem negaciio, umae Sutra enfeixadas pela abstragdo: “o pensamento é o absolutamente abstrato e, Por isto mesmo, 0 absolutamente negativo” (Jd, ibidem, p. 195; trad., p. 143). Por estranho que parega — e esperamos que o exposto tenha amenizado esta ‘mpressao — hd muito do “fanatismo do pensamento abstrato” (id., ibidem, p. 297; trad., p. 250) entranhado na suprema elegancia da cultura geral do homem de espirito. Ou, se preferirmos, a abstragdo é um dos tragos da “dialética 100 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 negativa” — resta ver mais adiante que mecanismo a condena a apartar-se da Idéia, a qual, € bom lembrar, ainda ndo sabemos bem 0 que vem a ser. Tornemos a sensagao exética, hé pouco mencionada, provocada pela associagao de leveza de espirito, cultura iluminada e ameaga terrorista. O curto-circuito é bem alemao. Schelling, por exemplo, praticava-o com desenvoltura. Na quinta das suas Lig¢ées sobre o Método dos Estudos Académicos, depois de observar com relativa isengio e uma ponta de sarcasmo que “nossos autores alemaes, cote- jados com os autores franceses, sio apenas pobres ¢ fastigiosos pregadores”, faz refluir sem hesitar a “insurreigdo do entendimento raciocinante”, a “tagare- lice insipida” da inteligéncia formada na escola da “raciocinagio oca e vazia”* por uma “cultura falsa e superficial”, a “sublevagao geral da populaga” com o seu cortejo revoluciondrio de “atrocidades barbaras” (Schelling 55, pp. 52, 53). No outro extremo basta lembrar a maneira a um tempo contrafeita e encantada com que Auerbach analisou o estilo rococé de Voltaire: toda a sua forga proviria do andamento da frase que se precipita com uma ligeireza quase clownesca, facilitando a simplificagao antitética — ¢ neste ponto nao ha como deixar de evocar o ritmo vertiginoso da “dialética” entrevista por Hegel na diccdo brilhante do Neveu de Rameau. “O que lhe é peculiar é, antes de mais nada, o tempo; a rapida e precisa concentragao do desenvolvimento, as rapidas mudangas de imagens, a combinagdo surpreendentemente repentina de coisas que nao estamos habituados a ver juntas: nisto é quase Unico e incomparavel, e neste tempo esté grande parte de sua graga”; nesta limpeza estética porém, nessa velocidade de prestidigitador, reside a técnica sofista da propaganda iluminista e que Auerbach chamou técnica do holofote e que consiste em “jluminar excessivamente uma pequena parte de um grande e complexo con- texto, deixando na escuriddo todo o restante que puder explicar ou ordenar aquela parte e que talvez serviria de contrapeso daquilo que é salientado (...) O piiblico sempre volta a cair nestes truques, sobretudo em tempos de inquie- tagio (...) Contudo, o truque é na maior parte dos casos facil de ser descoberto; mas falta ao povo ou ao publico, em tempos de tensio, a vontade séria de fazé-lo”, a injustiga cometida é entaéo recebida com alegria sddica“?). — Seja como for, tudo até aqui nos convida a inverter 0 propésito do artigo famoso de 1807, Wer denkt abstrakt?: pois €.0 homem culto quem pensa abstratamente®™. Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 107 Resta uma dificuldade. Suptinhamos de inicio que as razdes da desquali- ficagdo especulativa da condi¢do intelectual — por sua vez inclufda no rol dos temas hegelianos — deveriam ser pesquisadas no contexto mais amplo do desenvolvimento anémalo do capitalismo “retardatario” na Alemanha do “pe- tiodo artistico”. Se nao € falso, ainda nao 6 toda a verdade: pois esse mesmo descrédito encontra livre curso na grande corrente do conservantismo europeu desencadeada pelo cataclisma revolucionario; tudo isso, agravando o proble- ma, a contrapelo de um vasto movimento ideolégico de sagracio da fungao intelectual. Entretanto, e tal € 0 ponto nevrdlgico do assunto a ser atacado, a singularidade alema manifesta-se num trago peculiar e decisive da démarche hegeliana, varias vezes sublinhado ao longo destas paginas: o idedrio anti-in- telectualista nao foi suficientemente forte para impedir que a primeira ex- periéncia moderna da dialética — embora negativa — fosse identificada e sancionada na figura indecisa desse ser precdrio e relative que € 0 homem de letras. Por ora, née obstante, convém reter a opiniao de Kojéve, de onde afinal partiramos: “mais I'Intellectuel a toujours tort” (Kajéve 34, p. 96). (1979) Abstract: Chief among the conservative theses about the intelectual origins of the French Revolution is the conviction that it is above all the learned man who thinks abstractedly. Concerned with the historical genesis of Hegel's dialectic, this essay attempts to reconstruct the steps that would have possibly flatten the characteristic volubility of the enlightened intelligentsia in the one-dimensional world of homo ideologicus, Keywords; intelectual, dialectic, Enlightenment, French Revolution, 102 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 Notas (1)“Das abstrakt gebildet Bewusstsein” (Hegel, Philo, Weltgesch., IV, p. 924). (2) Apud Gérard 24, p. 14. (3) Expressdo empregada por Jean Baechler ao prefaciar os escritos de Augustin Cochin (20) reunidos sob o titulo de L'Esprit du Jacobinisme. (4) Veja-se 0 capttulo 12 L’Humaine Condition, de Mimesis (Auerbach 8), €. 0 ensaio Montaigne Scrittore, in: Da Montaigne a Proust (Auerbach 9). (5) O argumento é de Horkheimer, que ressalva a bizarra confluéncia de humanismo ¢ conformismo — possibilidade histérica logo perdida — nos primédrdios da so- ciedade mercantit moderna; cf. Horkheimer 30, pp. 51-52, 17-18. Cf. também Auer- bach 9, p. 19. (6) A respeito das relagdes entre ensaio e experiéncia, veja-se, além do escrito jé mencionado de Lukdcs, El ensayo como Forma, de Adorno (3). (7) Cf. 0 que diz Adorno acerca da atmosfera ensatstica da Recherche proustiana (Adorno 3, pp. 17-18). (8) Descartes 22, p. 127. Deste angulo restrito € perfeitamente verossimil estender a Descartes, até certo ponto, limite imposto pelo ideal de Método, a fungde precur- sora de Montaigne na consolidagdo da condigdo intelectual: “a profissao intelectual ainda ndo existia como tal no século XVI. Descartes, malgrado a familia, 140 escothe profissdo — as armas, a justiga, a Igreja: gens de robe et gens d’epée — ¢ se fecha a trabathar ¢ estudar. E um homem independente e de boa posigiio, um homme de bonne compagnie, ¢ se dedica a atividade intelectual sem ser clérigo 0” professor”, Julian Marias, Historia de la Filosofia, citado por Machado Neto (42, P- 37, n. 26). (9) Adorno 3, p. 19; para o original alemao, cf. Adorno I, p. 23. Arremate de uma longa historia. Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 103 (10) Férmula adorniana cujo inegdvel hermetismo renunciamos por ora tentar dissipar (Adorno, 2, p. 13). (11) “Nao hd nenhuma pesquisa dialética que néo tenha sido, no comego, uma simples conversacdo”(Goldschmidt). (12) Voltemos a Madame de Stéel: “des que Uentretien ne porte pas sur les intéréts communs de la vie, et qu'on entre dans la sphére des idées, la conversation en Allemagne devient trop métaphysique; il n'y a pas assez d’intermédiaire entre ce qui est vulgaire et ce gui est sublime; et c'est cependant dans cet intermédiaire gue svexerce l'art de causer” (Stéel 59, vol. I, p. 113), — Se estivéssemos a procura de um indicia histérico-social mais forte da afinidade de estrutura e tradigdo entre a “conversagdo brilhante"do homem “civilizado"e o ensafsmo, nada mais seguro do que esse mesmo preconceito nacional alemdo envolvendo um e outro génera pelas mesmas razées antertormente expostas. “Na Alemanha, 0 ensaio provoca uma reagdo defensiva porque recorda, e exorta, a liberdade de esptrito, a qual, desde o fracasso da tibia ilustrag@o jd malograda nos tempos de Leibniz, nem mesmo hoje, nas condi¢des de liberdade formal, desenvolveu-se suficientemente, pelo contrario, sem- Pre esteve disposto a proclamar como sua aspiracdo mais caracteristica a submisséo @ quaisquer instancias. Mas o ensaio ndo admite que se prescreva a que é da sua compeiéncia” (Adorno 3, p. 12). Compreende-se entéo que uma obra ensaistica como a de Walter Benjamin também brilhe como um astro sem atmosfera no firmamento de uma cultura que conheceu o homme de lettres apenas marginalmente, mani- festando-Ihe sempre uma constante hostilidade, de Hegel a Heidegger. Cf, Adorno 4, PP. 247 € segs. — Convém no entanto reequilibrar o argumenta (sempre com a ajuda de Adorno), evocando 0 caso Proust: mesmo numa sociedade mais complexa e diferenciada, como a francesa, onde a atividade espiritual, gragas ao desenvol- “imenio da divisdo do trabalho tornou-se rapidamente prdtica, um homme de lettres independente como Proust, iiltimo representante de uma espécie em extingdo e por 4880 mesma condenade ao diletantismo de rentier, deverd contar com a resisténcia dos seus pares, “técnicos da inteligéncia (para falar como Jodo Lafetd), pouco importa se “tradicionais” ou “orgdnicos”, naturalmente inclinados a denunciar o Sew lero-lero de intelectual grd-fino (Adorno 5, pp. 11-12). (13) Stel 59, vol. 1, p. 102. Nao custa lembrar, a propésito dessa manifesta afinidade Be 4 prosa de ensaio ¢ a “prosa” ociosa da conversa de esptrito, a raiz mundana ‘1 forma ensatstica em Hume. No primeiro niimero do Spectator, Addison propunha- 104, Arantes, P. E., jiscurso (21), 1993: 53-118 se, inclinando-se de bom grado as exigéncias do dia, levar “a filosofia para fora dos gabinetes de estudo e das bibliotecas, das escolas e dos colégios, instalando-a nos clubes e nos saldes, nas mesas de chd ¢ nos cafés” (apud Laski 37, p. 65). O “polite Writer" figurado por Hume mais tarde ndo terd outra ambigao. “Learning has been as great a Loser by beeing shut up in Colleges and Cells, and secluded from the World and goad Company. By that Means, every Thing of what we call Belles Lettres became totally barbarous, being cultivated by Men without any Taste of Life or Manners, and without that Liberty and Facility of Thought and Expression, which can only be acquir'd by Conversation. Even Philosophy went to Wrack by this moaping reclused Method of Study, and became as chimerical in her Conclusion as she was unintelli- gible in her Stile and Manner of Delivery” (Hume 31, p. 368). A “experiéncia”, 0 senso de observagao da natureza humana, de que carece 0 pensamento civilizado — o contrério da raciocinacdo geométrica ¢ abstrusa — tem assim a exata medida da conversagéo mundana, onde as idéias sdo socializadas e apuradas sob a égide do gosto e do bom tom. E mesmo da gatanteria: pois na Reptiblica das Letras, no “Empire of Conversation”, a lei é ditada pelo “Fair Sex", pela legido sensivel das “Women of Sense and Education”. Enfim, os que se entregam as “aperagdes do esptrito” formam a “parte elegante da humanidade”, ela mesma constituéda por dois mundos até entdo separados e hostis: 0 “learned” eo “conversible". Digamos que anova ordem social, tao bem espelhada no pragrama do Spectator, encarregou-se de sanar o funesto desencontro entre homens de letras e homens do mundo, Ora, para Hume, a “polite Writing” do Ensaio, género intermédio assim engastado entre os dois mundos da humanidade elegante, é justamente a expressdo conforme ¢ inspirada dessa nova alianga. (14) Cf. por exemplo o capitulo 22 do primeiro Livro de Tristram Shandy. Alids um estudo recente vincula o vagabondaggio caprichoso, as piruetas, as extravagdncias lingutsticas, a excentricidade, o aparente desleixo da escrita de Sterne (“eu escrevo a primeira frase e coloco a segunda nas mdos do bom Deus"), & técnica (emprestada aos pintores do século) das “cenas de conversagdo": “poder-se-ia dizer que €™ virtude de sua situagdo social, esses personagens, que se retiraram dos negécios. compensam sua atual inatividade com um discursa desordenade mas ininterrupto, derrisério e patético, sobre as causas primeiras do mundo ¢ 0s fins tiltimos da espécie humana”, Lévy 40, p. 139. — Considere-se ainda 0 quanto o ensaismo diletante de Oscar Wilde deve ao “espirito de conversagdo" e de que modo transparece nos infinddveis parénteses, ramificagdes ¢ excursos da prosa ensaistica da Recherche proustiana a verve de um causeur genial. Arantes, P. E., discurso (21), 1993: $3-118 los (15) “Toda sua (Montaigne) atividade prdtica ndo tem nenhuma relagao proftssional com a espiritual”, Auerbach 8, p. 10. (16) A rigor esse alheamento altivo que aos poucos vai definindo a figura do letrado maderno remonta a época indecisa da Idade Média declinante. Mais precisamente nessa vida do espirito segregada vem espelhar-se, de fato, a lenta substituigao do intelectual medieval pelo monista, nova hegemonia que Jacques Le Goff estudou de perto e cujas observacdes convém referir brevemente. “Raisonneur” ¢ critice profis- sional, 0 letrado medieval pensava e ensinava por oficio: pois é esta alianga de reflexdo pessoal ¢ da sua difusdo institucional que caracterizava o intelectual, cujo tipo “se anuncia na Alta Idade Média, desenvolve-se nas escolas urbanas do século XH ¢ floresce nas universidades a partir do século XHI". Esse meio social bem delimitado e claramente consciente da sua singularidade foi sobretudo o dos “mai- tres des écoles”; nem clerc, nem mistico encerrado no claustro, poeta ow cronista distante do mundo das escolas, o intelectual medieval foi principalmente professor, como Abelardo, glériado “milieu” parisiense e primeira grande figura do intelectual moderno. Membro da intelligentsia urbana, o intelectual medieval com frequéncia assoctou 0 seu engenho ret6rico ¢ “dialético” ao movimento comunal democratico (assim a alianga de Abelardo com Arnauld de Brescia), desafiando 0 conformismo dos grandes “rurais”, De um modo ou de outro, o intelectual do século XII estava a vontade e bem situado noe centro do “chantier” urbano, lugar geométrico da dispu- tatio, paixdo intelectual por exceléncia. Bem avisados portante andavam seus ad- versdrios ortedoxos quando englobavam num mesmo andtema cidades ¢ intelectuais, venditores verborum, Estudando ¢ ensinando as artes liberais — afinal eram “técni- cos da inteligéncia” — os intelectuais urbanos do século XI ombreavam num mesmo impulso produtor com o artesGo ¢ 0 negociante, enfeixando num dinamismo comum Gries liberais ¢ artes mecdnicas. E por este prisma que Le Goff examina o floresci- mento das Universidades no século seguinte: “a esses artesdos do esptrito conduzi- dos pelo desenvolvimento urbano do século XI resta organizar-se no dmbito do Srande movimento corporativo coroado pelo movimento comunal. Tais corporagées de professores e estudantes serdo, no sentide exato da palavra, as universidades”, Com a instituigéo no entanto emerge a luz do dia 0 conflito perene com o poder spiritual e com ele a dubiedade de uma situagdo ne fundo andmala. O universitdrio também é um clere, pois o ensino é uma fungdo eclesidstica, e jd no fim do pertodo ~~ Primeiro lance de uma “traigdo” secular — os intelectuais pouco mais eram do que agentes pontificios, diante dos quais a inclusdo no mundo do trabalho era apenas 106 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 uma alternativa remota face @ integracdo nos grupos privilegiados, Dos trabalha- dores intelectuais restam a bem dizer apenas os obscuros membros do magistério comunal ¢ que ainda desempenhardo um efémero papel de relevo nos movimentos revoluciondrios do século XIV, como 0 dos Ciompi em Florenga. Entre outras coisas, o divércio que apartou de vez vida tedrica e trabalho manual jd enuncia o advento do humanista — compreende-se que personagens tdo eminentes ndo queiram mais correr o riseo de uma confusdo consirangedara com os trabalhadores, “Os intelec- mais juntam-se novamente @ opinido que reserva ao trabalho manual um profundo desprezo”. O retorno do cuidado com a “bela lingua” vird marcar definitivamente 0 processo de aristocratizagdo do antigo universitdrio. Pois o humanista é um aristocrata, cujo saber é agora da ordem da posse ¢ do entesowramento destinado ao circulo intimo de uma elite; 0 seu meio é a Academia, seu cendrio a corte, endo mais a cidade, a riqueza material, a burocracia, o faver dos grandes. “Eles trabalham em siléncio. O que mais prezam é o lazer, o dcio, ocupado com as belas-letras, o otium da aristocracia antiga”. Mas onde esse désoeuvrement distinto e estudiose encon- irard methor refigio sendo no isolamenta da viagem, no abrigo solitérie do campo? O lazer humanista, que prefere a arquitetura arejada das villas campestres, retira de vez intelectual da cidade. “Assim os humanistas”, conclui Le Goff, “abandonam uma das tarefas capitais do intelectual, 0 contacto com a massa (...) nada mais eloquente do que 0 contraste entre as imagens que representam no trabalho o intelectual da Idade Média € 0 humanista. Um é 0 professor, surpreendido no ato de ensinar, redeado de alunos, assediado pelos bancos onde se comprime 0 auditério. O outro é um sdbio solitdrio no seu gabinere tranquilo, & voniade no meio da pega ampla e denotando a bastanga, onde se movem livremente seus pensamentos, Aqui € o tumult das escolas, a poeira das salas, a diferenga diante do cendrio do labor coletivo, La tout n'est qu’ordre et beauté / Luxe, calme et volupté” (Cf. Le Goff 39). — Tal é 0 terreno longinquo e bem ordenado em que deita raiz 0 humanisme tardio de Montaigne, a nabre isengdo que se desprende do tom grand seigneur da sua ironia distanciada. Sera necessdrio um largo e sinuoso périplo para que o intelectual volte a reatar a sua primitiva alianga com a massa — ou pelo menos o que.ele julga ser assim. (17) Tal como o descreveu Maurice Blanchot (17). (18) Que continuamos acompanhando, cf. Bénichou 13, pp. 25, 26. Note-se que ess mesma énfase iluminada atravessa por inteiro a diatribe de Rousseau contra as letras no Primeiro Discurso, ef. ibid. p. 26. ‘Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 107 (19) Carta de Thomas, citada por Bénichou 13, p. 40. (20) As citagdes subsequentes remetem ao primeiro capitulo do Livro II de.’ Ancien “Régime et la Révolution (Tocqueville 65). (21) Citado por Jean-Pierre Rioux (50, p. 18). (22) A expressao é de Furet comentando Tocqueville; cf. Furet 23, p. 204. (23) Apud Raymond Williams 67, p. 31. Pois é esta concepgdo “inglesa” da politica, onde a prudente ¢ reformadora gestdo “pratica” da coisa piiblica é contraposta ao “revolucionarismo dos “valores tiltimos”, que sustenta o comentério favordvel de “Furet: “Os intelectuais sdo por natureza, e nao mais apenas pela forga das coisas, 0 grupo social mais estranho @ experiéncia politica” (Furet 23, p. 204). Neste quadro, 0 elogio do empirismo ganha sem diivida um novo colorido. Pt '4) Citado por Jean-Pierre Rioux (50, p. 18). (25) Ver a respeito a Introducdo do recente livro de Régis Debray (21), que sé -pudemos consultar quando esse estudo jd estava em andamento. Debray abre o seu assunto evocando a capitulo hegeliano sobre o Reino Animal do Espirito, que interpreta também como uma descrigdo da figura do intelectual, além de reconhecer no Neveu de Rameau uma mise-en-setne do mesmo personagem. (26) Walter Benjamin constitui uma excegda notdvel. E para explicd-la que Hannah Arendt apartou dos “intelectuais” 9 homem de letras enelausurado porém rebelde. -“Ninguém estava preparado para stbvenciond-lo na tinica ‘posigdo’ para qual havia nascido, a de um homme de lettres, posigdo de cujas perspectivas iinicas nem os ‘Marxistas mem os sionistas se davam ou podiam dar-se conta (...) se menciono esses ‘Antecedentes histéricos é porque em Benjamin se combinou de maneira tao exclusiva _Gelemenio cultural com o elemento rebelde e revoluciondria. Tudo se passa como se Gntes do seu desaparecimento a figura do homme de lettres estivesse destinada a ‘Manifesiar-se uma vez mais na plenitude de suas possibilidades, ainda que — ou _Possivelmente por isso mesmo — tivesse perdido sua base material tdo catastrofica- mente, e assim a paixdo puramente intelectual que torna tdo estimdvel esta figura Pudesse desdobrar-se em todas suas possibilidades mais eloquentes e impressionan- fes” (Arendt 6, pp. 39, 41), 108 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 (27) Que Starobinski se apressa em desmentir: “lauteur des Maximes n'est pas un ambitieux dégu qui cherche une revanche liitéraire et qui écrit des sentences dés. abusées pour se venger de sa maichance sur l’humanité toute entiére". Embora desconsidere qualquer parentesco entre a lingua amarga da desilusdo ¢ os acidentes biogrdficos, mesmo os de ordem politica, Starobinski, ao enraizar o estilo literdrio no da “existéncia” — a desilusde em La Rouchefoucauld precede os contatos reais ¢ & menos a consequéncia de um malogro do que a sua preparagdo — confere por assim dizer uma envergadura sublime, ow “existencial”, é inadaptagdo emblematica da “existéncia” intelectual. Cf. a Intradugdo jd citada das Maximes et Mémoires (La Rouchefoucauld 36, pp. 26, 25). (28) E que culmina na vulgata de Talmon (66, pp. 41-43) (29) Expressdo de Roberto Schwarz, adaptada de Augusto Meyer. (30) Cf. Mannheim 44, p. 116. Alvo dos argumentos polémicos gerados por essa conjuntura cldssica — ettidadosamente tamisada pela tradi¢do que estamos referindo — sobrevive nas teses propostas por Schumpeter na sua pequena “sociologia do intelectual”. E 0 caso do vinculo genérico entre intelligentsia e ressentimento social. Schumpeter subordina o surgimento de uma atmosfera de “hostilidade ativa contra a ordem social” a grupos “que tenham interesse em estimular e organizar o ressen- timento, acalentd-lo, expressd-lo e liderd-lo”, cf. Schumpeter 56, p. 182. Os intelec- fuais constituem o principal detes. “O papel do grupo intelectual consiste, pri- mariamente, em estimular, revigorar, verbalizar e organizar esse material” (ibid. p- 192): entendamos, a matéria-prima de que se nutre essa camada intelectual € 0 ressentimento difuso que todo o sistema social segrega, notadamente o capitalista, por ela racionalizado ¢ elevado & condigdo mais articulada de critica social. (31) O argumente tocquevilliano, seja dito de passagem, ndo cessard jamais de gozar de ampla acothida no seio de uma certa famflia da opiniae francesa. “Essa mistura de profetismo ¢ de inexperiéncia, de generosidade e de irresponsabilidade, de en- gajamento e de isalamento que nunca deixou, desde entéo, de imprimir a sua marca sobre a vida politica de nosso pats”, cf. Julliard 33, p. 92. (32) A boutade é menos frivola do que aparenta, sem prejuizo de sua eventual falta de propésito. Digames, reservando o assunto para momento mais opoertuno, que “empatia” e “falta de cardter” parecem acompanhar regularmente a vida intelectual nas sociedades geradas na seio fértil do “capitalisma retardatdrio”. _ Arantes, P. E., diseurso (21), 1993; 53-118 109 (33) Essa mesma atengdo flutuante — sequela verossimil da empatia diagnosticada r Mannheim — parece ser responsdvel, aos olhos de Schumpeter, nao sé pela renuidade dos lacos de classe dos intelectuais mas também pela sua politizagdo as avessas: “surgem dos quatro cantos do mundo social e passam grande parte de suas vidas (...) formando as pontas-de-langa de interesses de classes que ndo as suas”; of, Schumpeter 56, p. 183. (34) Wahrheit und Methode, citado por Habermas 26, p. 20. (35) Mannheim 44, p. 131, Compare-se com o seguinte passo do raciocinio de Tocqueville: “a prépria ignorancia thes abria caminho para os auvidos e para o coracao da multiddo, Se os franceses ainda participassem, camo em outras épacas, do governo nos Estados Gerais (...) pode-se afirmar que jamais se teriam deixado _inflamar pelas idéias dos escritores, como veio a ocorrer entdo, pois teriam conser- _vado uma certa familiaridade com as questées publicas gue os previniria contra a _teoria pura (...) Todos os que eram prejudicados pela prética cotidiana da legislagao ‘logo se apaixonaram pela polilica literdria, Esta conquistou até mesmo aqueles que or naiureza ou condicdo estavam mais distanciados das especulagées abstratas” Tocqueville 65, p. 233; traducdo citada p. 355). Nao serd demais identificar aqui Uma variante primitiva do argumento orteguiano acerca da conversdo das idéias em dogma quando se transferem da cabega dos intelectuais para o co racdo das massas. (36) Tal é em linhas gerais 0 argumento de Horkheimer para explicar o Terror Jacobino; cf. a tiltima parte do seu estudo Egoismo e Emancipagio (Harkheimer 31). Voltaremos ao assunto. — Uma espécie de “goiit du néant” (para falarmas como 0 Poeta) parece, embora com o sinal invertide, tomar conta das “elites” ¢ das “mas- Sas", 0 que se explicava um pouco pelo entrecruzamento aludido e explorado por Horkheimer e Hannah Arendt. Com a aten¢do voliada para aquelas andlises, e Sobretudo tendo em mente o que se disse a respeito da afinidade eletiva de intelec- Mats e libertinos, seria proveitoso reler alguns trechos de Starobinski (nada impe- dinda de considerar esias mesmas Passagens como uma glosa negativa do moie Paudelaireano: a Revolugao teria sido antes de tudo a obra de voluptueux): “se & Nerdade que a decomposig&o do Antigo Regime se deixa reconhecer na paixdo de acabar de vez que arrasta os seus personagens embleméticos (Don Juan, Valmont) Time & autodestruigdo, devemos prontamente registrar uma paixdo de sinal inversa £complementar: a paixito do comego e recomega (...) Por certo, evitenios confundir: “Precis distinguir, por uma parte, o pendor irresistivel da libertinagem aris- 110 Arantes, P. E., discurso (21), 1993: 53-118 tocrdtica, que procura no prazer e na dissipagdo o seu proprio aniguilamento e, de outra parte, a violéncia popular que se precipita contra um inimigo decididamente exterior. A energia destruidora em diregdes diametralmente opostas” (Starobinski 61, p. 34), — Ao que parece, a julgar pela matéria “ideolégica” referida até aqui, os intelectuais “plebeus” tenderiam a restabelecer a convergéncia, Mas a questdo teria sua dificuldade natural multiplicada caso nos refertssemos & atuagéo revolt ciondria do letrado e libertine Sade. (37) A formula é de Camus (18, p. 155). (38) Outra expresso de Camus (18, p. 145). (39) Expressdo forjada por Francois Furet na esteira do comentario de Tocqueville e Cochin; cf. Furet 23, p. 202. (40) Citado por Mornet 49, p. 470. (41) “La république des lettres est un monde ott l'on cause, mais ot l’on ne fait que causer, ot V’effort de chaque intelligence cherche Vassentiment de tous, l’opinion, comme il cherche, dans la vie réeile, l’oeuvre et l'effet” (Cochin 20, p. 37). (42) Veja-se novamente como a reagdo tradicionalista é sensivel aos malfeites da inteligéncia e da inexperiéncia que the é correlata: “basta-se a razdo a si mesma? Mas sem drivida. Estd claro que no mundo real 0 moralista sem fé, @ politico sem tradigdo, 0 hamem sem experiéncia sdo uns coitados fadados a todas as derrotas (...) Mas nao estamos no mundo real, nao ha obra alguma a empreender; nada mais do que falar, ¢ com tagarelas. Ora, para que serve a fé, a respeito da tradig¢do ou 0 acervo da experiéncia em tal mundo? Sdo coisas que ndo se deixam exprimir com facilidade e ndo tém nada a fazer numa discussdo de principio. Necessérios para julgar correta e justamente, estes conselheiros sao o préprio embaraga quando se trata de opinar claramente. Indispensdveis para o trabalho real, incomodam 0 trabalho verbal, a expressdo” (Cochin 20, p. 38-39). (43) Cf. Julliard 33, p. 93. Como deixar de evocar a figura clownesca do Sobrinho de Rameau, quanto este mesmo autor define o intelectual na sua intervengao politica como alguém que “faz avancar idéias justas através de exemplos falsos e aproxi- magées burlescas”? (44) Formulando a questdo em termas de “escrita”, a bem dizer de forma e género literdrio, Barthes a rigor dilui a dificuldade em que pensdvamos esbarrar, na ‘Arantes, P. E., discurso (21), 1993; 53-118 iit yerdade um falso problema. Por outro lado, sendo a “escrita” cldssica uma “escrita” de classe, a Revolugdo nao lhe altera as normas, sobretudo porque 0 grupo pensanie no final das contas permanece o mesmo, apenas mudando de poder, do intelectual para o politico. A instituigde literéria — no centro, o mito do bien-écrire — atravessa incélume a Revolugde. Mesmo 0 novo que com ela sobrevém, prolonga o gosto neocldssico: © gesto enfdtico e sentencioso que pontua a dicgdo elevada da nova retérica vem consagrar o idedrio do perfeito honnéte homme, para o qual é lei a hierarquia e a separagao dos estilos. No fundo da “escrita” revoluciondria, uma apropriacdo polttica da Forma cléssica. Pois é no quadro dessa “expanséo dos fatos politicos e sociais no campo de consciéncia das Letras” que Barthes situa 0 advento do intelectual, a meio caminho do escritor e do militante, “homem transitive”, cija linguagem, “inteiramente emancipada do estilo”, testemunha, explica, ensina. O que tentdramos ndo propriamente reunir, porém surpreender na sua formagdo concomi- iante ¢ imbricada — o escritor independente € 0 publicista revoluciondrio entre- lacados na figura do homme de lettres — aparecem aqui separados desde 0 comego. Nao obstante, é & meditagdo dessa origem dtiplice que nos convida 0 evidente mal-estar que acompanka a carreira atribulada do intelectual moderno, “escritor mal transformado”, reconhece Barthes. “As ‘escritas’ intelectuais sdo portante instdveis, elas permanecem literdrias na medida em que sdo impotentes e sao politi- eas pela obsessdo do engajamento”. Em suma, nas suas mesmas paiavras, uma Paraliteratura que ndo ousa mais dizer seu nome. Cf. Barthes 11, pp. 19-20, 23-24, (45) Citado por Bénichou 13, p. 63 (46) Cochin néo emprega tal expresso, que alids é de Max Weber; cf. p. ex. Weber 06, pp. 404 ¢ segs. Pelo menos & no espirito das andlises deste tiltimo, que vincula 08 fendmenos do “intelectualismo” as doutrinas da salvagao interior — é a intelec- tual quem inventa a concepcae do “mundo” como um problema de “sentido” — que Alain Besancon, ao utilizar a formula em questdo, langa maa dos argumentos de Cochin para explorar o lugar comum acerca das origens jacobinas do bolchevismo, evidentemente auxiliado pelo inegdvel fascinio exercide pelo jacobinismo no interior da tradicdo marxista, Cf. Besancon 16, p. 39. —O propésito do jd citade comentario de Frangois Furet é 0 mesmo. (47) Baechter, prefaciando Cochin (20, p. 12). Mais adiante (Id. ibidem, p. 15) una referéncia relampaga ao esptrito de Bouvard et Pécuchet, que presidiria o enciclo- Pedismo acanhado dessas sociedades, ajusta-se com precisdo (ndo sabemos se de 112 Arantes, P, E., discurso (21), 1993; 53-118 casa pensado) ao inegdvel sarcasmo flaubertiano entranhado nas andlises franca- mente depreciativas de Cochin, fulminado pelo espetéculo da raciocinagao de massa, (48) Tocqueville, Etat social et politique de la France avant et depuis 1789, apud, Bénichou 13, p. 40. Note-se que o alcance da observacdo é muito mais amplo do que 4 mera constatagdo da utopia compensatéria forjada por uma intelligentsia excluida das fungées piiblicas e por isso mesmo inclinada a ideagéo abstrata da vida social ¢ politica, Via de regra, Tocqueville prefere este caminho onde, de qualquer modo, a quimera de uma sociedade transparente fica suspensa & divagagdo de letrados inexperientes e despolitizados (na acepgio forte e circunstanciada destas expres- s6es, tal como procuramos sugerir): “acima da sociedade real, cuja constituigdo era ainda tradicional, confusa ¢ irregular, com leis diversas e contraditérias, posigées sociais isoladas, condigdes rigidas e encargos desiguais, construia-se assim, pouco 4 pouco, uma sociedade imagindria, na qual tude parecia simples e coordenado, uniforme, equitativo e conforme a razdo. A imaginagao da multidao abandonou graduaimente a primeira para recother-se & segunda. Desinteressou-se do que era, para sonhar o que poderia ser, para, enfim, viver pelo esptrito na cidade ideat que os escritores haviam construfdo” (Tocqueville 65, pp. 238-239). O “realismo" hegeliano, como se verd, € da mesma familia, como também banka nessa corrente da opinido européia, muito pouco especulativa, sua critica conjunta das nogées de Teoria e Dever-ser. (49) “N'oublier jamais", registra em nota Tocqueville, “le caractére philosophique de la Révolution frangaise, caractére principal, quoique transitoire”, apud Furet 23, p. 251. (50) Veja-se, entre outros, Soboul 58, pp. 143 ¢ segs., e 57, pp. 223 ¢ segs. (51) Obviamente Cochin ndo é muito terne para com a “ideologia” da democracia direta, de certo modo fabricada nessas células intelectuais que sao os clubes patrioti- cos € as academias “filoséficas"; e ndo sdo poucos os sarcasmas que reserva a fusdo do Estado na sociedade civil, por exemplo: “servo sob 0 rei em 1789, livre sab a lei em 1791, 0 povo é senhor em 1793 e, governando ele mesma, suprime as liberdades pitblicas que nada mais eram do que garantias para seu proprio uso contra as que governam. Se o direito de voto é suspenso, é porque ele reina; 0 direito de defesa, porque ele julga; a liberdade de imprensa, € porque ele escreve; a liberdade de

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